Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

83
Virginia Maria Fontes Gonçalves DO RACIONALISMO CRÍTICO AO ANARQUISMO PLURALISTA: uma ruptura na transformação do pensamento de Paul Feyerabend DISSERTAÇÃO DE MESTRADO DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA Programa de Pós-graduação em Filosofia Rio de Janeiro, março de 2004

description

Filosofia da Ciência, Feyerabend

Transcript of Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

Page 1: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

Virginia Maria Fontes Gonçalves

DO RACIONALISMO CRÍTICO AO ANARQUISMO PLURALISTA:

uma ruptura na transformação do pensamento de Paul Feyerabend

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA Programa de Pós-graduação em Filosofia

Rio de Janeiro, março de 2004

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CB
Page 2: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

Virginia Maria Fontes Gonçalves

DO RACIONALISMO CRÍTICO AO ANARQUISMO PLURALISTA:

uma ruptura na transformação do pensamento de Paul Feyerabend

Dissertação de Mestrado

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Filosofia da PUC-Rio como requisito parcial para

obtenção do título de Mestre em Filosofia.

Orientador : Prof. Carlos Alberto Gomes dos Santos Co-orientador: Prof. Sérgio Luiz de Castilho Fernandes

Rio de Janeiro, março de 2004

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CB
Page 3: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

Virginia Maria Fontes Gonçalves

Do racionalismo crítico ao anarquismo pluralista: uma ruptura na transformação do pensamento de

Paul Feyerabend

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Filosofia da PUC-Rio como requisito parcial para

obtenção do título de Mestre em Filosofia. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.

Prof. Carlos Alberto Gomes dos Santos Orientador

Departamento de Filosofia PUC-Rio

Prof. Sérgio Luiz de Castilho Fernandes Co-orientador

Departamento de Filosofia PUC-Rio

Prof. Edgard José Jorge Filho Departamento de Filosofia PUC-Rio

Prof. Jürgen Heye Coordenador Setorial do Centro

De Teologia e Ciências Humanas

Rio de Janeiro, 4 de março de 2004

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CB
Page 4: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização da autora, dos orientadores e da Universidade.

Virginia Maria Fontes Gonçalves

Graduou-se em Estatística pela Universidade de Brasília – UnB em 1985. Especializou-se em Análise de Sistemas pela UERJ em 1989 e em Educação Especial – Altas Habilidades em 2001 pela mesma Universidade. Obteve o grau de Mestre em Ciência – Lógica e Metodologia Científica pela Universidade de Londres – London School of Economics and Political Science-LSE em 1995. Desenvolveu projetos de planejamento de experimentos e análise estatística de dados, coordenou projetos de desenvolvimento e implantação de sistemas computacionais, lecionou em cursos de capacitação profissional, graduação e pós-graduação lato senso. Participou de projeto de pesquisa acadêmica em educação especial-altas habilidades bem como de diversos congressos, seminários e encontros nas áreas de educação e filosofia no Brasil e no exterior. Atualmente inicia curso de doutoramento no Programa de História das Ciências, das Técnicas e Epistemologia na UFRJ, participa de dois grupos de pesquisa acadêmica (epistemologia da psicologia e estudos sócio-técnicos) e oferece consultoria em educação especial.

Gonçalves, Virgínia Maria Fontes Do racionalismo crítico ao anarquismo pluralista: uma ruptura na transformação do pensamento de Paul Feyerabend / Virginia Maria Fontes Gonçalves ; orientador: Carlos Alberto Gomes dos Santos ; co-orientador: Sérgio Luiz de Castilho Fernandes – Rio de Janeiro : PUC-Rio, Departamento de Filosofia, 2004. 82 f. ; 30 cm Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Filosofia. Inclui referências bibliográficas 1. Filosofia – Teses. 2. Epistemologia. 3. Pluralismo metodológico. 4. Incomensurabilidade. 5. Relativismo. I. Santos, Carlos Alberto Gomes. II. Fernandes, Sérgio Luiz de Castilho. III. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Filosofia. IV. Título.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CB
Page 5: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

Aos meus sobrinhos, muito queridos, Joseph Diego e Juliana Ruth.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CB
Page 6: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

Agradecimentos Aos professores orientadores Sérgio Fernandes e Carlos Alberto, pela inspirada

participação na escolha do tema de pesquisa, pela maneira atenciosa e gentil com

que sempre atenderam às minhas solicitações e, finalmente, por todo o seu

empenho na revisão criteriosa e cuidadosa desta dissertação.

Aos meus professores, colegas e amigos do curso de filosofia e de outros grupos

de estudos e pesquisa que comigo discutiram e trocaram idéias sobre os mais

variados temas e que muito contribuíram para a realização instigante e prazerosa

deste trabalho.

À minha mãe e irmã, por sua paciência em me ouvir, por seu amor e carinho ao

me apoiar e aconselhar quando eu me sentia diante de algum impasse, por terem

vibrado comigo diante de mais este desafio, pelo sentimento de felicidade que

partilhamos quando um novo desafio se apresenta.

Ao meu companheiro amigo e amoroso, também por sua paciência em me ouvir,

por sua participação efetiva no caminho aberto do qual este trabalho faz parte e

por estar reiteradamente sugerindo alternativas que ampliam os horizontes de

realização e aplicação das minhas possibilidades.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CB
Page 7: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

Resumo

Gonçalves, Virginia Maria Fontes, Carlos Alberto Gomes (orientador), Fernandes, Sérgio Luiz de Castilho (co-orientador), Do Racionalismo Crítico ao Anarquismo Pluralista: uma ruptura no pensamento de Paul Feyerabend. Rio de Janeiro, 2004, 82 p. Dissertação de Mestrado – Departamento de Filosofia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Paul Karl Feyerabend é geralmente conhecido como o filósofo da ciência

contrário à idéia de um método científico único, à racionalidade e à ciência

enquanto conhecimento privilegiado. Defendendo o anarquismo epistemológico,

Feyerabend afirmou que, em se tratando de regras metodológicas para a ciência, a

única regra possível é “tudo vale”. Por entendermos que essa imagem é

excessivamente simplificadora da epistemologia proposta por Feyerabend,

pretendemos mostrar que este filósofo foi muito mais um ardoroso crítico da

uniformidade e defensor da diversidade quanto às formas de conhecimento e

visões de mundo, do que um opositor da ciência per se. Sob esse enfoque, a obra

feyerabendiana ocupa uma posição diferenciada no debate sobre a racionalidade

ou não da ciência, uma vez que sua abordagem vai além das propostas

irracionalistas relativistas que afirmam a influência de fatores não racionais no

desenvolvimento do conhecimento dito científico. Nesta pesquisa, daremos ênfase

às teses feyerabendianas que trazem um alerta quanto à falta de crítica aos

cânones científicos – Objetividade, Razão e Verdade – enquanto legitimadores da

primazia da ciência sobre outras formas de conhecimento. Além disso, iremos

discutir as conseqüências indesejáveis que a ausência dessa crítica traz, não

apenas no âmbito da filosofia da ciência como também ao desenvolvimento desse

conhecimento e, principalmente, à realização da individualidade, da liberdade e

das potencialidades humanas.

Palavras-chave

Epistemologia; pluralismo metodológico; incomensurabilidade; relativismo.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CB
Page 8: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

Abstract

Gonçalves, Virginia Maria Fontes, Santos, Carlos Alberto Gomes (advisor), Fernandes, Sérgio Luiz de Castilho (co-advisor), From Critical Rationalism to Pluralistic Anarchism: a breakaway in Paul Feyerabend’s philosophy. Rio de Janeiro, 2004, 82 p. MSc. Dissertation- Departamento de Filosofia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Paul Karl Feyerabend is generally known as the philosopher of science against the

idea of a unique scientific method, rationality and the view that science is a

privileged form of knowledge. He proposed and defended epistemological

anarchism and argued that, regarding scientific methodological rules, the only

possible rule is “anything goes”. Since we consider this general image a

simplification of Feyerabend’s epistemology, we intend to show that this

philosopher was much more a critic of uniformity and a defender of diversity,

when it comes to different forms of knowledge and worldviews, than an opponent

of science per se. From this point of view, Feyerabend’s writings occupy a special

standing in the rationality of science debate, since his approach goes beyond the

irrationalist relativist positions that state the influence of irrational factors in the

development of so called scientific knowledge. In this research, we shall

emphasize those feyerabendian arguments that constitute an alert towards the lack

of a critical attitude regarding scientific standards – Objectivity, Reason and Truth

– as providers of a legitimate privilege of science in relation to other forms of

knowledge. In addition, we shall also discuss the undesirable consequences of this

lack of criticism not only within the philosophy of science but also for the

development of scientific knowledge itself and, over all, for the accomplishment

of individuality, of liberty and of the human potential.

Keywords

Epistemology; methodological pluralism; incommensurability; relativism.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CB
Page 9: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

Sumário

1. Introdução

10

2. A atitude pluralista e o humanismo em Paul Feyerabend enquanto fios condutores para a ruptura com o racionalismo crítico

16

2.1. Uma trajetória na epistemologia feyerabendiana 17 2.2 Argumentos racionalistas críticos em defesa do pluralismo teórico e de uma base ética humanista para a epistemologia

21

2.2.1. Crítica ao indutivismo positivista e o Princípio de Proliferação Teórica

21

2.2.2. A normatividade e a base ética da epistemologia

26

3. A epistemologia anarquista de Paul Feyerabend 30 3.1. Algumas constâncias “catalisando” a ruptura 31 3.2. A ruptura vem à tona 33 3.2.1. O anarquismo dadaísta enquanto pluralismo tolerante 34 3.2.2. O “vale tudo” em ciência 39 3.2.3. Incomensurabilidade 42 3.2.4. Anarquismo epistemológico e Educação

48

4. Uma avaliação crítica das hipóteses de trabalho 56 4.1. Hipóteses de números 01 e 02 57 4.2. Hipótese de número 03

62

5. Conclusão 65 5.1. Conclusões desta pesquisa 65 5.2. Delineamento preliminar de uma nova hipótese para pesquisa 68 futura 5.2.1. A falta de unidade da ciência, os agrupamentos dos sistemas 68 complexos em sub-sistemas e as interações entre as diversas disciplinas científicas 5.2.2. As interações entre ciência e sociedade e as interações entre 71 sistemas complexos e o seu meio ambiente 5.2.3. Critérios de demarcação e o seu paralelo hipotético com o reflexo dos fluxos de informação na estrutura dos sistemas complexos

72

5.2.4. A contra indicação de hegemonias no anarquismo e nos sistemas complexos

74

5.2.5. Irracionalidade, emergência e representação

75

6. Referências Bibliográficas 79

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CB
Page 10: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

Quem conhece a sua ignorância revela a mais alta sapiência.

Quem ignora a sua ignorância vive na mais profunda ilusão.

Não sucumbe à ilusão quem conhece a ilusão como ilusão.

O sábio conhece o seu não-saber e essa consciência do não saber

o preserva de toda ilusão.

Lao-Tse, Tao Te King

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CB
Page 11: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

1 Introdução

O intenso e reconhecido debate Popper-Kuhn-Lakatos-Feyerabend ocupou uma

posição central na filosofia da ciência nas décadas de ´60 a ´80, reunindo na

publicação Criticism and the growth of knowledge, editada por Lakatos e Musgrave

em 1970, uma série de artigos representativos desse debate. Diversas questões foram

intensamente discutidas, levando a uma série de indagações sobre a natureza e os

limites do conhecimento científico, abordando, entre outros, os seguintes problemas:

a) da objetividade e racionalidade ou não da ciência; b) da existência de um método

único que garanta a racionalidade e cumulatividade do conhecimento científico; c) do

caráter progressivo ou apenas de mudança desse conhecimento, d) dos objetivos da

ciência e, e) dos critérios de demarcação entre ciência e outras formas de

conhecimento. A apresentação de soluções ou respostas a esses problemas, a partir

desse debate, proporcionou a formação de diversas posições epistêmicas, com

respectivas implicações ontológicas, acerca da possibilidade e condições de

conhecimento da realidade por parte do ser humano.

Apesar da variedade e riqueza no detalhamento de argumentos e propostas

epistemológicas e metodológicas desde então, o referido debate continua em aberto.

A despeito das inúmeras tentativas mais recentes de superação dos impasses gerados

por esse debate (Santos, 1993), buscando alternativas que escapem ao irracionalismo

(Miller, 1994) e ao relativismo (Laudan, 1996), percebemos uma crescente tendência

à conclusão pela aporia de toda essa discussão, bem como pela denúncia dos supostos

fundamentos empíricos e justificação racional do conhecimento científico (Fernandes,

1995 e 2002). Há, inclusive, quem proclame a fim da ciência, dada a sua

incapacidade em tornar-se um corpo unificado, objetivo e universal de conhecimento.

(Horgan, 1996).

Contudo, a ciência permanece na cultura ocidental como a forma privilegiada

de conhecimento, reconhecida e aceita como o meio ou instrumento mais adequado

tanto para a interpretação da realidade quanto para a formulação do conceito de ser

humano. Por um lado, a ciência se impõe na prática pelos avanços tecnológicos que

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CA
Page 12: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

Introdução

11

conferem ao homem de ciência um crescente domínio e manipulação da natureza; por

outro, a ciência busca uma justificativa epistemológica para essa primazia,

declarando-se fundamentada e orientada pela Razão.

A caracterização da ciência como conhecimento justificado pelo uso da Razão

remonta à origem da filosofia ocidental (Platão, 1921), porém, esta origem não será

discutida aqui por fugir ao objetivo desta pesquisa. Entretanto, nossa discussão

abrange os desdobramentos dessa origem, os quais resultaram numa variedade de

correntes epistemológicas, ora em busca de justificação racional para o conhecimento

legítimo [científico], ora argumentando pela inexistência de tal justificativa e até pela

sua desnecessidade.

A partir da era moderna (séculos XVI e XVII), racionalismo e empirismo

constituem as duas grandes correntes na epistemologia. Divergindo quanto aos

fundamentos para a obtenção do conhecimento legítimo sobre a realidade - idéias

claras e distintas para o racionalismo e impressões claramente manifestas pelos

sentidos para o empirismo - ambas reiteram o uso da Razão para atingir-se esse

conhecimento.

Hume, tal como Descartes, deseja distinguir o que podemos genuinamente conhecer do que não podemos.[...] Há um aspecto importante em que Hume não é nada racionalista: é convencionalmente classificado como empirista, e enquanto tal, como pensador em oposição ao racionalismo. Não obstante, os termos chave de referência do esforço cartesiano são mantidos. Hume é racionalista num sentido crucial: vamos nele uma tentativa individualista de determinar racionalmente os limites e a natureza do mundo genuinamente cognoscível.

(Gellner, 1992: pp. 27 e 28, grifo nosso).

E desse esforço de delimitação pela Razão das possibilidades de conhecimento,

dentro da tradição guiada pela Razão e, a partir da oposição epistêmica entre

racionalismo e empirismo, Immanuel Kant1 apresenta uma teoria do conhecimento

1 Na Crítica da Razão Pura, Immanuel Kant formula uma teoria do conhecimento que busca, em última análise, compor os impasses existentes entre o empirismo e o racionalismo. Na Analítica Transcendental, avalia a contribuição dos conceitos puros do entendimento — as categorias — para o conhecimento, além de investigar, nas páginas relativas à unidade sintética de apercepção e ao esquematismo da razão pura, como o engendramento da sensibilidade com o entendimento se compõem para fornecer a experiência cognitiva. KANT, I. Crítica da Razão Pura. Tradução J. Rodrigues de Mereja. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1966 in Siqueira-Batista, R, 2003 – artigo para Revista Episteme, em fase de publicação.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CA
Page 13: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

Introdução

12

que articula a experiência sensorial com o entendimento para a realização da

experiência cognitiva.

A partir desse ponto, o papel a ser desempenhado por cada um dos elementos

constitutivos da cognição - sensação e entendimento - e a projeção desses papéis no

nível metodológico para a obtenção de um conhecimento científico, resultaram em

variadas teorias de conhecimento, tais como: positivismo, racionalismo crítico,

fenomenologia, pragmatismo e instrumentalismo. Todavia, tais teorias apresentam

dificuldades, tanto na proposição de um método científico universal e racional que

corresponda aos fatos da história da ciência, quanto na justificação da racionalidade

científica. Dadas essas dificuldades, surgem alternativas irracionalistas e relativistas

para o conhecimento. Assim, o debate entre o empirismo e o racionalismo foi, por

assim dizer, transformado num debate entre dois grupos antagônicos de teorias do

conhecimento: um postulando regras e buscando evidencias do uso da Razão na

construção do conhecimento legítimo e, o outro, afirmando a falta ou a não

exclusividade do uso da Razão no desenvolvimento do conhecimento.

O foco desta pesquisa, a epistemologia anarquista de natureza relativista e

irracionalista de Paul Feyerabend (1924-1994), o qual afirma a falta de um método

único no desenvolvimento do conhecimento e sugere objetivos humanistas para a

ciência, se insere justamente nesse cenário, onde se contrapõem: o racionalismo

crítico de Karl Popper, representado pelo falsificacionismo metodológico (Popper,

1968); um racionalismo “flexibilizado” de Imre Lakatos, representado pela

metodologia dos programas de pesquisa (Lakatos, 1978); e o relativismo

irracionalista, porém, paradigmático de Thomas Kuhn, representado pelo ciclo

[período pré-paradigmático – formação de um paradigma - ciência normal – acúmulo

de anomalias - revolução] (Kuhn, 1970).

Cabe lembrar que Feyerabend iniciou sua carreira filosófica na década de ’50,

quando o debate epistemológico girava em torno dos postulados do positivismo do

Círculo de Viena. O verificacionismo positivista foi contundentemente rechaçado por

Karl Popper, e Feyerabend, que foi seu aluno, adotou o falsificacionismo racionalista

crítico como alternativa ao positivismo. Contudo, ao longo dos 40 anos de sua

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CA
Page 14: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

Introdução

13

produção intelectual, Feyerabend apresentou uma marcante transformação do seu

pensamento, realizando uma ruptura entre o racionalismo crítico, de um lado, e o

relativismo pluralista “anarquista”2 de outro.

A epistemologia que, a meu ver, melhor expressa as concepções

feyerabendianas, ocorre após essa ruptura, porém, ainda inserida num contexto

epistemológico que tradicionalmente valoriza o método universal, a ordem e a Razão.

Nesse contexto, a visão feyerabendiana de conhecimento traz uma imagem de

desordem, de oposição ao método e à ciência, de ausência de critérios e princípios, de

uma verdadeira “anarquia”, tendo sido considerada alheia à filosofia por uma grande

parte de epistemólogos à época (décadas de ’70 e ’80). (Preston, 1997: p.7). Vista

pelo enfoque acima descrito, tanto a crítica feyerabendiana à discriminação pejorativa

de formas não científicas de conhecimento - e correspondentes visões de mundo –

quanto as idéias desse epistemólogo em prol do reconhecimento e valorização dessas

formas não científicas de conhecimento, não receberam uma maior atenção no debate

filosófico. Retomar essa crítica e, em especial, essas idéias, constituem as principais

motivações para a realização desta pesquisa.

Pretendemos, então, mostrar que Feyerabend foi muito mais um ardoroso

crítico da uniformidade e defensor da diversidade quanto às visões de mundo, do que

um opositor da ciência per se, afirmando na Introdução de seu Farewell to Reason,

edição de 1994, p. 12: “.... entendemos que não há nada na natureza da ciência que

exclua a variedade cultural” (minha tradução, itálicos no original).

Prosseguindo nessa linha de raciocínio, entendemos que a obra feyerabendiana

ocupa uma posição diferenciada no debate sobre a racionalidade ou não da ciência,

uma vez que sua abordagem vai além das propostas relativistas que afirmam a

influência de fatores não racionais no desenvolvimento do conhecimento dito

científico. Para defender nosso ponto de vista, daremos ênfase às teses

feyerabendianas que trazem um alerta quanto à falta de crítica aos cânones científicos

- Objetividade, Razão e Verdade – enquanto legitimadores da primazia da ciência

sobre outras formas de conhecimento e quanto às conseqüências indesejáveis que a

2 Anarquismo entendido como dadaísmo, e não como anarquismo político. Para um melhor detalhamento desta distinção ver Capítulo II desta dissertação e Feyerabend, P.K., 1975: Against Method, p. 21-rodapé e pp. 189-190.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CA
Page 15: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

Introdução

14

ausência dessa crítica traz, não apenas no âmbito da filosofia da ciência como

também no desenvolvimento desse conhecimento e, principalmente, na realização da

liberdade individual e das potencialidades humanas.

À luz dessa atitude crítica, Feyerabend defende uma “ciência” ou um

conhecimento sob a forma de investigação criativa e livre de restrições

metodológicas, argumentando que tais restrições repousam sobre a idéia equivocada

da existência de um método científico universal - que suscita a rejeição de outras

formas de conhecimento - e cujo emprego levaria a teorias científicas gradativamente

mais próximas à Verdade. Para Feyerabend, tal método único não existe e a

conseqüente rejeição a formas diferentes de conhecimento não se justifica. Em

primeiro lugar, o progresso do conhecimento científico resulta da repetida

transgressão de regras metodológicas, da atitude pluralista e antidogmática dos

grandes cientistas, bem como da interação e integração da ciência com outros saberes.

Em segundo, no tocante à idéia de uma teoria ser considerada como a mais próxima à

Verdade, Feyerabend aponta para o perigo de tal teoria na prática tornar-se imune à

crítica e à comparação com outras alternativas teóricas, transformando-se num

dogma, dificultando ou até impedindo as possibilidades de desenvolvimento do

conhecimento humano.

Ante o exposto, com o propósito de estabelecer fios condutores para esta

pesquisa, que visa explicitar alguns aspectos que distinguem e caracterizam a

epistemologia feyerabendiana retomando a discussão sobre os princípios que

fundamentam o relativismo anarquista, foram delineadas as seguintes hipóteses de

trabalho:

• Hipótese no. 1: O estilo panfletário do filósofo Paul Feyerabend,

principalmente na sua obra “Contra o Método” editada em 1975, levou a uma

tendência para uma interpretação parcial e superficial de sua obra, assumindo-se a

mesma como descrevendo ou sugerindo uma falta total de critérios para a pesquisa

dita científica.

• Hipótese no. 2: Uma leitura mais articulada de todo o conjunto da obra de

Feyerabend nos indicia que, ao contrário de um simplório anarquismo metodológico

com total ausência de critérios, o autor pretendeu atacar a existência de uma unidade

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CA
Page 16: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

Introdução

15

de método científico pautado numa Razão que pressupõe a possibilidade de tal

método único, defendendo a maior plausibilidade e desejabilidade tanto do pluralismo

metodológico quanto de seus fundamentos.

• Hipótese no. 3: O desenvolvimento de uma atitude crítica em relação aos

cânones de racionalidade e objetividade do conhecimento científico e da sociedade

cientificista, segundo Feyerabend, abririam um caminho para outras formas de

conhecimento serem reconhecidamente válidas, tornando sem sentido a

desqualificação atualmente prevalente dessas outras formas de conhecimento

pejorativamente ditas não científicas e/ou não racionais.

O corpo do relatório que resultará da pesquisa irá constituir uma dissertação de

mestrado, cujos capítulos são sucintamente descritos a seguir.

O primeiro capítulo apresentará uma apreciação da obra feyerabendiana a partir

do enfoque dado por Preston (1997) o qual divide essa obra em duas fases:

racionalista crítica e anarquista. Sob esse enfoque, serão destacados aspectos

marcantes de sua fase racionalista crítica, a saber, o pluralismo teórico e a defesa de

uma base ética humanista para a epistemologia, os quais já apontavam para

determinadas características de seu pensamento posterior.

No segundo capítulo, abordaremos o anarquismo epistemológico, em especial

no tocante à sua inspiração no humanismo liberal de John Stuart Mill, à valorização

da diversidade, à interação entre a ciência, outras formas de conhecimento e a

sociedade, às implicações dessa epistemologia para a educação e ao papel da

educação na criação da imagem objetiva e racional conferida à ciência.

Em seguida, no terceiro capítulo, retomaremos cada uma das hipóteses de

trabalho, as quais serão avaliadas quanto à sua plausibilidade, ou não, frente aos

capítulos anteriores, e apreciadas quanto a eventuais complementações, substituições

ou ajustes em seus termos.

Encerrando a dissertação, será apresentada uma Conclusão que trará uma

exposição de idéias e comentários não previstos no projeto da pesquisa porém

intimamente relacionados à mesma por terem surgido ao longo do seu

desenvolvimento, bem como as impressões finais relativas à totalidade da pesquisa.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CA
Page 17: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

2 A atitude pluralista e o humanismo em Feyerabend enquanto fios condutores para a ruptura com o racionalismo crítico

Pretendemos, neste capítulo, discutir princípios característicos da epistemologia

de Paul Feyerabend, utilizando como principal referência John Preston (1997), o qual

apresenta uma análise crítica de toda a sua obra e não apenas das posições

epistemológicas anarquistas pelas quais Feyerabend tornou-se mais conhecido, tanto

no meio filosófico quanto fora dele.

Nessa análise, identificam-se duas grandes fases da obra feyerabendiana: a

primeira das décadas de ’50 a ’70 e a segunda de ’70 a ’90, as quais delineamos no

item 2.1 a seguir. A partir desse apanhado inicial, trataremos no item 2.2 dos

argumentos compatíveis com o racionalismo crítico utilizados por Feyerabend para a

defesa de uma atitude pluralista e de uma ética humanista - já presentes na sua

primeira fase – e cujo acirramento levou ao anarquismo epistemológico dadaísta na

segunda fase. Embora haja uma evidente ruptura entre as duas fases na posição

epistêmica e metodológica, ruptura essa refletida na natureza das teses propostas por

Feyerabend, acreditamos que a identificação dos aspectos comuns às duas fases

favorece um entendimento mais aprofundado da proposta epistemológica

feyerabendiana na fase anarquista.

A ênfase na presença de elementos comuns às duas fases, tem como objetivo

uma tentativa de explicitação do processo pelo qual a inspiração pluralista da

argumentação contrária ao positivismo na epistemologia feyerabendiana transformou-

se num relativismo extremo, batizado como “anarquismo” pelo próprio autor.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CA
Page 18: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

A atitude pluralista e o humanismo em Feyerabend enquanto fios condutores para a ruptura com o racionalismo crítico

17

2.1 Uma trajetória pelas fases da epistemologia feyerabendiana

Ao iniciarmos, deixamos claro que nosso entendimento das fases acima

referidas não assume a existência de fronteiras precisas que determinem o final e o

início de cada fase no tocante às idéias de Paul Feyerabend em cada uma delas,

conforme afirmação do próprio autor da principal referência desta análise (Preston,

1997: p. 7). A transformação do Feyerabend racionalista crítico no Feyerabend

anarquista epistêmico consistiu, como vemos em sua produção escrita, de um

processo gradual cujo início não caberia identificar pontualmente. Contudo, devido

ao impacto de determinadas posições epistemológicas defendidas pela primeira vez

em artigos e livros específicos, e que serão discutidas a seguir, pode-se estabelecer o

limite entre as duas fases de maneira aproximada. Passamos então a um breve relato

histórico de alguns fatos biográficos que marcaram essa passagem de fases na

epistemologia de Paul Feyerabend.

Após o final da II Guerra, em 1947, Feyerabend volta a Viena com intenção de

estudar Sociologia, porém, transfere-se para o curso de Física, ingressando também

na Sociedade Universitária Austríaca. Numa das reuniões da Sociedade em Alpbach,

veio a conhecer Karl Popper em 1948, o qual o apresentou a “Bertalanffy, Karl

Rahner, von Hayek e outros dignatários” (Feyrabend, 1994: p. 80). No ano seguinte,

passa a ocupar a liderança do Círculo Kraft – formado por alunos de filosofia para

discussão da existência de um mundo exterior - organizado em torno de Victor Kraft,

ex-integrante do Círculo de Viena, onde tal questão foi considerada metafísica e,

portanto, sem sentido. Em 1951, Feyerabend recebe o título de doutor, orientado por

Kraft, com uma tese sobre sentenças protocolares. Após o término do curso, iria

tornar-se aluno bolsista de Wittgenstein em Cambridge. Entretanto, dado o

falecimento de Wittgenstein, Feyerabend assumiu a condição de aluno bolsista junto

a Popper em Londres.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CA
Page 19: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

A atitude pluralista e o humanismo em Feyerabend enquanto fios condutores para a ruptura com o racionalismo crítico

18

Em 1953, de volta a Viena, traduziu A sociedade aberta e seus inimigos de Karl

Popper para o alemão, fez um resumo das Investigações Filosóficas de Wittgenstein,

estudou e publicou artigos sobre mecânica quântica, tendo conhecido e sido

influenciado pelas idéias do físico quântico David Bohm e também por Herbert Feigl,

o qual acreditava “na possibilidade de se superar sistemas altamente formalizados

com a ajuda de um pouco de bom senso.” (Preston, 1997: p.4, minha tradução).

Nessa época, seus artigos apresentavam críticas ao positivismo - especialmente no

que se refere ao conhecimento progredir indutivamente a partir de generalizações de

sentenças protocolares - e em favor de um realismo científico alinhado com o

falsificacionismo de Karl Popper.

Com a visão epistemológica racionalista crítica, Feyerabend se empenha na

construção de um “modelo abstrato para aquisição de conhecimento”, sendo este

conhecimento aquele contido nas “proposições científicas”, uma vez que estas

constituem um “excelente exemplo de conhecimento de fato” (Feyerabend, 1965a: p.

217 in Preston, 1997: p. 13). Feyerabend privilegia, então, o conhecimento científico

sobre os demais, em pleno acordo com Popper.

[...] o conhecimento científico pode ser mais facilmente estudado do que o conhecimento de senso comum, por ser o conhecimento de senso comum posto de maneira inequívoca. Seus próprios problemas são uma expansão dos problemas do conhecimento de senso comum.

(Popper, 1968: p. 22, minha tradução)

Coerente com essa posição epistêmica sobre o conhecimento e com o

falsificacionismo enquanto método, Feyerabend sai em busca de um modelo abstrato

- único e racional - para construção do conhecimento [científico]. Nesse esforço,

desenvolve uma metodologia pluralista a partir de uma expansão do conceito de

“experimento crucial”, o dispositivo metodológico falsificacionista para teste e

eventual refutação de uma teoria. Segundo a metodologia pluralista, a proliferação de

teorias rivais – mesmo que sejam incompatíveis entre si e/ou com teorias bem

corroboradas até o momento - torna o experimento crucial metodologicamente mais

eficiente porque favorece a comparação entre teorias rivais além de oferecer subsídios

para o desenvolvimento de novas teorias. (Preston, 1997: p. 137). Na base da

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CA
Page 20: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

A atitude pluralista e o humanismo em Feyerabend enquanto fios condutores para a ruptura com o racionalismo crítico

19

metodologia pluralista está o pluralismo teórico1 que resulta do Princípio de

Proliferação, como se pode ver pela formulação geral desse Princípio, apresentada

abaixo. Esta formulação geral resultou de uma compilação feita por Preston de

diversas referências ao Princípio de Proliferação, encontradas em publicações de

Feyerabend, e reflete a forte tendência ao pluralismo teórico bastante presente nessa

primeira fase da epistemologia feyerabendiana:

Invente, e elabore, teorias que são inconsistentes com o ponto de vista aceito, mesmo que esse último esteja altamente confirmado e aceito de maneira generalizada.

(Preston, 1997: p. 138, minha tradução)

Ao final da década de ’50, Feyerabend assume uma posição na Universidade de

Berkeley, naturalizando-se cidadão americano. A partir daí e por toda a década de

‘60, aparecem os primeiros prenúncios de sua segunda fase, uma vez que seus artigos

e inúmeras palestras numa grande variedade de universidades começam a apresentar

uma tendência de afastamento em relação aos ideais falsificacionistas e, em especial,

ao que Feyerabend considera como cerne do racionalismo: a existência e a busca por

um padrão único de racionalidade científica. (Preston, 1997: p.4). Além disso,

Feyerabend foi gradualmente influenciado pela abordagem histórica da ciência

proposta por Thomas Kuhn - seu colega de departamento em Berkeley no início da

década de ’60, de quem tornou-se fervoroso crítico posteriormente2. Além de voltar-

se contra o racionalismo, a partir do início da década de ’70, percebe-se o seu

“desencantamento” pelos tradicionais ideais epistêmicos – em especial a Verdade - e,

posteriormente, a Razão, a Honestidade e a Justiça, que passam a ser grafados com as

iniciais em letras maiúsculas, o que foi interpretado por muitos como um “sinal de

desdém e deboche” (Preston, 1997:p. 192) .

1 Note-se que o pluralismo teórico (recomendação para a elaboração e teste de várias teorias) não deve ser confundido com o pluralismo metodológico (recomendação para o uso de diversas alternativas metodológicas), o qual só foi defendido por Feyerabend como parte integrante do anarquismo epistemológico, a partir da publicação de “Contra o Método” em forma de artigo em 1970, marcando o início da segunda fase de sua epistemologia. Maiores detalhes sobre essa distinção serão discutidos no Capítulo II. 2 Para um exemplo dessa crítica ver FEYERABEND, P. K., Consolations for the specialist, in Criticism and the Growth of knowledge, Lakatos, I and Musgrave, A (eds), Cambridge, Cambridge University Press, 1970

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CA
Page 21: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

A atitude pluralista e o humanismo em Feyerabend enquanto fios condutores para a ruptura com o racionalismo crítico

20

Assim revela-se o processo de passagem da primeira para a segunda fase da

epistemologia feyerabendiana, caracterizando-se essa passagem pelo abandono da

concepção de um método racional único como viabilizador de conhecimento

legítimo, a crítica à ciência como forma privilegiada de conhecimento sobre as

demais e, um estilo cada vez mais agressivo na sua argumentação.

Não obstante, o que também parece conduzir Feyerabend para sua segunda fase

são os desdobramentos da atitude pluralista e da ética humanista, somadas a

influências do movimento da contra-cultura e da revolução estudantil ao longo da

década de ’60. Em sua autobiografia, Feyerabend cita essa influência e descreve

alguns episódios representativos dessa época, bem como os resultados, que ele

considera benéficos, daquele movimento estudantil:

Os estudantes que participavam do Movimento de Liberdade de Expressão queriam mudar radicalmente aquele estado de coisas. Eles queriam transformar a universidade de uma fábrica de conhecimento (como a definira Clark Kerr, o presidente) em uma comunidade e um instrumento para o aprimoramento social. Suas ações afetavam até os mais tímidos, que se inflamavam, começavam a falar e tornava-se claro que todos tinham idéias interessantes que valiam a pena. Foi uma grande conquista quando a faculdade apoiou a posição dos líderes estudantis e forçou a administração a recuar. O movimento aparentemente alcançara seus objetivos.

(Feyerabend, 1996: p. 132)

A tendência à liberalização de critérios, sejam eles epistemológicos,

acadêmicos ou sociais, passa a exercer cada vez mais influência sobre Feyerabend e

suas idéias sobre o conhecimento passam a não mais caber num contexto

falsificacionista e racionalista crítico; a ruptura com essa epistemologia torna-se,

então, iminente, gerando espaço para o surgimento do anarquismo epistemológico.

No item a seguir, abordaremos esse caminho pelas fases da epistemologia

feyerabendiana a partir das teses e idéias defendidas pelo epistemólogo na sua

primeira fase, indicando os possíveis desdobramentos dessas teses no processo de

transformação e ruptura para sua segunda fase.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CA
Page 22: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

A atitude pluralista e o humanismo em Feyerabend enquanto fios condutores para a ruptura com o racionalismo crítico

21

2.2 Argumentos racionalistas críticos em defesa do pluralismo teórico e da base ética humanista para a epistemologia

Com o objetivo de tornar essa exposição o mais clara possível, optamos por

dividir o texto em itens, embora os argumentos que compõem cada item estejam

relacionados entre si.

2.2.1 Crítica ao indutivismo positivista e o Princípio de Proliferação Teórica

Na crítica feyerabendiana ao indutivismo positivista, ao invés de se enfatizar os

aspectos da estrutura lógica da indução - o fato de não ser logicamente válida a

generalização do particular para o geral – ou, ainda, os problemas referentes à

matematização probabilística dessa generalização, Feyerabend utiliza uma outra linha

de argumento, focada na aplicação prática do raciocínio indutivo em procedimentos

de teste de teorias. Segundo ele, na prática, a “indução” não parte das instâncias

particulares para a generalização. Ao contrário, admite-se a generalização como

verdadeira e parte-se em busca de argumentos para dar suporte à crença na

propriedade (verdade) da generalização. Dessa forma, a busca pela justificação da

inferência indutiva resulta numa restrição das conclusões (tiradas a partir dos testes) a

serem levadas em consideração, negligenciando aquelas teorias alternativas que

estejam em desacordo com a generalização previamente aceita. (Feyerabend 1964b in

Preston, 1997: p.19).

Para Feyerabend, esse procedimento “indutivo” parte de e leva a dois

equívocos. O primeiro: a atitude de adotar a crença de que uma única generalização

(teoria) pode explicar todos os fatos, seguida da realização de testes na tentativa de

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CA
Page 23: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

A atitude pluralista e o humanismo em Feyerabend enquanto fios condutores para a ruptura com o racionalismo crítico

22

comprovar empiricamente essa generalização, previamente assumida. O segundo: a

condução de testes adotando o que ele chamou de “modelo de teste ortodoxo”, onde

apenas uma generalização (teoria) é utilizada para a interpretação dos fatos. Dessa

forma, a indução torna-se perniciosa pelo que ela assume – a generalização única, um

monismo teórico – e pelo que ela gera – um procedimento restritivo sob a forma de

um “modelo ortodoxo de teste”. Vejamos em detalhe por quê.

Para tanto, lembremo-nos que, nesse momento, Feyerabend ainda é

falsificacionista e, portanto, assume a falibilidade das teorias bem como a realização

de testes, ou experimentos cruciais, visando a sua refutação. O valor de uma teoria

(falível) está no seu conteúdo empírico (ou informativo), o qual consiste do conjunto

de proposições que potencialmente a refutariam. Este é o rigoroso critério de

demarcação que, além de separar a ciência de outras formas de conhecimento – e da

metafísica - também define a honestidade do cientista, o qual somente propõe teorias

passíveis de refutação.3 Nesse contexto epistemológico e metodológico, o prejuízo

potencial do monismo teórico está no fato que, quando uma teoria é considerada

única em dado contexto, ela acaba por orientar nossa capacidade cognitiva, tornando-

se uma teoria virtualmente não refutável, assumindo o status “mítico” de uma teoria

hegemônica. Pior do que isso, sob determinadas condições, tal situação poderia levar

à estagnação da ciência, uma vez que, enquanto conhecimento falível, esta necessita

de uma atitude crítica constante para que possa progredir.

[A] influência sobre nosso pensamento de uma teoria científica abrangente ou de qualquer outro ponto de vista geral, tem profundidade bem maior do que admitem aqueles que a consideram um esquema conveniente apenas para a ordenação dos fatos. [T]eorias científicas são formas de olhar o mundo, e sua adoção afeta nossas crenças e expectativas e, portanto, nossas experiências e concepções da realidade.

(Feyerabend, 1962a in Preston, 1997: p.75, minha tradução)

3 A honestidade científica constitui um outro cânone epistêmico falsificacionista que Feyerabend virá a recusar na sua epistemologia posterior, argumentando que o cientista é muito mais um “oportunista do que um fiel seguidor de regras metodológicas. (Preston, 1997: p. 172 e Feyerabend, 1975, p: 179). O sentido da palavra “oportunista” aqui se opõe ao sentido de “fiel cumpridor de regras metodológicas”, sem possuir outras eventuais implicações morais associadas `a palavra “oportunista”. Sobre esta questão, veja também pp. 22 – 23 e 27 do Capítulo 3.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CA
Page 24: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

A atitude pluralista e o humanismo em Feyerabend enquanto fios condutores para a ruptura com o racionalismo crítico

23

Assim, o pluralismo teórico se faz necessário como um elemento que amplia as

possibilidades da atitude crítica na ciência e promove, na prática, condições

adicionais para o eventual falseamento das teorias científicas sob teste. Em suma, o

pluralismo teórico reforça e enriquece o exercício da aplicação do Princípio da

Falseabilidade. Trata-se aqui de uma justificação racionalista crítica para a

diversidade teórica a qual, em última instância, possibilita também a diversidade nas

formas de ver o mundo. Esta defesa será marcante na epistemologia anarquista,

contudo, utilizando outros argumentos para a sua sustentação como veremos no

próximo Capítulo.

Vejamos, agora, por que o monismo teórico também é indesejável no tocante à

condução de testes ou experimentos cruciais. Segundo Feyerabend, a testabilidade de

uma teoria – o seu conteúdo empírico – depende não apenas da relação entre a

negação de suas conseqüências com fatos observáveis, mas também com o estado de

desenvolvimento de teorias rivais no mesmo domínio. Assim, para maximizar o

conteúdo empírico de uma dada teoria, além de ela dever possuir uma certa classe de

instâncias falseadoras, também é necessário o desenvolvimento de teorias alternativas

no mesmo domínio. Como se vê, esse argumento pressupõe a desejabilidade de

maximização de conteúdo empírico sob a forma de maximização de potenciais

instâncias falseadoras de uma dada teoria – critério tipicamente falsificacionista. A

defesa de teorias alternativas para essa finalidade se dá através de um argumento

negativo. Feyerabend argumenta que, ao não serem consideradas teorias alternativas,

somente os fatos interpretados pela (única) teoria sob teste são colhidos como

observações. Não obstante, caso outras teorias estivessem desenvolvidas e também

fossem consideradas no teste, os fatos que estas interpretam também seriam levados

em conta no teste, maximizando o seu poder de refutação e, simultaneamente, as

instancias falseadoras da teoria e seu conteúdo empírico, através de uma refutação

indireta.

Embora nossa exposição não vise primordialmente verificar a validade dos

argumentos feyerabendianos e sim os indícios de projeção de elementos de seu

pensamento do período falsificacionista na sua epistemologia anarquista, aqui cabe

um breve comentário sobre esse argumento. Para exemplificar um procedimento

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CA
Page 25: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

A atitude pluralista e o humanismo em Feyerabend enquanto fios condutores para a ruptura com o racionalismo crítico

24

pluralista de teste – em oposição ao modelo ortodoxo – Feyerabend cita o caso do

movimento browniano (Preston, 1997: pp.126 – 130), em que a teoria principal sob

teste era a teoria fenomenológica do calor (TFC) e a teoria alternativa no mesmo

domínio era o que viria a ser a futura teoria de movimento molecular (TMM).

Quando num experimento foi observado um fato inexplicável (não interpretável) pela

TFC e sim pela TMM, Feyerabend sugere que houve uma refutação indireta de TFC a

partir de uma corroboração de TMM, uma vez que as teorias são incompatíveis. Além

disso, ele afirma que uma refutação ortodoxa da TFC não seria possível (pelo menos

não nesse teste conduzido de forma ortodoxa) pois, o fato que levou à refutação

indireta não teria sido sequer percebido (interpretado) caso a teoria alternativa

(TMM) não estivesse sendo considerada durante o teste.

Contudo, há controvérsias quanto a esse conceito de “refutação indireta”, uma

vez que, por definição, o conteúdo empírico de uma teoria refere-se à classe das suas

próprias conseqüências empíricas, e não à classe de conseqüências empíricas de

teorias incompatíveis com esta primeira.4 Assim sendo, uma teoria é refutada pela

observação da negação de qualquer proposição que pertença à classe de suas próprias

conseqüências empíricas e não pela observação de uma proposição que pertença à

classe de conseqüências empíricas de uma outra teoria. Não nos aprofundaremos aqui

nesta questão porque esta discussão foge ao objetivo da nossa pesquisa, entretanto,

julgamos interessante apontar para um possível contra-argumento à tese

feyerabendiana em defesa do pluralismo teórico.

Dessa forma, pretendemos enfatizar que Feyerabend argumenta a favor do

pluralismo teórico com finalidades metodológicas no tocante à condução de testes,

utilizando-se de pressupostos falsificacionistas. Esse pluralismo consiste na utilização

de teorias alternativas e explicativas relativas a um mesmo domínio, ainda que tais

alternativas ainda não possuam nenhuma comprovação empírica.

Embora o pluralismo teórico (primeira fase) seja distinto do pluralismo

metodológico (segunda fase), onde a recomendação é o uso de qualquer método ou de

nenhum método conforme as circunstâncias, há um mesmo Princípio de Proliferação

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CA
Page 26: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

A atitude pluralista e o humanismo em Feyerabend enquanto fios condutores para a ruptura com o racionalismo crítico

25

invocado por Feyerabend em ambos os casos, qual seja: o de considerar o eventual

uso de alternativas. Aplicando-se este princípio, o pluralismo metodológico pode ser

visto como uma projeção da atitude pluralista do nível teórico para o nível da

metodologia. No entanto, a realização de uma tal projeção exige uma transformação

radical – ou uma ruptura – ao nível epistemológico. Isto porque, embora o

racionalismo crítico seja compatível com uma atitude pluralista em relação a teorias –

que nada mais são do que conjecturas – tal liberalidade não é aceitável ao nível

metodológico, o qual está restrito pelos ideais de um método único orientado para a

busca objetiva e racional pela verdade. Para acomodar o pluralismo metodológico

epistemicamente, torna-se necessária uma outra epistemologia, que na segunda fase

aparece como a epistemologia anarquista.

Não nos cabe afirmar que a projeção acima descrita de fato ocorreu e, caso

tenha ocorrido, que tenha adotado precisamente esta forma no pensamento

feyerabendiano. A “subordinação” da metodologia frente à epistemologia pode muito

bem ser uma exigência de eventual justificação e não de descoberta, criação ou

intuição de uma metodologia nova. Contudo, não se pode negar que a epistemologia

anarquista é compatível com o pluralismo metodológico enquanto o racionalismo

crítico não o é. Além disso, Feyerabend só passou a advogar o pluralismo

metodológico dentro do contexto epistemológico anarquista. Portanto, parece

razoável cogitar que a atitude pluralista presente no racionalismo crítico ao nível

teórico pode ser entendida como uma projeção ao nível metodológico no anarquismo

relativista, evidenciando uma espécie de continuidade – e também uma ruptura –

entre as duas fases da epistemologia feyerabendiana.

Prosseguimos, então, com a exposição de teses de primeira fase racionalista

crítica do pensamento de Paul Feyerabend apresentando os possíveis caminhos que

tais teses percorreram na formação da segunda fase anarquista.

4 Para um detalhamento dessa questão, ver: Laudan, Larry, For method, Or against Feyerabend, in An Intimate Relation, R. Brown & J. Mittlestrass (eds), Dodrecht, Kluwer, (1989) e Preston (1997, p. 132-136)

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CA
Page 27: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

A atitude pluralista e o humanismo em Feyerabend enquanto fios condutores para a ruptura com o racionalismo crítico

26

2.2.2 A normatividade e a base ética da epistemologia

Conforme mencionamos acima (p. 18), Feyerabend marca a primeira fase de

sua carreira na filosofia em busca de um “modelo racional para aquisição do

conhecimento”, supondo que, para tanto, poderia-se ater apenas à aquisição do

conhecimento científico. Subjacente a este objetivo e às formas pelas quais pretende

atingi-lo, encontramos sua forte identificação com a epistemologia popperiana.

(Preston, 1997: p. 11) Além de ambos considerarem válido estudar o conhecimento –

suas condições de possibilidade, maneiras de alcançá-lo, formas de fazê-lo progredir -

via conhecimento científico, concordavam também quanto à maneira como se deve

fazer epistemologia. Esta deve tratar do conhecimento “sem sujeito conhecedor”

apresentado por Popper em seu Conhecimento Objetivo (Popper, 1972a), em oposição

à abordagem tradicional dos empiristas ingleses, Kant, Mill, Russel e Husserl, que

partem do sujeito conhecedor e buscam qual seria a sua relação cognitiva com o

mundo exterior. A epistemologia partilhada, na época, por Popper e Feyerabend,

voltava-se para os produtos do conhecimento, as afirmações científicas, leis e

asserções que resultam da atividade cognitiva.

Além da influência popperiana no tocante à natureza normativa da

epistemologia, Feyerabend também partilha essa concepção com seu ex-professor,

Victor Kraft, para quem:

A teoria do conhecimento deve ser algo muito diferente das ciências factuais; ela não lida com algo que exista na realidade, porém, estabelece objetivos e normas para nossa atividade intelectual.

(Kraft, 1960: p.32 in Preston, 1997:p.14, minha tradução)

Embora Feyerabend tenha vindo a suprimir em edições posteriores aquelas

passagens de suas publicações onde está explícito seu compromisso com essa visão

normativa da epistemologia, ela esteve presente nas versões originais de seus artigos

até 1968. (Preston, 1997: p. 213, n.10). Contudo, o ponto sobre o qual desejamos

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CA
Page 28: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

A atitude pluralista e o humanismo em Feyerabend enquanto fios condutores para a ruptura com o racionalismo crítico

27

chamar atenção é que a concepção normativa ao nível epistemológico corresponde,

ao nível do conhecimento (científico) e da metodologia, a uma concepção

convencionalista. Com isso, os “fatos” científicos (teorias) e os “fatos”

metodológicos (regras) poderão ser vistos de formas diferentes em função dos ideais

epistemológicos prescritos para tal exame. Em outras palavras, o que é e como deve

ser atingido o conhecimento passam a ser questões de norma e não de fato5. Resta

então determinar quais os critérios para a adoção de determinados ideais epistêmicos

em detrimento de outros. A resposta para essa questão, segundo Feyerabend, deve ser

ética, com base nas conseqüências das decisões metodológicas que esses ideais

epistemológicos venham a implicar. A fundamentação ética da epistemologia

feyerabendiana fica bem clara na seguinte passagem:

O seguinte problema fundamental: qual atitude deveremos adotar e qual tipo de vida iremos levar.... é o mais fundamental de todos os problemas da epistemologia.[...] (a) epistemologia, ou a estrutura de conhecimento que aceitarmos, repousa sobre uma decisão ética.

(Feyerabend,1961a:pp. 55-56 in Preston, 1997: p.21, tradução e grifos meus)

Entretanto, resta saber quais critérios deverão pautar a desejabilidade ética das

conseqüências das decisões metodológicas. Referindo-se às regras que pautam tais

decisões, Feyerabend recomenda:

....Reunir tais regras, eliminar delas qualquer traço remanescente de dogmatismo e cegueira ideológica, seria um ponto de partida para um tipo de conhecimento que é aberto ao progresso e, portanto, humanisado.

(Feyerabend, 1965a: p. 217 in Preston, 1997: p. 21)

Mas o que quer dizer “conhecimento aberto ao progresso e humanisado” para

Feyerabend em 1965? No trecho acima, o epistemólogo faz uma associação direta

entre tal conhecimento e aquele livre de “dogmatismo e cegueira ideológica”. Vimos

acima (pp. 21 – 25), na argumentação pela pluralidade teórica, um forte elemento

5 Esta posição cria um forte impasse com o realismo científico que Feyerabend também defende nessa época. Para uma crítica a essa inconsistência da epistemologia feyerabendiana ver: Preston, 1997: p. 22)

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CA
Page 29: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

A atitude pluralista e o humanismo em Feyerabend enquanto fios condutores para a ruptura com o racionalismo crítico

28

contra a hegemonia teórica, especialmente no tocante às potenciais limitações que tal

hegemonia poderia impor tanto sobre a habilidade crítica quanto sobre a percepção da

realidade pela cognição humana. Não parece absurdo cogitar então que, o

conhecimento – no contexto de uma epistemologia normativa - será tanto mais aberto

ao progresso e humanisado, quanto mais estiver livre da possibilidade de

dogmatismo, enquanto conseqüência potencial da hegemonia teórica.

Outro aspecto que talvez esclareça o que Feyerabend entende por um

conhecimento aberto ao progresso e humanisado está no seguinte trecho:

O fato que praticamente qualquer doutrina filosófica pode encontrar sua realização tanto numa cosmologia... e/ou numa teoria do homem... torna muito claro que o procedimento que leva à adoção de uma posição filosófica não pode ser a prova ... mas precisa ser uma decisão com base em preferências.... Filósofos têm habitualmente julgado a situação de modo bem diferente. Para eles, somente uma dentre as diversas posições existentes era verdadeira e, portanto, possível. Essa atitude, naturalmente, restringe consideravelmente as possibilidades de escolha responsável... [O] problema da escolha responsável permeia até mesmo as questões mais abstratas da filosofia e... a ética é, portanto, a base de todo o resto.

(Feyerabend, 1965a: p. 219, n.5 in Preston 1996, p: 21, minha tradução)

Ao criticar a atitude de aceitar (como verdadeira) somente uma posição

filosófica, novamente aparece a rejeição à hegemonia, desta feita como elemento

restritivo das possibilidades de uma “escolha responsável”. Há uma mudança de foco

nesse argumento se comparado com aquele que advoga a pluralidade teórica.

Naquele, a pluralidade teórica é posta como condição para o avanço do conhecimento

científico. Neste, a pluralidade de posições filosóficas favorece a escolha responsável.

Hegemonias, cada uma em seu âmbito, são apontadas como elementos limitadores,

sempre incompatíveis com a idéia de progresso e humanização.

Tal associação parece refletir a forte influência que o humanismo liberal de

John Stuart Mill exerce sobre Feyerabend. Embora nos limites desta pesquisa a

primeira citação de Feyerabend a Mill ocorra já em sua segunda fase (Feyerabend,

1975), os trechos que acabamos de comentar são de sua fase anterior.

O que nos parece é que, na região fronteiriça entre as fases do pensamento

feyerabendiano, os fundamentos da epistemologia normativa e da metodologia

falsificacionista usados contra a hegemonia (seja ela teórica ou de posição filosófica)

começam gradualmente a ser acompanhados de argumentos que apelam a valores

humanistas. E esse humanismo liberal é fundamentalmente marcado pela oposição ao

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CA
Page 30: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

A atitude pluralista e o humanismo em Feyerabend enquanto fios condutores para a ruptura com o racionalismo crítico

29

ponto de vista absoluto, que transforma-se num dogma, e pela valorização do

desenvolvimento de pontos de vista alternativos, da liberdade de escolha e de respeito

à individualidade enquanto manifestação da diversidade humana.

Quando Feyerabend privilegia Mill, ao invés de Popper, a constatação da

falibilidade do conhecimento (científico) é ampliada para a questão da falibilidade

humana de uma forma geral, a qual assume uma dimensão mais abrangente como

argumento contra qualquer forma de certeza absoluta.

Recusar-se a ouvir uma opinião por ter certeza que ela é falsa é assumir a sua certeza de forma absoluta. Todo silenciamento de discussão é uma assunção de infalibilidade.

(Mill, 1961: p. 77, minha tradução)

Se toda a humanidade a menos de uma pessoa tivesse uma mesma opinião, a humanidade não estaria mais justificada em silenciar este único homem do que ele, caso tivesse esse poder, de silenciar toda a humanidade. [...]. A crueldade peculiar de silenciar a expressão de uma opinião é a de que ela subtrai da raça humana, da posteridade e da geração atual – daqueles que discordam da opinião suprimida mais do que daqueles que a defendem.

(Mill, 1961: p.76, tradução e grifos meus)

Para fins de nossa exposição - que pretende identificar ligações entre a primeira

e a segunda fases do pensamento de Feyerabend - ressaltamos que toda a

argumentação feyerabendiana contrária à hegemonia de uma teoria, idéia ou posição,

bem como o seu apelo a uma fundamentação humanista para a epistemologia já

estavam presentes em sua primeira fase, apoiados em idéias racionalistas críticas e

regras falsificacionistas.

Na segunda fase, Feyerabend dá continuidade à negação de quaisquer ideais

hegmônicos bem como à inspiração humanista em suas teses, enfatizando a presença

e influência desses dois eixos norteadores (diversidade e humanismo) na sua

epistemologia anarquista, como veremos no Capítulo 3 a seguir.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CA
Page 31: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

3 A epistemologia anarquista de Paul Feyerabend

Para a exposição e discussão sobre o anarquismo epistemológico neste capítulo,

iremos nos concentrar nas questões que compõem o cerne das hipóteses da pesquisa,

a saber, os argumentos feyerabendianos contra o monismo metodológico

(identificado por Feyerabend com o racionalismo) e a primazia do conhecimento

científico sobre as demais formas de conhecimento ou visões de mundo, ressaltando

os prejuízos que a falta de tal atitude crítica traz tanto para o progresso da ciência

quanto para a realização da liberdade individual e da potencialidade humana, sob um

prisma humanista. Por este motivo, não iremos explorar detalhadamente as

contradições e inconsistências dessa epistemologia, embora venhamos a pontuar

alguns de seus problemas mais marcantes.

No capítulo anterior, pretendemos mostrar como Feyerabend, ainda dentro de

um contexto que valoriza o conhecimento científico sobre os demais e busca um

método racional único que resulte em tal conhecimento, utilizou fundamentos

racionalistas críticos para defender uma atitude pluralista e uma base ética humanista

para a epistemologia. Discutiremos, então, como, ao formular os argumentos que

caracterizam a epistemologia anarquista, Feyerabend rompeu com esse contexto

epistemológico e metodológico, porém, manteve como fios condutores de suas idéias

a crítica à hegemonia e o humanismo liberal de John Stuart Mill.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CA
Page 32: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

A epistemologia anarquista de Paul Feyerabend

31

3.1 Algumas constâncias “catalisando” a ruptura

Embora a obra feyerabendiana seja primordialmente reconhecida pela ruptura

entre o racionalismo crítico e o irracionalismo anarquista, pretendemos apresentar

uma breve discussão quanto à constância na inspiração em ideais pluralistas e

humanistas ao longo de suas duas fases. Paradoxalmente, foi talvez por manter e

reafirmar esses ideais ao extremo que Feyerabend acabou por romper com sua origem

racionalista crítica, criando toda uma “nova” base de argumentos [anarquistas] para

defendê-los.

Como evidência dessa constância, apontamos para a sua crítica permanente ao

monismo teórico, na primeira fase; metodológico e epistemológico na segunda fase.

Em ambas as fases, Feyerabend realiza essa crítica por entender que o monismo pode

levar à hegemonia, que por sua vez tende a estabelecer-se como Verdade, inibindo o

desenvolvimento da variedade inerente ao potencial humano e o exercício da

liberdade de escolha. Além disso, Feyerabend também argumenta que a tendência das

idéias hegemônicas assumirem o valor de Verdade equivocadamente desconsidera

uma questão crucial: a falibilidade humana.

Seguindo essa linha de raciocínio relativamente ao racionalismo crítico, embora

este acomode a pluralidade teórica e uma base ética humanista para a epistemologia,

nele ainda subsiste uma série de ideais hegemônicos interligados, quais sejam: a

Honestidade do cientista, que o leva à busca desinteressada pela Verdade (embora

talvez nunca a atinja e, se o fizer, não terá meios para sabê-lo); a mesma Honestidade

que o leva a formular somente aquelas teorias que possam ser empiricamente

refutadas; o emprego constante da Razão, da Objetividade e do método científico,

desconsiderando quaisquer outras vias ou formas alternativas em sua atividade

científica.

Da incompatibilidade entre esses ideais hegemônicos e a necessária liberdade e

variedade preconizadas pelo humanismo, decorre, possivelmente, o que Preston

chamou de “desencantamento com os tradicionais ideais epistêmicos” (Preston, 1997:

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CA
Page 33: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

A epistemologia anarquista de Paul Feyerabend

32

p.192) nos textos feyerabendianos produzidos em torno do ano de 1970 e daí em

diante. Esse “desencantamento”, provocado, talvez, pela exacerbação do ideal maior

do humanismo de John Stuart Mill – a liberdade de expressão e de pensamento -

conduz à primeira apresentação da epistemologia anarquista, no artigo Against

Method – Outline of an Anarchistic Theory of Knowledge (Feyerabend, 1970b), cinco

anos antes da edição de Against Method (Feyerabend, 1975).

Cogitamos, então, que os eixos norteadores do pensamento feyerabendiano vêm

a ser a pluralidade epistemológica e o humanismo que, reunidos, constituem um

“humanismo liberal e pluralista”, presente em ambas as fases da sua obra, porém,

mais radical e, portanto, mais claramente identificável, na segunda fase. O que se

transforma, constituindo a ruptura da primeira para a segunda fase, não parece atingir

esses eixos, restringindo-se aos argumentos que compõem a defesa e manutenção dos

mesmos.

Sob essa perspectiva, o anarquismo surge como uma alternativa ao

racionalismo crítico, por ser capaz de abrigar todo a liberalidade do humanismo de

Mill e todo o pluralismo da visão epistemológica feyerabendiana. Contudo, há outro

enfoque para explicar por que a alternativa anarquista teve que adotar posições tão

extremadas. Sob esse segundo enfoque, Feyerabend ainda mantinha resquícios

racionalistas críticos na epistemologia de sua segunda fase e, por esse motivo, foi

levado a uma posição extrema, propondo o anarquismo.

Apresentamos a seguir uma discussão do processo da passagem da primeira

fase para a segunda considerando primordialmente o primeiro enfoque (o da

manutenção dos eixos norteadores na passagem entre as fases), realizando ao longo

do texto um contraponto deste enfoque com o enfoque alternativo que descrevemos

acima.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CA
Page 34: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

A epistemologia anarquista de Paul Feyerabend

33

3.2 A ruptura vem à tona

O ataque ao monismo metodológico constitui o cerne do anarquismo

epistemológico e do livro Against Method (Feyerabend, 1975), onde essa posição

epistêmica foi veementemente apresentada pelo autor. Ao dizer que não existe um

método único para chegar-se ao conhecimento científico e que, além disso, tal

conhecimento só atingiu seu estado atual porque nos momentos de grandes mudanças

- que resultaram em avanços nesse conhecimento - os cientistas utilizaram uma

atitude pluralista, Feyerabend faz uma oposição direta ao monismo metodológico e

rompe definitivamente com o racionalismo crítico. A partir daí, a oposição se estende

à racionalidade da ciência – cujas garantias seriam o monismo e a racionalidade

metodológicos – bem como ao “racionalismo” de modo geral, entendido como a

posição que privilegia a Razão e o conhecimento racional científico sobre as demais

formas de conhecimento (religioso, místico, ou estético). Na epistemologia

anarquista, a Razão é apenas uma “tradição” entre tantas outras (magia, ocultismo,

revelação, entre outras) e, como tal, deve ser considerada.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CA
Page 35: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

A epistemologia anarquista de Paul Feyerabend

34

3.2.1 O anarquismo dadaísta enquanto pluralismo liberal e tolerante

O termo “anarquismo”, utilizado por Feyerabend em Against Method, vem

carregado do significado “contrário à ordem estabelecida”, subjacente ao estilo

panfletário que tanto caracteriza sua obra na segunda fase. Contudo, pretendemos

“filtrar” – sem ignorar - essa carga panfletária, na tentativa de alcançar um melhor

entendimento do que efetivamente constitui o anarquismo na epistemologia

feyerabendiana.

Já na introdução de Against Method, Feyerabend fala em “metodologia

anarquista” e “ciência anarquista” (Feyerabend 1975:p. 21, minha tradução), o que

nos leva a pensar na possibilidade de algum nível de correspondência, ou

equivalência, no uso dos termos pluralismo e anarquismo, como se o anarquismo

surgisse da situação pluralista resultante da constatação da ausência do monismo

[metodológico] – enquanto uma lei e uma ordem - na ciência.

Para distinguir o seu anarquismo epistemológico do anarquismo político bem

como do ceticismo, Feyerabend faz um paralelo do primeiro com o Dadaísmo,

descrevendo o verdadeiro dadaísta como aquele que também é um anti-dadaísta,

sendo capaz de vigorosamente defender posições diferentes e contraditórias entre si

em momentos distintos. A motivação do dadaísta para essa mudança de posição, tanto

pode ser por força de argumento, quanto por qualquer disposição eventual e

circunstancial, ou seja, por motivos não racionalmente justificáveis. Além de adotar a

inconstância como possibilidade a qualquer momento, o dadaísta também respeita e

leva em consideração outros pontos de vista, mesmo os radicalmente diferentes dos

seus, sem distinção ou pré-julgamento. A única idéia a que o dadaísta se opõe é à

idéia da universalidade de leis, ideais ou padrões, embora não se furte a agir como se

tais universais existissem, quando as circunstâncias assim o exigirem. (Feyerabend,

1975: p. 189). Em resumo, o dadaísta é um relativista liberal, tolerante e pluralista

opondo-se apenas a pontos de vista hegemônicos. Esta é a “anarquia dadaísta”

proposta por Feyerabend, inspirada no humanismo de John Stuart Mill, e que ao nível

metodológico se traduz em pluralismo, aceitando a possibilidade de empregar-se

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CA
Page 36: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

A epistemologia anarquista de Paul Feyerabend

35

qualquer método, contanto que este não seja considerado como o único método

válido.

Como fica, então, essa “anarquia” sob a forma de pluralismo metodológico,

quando aplicada à prática científica, na interpretação feyerabendiana?

Enquanto pluralistas metodológicos, os grandes cientistas não se prendem a

nenhum método específico, agem de maneira “oportunista” e empregam estratégias

de convencimento além da argumentação racional para exposição de suas idéias ou

teorias bem como dos resultados de seus testes e observações. (Feyerabend, 1975: p.

81). Seu exemplo clássico é Galileu, sobre o qual discorre a partir do Capítulo 5 de

Against Method. O “oportunismo” científico consiste em relacionar teorias já

conhecidas, outras ainda em desenvolvimento, observações, hipóteses auxiliares e

hipóteses ad hoc de acordo com as circunstâncias do momento, ao invés de seguir

regras metodológicas fixas e pré-estabelecidas. Além disso, a apresentação de novas

teorias e fatos científicos ocorre com recurso à propaganda, manipulações e induções

de natureza psicológica, e não apenas à argumentação racional. Em suma, a ciência,

segundo Feyerabend, progrediu no passado e progride hoje porque o cientista é um

pluralista e não um seguidor de regras.

O uso de termos como “oportunista” para referir-se ao “homem de ciência” e

como “propaganda” para descrever a forma de apresentação de descobertas

científicas, chocaram – e ainda chocam - os leitores, gerando uma enxurrada de

críticas “...bem além do que normalmente se espera para considerar uma publicação

de má qualidade nos círculos acadêmicos.” (Preston, 1997: p. 170, minha tradução).

Feyerabend havia previsto uma rejeição às suas idéias, porém, não imaginou que

fosse ser tão forte e chegou até a arrepender-se de ter escrito Against Method, como

descreve na sua autobiografia:

Num certo momento, em meio à comoção, adquiri uma depressão que me acompanhou por mais de um ano. [...] agora estava sozinho, presa de um tipo desconhecido de aflição, minha vida privada estava uma confusão e eu estava sem defesas. Muitas vezes desejei nunca ter escrito a p... daquele livro.

(Feyerabend, 1996: p. 155)

Entretanto, abstraindo-se os motivos para a escolha de termos tão

flagrantemente ácidos contra os ideais de correção, objetividade e honestidade dos

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CA
Page 37: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

A epistemologia anarquista de Paul Feyerabend

36

grandes cientistas, ideais estes bastante prevalentes à época e, especialmente, entre os

racionalistas críticos, sob o ponto de vista estritamente metodológico, o

reconhecimento da atitude “oportunista” em ciência quer dizer apenas que não é

somente por cumprimento de regras pré-estabelecidas que: a) de fato a ciência

progride (aspecto descritivo), e b) pode-se atingir grandes avanços científicos

(aspecto prescritivo).

Neste ponto, cabem duas considerações. A primeira, diz respeito ao

rompimento feyerabendiano com a normatividade na epistemologia, uma vez que

seus argumentos passam a conter constantes descrições de fatos da história da ciência

como justificativas, o que não faria sentido no contexto epistêmico normativo de sua

primeira fase. Isso indica a influência das tentativas de reconstrução histórica da

ciência sobre Feyerabend, presentes tanto em Kuhn (1970) quanto em Lakatos

(1970), e que desempenham um papel importante na ruptura entre a primeira e

segunda fase da epistemologia feyerabendiana. Embora haja controvérsias quanto à

fidedignidade da interpretação feyerabendiana dos fatos históricos referentes a

Galileu, (Agassi, 1976 in Preston, 1997: p. 170), a forte presença dessa reconstrução

histórica nos argumentos favoráveis ao pluralismo metodológico não deixa dúvidas

de que a visão normativa ficou definitivamente para trás.

A segunda consideração refere-se ao caráter “prescritivo” do pluralismo, o qual,

segundo Preston, constitui a parte mais fraca de toda a argumentação feyerabendiana,

possuindo resquícios popperianos funcionando como premissas não declaradas

(Preston, 1997: pp. 173-175). O termo “prescritivo” vem entre aspas porque

Feyerabend não parece ter pretendido apresentar uma nova metodologia com regras

liberais e pluralistas ao delinear o anarquismo epistemológico e o pluralismo

metodológico. Ambos parecem compor mais uma constatação a partir da história da

ciência do que uma epistemologia ou um conjunto de regras a ser seguido. (Preston,

1966: p. 172).

Vejamos, sucintamente, de que maneira se desenvolve o argumento da

existência de premissas popperianas não declaradas na “prescritividade” de natureza

não normativa na epistemologia feyerabendiana.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CA
Page 38: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

A epistemologia anarquista de Paul Feyerabend

37

Ao tentar mostrar que Galileu desrespeitou praticamente todas as regras

associadas ao monismo metodológico (seja ele positivista ou racionalista crítico),

Feyerabend pretendeu mostrar também que, se Galileu não o tivesse feito, a

revolução científica da qual foi principal ator não teria acontecido. Assim sendo,

Feyerabend conclui que Galileu agiu como um pluralista metodológico e não como

um monista porque, ora adotou procedimentos indutivos, ora contra-indutivos, ora

rejeitou ora introduziu hipóteses ad hoc. Entretanto, tal conclusão só pode ser tirada –

argumenta Preston - sob a premissa não declarada que o uso de um dado método (no

caso, indutivo), só pode ser legitimamente considerado como tal no caso de não

serem possíveis exceções às suas regras. Nessa mesma linha de pensamento, a busca

por um método infalível na epistemologia popperiana – ainda à inspiração cartesiana

– teria gerado o falsificacionismo, o método que pretende nunca falhar. Uma vez que

nem o positivismo nem o falsificacionismo estão imunes a falhas, Feyerabend teria

concluído que o pluralismo seria a única alternativa, por afirmar a inexistência de um

conjunto de regras metodológicas [infalíveis]. Contudo, se essa premissa não

declarada - de que um método precisa ser infalível e seu uso legítimo somente ocorre

se não forem permitidas exceções às suas regras – for suprimida, tanto o indutivismo

quanto o falsificacionismo podem ser mantidos e nenhuma alternativa pluralista se

torna necessária. Nas palavras de Newton-Smith, ao referir-se às regras do método

indutivo “[...]Talvez seja o caso de, a despeito dessas exceções, as chances de

progresso a longo prazo serem maiores se nós empregarmos a regra [indutiva].”

(Newton-Smith, 1981: p. 129 in Preston, 1997: p. 175).

Ante esse argumento, é possível dizer-se que Feyerabend recusou o indutivismo

e posterioirmente o falsificacionismo e a idéia de qualquer metodologia fixa por ter

uma visão excessivamente rigorosa (de inspiração popperiana) para a aplicação de

regras metodológicas, não admitindo nenhuma exceção. Entretanto, também é

possível argumentar que Feyerabend não considerava como meras “exceções” o não

cumprimento das regras de uma dada metodologia (seja ela indutiva ou

falsificacionista) na prática científica. Como se vê especialmente nos Capítulos de

Against Method dedicados a Galileu, o emprego de regras características de

metodologias distintas e até contraditórias, longe de ser uma “exceção”- como diz

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CA
Page 39: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

A epistemologia anarquista de Paul Feyerabend

38

Newton Smith - foi uma prática bastante freqüente no trabalho daquele cientista. Um

outro aspecto que Feyerabend aponta e que enfraquece o argumento de Newton

Smith, é que o progresso científico atingido por Galileu foi devido a essa pluralidade

metodológica e não ao cumprimento das regras de uma metodologia única (indutiva),

entremeada por eventuais “exceções”. Em suma, para Feyerabend a ciência não

progride pela aplicação de um método único para o qual são permitidas exceções,

mas pela aplicação de uma variedade de regras de diversas metodologias de maneira

imprevisível conforme a circunstância da prática científica e a inventividade do

cientista. Assim, a dimensão “prescritiva” de caráter não normativo do pluralismo

metodológico seria uma espécie de sugestão a partir da identificação desse pluralismo

na prática científica de sucesso, exemplificada por Galileu.

Em que pese esse argumento, a “prescritividade” de caráter não normativo que

Feyerabend tenha eventualmente sugerido para sua metodologia pluralista, não se

restringiu à inspiração em exemplos da história da ciência. Como dissemos

anteriormente, a ética humanista liberal continua presente e de maneira marcante em

sua segunda fase, e nela reside outro argumento forte para uma possível dimensão

“prescritiva” do anarquismo. Embora esta não seja uma prescritividade decorrente de

uma visão normativa da epistemologia, ela pode ser entendida a partir de uma base

ética humanista liberal, como veremos adiante no sub-item referente à educação

cientificista. Para fins deste sub-item, pretendemos discutir o anarquismo enquanto

“resultante” da rejeição ao monismo, combinado a uma atitude liberal e tolerante

frente a alternativas, bem como ao “oportunismo”, enquanto uma liberdade para o

eventual não cumprimento de regras – em oposição ao metódico e rigoroso

cumprimento das mesmas - para relacionar teorias, observações e hipóteses auxiliares

na prática científica. Nossa próxima discussão abordará uma outra expressão

polêmica da epistemologia feyerabendiana: o “vale tudo”, intimamente ligada à

abordagem que utilizamos neste sub-item e que acabamos de descrever.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CA
Page 40: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

A epistemologia anarquista de Paul Feyerabend

39

3.2.2 O “vale tudo” em ciência

Embora em Against Method o autor faça referência ao princípio “vale tudo”

como sendo o único “[...] defensável em todas as circunstâncias e estágios do

desenvolvimento humano” (Feyerabend, 1975: p. 28), Preston alerta que, na 3a.

edição de 1993, Feyerabend afirma que:

[...] vale tudo não é um princípio que eu defendo – eu não acredito que princípios possam ser usados ou discutidos eficientemente fora da situação concreta de pesquisa à qual eles devem supostamente ser aplicados – mas a exclamação horrorizada do racionalista que olhar a história mais de perto.

(Feyerabend, 1993: p. vii in Preston, 1997:p. 172)

Assim, entendemos que Feyerabend esclarece que não pretendeu postular

princípios metodológicos, mas constatar a maneira pela qual a ciência se deu através

de sua história. Além disso, afirma que eventuais princípios somente podem ser

discutidos dentro da situação de pesquisa a que se referem, sugerindo assim que tais

princípios existem – ao contrário do que afirmam diversas interpretações de sua obra

- porém, são imanentes à pesquisa e não regras abstratas estabelecidas a priori fora

da situação prática a que se referem. Talvez aqui esteja mais um esclarecimento do

que quer dizer o “oportunismo” do cientista, no que tange à qual regra irá empregar

em cada situação de pesquisa. Para ilustrar essa discussão, cito: As observações feitas até aqui não significam que a pesquisa é arbitrária e sem orientação. Os padrões existem, porém, eles surgem do próprio processo de pesquisa e não de pontos de vista abstratos sobre a racionalidade..

(Feyerabend, 1978: p. 99 in Preston, 1997:p. 172)

Entendido dessa forma, o “vale tudo” não significa a total desordem na prática

científica, mas, uma contínua busca de “regras” para relacionar teorias, observações e

hipóteses de modo que seja atendida a situação de pesquisa no momento, dentro do

respectivo contexto histórico e do conhecimento disponível. Nessa perspectiva, a

proposta metodológica monista é simplória por não levar em consideração a

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CA
Page 41: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

A epistemologia anarquista de Paul Feyerabend

40

complexidade histórica da ciência e suas constantes mudanças. Para atender às

necessidades advindas destas constantes mudanças, as regras precisam ser

“reinventadas”, às vezes até em “contra-regras”, ou seja, ditando procedimentos

diametralmente contrários às regras metodológicas anteriormente empregadas.

Como exemplos de “contra-regras” que surgem na prática científica da atitude

“oportunista” dos grandes cientistas, temos a contra-indução e a introdução de

hipóteses ad hoc, respectivamente contrárias às regras metodológicas do indutivismo

positivista e do racionalismo crítico, bem como o não cumprimento da regra de

consistência, em conseqüência do princípio de proliferação teórica estabelecida ainda

na primeira fase do autor.

Uma vez que o próprio Feyerabend atesta que boa parte de Against Method

constitui uma “colagem” de pequenas modificações em artigos escritos até vinte anos

antes de sua publicação, os argumentos que ele apresenta para sustentar essas “contra-

regras”1 mesclam conceitos e princípios de sua fase anterior, algumas vezes

confundindo o leitor. (Preston, 1997: p. 171). Possivelmente visando evitar essa

confusão, Feyerabend chama a atenção que o seu uso de termos como “progresso” ou

“avanço” ao referir-se à ciência não possuem uma definição rigorosa ou um

significado único, ou seja, cada um poderá interpretar progresso à sua maneira, de

acordo com sua própria visão epistêmica. Contudo, o autor afirma que, para qualquer

entendimento do que seja progresso ou avanço, a epistemologia anarquista será a

melhor alternativa para a sua obtenção (Feyerabend, 1975: p. 27). Tal afirmação

parece estar pautada no fato de que somente o anarquismo permite o eventual recurso

oportunista às “contra-regras”, ao contrário das metodologias monistas, evidenciando

que o anarquismo pode “mesclar” critérios monistas a uma aplicação pluralista de

regras, sem, contudo, constituir-se num método. Na citação a seguir, vemos o quanto

Feyerabend expõe sua “estratégia de convencimento” baseada na seguinte

argumentação:

1 O procedimento a que se refere a expressão “contra-regra” no Against Method (Feyerabend, 1975), é o da atitude adotada por um cientista que seja contrária a alguma regra metodológica característica do empirismo e/ou do racionalismo crítico, como, por exemplo, a ação contra-indutiva, descrita especialmente nos Capítulos II e III.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CA
Page 42: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

A epistemologia anarquista de Paul Feyerabend

41

Alguém pode ter a impressão de que eu estou recomendando uma nova metodologia que substitui a indução pela contra-indução e que utiliza uma multiplicidade de tórias, pontos de vista metafísicos, contos de fada ao invés de o costumeiro par teoria/observação. Essa impressão seria equivocada, com certeza. Minha intenção não é de substituir um conjunto de regras gerais por outro; minha intenção é, ao invés disso, convencer o leitor que todas as metodologias, até mesmo as mais óbvias, têm seus limites. A melhor maneira de mostrar isto é demonstrar os limites e até a irracionalidade de algumas regras que todos consideram básicas. No caso da indução (incluindo a indução por falsificação) isso significa demonstrar quanto suporte argumental pode ser dado a um procedimento contra-indutivo.

(Feyerabend, 1975: p. 32, minha tradução, grifos no original.)

No tocante à questão de progresso ou avanço na ciência num contexto

anarquista pluralista, também há uma espécie de “contra-regra”: a

incomensurabilidade entre teorias. Essa relação entre teorias impede a utilização de

critérios monistas de progresso, uma vez que os referidos critérios metodológicos são

comparativos e exigem comensurabilidade para avaliação do progresso da ciência,

tais como: aumento do conteúdo empírico, maior simplicidade, ampliação na

capacidade de previsão, para citar alguns. Uma vez que a incomensurabilidade entre

teorias caracteriza o processo de revolução científica sob o prisma anarquista, surge

uma espécie de impasse: Como falar de progresso sob critérios monistas num

contexto epistemológico anarquista?

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CA
Page 43: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

A epistemologia anarquista de Paul Feyerabend

42

3.2.3 Incomensurabilidade

O conceito de incomensurabilidade na epistemologia feyerabendiana está

intimamente relacionado à sua crítica à condição positivista de invariância de

significado, que afirma o seguinte: “[..] os termos descritivos de uma teoria científica

podem ser explicitamente definidos com base em termos observacionais [..]”

(Feyerabend, 1962: p.49 in Presotn, 1996: p. 100). Essa crítica ocorre em duas etapas,

ambas pautadas na história da ciência.

Na primeira, Feyerabend mostra que, durante as revoluções científicas,

ocorreram mudanças tão radicais nos termos descritivos entre as teorias anteriores e

posteriores à revolução que estas se tornam incompatíveis quanto à interpretação

realista de seus termos. Um dos exemplos preferidos de Feyerabend para essa

incompatibilidade seria, segundo Preston, a Teoria Medieval do impetus, que consiste

de uma tentativa de remediar um problema da teoria aristotélica do movimento.

Segunda essa teoria, um movimento só poderia surgir e se manter pela ação

continuada de uma força, não explicando como um projétil continua sua trajetória

após cessar a ação da força que deu início ao seu movimento. A Teoria medieval do

impetus introduzia, então, uma hipótese ad hoc segundo a qual o primeiro objeto a se

mover transfere ao projétil uma força interna (impetus), a qual seria a responsável

pela continuidade do movimento. Segundo Feyerabend, essa força interna não cabe

no sistema teórico formado pela mecânica celeste newtoniana, o que não apenas

reflete a incomensurabilidade entre as teorias, como denota também o papel favorável

ao progresso científico, desempenhado pela incomensurabilidade entre teorias,

ocorrido entre a física aristotélica e a newtoniana.

Existe uma série de problemas relativos a uma definição precisa da

incomensurabilidade feyerabendiana envolvendo a sua Teoria Contextual de

Significado, proposta ainda em sua primeira fase, a partir de uma interpretação do

segundo Wittgenstein (Preston, 1997: pp. 25 a 30), que fogem ao escopo de nossa

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CA
Page 44: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

A epistemologia anarquista de Paul Feyerabend

43

pesquisa. Contudo, vale comentar que tais problemas se refletem no teste não

ortodoxo de teorias rivais para um mesmo domínio, conforme apresentamos no

Capítulo I (pp. 12-14), dada a dificuldade em estabelecer-se uma comparação formal

entre teorias estritamente incomensuráveis para fins de teste (Preston, 1997: p. 105).

Especificamente para nossa exposição, dada a valorização da pluralidade teórica e

conceitual na epistemologia anarquista, a incomensurabilidade constitui um

argumento favorável a essa epistemologia e uma crítica ao empirismo, continuamente

presente desde a fase racionalista crítica da epistemologia feyerabendiana.

Um aspecto importante da abordagem à incomensurabilidade em Feyerabend,

diz respeito ao processo de identificação quanto a ter havido ou não uma alteração no

significado dos termos descritivos entre duas teorias.

[...] iremos diagnosticar a mudança de significado [entre teorias] se a nova teoria implicar que todos os conceitos da antiga teoria possuem extensão nula ou se esta introduzir regras que não podem ser aplicadas aos objetos definidos nas classes existentes [na teoria antiga], alterando a próprio sistema de classes [de objetos].

(Feyerabend, 1965b: p. 98 in Preston, 1997: p. 107, minha tradução).

Tal definição formal de incomensurabilidade – proposta ainda na sua primeira

fase - foi criticada por Achinstein e Shapere. O primeiro apontou que somente no

caso das duas teorias adotarem os mesmos significados para seus termos é que seria

possível a implicação de extensão nula que Feyerabend cita. Nesse caso, as teorias

não seriam incomensuráveis e a condição proposta não procede. O segundo alertou

que, a não ser no caso especial de cada teoria ter um sistema de classes totalmente

disjunto entre si, não seria possível distinguir entre uma mudança no sistema de

classes e uma simples mudança na extensão das classes da teoria anterior para a

posterior. Em suma, os critérios formais para incomensurabilidade propostos por

Feyerabend não funcionam.

A despeito desses problemas de natureza formal na definição de mudanças de

significado entre teorias, Feyerabend aponta para mais duas questões envolvendo

incomensurabilidade, com o objetivo de mostrar a relatividade na interpretação de

fatos científicos e a conseqüente relatividade na aplicação de conceitos

metodológicos por meio de suas regras.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CA
Page 45: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

A epistemologia anarquista de Paul Feyerabend

44

A primeira questão refere-se à diagnose pela incomensurabilidade entre teorias.

Esta diagnose, segundo Feyerabend, só pode ser feita após ter sido realizada a escolha

por uma dada interpretação (de nossa preferência) para os fatos a que a teoria se

refere. Isto porque essa interpretação é condição necessária para que os fatos sejam

passíveis de observação. As razões para essa seqüência de condições é a seguinte.

Define-se uma interpretação como a classificação e atribuição de propriedades

específicas a objetos, que são parte constitutiva de fatos. Entretanto, esses fatos só se

tornam interpretáveis dada essa classificação dos objetos neles envolvidos. Assim

sendo, para que um fato seja reconhecido e ‘observado’, ou seja, interpretado

enquanto fato no contexto de uma dada teoria, há que haver a adoção prévia de uma

interpretação para a ‘constituição’ dos objetos que comporão esse fato no escopo da

teoria em foco. A segunda questão é a seguinte: como os objetos que participam dos

fatos a que as teorias se referem podem ser constituídos por diversas interpretações

diferentes, sob determinadas interpretações um dado par de teorias pode ser

considerado incomensurável enquanto, sob outras interpretações, esse mesmo par de

teorias pode vir a ser considerado comensurável! Esse condicionamento da avaliação

de incomensurabilidade entre teorias à interpretação utilizada para a ‘constituição’

dos objetos que compõem os fatos a que as teorias se referem, sugere que a escolha

da interpretação não apenas precede como determina a diagnose quanto à mudança

ou estabilidade de significado dos termos teóricos. Uma vez que Feyerabend

considera que a “escolha” de interpretação relacionada a uma dada teoria ocorre no

momento em que ela é ensinada ao estudante, o futuro cientista usará a teoria sob a

interpretação que lhe foi ensinada (Preston, 1997: pp. 108 e 109). Dessa forma, a

incomensurabilidade entre teorias acaba por transformar-se numa questão relativa,

dependente da formação do cientista. Toda essa explanação feyerabendiana sobre

interpretação dos objetos que constituem os fatos científicos vem fundamentar a sua

tese de variação de significado ao nível da caracterização dos objetos que compõem

os fatos relativos a essa teoria, gerando a incomensurabilidade entre as teorias

científicas quando tal variação de significado ocorre.

Com o objetivo de tornar o conceito de incomensurabilidade menos árido e

prosseguindo na crítica à condição positivista de invariância de significado,

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CA
Page 46: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

A epistemologia anarquista de Paul Feyerabend

45

Feyerabend sugere um critério de diferença intuitivo para o estabelecimento de

mudanças de significado entre teorias – implicando na sua incomensurabilidade -

ilustrado pela recorrente comparação entre a teoria mecânica clássica celeste (TMC) e

a teoria geral da relatividade (TGR). Nesse exemplo, se alterarmos o valor da

constante “g” na TMC, gerando uma TMC*, as previsões geradas por TMC* serão

diferentes daquelas geradas por TMC, caracterizando uma diferença entre ambas.

Temos, então, três teorias diferentes entre si. Contudo, essas “diferenças” não são do

mesmo tipo. Entre TMC e TMC* temos uma diferença quantitativa entre suas

previsões, porém, ambas referem-se ao mesmo conjunto de entidades. Já a diferença

entre TMC e TGR bem como entre TMC* e TGR é de natureza qualitativa, pois, em

cada um desses pares, as teorias referem-se a um tipo diferente de entidade. Esse tipo

de diferença qualitativa entre teorias, envolvendo uma noção intuitiva dos tipos de

entidades a que se referem, constituiria a incomensurabilidade (Preston, 1997: p.

107). Assim, o par (TMC, TMC*) é comensurável, porém, os pares (TMC, TGR) e

(TMC*, TGR) não o são.

Dessa forma, Feyerabend conclui que não há como estabelecer critérios de

“progresso” para passagem de uma teoria para outra nem tampouco justificativas

racionais para essa passagem. Essa é uma das linhas de raciocínio que levam da

incomensurabilidade entre as teorias à irracionalidade nas mudanças entre teorias na

ciência.2

O recurso feyerabendiano à intuição tem como objetivo a apresentação de uma

oposição ao argumento que a diferença entre TMC e TGR é apenas quantitativa e de

escala, não importando questões de significado, mas, apenas a questão relacionada às

previsões de cada teoria. Nessa abordagem, a TMC é uma aproximação numérica da

TGR em determinada faixa de escala de grandeza, o que faria de TMC um “caso

particular” da TGR. Esta última, por sua vez, possui precisão e conteúdo empírico

que inclui e excede o de TMC, caracterizando um progresso no conhecimento

científico e uma justificativa racional para a passagem de uma teoria para a outra,

2 Na Conclusão desta dissertação, será apresentada uma outra argumentação envolvendo a relação entre incomensurabilidade e

irracionalidade no contexto de uma nova hipótese, ainda não completamente formalizada, levantada a partir desta pesquisa.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CA
Page 47: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

A epistemologia anarquista de Paul Feyerabend

46

seguindo os critérios monistas de progresso, desconsiderando-se a

incomensurabilidade qualitativa de significado entre as referidas teorias.

Como sabemos, Feyerabend se opõe a essa linha de pensamento, afirmando que

“... a continuidade de relações formais não implica na continuidade de

interpretações...” (Feyerabend, 1975, p: 283). Aqui voltamos a considerar a

explanação que fizemos acima sobre a ‘constituição’ de objetos a partir de

interpretações, definidas como a classificação e atribuição de propriedades

específicas a objetos, que são parte constitutiva de fatos científicos. De uma maneira

simplificada, Feyerabend utiliza a expressão “interpretação de teorias” para designar

essa interpretação, uma vez que o significado dos termos teóricos está ‘impregnado’

da interpretação que constituiu os objetos que compõem os fatos a que a teoria se

refere. Isto posto, Feyerabend considera que a falta de reconhecimento da alteração

de significado entre teorias ocorre porque se aplica uma interpretação instrumental às

teorias, não permitindo que a diferença de significado – incomensurabilidade - seja

percebida. (Feyerabend, 1975: p. 274). Tal interpretação considera as teorias como

meros instrumentos para a classificação de certos “fatos”, sem, contudo, buscar

entender a teoria em seus próprios termos, levando em conta a interpretação utilizada

para a ‘constituição’ de seus objetos.

Como elemento complicador presente na interpretação instrumental, o autor

refere-se a um “instrumentalismo inconsciente” que provoca uma ilusão de que essa

interpretação instrumental de fato permite a percepção do tipo de objeto, ou entidade,

a que a teoria se refere. Por força desse “instrumentalismo inconsciente”, tem-se a

impressão enganosa de que a correspondência instrumental entre teorias equivale a

uma correspondência também ao nível do tipo das entidades a que cada uma das

teorias se refere, oferecendo assim alguma possibilidade de comparação empírica.

Entretanto, Feyerabend nega veementemente essa correspondência bem como

qualquer possibilidade de ligação entre teorias incomensuráveis por força de sua

diferença interpretativa em relação aos objetos (entidades) que constituem os fatos a

que estas se referem.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CA
Page 48: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

A epistemologia anarquista de Paul Feyerabend

47

Não adianta tentar estabelecer uma ligação entre proposições clássicas e proposições relativistas por meio de uma hipótese empírica. Uma hipótese desse tipo seria tão risível quanto a proposição “sempre que há possessão por um demônio há também uma descarga no cérebro”, que estabelece a ligação entre os termos da teoria da possessão e os mais recentes termos ‘científicos’.

(Feyerabend, 1975: p. 2176, minha tradução, grifos no original)

Finalizando este item, pretendemos ter apresentado os aspectos principais do

papel da incomensurabilidade na epistemologia anarquista pluralista e algumas

críticas aos argumentos feyerabendianos que dão suporte à incomensurabilidade e aos

danos que esta gera às metodologias monistas racionalistas.

Acrescentamos ainda que, a despeito dessas críticas contrárias à

incomensurabilidade, Feyerabend considera que a variação de significado entre

teorias só constitui problema para as metodologias racionalistas, uma vez que

inviabiliza a comparação entre teorias e a utilização dos critérios monistas de

progresso científico. Por meio desse argumento, Feyerabend pretende mostrar que

tais metodologias não se aplicam à ciência por não representarem a prática científica

no tocante à comparação entre teorias ou mesmo entre programas de pesquisa.

Vamos, então, considerar o fenômeno da incomensurabilidade, o qual, no meu ponto de vista, cria problemas para todas as teorias da racionalidade, incluindo a metodologia de programas de pesquisa científica. Essa metodologia assume que teorias rivais de programas de pesquisa rivais podem sempre ser comparadas quanto ao seu conteúdo. O fenômeno de incomensurabilidade implica que este não é o caso.

(Feyerabend, 1975: p. 214)

Por outro lado, na epistemologia anarquista a incomensurabilidade é parte

integrante do processo de desenvolvimento da ciência porque denota a diversificação

dos tipos de entidades a que as novas teorias se referem, resultando numa nova visão

de mundo - ou cosmologia - que tais diversificações teóricas suscitam. Na

perspectiva feyerabendiana, tais desenvolvimentos são a central característica das

grandes revoluções científicas, como as protagonizadas por Galileu e Einstein.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CA
Page 49: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

A epistemologia anarquista de Paul Feyerabend

48

3.2.4 Anarquismo epistemológico e Educação

Enquanto uma epistemologia que considera a plena integração entre ciência,

outras formas de conhecimento e sociedade, o anarquismo pluralista refere-se intensamente à educação. Aqui, tanto ou mais do que na argumentação pela pluralidade teórica, a inspiração no humanismo de John Stuart Mill torna-se fundamental. Reafirmando essa inspiração, Feyerabend cita Mill:

[...] as mudanças que progressivamente ocorrem na sociedade moderna tendem a revelar, com um alívio cada vez mais forte: a importância, para o homem e a sociedade, de uma ampla variedade de tipos e de conferir-se plena liberdade à natureza humana para que esta se expanda em inúmeras e conflitantes direções. [...] as faculdades humanas de percepção, julgamento, sentimento discriminativo, atividade mental e, até mesmo preferência moral, são exercitados apenas ao realizar-se uma escolha.

(Mill, 1961, p: 65 in Feyerabend, 1986)

Percebe-se como nessa citação a importância central da liberdade e da escolha

entre uma variedade de opções reveladas pela multiplicidade inerente à natureza

humana no humanismo de Mill. Feyerabend incorpora esse humanismo de maneira

muito compromissada em sua epistemologia e, por esse motivo, é tão frontalmente

contrário à educação científica que limita a multiplicidade de abordagens e pontos de

vista para interpretação das nossas percepções às científicas e, além disso, desvaloriza

as demais. Tal atitude ocorre sob a bandeira da racionalidade única, fixa e dogmática,

ao passo que no humanismo aqui descrito, “uma racionalidade fixa repousa sobre

uma visão excessivamente ingênua do que seja o homem e seu contexto social”

(Feyerabend, 1975: p. 6, minha tradução).

Para descrever a educação científica e seus objetivos, Feyerabend recorre à

história da ciência enquanto atividade humana.

[...] a história da ciência será tão complexa, caótica, repleta de enganos, e interessante quanto as mentes daqueles que a inventaram. Reciprocamente, um pouco de lavagem cerebral terá que seguir um longo caminho para tornar a história da ciência algo mais monótono, simples, mais uniforme, mais ‘objetivo’ e mais facilmente acessível a um tratamento por regras rígidas e imutáveis. [...] A educação científica como a vemos hoje tem precisamente esse objetivo.

(Feyerabend, 1975: p. 19, minha tradução)

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CA
Page 50: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

A epistemologia anarquista de Paul Feyerabend

49

Indo mais além, seguindo-se a esta passagem, o autor afirma que a

simplificação da ciência pela educação científica se dá também através da

simplificação do próprio conteúdo do que seja ciência, estabelecendo um domínio

científico separado dos demais, em particular da sua história. Como exemplo, cita a

física que é ensinada como um domínio totalmente distinto da metafísica e da

teologia, onde estão as suas origens, sendo-lhe conferida uma “lógica própria”. Essa

“lógica” passa então a ser incutida através de extensivo treinamento pela educação

científica e a perspectiva histórica, no que concerne à ligação desse ‘domínio

científico’ - a física - com sua história, perde-se completamente.

Uma outra crítica importante à educação científica está no fato que Feyerbend

vê nessa forma de educação a transmissão da imagem de uma ciência objetiva,

racional, metódica, fiel cumpridora das regras metodológicas, quando, na prática

científica de fato, tais características nem sempre se verificam.

A princípio, não há nada no humanismo que proíba a criação de tradições

definidas por regras rígidas e bem definidas. O que não se recomenda é a hegemonia

dessa tradição sobre as outras, excluindo o que nela não se incluir.

Como vimos anteriormente, a hegemonia de uma tradição leva, segundo

Feyerabend, à sua equiparação com a Verdade. Entretanto, essa equiparação

constitui-se num engano, uma vez que não há como testar ou aprimorar uma teoria ou

um princípio sem alternativas. Subjacente a esse argumento está a falibilidade do

conhecimento humano – inerente à epistemologia feyerabendiana – o qual solicita

constante teste e aprimoramento. Sempre contrário a posições hegemônicas, entre

elas, o empirismo positivista no tocante ao monismo indutivo e também à

estabilidade dos fatos e da linguagem de observação, Feyerabend critica não apenas

essa metodologia como também a sua repercussão na educação.

[...] Isso, penso eu, constitui o mais decisivo argumento contra qualquer método que encorage a uniformidade, seja ele empírico ou não. Qualquer método desse tipo, em última análise, é um método que favorece o engano. Ele [o método] reforça um conformismo não esclarecido, e fala de verdade; leva a uma deterioração das capacidades mentais, do poder da imaginação, e fala de profundo “insight”; destrói a talento mais precioso dos jovens – seu tremendo poder de imaginação, e fala de educação.

(Feyerabend, 1975: p. 45, minha tradução)

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CA
Page 51: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

A epistemologia anarquista de Paul Feyerabend

50

Dessa forma, o pluralismo não é apenas uma questão metodológica, mas,

também, humanista e que precisa ser observada na educação. Nesse particular,

Feyerabend identifica-se com correntes da escola nova progressista3, onde o professor

busca o desenvolvimento da individualidade do estudante, seja ele ou ela criança,

jovem ou adulto(a). Tal desenvolvimento se dá através da motivação e criação de

oportunidades para que as habilidades e idéias particulares a esse estudante sejam

exteriorizadas e discutidas com seus pares no ambiente escolar, ou acadêmico, e fora

dele.

O ensino deve ser baseado na curiosidade e não no comando, o ‘professor’ é convidado a promover essa curiosidade a não a confiar em apenas um único método. A espontaneidade reina suprema, no pensamento (percepção) como também na ação.

(Feyerabend, 1975: p. 187, minha tradução)

Contudo, não é essa a situação prevalente na educação, em que pese o fato do

advento da educação progressista, socio-construtivista em oposição à educação

tradicional, calcada na autoridade do professor e na repetição, ao invés da livre

associação, para a memorização da informação transmitida em sala de aula. (Aranha,

2000)

Para Feyerabend, uma possível solução para evitar os efeitos indesejáveis da

educação científica, seria a separação da educação (em geral) da formação

profissional, esta sim mais específica e, talvez, restrita a uma única abordagem teórica

e metodológica, bem como a uma forma específica de perceber o mundo e o ser

humano.

Minha opinião é a de que o primeiro e mais urgente problema é tirar a educação das mãos dos ‘educadores profissionais’. A coação efetuada por notas, competição, exames regulares precisa ser removida e nós precisamos também separar o processo de aprendizagem da preparação para uma profissão particular.

(Feyerabend, 1975: p. 217, minha tradução, itálicos no original)

Contudo, os argumentos para uma modificação drástica na maneira pela qual a

educação institucional se processa não se limitam à apresentação dos benefícios de

uma abordagem humanista pluralista em oposição às restrições da educação

3 Para uma apresentação mais detalhada dessa forma de educação ver capítulos 2 e 3 de ARANHA, M. L. A, Filosofia da Educação, 2a. ed. Revista, São Paulo, Editora Moderna, 2000.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CA
Page 52: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

A epistemologia anarquista de Paul Feyerabend

51

científica. Feyerabend também recorre ao reflexo na sociedade e na maneira pela

qual as pessoas passam a conduzir suas vidas a partir de uma tal educação, dada a

falta de alternativas. Comparando a hegemonia da educação científica à hegemonia

religiosa, ambas viabilizadas - cada uma em seu tempo - pela associação ao estado, o

epistemólogo alerta para o fato que, embora hoje possamos escolher nossa religião,

termos necessariamente uma educação científica na esmagadora maioria das

instituições de ensino4.

Essa questão pode ser considerada absurda fora do contexto da proposta

feyerabendiana para a educação, uma vez que a separação entre ciência e religião é

uma questão ‘resolvida’ na maior parte do ocidente, de modo que a educação

religiosa tem seu lugar, enquanto a educação ‘regular’... esta sim é científica! Não

parece haver dúvidas quanto a isso ser o caso. Não há notícia de reclamações em

massa sobre essa situação. Entretanto, na epistemologia feyerabendiana, há todos os

motivos para duvidar dessa equivalência entre educação ‘regular’ e educação

científica porque, nessa epistemologia, a ciência é uma tradição tão válida quanto a

mágica, o ilusionismo ou a astrologia. Por esse motivo, a educação ‘regular’ deveria

ser uma questão de escolha dos pais, tanto quanto é a educação religiosa.

Essa é uma questão bastante polêmica, tanto no que diz respeito à sua

adequabilidade social quanto às possibilidades de sua aplicação na prática, e não será

aprofundada uma vez que transcende o escopo desta pesquisa. Contudo, vale ser

citada uma vez que mostra o quanto Feyerabend é comprometido com sua visão

pluralista, o quanto é importante a liberdade de escolha em sua epistemologia e o

quanto esta última pretende ser integrada à vida humana e não apenas circunscrita a

ponderações intelectuais e acadêmicas.

Ainda em relação à posição anarquista no que respeita aos prejuízos da

hegemonia da educação científica, Feyerabend alerta para a questão da imagem da

ciência na sociedade.

4 Uma exceção conhecida é de uma recente decisão na justiça norte-americana para o ensino regular do criacionismo religioso ao invés da teoria científica da evolução das espécies, como explicação para a origem da espécie humana. Contudo, tal situação somente constituirá o ideal feyerabendiano se não excluir a possibilidade de haver também o ensino de base científica. Caso contrário, a falta de opção continua prevalecendo.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CA
Page 53: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

A epistemologia anarquista de Paul Feyerabend

52

A imagem da ciência do século XX nas mentes dos cientistas e leigos é determinada pelos milagres tecnológicos tais como a TV a cores, paisagens [da superfície] da lua, o formo de ondas infr-vermelhas, bem como por um influente porém relativamente vago boato relativo à maneira como esses milagres são produzidos. De acordo com o conto de fadas, o sucesso da ciência resulta de uma combinação sutil e cuidadosamente balanceada entre inventividade e controle. Cientistas têm idéias. Eles têm métodos especiais para aprimorar essas idéias. As teorias da ciência foram aprovadas por esse método. Elas oferecem um relato melhor sobre o mundo do que as idéias que não passaram no teste.

(Feyerabend, 1975: p. 300, tradução e grifos meus)

É justamente a última frase da citação, que vem como um fechamento da linha

de raciocínio que a precede, que constitui o grande equívoco proporcionado pela

hegemonia da educação institucional científica. E esse equívoco se espalha por todas

as demais instituições sociais, que passam a privilegiar a tradição científica em

relação às demais, desmerecendo-as por não ‘passarem no teste do método científico’.

Nesse aspecto, o estado moderno deixa de ser ideologicamente neutro e passa a ser

aliado da ideologia científica.

Entre outros desenvolvimentos dessa hegemonia na sociedade, no que tange à

epistemologia, o ‘melhor relato sobre o mundo’, que constitui o único conhecimento

válido e digno de crédito por atender aos rigorosos critérios racionais estabelecidos

no método científico, passa a ser a ciência.

O contínuo ‘ataque’ ao racionalismo científico desferido por Feyerabend vem

justamente no sentido de: a) retirar do conhecimento científico a credencial de

racionalidade – apontando para a falta de racionalidade na ciência e, b) mostrar que a

racionalidade única - que serviria como justificativa para a primazia do conhecimento

científico - não existe, ao contrário, a racionalidade é relativa, condicionada a uma

cosmovisão. Isso sem contar que a racionalidade única seria refletida no método

único, o que não corresponde à riqueza do progresso registrado na história da ciência

e atinge a humanidade (vista como pluralidade) das pessoas nele especializadas.

A Idea de que a ciência pode, e deve, ser conduzida de acordo com um método fixo e regras universais tanto é não realista quanto perniciosa. É não realista porque adota uma visão muito simples dos talentos do homem e das circunstâncias que encorajam, ou causam o seu desenvolvimento. É perniciosa porque a tentativa de impor tais regras resulta num incremento na nossa qualificação profissional às custas da nossa humanidade.

(Feyerabend, 1975: p. 295, minha tradução, grifos no original)

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CA
Page 54: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

A epistemologia anarquista de Paul Feyerabend

53

Para ilustrar a situação a que Feyerabend se refere, trago verbetes de dicionários

para a palavra ‘cientificismo’, no tocante à sua imposição da ciência sobre outras

alternativas de perceber o mundo ao nosso redor:

[...] a idéia de que a ciência faz conhecer as coisas como elas são, resolve todos os problemas reais e é suficiente para satisfazer todas as necessidades legítimas da inteligência humana.

(Lalande, 1996: p. 160) [...]ideologia daqueles que, por deterem o monopólio do saber objetivo e racional, julgam-se os detentores do verdadeiro conhecimento da realidade e acreditam na possibilidade de uma racionalização completa do saber”.

(Marcondes e Japiassú, 1991: p. 44)

Apesar de todo esse ‘endoutrinamento’ pela educação científica e suas

conseqüências na maneira como nos relacionamos com o mundo e com o nosso

conhecimento, Feyerabend acena com dois motivos que o levam a crer que essa

“confiança ingênua e quase infantil na ciência” (Feyerabend, 1975: p. 188) pode estar

com seus dias contados. Um primeiro motivo é o fato de que as instituições

científicas hoje abandonaram o estudo de questões filosóficas, funcionam como

conglomerados empresariais que ‘moldam a mentalidade’ (ibid.) dos cientistas,

tornando-os ávidos por bons salários, reconhecimento do chefe e dos colegas e

dedicação a problemas cada vez mais restritos e localizados impedindo uma visão

integrada de sues conhecimentos. Além do abandono exercido pela ciência às

questões filosóficas, Feyerabend também denuncia uma atitude restritiva e de

submissão, por parte da comunidade científica, às teorias já propostas e bem

consideradas no meio científico, inibindo a eventual crítica, revisão ou proposição de

alternativas a tais teorias. Como exemplo dessa situação, o epistemólogo cita a

posição ocupada pela Teoria da Evolução, para a qual não são admitidas críticas,

segundo a citação abaixo:

As descobertas mais gloriosas do passado não são usadas como instrumentos para esclarecimento, mas como meios de intimidação, como pode ser visto pelos mais recentes debates envolvendo a teoria da evolução. Basta que alguém dê um passo adiante que a profissão (de cientista) tende a transformar-se num clube para forçar as pessoas à submissão.

(Feyerabend, 1975: p. 188, minha tradução)

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CA
Page 55: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

A epistemologia anarquista de Paul Feyerabend

54

E essa submissão do debate livre ao conhecimento científico arraigado leva

Feyerabend a comparar as instituições científicas a verdadeiros ‘clubes de luta’ onde

pessoas dispostas à uma renovação de idéias são rechaçadas por sua ‘insubordinação’.

Há um outro desenvolvimento que constitui um alerta contrário à “fé cega” na

ciência. Segundo Feyerabend, quando as teorias científicas são apresentadas, passam

a ser consideradas como verdades praticamente absolutas, por terem resultado de um

método racional, objetivo e indubitável. Entretanto, as mudanças nas teorias

científicas ocorrem com cada vez maior velocidade, oferecendo uma oportunidade

para as pessoas refletirem sobre o status das teorias científicas diante da realidade e

da verdade e, em conseqüência disso, de sua superioridade em relação a outras formas

de conhecimento ou de ver o mundo.

Para Feyerabend, essas características da condução e dos resultados obtidos a

partir da pesquisa científica hoje constituem uma possibilidade para que a abordagem

anarquista pluralista seja uma alternativa a essa abordagem monista. Tal alternativa

poderá vir a ser adotada tanto por aqueles que sejam ‘expulsos’ dos centros de

pesquisa, por insistirem em suas idéias genuinamente novas, bem como para os que

passarem a desconfiar do formato rígido que é atribuído à ciência. Essa desconfiança

da rigorosa correção científica talvez venha a surgir da constatação geral de que as

teorias científicas não possuem as características que tal correção conferiria. Contudo,

essas são apenas possibilidades traçadas por um Feyerabend desejoso de mudanças no

próprio conceito do que sejam a ciência, o conhecimento e o papel da educação

institucional. Novamente, a realização na prática dessas possibilidades é problemática

e resvala nos limites de nosso trabalho.

Contudo, podemos discutir qual seria o conceito de conhecimento compatível

com uma epistemologia anarquista. De que maneira os preceitos dessa epistemologia

seriam aplicáveis numa maneira de fazer ciência? Qual seria a atitude do cientista

anarquista em relação ao conhecimento que ele produziria? Deixamos estas perguntas

para o próprio Feyerabend responder.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CA
Page 56: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

A epistemologia anarquista de Paul Feyerabend

55

Nada está definitivamente estabelecido, nenhum ponto de vista pode ser omitido de uma abordagem completa. ... Especialistas e leigos, profissionais e curiosos, aficcionados em Verdade e mentirosos – todos estão convidados a participar na disputa e dar sua contribuição e enriquecer nossa cultura. A tarefa do cientista, entretanto, não á mais a ‘busca pela verdade’ ou a ‘ovação a Deus’ ou ‘a sistematização de observações’ ou ‘a melhoria de previsões. O conhecimento, assim compreendido, não é uma série de consistentes teorias que converge em direção a um ponto de vista ideal; não é uma aproximação gradual em direção à verdade. Ao contrário, é um oceano de alternativas mutuamente incompatíveis (e talvez incomensuráveis). Cada teoria, tomada isoladamente, cada conto de fadas, cada mito faz parte do conjunto, forçando os demais para uma maior articulação, todos contribuem através desse processo de competição, ao desenvolvimento de nossa consciência.

(Feyerabend, 1975: p. 30, minha tradução)

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CA
Page 57: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

4 Uma avaliação crítica das Hipótese de Trabalho

Este capítulo será dedicado à retomada das Hipóteses de Trabalho 01 a 03,

conforme descritas no Projeto de Pesquisa que norteou esta dissertação, para

realização de uma avaliação crítica das mesmas à luz dos Capítulos 2 e 3. As

Hipóteses de números 01 e 02 serão tratadas conjuntamente porque estão muito

intimamente relacionadas e a Hipótese 03 será tratada em separado. Todas serão

analisadas no sentido de verificar-se a sua sustentabilidade e eventuais inadequações,

a partir dos resultados da pesquisa registrados nos capítulos anteriores.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CA
Page 58: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

Uma avaliação crítica das hipóteses de trabalho

57

4.1 Hipóteses de números 01 e 02

• Hipótese no. 01: O estilo panfletário do filósofo Paul Feyerabend,

principalmente na sua obra “Contra o Método” editada em 1975, levou a uma

tendência para uma interpretação parcial e superficial de sua obra, assumindo-se a

mesma como descrevendo ou sugerindo uma falta total de critérios para a pesquisa

dita científica.

• Hipótese no. 02: Uma leitura mais articulada de todo o conjunto da obra de

Feyerabend nos indicia que, ao contrário de um simplório anarquismo metodológico

com total ausência de critérios, o autor pretendeu atacar a existência de uma unidade

de método científico pautado numa Razão que pressupõe a possibilidade de tal

método único, defendendo a maior plausibilidade e desejabilidade tanto da

pluralidade metodológica quanto de seus fundamentos.

Estas hipóteses referem-se basicamente ao conteúdo do Capítulo 3, onde

fazemos referência ao fato que o anarquismo pluralista de Feyerabend não constitui

um vazio de regras e critérios, mas, ao invés disso, propõe uma pluralidade de regras

e critérios rejeitando o monismo metodológico bem como ideais universais tais como

Verdade, Razão, Objetividade, Honestidade, Simplicidade e assim por diante,

associados ao monismo citado.

Em conseqüência disso, o anarquismo pluralista também rejeita a distinção

entre os contextos de descoberta e justificação, história interna e externa à ciência,

questionando também os critérios monistas de progresso científico pautados nessas

distinções, em especial o aumento de conteúdo empírico, uma vez que na

epistemologia feyerabendiana teorias que se sucedem, nos momentos de revolução e

progresso científico, são incomensuráveis, ou seja, incomparáveis quanto ao seu

conteúdo. Essa incomparabilidade é devida ao fato de tais teorias referirem-se a

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CA
Page 59: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

Uma avaliação crítica das hipóteses de trabalho

58

entidades de tipos distintos, possuindo significados incomparáveis entre si. Além

disso, o anarquismo pluralista rejeita hegemonias por considerar que estas levam à

inibição da variedade inerente ao potencial humano, impedindo a sua realização,

ferindo um preceito básico do humanismo liberal de John Start Mill, referência

inequívoca e constantemente declarada por Feyerabend.

Vejamos algumas citações referentes a esta questão, que apontam para um

profundo comprometimento da epistemologia anarquista com o humanismo proposto

por Mill, o que vai de encontro às alegações de que essa epistemologia limitou-se à

tentativa de derrubar os cânones existentes sem propor nada em seu lugar.

Recusar-se a ouvir uma opinião por ter certeza que ela é falsa é assumir a sua certeza de forma absoluta. Todo silenciamento de discussão é uma assunção de infalibilidade [...] Se toda a humanidade a menos de um tivesse uma mesma opinião, a humanidade não estaria mais justificada em silenciar este único homem do que ele, caso tivesse esse poder, de silenciar toda a humanidade.[...] A crueldade peculiar de silenciar a expressão de uma opinião é a de que ela subtrai da raça humana, da posteridade e da geração atual – daqueles que discordam da opinião suprimida mais do que daqueles que a defendem.”

(Mill, 1980 p.76-77, minha tradução, grifos no original)

Assim, de nossa pesquisa depreendemos que o anarquismo pluralista não

constitui apenas a rejeição de métodos e critérios. Embora não seja seu objetivo

substituir o monismo metodológico por outra metodologia única, essa epistemologia

considera ser mais benéfico ao desenvolvimento do conhecimento e do potencial

humanos a pluralidade teórica e metodológica, a interação entre o conhecimento

científico com outras formas de conhecimento e com o ambiente sócio-cultural, as

mudanças de significado entre teorias, considerar-se a relação das teorias com a

linguagem utilizada para expressá-las e, finalmente, a maneira como esse conjunto

teoria e linguagem se refletem na forma de ver o mundo e o ser humano, ou seja,

numa cosmologia.

As reações ao anarquismo foram tão contundentes quanto à sua apresentação na

publicação mais bem conhecida de Feyerabend, Contra o Método (doravante CM), a

qual foi planejada para ser escrita com Imre Lakatos com o título A Favor e Contra o

Método, conforme página introdutória assinada pelo próprio Feyerabend. Entretanto,

Lakatos faleceu inesperadamente antes dos planos poderem ser concretizados. Em sua

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CA
Page 60: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

Uma avaliação crítica das hipóteses de trabalho

59

autobiografia, Feyerabend comenta, referindo-se à maneira pela qual ‘montou’ o CM,

dado que seu diálogo com Lakatos não seria mais possível:

CM não é um livro, é uma colagem. Contém descrições, análises, descrições que publiquei, quase com as mesmas palavras dez, quinze até vinte anos antes.

(Feyerabend, 1994: p. 147)

Entretanto, a reação ao livro em nada se pareceu às reações às suas publicações

anteriores. Feyerabend estava consciente de que haveria uma forte reação, porém, não

imaginou que seria tão negativa. Nas palavras de Preston:

Muito antes de sua publicação, Feyerabend antecipou que CM a quem ele se referia como “a bomba que produz mau cheiro”, iria enfurecer as pessoas. Ele estava bem consciente de suas inadequações, e da natureza inflamável de alguns dos comentários espalhafatosos que o livro continha.Numa carta de março de 1970, ele confessou a Lakatos que ‘há muitas contradições em toda a coisa’ para que ele [Feyerabend} obtenha ‘o apoio de pessoas sérias’.

(Preston, 1997: p. 170, minha tradução)

Assim, além do estilo panfeltário feyerabendiano, também contribuíram para

uma grande rejeição ao anarquismo epistemológico os seguintes fatores: diversos

problemas na estrutura formal tanto nos argumentos contrários ao monismo

metodológico quanto nos de defesa ao anarquismo pluralista; discordâncias de outros

epistemólogos quanto às interpretações de episódios da história da ciência e da

atitude de cientistas a que Feyerabend faz alusão para fundamentar e dar respaldo

histórico à sua epistemologia; e, finalmente, a sua defesa de atitudes ‘politicamente

incorretas’ tais como, a perseguição na China dos envolvidos com a cultura Ocidental

(científica) ou a defesa de uso da violência como parte integrante do anarquismo

(Feyerabend, 1975: p. 187), só para citar alguns. Embora Feyerabend tenha tentado se

justificar dizendo que contra uma força muito intensa, como a cultura científica,

somente outra força contrária de igual ou maior intensidade poderia atuar, tal

justificativa não amenizou as reações a essas declarações.

Os exemplos referentes a Galileu são os que mais geraram reações pois

Feyerabend repetidamente sugere que este grande cientista adotou um

comportamento contra-indutivo e, pior que isso, teria também adotado estratégias de

convencimento retóricas, propaganda e persuasão. Mais do que o desagrado causado

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CA
Page 61: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

Uma avaliação crítica das hipóteses de trabalho

60

por Feyerabend afirmar que Galileu utilizou-se e agiu de maneira irracional para

chegar aos seus resultados e apresentar suas descobertas, foi o fato de ter classificado

essas atitudes de ”oportunismo”, insinuando que essa atitude pouco honesta teria feito

parte do ‘sagrado’ contexto científico. Em outros momentos de constrangimento,

Feyerabend compara, por exemplo, o treinamento para a prática profissional

científica com o treinamento para a prática profissional da prostituição (Feyerabend,

1975: p. 217), chocando novamente os seus leitores. Por conta de todos esses fatores,

e não apenas do estilo de escrita, Feyerabend viu-se na situação de escrever inúmeras

réplicas a seus críticos.

Contudo, o epistemólogo concede que ele tinha prazer ao chocar as pessoas. Na

sua autobiografia, novamente ao referir-se como ‘montou’ o CM, ele afirma:

[...] quando comecei a compor minha colagem. Organizei-a numa ordem adequada, acrescentei transcrições, substituí passagens moderadas por mais violentas e chamei o resultado de “anarquismo”. Eu adorava chocar as pessoas e, ademais, Imre queria que o conflito fosse claro, não apenas outra tonalidade de cinza.

(Feyerabend, 1994: p. 150)

Contudo, CM não foi apenas uma brincadeira nem tampouco o exercício de

um estilo mais ousado e chocante de re-escrever artigos e textos apresentados em

seminários anteriores.

Hoje estou convencido de que não há só retórica neste “anarquismo”. O mundo, inclusive o mundo da ciência, é uma entidade complexa e dispersa, que não pode ser capturada por teorias e regras simples.

(Feyerabend, 1994: p. 150)

Feyerabend reafirma suas idéias quase vinte anos após a primeira edição de

CM. A ”bomba de mau cheiro” também possui uma mensagem bem definida, que o

epistemólogo resumiu em palavras simples, mas, significativas, na passagem acima.

Para fins de avaliação das Hipóteses 1 e 2, consideramos que a Hipótese de no.

2 foi plenamente confirmada enquanto a de no. 1 poderia ser reformulada,

acrescentando-se ao estilo panfletário as questões relativas à estrutura formal dos

argumentos bem como à defesa de posições ‘politicamente incorretas’ por

Feyerabend em CM. A interação desses fatores, ao invés de constituir apenas o estilo

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CA
Page 62: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

Uma avaliação crítica das hipóteses de trabalho

61

de escrita, nos parecem, hoje, após a pesquisa, serem os responsáveis pela rejeição e

até certo ponto má compreensão do anarquismo epistemológico.

Por esse motivo, entendemos que estudos como este trazem uma nova visão do

anarquismo pluralista, especialmente no que concerne aos Capítulos 2 e 3 , que

apresentam uma espécie de continuidade do pensamento feyerabendiano, sempre em

defesa da pluralidade e de uma ética humanista.

Finalizamos a análise das duas primeiras hipóteses citando Joseph Agassi,

contemporâneo e amigo de Feyerabend, e que chegou a criticar duramente CM. Ao

referir-se ao já falecido colega epistemólogo, Agassi o considera:

[...] um dos filósofos mais bem conhecidos, mais admirados e menos compreendidos da segunda metade do século XX.

(Agassi, in Preston, 1997: contra-capa, tradução e grifos meus)

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CA
Page 63: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

Uma avaliação crítica das hipóteses de trabalho

62

4.2 Hipótese de número 03

• Hipótese no. 03: O desenvolvimento de uma atitude crítica em relação aos

cânones de racionalidade e objetividade do conhecimento científico e da sociedade

cientificista, segundo Feyerabend, abririam um caminho para outras formas de

conhecimento serem reconhecidamente válidas, tornando sem sentido a

desqualificação atualmente prevalente dessas outras formas de conhecimento

pejorativamente ditas não científicas e/ou não racionais.

A recomendação feyerabendiana para uma atitude crítica está presente em toda

sua obra e pode-se dizer que constitui um desdobramento tanto do falibilismo quanto

da orientação humanista do autor. Para argumentar em favor dessa idéia, lembramos

que, mesmo na sua fase racionalista crítica, Feyerabend já defendia uma atitude

crítica ao monismo teórico, típico de uma visão falibilista do conhecimento humano.

Ao reforçar a fundamentação humanista e a rejeição à hegemonia, a crítica

voltou-se também contra a ciência porque Feyerabend identificou a forte presença de

ideais e atitudes hegemônicas nessa atividade humana. No Capítulo II tratamos mais

especificamente desta questão, sob o ponto de vista metodológico, educacional e

social.

No tocante à desqualificação de outras formas de conhecimento, o aspecto

educacional desempenha um papel marcante. Segundo Feyerabend, o preconceito

contra alternativas não científicas de visão de mundo se instala pela impossibilidade

de se optar por uma educação regular não científica. Esta impossibilidade resulta da

associação da ciência ao estado, somada à atitude monista da ciência em relação à

racionalidade e ao método, atitude esta que a destaca e valoriza em relação a outras

formas de conhecimento.

Assim no que diz respeito a formas não científicas de conhecimento, a principal

mensagem de Feyerabend é a criação de uma disposição para uma maneira alternativa

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CA
Page 64: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

Uma avaliação crítica das hipóteses de trabalho

63

de conceber o conhecimento em geral. Esta alternativa traria uma conscientização que

integraria as diferentes formas de ver o mundo, ao invés de fazer do conhecimento

um mecanismo excludente em relação a essas alternativas. Nessa perspectiva,

conhecimento é antes de tudo interpretação. A partir de uma inspiração humanista,

esse conhecimento compõe-se de e favorece a integração, troca, inter-relacionamento

e reconhecimento das diferenças interpretativas, e não a sua “pasteurização” numa

busca pela “objetividade”, ou ainda um empreendimento dirigido a uma

“universalidade”. Conhecimento assim concebido é, acima de tudo, pluralidade,

mudança contínua e contexto.

A história da ciência, afinal, não consiste apenas de fatos e conclusões tiradas a partir de fatos. Ela também contém idéias, interpretações de fatos, problemas criados por interpretações conflitantes, enganos, e assim por diante. Numa análise mais profunda nós até podemos achar que a ciência não contém “fatos puros” mas que os “fatos” que compõem nosso conhecimento são previamente vistos de determinadas formas sendo, portanto, essencialmente ideacionais.

(Feyerabend, 1975: p. 19, tradução e grifos meus)

Como se vê, o relativismo em Feyerabend não é visto como um “problema”

indesejável que ameaça a “ordem” no conhecimento, pois a relatividade é inerente

tanto à natureza quanto ao processo da busca pelo conhecimento. Inúmeras vezes

Feyerabend afirma que é ingênuo e simplório tentar reduzir esse processo através de

explicações que objetivam ser simples, práticas, universalmente justificadas e

aplicáveis.

Para que tal concepção de educação seja efetivada, Feyerabend defende uma

proposta educativa que muito se assemelha à proposta progressista e social-

construtivista. Para verificar se tal proposta educativa, com as características

preconizadas pelo anarquismo de fato resultaria nos objetivos tão caros a Feyerabend:

a discussão livre de uma pluralidade de posições, o respeito mútuo às diferenças, o

favorecimento ao progresso do conhecimento sob o ponto de vista dos valores

humanistas, e assim por diante, poderia-se pesquisar trabalhos sobre experiências

nesses ambientes educacionais. Pelo material pesquisado, entendemos que

Feyerabend defende a idéia de que uma educação nesses moldes favoreceria esses

resultados, desejáveis num contexto epistemológico anarquista, porém, não há como

afirmar que de fato eles seriam atingidos. Assim, embora teoricamente uma educação

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CA
Page 65: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

Uma avaliação crítica das hipóteses de trabalho

64

anarquista venha a gerar na prática uma atitude pluralista, seriam necessárias mais

informações sobre eventuais resultados observados para tirar-se uma conclusão

definitiva.

Dados os aspectos do pensamento feyerabendiano compilados por meio de

leituras ao longo da pesquisa e apresentados nessa breve explanação, consideramos

que a Hipótese de no. 03 tenha sido plenamente confirmada nesta pesquisa.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CA
Page 66: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

5 Conclusão

5.1 Conclusões desta pesquisa

Ao término da pesquisa que resultou nesta dissertação, entendo que este estudo

cumpriu seu objetivo e resultou numa análise favorável às hipóteses levantas no

projeto que o orientou.

Dada a avaliação de que as hipóteses da pesquisa foram verificadas, a

epistemologia feyerabendiana de fato ainda não foi plenamente explorada em toda a

sua dimensão. Possíveis razões para essa visão parcial da obra feyerabendiana são: o

estilo panfletário e inflamado de seus textos, os problemas formais em argumentos

contra o monismo metodológico e a favor do anarquismo epistemológico, bem como

a defesa de posições ‘politicamente incorretas’ para oposição à cultura cientificista.

Pelos resultados desta pesquisa, todos esses fatores colaboraram para uma má

compreensão da epistemologia anarquista.

Contudo, ao realizar-se uma leitura através desses elementos, embora sabedores

de sua existência, chega-se aos eixos norteadores do pensamento feyerabendiano: a

defesa da pluralidade em virtude de uma posição humanista que prega o respeito à

respeite a diversidade humana e busca viabilizar a realização das potencialidades do

ser humano.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CA
Page 67: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

Conclusão

66

Daí, percebe-se que Feyerabend não era contra o método simplesmente por ser

um relativista que evidencia a irracionalidade da ciência. O “contra o método”

feyerabendiano vem de e atinge a domínios além da metodologia da ciência e suas

eventuais características uma vez que a epistemologia anarquista integra o

conhecimento [científico] a toda uma concepção de mundo. Na concepção

feyerabendiana, o conhecimento não é uma decorrência lógica argumentativa de

algum conjunto de princípios ou constatações de natureza exclusivamente epistêmica,

ou cognitiva. A epistemologia anarquista pluralista assumidamente faz parte de uma

cosmologia.

Nessse particular, Feyerabend é muito intenso, como se vê neste trecho da sua

autobiografia:

Ainda lembro da excitação que senti ao ler Snell sobre a noção homérica do ser humano. Não se tratava de uma teoria formulada para ordenar um material independente, mas, um conjunto de hábitos que permeava tudo – linguagem, percepção, arte, poesia, bem como várias antecipações do pensamento filosófico.

(Feyerabend, 1994: p. 148, minha tradução)

Considero ser esta a principal mensagem da epistemologia feyerabendiana, que

talvez passe despercebida diante de tantas expressões e palavras ‘hostis’ ao status quo

cientificista, diversas incorreções formais e posições socio-políticas publicamente

indefensáveis. Disto tratam as hipóteses que orientaram a pesquisa.

A primeira recomendação desta pesquisa seria, então, que este aspecto da

epistemologia feyerabendiana fosse mais divulgado e discutido, de modo que ao se

falar em Feyerabend não seja feita a descrição simplificadora: aquele que foi ‘contra

o método’.

Uma segunda recomendação desta pesquisa seria um estudo referente à hipótese

levantada ao final de sua realização, o possível paralelo entre o anarquismo pluralista

e as características de sistemas complexos sob a abordagem agregativa.

Naturalmente, essa hipótese teria que ser aprofundada, detalhada e formalizada, até

para uma verificação de sua plausibilidade.

Concluímos, então, com um trecho muito significativo de epistemólogo Paul

Karl Feyerabend, que expressa um sentimento permeado por sua epistemologia, onde

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CA
Page 68: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

Conclusão

67

interagem conceitos, interpretações e os limites da linguagem bem como elementos

que constituem a sua cosmovisão .

Um dos motivos pelos quais escrevi Contra o Método foi para libertar as pessoas da tirania de obfuscadores filosóficos e conceitos abstratos tais como ‘verdade”, “realidade” ou “objetividade”, que estreitam as visões das pessoas e as formas de ser no mundo. Formulando o que pensei serem minha própria atitude e convicções, eu infelizmente acabei por introduzir conceitos de similar rigidez, tais como “democracia”, tradição ou “verdade relativa”. Agora que estou consciente disso, eu fico imaginando como pode ter acontecido. A determinação para explicar suas próprias idéias, não de maneira simples, não numa estória, mas por meio de um “relato sistemático” é, de fato, poderosa.

(Feyerabend, 1994 pp. 179-180, tradução e grifos meus)

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CA
Page 69: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

Conclusão

68

5.2 Delineamento preliminar de uma hipótese nova para pesquisas futuras

Além do cumprimento do previsto no projeto, as leituras em referência neste

estudo geraram o levantamento de uma hipótese nova, ainda em processo de

formalização, e que poderá vir a ser objeto de futuras pesquisas. Essa hipótese tem

relação direta com o objeto da pesquisa, a epistemologia anarquista pluralista de Paul

Feyerabend e diz respeito a uma tentativa de aproximação entre essa epistemologia e

as atuais pesquisas em complexidade sob o enfoque agregativo.1

Assim, antes de finalizar esta dissertação, apresento este desdobramento

inesperado da atual pesquisa, apenas como uma contribuição adicional e hipotética.

Esclarecemos que, embora em alguns trechos da obra feyerabendiana, o autor

chega a usar o termo ‘complexidade’, nada indica que ele estivesse se referindo à

complexidade no sentido sistêmico, o qual pretendo utilizar para traçar

hipoteticamente o paralelo acima descrito. Embora estudos em complexidade já

estivessem em andamento à época em que Feyerabend propôs o anarquismo

epistemológico, talvez Feyerabend não tenha feito referência à complexidade sob o

ponto de vista sistêmico porque as origens dessa teoria estão ligadas precisamente na

busca de uma ordem, o que para o autor já estava fora de questão na sua fase

anarquista pluralista. Contudo, como a perspectiva de compreensão da complexidade

hoje está bem mais diversificada, acredito ser possível o levantamento de uma

hipótese para a referida analogia, mesmo que de forma parcial, respeitando o

pluralismo anarquista. Acrescento também que esse paralelo hipotético não surgiu a

partir da leitura da palavra “complexidade”, a qual aparece destituída do seu sentido

sistêmico nos textos de Feyerabend, e sim a partir das semelhanças entre as

características do anarquismo epistemológico e as dos sistemas complexos. Note-se

também que a eventual força dessa hipótese não reside no fato de haver algumas

semelhanças isoladas entre o anarquismo epistemológico e os sistemas complexos

1 Para esta breve apresentação será considerado o estado atual das pesquisas em complexidade agregativa conforme consta em MANSON, S. M.,Simplifying Complexity: A review of Complexity Theory, Geoforum32 (3):405-414, ISSN 0016-7185, Elsevier, 2001.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CA
Page 70: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

Conclusão

69

mas no fato de essas semelhanças estarem entrelaçadas ao nível estrutural

(composição das partes), relacional (troca de informação entre as partes) e funcional

(produção de resultados) nos sistemas complexos e no “sistema epistemológico

anarquista”2. Com a finalidade de realizar uma apresentação clara e o mais sucinta

possível, esta será feita sob a forma de itens.

5.2.1 A falta de unidade da ciência, os agrupamentos dos sistemas complexos em sub-sistemas e as interações entre as diversas disciplinas científicas

Para defender a pluralidade metodológica, entre outros argumentos, Feyerabend

menciona a falta de unidade da ciência a qual, de certa forma, resulta de e é reforçada

por uma falta de unidade de método entre as várias disciplinas científicas. Nas

palavras de Feyerabend:

[...] vamos assumir que as expressões ‘psicologia’, ‘antropologia’, ‘história da ciência’, ‘física’ não se referem a fatos e leis mas a certos métodos para montagem de fatos incluindo certas formas de conectar observação, teoria e hipóteses. Ou seja, consideremos a atividade [denominada] ‘ciência’ a suas várias subdivisões.

(Feyerabend, 1975: p. 259, minha tradução, grifos no original)

Nesse trecho, vemos como a pluralidade metodológica gera uma multiplicidade

no conhecimento científico. Para traçarmos o paralelo hipotético, a ciência será

considerada um sub-sistema do sistema complexo ‘conhecimento’. Assim, dentro do

sub-sistema ‘conhecimento científico’ formam-se sub-sistemas científicos de segunda

ordem, ou seja, as diversas disciplinas científicas, tais como, física, psicologia,

antropologia, história etc. Feita essa correspondência, vemos como aparece a

semelhança entre as característica dos sistemas complexos e das disciplinas

científicas. Em ambos os casos, ocorre a tendência à formação de sub-sistemas, que

se formam e se mantêm por meio da troca mais intensa de informação interna do que 2 Por “sistema epistemológico anarquista” entende-se a epistemologia anarquista vista sob uma perspectiva sistêmica complexa de abordagem agregativa.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CA
Page 71: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

Conclusão

70

com outros sub-sistemas. É inegável que os elementos que compõem o sub-sistema

de segunda ordem ‘antropologia’ trocam muito mais informação interna do que com

o sub-sistema de segunda ordem ‘psicologia’, e assim por diante. O mais interessante

desta semelhança é que, tanto nos sistemas complexos quanto na visão pluralista, a

estrutura dos subsistemas e das diversas disciplinas se formam a partir dessas

relações mais intensas representadas, na epistemologia pelas regras metodológicas,

comuns a um dado sub-sistema, e que “montam” os “fatos” em cada disciplina

científica, como vemos na citação acima.

Podemos citar ainda que, tal como nos sistemas complexos, há determinados

fluxos de informação que permanecem restritos aos sub-sistemas assim formados.

Aqui comparamos a crescente especialização dentro de cada disciplina científica,

mesmo sem haver a necessidade de recorrer à epistemologia anarquista. O que

observamos em nossa realidade acadêmica e nas pesquisas científicas é uma forte

orientação para uma falta de integração entre os sub-sistemas de segunda

ordem/disciplinas científicas, reforçada pela educação científica, e denunciada por

Feyerabend. Entretanto, essa orientação de isolamento entre sub-sistemas não ocorre

nem na teoria dos sistemas complexos nem na recomendação da epistemologia

anarquista. Aliás, a falta de integração é considerada prejudicial nos dois contextos –

complexidade e anarquismo epistemológico – evidenciando um paralelo estrutural,

relacional e funcional entre ambos. Vale lembrar também que Feyerabend tenta

mostrar que nos momentos de progresso científico essa integração de fato ocorreu, e é

desejável que ocorra, a despeito dessa forte orientação contrária.

Vejamos agora um trecho onde Feyerabend emprega o termo complexidade

sem estar-se referindo à complexidade sistêmica, porém, que ilustra de que maneira o

anarquismo considera interessante a interação entre diversas formas de conhecimento,

conforme acabamos de tratar.

[...] Mas a questão não é quais distinções uma mente fértil pode engendrar quando confrontada por um processo complexo ou como um material homogêneo pode ser subdividido por acidentes históricos; a questão é até que ponto a distinção criada reflete uma diferença real e se a ciência pode avançar sem uma forte interação entre domínios distintos.

(Feyerabend, 1975: p. 166, tradução e grifos meus)

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CA
Page 72: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

Conclusão

71

5.2.2 As interações entre ciência e sociedade e as interações entre sistemas complexos e o seu meio ambiente

Num dos diversos momentos em que Feyerabend faz referência à relação entre

ciência e o contexto sócio-cultural, ele propõe que tal relação deva ser estudada pela

antropologia, fazendo novamente o uso da noção cotidiana – não sistêmcia - de

complexidade.

[...] Tal indagação, por outro lado, terá que explorar a maneira pela qual os cientistas de fato lidam com seus arredores, terá que examinar o efetivo formato de seu produto, ou seja, ‘conhecimento’, e a maneira pela qual esse produto se altera como resultado de decisões e ações em condições sociais e materiais complexas. Numa palavra, tal indagação terá que ser antropológica.

(Feyerabend, 1975: p. 260, minha tradução)

Depreendemos então que Feyerabend tanto considera relações entre as diversas

disciplinas científicas, como vimos no item anterior em termos sistêmicos, como

também considera as relações entre a ciência e seu ambiente externo sócio-cultural.

Em termos sistêmicos tais relações seriam caracterizadas como relações extra-

sistema. Interessantemente, essas relações extra-sistema da ciência com a sociedade,

na recomendação de Feyerabend acima citada, devem ser abordadas via um sub-

sistema de segunda ordem / uma disciplina científica, ou seja, a antropologia. Isto

significa dizer que o sub-sistema científico realiza uma troca informações com a

sociedade de maneira mais intensa por meio de antropologia, na visão feyerabendiana

assumindo a hipótese do paralelo anarquismo-sistema complexo. Ainda no que se

refere a troca de informações do sub-sistema científico com seu meio externo social,

quando ocorre uma intensificação constante de fluxos de informação entre um sub-

sistema e seu ambiente, há uma tendência à ‘fusão’ entre esse sub-sistema e o

elemento externo que pertence ao seu ambiente. Como um exemplo desse tipo de

‘fusão’ na crítica epistemológica feyerabendiana – explorada no final do Capítulo II –

apresentamos os fluxos entre o sub-sistema cientifico e a educação institucional, que

faz parte do meio social externa à ciência. Tais fluxos tornaram-se tão intensas que a

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CA
Page 73: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

Conclusão

72

educação institucional hoje praticamente faz parte do subsistema científico e vice-

versa. Esse tipo de desdobramento também ocorre nos sistemas complexos,

constituindo mais um paralelo estrutural, relacional e funcional.

5.2.3 Critérios de demarcação e o seu paralelo hipotético com o reflexo dos fluxos de informação na estrutura dos sistemas complexos

Iniciamos este item com uma citação que ser refere à necessidade de interação

entre teorias de domínios distintos para o desenvolvimento da ciência segundo o

pluralismo metodológico, interações estas representáveis por fluxos de informações

internos ao sub-sistema científico (entre as disciplinas científicas), internos ao sistema

conhecimento (entre o sub-sistema científico e outros sub-sistemas do sistema

conhecimento) e por fluxos externos (entre o sub-sistema científico e seu ambiente

social externo).

Uma cientista que .... adotar uma metodologia pluralista, irá comparar teorias com outras teorias ao invés de faze-lo com ‘experiência’, dados’, ou ‘fatos’ e ele tentará aprimorar ao invés de descartar os pontos de vista que parecem estar perdendo na competição. As [teorias] alternativas podem ser buscadas em qualquer parte – de mitos antigos ou preconceitos modernos, de elocubrações de especialistas e de fantasias de excêntricos. Toda a história de uma dada matéria é utilizada na tentativa de melhor aprimorar seu estágio mais recente e mais “avançado”. A separação entre a história da ciência, sua filosofia e a própria ciência dissolvem-se no ar bem como a separação entre ciência e não-ciência.

(Feyerabend, 1975: pp. 47-48, tradução e itálicos meus)

Feyerabend aborda nesse trecho precisamente o que ocorre nos sistemas

complexos quanto aos fluxos de informação internos e externos. Esse paralelo

hipotético ocorre em dois aspectos. O primeiro, quanto à importância desses fluxos na

metodologia pluralista e nos sistemas complexos para a sua funcionalidade. O

segundo, quanto à formação da estrutura dos sistemas complexos e também da

estrutura que separa a ciência da não-ciência. Quando Feyerabend diz que a

comparação entre teorias dos mais variados domínios “dissolve no ar” a demarcação

entre ciência e não-ciência, nos sistemas complexos a intensificação de fluxos de

informação promove um rearranjo na sua estrutura, resultando em eventuais “fusões”

entre pelo menso dois sub-sistemas e entre um ou mais sub-sistemas e elementos do

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CA
Page 74: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

Conclusão

73

meio externo. Nesse processo, tanto as ‘demarcações’ entre os diversos sub-sistemas

quanto as ‘demarcações’ entre um dado sub-sistemas e seu meio externo são

flutuantes e resultam da existência ou não dos respectivos fluxos informacionais.

Novamente, a semelhança estrutural, relacional e funcional se verifica.

Também a partir da caracterização dos fluxos de informação externos ao

sistema complexo, podemos traçar paralelos com a forma feyerabendiana de tratar os

problemas da distinção entre a historia interna e externa da ciência, associado ao

problema da distinção entre contexto de descoberta (fluxo de informação aberto a

outros sub-sistemas e ao ambiente) e o de justificação (fluxo de informação restrito ao

sub-sistema científico).

Os fluxos de informação e as estruturas (demarcações) deles decorrentes

terminam por atingir o conceito de racionalidade da ciência, dadas as interferências

de fatores (fluxos de informação) não científicos (não racionais) na condução de

pesquisas científicas por meio dos fluxos de informação com o meio ambiente social.

Vale comentar que essa relação fluxo externo – racionalidade é válida apenas no caso

de não haver distinção entre contexto de descoberta e de justificação. Caso contrário,

o fato de haver fluxos de informação entre o sub-sistema científico e o ambiente

externo sócio-cultural não afetaria a racionalidade científica pois o componente

“irracional” ficaria restritos ao contexto de descoberta. É possível que, exatamente

por este motivo, a argumentação feyerabendiana procura eliminar precisamente essa

distinção. O trecho que se segue abarca toda essa linha de raciocínio, onde

Feyerabend responde a uma crítica feita por Herbert Feigl, para quem a distinção

entre os referidos contextos é válida:

[..] na história da ciência, padrões de justificação freqüentemente proíbem passos que são causados por condições psicológicas, sócio-economico-políticas e outras ‘condições’ externas e a ciência sobrevive porque a prevalência dessas passos acaba por ser permitida. Assim sendo, a tentativa ‘de recuperar as origens históricas, a gênese e o desenvolvimento psicológico, as condições sócio-economico-políticas para a aceitação ou rejeição de teorias científicas, longe de ser um empreendimento inteiramente diferente das considerações envolvidas em testes, leva efetivamente a

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CA
Page 75: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

Conclusão

74

uma crítica dessas considerações – contanto que os dois domínios, pesquisa histórica e a discussão de procedimentos de teste, não sejam mantidos em separado ‘por decreto’. (Feyerabend, 1975:p. 166, minha tradução e grifos no original)

Como dissemos anteriormente, Feyerabend acredita que as interações internas e

externas estejam sempre ocorrendo, que o desenvolvimento científico possui um

componente irracional necessário, a despeito da forte oposição racionalista. Para fins

de nossa hipótese, no que concerne à interação entre ciência e não ciência e

inexistência das distinções entre contexto de descoberta e justificação e história

externa e interna, os fluxos de informação nos sistemas complexos apresentam

semelhanças estruturais, relacionais e funcionais.

5.2.4 A contra indicação de hegemonias no anarquismo e nos sistemas complexos

Como já foi explanado anteriormente, a única restrição imposta pelo pluralismo

anarquista é a recusa a ideais, regras, métodos ou princípios que levem a situações

hegemônicas. Em termos sistêmicos, uma situação hegemônica se constitui por meio

de estruturas rígidas, com raros ou nenhum fluxo de informação, limitadas a

permanecer numa única forma estrutural.

Ao realizarmos o paralelo hipotético, a “recomendação” ou “prescrição’

pluralista de evitar hegemonias se revela de uma maneira bastante pragmática.

Sistemas que “se fecham” em relação ao seu ambiente e que reduzem a sua variedade

e densidade de interação internas através da redução de fluxos entre suas partes

componentes, tendem a perder “capacidades adaptativas” e “resiliência”. Esses

conceitos estão relacionados ao contexto teórico darwiniano, e são compatíveis com a

idéia de “favorecer a multiplicidade para aumentar as chances de adaptar-se para

sobreviver”. Esse não parece ser o contexto feyerabendiano de inspiração humanista

onde o favorecimento da pluralidade justifica-se na criação de condições favoráveis à

realização da variedade do potencial humano. Assim sendo, embora as possíveis

motivações para as transições num sistema complexo na perspectiva dos estudiosos

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CA
Page 76: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

Conclusão

75

em complexidade agregativa e suas possíveis correspondentes na epistemologia

anarquista apresentam naturezas distintas, a saber, busca pela sobrevivência e

realização da variedade do potencial humano, as características de interação,

relacionamentos e estruturação possuem os paralelos que traçamos acima. Neste caso,

identificamos o paralelo apenas aos níveis estrutural e relacional porém o nível

funcional apresenta uma clara distinção.

5.2.5 Irracionalidade, emergência e representação

A questão da irracionalidade da ciência na epistemologia feyerabendiana, como

já vimos, surge a partir de diversos ângulos: inexistência de um critério de

demarcação que se verifique na prática científica, interação entre os diversos saberes

(científico, místico, religioso, e estético/artístico), falta de distinção entre contexto de

descoberta e de justificação, e incomensurabilidade entre teorias. Também já vimos

acima possibilidades de paralelos hipotéticos entre a essas características da

epistemologia anarquista e os sistemas complexos por meio dos fluxos

informacionais, estruturas e funcionamento desses sistemas.

Netse item, trataremos da uma outra característica dos sistemas complexos, que

consiste no surgimento de uma nova capacidade no sistema e que está além da soma

das capacidades de suas partes componentes. Isso significa dizer que tal sistema

apresentará qualidades emergentes que não são tratáveis analiticamente a partir das

capacidades de suas partes. A emergência surge em função da sinergia, permitindo a

formação de características de todo o sistema, as quais não resultam da superposição

– ou de um efeito aditivo – das características de seus componentes. As

características atingidas por emergência são proporcionadas a partir das interações

entre os componentes. Daí decorre que os fenômenos emergentes estão, via de regra,

além de nossas possibilidades de previsão ou controle. Por esse motivo, ao

provocarmos alterações num componente ou sub-sistema de um sistema complexo, a

previsão do comportamento de todo o sistema a partir dessa alteração só poderá ser

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CA
Page 77: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

Conclusão

76

feita em curto prazo, uma vez que não há como prever a repercussão da alteração nas

relações entre componentes, entre subsistemas, com o ambiente externo sócio-cultural

e, conseqüentemente, nos fluxos de informação e energia que formam a estrutura

interna do sistema.

Este conceito-chave parece muito relacionado à questão da possível sinergia

entre os diversos sub-sistemas e também entre estes sub-sistemas e o meio ambiente

sócio-cultural. Retomamos aqui a questão do contexto de descoberta, discutido acima,

acrescentando-se que a ‘descoberta’ pode por hipótese ser entendida como uma

qualidade emergente do funcionamento complexo do sistema conhecimento em

interação com seu ambiente. Essa abordagem ao processo de descoberta suscita

paralelos com a questão da irracionalidade da ciência – por resvalar na indistinção

entre o contexto de descoberta e o de justificação – bem como porque nos estudos de

sistemas complexos [...] “as qualidades emergentes... são comumente atribuídas à

irracionalidade ou imperfeição [dos sistemas] porém, de fato são intrínsecas a

interações locais, racionais e suas conseqüências não lineares” (Andreoni e Miller,

1995 in Manson, 2001: p.6, minha tradução). Naturalmente há que se pesquisar e

aprofundar o significado de “racionalidade local”, e como poderia ser feito um

paralelo desse conceito de “imprevisibilidade e conseqüências não lineares”

entendido como aparente irracionalidade. Não pretendemos advogar aqui a existência

de racionalidades locais ou condicionadas a formas vida, como preconizado pelo

segundo Wittgenstein. Limitamo-nos apenas a sugerir uma hipótese sobre a

possibilidade de um paralelo entre a ‘irracionalidade’ da descoberta e a

‘irracionalidade’ no comportamento emergente de sistemas complexos, o que nos

parece ser uma pesquisa promissora.

Ainda com relação à emergência e à sua natureza não reducionista, os estudos

sobre emergência enfrentam hoje um desafio para a representação e expressão

matemática da emergência. Em termos anarquistas pluralistas, os estudos em sistemas

complexos enfrentam hoje o desafio de buscar linguagens alternativas para expressar

a sua busca por uma interpretação alternativa, ou seja, não reducionista.

Quando Feyerabend discorre longamente sobre a transição do universo grego

arcaico, o qual ele denomina de cosmologia ‘A’ formada por coisas, eventos e suas

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CA
Page 78: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

Conclusão

77

partes, para universo de substância –aparência de seus seguidores, que ele denomina

cosmologia ‘B’, onde inserem-se as aparências e a distinção entre ‘muito saber’ e

‘conhecimento verdadeiro’, ele expõe as dificuldades de Aquiles na Ilíada em falar

sobre uma situação pertencente à cosmologia ‘B’ numa linguagem que faz parte da

cosmologia ‘A’.

[...] Aquiles quer dizer que a honra pode estar ausente mesmo que todas as suas manifestações exteriores estejam presentes. Os termos da linguagem que ele usa são tão intimamente ligados a situações sociais específicas que ele não tem palavras para expressar sua desilusão. Contudo, ele a expressa de uma forma memorável. Ele o faz ao realizar um uso incorreto da linguagem de que ele dispõe. Ele faz perguntas que não podem ser respondidas e faz solicitações que não podem ser atendidas. Ele age de uma forma extremamente “irracional”.

(Feyerabend, 1975: p. 267, minha tradução)

Novamente nos deparamos com um conceito de irracionalidade condicionado a

uma cosmologia ou forma de vida, sobre o qual não nos aprofundaremos aqui.

Contudo, chamamos atenção para a questão das limitações da linguagem, descrita por

Feyerabend na citação acima e suas semelhanças com as dificuldades de

representação dos comportamentos dinâmicos e emergentes dos sistemas complexos

em linguagem matemática orientada ao equilíbrio.

Ambas as situações parecem trazer um problema semelhante, o da inadequação

da linguagem corrente e disponível para expressão de uma nova interpretação, ou

seja, segundo a definição feyerabendiana de interpretação, para a expressão de uma

nova classificação e atribuição de propriedades específicas aos objetos que

constituirão o novo fato observado (emergência).

As semelhanças entre as duas situações de busca por uma linguagem não param

nesse ponto. Vejamos em maior detalhe a caracterização da cosmologia ‘A’: Os elementos de A são partes relativamente independentes de objetos que se inserem em relações externas. Eles participam de agregados sem alterar as suas propriedades intrínsecas. A ‘natureza’ de um agregado particular é determinada por suas partes e pela forma como essas partes se relacionam uma à outra. Enumere as partes na ordem apropriada e você terá o objeto.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CA
Page 79: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

Conclusão

78

Isso se aplica a agregados físicos, aos humanos (mentes e corpos), aos animais e também a agregados sociais tais como a honra de um guerreiro.

(Feyerabend, 1995: p. 264, minha tradução)

A cosmologia ‘A’ constitui a visão reducionista que, conforme já

mencionamos, é aquela que os estudos em sistemas complexos pretendem superar.

Feyerabend, com suas idéias “anarquistas”, pretendia superar a visão do monismo

metodológico e dos ideais de racionalidade, verdade, objetividade e honestidade que

compõem a cosmologia monista, expressável na precisão da linguagem lógica.

Na citação que se segue, completamos o quadro do paralelo hipotético que

encontramos entre as dificuldades declaradas por pesquisas em complexidade e as

dificuldades de Feyerabend em lidar com a linguagem lógica reducionista para

descrever o anarquismo pluralista. Novamente aparecem o termo ‘complexo’ e a

referência à abordagem histórico-antropológica que tivemos oportunidade de

mencionar anteriormente neste capítulo.

Meu propósito é encontrar uma terminologia para descrever certos fenômenos histórico-antropológicos complexos, os quais são apenas imperfeitamente compreendidos, e não a definição de propriedades de sistemas lógicos especificados detalhadamente.

(Feyerabend, 1975: p. 269, minha tradução)

Assim, julgamos finalizada esta tentativa inicial de formulação de uma hipótese

preliminar para a realização de uma aproximação entre a epistemologia anarquista

pluralista e as recentes pesquisas em sistemas complexos sob abordagem agregativa,

sugerindo que Feyerabend talvez estivesse buscando interpretar e comunicar algo

semelhante ao que buscam interpretar e comunicar hoje os pesquisadores nessa

abordagem à complexidade.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CA
Page 80: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

6 Referências Bibliográficas

ANDREONI J. e MILLER, j. h., Auctions with artifical adaptive agents in, Games

and Economic Behavior, 10 : 39-64, 1995

ARANHA, M. L. A, Filosofia da Educação, São Paulo, Editora Moderna, 2000

FERNANADES, S. L. C., Foundations of Objective Knowledge- the relations of

Popper´s theory of knowledge to that of Kant, Dordecht, D. Riedel, 1985

___________, Filosofia e Consciência – uma investigação ontológica da distinção

entre aparência e realidade, Rio de Janeiro, Areté, 1995

___________, O Lugar da Ciência, in O que nos faz Pensar, Cadernos do

Departamento de Filosofia da PUC-Rio, Junho 2002

FEYERABEND, P. K., Knowledge without Foundations, two lectures delivered on

the Nellie Heldt Lecture Fund, Oberlin, Ohio, 1961a

___________, Explanation, Reductiona and Empiricism, in Feigl &Maxwell (eds.),

“Scientific Explanation, Space and Time: Minessota Studies in the Philosophy of

Science”, vol. 3, Minneapolis, University of Minessota Press, 1962a

___________, A note on the Problem of Induction, Journal of Philosophy, vol. 61,

1964b

___________, Problems of Empiricism, in R. Colodny (ed.), “Beyond the Edge of

Certainty”, University of Pittsburgh Studies in the Philosophy of Science, Englewood

Cliffs, NJ, Prentice Hall, 1965a

___________, On the “Meaning” of Scientific Terms, Journal of Philosophy, vol.62,

1965b

___________, Consolations for the specialist, in “Criticism and the Growth of

Knowledge”, Lakatos, I and Musgrave, A (eds), Cambridge, Cambridge University

Press ,1970a

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CA
Page 81: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

Referências Bibliográficas

80

___________, Against Method – Outline of an Anarchistic Theory of Knowledge, in

“Minesota Studies in the Philosophy of Science”, vol. 4: “Analyses of Theories and

Methods of Physics and Psychology” M. Radner & S. Winokur (eds.), Minneapolis

University of Minessota Press, 1970b

___________, Against Method, London, UK, New Left Books, 1975

___________, Science in a Free Society, London, New Left Books, 1978

___________, Against Method, 3a. ed. London, UK, Verso, 1993

___________, Problems of emprircism – Philosophical Papers, vol. 2, New York,

Cambridge University Press, 1986

___________, How to defend society against science, in Scientific Revolutions,

Hacking, I. (ed.), 1987

___________, Farewell to Reason, London, Verso, 1994

___________, Matando o tempo - uma autobiografia, São Paulo, Editora UNESP,

Cambridge, Cambridge University Press 1994

GELLNER, E., Razão e Cultura – Papel histórico da racionalidade e do

racionalismo, Lisboa, Editorial teorema Ltda., 1992

HAKING, I., Lakatos’s philosophy of science, in Scientific Revolutions, 4a. edição.,

Hacking, I (ed.), New York, Oxford University Press, 1992

HORGAN, J., The end of science: facing the limits of knowledge in the twolight of the

scientific age, Reading, Massachusetts, Addison-Wesley Publishing Company, 1996

KRAFT, V., Erkenntislehre, Viena, Spirngel-Verlag, 1960

KUHN, T., The Structure of Scientific Revolutions, 2a. ed., Chicago, Chicago

University Press, 1970

___________, Logic of discovery or psychology of research, in Criticism and the

Growth of knowledge, Lakatos, I and Musgrave, A (eds), Cambridge, Cambridge

University Press, 1970

___________, The essential tension, Chicago, Chicago University Press, 1977

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CA
Page 82: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

Referências Bibliográficas

81

___________, A function for thought experiments, in Scientific Revolutions, 4a.

edição., Hacking, I (ed.), New York, Oxford University Press, 1992

LALANDE, Vocabulário Técnico e Crítico de Filosofia, São Paulo, Martins Fontes,

1996

LAKATOS, I., Falsification and the methodology of scientific research programs in

Criticism and the Growth of knowledge, Lakatos, I and Musgrave, A (eds),

Cambridge, Cambridge University Press, 1970

__________, The Methodology of Scientific Research Programmes, in Philosophical

Papers, vol. 1, J. Worral and G. Curie (eds.), Cambridge, UK, Cambridge University

Press, 1978

___________, History of Science and its rational reconstructions, in Scientific

Revolutions, 4a. ed., Hacking, I (ed.), New York, Oxford University Press, 1992

LAUDAN, L., Progress and its Problems- Towards a theory of scientific growth,

London and Henley, Routledge and Keagean Paul, 1977

___________, Science and values – the aims of science qnd their role in scientific

debate, University of California Press, 1984

___________, Science and Relativism, University of California Press, 1984

___________, For method, Or against Feyerabend, in An Intimate Relation, R.

Brown & J. Mittlestrass (eds), Dodrecht, Kluwer, 1989)

___________, A problem-solving approach to scientific progress, in Scientific

Revolutions, 4a. edição., Hacking, I (ed.), New York, Oxford University Press, 1992

___________, Beyond Positivism and Relativism- Theory, method and evidence,

Boulder-Colorado, USA, WestviewPress, 1996

MANSON, S. M.,Simplifying Complexity: A review of Complexity Theory,

Geoforum32 (3):405-414, ISSN 0016-7185, Elsevier, 2001.

MARCONDES D. e JAPIASSU, H., Dicionário Básico de Filosofia, 2a. ed. Revista,

Jorge Zahar, 1991

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CA
Page 83: Virginia Maria Fontes Gonçalves - Uma Ruptura Na Transformação Do Pensamento de Paul Feyerabend

Referências Bibliográficas

82

MILL, J. S., On Liberty, Middlesex, England, Penguin Books, 1980

MORAWITZ, T., Wittgenstein and Knowledge, London, UK, Harnester Press, 1980

NEWTON-SMITH, W. H., The Rationality of Science, London, Routledge & Kegan

Paul, 1981

NOZICK, R., The Nature of Rationality, New Jersey, New Jersey University Press,

1995

PLATO, Theatetus; Sophist, tradução inglesa por H.N. Fowler, London, W.

Heinmann, 1921

POPPER, K. R., The Logic of Scientific Discovery, London, Hutchinson, 1968

___________, Objective Knowledge, London, Oxford University Press, 1972a

____________, Conjectures and refutations – The growth of scientific knowledge, 4a.

edição revista, London and Henley, Routledge and Kegan Paul, 1972b

____________, The rationality of scientific revolutions, in Scientific Revolutions, 4a.

edição., Hacking, I (ed.), New York, Oxford University Press, 1992

PRESTON, J., Feyerabend – Philosophy, Science and Society, Polity Press,

Cambridge, UK, 1997

SANTOS, C. A G., Desenvolvimento do Conhecimento Científico -Progresso ou

mudança, Tese de Doutorado, PUC-Rio, Departamento de Filosofia, 1993

WORRAL, J., Scientific Revolutions and scientific rationality: the case of the

“elderly hold-out”, in The justifiction, discovery and evolution of scientific theories,

C. Wade Savage (ed.), Minnesota, University of Minesota Press, 1990

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210601/CA