VISUAIS MUDOU TUDO -...

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MÚSICA | LITERATURA | CINEMA | TEATRO | ARTES VISUAIS O ANO QUE MUDOU TUDO

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música | literatura | cinema | teatro | artes visuais

o ano que mudou tudo

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Zé Celsoe o Manifesto do Rei da Vela

Antônio Bivarfala sobre Cordélia Brasil

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José Agrippino de Paulaem texto inédito

Programação completashow/ filmes/ concertos de discos/ encontros

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1967, o ano extraordinário

Que ano! Em 1967, os Beatles lançavam o álbum Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, um marco da vanguarda pop. Ainda naquele verão,o chamado Verão do Amor, a banda fez parte da primeira transmissão via satélite com a can-ção “All You Need Is Love”, que de certa forma resumia o espírito da loucura toda que acontecia notadamente na Costa Oeste americana, em São Francisco. Parecia que o amor estava de fato lá, à espera, com flores no cabelo. John Phillips, dos Mamas and the Papas, escreveu em 20 minutos uma canção para fazer propaganda do Monterey Pop Festival daquele ano. “Se você está indo para São Francisco, esteja certo de usar flores no cabelo”, dizia a letra.

São famosas as imagens de outro Beatle, George Harrison, o mais che-gado nas viagens espirituais indianas, andando pelo Golden Gate Park de violão em punho, sorridente, usando óculos de sol em formato de coração. Cerca de 100 mil pessoas invadiram Berkeley, Haight-Ashbury e cercanias atrás do amor e da flor. Claro que virou um caos. Mas, enquanto durou, a fumaça das drogas embalou a moçada errante pelas ruas de São Francisco. O embalo do amor livre durou alguns dias.

Ainda naquele ano incrível, os Doors lançaram seu primeiro disco. O Gra-teful Dead também. Janis Joplin, Jefferson Airplane, Jimi Hendrix e The Who tocaram na Califórnia, no Monterey Pop. O musical Hair, com todos os cabe-ludos do pedaço ali parodiados, estreara em Nova York. Mick Jagger e Keith Richards, dos Rolling Stones, foram presos por posse de drogas. Os hippies apareciam estampados na capa da Time sob a manchete “Os Hippies: Filosofia de uma Subcultura”. A BBC se recusava a tocar “A Day in the Life”, do Sgt. Pepper’s, por suas referências a drogas. A Guerra do Vietnã estava no auge e os primeiros protestos de massa tomavam as ruas de Washington. Era uma bela (bela mesmo) bagunça, um grito de cores e flores.

Cadão Volpato

Música, literatura, política, comportamento: parece que tudo aconteceu naquele distante verão dos anos 60

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Enquanto isso, no BrasilHouve uma certa noite em 1967, transmiti-

da pela TV, que revelou para o país uma geração de garotos na faixa dos 20 e poucos anos. Gil-berto Gil, Caetano Veloso, Edu Lobo, Chico Bu-arque: todos estavam nesse festival da Record, demonstrando como seria o impacto da TV sobre a música. Um pouco mais cedo neste ano incrí-vel, Hélio Oiticica (1937-1980) criava a Tropicália, ambiente labiríntico composto de dois Penetrá-veis associados a plantas, areia, araras, poemas-objetos, capas de Parangolé e um aparelho de televisão, uma obra que resumia o espírito alta-mente inventivo do artista. Tropicália batizaria o movimento musical que explodiria logo a seguir, sob o comando dos garotos baianos.

No cinema brasileiro, 67 foi o ano em que estrou o filme Terra em Transe, de Glauber Ro-cha. E que estreou a peça O Rei da Vela, a até então esquecida peça de Oswald de Andrade le-vada ao palco de forma barulhenta por José Cel-so Martinez Correa. No teatro também nasceria Cordélia Brasil, que revelou um jovem drama-turgo antenado com o mundo: Antonio Bivar.

Foi o ano de Panamérica, o romance de pura invenção escrito por José Agrippino de Paula. Lá fora, a América Latina iniciava um boom literário com Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez. Aqui dentro, um pouco antes de morrer, Guimarães Rosa lançava a ex-periência radical de contos curtíssimos contida em Tutaméia. E ainda por cima foi o ano de Qua-rup, de Antonio Callado.

Por tudo isso o Centro Cultural São Paulo resolveu homenagear esse ano extraordinário de invenção e imaginação com debates, filmes, música, teatro e cinema. Em 1967 o mundo ain-da nutria uma grande esperança no que a ju-ventude seria capaz de fazer. Mil novecentos e sessenta e oito simboliza a explosão. Os anos seguintes, de certa forma, corroboram a frase de mau agouro que John Lennon cunhou sobre o fim dos Beatles: o sonho acabou. Com o com-plemento de Gilberto Gil: “E quem não dormiu no sleeping bag nem sequer sonhou”. Em 1967, porém, a juventude ainda sonhava alto.

Cadão Volpato é diretor do CCSP

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Estilhaços da explosão de um país

Célio Franceschet

Nelson Rodrigues assim falou sobre Terra em Transe: (Correio da Manhã, RJ, 16 de maio de 1967): “Durante as duas horas de projeção, não gostei de nada. Minto. Fiquei maravilhado com uma das cenas finais de Terra em Transe. Refiro-me ao momento que dão a palavra ao povo. Mandam o povo falar, e este faz uma pausa ensurdecedora. E, de repente, o filme esfrega na cara da platéia esta verdade mansa, translúcida, eterna: o povo é débil mental. Eu e o filme dizemos isso sem nenhuma crueldade. Foi sempre assim e será assim eternamente. O povo pare os gênios, e só. Depois de os parir volta a babar na gravata (…) Terra em Transe não morrera para mim (…) Nós estávamos cegos, surdos e mudos para o óbvio. Terra em Transe era o Brasil. Aqueles sujeitos retorcidos em danações hediondas somos nós. Queríamos ver uma mesa bem posta, com tudo nos seus lugares, pratos, talheres e uma impressão de Manchete. Pois Glauber nos deu um vômito triunfal. Os Sertões de Euclides da Cunha também foi o Brasil vomitado. E qualquer obra de arte para ter sentido no Brasil precisa ser essa golfada hedionda.”

Célio Franceschet é curador de cinema do CCSP

A morte na poesia ou a poesia da morte

TERRA EM TRANSE

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O comício populista

Paulo Martins (Jardel Filho) e Sara (Glauce Rocha)

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Porfírio Diaz (Paulo Autran), claramente inspirado em Carlos Lacerda, é o direitista obcecado em conquistar o poder a qualquer preço

“A política e a poesia são demais para um só homem”

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“Destruirei a todos” (Paulo Gracindo)

“A pátria é impecável, a família é sagrada, a minha esperança é um Sol que brilha mais” (Paulo Autran)

Foto still de Jardel Filho nas escadarias internas no Theatro Municipal do Rio de Janeiro

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Nós somos muito desenvolvidos para reconhecer a genialidade da obra de Oswald. Nosso ufanismo vai mais facilmente para a badalação do óbvio sem risco do que para a descoberta de algo que mostre a realidade de nossa cara verdadeira. E é verdade que a peça não foi levada: nem até agora, nem a sério. Mas hoje, quando a cultura internacional se volta para o sentido da arte como linguagem, como leitura da realidade através das próprias expressões de superestrutura que a sociedade esponta-neamente cria, sem mediação do intelectual (história em quadrinhos, por exemplo), a arte nacional pode subdesenvolvidamente também, se quiser, e pelo óbvio, redescobrir Oswald. Sua peça está sur-preendentemente dentro da estética mais moderna do teatro e da arte visual. A superteatralidade, a superação mesmo do racionalismo brechtiano através de uma arte teatral síntese de todas as artes e não-artes, circo, show, teatro de revista etc.

A direção será uma leitura minha do texto de Oswald e vou me utilizar de tudo que Oswald utili-zou, principalmente de sua liberdade de criação. Uma montagem tipo fidelidade ao autor em Oswald é um contra-senso. Fidelidade ao autor no caso é tentar reencontrar um clima de criação violenta em estado selvagem na criação dos atores, do cenário, do figurino, da música etc. Ele quis dizer muita coisa, mas como mergulhou de cabeça, tentando fazer uma síntese afetiva e conceitual do seu tempo, acabou dizendo muito mais do que queria dizer. A peça é fundamental para a timidez artesanal do teatro brasileiro de hoje, tão distante do arrojo estético do Cinema Novo. Eu posso cair no mesmo artesanato, já que há um certo clima no teatro brasileiro que se respira, na falta de coragem de dizer e mesmo possibilidade de dizer o que se quer e como se quer.

Viva Chacrinha Eu padeço talvez do mesmo mal do teatro do meu tempo, mas dirigindo Oswald eu confio me

contagiar um pouco, como a todo o elenco, com sua liberdade. Ele deflorou a barreira da criação no teatro e nos mostrou as possibilidades do teatro como forma, isto é, como arte. Como expressão audio-visual. E principalmente como mau gosto. Única forma de expressar o surrealismo brasileiro. Fora Nelson Rodrigues, Chacrinha talvez seja o seu único seguidor sem sabê-lo.

O primeiro ato se passa numa São Paulo, cidade-símbolo da grande urbe subdesenvolvida, co-ração do capitalismo caboclo onde uma massa enorme, estabelecida ou marginal, procura através da gravata ensebada se ligar ao mundo civilizado europeu. Uma São Paulo de dobrado quatrocentão, que somente o olho de Primo Carbonari consegue apanhar sem mistificar. O local da ação é um escritório de usura, que passa a ser a metáfora de todo um país hipotecado ao imperialismo.

A burguesia brasileira lá está retratada com sua caricatura – um escritório de usura onde o amor, os juros, a criação intelectual, as palmeiras, as quedas d’água, cardeais, o socialismo, tudo

O REI DA VELA: MANIFESTO OFICINAAntes do ensaio de O Rei da Vela, de Oswald de Andrade, em 4 de setembro de 1967, o diretor do Oficina leu esta declaração de princípios

José Celso Martinez Corrêa

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entra em hipoteca e dívida ao grande pa-trão ausente em toda ação e que faz no final do ato sua entrada gloriosa. É um mundo kafkiano, onde impera o sistema da casa. Todo ato tem uma forma pluri-dimensional, futurista, na base do movi-mento e da confusão da cidade grande. O estilo vai desde a demonstração bre-chtiana (cena do cliente) ao estilo circen-se (jaula), ao estilo de conferência, teatro de variedades, teatro no teatro.

Frente Única SexualO segundo ato é o ato da Frente

Única Sexual passado numa Guanabara. Utopia de farra brasileira, uma Guana-bara de telão pintado made in the States, verde e amarela. É o ato de come vive, como é o ócio do burguês brasileiro. O ócio utilizado para os conchavos. A bur-guesia rural paulista decadente, os cai-piras trágicos, personagens de Jorge de Andrade e Tenessee Williams vão para conchavar com a nova classe, com os reis da vela e tudo sob os auspícios do americano. A única forma de interpretar essa falsa ação, essa maneira de viver pop e irreal, é o teatro de revista, a Praça Tiradentes.

Assim como São Paulo é a capital de como opera a burguesia progressista, na comédia da seriedade da vida do bu-sinessman paulistano, na representação através dos figurinos engravatados e da arquitetura que, como diz Levy-Strauss, parece ter sido feita para se rodar um filme. O Rio, ao contrário, é a represen-tação, a farsa de revista de como vive o burguês, a representação de uma falsa alegria, de vitalidade que na época co-meçava na Urca e hoje se enfossa na bossa de Ipanema.

O terceiro ato é a tragicomédia da morte, da agonia perene da burguesia brasileira, das tragédias de todas as repúblicas latino-americanas com seus reis tragicômicos vítimas do pequeno mecanismo da engrenagem. Um cai, o outro o substitui. Forças ocultas, sui-cídios, renúncias, numa sucessão de abelardos que não modifica em nada as regras do jogo. O estilo shakespeareano interpreta em parte através de análises do polonês Jan Kott esse processo, mas

o mecanismo das engrenagens imperia-listas – um mecanismo não é o da história feudal, mas o mecanismo um pouco mais grotesco, mesmo porque se sabe hoje que ele é superável, passível de destruição. A ópera passou a ser forma de melhor co-municar este mundo. E a música do Verdi brasileiro, Carlos Gomes, O Escravo e o nosso pobre teatro de ópera, com a cor-tina econômica de franjas, douradas, pin-tadas, passam a ser a moldura desse ato.

Bola pra frenteAparentemente, há desunificação.

Mas tudo é ligado às várias opções de teatralizar, mistificar um mundo onde a história não passa do prolongamento da história das grandes potências. E onde não há ação real modificação na matéria do mundo, somente o mundo onírico onde só o faz-de-conta tem vez. A unificação de tudo formalmente se dará no espetáculo através das várias metáforas presentes no texto, nos acessórios, no cenário, nas músicas. Tudo procura transmitir essa re-alidade de muito barulho por nada, onde todos os caminhos tentados para superá-la até agora se mostram inviáveis. Tudo procura mostrar o imenso cadáver que tem sido a não-história do Brasil destes últimos anos, à qual nós todos acende-mos nossa vela para trazer, através de nossa atividade cotidiana, alento. 1933-1967: são 34 anos. Duas gerações pelo menos levaram suas velas. E o corpo con-tinua gangrenado.

Minha geração, tenho impressão, apanhará a bola que Oswald lançou com sua consciência cruel e antifestiva da rea-lidade nacional e dos difíceis caminhos de revolucioná-la. Ela não está ainda total-mente conformada em somente levar sua vela. São os dados que procuramos tornar legíveis em nosso espetáculo. E volto para meu trabalho. E volto para meu trabalho, para a redação do espetáculo manifes-to do Oficina. Espero passar a bola para frente com o mesmo impulso que a rece-bi. Força total. Chega de palavras: volto para o ensaio.

José Celso Martinez Corrêa é diretor do Teatro Oficina. O texto acima está em Arte em Revista 1 – Anos 60. São Paulo, Kairós, 1979

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Antonio Bivar

Minhas três primeiras peças foram escritas entre 1967 e 1970. À primeira delas dei o tí-tulo de O Começo é Sempre Difícil, Cordélia Brasil, Vamos Tentar Outra Vez, logo abrevia-do para Cordélia Brasil. Escrevi-a em 1967, no meu último ano de faculdade. Cursava Arte Dramática no Conservatório Nacional de Teatro da Universidade do Brasil – hoje UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Es-tudante de teatro e já tendo despontado como ator amador em Esperando Godot (a estreia) e Sonho de uma Noite de Verão em 1963 e 1964, respectivamente, e na faculdade orien-tado pelos professores, estudado e atuado em textos dos medievais a Machado de Assis, foram anos de treino e aprendizado na vasta gama da carpintaria teatral de todos os tem-pos – os gregos, Nelson Rodrigues, Tennes-see Williams, os angry young men ingleses, as experiências off Broadway americanas e o espírito da coisa no Brasil e o teatro do ab-surdo em geral.

Os anos finais da década de 1960. A guerra no Vietnã, maio de 1968 em Paris, a Contracultura (herdeira direta da Beat Gene-ration) explodindo dos Estados Unidos para o mundo, o homem na Lua. A arte “faça você mesmo” do Underground; o Flower Power, o glamour na propaganda dos novos experi-mentos, o acesso às ervas expansoras e dro-gas alucinógenas, pôsteres de Che Guevara em quartos de comunidades psicodélicas e nas paredes de repúblicas estudantis em si-multaneidade com o dropping out (as fugas em massa das universidades), a revolta juve-nil contra a caretice repressora do establish-ment, a queima dos sutiãs em Washington a

QUEM FOI CORDÉLIA BRASIL?

CORDÉLIA BRASILImagem do livro O Teatro de

Antonio Bivar, Coleção Aplauso, Editora Imprensa Oficial, 2010

Como autor jovem, entusiasta e sem nenhum medo, fui instintivamente ao cerne do espírito da época

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céu aberto, as revoluções sexuais e raciais – um novo espírito anárquico-dionisíaco alastrava-se pelo planeta. Os guardiões do Sistema, as fac-ções conservadoras, viam nessa movimentação mera degeneração da eterna irresponsabilidade juvenil. Outros, militantes antenados ou sim-plesmente hedonistas inebriados entregavam-se às novas atitudes como algo a ser vivido in-tensamente ou, no mínimo, algo a ser observado com interesse e, dependendo da circunstância, experimentado.

Este espírito, claro, chegou também ao Brasil, onde uma outra realidade tomava conta. Desde 1964 o País vivia sob o regime de ditadura militar provocando revoltas estudantis e a luta armada contra a repressão. O teatro do lado dos oprimidos era uma das trincheiras mais ativas, manifestando-se com desafio e garra tendo, como pior inimigo, a censura federal. Estamos no eixo Rio – São Paulo. Como autor jovem, en-tusiasta e sem nenhum medo, fui instintivamen-te ao cerne do espírito da época: a nova drama-turgia, por medida econômica, devia ter poucos personagens. No meu caso contaria ainda com certa fantasia no conflito realista – porque se teatro tinha que ter conflito realista eu era tam-bém inspirado pela fantasia. E na mistura dos elementos, o absurdo. Porque a realidade era, no mínimo, absurda.

Creio ter aprendido a escrever teatro com Samuel Beckett, tendo que decorar Esperando Godot em seis meses de ensaio em 1963, diri-gido por Maurice Perpignan. Na peça eu inter-pretava o Estragon. Se Beckett escrevia daquele jeito, escrever me pareceu fácil e eu também po-

dia. E escrevi Cordélia Brasil que em 1967 – logo na leitura dirigida por Fauzi Arap em um semi-nário carioca de dramaturgia – impressionou o público que lotava o Teatro Santa Rosa em Ipa-nema. Um ano depois, dirigida por Emilio di Bia-si Cordélia Brasil estreava no Teatro Mesbla, Rio e encerrava vitoriosa (e tempestuosa) carreira em São Paulo no histórico Teatro de Arena. Por ela recebi o Prêmio Governador do Estado como autor do ano, em São Paulo. Na pequena arena, circundada por uma espremida e abarrotada ar-quibancada, a atuação de Norma Bengell, com Emílio di Biasi e Paulo Bianco, era arrebatadora. E meu texto e minha trilha sonora tinham por clímax o suicídio de Cordélia ao som do grito pri-mal de Jim Morrison em When The Music’s Over. Terminada a peça, o público deixava o teatro em estado de choque e estado de graça. Foi um dos grandes acontecimentos teatrais da temporada.

Antonio Bivar é escritor. O texto acima prefacia o vo-

lume As Três Primeiras Peças, editada pela Imprensa

Oficial de São Paulo

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67 REVOLUÇÕES POR MINUTOAlexandre Matias

Como todos anni mirabiles, 1967 não foi fruto de uma explosão de criatividade re-pentina nem de uma intensidade espontânea – mas sim de transformações lentas e progressivas que atingiam diferentes aspectos de uma mesma transformação, provocando revelações históricas que marcaram cada um daqueles 365 dias. No en-tanto, diferentemente do 1492 da Espanha católica, do 1543 de Versalius e Corpér-nico, do 1776 de Adam Smith e da Declaração da Independência dos EUA, do 1922 de Ulysses e de A Terra Inútil ou o 1939 da era de ouro de Hollywood, o ano central da década de transformações movimentou forças culturais espalhadas por todo o planeta. E a música foi um carro-chefe.

Nenhuma obra traduz melhor esse espírito que o álbum central dos Beatles, Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, concebido durante as férias que John Len-non, Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr tiraram de si mesmos, logo após encerrarem suas atividades ao vivo. Enquanto todos apostavam que sem shows a banda inglesa terminaria, os quatro surgiram com um disco em que fun-diam arte moderna, circo, psicodelia, música indiana, experimentações sonoras e um conceito abstrato que uniria tudo - não era um disco dos Beatles, mas o show da banda fictícia que batiza o álbum. A colagem da capa multicolorida, que parelhava Lawrence da Arábia, Oscar Wilde, Aleister Crowley, Mae West e Bob Dylan, não era só uma pista do universo plural contido naquele disco (o primeiro álbum a trazer as letras impressas na história): também foi porta de entrada para outros clássicos lançados naquele ano.

1967 assiste a quatro estreias inacreditáveis: a do grupo inglês Pink Floyd, a do grupo californiano The Doors, a do grupo nova-iorquino Velvet Underground e a do grupo anglo-americano The Jimi Hendrix Experience. Havia sim um mundo caleidoscópico expandindo-se para vários lugares através da maturidade do rock. Em seu The Piper at the Gates of Dawn, o Pink Floyd, ainda com Syd Barrett à frente, viajava da Inglaterra vitoriana ao espaço sideral. Os Doors liderados por Jim Morrison casavam teatro, jazz, poesia e rhythm’n’blues em seu primeiro disco que levava apenas seu nome. O Velvet Underground de Lou Reed colidia sadomasoquis-mo, heroína e música erudita ao serem colocados ao lado da chanteuse alemã Nico pelo produtor Andy Warhol no hoje clássico “disco da banana”. O trio Experience,

O ano que experimentou de tudo

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montado por um certo Jimi Hendrix, fazia pontes entre soul, funk, rock e jazz em seu primeiro dis-co, Are You Experienced?. Nos EUA, a jovem Are-tha Franklin, de apenas 25 anos, em seu décimo primeiro (!) trabalho, originou o disco feminino mais forte daquela década, I Never Loved a Man the Way I Love You.

Versão brasileira

1967 é um importante ano de transição, embora esta não esteja encerrada em discos. A transformação da bossa nova após o golpe mili-tar de 1964 mudaria a cara da música brasileira, ao vê-la fragmentar-se definitivamente na noite de 21 de outubro daquele ano, quando, no final do III Festival de Música Popular Brasileira da emissora de TV Record, Chico Buarque o MPB-4 apresentam “Roda Viva”, Edu Lobo, Marília Me-dalha e o Quarteto Novo (formado por Theo de Barros, Heraldo do Monte, Airto Moreira e Her-meto Pascoal) defendiam “Ponteio”, enquanto Gilberto Gil (ao lado de Rogério Duprat e os Mu-tantes) e Caetano Veloso (à frente dos Beat Boys) rascunhavam o tropicalismo com seus respec-tivos hinos “Domingo no Parque” e “Alegria, Alegria”. Aquela noite também foi crucial para mostrar como o novo veículo (a TV) influenciaria a música brasileira pelas próximas décadas.

Dois gigantes distintos de nossa música, no entanto, tiveram anos memoráveis: Roberto Carlos despedia-se da Jovem Guarda (e quase abandona o eterno parceiro Erasmo Carlos) na trilha sonora do filme Roberto Carlos em Ritmo de Aventura, enquanto Tom Jobim alçava ousa-dos voos em dois discos que miravam o mercado estrangeiro, Wave e o disco gravado ao lado de ninguém menos que Frank Sinatra. Durante o Invenção 67, convidamos o grupo matogrossen-se Vanguart para reler o clássico disco dos Be-atles ao vivo. E os jornalistas Ricardo Alexandre, Roberta Martinelli e Maurício Stycer discutem o impacto da TV e daquele festival na música, logo após a exibição do documentário Uma Noite em 67, de Renato Terra e Ricardo Calil.

Invenção 67

Aproveitamos a constelação de discos clás-sicos daquele ano para ressuscitar os Concertos de Discos, que a primeira diretora da Discoteca do Centro Cultural São Paulo, Oneyda Alvarenga, ministrou entre 1938 e 1958. Como nos Concer-tos daquele período, o público é convidado a uma audição comentada de discos específicos.

Na primeira semana, os músicos Maurício Pereira e Tim Bernardes, pai (do duo Os Mulhe-res Negras) e filho (do trio O Terno), conversam sobre o disco Sgt. Pepper’s dos Beatles, e o jor-nalista e músico Alex Antunes mergulha no pri-meiro disco do Pink Floyd. Na segunda, o músico e pesquisador Cacá Machado fala a respeito dos dois discos que Tom Jobim lançou naquele ano, e o jornalista Jotabê Medeiros analisa o primeiro disco dos Doors. Depois é a vez da DJ e jornalista Mayra Madjian abordar o primeiro disco de Are-tha Franklin e de o músico e jornalista Rodrigo Carneiro (dos Mickey Junkies) discorrer sobre o clássico de Jimi Hendrix. Na última semana, o músico Gabriel Thomaz (do grupo Autoramas) comenta o disco de Roberto Carlos e o jornalista Guilherme Werneck apresenta o primeiro disco do Velvet Underground.

Criada pela musicóloga, etnóloga e folclo-rista Oneyda Alvarenga, a sessão Concertos de Discos existiu a partir de 1938, quando a pes-quisadora, primeira diretora da discoteca que hoje leva seu nome, escolhia um disco de mú-sica erudita e criava um roteiro sobre o repertó-rio para orientar a audição. Sempre guiada por seu tutor Mário de Andrade, Oneyda selecionava obras e peças de Chopin, Mozart, Beethoven e Bach. As primeiras audições ocorreram no Tea-tro Municipal, passando depois para o salão de conferências do Departamento de Cultura, que funcionava no 22º andar do Edifício Martinelli. Interrompidos em 1958, os Concertos de Discos foram voltam com foco em música popular e re-alizados gratuitamente dentro da própria Disco-teca Oneyda Alvarenga.

Alexandre Matias é curador de música do CCSP

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Capa da 1ª edição de Tutaméia, Terceiras Estórias de João

Guimarães Rosa, Editora José Olympio, 1967

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O ano de 1967 foi muito rico para a cultu-ra mundial, com diversas manifestações e produções artísticas de grande valor e importância até os dias atuais. Na litera-tura não foi diferente. Grandes obras de grandes autores foram publicadas nessa data, e a comemoração de seus cinquenta anos em 2017 faz com que nos debruce-mos em uma série de reflexões acerca da importância e atualidade das mesmas.

Entre tantos, falemos de apenas três obras, para começar. Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez, con-tribuiu muito para que o mundo olhasse com interesse a produção literária da América Latina – além de ter alçado o autor entre os nomes mais representa-tivo da literatura fantástica (ou realismo mágico). O livro A Mulher Desiludida, da francesa Simone de Beauvoir, considera-do por muitos a sua mais importante obra no campo literário, traz questionamentos profundos acerca da existência do sujei-to (nessa obra, personagens femininas) nas suas relações com o envelhecimento, solidão, os limites e impotências com as quais vamos lidando ao longo de nossa vida e que vão atravessando e contornan-do nossos desejos e fantasias. A Brinca-deira é o primeiro romance do escritor tcheco Milan Kundera e traz em sua tra-ma um sujeito com a vida profundamente impactada pelo regime comunista. A par-tir desse atravessamento, os questiona-mentos o conduzem a pensar sua vida sob uma ótica dividida entre “acertar contas” com o passado e seguir em frente. O co-munismo e as questões existenciais são temas recorrentes no conjunto da obra desse autor.

E no Brasil?

Destacamos três obras que entram para a lis-ta das publicações que estão completando 50 anos: Panamérica, de José Agrippino de Paula, livro sem-pre citado como um dos marcos do movimento tro-picalista. Ritual indígena para celebrar os mortos, Quarup é o nome que Antonio Callado escolheu para batizar sua original leitura de um Brasil com ques-tões efervescentes do ponto de vista político, social e cultural – vivenciados sob a pele de seu protagonista, o padre Nando. E, finalmente, Tutaméia, de Guima-rães Rosa, a última obra desse autor que morreria poucos meses após esta publicação. Composto de várias “estórias” curtas com potencial de romance, Tutaméia é um grande exercício de síntese de Rosa. Aliás, o fato de em 2017 completarmos 50 anos sem Rosa é outro capítulo à parte para a literatura brasi-leira nesse ano.

Como pensar o cenário deste ano tão profí-cuo? O que havia (se havia) em comum em lugares tão distintos como Brasil, México (país em que o co-lombiano Gabriel Garcia Marquez escrevia sua obra prima) e Europa? Há alguma relação possível a unir tais livros? Na programação do Invenção 67, Manuel da Costa Pinto, crítico, jornalista e mestre em lite-ratura pela USP, propõe uma chave de leitura pos-sível para esse ano singular no campo literário em uma palestra a ser realizada em 01 de junho. Dia 2 os escritores Andrea Del Fuego e Nelson de Olivei-ra trazem suas leituras pessoais para esse livro tão marcante que é Cem Anos de Solidão, sob o registro do realismo fantástico comum aos três. Por fim, no dia 3 a psicanalista Miriam Chnaidermann e o escri-tor André Sant’Anna debatem o legado da Panamé-rica de José Agrippino de Paula: o que ficou daquela explosão toda? Nos meses seguintes até o final do ano, outras atividades nos permitirão continuar ex-plorando os frutos desta valiosa safra.

Deise Getúlia de Melo é curadora de literatura do CCSP

1967/2017: 50 anos para pensar a literaturaUm tempo em que o extraordinário era publicado como se fosse algo comum

Deise Getúlia de Melo

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Etiquetas ajudam a organizar o caos na livraria e na cabeça do leitor. Mas é certo que toda etiqueta precisa ser recebida com cautela. Entre os autores do realismo mágico – ou, se preferir, realismo fantástico – há mais diferenças de intensidade e linguagem do que semelhanças. Os romances e contos de Gabriel García Márquez, por exemplo, são visivelmente menos complexos que os de Julio Cortázar, Carlos Fuentes e Mario Vargas Llosa.

No festejado Cem anos de solidão (1967) e nos contos de A Incrível e Tris-te História da Cândida Erêndira e Sua Avó Desalmada (1972) há bem menos fragmentação discursiva, metalinguagem e fluxo de consciência do que nos igualmente festejados O Jogo da Amarelinha (Cortázar), A Morte de Artemio Cruz (Fuentes) e Conversa na Catedral (Llosa). Dos ficcionistas do “boom da literatura latino-americana”, Gabo é, em essência, o grande sedutor, o ilusio-nista que cativa logo na adolescência. Essa característica deve ter pesado a seu favor, na votação para o Nobel de literatura. Coisa mais fácil deste planeta é apaixonar-se por sua prosa sem obstáculos, por seus heróis inesquecíveis: os lendários Buendías, o mago Melquíades, o anjo cativo e o afogado rebati-zado de Estevão, a bastarda e cândida Erêndira, o casal Florentino e Fermina, o desventurado Santiago Nasar etc. Enquanto as torções de linguagem do

50 VEZES 100Lírica e bem-humorada, prosa de Gabo tem alcance universal

Nelson de Oliveira

GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZEscritor colombiano, autor de

Cem Anos de Solidão (1967)

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melhor Cortázar – o fascinado pelo jazz e pelo surrealismo – soam antipáticas ao leitor menos experiente, a fantasia lírica e bem-humorada de Gabo, sem contorções ou sobreposições polifô-nicas, conquista logo no primeiro contato. Nes-se caso, simplicidade não significa ausência de sofisticação. Significa, antes, alcance universal. Tão universal que o conto “A luz é como a água”, da coletânea Doze Contos Peregrinos (1992), pôde ser destacado do conjunto e relançado, com belas ilustrações, para o público infantil.

Tanto o ficcionista quanto o jornalista eram exímios contadores de histórias. Gabo dizia que sua primeira e maior influência havia sido a avó materna, dona Tranquilina, que povoara sua infância de fantasmas e milagres. Narrativas como Um Senhor Muito Velho com umas Asas Enormes e O Afogado Mais Bonito do Mundo são recriações latino-americanas do espírito fabulo-so de As Mil e uma Noites árabes, outra grande referência em nosso imaginário. Comparar sua literatura com a dos mestres do realismo má-gico não rende análises interessantes. O verda-deiro irmão espiritual de Gabo é Ray Bradbury, outro grande contador de histórias, um dos maiores do século 20.

Nem mesmo as dezenas de personagens reunidas para narrar a fundação e extinção de Macondo – miniatura da América Latina – con-seguem complicar o alegórico Cem Anos de

Solidão. Os prodígios sobrenaturais que acom-panham as gerações da família Buendía fluem pacificamente. A convergência de realismo e fantasia é tão natural que instaura, sem conflito, outra realidade, em que mito e sonho ganham total concretude. Cem Anos de Solidão é um in-tenso romance regionalista, uma coleção de his-tórias sobre sobreviventes rústicos e vigorosos, envolvidos com esparsos espasmos de realismo mágico. Macondo revela-se um povoado perdido no tempo antigo de um pantanal esotérico, cer-cado pela guerra civil, pelo espírito dos mortos e, mais que tudo, abençoado e amaldiçoado pela força sobrenatural do cigano Melquíades, meu personagem predileto nessa trama feita de uma dúzia de tramas.

Nos anos 50 e 60, cansado de tanta razão e civilização, o Velho Mundo foi arrebatado por essa atmosfera encantatória. O encanto con-tinua até hoje. Macondo é tão importante no imaginário literário, que gerou sua antítese: o movimento McOndo, capitaneado pelo chileno Alberto Fuguet. Mas toda antítese não deixa de ser também uma forma de homenagem.

Nelson de Oliveira é crítico literário e ficcionista, au-

tor da rapsódia Distrito Federal (Patuá) e da coletâ-

nea de contos Pequena Coleção de Grandes Horrores

(Circuito), entre outros livros. Este artigo foi original-

mente publicado na Folha de S.Paulo em 18/4/2014

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Em sua errática existência, o paulistano José Agrippino de Paula publicou somente dois livros, mas que deixaram marcas profundas na cultura bra-sileira. Lugar Público, elogiada estreia em 1965 (na orelha, Carlos Heitor Cony o aproxima do nouveau roman francês). E PanAmérica, em 1967, o livro mais comentado pelos tropicalistas naquele ano (na apresentação da edição mais recente, Caetano Veloso sugere que o livro poderia ser “a Ilíada na voz de Max Cavalera”). A vida errante e problemas trazidos pela esqui-zofrenia de Agrippino atrapalharam o autor na consolidação de sua obra literária, que então se espalhou esparsamente em contos publicados em

A FAGULHA QUE ACENDEU O TROPICALISMOTexto inédito de José Agrippino de Paula, autor de PanAmérica, finalmente vem à luz Ronaldo Bressane

JOSÉ AGRIPPINO DE PAULAEscritor brasileiro, autor de

Panamérica (1967)

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jornais independentes e textos que circularam entre raros leitores. O mais longo desses textos, escrito no mítico ano de 1967, mas publicado em 1968, em tiragem baixíssima, e depois reeditado ao longo da década de 1970 em inglês, espanhol e italiano, em edições clandestinas, é a comé-dia de humor negro Nações Unidas. Trata-se de uma peça fragmentada em múltiplas cenas, protagonizadas - como já havia se visto em Pa-nAmérica - por artistas, políticos, celebridades e personagens de quadrinhos e cinema: Che Gue-vara, Charlon Heston, Getúlio Vargas, King Kong, Papa Paulo VI etc etc.

A forte estilização, a composição psicodé-lica, a estrutura fragmentada, a linguagem es-tereotipada e o registro alucinatório, divagando entre o político, o religioso e o pop, estão a meio caminho de PanAmérica e a lendária montagem teatral Rito do Amor Selvagem, que Agrippino performou ao lado da mulher e parceira de cria-ção, a bailarina Maria Esther Stockler. Segundo testemunhas, era o espetáculo obrigatório para quem se situasse na vanguarda. Dirigido por Stockler, livremente baseado na peça Nações Unidas, utilizava diferentes linguagens: show, dança, teatro, circo, happening, cinema, rituais arcaicos e primitivos.

Quando morreu, em 2007, Agrippino, mes-mo com a saúde mental debilitada, escrevia um colossal livro a que deu o nome de Os Desfavo-recidos de Madame Estereofônica - deixou cen-tenas de cadernos preenchidos com caligrafia indecifrável. Nome central da Tropicália e uma das personalidades mais influentes do Brasil nos anos 1960, Agrippino deixou uma obra ain-da indecifrada pelo cânone literário brasileiro. No Invenção 67, a psicanalista Miriam Chnai-dermann e o escritor André Sant’Anna analisam o possível e o impossível legado do Bruxo do Embu. Por toda a sua explosão criadora e liber-tária, o nome de Agrippino - mesmo que ainda não tenha o reconhecimento devido - certamente não será desfavorecido pela História. A seguir, trechos escolhidos da peça Nações Unidas, a ser publicada no segundo semestre de 2017 pela editora Papagaio, adiantados com exclusividade pelo Centro Cultural São Paulo.

Ronaldo Bressane é assessor de comunicação do CCSP

Nações Unidas(...)

INTERRUPÇÃO

A multidão se une em casais de sexos dife-rentes e homens abraçados a homens e mulhe-res abraçadas a mulheres. Cada um olha para seu par com romantismo, se beijam e afagam os cabelos. Instantes depois o amor vai se tor-nando mais sensual e agressivo. Fecham os olhos, gemem e se movimentam eroticamente. Fúria sexual: alguns casais rasgam e arrancam a roupa e bolinam furiosamente uns aos outros. A bacanal se generaliza e os casais se desfa-zem na mesma orgia. Homossexuais saltitam de odalisca entre a multidão confusa que geme, faz sexo, morde, lambe. Alguém levanta uma batuta e a bacanal se desfaz subitamente, e toca com instrumentos imaginários Cavalgada das Valquí-rias, de Wagner. A música se interrompe como se fosse um disco emperrado. A orquestra se movimenta como bonecos que tocam a mesma nota que se repete. O corpo de todos os persona-gens vai se relaxando e todos caem deitados e, depois, todos jazem caídos no chão. A nota única e contínua se interrompe. Os personagens des-pertam como de um sonho maravilhoso.

INTERRUPÇÃO

Pequenos e grandes falos de borracha ou algodão e pano são lançados nos personagens de cima e dos lados. Falos são feitos realisti-camente de pênis, glande, escroto, testículos e pelos. Os personagens da cena reagem, devol-vendo os falos lançados para cima ou para os la-dos ou guardando nos bolsos ou malas no final. Cai um falo de um metro e meio com estrondo e entra um pedreiro com um carrinho de mão, recolhe, ajudado pelos outros personagens, o enorme falo de pano e algodão, coloca o falo no carrinho e sai de cena, empurrando o carrinho. Charlton Heston, vestido de Moisés, que se en-contra com a Tábua dos Dez Mandamentos de pé sobre uma rocha e olhando em êxtase para o alto, recebe uma chuva de pequenos falos que caem de cima. Charlton Heston, furioso, lança a tábua e os pequenos falos para cima praguejan-do em hebraico e fechando os punhos de ódio.

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Apoteose geral: Viva o papa! Viva o capita-lismo! Viva o exército! Viva a Igreja!

A banda militar e o Exército da Salvação to-cam um hino nazista, marchando em passos de ganso, outros rezam fervorosamente em êxtase a Ave Maria de Gounoud, outros cantam hinos religiosos. As duas músicas e a reza se fundem e peças brancas e pretas cantam Ave Maria, com a entrada de showgirls com asas brancas de anjo, auréola de lata e lingerie azul transparente até os pés. As showgirls-anjos estão nuas sob a lin-gerie, e os seios balançam quando elas cantam fervorosamente em êxtase a Ave Maria. Alguns caem uns sobre os outros, escorregando no ta-buleiro inclinado que brilha com toda potência de luz, outros cantam ajoelhados, olhando em êxtase para o alto, outros choram de alegria.

INTERRUPÇÃO

CENÁRIO: Uma mesa, um galho de árvore, uma cadeira, uma fileira de garrafas de plas-ma sanguíneo, presas a uma linha e ao topo de um vulcão de um metro, de onde emerge fogo. O presidente Getúlio Vargas vestido de Drácula está pendurado de cabeça para baixo, como um morcego. Próximos a ele, três gorilas sentados e camponeses magros deitados no chão com as garrafas de plasma amarradas em seus braços.

Música: La Cumparsita, tocada por uma or-questra com arranjo típico de tango.

Getúlio Vargas, de patins, salta do galho onde ele estava pendurado, encurvado como um morcego, e abre as enormes asas pretas presas às suas costas e maiores que seus braços. Em sua sobrecasaca tem várias medalhas e uma faixa de seda verde-amarelo, sobre a qual está escrito: “Presidente do Brasil. Getúlio Vargas”. Atrás, na enorme capa preta de formato de asas de morcego, em letras barrocas douradas: “Ben-feitor. Ditador. Drácula.” Quando o tango come-ça, Getúlio Vargas dança, deslizando nos patins e movimentando as enormes asas de morcego como se estivesse voando. Getúlio Vargas para em frente aos camponeses. La Cumparsita con-tinua como música de fundo.

VARGAS (Sugando os tubos de plasma.) – Se eu tiver que ser candidato único à Presidência da República, eu solenemente prometo que, fiel à vocação do Brasil, empregarei todo meu esforço em favor da dignidade internacional, do serviço da Paz, da Justiça e da Boa Vizinhança, e finalmen-te do aumento do prestígio das Forças Armadas...

INTERRUPÇÃO

ESPECTADOR 1 (Levanta-se e grita.) – Chega! Chega! (As luzes no palco e na plateia se extin-guem.)

UMA VOZ (Do fundo do palco.) – Delicadamente, mantenham-se em seus assentos. Houve um acidente na cabine de iluminação. Mantenham-se calmos... Não há motivos para alarme.

ESPECTADOR 1 – Não posso admitir que esta peça continue... Não posso...

A luz no fundo do auditório se acende, reve-lando o Espectador 1.

ESPECTADOR 2 – Calma, você está se alterando.

ESPECTADOR 1 – Eu não posso admitir que es-tes indivíduos falem desse jeito...

OUTROS – Fora! Fora com ele! Fora! Fora!

EXPECTADOR 1 – Eu me recuso a sair. Tirem as mãos de mim.

Três policiais aparecem no fundo do auditório e caminham em direção ao Espectador 1.

ESPECTADOR 3 – Ele é um general.

Os policiais, perplexos, preocupados, saem e chamam mais policiais. Eles falam suave e delicadamente com o Espectador 1, tentando acalmá-lo.

ESPECTADOR 4 – Os policiais estão aqui para bater papo com os agitadores ou para fazê-los pagar pelo que devem? Nós pagamos para ver esta peça. (Irritado.) Botem ele para fora, ou boto eu mesmo.

OUTROS – Fora! Fora!

ESPECTADOR 1 – Vocês estão errados. Nós não deveríamos permitir este tipo de insulto...

Estrondos ensurdecedores de machado, mãos ensanguentadas são lançadas à plateia. Policiais movem-se em direção ao Espectador 1 e o tumulto se espalha até finalmente consegui-rem remover o Espectador 1.

INTERRUPÇÃO

Che Guevara comunga nas mãos do papa, e confraternização geral entre brancas e pretas que choram e riem de alegria se abraçando.

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Os três gorilas e os camponeses saltam como sapos; e gritam:

GORILAS E CAMPONESES – Uuh! Uuh! Uuh!

TODOS – Benfeitor. Ditador. Drácula.

VARGAS (Pegando uma arma da sobrecasaca, levan-tando os braços e fazendo um discurso.) – Eu lutei contra a usurpação do povo. Eu vos dei minha vida. Agora, ofereço minha morte. Nada temo. Serena-mente, dou meu primeiro passo no caminho da eter-nidade. (Senta na cadeira.) Deixo a vida para entrar na História. (Atira no próprio coração e morre, com sangue correndo.)

Os três gorilas e os camponeses saltam como sapos; e gritam:

GORILAS E CAMPONESES – Uuh! Uuh! Uuh!

TODOS (Gritando solenemente.) – Benfeitor. Ditador. Drácula. (Lamentando.) Oooh!...

Os três gorilas e os camponeses removem so-lenemente do corpo sentado os dentes de Drácula, as enormes asas de morcego e os patins. O corpo é levantado, e quando está de pé eles o colocam numa caixa similar ao pedestal de uma estátua, sobre a qual está escrito: “Presidente do Brasil. Getúlio Var-gas. Morto em defesa do povo.” Um dos gorilas pinta o busto de verde escuro; o outro gorila pendura no pescoço da estátua uma coroa de flores e os cam-poneses acendem velas e rezam, de joelhos. Entra François Duvalier de óculos escuros e sobrecasaca, acompanhado por dois negros, batucando os tam-bores. Numa faixa que cruza seu peito, está escrito “Papa Doc”. Ao toque de vodu nos tambores, os go-rilas e camponeses vestem Papa Doc lenta e solene-mente como em uma cerimônia de coroação religio-sa. Primeiro, colocam os dentes de Drácula, depois os patins e finalmente as enormes asas de morcego.Entra um halterofilista, nu e dourado. Ele empurra Papa Doc, que está imóvel, como um peso pesado. Os três gorilas vestem uniformes, e cobrem-se com um grande número de medalhas: conchas da Shell, tampinhas de Coca-Cola, sinais da Esso, etc. Papa Doc, rígido e com as asas abertas, é empurrado len-tamente ao redor do palco pelo halterofilista. Depois, ele sobe na árvore e pendura-se como morcego Um jovem com camisa rasgada entra, empurrado e chu-tado por um gorila vestindo um uniforme e refletindo vidros. O gorila carrega um dínamo com manivela e fio e uma arma. O jovem tem um bastão de gesso sobre a boca e os olhos (...)

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programação31/5 quartaTEATRO17h Encontro O Rei da VelaMediados pela crítica teatral Beth Néspoli, José Celso Martinez Correa e Renato Bor-ghi falam de O Rei da Vela. Peça escrita por Oswald de Andrade, permaneceu iné-dita até ser montada por Zé Celso em 1967, tendo Borghi como o protagonista. Um dos pilares do tropicalismo, a peça simboliza a contracultura dos anos 60 – hoje parte da cultura brasileira. Sala Paulo Emílio Salles Gomes

1º/6 quintaLITERATURA19h30 Ponto de encontro: Invenção 67Com peculiar verve e larga erudição, o crí-tico e ensaísta paulista Manuel da Costa Pinto, autor de Literatura Brasileira Hoje, analisa os principais lançamentos literários do mundo naquele ano.Espaço Mário Chamie (Praça das Bibliotecas)

MÚSICA21h Liverpool em Cuiabá Em apresentação inédita, a Vanguart, ban-da matogrossense famosa nacionalmente pelo folk rock energético e lírico, revisita o álbum Sergeant Pepper’s Lonely Hearts Club Band, dos Beatles.Sala Adoniran Barbosa

2/6 sextaLITERATURA19h30 Cem anos de solidão, 50 anos depoisDestacados por sua escrita, que tangencia o fantástico, os autores paulistas Andrea del Fuego e Nelson de Oliveira, mediados pela curadora de literatura, Deise Getúlio, tratam da imortal obra de Gabriel García Márquez.Espaço Mário Chamie (Praça das Bibliotecas)

3/6 sábado TV/MÚSICA/CINEMA15h Aquela noite em 67Exibição do filme Uma Noite em 67, dirigido por Renato Guerra e Ricardo Calil, sobre o famoso festival de música da TV Record que catapultou uma talentosa geração da música brasileira, seguido de debate entre os jornalistas Ricardo Alexandre (música) e Maurício Stycer (TV) com mediação de Roberta Martinelli.Sala Paulo Emílio Salles Gomes e Espaço Mário Chamie (Praça das Bibliotecas)

LITERATURA19h30 PanAmérica vezes 50 A psicanalista e cineasta Miriam Chnaidermann e o escritor mineiro André Sant’Anna, especialis-tas na obra de José Agrippino de Paula, media-dos por Ronaldo Bressane, abordam o cinquen-tenário de PanAmérica – romance central para a criação da Tropicália.Espaço Mário Chamie (Praça das Bibliotecas)

TEATRO20h30 Cordélia Brasil Para sustentar seu marido Leônidas, Cordélia, além de trabalhar como auxiliar de escritório, passa a se prostituir. Ela traz para casa um jo-vem cliente de 16 anos, Rico, que acaba mo-rando com o casal – o triângulo tem desfecho trágico. Direção: Francisco Medeiros. Elenco: Paula Cohen, Marat Descartes e Chico Carvalho. Sonoplastia: Aline Meyer. Antonio Bivar comenta a peça após a apresentação. Sala Leon Hirzman

4/6 domingo CINEMA16h Terra em Transe, 50 anos depois Exibição do clássico do cinema novo Terra em transe, de Glauber Rocha (em cópia nova), se-guido de debate entre Ismail Xavier e Rubens Machado, os professores de cinema da ECA/USP que formam a linha de frente do ensaio cinema-tográfico brasileiro.Sala Paulo Emílio Salles Gomes

Todos os eventos são gratuitos23

De 26/5 a 5/6 mostra revista comandoExposição das obras em serigrafia realizadas na Folhetaria do CCSP, em ateliê público, pelos artistas Frederico Heer e Guilherme Boso (Revista Comando). Foyer

6/6 terçaPai e filho, Maurício Pereira (Os Mulheres Ne-gras) e Tim Bernardes (O Trio) falam sobre o clássico dos Beatles: Sgt. Pepper’s Lonely He-arts Club Band.

8/6 quintaO crítico e músico Alex Antunes (Akira S, Shi-va Las Vegas) trata do disco de estreia do Pink Floyd, The Piper at the Gates of Dawn.

13/6 terçaO músico e historiador Cacá Machado analisa Tom Jobim – Wave, parceria entre Antonio Car-los Jobim & Francis Albert Sinatra que marcou a inserção da bossa nova no contexto internacional.

15/6 quintaO jornalista Jotabê Medeiros mergulha no ál-bum de estreia da banda The Doors, que juntou de modo dramático jazz, blues, lisergia e poesia.

20/6 terçaEspecialista em hip hop, soul e funk, a jornalista Mayra Maldjian analisa I Never Loved a Man the Way I Love You, turning point na carreira de Are-tha Franklin – e do rythmn’n’blues.

22/6 quintaMúsico e jornalista, Rodrigo Carneiro (Mickey Junkies) surfa em Are You Experienced?, disco em que estreou a banda Experience, de certo guitarrista canhoto chamado Jimi Hendrix.

27/6 terçaGuitarrista e vocalista da banda Autoramas, Ga-briel Thomaz entra Em Ritmo de Aventura para falar do clássico de Roberto Carlos.

29/6 quintaO jornalista e editor da revista Bravo!, Guilher-me Werneck, trata de The Velvet Underground & Nico, o disco que lançou a banda de Lou Reed – e também as bases do punk.

Todos os eventos são gratuitos

De 6 a 29/6 concertos de discosO Invenção 67 ressuscita os célebres Concertos de Discos, que a primeira diretora da Discoteca do Centro Cultural São Paulo, Oneyda Alvarenga, ministrou entre 1938 e 1958. Os Concertos de Discos voltam focados em música popular e realizados na própria Discoteca Oneyda Alvarenga, convidando o público a uma audição comentada. Programe-se: as audições são limitadas a 30 pessoas. Todos os concertos começam pontualmente às 18h30.

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expedientePrefeitura de São Paulo João DoriaSecretaria de Cultura André Sturm Centro Cultural São Paulo | Direção Geral e Coordenação de Curadoria Cadão Volpato Supervisão de Ação Cultural Adriane Bertini e equipe Supervisão de Acervo Eduardo Navarro Niero Filho e equipe Supervisão de Bibliotecas Juliana Lazarim e equipe Supervisão de Informação Juliene Codognotto e equipe Supervisão de Produção Luciana Mantovani e equipe Coordenação Administrativa Everton Alves de Souza e equipe Coordenação de Projetos Kelly Santiago e Walter Tadeu Hardt de Siqueira

Invenção 67

Programação | Coordenação Cadão Volpato Ação Cultural Adriane Bertini Cinema Célio Fanceschet Literatura Deise Getúlia de Melo Música Alexandre Matias Teatro adulto Kil Abreu

Comunicação | Coordenação Juliene Codognotto Projeto gráfico Yeda Gonçalves e Yzadora Takano Catálogo | Edição Ronaldo Bressane Capa, encarte e ilustrações Revista Comando (Frederico Heer e Guilherme Boso)

Rua Vergueiro 1000 CEP 01504 000 Paraíso

São Paulo SP Metrô Vergueiro

11 3397 4002 [email protected]

www.centrocultural.sp.gov.br

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o ano que mudou tudo