Vivência de Rua e Alcoolização a Produção

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

    CENTRO DE HUMANIDADESCURSO DE PSICOLOGIA

    VIVÊNCIA DE RUA E ALCOOLIZAÇÃO: A PRODUÇÃODE SENTIDO EM (EX) MORADORES DE RUA

    Autor: Paulo André Sousa Teixeira

    BANCA EXAMINADORA

     ___________________________________

    Profa. Dra. Veriana de Fátima Rodrigues Colaço (Orientadora)

     __________________________________

    Profa. Dra. Ângela de Alencar Araripe PinheiroMembro da Banca Examinadora

     __________________________________Prof. Dr. César Wagner de Lima GóisMembro da Banca Examinadora

     __________________________________

    Esp. Silvana Garcia de Andrade LimaMembro da Banca Examinadora

    ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA:Rua Tiradentes, 641, B:H Ap:201Parque Araxá – 60430-560Fortaleza – CE

    TELEFONES:(85) 32231804 – (85) 88845979

    EMAIL: [email protected]

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    VIVÊNCIA DE RUA E ALCOOLIZAÇÃO: A PRODUÇÃODE SENTIDO EM (EX) MORADORES DE RUA

    RESUMO

    A temática da drogadição já é tida como antiga, tanto em termos de fenômeno socialcomo em relação ao estudo científico desse comportamento. Entretanto, estamos longe

    de responder, em definitivo, as perguntas que assolam a sociedade moderna em relaçãoao uso e, principalmente, ao abuso de drogas: “Por que o sujeito se vale dessassubstâncias?” (sejam elas lícitas ou ilícitas); “O que ele busca experimentar, fugir,intensificar, conhecer... ao usá-las?”; “Quais os múltiplos sentidos subjacentes – desdeos compartilhados com uma determinada cultura aos produzidos de forma individual –ao comportamento de uso/abuso de certas substâncias entorpecentes?”. Paripasso aofenômeno do uso/ abuso de drogas, temos uma realidade – que semelhante à drogadiçãotambém não é nova – que é a dos moradores de rua. Do encontro da rua com as drogas,o que podemos esperar? Nesse sentido, nossa pesquisa teve por objetivo investigar quaisos sentidos que os ex-moradores de rua, da Fraternidade Toca de Assis, construíram emrelação ao abuso de álcool no transcorrer de suas histórias de vida. A referida entidade é

    uma congregação religiosa, vinculada à Igreja Católica. A amostra desta pesquisa écomposta por três sujeitos abrigados na Fraternidade Toca de Assis e que residem hámais de um ano na casa. Utilizamos a entrevista semi-estruturada como método decoleta de dados. A partir dos dados colhidos através das entrevistas, os submetemos (osdados) à análise semiótica, segundo a qual o processo de interpretação é concebido comum processo de produção de sentidos. O sentido é o meio e o fim de nossa tarefa de

     pesquisa. Tomamos por base teórica a Produção de Sentido no Cotidiano por meio dasPráticas Discursivas e concepção de Produção de Subjetividade. A partir de nossaincursão empírica na Fraternidade Toca de Assis, pudemos perceber que uma gama desentidos foram construídos em relação à bebida alcoólica. Aspectos como:masculinidade, família, trabalho e precarização do mundo laboral e acontecimentos

    veiculados pela mídia estão intimamente ligados à produção da realidade dos moradoresde rua e da sua vivência com o álcool. A Psicologia tem a contribuir tanto como ciência

     – na compreensão das variáveis envolvidas, na problematização da realidade e nadesnaturalização dos “óbvios” – como na proposição de uma práxis contextualizada, nacapacitação de pessoal e, principalmente, no planejamento de ações interdisciplinares.

    Palavras-chave: Moradores de Rua, Álcool, Produção de Sentido.

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ CENTRO DE HUMANIDADES DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA

    PARECER SOBRE MONOGRAFIA

    Como orientadora da monografia de Curso de Graduação intitulada VIVÊNCIADE RUA E ALCOOLIZAÇÃO: A PRODUÇÃO DE SENTIDO EM (EX)

    MORADORES DE RUA  do aluno Paulo André Sousa Teixeira, do Curso de

    Psicologia da UFC, recomendo a sua inscrição para concorrer ao Prêmio Silvia Lane

    que será concedido pela Associação Brasileira de Ensino de Psicologia – ABEP,

    considerando a relevância do tema no campo da Psicologia Social e a qualidade do

    estudo, que obteve a nota 9.3 pela banca examinadora, por ocasião da defesa pública da

    monografia.

    Fortaleza, 30 de março de 2007

    Veriana de Fátima Rodrigues Colaço

    Professora Doutora do Departamento de Psicologia da UFC

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    INTRODUÇÃO

    A temática da drogadição já é tida como antiga, tanto em termos de fenômeno

    social como em relação ao estudo científico desse comportamento. Entretanto, estamos

    longe de responder, em definitivo, as perguntas que assolam a sociedade moderna emrelação ao uso e, principalmente, o abuso de drogas1: “Por que o sujeito se vale dessas

    substâncias?” (sejam elas lícitas ou ilícitas); “O que ele busca experimentar, fugir,

    intensificar, conhecer... ao usá-las?”; “Quais os múltiplos sentidos subjacentes – desde

    os compartilhados com uma determinada cultura aos produzidos de forma individual –

    ao comportamento de uso/abuso de certas substâncias entorpecentes?”. Certamente

    essas e outras questões estão longe do esgotamento. É nesse sentido que visamos,

    através desta pesquisa, contribuir com avanço na discussão e problematização doscontextos diferenciados que indivíduos se valem no uso de drogas diversas.

    Paripasso ao fenômeno do uso/abuso de drogas, temos uma realidade – que,

    semelhante à drogadição, também não é nova – que é a dos moradores de rua. Prenhe de

    variáveis e multicasual, homens, mulheres, crianças, jovens, adultos habitam as ruas e

    fazem delas suas moradas. Mais comum – porém não exclusivo - nas grandes capitais, a

    situação do morador de rua se confronta, diariamente, com o direito à moradia, à

    dignidade, ao respeito e a tantos outros. Essas pessoas, por não gozarem de lugar fixo

     para sua habitação, acabam também prescindindo de outros direitos sociais como

    educação, saúde e lazer - para citar apenas os mais gritantes. A invisibilidade é a marca

    desta população. Na trama social, são sempre pano de fundo de uma paisagem, como se

    naturalmente fizessem parte do contexto. Mas não o são. “Vale ressaltar que o estudo

    referente à temática moderadores de rua é bastante escasso, seja na construção de

    trabalho acadêmico, pesquisa ou tese, seja na produção bibliográfica  [...]”,

    (ALCÂNTARA, 2004, p. 94) ou ainda:

    Apesar de se tratar de uma população que crescediariamente na cidade de São Paulo, poucos trabalhosde Psicologia (até 2002) foram produzidos a respeito dotema (moradores de rua). Em outras áreas doconhecimento a situação não é muito diferente(SERRANO, 2004, p.15).

    1 Definiremos, na seqüência, o que entendemos por uso e abuso de entorpecentes.

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      Do encontro da rua com as drogas, o que podemos esperar? Seria também essa

    uma aproximação lógica e fatalista, como as aproximações que alguns fazem em relação

    à pobreza e à marginalidade? A rua e a droga permitem o deslocamento espacial – tanto

    no sentido físico como “a viagem” do efeito de certos entorpecentes – fazendo com que

    o sujeito transite livremente, mesmo em locais que lhe são, a todo momento,

    interditados por sua condição socioeconômica e, principalmente, pela sua

    impossibilidade de consumo. E quem será que vem primeiro? Para estar na rua, a droga

    se faz necessária ou será a droga que leva o sujeito ao mundo incerto das calçadas e das

     pontes?

    Estudos recentes (CAMPOS; FERREIRA; MATTOS, 2004, p.1-2) apontam que

    há relação, sim, entre os moradores de rua e o alcoolismo. Segundo os autores,

    [...] o alcoolismo apresenta-se ora como um dosmotivos primordiais da rualização, ora como umaconseqüência do ingresso no mundo da rua. Outrasvezes, entretanto, surge, simultaneamente, comocondição e efeito da situação de rua.

     Nesse sentido, é esperado que o álcool gere uma maior suscetibilidade a

    enfermidades, dificuldades no engajamento laboral e outros problemas inerentes. Por

    outro lado, o álcool também assume, por vezes, o caráter de “anestesia”, principalmenteem relação ao sofrimento cotidiano. Prescindir da alcoolização é, por vezes, entrar em

    contato com uma realidade cruel, quase insuportável. Diante dessa dinâmica – como

    causa, conseqüência ou os dois eventos simultâneos –, é muito provável que o aspecto

    da dependência química enraíze ainda mais o sujeito na situação de rua,

    impossibilitando, muitas vezes, sua saída. Campos e colaboradores ainda acrescentam:

    [...] as propostas que respondem às necessidades de

    trabalho e moradia são imprescindíveis para aconsecução da saída das ruas, o que a maioria das políticas públicas oferece. Porém, acreditamos quenecessariamente também haja a inclusão de medidasque atentem para a questão do alcoolismo, para que os programas voltados a essa população possam serefetivos (2004, p.2).

    Pautado em uma realidade concreta de vivência com sujeitos que passaram pela

    experiência de rualização, nosso interesse surgiu pela inserção, como estagiário, na

    Fraternidade Toca de Assis. A referida instituição é uma comunidade religiosa,vinculada à Igreja Católica, que trabalha com o acolhimento e cuidado de moradores de

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    rua. Os “irmãos de rua”, como os religiosos os chamam, são todos adultos e homens;

    escolha esta que, segundo eles, se deve ao maior contingente encontrado nas ruas. O

    nosso contato com a instituição se deu por intermédio de um estágio em Psicologia

    Clínica, vinculado à Formação em Psicologia e Psicoterapia Fenomenológico-

    Existencial com o Instituto Reluz, ONG criada para prestar atendimentos diversos à

    Fraternidade.

    Uma vez imerso nessa realidade, percebemos – religiosos, estagiários,

     profissionais e seguindo a fala dos próprios abrigados – que a problemática das drogas,

    com ênfase acentuada no álcool, permeava grande parte dos conflitos e falas que

    circulavam na instituição. Fugindo de uma perspectiva higienista ou policialesca, na

    qual iríamos em busca de uma causa para explicar, ou mesmo de ações para extirpar

    esse tipo de comportamento, visamos uma abordagem que buscasse a compreensão das

    multiplicidades de sentidos que estão presentes no fenômeno do abuso de álcool,

    especificamente. A escolha do álcool nessa pesquisa se deu pela abrangência, facilidade

    de acesso e recorrência na instituição. No entanto, não queremos dizer, com isso, que o

    abuso de álcool aparece isoladamente. Segundo nossas observações e incursões gerais,

    muito pelo contrário. Ao mesmo tempo em que não advogamos a favor da tese

    determinista de que álcool é “necessariamente” a “porta de entrada” para drogas mais

    “pesadas”. Pensamentos dessa natureza só corroboram com os simplismos e

    estereótipos decorrentes deste.

    Esse tipo de enfoque, no nosso entender, é qualitativamente mais apropriado por

    alguns motivos: parte da realidade dos próprios sujeitos, conhecedores, por excelência,

    de suas próprias motivações e de seus desejos; entende que a ação do abuso de álcool,

    mesmo com sua conotação social tida como autodestrutiva, possui um significado e não

     pode ser simplesmente extirpado; não descarta a possibilidade, a partir dos

    conhecimentos produzidos e acumulados no transcorrer da evolução científica, de sefazer uma intervenção curativa e, sobretudo, preventiva.

    Para tanto, valeremo-nos das contribuições das diversas áreas do conhecimento –

    Psicologia, Sociologia, Medicina, entre outras – para aprofundar a compreensão das

    reações fisiológicas, da evolução histórico-social, das repercussões subjetivas do

    referido fenômeno. Optamos por trabalhar com a situação de abuso de álcool como um

    objeto de estudo não problemático em si, num sentido pejorativo (apesar de não

    negarmos que, em certos momentos, se torna realmente um problema, principalmente

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    no âmbito da saúde pública2). Entretanto, Bucher (apud GOMES; RIGOTTO, 2002, p.

    96) ainda aponta que “há consenso sobre o aumento acelerado do consumo em

    decorrência do narcotráfico e da demanda por produtos psicotrópicos”. É quando o

    álcool sai da esfera exclusiva do indivíduo e passa a interferir na família, na

    comunidade, no trabalho – e, por sua vez, no sistema econômico – que ele se torna um

     problema que traz consigo gastos vultosos para o Estado e, por conseqüência tributária,

     para a sociedade. Como ainda afirma Silva (2000, p. 30) “ Não podemos ignorar que há

    um custo gradativo no tratamento de doenças derivadas do uso de drogas: custo

    hospitalar, desemprego, produtividade, prostituição e criminalidade”. Visto a

    complexidade do fenômeno, nossa reflexão sobre ele também não pode reduzir-se a

    uma explicação reducionista, seja de ordem biológica, social ou psicológica.

    A esfera da saúde pública – visto a amplitude de disciplinas que a compõem –

    nos oferece dados de grande relevância no sentido de compreender as repercussões da

    alcoolização no Brasil nos últimos anos. Quando falamos de doenças da

    contemporaneidade, os transtornos relacionados ao “abuso de substâncias aparecem

    lado a lado com os transtornos alimentares e as compulsões por jogo, sexo e compras”

    (MOREIRA, 2006, p. 3). Só no ano de 1999 foram realizadas 37.754 internações

    hospitalares, número correspondente a 85% dos problemas decorrentes do uso de drogas

     psicotrópicas em geral (CEBRID, 2000, apud CAMPOS et al, 2004, p.2). Ademais,

    ainda para o referido ano, o coordenador do GREA (Grupo Interdisciplinar de Estudos

    de Álcool e Drogas) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, em São Paulo,

    Prof. Dr. Arthur Guerra de Andrade (apud CAMPOS et al, 2004, p. 2), afirmou, no

    encontro “Álcool e suas Repercussões Médico-Sociais”,

    [...] que o Brasil gasta 7,3% do Produto Interno Bruto(PIB), por ano, para tratar de problemas relacionados aoálcool - desde o tratamento do dependente, até a perdada produtividade por causa da bebida - como a indústriado álcool movimenta somente 3,5% do PIB.

    2 “A prevalência do álcool é de 11,2% na população brasileira, e a maior taxa de dependentes está na população cuja faixa etária é a de 12 a 24 anos, sendo 17,1% da população masculina e 5,7% da população feminina” (CEBRID apud CAMPOS, 2004, p. 1380). Além do que “sabe-se que o início douso de drogas está ocorrendo com pessoas cada vez mais jovens e com substância de teor tóxico maiselevado” (GOMES; RIGOTTO, 2002, p. 96).

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    Diante de dados estarrecedores como estes, é preocupante observarmos o trato

    sócio-culturalmente legitimado, já que observamos que a problemática não está na pauta

    de discussões de governos, políticas públicas, nem das articulações da sociedade civil.

    Podemos, mesmo que superficialmente, pensar nas repercussões negativas que esta

     problemática traz nos acidentes de trânsito, nos acidentes de trabalhos, na

    desestruturação familiar, nos gastos com medicamentos e, em último caso, nos

    volumosos investimentos em clínicas de reabilitação. A publicidade também deve entrar

    como variável de análise, no sentindo de se constituir uma grande incentivadora do

    aumento do consumo nos últimos anos3. Refletindo com os dados anteriormente

    apresentados pelo coordenador do GREA, concluímos que, em termos sociais, o abuso

    de álcool traz consequências indesejáveis ao bem-estar da população.

    Remetendo-nos novamente à problemática da alcoolização ligada ao mundo das

    ruas, é de fácil constatação a representação socialmente compartilhada da pessoa

    alcoolizada em situação de rua ser apenas “um bêbado qualquer, um desinteressado, um

    caído, um coitado...”. Tais imagens tendem a desresponsabilizar as autoridades

    competentes, bem como a sociedade, diante da sua participação na produção (ou

    omissão em combater) deste fenômeno. A culpabilização exclusiva do “bêbado”

    apresenta-se como deslocada da realidade sócio-cultural, como se o comportamento não

    fosse aprendido, permitido, ensinado e, em grande parte, incentivado. É um

    reducionismo psicológico que deve ser, a todo custo, refutado.

     Num contexto laboral altamente precário, a questão da falta de trabalho, das

    condições desfavoráveis, da intensa flexibilização dos contratos, da falta de poder de

    reivindicação por parte das classes trabalhadoras, são variáveis que também devem ser

    levadas em consideração. A saída para as ruas não é um evento abrupto. Por vezes, vem

    acompanhada do desemprego crônico, da dissolução dos laços familiares, do intenso

    sentimento de culpa e vergonha e, por fim, de uma “fuga” da realidade vivenciada. Emrelação ao círculo familiar, estudos afirmam a intrínseca relação entre o alcoolismo e a

    violência doméstica (NASSER; ESCOREL apud CAMPOS et al, 2004, p. 8), sendo esta

    realidade um fator primordial de dissolução ou até mesmo de rompimento das relações

    familiares.

    Outros dados alarmantes ainda nos lançam para a problematização da relação do

    álcool com as ruas. Segundo Rosa (apud CAMPOS, 2004, p.8), em relação à população

    3 O consumo no Brasil aumentou 74.53% entre os anos de 1970 e 1996 (CARLINI-MARLATT apudCAMPOS et al, 2004, p.3).

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    em situação de rua que faz abuso de álcool, “entre nove que fazem uso de bebida, oito

    começaram a beber antes da chegada às ruas”, além de acrescentar que “os que estão

    há pouco tempo na rua sentem a pressão exercida pela bebida; se não aderem, são

    tratados como diferentes; é preciso falar a mesma linguagem, caso contrário sofrem

    represálias” (ROSA apud CAMPOS et al, 2004, p.11). Diante destas indicações, não se

     pode pensar um problema ou outro isoladamente ou desconsiderando o sistema

    socioeconômico, isso pode ser fonte de superficialidades e/ou conclusões apressadas.

    À guisa de um esquema para estas relações, Campos (et al) atesta:

    Fica explícita a influência do álcool na ruptura com osambientes familiares; na manutenção de trabalhosintermitentes que favoreciam uma maior liberdade parao exercício de sua dependência química; por fim, emsituação de rua, todos rendimentos auferidos tinhamcomo destino a re-produção desse círculo vicioso que olevou a esta condição (2004, p.10).

    Uma vez inseridos na cultura de rua, há também que se atentar para o caráter

    socializador que o uso de álcool assume. Há uma criação em torno do ato beber, de uma

    série de ritos, comportamentos socialmente aceitos (e recusados), entre estes os

    estabelecimentos de horários, legitimação de compadrio e outras nuanças. Porém, como

    afirma Mattos:

    [...] ao lado da confraternização, o álcool também éelemento de discórdia, criando uma configuraçãocontraditória nas relações entre estas pessoas: surgecom um aspecto de solidariedade, mas gera a violência;ao lado da união, promove a desintegração dorelacionamento entre as pessoas, perpassando desde boas conversas e risadas até grandes discussões e brigasaté “fatais” (apud CAMPOS et al, 2004, p.11). 

    Vale ressaltar que o interesse desta pesquisa não é constatar nem refutar a

    interdependência existente entre o álcool e a situação de rua. Para nós, e segundo os

    estudos realizados, a ligação intrínseca é notória, porém não fatalista. Nosso interesse

    diz respeito a compreender, a partir da história de vida destes sujeitos, como o álcool foi

    sendo significado ao longo da vida destes usuários, quais os personagens relevantes,

    quais os cenários marcantes, os sentimentos etc. Mais especificamente, seria então

    investigar quais os sentidos que os ex-moradores de rua, da Fraternidade Toca de Assis,

    construíram em relação ao abuso de álcool no transcorrer de suas histórias de vida.

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    1) AS VEREDAS DA PESQUISA

    Diante da complexidade das pesquisas que têm a subjetividade como enfoque,

    optamos por uma pesquisa eminentemente qualitativa. Tal delimitação dá-se, entreoutros fatores, devido ao nosso objeto de estudo – a produção de sentido, a situação de

    rua, o álcool e a construção da subjetividade – e à nossa concepção de que a pesquisa

    qualitativa apresenta uma metodologia consoante com nossos propósitos de

    investigação.

    Circunscrevemos esta epistemologia de estudo também por corroborar com

    González Rey (2002), quando este concebe a epistemologia qualitativa como:

    Um esforço na busca de formas diferentes de produçãode conhecimento em psicologia que permitam a criaçãoteórica acerca da realidade plurideterminada,diferenciada, irregular, interativa histórica, querepresenta a subjetividade humana (p. 29).

    Ademais, a ruptura com um modelo mecanicista, nos moldes do positivismo, foi

    uma atitude metodológica frente às limitações que tal modelo apresentava.

    Extrapolando os objetivos destes, temos que a:

    Abordagem qualitativa no estudo da subjetividadevolta-se para a elucidação, o conhecimento doscomplexos processos que constituem a subjetividade enão tem como objetivos a predição, a descrição e ocontrole. Nenhuma dessas três dimensões, quehistoricamente estão na base da filosofia dominante na pesquisa psicológica, forma parte do ideal orientado pelo modelo qualitativo de ciência (Ibidem, p. 48).

    Spink (2000), por sua vez, da mesma forma que González Rey, trata a perspectiva qualitativa não apenas como uma metodologia, mas uma epistemologia.

     Nesse sentindo, a opção sai da esfera técnica e passa a coadunar com os objetivos da

    investigação. Entendido então como epistemologia, dentro de uma perspectiva do

    Construcionismo Social (ver capítulo sobre produção de subjetividades e sentidos), a

    combinação de estratégias quantitativas e qualitativas deixa de ser uma querela,

    superando também outras dicotomias, como realismo e idealismo ou indivíduo e

    sociedade.

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    1.1) A Produção de Sentido como método

    Um conceito capital em nossa pesquisa será a noção de sentido. Na concepção

    de Medrado e Spink “dar sentido ao mundo é uma força poderosa e inevitável na vida

    em sociedade” (2000, p. 41). O sentido é sempre uma construção social e coletiva, quese dá por meio da interação e das relações, a partir das quais as pessoas compreendem e

    atuam em seu cotidiano. Não entendemos o sentido como apenas uma produção intra-

    individual, muito menos uma mera atividade cognitiva. Como prática social, ele é

    sempre dialógico, visto o movimento dinâmico da linguagem.

    Esta noção é cerne também do entendimento que o Construcionismo Social traz

    acerca da apreensão da realidade, já que “é a compreensão de que os termos em que o

    mundo é compreendido são artefatos sociais, produtos das trocas historicamentesituadas entre as pessoas” (GERGEN apud MENEGON e SPINK, 2000, p.76). Com

    isso, essa perspectiva intenta a descrição dos fenômenos, na qual as pessoas explicam o

    mundo, incluindo-se nele.

    Dessa forma, tomamos por base a noção de “práticas discursivas”, já que a

    linguagem encontra-se em movimento, constantemente. “Podemos definir, assim,

     práticas discursivas como a linguagem em ação, isto é, as maneiras a partir das quais

    as pessoas produzem sentidos e se posicionam em relações sociais cotidianas”(MEDRADO e SPINK, 2000, p. 45). A compreensão dos sentidos é sempre um

    confronto de vários sentidos construídos, não uma produção isolada.

    Tomaremos por base também as variações temporais que são próprias da

     produção de sentido. Queremos dizer, com isso, que há vários “tempos”, a citar: um

    longo, um curto e um vivido. O primeiro marca os conteúdos culturais e a história de

    uma dada sociedade; o segundo diz respeito aos processos dialógicos, às interações

    face-a-face; já o terceiro versa sobre as linguagens apreendidas a partir da socialização,

    são as experiências da pessoa ao longo de sua história (MEDRADO e SPINK, 2000,

     p.51).

     Nossa compreensão só estará minimamente qualificada quando levar em conta

    esses três tempos, articulando-os e considerando suas contradições inerentes. Nesse

    instante, separações como indivíduo/sociedade, sujeito/objeto, bem como fora e dentro

    do sujeito não fazem mais sentido. A perspectiva do Construcionismo Social, base

    epistemológica na compreensão das práticas discursivas, no enfoque de Spink, supera

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    ainda a dicotomia realismo/subjetivismo, representada no pensamento filosófico pelas

    correntes empiristas e idealistas.

    As tensões e paradoxos, ao invés de refutados na nossa investigação, fazem parte

    do processo de pesquisa. A interpretação levou em conta o pesquisador e sua

    subjetividade, assim como a noção histórica como variável que impulsiona

    transformações. Ou, como enfatizam Medrado e Spink:

    Por meio dessa abordagem, buscamos construir ummodo de observar os fenômenos sociais que tenha comofoco a tensão entre a universalidade e particularidade,entre o consenso e a diversidade, com vistas a produziruma ferramenta útil para transformações da ordemsocial. (2000, p. 61).

    1.2) Lócus de Pesquisa

    A pesquisa foi realizada na Fraternidade Toca de Assis4  (Casa Aliança São

    José), localizada na Avenida João Pessoa, N. 5052, Bairro Damas, na cidade de

    Fortaleza - CE. O local foi fundado em 2003. Quanto à sua estrutura física, conta com

    dois andares, três banheiros, seis dormitórios, uma capela, um escritório, uma

    enfermaria, dois salões, uma cozinha, um alpendre na parte superior, um jardim na parteinferior da casa e uma sala para atendimentos diversos (inclusive psicológico, feito

     pelos membros do Instituto Reluz, mencionado na Introdução desta monografia). A casa

    é bastante ampla e agradável.

    A casa abriga cerca de 60 moradores de rua e conta com aproximadamente dez

    membros da Fraternidade para prestar assistência aos “irmãos de rua”. A casa é

    exclusivamente masculina, com exceção de uma cozinheira e de algumas consagradas

    da comunidade

    5

     que realizam visitas com certa freqüência. A idade dos abrigados variados 18 aos 70 anos. Há uma heterogeneidade também quantos às características dos

    abrigados: existem vários moradores com transtornos mentais, comprometimentos

    físicos, dependência de álcool (não severa), entre outros. O lugar de origem também é

     bastante variado: há pessoas que chegam desde o Norte do país até o extremo Sul, com

     prevalência de pessoas de Fortaleza.

    4 Para mais informações ver: http://www.tocadeassis.org.br/principal.html#tela025 Nomenclatura referente às religiosas mulheres que não moram na casa, mas a freqüentam.

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    A Toca de Assis tem como principais atividades as tarefas domésticas e os

    momentos de oração. Este segundo ponto é facultativo aos abrigados. São trabalhos na

    cozinha, no jardim, arrumação geral da casa e coleta de lixo. Constantemente há algum

    serviço de pedreiro ou bombeiro hidráulico a ser realizado, atividades estas que

    mobilizam grande parte da casa. Já houve aulas de EJA (Educação de Jovens e

    Adultos), ministradas por uma voluntária. Os trabalhos voluntários são constantes,

     porém, há um problema com a falta de continuidade destes.

    Entretanto, apesar deste leque de tarefas, algo que marca a instituição é a

    ociosidade. Logo ao adentrarmos o espaço, nos deparamos com uma série de abrigados

    deitados pelo chão, jogando baralho/dominó, ou, literalmente, “vendo o tempo passar”.

    Esta é uma limitação que os membros da casa tentam sanar, mas que por causa das

    limitações estruturais e de pessoal (e pelo próprio propósito da instituição) ainda há

    muito que se fazer. O objetivo central da casa é o acolhimento, este entendido como

    recolhimento e conforto espiritual. Há também atividades externas, as chamadas

    “pastorais de rua”.

    1.3) Sujeitos da Pesquisa

    A amostra dessa pesquisa foi composta por três sujeitos abrigados na

    Fraternidade Toca de Assis que residiam há mais de um ano na casa. A seleção dos

    sujeitos da pesquisa foi feita por conveniência, ou seja, explicitamos os objetivos da

     pesquisa para os consagrados da casa e membros do Instituto Reluz, e pedimos para que

    estes nos indicassem possíveis candidatos para as entrevistas. O critério, além do tempo

    de permanência na casa, foi o abuso de álcool (ver conceito de abuso no referencial

    teórico que consta no segundo capítulo) no período da coleta de dados ou em período

    recente, bem como a disponibilidade e aceitação dos indivíduos para a entrevista (vertermo de consentimento no apêndice).

    Importante esclarecer a razão pela qual utilizamos a expressão (ex) moradores de

    rua e não apenas moradores de rua. Os sujeitos da nossa pesquisa, como já adiantamos,

    estão abrigados. No entanto, existe uma variação quanto ao modo como os sujeitos se

    identificam. Alguns acham que a estadia na Toca de Assis é passageira, identificando-se

    ainda como morador de rua. Outros, ao contrário, se vêem como ex-moradores de rua.

    Como esta é uma questão delicada e não é objeto de nosso estudo, preferimos o uso dos parênteses para englobar as duas concepções, respeitando, contudo, esta diferenciação.

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    1.4) Coleta de dados

    Entendemos que o instrumento de coleta de dados, bem como toda a

    metodologia, devem ser escolhidos a partir do próprio objeto de pesquisa. Ou seja, o

     problema e os objetivos de pesquisa norteiam a escolha de um método e não o contrário.

    Banister, nesse sentido, comenta que “nenhum modelo de prática ou análise pode ser

    determinado de antemão, abstraindo-se o tópico e o contexto da investigação

     particular ” (apud PINHEIRO, 2000, p.183).

    Utilizamos a entrevista semi-estruturada como método de coleta de dados (ver

    roteiro de entrevista no apêndice). Para o registro das entrevistas, usamos um gravador

     para guardar a fidelidade das falas dos entrevistados. Relatar experiências relativas ao

    abuso de álcool geralmente é uma narrativa emocionalmente carregada e, por isso,

    escolhemos proceder à coleta de dados de forma individual.

    A escolha da entrevista esteve situada na compreensão de que esta se apresenta

    como uma abordagem relacional por excelência. Menegom e Spink continuam

    explicando que

    [...] a expressão e produção de práticas discursivas aí

    situadas devem ser compreendidas também como frutodessa interação, ou seja, os integrantes, incluindo o pesquisador, são pessoas ativas no processo de produção de sentidos (2000, p.85).

    Como nos situamos na seara das pesquisas qualitativas - ou seja, não temos

     pretensão de generalizar nossos dados –, acreditamos que aprofundar as histórias de

    vida6 de três sujeitos é suficiente para levantar dados relevantes para a compreensão do

    fenômeno. O importante é o acompanhamento do movimento discursivo,

    compreendendo que é nesse fluxo que o sentindo vai sendo tecido. “Práticasdiscursivas são diferentes maneiras em que as pessoas, através dos discursos,

    ativamente produzem realidades psicológicas e sociais” (DAVIES E HARRÉ apud

    PINHEIRO, 2000, p.186).

    Ao abordamos a entrevista como prática discursiva estamos, sobretudo,

    compreendendo-a como uma ação, uma inter-ação. A negociação é a marca deste tipo

    de relação. Pinheiro aprofunda tal negociação explicando que

    6 A história de vida a qual nos referimos não diz respeito a uma metodologia, mas as narrativas que ossujeitos faziam em relação às suas próprias histórias.

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     Numa conversa o locutor posiciona-se e posiciona ooutro, ou seja, quando falamos, selecionamos o tom, asfiguras, os trechos de histórias, os personagens quecorrespondem ao posicionamento assumido diante de

    outro que é posicionado por ele. As posições não sãoirrevogáveis, mas continuamente negociadas(PINHEIRO, 2000, p.186).

    Antes das entrevistas propriamente ditas, tivemos um momento de apresentação

    da proposta de pesquisa e um esclarecimento coletivo com os sujeitos que foram

    indicados em meados de setembro. Foi um momento importante, principalmente porque

    se deu em grupo, evitando possíveis fantasias quanto aos objetivos da pesquisa.

    Explicamos exaustivamente os passos, as motivações e como a experiência de cada um

    seria fundamental na compreensão das intercessões entre a realidade de rua e o álcool.

    As entrevistas ocorreram no final de setembro e transcorreram de forma

    tranqüila, sem grandes contratempos. Tivemos apenas que remarcar uma delas por conta

    da indisposição de um dos entrevistados. Todas tiveram duração de, aproximadamente,

    uma hora e aconteceram nas dependências da própria Fraternidade.

    1.5) Análise dos dados

    A partir dos dados colhidos através das entrevistas, realizamos o procedimento

    de análise semiótica, segundo a qual “[...] o processo de interpretação é concebido,

    aqui, como um processo de produção de sentidos. O sentido é, portanto, o meio e o fim

    de nossa tarefa de pesquisa” (LIMA e SPINK, 2000, p. 105). Ou seja, não há separação

    entre o momento da coleta de dados e o da interpretação destes. A interpretação, assim,

    faz parte do processo de pesquisa, visto que a objetividade buscada perpassa o âmbito

    da intersubjetividade. Dessa forma, reconhecemos a possibilidade de produção de novossentidos influenciados pelas discussões entre os sujeitos entrevistados.

    Utilizado esse método, efetuamos uma leitura dos conteúdos, buscando captar os

    sentidos para, só a partir daí, realizar uma classificação dos dados coletados, ou seja,

    não buscaremos encaixar os dados em uma classificação existente a priori. Mesmo que

    haja tematizações pré-existentes, advindas da escolha de um determinado referencial

    teórico, estas não se propõem a servir de enquadre para os dados coletados, uma vez que

    “há um confronto possível entre sentidos construídos no processo de pesquisa e de

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    interpretação e aqueles decorrentes da familiarização prévia com nosso campo de

    estudo (nossa revisão bibliográfica) e nossas teorias de base” (ibidem, p. 106).

    Após o surgimento das categorias – a citar: construção da subjetividade do

    morador de rua, a realidade da rua e o sentido do álcool -, trabalhamos com mapas de

    associação de idéias. “Utilizamos categorias para organizar, classificar, e explicar o

    mundo. Falamos por categorias” (MENEGOM e SPINK, 2000, p.78). Estes

    correspondem a uma espécie de tabela em que os conteúdos são organizados de acordo

    com as categorias, sem que se perca a ordem das falas, a fim de preservar o contexto no

    qual surgiram.

    O aprofundamento e a análise do material empírico serão temas do último

    capítulo desta monografia. Na ocasião, faremos as devidas descrições, bem como as

     problematizações e as relações com a teoria apresentada.

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    2) A REALIDADE DOS MORADORES DE RUA E SUA

    VIVÊNCIA COM O ÁLCOOL: CONCEITUANDO

     Neste capítulo, temos por objetivo discorrer sobre os fenômenos do alcoolismo edos moradores de rua. Ambos possuem suas especificidades e, nem sempre, estão

    atrelados um ao outro. É nesse sentindo que discorreremos sobre as repercussões do

    álcool como substância, numa abordagem biopsicossocial. Na seqüência, trataremos do

    fenômeno dos moradores de rua – tentando compreender sua antropologia, a partir da

    dicotomia da experiência entre o público e o privado.

    2.1) O álcool em uma perspectiva biopsicossocial

    Historicamente, o tratamento dispensado às drogas, em geral, centrou atenção

     particularizada como um fenômeno de base unicamente orgânica. Diante da limitação

    de tal modelo biomédico, foi necessário compreender como fatores psicológicos,

    culturais e sociais somariam esforços na compreensão de por que o homem faz uso de

    certas substâncias entorpecentes, chegando, por vezes, a prejudicar seu próprio modo de

    vida. Tais prejuízos foram aglomerados em torno das chamadas “teorias da adição”.

     Nestas, segundo West (apud FORMIGONI; QUADROS, 2006, p. 31), “o indivíduo

    apresenta prejuízos de saúde, psicológicos e sociais, e tem sua liberdade de escolha

    violada”. É uma primeira forma, ainda abrangente, de abordar as repercussões negativas

    do abuso de drogas.

    Entretanto, não queremos cair em um outro extremo, que seria a recusa de uma

    abordagem fisiológica. Vale ressaltar que a ação da droga no organismo funciona,

     prioritariamente, por reforço positivo, visto seus efeitos estimulantes (WISE;

    BOZARTH apud FORMIGONI; QUADROS, 2006, p.31). O reforço positivo é

    responsável pelo sustento do hábito por conta de estados agradáveis – em geral, euforia

    e prazer - ao organismo. Tais efeitos são cruciais no estabelecimento da dependência. A

    dopamina é o principal neurotransmissor das vias de recompensa cerebral (mesolímbica

    e mesocortical), atuando, primordialmente, no núcleo accumbens do cérebro. Eis o ciclo

    do processo de recompensa. Outra característica que aumenta a influência orgânica da

    droga é seu caráter difuso, ou seja, ela atua em diversas regiões do Sistema Nervoso

    Central (SNC) (FORMIGONI; QUADROS, 2006, p. 32-33).

    O estudo de drogas lícitas e ilícitas, por vezes generalizado, acoberta asespecificidades de cada substância. Cuidaremos, então, do álcool como produtor de

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    reações psicofisiológicas específicas, bem como inserido em um código cultural

    também peculiar. Em termos populacionais, os dados apontados por Julião e Niel (2006,

     p. 135) nos chamam a atenção, uma vez que:

    O alcoolismo figura entre os dez principais problemasde saúde pública no mundo, sendo a quarta doença maisincapacitante, de acordo com dados da OrganizaçãoMundial de Saúde. De acordo com dados do CEBRID(Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas) de2002, o álcool é a substância psicoativa mais utilizadano Brasil, e o seu uso durante a vida variou de 53% naregião norte a 71,7% na região sudeste. Com relação àdependência de álcool, a prevalência entre homens é detrês a quatro vezes maior que entre mulheres.

     No tocante aos aspectos culturais, podemos observar que o álcool é uma droga

    lícita e socialmente aceita, sendo o seu uso considerado aceitável e, por vezes,

    estimulado. Ademais, vale ressaltar o fácil acesso e baixo custo, aliado à falta de

    fiscalização quanto à proibição da venda para crianças e adolescentes.

    Quando nos referimos ao álcool, fica implícito que nossa real intenção é abordar

    os fenômenos decorrentes da exposição de sujeitos a essa substância. O álcool, em si, é

    de fácil definição. Do ponto de vista da Química, o álcool consiste em “um composto

    orgânico em que um átomo de H, de um alcano, é substituído por um grupo hidroxila,

    OH ”7. Desta constatação, verificamos ainda que há uma subdivisão da substância álcool

    em alguns subprodutos, entre os mais conhecidos temos o metanol e o etanol. Seus

     principais usos são como reagentes químicos e na para produção de combustíveis

    diversos.

     Nosso interesse estará voltado para as reações do etanol. Este é obtido,

     principalmente, a partir da fermentação dos açúcares de frutas, com destaque para a

    cana-de-açúcar. O etanol é o álcool encontrado em bebidas, sendo sua concentraçãovariável de 4% a 50%. Esta concentração varia de acordo com a fermentação ou

    destilação da bebida. Citamos como exemplo a cerveja e a cachaça, respectivamente.

    Bebidas apenas fermentadas não apresentam um teor alcoólico muito elevado. Já as

    destiladas, como cachaça e uísque, apresentam alto teor alcoólico. Como já havíamos

    antecipado, nosso foco central não está na substância em si, mas nos efeitos que esta

     produz no comportamento humano.

    7 http://www.quiprocura.net/alcool.htm (acessado em 25/06/06)

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     Quanto à sua Psicofisiologia, podemos afirmar que o álcool atua como agente

    depressor no cérebro, na parte do sistema nervoso central (SNC). Quando este afeta o

    SNC, há uma sensação de euforia por parte do indivíduo (geralmente atrelada ao

    sentimento de desinibição); efeito que logo se atenua e torna-se depressivo quando o

    efeito da droga sucumbe. Depois de ingerido, o álcool é absorvido pelas paredes

    intestinais e vai se metabolizar no fígado (SILVA, 2000, p. 15).

    Outro enfoque que podemos dar ao nosso estudo é sobre a evolução histórico-

    antropológica do conceito de álcool. Segundo Bessa e Gigliotti (2004, p. 11),

    O álcool é uma substância que acompanha ahumanidade desde seus primórdios e sempre ocupouum local privilegiado em todas as culturas, comoelemento fundamental nos rituais religiosos, fonte deágua não contaminada ou ainda presença constante nosmomentos de comemoração e de confraternização,quando se brinda a todos e a tudo. [...] Através dahistória, o álcool tem tido múltiplas funções, atuandocomo veículo de remédios, perfumes e poções mágicase, principalmente, sendo o componente essencial de bebidas que acompanham os ritos de alimentação dos povos. Faz parte do hábito diário de famílias em todo omundo, servindo de alimento e de laço de comunhãoentre as pessoas.

    Silva ainda acrescenta:

    Historicamente, o uso do álcool data de 8000 a.C.quando na idade paleolítica era extraído do mel.Somente nos anos 6400 a.C. é que a cerveja e o vinhocomeçaram a ser feitos. O abuso de álcool, contudo,tem acontecido desde o momento em que ele foiinventado. Em sociedades ocidentais atualmente estas bebidas são consumidas sem controle (2000, p. 15).

     Nesse sentido histórico, o álcool ocupou significados diversos, desde integrante

    de confraternizações familiares e selador de acordos entre governos até propulsor de

    festas orgiásticas e bacanais. Diante dos comportamentos atuais, frutos de exposições

    exageradas a essa substância, observamos que houve uma mudança considerável na

    forma da sociedade lidar com ela. O mesmo vinho que outrora simbolizava a comunhão

    agora divide espaço com a representação do consumo arbitrário desestruturador de

    famílias. “Gradativamente, o que era pecado foi se tornando crime e, mais

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    recentemente, doença” (MOREIRA; SILVERIA, 2006, p. 4). O que se observou então

    foi, principalmente na sociedade ocidental, uma passagem do liberalismo exagerado

     para uma interdição total, isso no que diz respeito às drogas ilícitas. A intolerância é um

    aspecto em destaque.

    Ainda no sentido histórico, quanto ao aspecto legal, o consumo de várias

    substâncias psicoativas foi proibido no Ocidente – inclusive o álcool – mais

    notadamente nos Estados Unidos, onde passou de 1919 a 1933 por um período de

    ilegalidade8. Outrora tratados como fármacos, componentes de rituais religiosos e outras

    conotações, as drogas, nesse período, assumiram novos valores sociais, culturais e

    morais na sociedade. Segundo Escohotado (apud ARAÚJO; MOREIRA, 2006, p. 9),

    são “as atitudes sociais que determinam quais as drogas são admissíveis e atribuem

    qualidades éticas aos produtos químicos”. Paradoxalmente, a proibição nos EUA gera

    também um aumento exacerbado no consumo. A repressão torna-se um estímulo. Ainda

    segundo Silveira (apud ARAÚJO; MOREIRA, 2006, p. 12), este foi “o único momento

    da história onde, em conseqüência da dificuldade de acesso a bebidas alcoólicas, foram

    registrados casos de uso de álcool injetável”. Porém, o modelo europeu, diante do fato

    da ineficácia das práticas proibitivas, resolveu adotar novas formas de abordar o

     problema, incluindo a flexibilização no trato com a temática (MAIEROVITCH, apud

    ARAÚJO; MOREIRA, 2006, p.14)

    Acrescentamos ainda a apropriação econômica como fator que determina,

    sobremaneira, certa droga como lícita ou ilícita. Por sua vez, tal escolha não é, como

    muitos pensam, pautada em determinações científicos. Basta observamos que o uso do

    cigarro de nicotina, consumido na mesma proporção ao de maconha, é muito mais

     prejudicial à saúde do indivíduo. Para fugirmos da querela religiosa ou moral,

    corroboramos com Araújo e Moreira (2006, p. 9) quando afirmam que:

    Cabe ao entendimento histórico desmistificar os preconceitos, sejam estes de caráter repressivo oulibertário, por meio de uma análise cronológica ecomparativa capaz de abandonar conceitosmaniqueístas, em busca de subsídios que permitam aconstrução de uma nova consciência coletiva.

    8  “Nos Estados Unidos, este ciclo (em relação ao período de intolerância ao uso de substâncias psicoativas) iniciou com a perseguição ao ópio em forma de fumo na Califórnia na década de 1870, passou pela campanha contra a cocaína e a primeira leia contra ela - o chamado Harrison Act , assinado

    em 1914 – e culminou na aprovação de um dispositivo legal que proibia a venda, distribuição e consumode bebidas alcoólicas em todo território americano: o Volstead Act, mais conhecido como Lei Seca, quevigorou de 1919 a 1933”. (ARAÚJO; MOREIRA, 2006, p. 12)

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    Segundo Bessa e Gigliotti (2004), o alcoolismo só começou a ser visto como

    doença em meados do século XVIII, após a Revolução Industrial, diante do aumento da

     produção e da comercialização do álcool. Estudiosos como Benjamim Rush e Thomas

    Trotter começaram a pensar a exposição freqüente ao álcool como um problema que

    merecia a atenção das autoridades e, principalmente, da medicina da época. Pensado

    então como doença, o alcoolismo pode ser assim considerado quando o usuário

    apresenta, basicamente, três características: tolerância, abstinência e perda de controle.

    Entendemos o conceito de tolerância como

    [...] a necessidade de doses cada vez maiores de álcool

     para que exerça o mesmo efeito, ou diminuição doefeito do álcool com as doses anteriormente tomadas; e por síndrome de abstinência um quadro de desconfortofísico e/ou psíquico quando da diminuição ou suspensãodo consumo etílico (BESSA e GIGLIOTTI, 2004, p.12).

    Outra diferenciação importante para o nosso estudo diz respeito às noções de

    uso, abuso e dependência de álcool. O primeiro refere-se à exposição “moderada” às

    substâncias que contenham etanol. Já o abuso consiste em “ padrões de uso patológico e

     prejuízos nas funções sociais e ocupacionais relacionados ao uso, e para a categoria dedependência, além disso, exigia a presença de tolerância ou de abstinência” (BESSA e

    GIGLIOTTI, 2004, p. 12). Anteriormente era utilizada a nomenclatura “vício”, que

     passou a ser substituída por “dependência” pela conotação moralista da primeira

    (SILVA, 2000, p. 13). “Um dos elementos essenciais na caracterização de uma

    dependência é a perda de controle de consumo de uma substância” (MOREIRA;

    SILVEIRA, 2006, p. 4). Entendemos também que a dependência não seja induzida pelo

    uso agudo, mas sim pelo uso repetido do álcool (FORMIGONI; QUADROS, 2006, p.33). Vale ressaltar que estamos interessados no estudo do abuso, em detrimento ao uso

    ou à dependência.

    Apesar dessas acepções, para alguns autores, como Karam (2003), a definição

     precisa do que viria a ser o alcoolismo ainda é algo distante. Ao analisar o CID-10

    (Classificação Internacional de Doenças), o autor verifica que “apenas o delirium

    tremens  continua sendo a única forma clínica indiscutível de alcoolismo” (KARAM,

    2003, p. 469). A Síndrome de Abstinência de Álcool (SAA) é ocasionada quando

     pacientes de uso prolongado de álcool diminuem a ingestão ou param de beber.

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     Os sinais e sintomas mais comuns são: tremores,taquicardia, hipertensão arterial, náuseas, vômito,ansiedade, agitação psicomotora e alteração do humor(irritabilidade e disforia). Podendo evoluir para umquadro de delirium tremens, cursando com confusãomental, alucinações, idéias deliróides e hipertemia.Convulsões tônico-clônicas generalizadas também podem ocorrer (DI PIETRO, 2006, p. 148).

    Teremos também que fazer uma distinção conceitual entre alcoolismo e

    alcoolização. O primeiro se refere ao comportamento de abuso de álcool, já o segundo

    diz respeito ao ato de alcoolizar algo ou alguém; no nosso entender, aproxima-se do

    conceito que já apresentamos de uso de álcool.

    Diante de todos esses conceitos provenientes, em suma, de um referencial

     biomédico de processo de saúde-doença, é importante atentarmos que a tradição no

    estudo do alcoolismo é biologizante, reduzindo ao organismo e às suas reações

    fisiológicas todas as explicações sobre aquele (CAMPOS et al, 2004).

    Ao contrário de um trato que privilegie a compreensão do processo de

    alcoolização como causa-conseqüência, entendemos que uma intervenção mais

    apropriada se dá na compreensão da relação que o sujeito estabelece com a substância.

    Ou seja, não é o álcool em si que provoca alterações comportamentais indesejáveis9,muito menos o sujeito, que tem distúrbios perturbadores. É do encontro que poderá

    surgir algum tipo de descompasso. Para Moreira e Silveira (2006, p. 4), o padrão de

    consumo decorre da interação de vários fatores, entre eles: o tipo de droga utilizada, as

    características biológicas e psicológicas do usuário (cabe destacar que a dependência

    também é compreendida a partir destes dois enfoques) e o contexto em que se dá o uso

    de drogas (característica por demais negligenciada). Ou, nas palavras de Claude

    Olivenstein (apud LESCHER; LOUREIRO, 2006, p. 22), de que “o fenômeno seorganiza a partir de uma tríplice conjunção de fatores: a subjetividade do indivíduo, as

    características farmacológicas do produto e contexto sociocultural desse encontro”. A

    conotação relacional pode ser melhor compreendida a partir de dados estatísticos que

    9 Vale ressaltar que as propagandas contra substâncias entorpecentes, no geral, enfatizam a idéia de que oálcool, em si, pode provocar algum tipo de comportamento. Há um descompasso gritante entre a realidademidiática apresentada (supostamente generalizada) e o contexto vivenciado no cotidiano. Moreira eSilveira ainda acrescentam: “A exposição destas questões nos meios de comunicação, habitualmente, geraintensa mobilização popular. Mobilização sem orientação gera desespero, e a população fica desorientada

    diante de tantas informações. Atitudes extremas, originadas do medo, só fazem piorar a situação, minandofatores protetores como a qualidade da comunicação entre pais e filhos e o vínculo com instituições comoescola, aumentando o risco para o abuso de substâncias” (2006, p.4).

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    mostram que menos de  10% dos usuários de álcool e maconha vão se tornar

    dependentes (MOREIRA; SILVEIRA, 2006, p. 6).

    Silva (2000) aborda o desenvolvimento do alcoolismo através de fases. Na

     primeira, denominada pré-alcoólica ou fase social, os sintomas ainda estão latentes. Em

    seguida, temos a fase de tolerância (ver definição supracitada), com doses acentuadas, o

    indivíduo chega ao terceiro momento, a chamada fase da necessidade. É neste período

    que a droga serve como “cura” para a ansiedade, a depressão e o tédio.

     Numa acepção genética, pesquisas apontam que filhos de pais alcoólatras,

    quando adotados por pais não alcoólatras, terminam bebendo ou com qualquer tipo de

    dependência química (GOODWIN apud SILVA, 2000, p. 19). Entretanto, não podemos,

    a partir destes dados, inferir argumentos pseudocientíficos que “condenam” filhos de

    alcoólatras a se submeterem ao mesmo tipo de comportamento. “ Assim como para

    outras doenças psiquiátricas, a variância genética para o comportamento pode explicar

    no máximo metade da variância fenotípica, sendo a outra metade atribuída aos fatores

    ambientais” (FORMIGONI; QUADROS, 2006, p. 35).

    2.2) Morador de rua: a problemática do público e do privado 

    Após as devidas contextualizações quanto aos aspectos biopsicossociais do

    uso/abuso de álcool, nos deteremos em problematizar a realidade dos moradores de rua.

    Segundo Justo e Nascimento (2000, p.3), “Em nossa pesquisa sobre o fenômeno da

    errância na sociedade contemporânea, constatamos, preliminarmente, que o uso do

    álcool é bastante acentuado entre os ‘trecheiros10’". 

    Partiremos das relações entre o público e o privado no cenário da sociedade11 

     brasileira (discutiremos como entram em choque na realidade dos moradores de rua)

     para pensarmos tal questão. Os mitos, ritos, significados, sentidos, afetos, impressõessobre o espaço domiciliar contrastados com os do espaço público produzem ricas

    compreensões. Principalmente quando observamos que as contradições afetivas e

    comportamentais presentes entre a casa e a rua são experenciadas, por vezes, por um

    mesmo sujeito. DaMatta (1997, p. 19) acrescenta:

    10 Nomenclatura atribuída aos moradores de rua que enfatiza o seu caráter transeunte.11 Corroboramos com a idéia de DaMatta quando o autor afirma: “A idéia de sociedade que norteia estelivro [ensaio], portanto, não é aquela da sociedade como um conjunto de indivíduos, como tudo mais

    sendo um mero epifenômeno ou ocorrência secundária de seus interesses, ações e motivações. Aocontrário, a sociedade aqui é uma entidade entendida de modo globalizado. Uma realidade que forma umsistema. Um sistema que tem suas próprias leis e normas” (1997, p. 13)

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    Conforme vai surgir repetidamente em todos os ensaiosque formam este livro, é possível ‘ler’ o Brasil de um ponto de vista da casa, da rua e do ângulo do outromundo. E mais: essas possibilidades estão

    institucionalizadas entre nós. Não se trata de uma meravariação empírica, dessas que ocorrem na Inglaterra,Espanha ou Pasárgada [...]. Leituras pelo ângulo da casaressaltam a pessoa. São discursos arrematadores de processos ou situações.

     Neste trabalho, discorreremos sobre as representações vigentes da rua como

    espaço público; e da casa como espaço privado; das inversões existentes e, sobretudo,

    das sobreposições, ou seja, quando a casa e a rua coincidem. Tal coincidência pode ser

    observada na situação dos moradores de rua. Estes sujeitos habitam, em sua maioria, asruas das grandes capitais brasileiras. Chamamos de ruas as pontes, praças, calçadas,

    entradas de igrejas e todos os outros locais onde observamos a habitação dessas pessoas.

    DaMatta, na mesma obra, explicita os meandros da casa em oposição ao espaço

    da rua. Entretanto, em nenhum momento, atenta para quando estes mundos – no âmbito

    físico e simbólico – coincidem. Esta reflexão proporá exatamente esta investigação.

    Deter-nos-emos em três momentos, a citar: a) quando casa e rua são espaços

    completamente distintos; b) quando a casa e a rua “confundem” seus papéis, ou seja, naocorrência de inversões simbólicas pontuais; e c) quando a casa e a rua se fundem

    concretamente, situação que analisaremos a partir da vivência dos moradores de rua. “O

    segredo de uma interpretação correta do Brasil jaz na possibilidade de estudar aquilo

    que está ‘entre’ as coisas” (DAMATTA, 1997, p. 25).

    2.2.1)  A casa e a rua: “cada qual no seu canto”

    Esta acepção, na qual o espaço domiciliar e o espaço público são tidos como

    diametralmente opostos, talvez seja a mais corriqueira, até porque é a mais presente no

    senso-comum. Neste sentido, a casa é o oposto à rua. O que é dito, feito e até pensado

    em casa não se repete na rua e vice-versa. A noção de papéis sociais cabe bem para

    entendermos tal significação, já que os roteiros estão previamente escritos, cabendo aos

    atores apenas sua “interpretação”. Nesse sentindo, está previamente determinado o que

    deve/pode ser dito e feito dentro de casa e o que pode ser desempenhado (fazendo

    alusão à nomenclatura teatral) no espaço da rua.

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    a festa (do carnaval) promove precisamente osdeslocamentos destas atividades dos seus, digamos,“espaços normais”. Isso, então, permite a sensação de umtempo louco, notavelmente lento ou, como ocorre com onosso carnaval13, uma temporalidade acelerada, vibrantee invertida (DAMATTA, 1997,  p.41 e 42, grifo nosso).

    2.2.2) Invertendo os papéis: quando casa e rua se “confundem” 

    Entre os extremos de entendermos a rua como espaço simbólico diametralmente

    diferente da casa e de entendermos a sua sobreposição, temos ainda a ocorrência de

    situações nas quais pequenas permutas ocorrem, confundindo, temporariamente, o que é

     próprio da rua em casa e vice-versa.

     No geral, quando estas trocas ocorrem, alguns conflitos podem ser deflagrados.

    Em nossos tempos, essas limitações estão cada vez mais tênues. O trabalho realizado

    em casa é um exemplo categórico. Diante da crescente demanda por trabalhos via

    internet, perde-se a razão de ter um local de trabalho. A casa, nestes termos, assume a

    dupla função de lar e de espaço de trabalho. A flexibilização temporal é apontada, com

     positividade, como uma grande característica deste tipo de relação laboral. Entretanto,

    não há uma demarcação de tempo também para os afazeres domésticos, o lazer e, acima

    de tudo, para o ócio. A inversão temporal, não só espacial, marca esse tipo de relação.Podemos compreender também o nepotismo como uma das manifestações em

    que os “códigos da casa” (agora em termos essencialmente simbólicos) são levados para

    o espaço público. É cultura da família a preferência pelos seus. O critério é basicamente,

    além do vínculo sanguíneo, o afeto peculiar despendido para um determinado membro

    (agregados e pessoas próximas da família também entram neste critério). O problema –

    e o encaramos com tal – é quando esse tipo de relação extrapola o espaço doméstico e

     passa a gerir uma determinada parte da esfera pública. Ao invés do mérito, domerecimento, do esforço e do reconhecimento, mede-se, promove-se ou demite-se pelo

    discernimento se há parentesco com alguém que detenha poder na instituição.

    Retornando a problemática da casa como espaço físico, podemos afirmar

    também que a casa possui espaços com significações semelhantes às da rua. São as

    13 DaMatta cita o carnaval como uma produção cultural na qual essas inversões de tempo, espaços, papéis sociais, entre outros, apresentam grande visibilidade. Para maior aprofundamento, ver obra do

    autor sobre o tema: DaMatta, Roberto. Carnavais, malandros e heróis - Para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

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    varandas, amplas janelas para o exterior, salas de visita, quintais, jardins... Espaços

    esses que ora assemelham-se ao espaço da rua – ocorrência de festas, mudança na

    linguagem, menos zelo – e ora são readmitidos à dinâmica doméstica. “ Mas, assim

    como a rua tem espaços de moradia e/ou de ocupação, a casa também tem seus espaços

    ‘arruados’” (DAMATTA, 1997, p.56). Não observamos, na obra do antropólogo, o

    desenvolvimento da noção que o espaço público e o privado se encontram intimamente

    imbricados. Faremos tal discussão no tópico a seguir.

    2.2.3) A casa e a rua se fundem: a experiência dos moradores de rua. 

    A miscigenação, a pluralidade cultural, o sincretismo religioso, a enorme

    extensão territorial, as contradições sócio-políticas entre norte e sul do país; todas essas

    variáveis nos indicam que qualquer tentativa de explicação da sociedade brasileira

     pautada em homogeneidades estará fadada ao fracasso. Muito além das polaridades (do

    “isso ou aquilo”), nossa sociedade é baseada, sobretudo, nas coincidências (no caso, “o

    isso e aquilo”).

    O candomblé é a expressão da união entre a umbanda e o catolicismo, a capoeira

    nasceu de um jogo-luta, a feijoada foi concebida a partir da “mistura dos restos” da casa

    do senhor de engenho, o caboclo nasce do encontro entre brancos e índios e o morador

    de rua como a figura representativa da fusão entre espaço público e privado. É claro que

    tal fusão, muito mais que uma produção eminentemente cultural, tem suas

    determinações econômicas. Muitos dos moradores de rua (a maioria) desgarraram-se de

    suas famílias por conta do desemprego, de conflitos intrafamiliares e, sobretudo, por

    conta da dependência química, em especial o álcool (SERRANO, 2004).

    Essas características – que permitem o encontro de variáveis aparentemente

    diferentes - extrapolam ainda nas produções dos símbolos culturais. Os espaços etempos também se fundem e confundem, gerando novas possibilidades de socialização.

    É assim que observamos nas arquiteturas (arranha-céus dividem espaços com

    construções da época do barroco) e, com ênfase acentuada, nas práticas e nos discursos

     políticos. Os coronelismos e currais eleitorais coexistem com discursos tidos como

    “progressistas”, como a participação popular e o controle do aparelho público.

    Retomando a aparente dicotomia entre a casa e a rua, é notório que a situação do

    morador de rua inverte a noção de um espaço público e um outro privado. Estes seconfundem de tal forma que fica difícil estabelecer qualquer delimitação. A dificuldade

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    de compreensão está no âmbito de quem está fora, observando, mas, sobretudo, do

     ponto de vista de quem vivencia a situação de rua. Como falar em privacidade, limites

    (físicos ou simbólicos) em espaços como esses? Como pensar a higiene, o lugar de

    dormir, de comer, de estar e de sair, se todos já estão “fora”?

    Além do espaço, o tempo é outra categoria fundamental para entendimento dessa

    imbricação. A rua possui uma lei própria, dotada de códigos de sobrevivência claros e

    rígidos. Assim, a noite não é só um tempo de descanso, mas também o momento de se

     proteger, “um olho no gato e o outro no peixe” (SERRANO, 2004, p.30). Por isso,

    observamos, com tanta freqüência, pessoas que dormem em plena luz do dia. Há uma

    inversão temporal. A noite representa, além do momento de autoproteção, o instante de

    receber ajuda (os conhecidos “sopões”), de trabalhar (no caso dos catadores de lixo) e,

    quiçá, de cometer algum tipo de delito.

    Um outro tipo de paradoxo que consideramos bastante fértil diz respeito ao

    caráter de transitoriedade em contraponto ao significado da rua como espaço de morada

    fixa. Talvez esta seja a maior contradição, tanto em termos de representação como de

    fato, quando pensamos o que significa uma pessoa habitar um logradouro qualquer.

    Como já apontamos alhures, o que é próprio da passagem e do itinerante torna-se, na

    situação do morador de rua, algo permanente. Entretanto, essa permanência alterna-se

    ainda com a mobilidade, criando uma situação complexa, na qual tipos de pensamentos

     polares não dão conta de explicar o fenômeno.

    Além de transitório ou permanente, DaMatta trata dos sentidos vinculados aos

    espaços públicos também como eternos ou provisórios. “ Mas nossos espaços nem

    sempre são marcados pela eternidade. Há também espaços transitórios e problemáticos

    que recebem um tratamento muito diferente” (DAMATTA, 1997, p. 45). A igreja, o

     paço municipal, as praças históricas - entre outras peças arquitetônicas que compõem os

    cenários das grandes cidades - são entendidas a partir de “representações eternas”, ouseja, há um caráter histórico que os legitimam como peças fundamentais de certo centro

    urbano. Daí decorrem os movimentos de revitalização, preservação, tombamento e as

    demais ações que visam conservar a “matriz sócio-cultural” de uma determinada urbe.

    Esta noção também é questionada a partir da instalação dos moradores de rua. Há uma

    “provisoriezação14  do eterno”. Aquilo que outrora era de uma esfera quase sagrada

    agora foi “banalizada”, tornou-se provisório.

    14 Considerar o neologismo para fins metodológicos.

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      Em termos das conseqüências dessas diversas sobreposições entre o espaço da

    casa e o espaço da rua, consideramos que a principal é a invisibilidade – uma vez que

    não temos claro se alguém está transitando ou morando – e, por conseqüência, a

    restrição da cidadania. Entendemos o conceito de cidadania muito além de uma mera

    efetivação dos direitos políticos e sociais e o cumprimento das normas jurídico-sociais.

    A cidadania, no nosso entender, deve estar pautada também na possibilidade de

    expressão e participação, deslocando a noção da passividade do sujeito para a

    necessidade de sua ação (PINHEIRO, 2006).

    Os moradores de rua, em geral, além de não serem contemplados pelo poder

     público e pela sociedade com benefícios básicos (como alimentação, saúde, educação e

     própria moradia) também não se reconhecem como detentores dessas benesses. Vale

    observar a inexistência de organizações de classe e outras formas de mobilização. Não

    estamos afirmando que a descrença na exeqüibilidade dos direitos sociais é própria

    dessa camada da população. Estamos afirmando, sim, que tal realidade se agrava, por

    questões culturais, educacionais e de outras ordens.

    Se quisermos aprofundar a temática da rua como espaço socialmente construído

    de exclusão social, basta nos reportarmos aos vários provérbios e expressões populares

    que denotam bem tal conotação15. “Quem quer se perder se cria asas” induz pensarmos

    na rua como lugar de perdição, como se “criar asas”, ou seja, sair de casa fosse

    indicativo de atos moralmente condenáveis. “Vá para o olho da rua” aponta o espaço

    extrafamiliar como sendo do castigo e do menosprezo, uma espécie de “inferno na

    terra”. A rua assume o lugar do tenebroso, que oferece perigo. Já o dito “estou na rua da

    amargura” é expressivo para demonstrar o caráter pejorativo que a rua assume em certos

    contextos.

    Ao contrário, a casa é percebida, também a partir de determinados provérbios,

    como lugar do acolhimento, da segurança e do conforto. Basta lembrar como nosreferimos quando nos sentimentos bem em certo lugar: “estou me sentindo em casa”; ou

    quando atrelamos ao espaço laboral uma conotação positiva: “este trabalho é minha

    segunda casa”. Desta forma, questionamo-nos como os moradores de rua se situam

    nesse emaranhado de sentidos, uma vez que são extirpados de referências imediatas de

    domicílio. Cabe destacar o imediato, visto que a inexistência de um lugar de morada

    não retira deles a representação de lar, muito menos a apropriação de certos códigos

    15 Fonte: http://www.deproverbio.com/DPbooks/VELLASCO/COLETANEA.html. (Acessado em19/11/2006).

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    semióticos; no sentindo de que o fato de não possuírem uma residência não os furta de

    uma representação de domicílio.

    Podemos ainda falar da apropriação da casa e da rua em termos afetivos. A casa

     pode ser distinguida como lugar da calmaria, do repouso, da recuperação, da

    hospitalidade, do carinho e de todos esses adjetivos que circunscrevem a casa como

    lugar onde as pessoas, no geral, gostam de estar. A rua é o diametralmente oposto. Ela

    é, sobretudo, o lugar do perigo, principalmente na contemporaneidade em que a

    violência se tornou pauta permanente dos veículos de comunicação. Por ser um espaço

     prioritariamente de trânsito, poucos se preocupam em fazer da rua um lugar aprazível,

    como se vê no âmbito doméstico.

    Tudo isso revela gritantemente como o espaço público é perigoso e como tudo que o representa é, em princípio,negativo porque tem um ponto de vista autoritário,impositivo, falho, fundado no descaso e na linguagemda lei que, igualando, subordina e explora. O pontocrítico da identidade social no Brasil é, sem dúvida, oisolamento (e a individualização), quando não hánenhuma possibilidade de definir alguém socialmente por meio de sua relação com alguma coisa (seja pessoa,instituição ou até mesmo objeto ou atividade). Nada pior do que não saber responder à tremenda pergunta:

    ‘Afinal de contas, de quem se trata?’ (DAMATTA,1997, p. 59).

    O antropólogo conclui um pensamento já apontando outro de igual

    relevância. Paripasso à conotação de invisibilidade dos moradores de rua,

    observamos ainda a significativa situação de anonimato em que essas pessoas se

    encontram. São sujeitos que, do ponto de vista da identidade, nem são reconhecidos

     – seja como cidadãos ou até mesmo como pessoa – pela sociedade que os cerca.

    Esse grau de anonimato chega a tal ponto que muitos não possuem sequer carteirade identidade ou outro documento identificatório (SERRANO, 2004). Em estágios

    mais acentuados (que não são tão incomuns) esse anonimato pode levar aos quadros

    de transtornos mentais severos ou outros tipos de debilidades. 

    2.3) Algumas palavras sobre o morador de rua 

    Antes de referenciarmos o que estamos concebendo por “morador de rua”, faz-semister localizarmos este fenômeno socialmente. Tal situação, na qual a privação ao

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    direito social à habitação - vide Constituição Federal, Art. 5º (BRASIL, 1996) - é o

    grande marco, não é exclusiva de países subdesenvolvidos. Cidades com grande

    acúmulo de capital – como Tóquio, Los Angeles e Paris16  - também enfrentam sérios

     problemas em relação aos bolsões de pobreza e, por conseguinte, a falta de moradia

    adequada para suas populações.

    A situação de extrema desigualdade social – abismo socioeconômico na divisão

    de renda – gera, por sua vez, uma grave situação de exclusão social. Exclusão esta que

     perpassa diversos níveis, desde a impossibilidade de acesso a uma variedade de espaços

    (que, em nosso tempo, estão cada vez mais privatizados), até a não efetivação dos

    direitos sociais básicos.

    Apesar de limitada, a bibliografia especializada cita alguns termos comumente

    utilizados para descrever essa população. São os mendigos, trecheiros, moradores de

    rua, homens de rua, povo da rua ou população em situação de rua. Cada nomenclatura

    implica algum enfoque em detrimento de outra ênfase. Por exemplo, “população em

    situação de rua” enfatiza conotação de transitoriedade destas pessoas em relação à rua,

    evitando, assim, uma naturalização e atentando para a-historidade deste processo. Já “o

    mendigo” enfatiza o caráter de pedinte, alguém que mendiga (MATTOS apud

    SERRANO, 2004, p. 23). Para os efeitos deste ensaio, estaremos nos referindo neste

    estudo ao morador de rua, não nos interessando o caráter de mendicância em si. O que o

    caracterizará, para nós, é a vivência de morar na rua, independente do período ou do

    local específico.

    É nessa configuração social que surge a pessoa do morador de rua. Extirpado, a

     princípio, do seu direito à habitação (mas não só!), ele “perambula” por ruas e vielas

    interessado na sua sobrevivência imediata. Além disso, a invisibilidade é outro aspecto

    marcante dessa camada da população. Em geral, esses apenas são percebidos quando

    cometem algum tipo de delito, atrapalham o trânsito ou exalam algum odor que chama aatenção. Ou seja, a percepção é sempre norteada pelo negativo, pelo que falta. Até

    órgãos oficiais, como o IBGE, não contabilizam nem possuem dados precisos sobre a

     população que vive nesta situação.

    Segundo estudos pontuais, como o da professora Maria Cecília Loschiavo dos

    Santos, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, chama a atenção o crescente

    número de famílias que vivem na rua. Ademais, cerca de 86% da população é do sexo

    16 Informação colhida em matéria do Jornal da USP. Acessado em 06/07/2006.http://www.usp.br/jorusp/arquivo/2004/jusp700/pag0405.htm

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    masculino. Entretanto, apesar de prevalecer um perfil masculino, há uma participação

    de sujeitos desde a infância até a terceira idade morando nas ruas, independente do sexo.

    (ALCÂNTARA apud SANTOS, 2004, p.35). Ainda sobre o perfil desta camada

     populacional:

    Pesquisas sobre a situação dos moradores de rua dacidade de Chicago, por exemplo, revelam que mais de70% dos moradores de rua tinham algum transtornomental identificado, sendo que 16% apresentavam problema com álcool e 12% com drogas. Estudos sobrea morbidade entre essa população mostram que 25%dos homens que vivem em abrigos são esquizofrênicose 36% preenchem critérios para o abuso de substâncias,sendo que nesta amostra observou-se que 40%

    apresentavam dano cognitivo (ibid., p.36).

    De acordo com pesquisa realizada pela CNBB em 1994 (apud ALCÂNTARA,

    2004), existem vários motivos que podem levar uma pessoa a “escolher” a rua como sua

    morada. As razões variam desde migrantes que vinham em busca de emprego e se

    defrontam com a miséria das grandes capitais, até pessoas que foram expulsas de sua

    moradia pela carestia dos aluguéis, doentes mentais que perderam suas referências,

    crianças e adolescentes que fogem da violência doméstica, desemprego estrutural, entre

    outras.

    São, em geral, excluídos de múltiplas formas: porquesão pobres, porque não têm saúde, porque inspirammedo, porque ‘enfeiam’ a cidade, porque sua moral éconsiderada ‘duvidosa’... Freqüentemente há quem sequeixe porque estão ‘ocupando um lugar público’, mas,na verdade, seu espaço é lugar nenhum. Por isso sofremviolência policial, frio etc.; quando morrem sãoenterrados como indigentes (CNBB apud

    ALCÂNTARA, 2004, p. 37).

    A realidade dos moradores de rua já é marcada, em si, pela penúria e o descaso –

    seja das autoridades competentes, familiares ou da sociedade como um todo. Além da

    vivência concreta dessas pessoas, temos ainda uma série de representações pejorativas

    que legitimam e, por vezes, impedem reflexões e proposições de alternativas para esta

     população. O olhar dirigido aos moradores de rua mescla a “pena” (aquele sentimento

     judaico-cristão que pelo simples fato de haver comoção já se está supostamente

    implicado com uma dada realidade e, por isso, não é necessário ir além), o nojo (o mal-

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    cheiro), o medo (o risco de assalto), o asco, a intolerância, o julgamento (“Como pode

    um homem tão novo vagabundando no meio da rua?”) e tantos outros. O que há de

    comum nesses sentimentos é a indiferença, a dessensibilização com outro que, por

    motivos diversos, está numa situação de extrema vulnerabilidade social.

    Estudos feitos por Mattos e Ferreira (2004) explicitam as representações sociais

    que mais comumente circulam em relação aos moradores de rua, quais sejam:

    “vagabundo, preguiçoso, bêbado, sujo, perigoso, coitado, mendigo” (p.2). Do ponto de

    vista da identidade, o autor aborda o quanto essas representações pejorativas

    influenciam negativamente o próprio movimento existencial dos moradores de rua.

    Muitos destes atributos estão pautados numa concepção individualista, que

    compreende que a “culpa” pela realidade da rua é exclusiva do sujeito. A

    “culpabilização” é uma alternativa coerente com o nosso modo de produção capitalista,

    que credita ao indivíduo todas as responsabilidades por seu possível sucesso ou

    fracasso. Qualquer situação de dificuldade é “culpa” exclusiva da pessoa, já que ela tem

    “todas as condições” de garantir seu progresso. A realidade é entendida, nesta

     perspectiva, como pano de fundo, e não como condição de possibilidade (ou

    impossibilidade) para o desdobramento de novas conjunturas.

    O “psicologismo”, aliado à “culpabilização”, são instrumentos eficazes no

    sentido da responsabilização unívoca do sujeito. A procura de nuanças da personalidade

    que o tornam “desestruturado”, o estudo dos conteúdos inconscientes e outras investidas

    “psicológicas” são no intuito de descobrir, no sujeito, as causas de seu desajuste e, por

    sua vez, da sua condição de rua. As noções de normalidade e desvio são comuns neste

    tipo de abordagem. Vemos este tipo de pensamento no estudo de Merton (apud JUSTO;

     NASCIMENTO, 2000, p.4), no qual o autor afirma que compreende a:

    [...] vida errante como uma estrutura social anômica.[...] a associalização decorre da falta de capacidade dosujeito para competir na sociedade em função derepetidos fracassos no mundo social. Snyder (1954)compreende o alcoolismo como uma conduta desviantee, nesse sentido, nos dizeres do autor, os alcoolistas são pessoas anômicas – desorganizadas, vazias,angustiadas, compulsivamente independentes e quedesconhecem toda autoridade.

    Estruturando melhor as representações com maior recorrência, Mattos e Ferreira

    (2004) nos apresentam algumas delas. O morador de rua, então, é visto,

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     prioritariamente, como vagabundo, ainda no sentindo da “culpabilização individual” por

    aquela situação; como louco, pautado no senso comum e em uma histórica intervenção

     psiquiátrica, sobretudo no período da criação dos grandes manicômios17; como pessoa

    suja e maltrapilha, o discurso higienista é a tônica deste tipo de representação; como

     pessoa perigosa, nesta acepção os códigos jurídicos deveriam manter o morador de rua

    afastado, já que são, a priori, pessoas perigosas e, por fim, baseado no discurso

    religioso, temos o morador de rua como “coitado”, digno de misericórdia. Nesta última

    representação, é como se os moradores de rua estivessem pagando por seus pecados,

    sendo então uma espécie de “estado de regeneração da alma”.

    Fica evidente que em todas essas representações o caráter de mudança ou

    questionamento não está presente. O que se tem são imagens que tentam dar sentindo à

    realidade justificando-as e, por vezes, legitimando-as. Além da imobilidade social

    causada por estas representações, temos ainda a repercussão nos próprios moradores de

    rua, uma vez que tais pressupostos são compartilhados. A interiorização dessas vozes

    impede mudanças, dificultando percepções e atitudes diferentes.

    Por outro lado, a realidade pregressa dos moradores de rua é bastante reveladora

    das motivações para a saída de suas casas, bem como para o abuso do álcool. Muitas

    destas evidências serão melhor trabalhadas no tópico em que analisaremos as histórias

    de vida pesquisadas. Justo e Nascimento mostram que “o desemprego, a falta de apoio

     familiar e as desavenças conjugais são os principais motivos que levam os sujeitos a

    romperem com a vida sedentária” (2000, p.4). Vemos então presentes na compreensão

    do fenômeno uma variável estrutural e uma familiar, refutando o psicologismo de

    outrora. Os autores ainda complementam:

    O fenômeno da errância parece estar associado a umcomplexo de fatores que modelam o mundocontemporâneo. A globalização, a flexibilização dotrabalho, a informatização e automação da produção, asubstituição da sociedade industrial pela de serviços, avirtualização da realidade, a dispersão, oindividualismo, a aceleração do tempo e a expansão doespaço têm exercido um papel considerável nadesterritorialização do sujeito e na sua impulsão para onomadismo (ibidem, 2000, p.11).

    17 Para maior aprofundamento sobre os manicômios e o contexto higienista que ver: FOUCAULT, M.História da Loucura na Idade Clássica, São Paulo: Perspectiva, 1978.

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      Estas pesquisas tendem a enfatizar o abuso de álcool como uma “fuga da

    realidade”, um mecanismo de defesa às adversidades vividas. Entretanto, encaramos tal

     perspectiva legitimando uma visão de sujeito passivo, como se o abuso de álcool não

    fosse, também, uma forma possível de enfretamento de suas questões existenciais. Nem

    defendemos uma explicação causualista – em que os fatores “negativos” explicam o

    nomadismo – nem visões de homem que prezam pela vitimização e/ou leitura deslocada

    da realidade concreta.

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    3) A LINGUAGEM EM AÇÃO: O MOVIMENTO DA

    PALAVRA SIGNIFICADA NA CONSTRUÇÃO DA

    SUBJETIVIDADE

    3.1) A construção da subjetividade humana

    Em nosso estudo, uma das categorias capitais para a compreensão do

    comportamento de alcoolismo e da situação de rua é a subjetividade18. Isto porque quem

    faz uso do álcool é um sujeito concreto - situado em uma realidade com igual

    concretude – com uma vivência impregnada de sentidos e significados complexos.

    Durante muito tempo a idéia de sujeito estava ligada à noção cartesiana, ou seja,de ordem, integilibilidade e consciência. O sujeito que se postulava era o sujeito

    racional, próprio de algumas correntes filosóficas da modernidade.

    A idéia de um sujeito da razão, capaz de dominar omundo e a si mesmo na produção de verdadesuniversais, constituiu uma representação que searraigou fortemente na cultura ocidental, mediandodiferentes modelos de ciência, política, educação, assim

    como a produção do senso comum. (GONZÁLEZ REY,2003, p.221).

    A postulação de várias correntes psicológicas foi influenciada, direta ou

    indiretamente, por essa noção do sujeito da razão. Daí o princípio da dicotomia

    sujeito/objeto, já que um suposto sujeito cognoscente, dotado de razão, poderá ordenar o

    mundo a partir do seu cogito.

    A idéia de universalidade, base para essa noção de sujeito, permite a formulação

    de idéias que são tomadas como verdades, uma vez que derivaram do método ditocientífico. Para González Rey (2003),  estas são erigidas como dogmas e apenas outras

    idéias, dentro do mesmo sistema, podem refutá-la. A divisão estática do mundo em

    “bom e mau” também é uma das decorrências desse sistema. Tudo que não advém do

    sujeito da razão é descartado.

    18

      Apesar de González Rey (2003) fazer uma distinção entre subjetividade individual e subjetividadesocial, não entraremos nesta discussão. Uma vez que sendo, a subjetividade construída socialmente, nelase insere as dimensões do singular e do social.

  • 8/17/2019 Vivência de Rua e Alcoolização a Produção

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