Vivência de Rua e Alcoolização a Produção
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ
CENTRO DE HUMANIDADESCURSO DE PSICOLOGIA
VIVÊNCIA DE RUA E ALCOOLIZAÇÃO: A PRODUÇÃODE SENTIDO EM (EX) MORADORES DE RUA
Autor: Paulo André Sousa Teixeira
BANCA EXAMINADORA
___________________________________
Profa. Dra. Veriana de Fátima Rodrigues Colaço (Orientadora)
__________________________________
Profa. Dra. Ângela de Alencar Araripe PinheiroMembro da Banca Examinadora
__________________________________Prof. Dr. César Wagner de Lima GóisMembro da Banca Examinadora
__________________________________
Esp. Silvana Garcia de Andrade LimaMembro da Banca Examinadora
ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA:Rua Tiradentes, 641, B:H Ap:201Parque Araxá – 60430-560Fortaleza – CE
TELEFONES:(85) 32231804 – (85) 88845979
EMAIL: [email protected]
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VIVÊNCIA DE RUA E ALCOOLIZAÇÃO: A PRODUÇÃODE SENTIDO EM (EX) MORADORES DE RUA
RESUMO
A temática da drogadição já é tida como antiga, tanto em termos de fenômeno socialcomo em relação ao estudo científico desse comportamento. Entretanto, estamos longe
de responder, em definitivo, as perguntas que assolam a sociedade moderna em relaçãoao uso e, principalmente, ao abuso de drogas: “Por que o sujeito se vale dessassubstâncias?” (sejam elas lícitas ou ilícitas); “O que ele busca experimentar, fugir,intensificar, conhecer... ao usá-las?”; “Quais os múltiplos sentidos subjacentes – desdeos compartilhados com uma determinada cultura aos produzidos de forma individual –ao comportamento de uso/abuso de certas substâncias entorpecentes?”. Paripasso aofenômeno do uso/ abuso de drogas, temos uma realidade – que semelhante à drogadiçãotambém não é nova – que é a dos moradores de rua. Do encontro da rua com as drogas,o que podemos esperar? Nesse sentido, nossa pesquisa teve por objetivo investigar quaisos sentidos que os ex-moradores de rua, da Fraternidade Toca de Assis, construíram emrelação ao abuso de álcool no transcorrer de suas histórias de vida. A referida entidade é
uma congregação religiosa, vinculada à Igreja Católica. A amostra desta pesquisa écomposta por três sujeitos abrigados na Fraternidade Toca de Assis e que residem hámais de um ano na casa. Utilizamos a entrevista semi-estruturada como método decoleta de dados. A partir dos dados colhidos através das entrevistas, os submetemos (osdados) à análise semiótica, segundo a qual o processo de interpretação é concebido comum processo de produção de sentidos. O sentido é o meio e o fim de nossa tarefa de
pesquisa. Tomamos por base teórica a Produção de Sentido no Cotidiano por meio dasPráticas Discursivas e concepção de Produção de Subjetividade. A partir de nossaincursão empírica na Fraternidade Toca de Assis, pudemos perceber que uma gama desentidos foram construídos em relação à bebida alcoólica. Aspectos como:masculinidade, família, trabalho e precarização do mundo laboral e acontecimentos
veiculados pela mídia estão intimamente ligados à produção da realidade dos moradoresde rua e da sua vivência com o álcool. A Psicologia tem a contribuir tanto como ciência
– na compreensão das variáveis envolvidas, na problematização da realidade e nadesnaturalização dos “óbvios” – como na proposição de uma práxis contextualizada, nacapacitação de pessoal e, principalmente, no planejamento de ações interdisciplinares.
Palavras-chave: Moradores de Rua, Álcool, Produção de Sentido.
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ CENTRO DE HUMANIDADES DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA
PARECER SOBRE MONOGRAFIA
Como orientadora da monografia de Curso de Graduação intitulada VIVÊNCIADE RUA E ALCOOLIZAÇÃO: A PRODUÇÃO DE SENTIDO EM (EX)
MORADORES DE RUA do aluno Paulo André Sousa Teixeira, do Curso de
Psicologia da UFC, recomendo a sua inscrição para concorrer ao Prêmio Silvia Lane
que será concedido pela Associação Brasileira de Ensino de Psicologia – ABEP,
considerando a relevância do tema no campo da Psicologia Social e a qualidade do
estudo, que obteve a nota 9.3 pela banca examinadora, por ocasião da defesa pública da
monografia.
Fortaleza, 30 de março de 2007
Veriana de Fátima Rodrigues Colaço
Professora Doutora do Departamento de Psicologia da UFC
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INTRODUÇÃO
A temática da drogadição já é tida como antiga, tanto em termos de fenômeno
social como em relação ao estudo científico desse comportamento. Entretanto, estamos
longe de responder, em definitivo, as perguntas que assolam a sociedade moderna emrelação ao uso e, principalmente, o abuso de drogas1: “Por que o sujeito se vale dessas
substâncias?” (sejam elas lícitas ou ilícitas); “O que ele busca experimentar, fugir,
intensificar, conhecer... ao usá-las?”; “Quais os múltiplos sentidos subjacentes – desde
os compartilhados com uma determinada cultura aos produzidos de forma individual –
ao comportamento de uso/abuso de certas substâncias entorpecentes?”. Certamente
essas e outras questões estão longe do esgotamento. É nesse sentido que visamos,
através desta pesquisa, contribuir com avanço na discussão e problematização doscontextos diferenciados que indivíduos se valem no uso de drogas diversas.
Paripasso ao fenômeno do uso/abuso de drogas, temos uma realidade – que,
semelhante à drogadição, também não é nova – que é a dos moradores de rua. Prenhe de
variáveis e multicasual, homens, mulheres, crianças, jovens, adultos habitam as ruas e
fazem delas suas moradas. Mais comum – porém não exclusivo - nas grandes capitais, a
situação do morador de rua se confronta, diariamente, com o direito à moradia, à
dignidade, ao respeito e a tantos outros. Essas pessoas, por não gozarem de lugar fixo
para sua habitação, acabam também prescindindo de outros direitos sociais como
educação, saúde e lazer - para citar apenas os mais gritantes. A invisibilidade é a marca
desta população. Na trama social, são sempre pano de fundo de uma paisagem, como se
naturalmente fizessem parte do contexto. Mas não o são. “Vale ressaltar que o estudo
referente à temática moderadores de rua é bastante escasso, seja na construção de
trabalho acadêmico, pesquisa ou tese, seja na produção bibliográfica [...]”,
(ALCÂNTARA, 2004, p. 94) ou ainda:
Apesar de se tratar de uma população que crescediariamente na cidade de São Paulo, poucos trabalhosde Psicologia (até 2002) foram produzidos a respeito dotema (moradores de rua). Em outras áreas doconhecimento a situação não é muito diferente(SERRANO, 2004, p.15).
1 Definiremos, na seqüência, o que entendemos por uso e abuso de entorpecentes.
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Do encontro da rua com as drogas, o que podemos esperar? Seria também essa
uma aproximação lógica e fatalista, como as aproximações que alguns fazem em relação
à pobreza e à marginalidade? A rua e a droga permitem o deslocamento espacial – tanto
no sentido físico como “a viagem” do efeito de certos entorpecentes – fazendo com que
o sujeito transite livremente, mesmo em locais que lhe são, a todo momento,
interditados por sua condição socioeconômica e, principalmente, pela sua
impossibilidade de consumo. E quem será que vem primeiro? Para estar na rua, a droga
se faz necessária ou será a droga que leva o sujeito ao mundo incerto das calçadas e das
pontes?
Estudos recentes (CAMPOS; FERREIRA; MATTOS, 2004, p.1-2) apontam que
há relação, sim, entre os moradores de rua e o alcoolismo. Segundo os autores,
[...] o alcoolismo apresenta-se ora como um dosmotivos primordiais da rualização, ora como umaconseqüência do ingresso no mundo da rua. Outrasvezes, entretanto, surge, simultaneamente, comocondição e efeito da situação de rua.
Nesse sentido, é esperado que o álcool gere uma maior suscetibilidade a
enfermidades, dificuldades no engajamento laboral e outros problemas inerentes. Por
outro lado, o álcool também assume, por vezes, o caráter de “anestesia”, principalmenteem relação ao sofrimento cotidiano. Prescindir da alcoolização é, por vezes, entrar em
contato com uma realidade cruel, quase insuportável. Diante dessa dinâmica – como
causa, conseqüência ou os dois eventos simultâneos –, é muito provável que o aspecto
da dependência química enraíze ainda mais o sujeito na situação de rua,
impossibilitando, muitas vezes, sua saída. Campos e colaboradores ainda acrescentam:
[...] as propostas que respondem às necessidades de
trabalho e moradia são imprescindíveis para aconsecução da saída das ruas, o que a maioria das políticas públicas oferece. Porém, acreditamos quenecessariamente também haja a inclusão de medidasque atentem para a questão do alcoolismo, para que os programas voltados a essa população possam serefetivos (2004, p.2).
Pautado em uma realidade concreta de vivência com sujeitos que passaram pela
experiência de rualização, nosso interesse surgiu pela inserção, como estagiário, na
Fraternidade Toca de Assis. A referida instituição é uma comunidade religiosa,vinculada à Igreja Católica, que trabalha com o acolhimento e cuidado de moradores de
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rua. Os “irmãos de rua”, como os religiosos os chamam, são todos adultos e homens;
escolha esta que, segundo eles, se deve ao maior contingente encontrado nas ruas. O
nosso contato com a instituição se deu por intermédio de um estágio em Psicologia
Clínica, vinculado à Formação em Psicologia e Psicoterapia Fenomenológico-
Existencial com o Instituto Reluz, ONG criada para prestar atendimentos diversos à
Fraternidade.
Uma vez imerso nessa realidade, percebemos – religiosos, estagiários,
profissionais e seguindo a fala dos próprios abrigados – que a problemática das drogas,
com ênfase acentuada no álcool, permeava grande parte dos conflitos e falas que
circulavam na instituição. Fugindo de uma perspectiva higienista ou policialesca, na
qual iríamos em busca de uma causa para explicar, ou mesmo de ações para extirpar
esse tipo de comportamento, visamos uma abordagem que buscasse a compreensão das
multiplicidades de sentidos que estão presentes no fenômeno do abuso de álcool,
especificamente. A escolha do álcool nessa pesquisa se deu pela abrangência, facilidade
de acesso e recorrência na instituição. No entanto, não queremos dizer, com isso, que o
abuso de álcool aparece isoladamente. Segundo nossas observações e incursões gerais,
muito pelo contrário. Ao mesmo tempo em que não advogamos a favor da tese
determinista de que álcool é “necessariamente” a “porta de entrada” para drogas mais
“pesadas”. Pensamentos dessa natureza só corroboram com os simplismos e
estereótipos decorrentes deste.
Esse tipo de enfoque, no nosso entender, é qualitativamente mais apropriado por
alguns motivos: parte da realidade dos próprios sujeitos, conhecedores, por excelência,
de suas próprias motivações e de seus desejos; entende que a ação do abuso de álcool,
mesmo com sua conotação social tida como autodestrutiva, possui um significado e não
pode ser simplesmente extirpado; não descarta a possibilidade, a partir dos
conhecimentos produzidos e acumulados no transcorrer da evolução científica, de sefazer uma intervenção curativa e, sobretudo, preventiva.
Para tanto, valeremo-nos das contribuições das diversas áreas do conhecimento –
Psicologia, Sociologia, Medicina, entre outras – para aprofundar a compreensão das
reações fisiológicas, da evolução histórico-social, das repercussões subjetivas do
referido fenômeno. Optamos por trabalhar com a situação de abuso de álcool como um
objeto de estudo não problemático em si, num sentido pejorativo (apesar de não
negarmos que, em certos momentos, se torna realmente um problema, principalmente
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no âmbito da saúde pública2). Entretanto, Bucher (apud GOMES; RIGOTTO, 2002, p.
96) ainda aponta que “há consenso sobre o aumento acelerado do consumo em
decorrência do narcotráfico e da demanda por produtos psicotrópicos”. É quando o
álcool sai da esfera exclusiva do indivíduo e passa a interferir na família, na
comunidade, no trabalho – e, por sua vez, no sistema econômico – que ele se torna um
problema que traz consigo gastos vultosos para o Estado e, por conseqüência tributária,
para a sociedade. Como ainda afirma Silva (2000, p. 30) “ Não podemos ignorar que há
um custo gradativo no tratamento de doenças derivadas do uso de drogas: custo
hospitalar, desemprego, produtividade, prostituição e criminalidade”. Visto a
complexidade do fenômeno, nossa reflexão sobre ele também não pode reduzir-se a
uma explicação reducionista, seja de ordem biológica, social ou psicológica.
A esfera da saúde pública – visto a amplitude de disciplinas que a compõem –
nos oferece dados de grande relevância no sentido de compreender as repercussões da
alcoolização no Brasil nos últimos anos. Quando falamos de doenças da
contemporaneidade, os transtornos relacionados ao “abuso de substâncias aparecem
lado a lado com os transtornos alimentares e as compulsões por jogo, sexo e compras”
(MOREIRA, 2006, p. 3). Só no ano de 1999 foram realizadas 37.754 internações
hospitalares, número correspondente a 85% dos problemas decorrentes do uso de drogas
psicotrópicas em geral (CEBRID, 2000, apud CAMPOS et al, 2004, p.2). Ademais,
ainda para o referido ano, o coordenador do GREA (Grupo Interdisciplinar de Estudos
de Álcool e Drogas) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, em São Paulo,
Prof. Dr. Arthur Guerra de Andrade (apud CAMPOS et al, 2004, p. 2), afirmou, no
encontro “Álcool e suas Repercussões Médico-Sociais”,
[...] que o Brasil gasta 7,3% do Produto Interno Bruto(PIB), por ano, para tratar de problemas relacionados aoálcool - desde o tratamento do dependente, até a perdada produtividade por causa da bebida - como a indústriado álcool movimenta somente 3,5% do PIB.
2 “A prevalência do álcool é de 11,2% na população brasileira, e a maior taxa de dependentes está na população cuja faixa etária é a de 12 a 24 anos, sendo 17,1% da população masculina e 5,7% da população feminina” (CEBRID apud CAMPOS, 2004, p. 1380). Além do que “sabe-se que o início douso de drogas está ocorrendo com pessoas cada vez mais jovens e com substância de teor tóxico maiselevado” (GOMES; RIGOTTO, 2002, p. 96).
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Diante de dados estarrecedores como estes, é preocupante observarmos o trato
sócio-culturalmente legitimado, já que observamos que a problemática não está na pauta
de discussões de governos, políticas públicas, nem das articulações da sociedade civil.
Podemos, mesmo que superficialmente, pensar nas repercussões negativas que esta
problemática traz nos acidentes de trânsito, nos acidentes de trabalhos, na
desestruturação familiar, nos gastos com medicamentos e, em último caso, nos
volumosos investimentos em clínicas de reabilitação. A publicidade também deve entrar
como variável de análise, no sentindo de se constituir uma grande incentivadora do
aumento do consumo nos últimos anos3. Refletindo com os dados anteriormente
apresentados pelo coordenador do GREA, concluímos que, em termos sociais, o abuso
de álcool traz consequências indesejáveis ao bem-estar da população.
Remetendo-nos novamente à problemática da alcoolização ligada ao mundo das
ruas, é de fácil constatação a representação socialmente compartilhada da pessoa
alcoolizada em situação de rua ser apenas “um bêbado qualquer, um desinteressado, um
caído, um coitado...”. Tais imagens tendem a desresponsabilizar as autoridades
competentes, bem como a sociedade, diante da sua participação na produção (ou
omissão em combater) deste fenômeno. A culpabilização exclusiva do “bêbado”
apresenta-se como deslocada da realidade sócio-cultural, como se o comportamento não
fosse aprendido, permitido, ensinado e, em grande parte, incentivado. É um
reducionismo psicológico que deve ser, a todo custo, refutado.
Num contexto laboral altamente precário, a questão da falta de trabalho, das
condições desfavoráveis, da intensa flexibilização dos contratos, da falta de poder de
reivindicação por parte das classes trabalhadoras, são variáveis que também devem ser
levadas em consideração. A saída para as ruas não é um evento abrupto. Por vezes, vem
acompanhada do desemprego crônico, da dissolução dos laços familiares, do intenso
sentimento de culpa e vergonha e, por fim, de uma “fuga” da realidade vivenciada. Emrelação ao círculo familiar, estudos afirmam a intrínseca relação entre o alcoolismo e a
violência doméstica (NASSER; ESCOREL apud CAMPOS et al, 2004, p. 8), sendo esta
realidade um fator primordial de dissolução ou até mesmo de rompimento das relações
familiares.
Outros dados alarmantes ainda nos lançam para a problematização da relação do
álcool com as ruas. Segundo Rosa (apud CAMPOS, 2004, p.8), em relação à população
3 O consumo no Brasil aumentou 74.53% entre os anos de 1970 e 1996 (CARLINI-MARLATT apudCAMPOS et al, 2004, p.3).
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em situação de rua que faz abuso de álcool, “entre nove que fazem uso de bebida, oito
começaram a beber antes da chegada às ruas”, além de acrescentar que “os que estão
há pouco tempo na rua sentem a pressão exercida pela bebida; se não aderem, são
tratados como diferentes; é preciso falar a mesma linguagem, caso contrário sofrem
represálias” (ROSA apud CAMPOS et al, 2004, p.11). Diante destas indicações, não se
pode pensar um problema ou outro isoladamente ou desconsiderando o sistema
socioeconômico, isso pode ser fonte de superficialidades e/ou conclusões apressadas.
À guisa de um esquema para estas relações, Campos (et al) atesta:
Fica explícita a influência do álcool na ruptura com osambientes familiares; na manutenção de trabalhosintermitentes que favoreciam uma maior liberdade parao exercício de sua dependência química; por fim, emsituação de rua, todos rendimentos auferidos tinhamcomo destino a re-produção desse círculo vicioso que olevou a esta condição (2004, p.10).
Uma vez inseridos na cultura de rua, há também que se atentar para o caráter
socializador que o uso de álcool assume. Há uma criação em torno do ato beber, de uma
série de ritos, comportamentos socialmente aceitos (e recusados), entre estes os
estabelecimentos de horários, legitimação de compadrio e outras nuanças. Porém, como
afirma Mattos:
[...] ao lado da confraternização, o álcool também éelemento de discórdia, criando uma configuraçãocontraditória nas relações entre estas pessoas: surgecom um aspecto de solidariedade, mas gera a violência;ao lado da união, promove a desintegração dorelacionamento entre as pessoas, perpassando desde boas conversas e risadas até grandes discussões e brigasaté “fatais” (apud CAMPOS et al, 2004, p.11).
Vale ressaltar que o interesse desta pesquisa não é constatar nem refutar a
interdependência existente entre o álcool e a situação de rua. Para nós, e segundo os
estudos realizados, a ligação intrínseca é notória, porém não fatalista. Nosso interesse
diz respeito a compreender, a partir da história de vida destes sujeitos, como o álcool foi
sendo significado ao longo da vida destes usuários, quais os personagens relevantes,
quais os cenários marcantes, os sentimentos etc. Mais especificamente, seria então
investigar quais os sentidos que os ex-moradores de rua, da Fraternidade Toca de Assis,
construíram em relação ao abuso de álcool no transcorrer de suas histórias de vida.
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1) AS VEREDAS DA PESQUISA
Diante da complexidade das pesquisas que têm a subjetividade como enfoque,
optamos por uma pesquisa eminentemente qualitativa. Tal delimitação dá-se, entreoutros fatores, devido ao nosso objeto de estudo – a produção de sentido, a situação de
rua, o álcool e a construção da subjetividade – e à nossa concepção de que a pesquisa
qualitativa apresenta uma metodologia consoante com nossos propósitos de
investigação.
Circunscrevemos esta epistemologia de estudo também por corroborar com
González Rey (2002), quando este concebe a epistemologia qualitativa como:
Um esforço na busca de formas diferentes de produçãode conhecimento em psicologia que permitam a criaçãoteórica acerca da realidade plurideterminada,diferenciada, irregular, interativa histórica, querepresenta a subjetividade humana (p. 29).
Ademais, a ruptura com um modelo mecanicista, nos moldes do positivismo, foi
uma atitude metodológica frente às limitações que tal modelo apresentava.
Extrapolando os objetivos destes, temos que a:
Abordagem qualitativa no estudo da subjetividadevolta-se para a elucidação, o conhecimento doscomplexos processos que constituem a subjetividade enão tem como objetivos a predição, a descrição e ocontrole. Nenhuma dessas três dimensões, quehistoricamente estão na base da filosofia dominante na pesquisa psicológica, forma parte do ideal orientado pelo modelo qualitativo de ciência (Ibidem, p. 48).
Spink (2000), por sua vez, da mesma forma que González Rey, trata a perspectiva qualitativa não apenas como uma metodologia, mas uma epistemologia.
Nesse sentindo, a opção sai da esfera técnica e passa a coadunar com os objetivos da
investigação. Entendido então como epistemologia, dentro de uma perspectiva do
Construcionismo Social (ver capítulo sobre produção de subjetividades e sentidos), a
combinação de estratégias quantitativas e qualitativas deixa de ser uma querela,
superando também outras dicotomias, como realismo e idealismo ou indivíduo e
sociedade.
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1.1) A Produção de Sentido como método
Um conceito capital em nossa pesquisa será a noção de sentido. Na concepção
de Medrado e Spink “dar sentido ao mundo é uma força poderosa e inevitável na vida
em sociedade” (2000, p. 41). O sentido é sempre uma construção social e coletiva, quese dá por meio da interação e das relações, a partir das quais as pessoas compreendem e
atuam em seu cotidiano. Não entendemos o sentido como apenas uma produção intra-
individual, muito menos uma mera atividade cognitiva. Como prática social, ele é
sempre dialógico, visto o movimento dinâmico da linguagem.
Esta noção é cerne também do entendimento que o Construcionismo Social traz
acerca da apreensão da realidade, já que “é a compreensão de que os termos em que o
mundo é compreendido são artefatos sociais, produtos das trocas historicamentesituadas entre as pessoas” (GERGEN apud MENEGON e SPINK, 2000, p.76). Com
isso, essa perspectiva intenta a descrição dos fenômenos, na qual as pessoas explicam o
mundo, incluindo-se nele.
Dessa forma, tomamos por base a noção de “práticas discursivas”, já que a
linguagem encontra-se em movimento, constantemente. “Podemos definir, assim,
práticas discursivas como a linguagem em ação, isto é, as maneiras a partir das quais
as pessoas produzem sentidos e se posicionam em relações sociais cotidianas”(MEDRADO e SPINK, 2000, p. 45). A compreensão dos sentidos é sempre um
confronto de vários sentidos construídos, não uma produção isolada.
Tomaremos por base também as variações temporais que são próprias da
produção de sentido. Queremos dizer, com isso, que há vários “tempos”, a citar: um
longo, um curto e um vivido. O primeiro marca os conteúdos culturais e a história de
uma dada sociedade; o segundo diz respeito aos processos dialógicos, às interações
face-a-face; já o terceiro versa sobre as linguagens apreendidas a partir da socialização,
são as experiências da pessoa ao longo de sua história (MEDRADO e SPINK, 2000,
p.51).
Nossa compreensão só estará minimamente qualificada quando levar em conta
esses três tempos, articulando-os e considerando suas contradições inerentes. Nesse
instante, separações como indivíduo/sociedade, sujeito/objeto, bem como fora e dentro
do sujeito não fazem mais sentido. A perspectiva do Construcionismo Social, base
epistemológica na compreensão das práticas discursivas, no enfoque de Spink, supera
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ainda a dicotomia realismo/subjetivismo, representada no pensamento filosófico pelas
correntes empiristas e idealistas.
As tensões e paradoxos, ao invés de refutados na nossa investigação, fazem parte
do processo de pesquisa. A interpretação levou em conta o pesquisador e sua
subjetividade, assim como a noção histórica como variável que impulsiona
transformações. Ou, como enfatizam Medrado e Spink:
Por meio dessa abordagem, buscamos construir ummodo de observar os fenômenos sociais que tenha comofoco a tensão entre a universalidade e particularidade,entre o consenso e a diversidade, com vistas a produziruma ferramenta útil para transformações da ordemsocial. (2000, p. 61).
1.2) Lócus de Pesquisa
A pesquisa foi realizada na Fraternidade Toca de Assis4 (Casa Aliança São
José), localizada na Avenida João Pessoa, N. 5052, Bairro Damas, na cidade de
Fortaleza - CE. O local foi fundado em 2003. Quanto à sua estrutura física, conta com
dois andares, três banheiros, seis dormitórios, uma capela, um escritório, uma
enfermaria, dois salões, uma cozinha, um alpendre na parte superior, um jardim na parteinferior da casa e uma sala para atendimentos diversos (inclusive psicológico, feito
pelos membros do Instituto Reluz, mencionado na Introdução desta monografia). A casa
é bastante ampla e agradável.
A casa abriga cerca de 60 moradores de rua e conta com aproximadamente dez
membros da Fraternidade para prestar assistência aos “irmãos de rua”. A casa é
exclusivamente masculina, com exceção de uma cozinheira e de algumas consagradas
da comunidade
5
que realizam visitas com certa freqüência. A idade dos abrigados variados 18 aos 70 anos. Há uma heterogeneidade também quantos às características dos
abrigados: existem vários moradores com transtornos mentais, comprometimentos
físicos, dependência de álcool (não severa), entre outros. O lugar de origem também é
bastante variado: há pessoas que chegam desde o Norte do país até o extremo Sul, com
prevalência de pessoas de Fortaleza.
4 Para mais informações ver: http://www.tocadeassis.org.br/principal.html#tela025 Nomenclatura referente às religiosas mulheres que não moram na casa, mas a freqüentam.
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A Toca de Assis tem como principais atividades as tarefas domésticas e os
momentos de oração. Este segundo ponto é facultativo aos abrigados. São trabalhos na
cozinha, no jardim, arrumação geral da casa e coleta de lixo. Constantemente há algum
serviço de pedreiro ou bombeiro hidráulico a ser realizado, atividades estas que
mobilizam grande parte da casa. Já houve aulas de EJA (Educação de Jovens e
Adultos), ministradas por uma voluntária. Os trabalhos voluntários são constantes,
porém, há um problema com a falta de continuidade destes.
Entretanto, apesar deste leque de tarefas, algo que marca a instituição é a
ociosidade. Logo ao adentrarmos o espaço, nos deparamos com uma série de abrigados
deitados pelo chão, jogando baralho/dominó, ou, literalmente, “vendo o tempo passar”.
Esta é uma limitação que os membros da casa tentam sanar, mas que por causa das
limitações estruturais e de pessoal (e pelo próprio propósito da instituição) ainda há
muito que se fazer. O objetivo central da casa é o acolhimento, este entendido como
recolhimento e conforto espiritual. Há também atividades externas, as chamadas
“pastorais de rua”.
1.3) Sujeitos da Pesquisa
A amostra dessa pesquisa foi composta por três sujeitos abrigados na
Fraternidade Toca de Assis que residiam há mais de um ano na casa. A seleção dos
sujeitos da pesquisa foi feita por conveniência, ou seja, explicitamos os objetivos da
pesquisa para os consagrados da casa e membros do Instituto Reluz, e pedimos para que
estes nos indicassem possíveis candidatos para as entrevistas. O critério, além do tempo
de permanência na casa, foi o abuso de álcool (ver conceito de abuso no referencial
teórico que consta no segundo capítulo) no período da coleta de dados ou em período
recente, bem como a disponibilidade e aceitação dos indivíduos para a entrevista (vertermo de consentimento no apêndice).
Importante esclarecer a razão pela qual utilizamos a expressão (ex) moradores de
rua e não apenas moradores de rua. Os sujeitos da nossa pesquisa, como já adiantamos,
estão abrigados. No entanto, existe uma variação quanto ao modo como os sujeitos se
identificam. Alguns acham que a estadia na Toca de Assis é passageira, identificando-se
ainda como morador de rua. Outros, ao contrário, se vêem como ex-moradores de rua.
Como esta é uma questão delicada e não é objeto de nosso estudo, preferimos o uso dos parênteses para englobar as duas concepções, respeitando, contudo, esta diferenciação.
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1.4) Coleta de dados
Entendemos que o instrumento de coleta de dados, bem como toda a
metodologia, devem ser escolhidos a partir do próprio objeto de pesquisa. Ou seja, o
problema e os objetivos de pesquisa norteiam a escolha de um método e não o contrário.
Banister, nesse sentido, comenta que “nenhum modelo de prática ou análise pode ser
determinado de antemão, abstraindo-se o tópico e o contexto da investigação
particular ” (apud PINHEIRO, 2000, p.183).
Utilizamos a entrevista semi-estruturada como método de coleta de dados (ver
roteiro de entrevista no apêndice). Para o registro das entrevistas, usamos um gravador
para guardar a fidelidade das falas dos entrevistados. Relatar experiências relativas ao
abuso de álcool geralmente é uma narrativa emocionalmente carregada e, por isso,
escolhemos proceder à coleta de dados de forma individual.
A escolha da entrevista esteve situada na compreensão de que esta se apresenta
como uma abordagem relacional por excelência. Menegom e Spink continuam
explicando que
[...] a expressão e produção de práticas discursivas aí
situadas devem ser compreendidas também como frutodessa interação, ou seja, os integrantes, incluindo o pesquisador, são pessoas ativas no processo de produção de sentidos (2000, p.85).
Como nos situamos na seara das pesquisas qualitativas - ou seja, não temos
pretensão de generalizar nossos dados –, acreditamos que aprofundar as histórias de
vida6 de três sujeitos é suficiente para levantar dados relevantes para a compreensão do
fenômeno. O importante é o acompanhamento do movimento discursivo,
compreendendo que é nesse fluxo que o sentindo vai sendo tecido. “Práticasdiscursivas são diferentes maneiras em que as pessoas, através dos discursos,
ativamente produzem realidades psicológicas e sociais” (DAVIES E HARRÉ apud
PINHEIRO, 2000, p.186).
Ao abordamos a entrevista como prática discursiva estamos, sobretudo,
compreendendo-a como uma ação, uma inter-ação. A negociação é a marca deste tipo
de relação. Pinheiro aprofunda tal negociação explicando que
6 A história de vida a qual nos referimos não diz respeito a uma metodologia, mas as narrativas que ossujeitos faziam em relação às suas próprias histórias.
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Numa conversa o locutor posiciona-se e posiciona ooutro, ou seja, quando falamos, selecionamos o tom, asfiguras, os trechos de histórias, os personagens quecorrespondem ao posicionamento assumido diante de
outro que é posicionado por ele. As posições não sãoirrevogáveis, mas continuamente negociadas(PINHEIRO, 2000, p.186).
Antes das entrevistas propriamente ditas, tivemos um momento de apresentação
da proposta de pesquisa e um esclarecimento coletivo com os sujeitos que foram
indicados em meados de setembro. Foi um momento importante, principalmente porque
se deu em grupo, evitando possíveis fantasias quanto aos objetivos da pesquisa.
Explicamos exaustivamente os passos, as motivações e como a experiência de cada um
seria fundamental na compreensão das intercessões entre a realidade de rua e o álcool.
As entrevistas ocorreram no final de setembro e transcorreram de forma
tranqüila, sem grandes contratempos. Tivemos apenas que remarcar uma delas por conta
da indisposição de um dos entrevistados. Todas tiveram duração de, aproximadamente,
uma hora e aconteceram nas dependências da própria Fraternidade.
1.5) Análise dos dados
A partir dos dados colhidos através das entrevistas, realizamos o procedimento
de análise semiótica, segundo a qual “[...] o processo de interpretação é concebido,
aqui, como um processo de produção de sentidos. O sentido é, portanto, o meio e o fim
de nossa tarefa de pesquisa” (LIMA e SPINK, 2000, p. 105). Ou seja, não há separação
entre o momento da coleta de dados e o da interpretação destes. A interpretação, assim,
faz parte do processo de pesquisa, visto que a objetividade buscada perpassa o âmbito
da intersubjetividade. Dessa forma, reconhecemos a possibilidade de produção de novossentidos influenciados pelas discussões entre os sujeitos entrevistados.
Utilizado esse método, efetuamos uma leitura dos conteúdos, buscando captar os
sentidos para, só a partir daí, realizar uma classificação dos dados coletados, ou seja,
não buscaremos encaixar os dados em uma classificação existente a priori. Mesmo que
haja tematizações pré-existentes, advindas da escolha de um determinado referencial
teórico, estas não se propõem a servir de enquadre para os dados coletados, uma vez que
“há um confronto possível entre sentidos construídos no processo de pesquisa e de
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interpretação e aqueles decorrentes da familiarização prévia com nosso campo de
estudo (nossa revisão bibliográfica) e nossas teorias de base” (ibidem, p. 106).
Após o surgimento das categorias – a citar: construção da subjetividade do
morador de rua, a realidade da rua e o sentido do álcool -, trabalhamos com mapas de
associação de idéias. “Utilizamos categorias para organizar, classificar, e explicar o
mundo. Falamos por categorias” (MENEGOM e SPINK, 2000, p.78). Estes
correspondem a uma espécie de tabela em que os conteúdos são organizados de acordo
com as categorias, sem que se perca a ordem das falas, a fim de preservar o contexto no
qual surgiram.
O aprofundamento e a análise do material empírico serão temas do último
capítulo desta monografia. Na ocasião, faremos as devidas descrições, bem como as
problematizações e as relações com a teoria apresentada.
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2) A REALIDADE DOS MORADORES DE RUA E SUA
VIVÊNCIA COM O ÁLCOOL: CONCEITUANDO
Neste capítulo, temos por objetivo discorrer sobre os fenômenos do alcoolismo edos moradores de rua. Ambos possuem suas especificidades e, nem sempre, estão
atrelados um ao outro. É nesse sentindo que discorreremos sobre as repercussões do
álcool como substância, numa abordagem biopsicossocial. Na seqüência, trataremos do
fenômeno dos moradores de rua – tentando compreender sua antropologia, a partir da
dicotomia da experiência entre o público e o privado.
2.1) O álcool em uma perspectiva biopsicossocial
Historicamente, o tratamento dispensado às drogas, em geral, centrou atenção
particularizada como um fenômeno de base unicamente orgânica. Diante da limitação
de tal modelo biomédico, foi necessário compreender como fatores psicológicos,
culturais e sociais somariam esforços na compreensão de por que o homem faz uso de
certas substâncias entorpecentes, chegando, por vezes, a prejudicar seu próprio modo de
vida. Tais prejuízos foram aglomerados em torno das chamadas “teorias da adição”.
Nestas, segundo West (apud FORMIGONI; QUADROS, 2006, p. 31), “o indivíduo
apresenta prejuízos de saúde, psicológicos e sociais, e tem sua liberdade de escolha
violada”. É uma primeira forma, ainda abrangente, de abordar as repercussões negativas
do abuso de drogas.
Entretanto, não queremos cair em um outro extremo, que seria a recusa de uma
abordagem fisiológica. Vale ressaltar que a ação da droga no organismo funciona,
prioritariamente, por reforço positivo, visto seus efeitos estimulantes (WISE;
BOZARTH apud FORMIGONI; QUADROS, 2006, p.31). O reforço positivo é
responsável pelo sustento do hábito por conta de estados agradáveis – em geral, euforia
e prazer - ao organismo. Tais efeitos são cruciais no estabelecimento da dependência. A
dopamina é o principal neurotransmissor das vias de recompensa cerebral (mesolímbica
e mesocortical), atuando, primordialmente, no núcleo accumbens do cérebro. Eis o ciclo
do processo de recompensa. Outra característica que aumenta a influência orgânica da
droga é seu caráter difuso, ou seja, ela atua em diversas regiões do Sistema Nervoso
Central (SNC) (FORMIGONI; QUADROS, 2006, p. 32-33).
O estudo de drogas lícitas e ilícitas, por vezes generalizado, acoberta asespecificidades de cada substância. Cuidaremos, então, do álcool como produtor de
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reações psicofisiológicas específicas, bem como inserido em um código cultural
também peculiar. Em termos populacionais, os dados apontados por Julião e Niel (2006,
p. 135) nos chamam a atenção, uma vez que:
O alcoolismo figura entre os dez principais problemasde saúde pública no mundo, sendo a quarta doença maisincapacitante, de acordo com dados da OrganizaçãoMundial de Saúde. De acordo com dados do CEBRID(Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas) de2002, o álcool é a substância psicoativa mais utilizadano Brasil, e o seu uso durante a vida variou de 53% naregião norte a 71,7% na região sudeste. Com relação àdependência de álcool, a prevalência entre homens é detrês a quatro vezes maior que entre mulheres.
No tocante aos aspectos culturais, podemos observar que o álcool é uma droga
lícita e socialmente aceita, sendo o seu uso considerado aceitável e, por vezes,
estimulado. Ademais, vale ressaltar o fácil acesso e baixo custo, aliado à falta de
fiscalização quanto à proibição da venda para crianças e adolescentes.
Quando nos referimos ao álcool, fica implícito que nossa real intenção é abordar
os fenômenos decorrentes da exposição de sujeitos a essa substância. O álcool, em si, é
de fácil definição. Do ponto de vista da Química, o álcool consiste em “um composto
orgânico em que um átomo de H, de um alcano, é substituído por um grupo hidroxila,
OH ”7. Desta constatação, verificamos ainda que há uma subdivisão da substância álcool
em alguns subprodutos, entre os mais conhecidos temos o metanol e o etanol. Seus
principais usos são como reagentes químicos e na para produção de combustíveis
diversos.
Nosso interesse estará voltado para as reações do etanol. Este é obtido,
principalmente, a partir da fermentação dos açúcares de frutas, com destaque para a
cana-de-açúcar. O etanol é o álcool encontrado em bebidas, sendo sua concentraçãovariável de 4% a 50%. Esta concentração varia de acordo com a fermentação ou
destilação da bebida. Citamos como exemplo a cerveja e a cachaça, respectivamente.
Bebidas apenas fermentadas não apresentam um teor alcoólico muito elevado. Já as
destiladas, como cachaça e uísque, apresentam alto teor alcoólico. Como já havíamos
antecipado, nosso foco central não está na substância em si, mas nos efeitos que esta
produz no comportamento humano.
7 http://www.quiprocura.net/alcool.htm (acessado em 25/06/06)
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Quanto à sua Psicofisiologia, podemos afirmar que o álcool atua como agente
depressor no cérebro, na parte do sistema nervoso central (SNC). Quando este afeta o
SNC, há uma sensação de euforia por parte do indivíduo (geralmente atrelada ao
sentimento de desinibição); efeito que logo se atenua e torna-se depressivo quando o
efeito da droga sucumbe. Depois de ingerido, o álcool é absorvido pelas paredes
intestinais e vai se metabolizar no fígado (SILVA, 2000, p. 15).
Outro enfoque que podemos dar ao nosso estudo é sobre a evolução histórico-
antropológica do conceito de álcool. Segundo Bessa e Gigliotti (2004, p. 11),
O álcool é uma substância que acompanha ahumanidade desde seus primórdios e sempre ocupouum local privilegiado em todas as culturas, comoelemento fundamental nos rituais religiosos, fonte deágua não contaminada ou ainda presença constante nosmomentos de comemoração e de confraternização,quando se brinda a todos e a tudo. [...] Através dahistória, o álcool tem tido múltiplas funções, atuandocomo veículo de remédios, perfumes e poções mágicase, principalmente, sendo o componente essencial de bebidas que acompanham os ritos de alimentação dos povos. Faz parte do hábito diário de famílias em todo omundo, servindo de alimento e de laço de comunhãoentre as pessoas.
Silva ainda acrescenta:
Historicamente, o uso do álcool data de 8000 a.C.quando na idade paleolítica era extraído do mel.Somente nos anos 6400 a.C. é que a cerveja e o vinhocomeçaram a ser feitos. O abuso de álcool, contudo,tem acontecido desde o momento em que ele foiinventado. Em sociedades ocidentais atualmente estas bebidas são consumidas sem controle (2000, p. 15).
Nesse sentido histórico, o álcool ocupou significados diversos, desde integrante
de confraternizações familiares e selador de acordos entre governos até propulsor de
festas orgiásticas e bacanais. Diante dos comportamentos atuais, frutos de exposições
exageradas a essa substância, observamos que houve uma mudança considerável na
forma da sociedade lidar com ela. O mesmo vinho que outrora simbolizava a comunhão
agora divide espaço com a representação do consumo arbitrário desestruturador de
famílias. “Gradativamente, o que era pecado foi se tornando crime e, mais
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recentemente, doença” (MOREIRA; SILVERIA, 2006, p. 4). O que se observou então
foi, principalmente na sociedade ocidental, uma passagem do liberalismo exagerado
para uma interdição total, isso no que diz respeito às drogas ilícitas. A intolerância é um
aspecto em destaque.
Ainda no sentido histórico, quanto ao aspecto legal, o consumo de várias
substâncias psicoativas foi proibido no Ocidente – inclusive o álcool – mais
notadamente nos Estados Unidos, onde passou de 1919 a 1933 por um período de
ilegalidade8. Outrora tratados como fármacos, componentes de rituais religiosos e outras
conotações, as drogas, nesse período, assumiram novos valores sociais, culturais e
morais na sociedade. Segundo Escohotado (apud ARAÚJO; MOREIRA, 2006, p. 9),
são “as atitudes sociais que determinam quais as drogas são admissíveis e atribuem
qualidades éticas aos produtos químicos”. Paradoxalmente, a proibição nos EUA gera
também um aumento exacerbado no consumo. A repressão torna-se um estímulo. Ainda
segundo Silveira (apud ARAÚJO; MOREIRA, 2006, p. 12), este foi “o único momento
da história onde, em conseqüência da dificuldade de acesso a bebidas alcoólicas, foram
registrados casos de uso de álcool injetável”. Porém, o modelo europeu, diante do fato
da ineficácia das práticas proibitivas, resolveu adotar novas formas de abordar o
problema, incluindo a flexibilização no trato com a temática (MAIEROVITCH, apud
ARAÚJO; MOREIRA, 2006, p.14)
Acrescentamos ainda a apropriação econômica como fator que determina,
sobremaneira, certa droga como lícita ou ilícita. Por sua vez, tal escolha não é, como
muitos pensam, pautada em determinações científicos. Basta observamos que o uso do
cigarro de nicotina, consumido na mesma proporção ao de maconha, é muito mais
prejudicial à saúde do indivíduo. Para fugirmos da querela religiosa ou moral,
corroboramos com Araújo e Moreira (2006, p. 9) quando afirmam que:
Cabe ao entendimento histórico desmistificar os preconceitos, sejam estes de caráter repressivo oulibertário, por meio de uma análise cronológica ecomparativa capaz de abandonar conceitosmaniqueístas, em busca de subsídios que permitam aconstrução de uma nova consciência coletiva.
8 “Nos Estados Unidos, este ciclo (em relação ao período de intolerância ao uso de substâncias psicoativas) iniciou com a perseguição ao ópio em forma de fumo na Califórnia na década de 1870, passou pela campanha contra a cocaína e a primeira leia contra ela - o chamado Harrison Act , assinado
em 1914 – e culminou na aprovação de um dispositivo legal que proibia a venda, distribuição e consumode bebidas alcoólicas em todo território americano: o Volstead Act, mais conhecido como Lei Seca, quevigorou de 1919 a 1933”. (ARAÚJO; MOREIRA, 2006, p. 12)
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Segundo Bessa e Gigliotti (2004), o alcoolismo só começou a ser visto como
doença em meados do século XVIII, após a Revolução Industrial, diante do aumento da
produção e da comercialização do álcool. Estudiosos como Benjamim Rush e Thomas
Trotter começaram a pensar a exposição freqüente ao álcool como um problema que
merecia a atenção das autoridades e, principalmente, da medicina da época. Pensado
então como doença, o alcoolismo pode ser assim considerado quando o usuário
apresenta, basicamente, três características: tolerância, abstinência e perda de controle.
Entendemos o conceito de tolerância como
[...] a necessidade de doses cada vez maiores de álcool
para que exerça o mesmo efeito, ou diminuição doefeito do álcool com as doses anteriormente tomadas; e por síndrome de abstinência um quadro de desconfortofísico e/ou psíquico quando da diminuição ou suspensãodo consumo etílico (BESSA e GIGLIOTTI, 2004, p.12).
Outra diferenciação importante para o nosso estudo diz respeito às noções de
uso, abuso e dependência de álcool. O primeiro refere-se à exposição “moderada” às
substâncias que contenham etanol. Já o abuso consiste em “ padrões de uso patológico e
prejuízos nas funções sociais e ocupacionais relacionados ao uso, e para a categoria dedependência, além disso, exigia a presença de tolerância ou de abstinência” (BESSA e
GIGLIOTTI, 2004, p. 12). Anteriormente era utilizada a nomenclatura “vício”, que
passou a ser substituída por “dependência” pela conotação moralista da primeira
(SILVA, 2000, p. 13). “Um dos elementos essenciais na caracterização de uma
dependência é a perda de controle de consumo de uma substância” (MOREIRA;
SILVEIRA, 2006, p. 4). Entendemos também que a dependência não seja induzida pelo
uso agudo, mas sim pelo uso repetido do álcool (FORMIGONI; QUADROS, 2006, p.33). Vale ressaltar que estamos interessados no estudo do abuso, em detrimento ao uso
ou à dependência.
Apesar dessas acepções, para alguns autores, como Karam (2003), a definição
precisa do que viria a ser o alcoolismo ainda é algo distante. Ao analisar o CID-10
(Classificação Internacional de Doenças), o autor verifica que “apenas o delirium
tremens continua sendo a única forma clínica indiscutível de alcoolismo” (KARAM,
2003, p. 469). A Síndrome de Abstinência de Álcool (SAA) é ocasionada quando
pacientes de uso prolongado de álcool diminuem a ingestão ou param de beber.
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Os sinais e sintomas mais comuns são: tremores,taquicardia, hipertensão arterial, náuseas, vômito,ansiedade, agitação psicomotora e alteração do humor(irritabilidade e disforia). Podendo evoluir para umquadro de delirium tremens, cursando com confusãomental, alucinações, idéias deliróides e hipertemia.Convulsões tônico-clônicas generalizadas também podem ocorrer (DI PIETRO, 2006, p. 148).
Teremos também que fazer uma distinção conceitual entre alcoolismo e
alcoolização. O primeiro se refere ao comportamento de abuso de álcool, já o segundo
diz respeito ao ato de alcoolizar algo ou alguém; no nosso entender, aproxima-se do
conceito que já apresentamos de uso de álcool.
Diante de todos esses conceitos provenientes, em suma, de um referencial
biomédico de processo de saúde-doença, é importante atentarmos que a tradição no
estudo do alcoolismo é biologizante, reduzindo ao organismo e às suas reações
fisiológicas todas as explicações sobre aquele (CAMPOS et al, 2004).
Ao contrário de um trato que privilegie a compreensão do processo de
alcoolização como causa-conseqüência, entendemos que uma intervenção mais
apropriada se dá na compreensão da relação que o sujeito estabelece com a substância.
Ou seja, não é o álcool em si que provoca alterações comportamentais indesejáveis9,muito menos o sujeito, que tem distúrbios perturbadores. É do encontro que poderá
surgir algum tipo de descompasso. Para Moreira e Silveira (2006, p. 4), o padrão de
consumo decorre da interação de vários fatores, entre eles: o tipo de droga utilizada, as
características biológicas e psicológicas do usuário (cabe destacar que a dependência
também é compreendida a partir destes dois enfoques) e o contexto em que se dá o uso
de drogas (característica por demais negligenciada). Ou, nas palavras de Claude
Olivenstein (apud LESCHER; LOUREIRO, 2006, p. 22), de que “o fenômeno seorganiza a partir de uma tríplice conjunção de fatores: a subjetividade do indivíduo, as
características farmacológicas do produto e contexto sociocultural desse encontro”. A
conotação relacional pode ser melhor compreendida a partir de dados estatísticos que
9 Vale ressaltar que as propagandas contra substâncias entorpecentes, no geral, enfatizam a idéia de que oálcool, em si, pode provocar algum tipo de comportamento. Há um descompasso gritante entre a realidademidiática apresentada (supostamente generalizada) e o contexto vivenciado no cotidiano. Moreira eSilveira ainda acrescentam: “A exposição destas questões nos meios de comunicação, habitualmente, geraintensa mobilização popular. Mobilização sem orientação gera desespero, e a população fica desorientada
diante de tantas informações. Atitudes extremas, originadas do medo, só fazem piorar a situação, minandofatores protetores como a qualidade da comunicação entre pais e filhos e o vínculo com instituições comoescola, aumentando o risco para o abuso de substâncias” (2006, p.4).
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mostram que menos de 10% dos usuários de álcool e maconha vão se tornar
dependentes (MOREIRA; SILVEIRA, 2006, p. 6).
Silva (2000) aborda o desenvolvimento do alcoolismo através de fases. Na
primeira, denominada pré-alcoólica ou fase social, os sintomas ainda estão latentes. Em
seguida, temos a fase de tolerância (ver definição supracitada), com doses acentuadas, o
indivíduo chega ao terceiro momento, a chamada fase da necessidade. É neste período
que a droga serve como “cura” para a ansiedade, a depressão e o tédio.
Numa acepção genética, pesquisas apontam que filhos de pais alcoólatras,
quando adotados por pais não alcoólatras, terminam bebendo ou com qualquer tipo de
dependência química (GOODWIN apud SILVA, 2000, p. 19). Entretanto, não podemos,
a partir destes dados, inferir argumentos pseudocientíficos que “condenam” filhos de
alcoólatras a se submeterem ao mesmo tipo de comportamento. “ Assim como para
outras doenças psiquiátricas, a variância genética para o comportamento pode explicar
no máximo metade da variância fenotípica, sendo a outra metade atribuída aos fatores
ambientais” (FORMIGONI; QUADROS, 2006, p. 35).
2.2) Morador de rua: a problemática do público e do privado
Após as devidas contextualizações quanto aos aspectos biopsicossociais do
uso/abuso de álcool, nos deteremos em problematizar a realidade dos moradores de rua.
Segundo Justo e Nascimento (2000, p.3), “Em nossa pesquisa sobre o fenômeno da
errância na sociedade contemporânea, constatamos, preliminarmente, que o uso do
álcool é bastante acentuado entre os ‘trecheiros10’".
Partiremos das relações entre o público e o privado no cenário da sociedade11
brasileira (discutiremos como entram em choque na realidade dos moradores de rua)
para pensarmos tal questão. Os mitos, ritos, significados, sentidos, afetos, impressõessobre o espaço domiciliar contrastados com os do espaço público produzem ricas
compreensões. Principalmente quando observamos que as contradições afetivas e
comportamentais presentes entre a casa e a rua são experenciadas, por vezes, por um
mesmo sujeito. DaMatta (1997, p. 19) acrescenta:
10 Nomenclatura atribuída aos moradores de rua que enfatiza o seu caráter transeunte.11 Corroboramos com a idéia de DaMatta quando o autor afirma: “A idéia de sociedade que norteia estelivro [ensaio], portanto, não é aquela da sociedade como um conjunto de indivíduos, como tudo mais
sendo um mero epifenômeno ou ocorrência secundária de seus interesses, ações e motivações. Aocontrário, a sociedade aqui é uma entidade entendida de modo globalizado. Uma realidade que forma umsistema. Um sistema que tem suas próprias leis e normas” (1997, p. 13)
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Conforme vai surgir repetidamente em todos os ensaiosque formam este livro, é possível ‘ler’ o Brasil de um ponto de vista da casa, da rua e do ângulo do outromundo. E mais: essas possibilidades estão
institucionalizadas entre nós. Não se trata de uma meravariação empírica, dessas que ocorrem na Inglaterra,Espanha ou Pasárgada [...]. Leituras pelo ângulo da casaressaltam a pessoa. São discursos arrematadores de processos ou situações.
Neste trabalho, discorreremos sobre as representações vigentes da rua como
espaço público; e da casa como espaço privado; das inversões existentes e, sobretudo,
das sobreposições, ou seja, quando a casa e a rua coincidem. Tal coincidência pode ser
observada na situação dos moradores de rua. Estes sujeitos habitam, em sua maioria, asruas das grandes capitais brasileiras. Chamamos de ruas as pontes, praças, calçadas,
entradas de igrejas e todos os outros locais onde observamos a habitação dessas pessoas.
DaMatta, na mesma obra, explicita os meandros da casa em oposição ao espaço
da rua. Entretanto, em nenhum momento, atenta para quando estes mundos – no âmbito
físico e simbólico – coincidem. Esta reflexão proporá exatamente esta investigação.
Deter-nos-emos em três momentos, a citar: a) quando casa e rua são espaços
completamente distintos; b) quando a casa e a rua “confundem” seus papéis, ou seja, naocorrência de inversões simbólicas pontuais; e c) quando a casa e a rua se fundem
concretamente, situação que analisaremos a partir da vivência dos moradores de rua. “O
segredo de uma interpretação correta do Brasil jaz na possibilidade de estudar aquilo
que está ‘entre’ as coisas” (DAMATTA, 1997, p. 25).
2.2.1) A casa e a rua: “cada qual no seu canto”
Esta acepção, na qual o espaço domiciliar e o espaço público são tidos como
diametralmente opostos, talvez seja a mais corriqueira, até porque é a mais presente no
senso-comum. Neste sentido, a casa é o oposto à rua. O que é dito, feito e até pensado
em casa não se repete na rua e vice-versa. A noção de papéis sociais cabe bem para
entendermos tal significação, já que os roteiros estão previamente escritos, cabendo aos
atores apenas sua “interpretação”. Nesse sentindo, está previamente determinado o que
deve/pode ser dito e feito dentro de casa e o que pode ser desempenhado (fazendo
alusão à nomenclatura teatral) no espaço da rua.
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a festa (do carnaval) promove precisamente osdeslocamentos destas atividades dos seus, digamos,“espaços normais”. Isso, então, permite a sensação de umtempo louco, notavelmente lento ou, como ocorre com onosso carnaval13, uma temporalidade acelerada, vibrantee invertida (DAMATTA, 1997, p.41 e 42, grifo nosso).
2.2.2) Invertendo os papéis: quando casa e rua se “confundem”
Entre os extremos de entendermos a rua como espaço simbólico diametralmente
diferente da casa e de entendermos a sua sobreposição, temos ainda a ocorrência de
situações nas quais pequenas permutas ocorrem, confundindo, temporariamente, o que é
próprio da rua em casa e vice-versa.
No geral, quando estas trocas ocorrem, alguns conflitos podem ser deflagrados.
Em nossos tempos, essas limitações estão cada vez mais tênues. O trabalho realizado
em casa é um exemplo categórico. Diante da crescente demanda por trabalhos via
internet, perde-se a razão de ter um local de trabalho. A casa, nestes termos, assume a
dupla função de lar e de espaço de trabalho. A flexibilização temporal é apontada, com
positividade, como uma grande característica deste tipo de relação laboral. Entretanto,
não há uma demarcação de tempo também para os afazeres domésticos, o lazer e, acima
de tudo, para o ócio. A inversão temporal, não só espacial, marca esse tipo de relação.Podemos compreender também o nepotismo como uma das manifestações em
que os “códigos da casa” (agora em termos essencialmente simbólicos) são levados para
o espaço público. É cultura da família a preferência pelos seus. O critério é basicamente,
além do vínculo sanguíneo, o afeto peculiar despendido para um determinado membro
(agregados e pessoas próximas da família também entram neste critério). O problema –
e o encaramos com tal – é quando esse tipo de relação extrapola o espaço doméstico e
passa a gerir uma determinada parte da esfera pública. Ao invés do mérito, domerecimento, do esforço e do reconhecimento, mede-se, promove-se ou demite-se pelo
discernimento se há parentesco com alguém que detenha poder na instituição.
Retornando a problemática da casa como espaço físico, podemos afirmar
também que a casa possui espaços com significações semelhantes às da rua. São as
13 DaMatta cita o carnaval como uma produção cultural na qual essas inversões de tempo, espaços, papéis sociais, entre outros, apresentam grande visibilidade. Para maior aprofundamento, ver obra do
autor sobre o tema: DaMatta, Roberto. Carnavais, malandros e heróis - Para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
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varandas, amplas janelas para o exterior, salas de visita, quintais, jardins... Espaços
esses que ora assemelham-se ao espaço da rua – ocorrência de festas, mudança na
linguagem, menos zelo – e ora são readmitidos à dinâmica doméstica. “ Mas, assim
como a rua tem espaços de moradia e/ou de ocupação, a casa também tem seus espaços
‘arruados’” (DAMATTA, 1997, p.56). Não observamos, na obra do antropólogo, o
desenvolvimento da noção que o espaço público e o privado se encontram intimamente
imbricados. Faremos tal discussão no tópico a seguir.
2.2.3) A casa e a rua se fundem: a experiência dos moradores de rua.
A miscigenação, a pluralidade cultural, o sincretismo religioso, a enorme
extensão territorial, as contradições sócio-políticas entre norte e sul do país; todas essas
variáveis nos indicam que qualquer tentativa de explicação da sociedade brasileira
pautada em homogeneidades estará fadada ao fracasso. Muito além das polaridades (do
“isso ou aquilo”), nossa sociedade é baseada, sobretudo, nas coincidências (no caso, “o
isso e aquilo”).
O candomblé é a expressão da união entre a umbanda e o catolicismo, a capoeira
nasceu de um jogo-luta, a feijoada foi concebida a partir da “mistura dos restos” da casa
do senhor de engenho, o caboclo nasce do encontro entre brancos e índios e o morador
de rua como a figura representativa da fusão entre espaço público e privado. É claro que
tal fusão, muito mais que uma produção eminentemente cultural, tem suas
determinações econômicas. Muitos dos moradores de rua (a maioria) desgarraram-se de
suas famílias por conta do desemprego, de conflitos intrafamiliares e, sobretudo, por
conta da dependência química, em especial o álcool (SERRANO, 2004).
Essas características – que permitem o encontro de variáveis aparentemente
diferentes - extrapolam ainda nas produções dos símbolos culturais. Os espaços etempos também se fundem e confundem, gerando novas possibilidades de socialização.
É assim que observamos nas arquiteturas (arranha-céus dividem espaços com
construções da época do barroco) e, com ênfase acentuada, nas práticas e nos discursos
políticos. Os coronelismos e currais eleitorais coexistem com discursos tidos como
“progressistas”, como a participação popular e o controle do aparelho público.
Retomando a aparente dicotomia entre a casa e a rua, é notório que a situação do
morador de rua inverte a noção de um espaço público e um outro privado. Estes seconfundem de tal forma que fica difícil estabelecer qualquer delimitação. A dificuldade
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de compreensão está no âmbito de quem está fora, observando, mas, sobretudo, do
ponto de vista de quem vivencia a situação de rua. Como falar em privacidade, limites
(físicos ou simbólicos) em espaços como esses? Como pensar a higiene, o lugar de
dormir, de comer, de estar e de sair, se todos já estão “fora”?
Além do espaço, o tempo é outra categoria fundamental para entendimento dessa
imbricação. A rua possui uma lei própria, dotada de códigos de sobrevivência claros e
rígidos. Assim, a noite não é só um tempo de descanso, mas também o momento de se
proteger, “um olho no gato e o outro no peixe” (SERRANO, 2004, p.30). Por isso,
observamos, com tanta freqüência, pessoas que dormem em plena luz do dia. Há uma
inversão temporal. A noite representa, além do momento de autoproteção, o instante de
receber ajuda (os conhecidos “sopões”), de trabalhar (no caso dos catadores de lixo) e,
quiçá, de cometer algum tipo de delito.
Um outro tipo de paradoxo que consideramos bastante fértil diz respeito ao
caráter de transitoriedade em contraponto ao significado da rua como espaço de morada
fixa. Talvez esta seja a maior contradição, tanto em termos de representação como de
fato, quando pensamos o que significa uma pessoa habitar um logradouro qualquer.
Como já apontamos alhures, o que é próprio da passagem e do itinerante torna-se, na
situação do morador de rua, algo permanente. Entretanto, essa permanência alterna-se
ainda com a mobilidade, criando uma situação complexa, na qual tipos de pensamentos
polares não dão conta de explicar o fenômeno.
Além de transitório ou permanente, DaMatta trata dos sentidos vinculados aos
espaços públicos também como eternos ou provisórios. “ Mas nossos espaços nem
sempre são marcados pela eternidade. Há também espaços transitórios e problemáticos
que recebem um tratamento muito diferente” (DAMATTA, 1997, p. 45). A igreja, o
paço municipal, as praças históricas - entre outras peças arquitetônicas que compõem os
cenários das grandes cidades - são entendidas a partir de “representações eternas”, ouseja, há um caráter histórico que os legitimam como peças fundamentais de certo centro
urbano. Daí decorrem os movimentos de revitalização, preservação, tombamento e as
demais ações que visam conservar a “matriz sócio-cultural” de uma determinada urbe.
Esta noção também é questionada a partir da instalação dos moradores de rua. Há uma
“provisoriezação14 do eterno”. Aquilo que outrora era de uma esfera quase sagrada
agora foi “banalizada”, tornou-se provisório.
14 Considerar o neologismo para fins metodológicos.
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Em termos das conseqüências dessas diversas sobreposições entre o espaço da
casa e o espaço da rua, consideramos que a principal é a invisibilidade – uma vez que
não temos claro se alguém está transitando ou morando – e, por conseqüência, a
restrição da cidadania. Entendemos o conceito de cidadania muito além de uma mera
efetivação dos direitos políticos e sociais e o cumprimento das normas jurídico-sociais.
A cidadania, no nosso entender, deve estar pautada também na possibilidade de
expressão e participação, deslocando a noção da passividade do sujeito para a
necessidade de sua ação (PINHEIRO, 2006).
Os moradores de rua, em geral, além de não serem contemplados pelo poder
público e pela sociedade com benefícios básicos (como alimentação, saúde, educação e
própria moradia) também não se reconhecem como detentores dessas benesses. Vale
observar a inexistência de organizações de classe e outras formas de mobilização. Não
estamos afirmando que a descrença na exeqüibilidade dos direitos sociais é própria
dessa camada da população. Estamos afirmando, sim, que tal realidade se agrava, por
questões culturais, educacionais e de outras ordens.
Se quisermos aprofundar a temática da rua como espaço socialmente construído
de exclusão social, basta nos reportarmos aos vários provérbios e expressões populares
que denotam bem tal conotação15. “Quem quer se perder se cria asas” induz pensarmos
na rua como lugar de perdição, como se “criar asas”, ou seja, sair de casa fosse
indicativo de atos moralmente condenáveis. “Vá para o olho da rua” aponta o espaço
extrafamiliar como sendo do castigo e do menosprezo, uma espécie de “inferno na
terra”. A rua assume o lugar do tenebroso, que oferece perigo. Já o dito “estou na rua da
amargura” é expressivo para demonstrar o caráter pejorativo que a rua assume em certos
contextos.
Ao contrário, a casa é percebida, também a partir de determinados provérbios,
como lugar do acolhimento, da segurança e do conforto. Basta lembrar como nosreferimos quando nos sentimentos bem em certo lugar: “estou me sentindo em casa”; ou
quando atrelamos ao espaço laboral uma conotação positiva: “este trabalho é minha
segunda casa”. Desta forma, questionamo-nos como os moradores de rua se situam
nesse emaranhado de sentidos, uma vez que são extirpados de referências imediatas de
domicílio. Cabe destacar o imediato, visto que a inexistência de um lugar de morada
não retira deles a representação de lar, muito menos a apropriação de certos códigos
15 Fonte: http://www.deproverbio.com/DPbooks/VELLASCO/COLETANEA.html. (Acessado em19/11/2006).
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semióticos; no sentindo de que o fato de não possuírem uma residência não os furta de
uma representação de domicílio.
Podemos ainda falar da apropriação da casa e da rua em termos afetivos. A casa
pode ser distinguida como lugar da calmaria, do repouso, da recuperação, da
hospitalidade, do carinho e de todos esses adjetivos que circunscrevem a casa como
lugar onde as pessoas, no geral, gostam de estar. A rua é o diametralmente oposto. Ela
é, sobretudo, o lugar do perigo, principalmente na contemporaneidade em que a
violência se tornou pauta permanente dos veículos de comunicação. Por ser um espaço
prioritariamente de trânsito, poucos se preocupam em fazer da rua um lugar aprazível,
como se vê no âmbito doméstico.
Tudo isso revela gritantemente como o espaço público é perigoso e como tudo que o representa é, em princípio,negativo porque tem um ponto de vista autoritário,impositivo, falho, fundado no descaso e na linguagemda lei que, igualando, subordina e explora. O pontocrítico da identidade social no Brasil é, sem dúvida, oisolamento (e a individualização), quando não hánenhuma possibilidade de definir alguém socialmente por meio de sua relação com alguma coisa (seja pessoa,instituição ou até mesmo objeto ou atividade). Nada pior do que não saber responder à tremenda pergunta:
‘Afinal de contas, de quem se trata?’ (DAMATTA,1997, p. 59).
O antropólogo conclui um pensamento já apontando outro de igual
relevância. Paripasso à conotação de invisibilidade dos moradores de rua,
observamos ainda a significativa situação de anonimato em que essas pessoas se
encontram. São sujeitos que, do ponto de vista da identidade, nem são reconhecidos
– seja como cidadãos ou até mesmo como pessoa – pela sociedade que os cerca.
Esse grau de anonimato chega a tal ponto que muitos não possuem sequer carteirade identidade ou outro documento identificatório (SERRANO, 2004). Em estágios
mais acentuados (que não são tão incomuns) esse anonimato pode levar aos quadros
de transtornos mentais severos ou outros tipos de debilidades.
2.3) Algumas palavras sobre o morador de rua
Antes de referenciarmos o que estamos concebendo por “morador de rua”, faz-semister localizarmos este fenômeno socialmente. Tal situação, na qual a privação ao
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direito social à habitação - vide Constituição Federal, Art. 5º (BRASIL, 1996) - é o
grande marco, não é exclusiva de países subdesenvolvidos. Cidades com grande
acúmulo de capital – como Tóquio, Los Angeles e Paris16 - também enfrentam sérios
problemas em relação aos bolsões de pobreza e, por conseguinte, a falta de moradia
adequada para suas populações.
A situação de extrema desigualdade social – abismo socioeconômico na divisão
de renda – gera, por sua vez, uma grave situação de exclusão social. Exclusão esta que
perpassa diversos níveis, desde a impossibilidade de acesso a uma variedade de espaços
(que, em nosso tempo, estão cada vez mais privatizados), até a não efetivação dos
direitos sociais básicos.
Apesar de limitada, a bibliografia especializada cita alguns termos comumente
utilizados para descrever essa população. São os mendigos, trecheiros, moradores de
rua, homens de rua, povo da rua ou população em situação de rua. Cada nomenclatura
implica algum enfoque em detrimento de outra ênfase. Por exemplo, “população em
situação de rua” enfatiza conotação de transitoriedade destas pessoas em relação à rua,
evitando, assim, uma naturalização e atentando para a-historidade deste processo. Já “o
mendigo” enfatiza o caráter de pedinte, alguém que mendiga (MATTOS apud
SERRANO, 2004, p. 23). Para os efeitos deste ensaio, estaremos nos referindo neste
estudo ao morador de rua, não nos interessando o caráter de mendicância em si. O que o
caracterizará, para nós, é a vivência de morar na rua, independente do período ou do
local específico.
É nessa configuração social que surge a pessoa do morador de rua. Extirpado, a
princípio, do seu direito à habitação (mas não só!), ele “perambula” por ruas e vielas
interessado na sua sobrevivência imediata. Além disso, a invisibilidade é outro aspecto
marcante dessa camada da população. Em geral, esses apenas são percebidos quando
cometem algum tipo de delito, atrapalham o trânsito ou exalam algum odor que chama aatenção. Ou seja, a percepção é sempre norteada pelo negativo, pelo que falta. Até
órgãos oficiais, como o IBGE, não contabilizam nem possuem dados precisos sobre a
população que vive nesta situação.
Segundo estudos pontuais, como o da professora Maria Cecília Loschiavo dos
Santos, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, chama a atenção o crescente
número de famílias que vivem na rua. Ademais, cerca de 86% da população é do sexo
16 Informação colhida em matéria do Jornal da USP. Acessado em 06/07/2006.http://www.usp.br/jorusp/arquivo/2004/jusp700/pag0405.htm
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masculino. Entretanto, apesar de prevalecer um perfil masculino, há uma participação
de sujeitos desde a infância até a terceira idade morando nas ruas, independente do sexo.
(ALCÂNTARA apud SANTOS, 2004, p.35). Ainda sobre o perfil desta camada
populacional:
Pesquisas sobre a situação dos moradores de rua dacidade de Chicago, por exemplo, revelam que mais de70% dos moradores de rua tinham algum transtornomental identificado, sendo que 16% apresentavam problema com álcool e 12% com drogas. Estudos sobrea morbidade entre essa população mostram que 25%dos homens que vivem em abrigos são esquizofrênicose 36% preenchem critérios para o abuso de substâncias,sendo que nesta amostra observou-se que 40%
apresentavam dano cognitivo (ibid., p.36).
De acordo com pesquisa realizada pela CNBB em 1994 (apud ALCÂNTARA,
2004), existem vários motivos que podem levar uma pessoa a “escolher” a rua como sua
morada. As razões variam desde migrantes que vinham em busca de emprego e se
defrontam com a miséria das grandes capitais, até pessoas que foram expulsas de sua
moradia pela carestia dos aluguéis, doentes mentais que perderam suas referências,
crianças e adolescentes que fogem da violência doméstica, desemprego estrutural, entre
outras.
São, em geral, excluídos de múltiplas formas: porquesão pobres, porque não têm saúde, porque inspirammedo, porque ‘enfeiam’ a cidade, porque sua moral éconsiderada ‘duvidosa’... Freqüentemente há quem sequeixe porque estão ‘ocupando um lugar público’, mas,na verdade, seu espaço é lugar nenhum. Por isso sofremviolência policial, frio etc.; quando morrem sãoenterrados como indigentes (CNBB apud
ALCÂNTARA, 2004, p. 37).
A realidade dos moradores de rua já é marcada, em si, pela penúria e o descaso –
seja das autoridades competentes, familiares ou da sociedade como um todo. Além da
vivência concreta dessas pessoas, temos ainda uma série de representações pejorativas
que legitimam e, por vezes, impedem reflexões e proposições de alternativas para esta
população. O olhar dirigido aos moradores de rua mescla a “pena” (aquele sentimento
judaico-cristão que pelo simples fato de haver comoção já se está supostamente
implicado com uma dada realidade e, por isso, não é necessário ir além), o nojo (o mal-
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cheiro), o medo (o risco de assalto), o asco, a intolerância, o julgamento (“Como pode
um homem tão novo vagabundando no meio da rua?”) e tantos outros. O que há de
comum nesses sentimentos é a indiferença, a dessensibilização com outro que, por
motivos diversos, está numa situação de extrema vulnerabilidade social.
Estudos feitos por Mattos e Ferreira (2004) explicitam as representações sociais
que mais comumente circulam em relação aos moradores de rua, quais sejam:
“vagabundo, preguiçoso, bêbado, sujo, perigoso, coitado, mendigo” (p.2). Do ponto de
vista da identidade, o autor aborda o quanto essas representações pejorativas
influenciam negativamente o próprio movimento existencial dos moradores de rua.
Muitos destes atributos estão pautados numa concepção individualista, que
compreende que a “culpa” pela realidade da rua é exclusiva do sujeito. A
“culpabilização” é uma alternativa coerente com o nosso modo de produção capitalista,
que credita ao indivíduo todas as responsabilidades por seu possível sucesso ou
fracasso. Qualquer situação de dificuldade é “culpa” exclusiva da pessoa, já que ela tem
“todas as condições” de garantir seu progresso. A realidade é entendida, nesta
perspectiva, como pano de fundo, e não como condição de possibilidade (ou
impossibilidade) para o desdobramento de novas conjunturas.
O “psicologismo”, aliado à “culpabilização”, são instrumentos eficazes no
sentido da responsabilização unívoca do sujeito. A procura de nuanças da personalidade
que o tornam “desestruturado”, o estudo dos conteúdos inconscientes e outras investidas
“psicológicas” são no intuito de descobrir, no sujeito, as causas de seu desajuste e, por
sua vez, da sua condição de rua. As noções de normalidade e desvio são comuns neste
tipo de abordagem. Vemos este tipo de pensamento no estudo de Merton (apud JUSTO;
NASCIMENTO, 2000, p.4), no qual o autor afirma que compreende a:
[...] vida errante como uma estrutura social anômica.[...] a associalização decorre da falta de capacidade dosujeito para competir na sociedade em função derepetidos fracassos no mundo social. Snyder (1954)compreende o alcoolismo como uma conduta desviantee, nesse sentido, nos dizeres do autor, os alcoolistas são pessoas anômicas – desorganizadas, vazias,angustiadas, compulsivamente independentes e quedesconhecem toda autoridade.
Estruturando melhor as representações com maior recorrência, Mattos e Ferreira
(2004) nos apresentam algumas delas. O morador de rua, então, é visto,
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prioritariamente, como vagabundo, ainda no sentindo da “culpabilização individual” por
aquela situação; como louco, pautado no senso comum e em uma histórica intervenção
psiquiátrica, sobretudo no período da criação dos grandes manicômios17; como pessoa
suja e maltrapilha, o discurso higienista é a tônica deste tipo de representação; como
pessoa perigosa, nesta acepção os códigos jurídicos deveriam manter o morador de rua
afastado, já que são, a priori, pessoas perigosas e, por fim, baseado no discurso
religioso, temos o morador de rua como “coitado”, digno de misericórdia. Nesta última
representação, é como se os moradores de rua estivessem pagando por seus pecados,
sendo então uma espécie de “estado de regeneração da alma”.
Fica evidente que em todas essas representações o caráter de mudança ou
questionamento não está presente. O que se tem são imagens que tentam dar sentindo à
realidade justificando-as e, por vezes, legitimando-as. Além da imobilidade social
causada por estas representações, temos ainda a repercussão nos próprios moradores de
rua, uma vez que tais pressupostos são compartilhados. A interiorização dessas vozes
impede mudanças, dificultando percepções e atitudes diferentes.
Por outro lado, a realidade pregressa dos moradores de rua é bastante reveladora
das motivações para a saída de suas casas, bem como para o abuso do álcool. Muitas
destas evidências serão melhor trabalhadas no tópico em que analisaremos as histórias
de vida pesquisadas. Justo e Nascimento mostram que “o desemprego, a falta de apoio
familiar e as desavenças conjugais são os principais motivos que levam os sujeitos a
romperem com a vida sedentária” (2000, p.4). Vemos então presentes na compreensão
do fenômeno uma variável estrutural e uma familiar, refutando o psicologismo de
outrora. Os autores ainda complementam:
O fenômeno da errância parece estar associado a umcomplexo de fatores que modelam o mundocontemporâneo. A globalização, a flexibilização dotrabalho, a informatização e automação da produção, asubstituição da sociedade industrial pela de serviços, avirtualização da realidade, a dispersão, oindividualismo, a aceleração do tempo e a expansão doespaço têm exercido um papel considerável nadesterritorialização do sujeito e na sua impulsão para onomadismo (ibidem, 2000, p.11).
17 Para maior aprofundamento sobre os manicômios e o contexto higienista que ver: FOUCAULT, M.História da Loucura na Idade Clássica, São Paulo: Perspectiva, 1978.
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Estas pesquisas tendem a enfatizar o abuso de álcool como uma “fuga da
realidade”, um mecanismo de defesa às adversidades vividas. Entretanto, encaramos tal
perspectiva legitimando uma visão de sujeito passivo, como se o abuso de álcool não
fosse, também, uma forma possível de enfretamento de suas questões existenciais. Nem
defendemos uma explicação causualista – em que os fatores “negativos” explicam o
nomadismo – nem visões de homem que prezam pela vitimização e/ou leitura deslocada
da realidade concreta.
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3) A LINGUAGEM EM AÇÃO: O MOVIMENTO DA
PALAVRA SIGNIFICADA NA CONSTRUÇÃO DA
SUBJETIVIDADE
3.1) A construção da subjetividade humana
Em nosso estudo, uma das categorias capitais para a compreensão do
comportamento de alcoolismo e da situação de rua é a subjetividade18. Isto porque quem
faz uso do álcool é um sujeito concreto - situado em uma realidade com igual
concretude – com uma vivência impregnada de sentidos e significados complexos.
Durante muito tempo a idéia de sujeito estava ligada à noção cartesiana, ou seja,de ordem, integilibilidade e consciência. O sujeito que se postulava era o sujeito
racional, próprio de algumas correntes filosóficas da modernidade.
A idéia de um sujeito da razão, capaz de dominar omundo e a si mesmo na produção de verdadesuniversais, constituiu uma representação que searraigou fortemente na cultura ocidental, mediandodiferentes modelos de ciência, política, educação, assim
como a produção do senso comum. (GONZÁLEZ REY,2003, p.221).
A postulação de várias correntes psicológicas foi influenciada, direta ou
indiretamente, por essa noção do sujeito da razão. Daí o princípio da dicotomia
sujeito/objeto, já que um suposto sujeito cognoscente, dotado de razão, poderá ordenar o
mundo a partir do seu cogito.
A idéia de universalidade, base para essa noção de sujeito, permite a formulação
de idéias que são tomadas como verdades, uma vez que derivaram do método ditocientífico. Para González Rey (2003), estas são erigidas como dogmas e apenas outras
idéias, dentro do mesmo sistema, podem refutá-la. A divisão estática do mundo em
“bom e mau” também é uma das decorrências desse sistema. Tudo que não advém do
sujeito da razão é descartado.
18
Apesar de González Rey (2003) fazer uma distinção entre subjetividade individual e subjetividadesocial, não entraremos nesta discussão. Uma vez que sendo, a subjetividade construída socialmente, nelase insere as dimensões do singular e do social.
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