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Você gostaria de saber como será sua saúde daqui alguns anos? veja.abril.com.br/blog/letra-de-medico/voce-gostaria-de-saber-como-sera-sua-saude-daqui-alguns-anos Saúde A genética preditiva está chegando e logo cada pessoa poderá descobrir quais são os riscos de saúde aos quais podem estar sujeitas no futuro Por Salmo Raskin A genética tem transformado a medicina de curativa em preventiva. (iStockphoto/Getty Images) Predizer o futuro sempre esteve na imaginação do ser humano, com um misto de fascinação e medo. Mas precognição, premonição, profecia, são termos que nunca foram bem aceitos pela Ciência. A Ciência sabe de longa data que é mais fácil prevenir do que remediar. Mas como prevenir-se de algo que não sabemos se vai acontecer? Nos últimos 20 anos, com os avanços vindos do conhecimento do Genoma Humano, a Genética tem transformado a Medicina de curativa em preventiva. A capacidade de predizer as chances de que uma pessoa tem risco elevado de ter certas doenças veio primeiro em relação a doenças mais raras, como a Doença de Huntington, um raro distúrbio hereditário que altera a capacidade de controlar os movimentos do corpo, 1/5

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Você gostaria de saber como será sua saúde daquialguns anos?

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Saúde

A genética preditiva está chegando e logo cada pessoapoderá descobrir quais são os riscos de saúde aos quaispodem estar sujeitas no futuroPor Salmo Raskin

A genética tem transformado a medicina de curativa em preventiva. (iStockphoto/GettyImages)

Predizer o futuro sempre esteve na imaginação do ser humano, com um misto defascinação e medo. Mas precognição, premonição, profecia, são termos que nunca forambem aceitos pela Ciência. A Ciência sabe de longa data que é mais fácil prevenir do queremediar. Mas como prevenir-se de algo que não sabemos se vai acontecer?

Nos últimos 20 anos, com os avanços vindos do conhecimento do Genoma Humano, aGenética tem transformado a Medicina de curativa em preventiva. A capacidade depredizer as chances de que uma pessoa tem risco elevado de ter certas doenças veioprimeiro em relação a doenças mais raras, como a Doença de Huntington, um rarodistúrbio hereditário que altera a capacidade de controlar os movimentos do corpo,

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seguido de demência. De forma surpreendente e até hoje não bem compreendida, pessoasque tem esta alteração genética em todas as suas células nove meses antes de nascer,vão manifestar sintomas, em geral, só na quarta ou quinta década de vida.

Outra condição rara, a Doença Renal Policística do Adulto, tem um comportamentosemelhante; o surgimento de vários cistos nos rins pode se manifestar tardiamente,levando muitas vezes a falência dos rins e a necessidade de diálises e transplantes renaisentre a sexta e a oitava décadas de vida.

Apesar de que há mais de 20 anos estão disponíveis testes genéticos para determinar seuma pessoa saudável carrega uma forma alterada dos genes que levam a estas doenças,para nenhuma delas existe tratamento que comprovadamente possa postergar oaparecimento dos sinais ou até impedir que as doenças se desenvolvam. Mesmo com estagrande limitação, parentes de pessoas com estas e outras doenças genéticas muitasvezes querem saber se carregam a forma normal ou a forma alterada destes genes. Asrazões para esta curiosidade podem variar desde o interesse em planejar de forma maisrealista a vida, definir se vão ter filhos ou não, até a utilização de técnicas de reproduçãoassistida para evitar a transmissão destas mutações para futuras gerações.

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A genética já pode prever o risco de uma pessoa vir a ter certos tiposde câncer quando há histórico familial

O risco de desenvolver certos tipos de câncer tem uma relação muito forte com o fato de apessoa ter herdado uma alteração genética de seus ancestrais. O exemplo maisconhecido é a predisposição hereditária ao câncer de mama e ovário, que estimuloumilhões de pessoas, entre elas a atriz Angelina Jolie, a fazer um teste genético para saberquais eram seus riscos. Nestes casos, ter uma mutação pode significar um risco cerca de6 a 7 vezes maior do que a população geral de vir a manifestar um câncer, e levando emconta o fato de que o risco de qualquer mulher desenvolver câncer da mama se viver até asétima ou oitava década de vida é de cerca de 10%, 6-7 vezes mais se transforma em umnúmero que impressiona e preocupa muito.

Mesmo nestas situações de alto risco, por motivos que a Medicina ainda desconhece,cerca de 30% a 40% das pessoas que carregam uma mutação nestes genes podempassar uma vida toda sem desenvolver o câncer de Mama ou de ovário, protegidas poralgum fator genético ou ambiental. E este fato se soma a outros que tornam a decisão defazer ou não tais testes genéticos preditivos uma tarefa não tão simples.

Que atitudes tomar frente a um resultado demonstrando uma predisposição hereditária aocâncer? Tomar atitudes preventivas simples, mas que reduzem pouco o risco, ou atitudesmais radicais que reduzem muito o risco? Seria adequado tomar uma atitude simples, não-invasiva, se o risco de ter o câncer é grande? Seria adequado tomar uma atitude radical senem é garantido que um dia vá ter o câncer? Mas aqui cabe chamar a atenção de que jáexistem várias alternativas para reduzir o risco de vir a ter estes cânceres ou diagnosticá-los precocemente com o que a Medicina já dispõe. Ao contrário, no grupo de doenças quese encontram a Doença de Huntington e a Doença Renal Policística do Adulto, não há, porenquanto, alternativas terapêuticas que possam beneficiar aqueles que tenham certeza

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que estão em elevado risco, pelo teste genético realizado.

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Testes preditivos em pessoas sem histórico familial

Todas as situações acima descritas se referem a pessoas que tem familiares com estasdoenças, e por isto, com diferentes intensidades, se preocupam em vir a ter a mesmadoença dos parentes. Porém, com o brutal avanço na capacidade de analisar o DNA demaneira mais eficiente, rápida e menos cara, nos últimos anos uma nova modalidade deTeste Genético Preditivo vem sendo cada vez mais cogitada. Com a possibilidade deanalisar o código genético para tentar obter informações preditivas sobre a saúde depessoas que sequer tenham conhecimento de parentes afetados por alguma doença comcomponente genético.

Nos últimos quatro meses, estas promessas do Projeto Genoma Humano, que até entãoainda eram ficção científica, começaram a decolar em direção a uma realidade próxima.Em maio de 2018, em artigo publicado na revista Nature Review Genetics, pesquisadoresnorte americanos do “The Scripps Research Institute” demonstraram que já são capazesde, ao investigar variantes em um conjunto de genes de uma pessoa, predizer através deum escore genético, quem está em risco maior ou menor de desenvolver doenças muitofrequentes e graves, como Diabetes mellitus tipo 2, Alzheimer, câncer de Mama ede próstata, assim como de doença arterial coronariana.

Estes testes já chegam ao ponto de poder predizer com razoável segurança a idade naqual a pessoa vai iniciar a demonstrar sinais da doença, os benefícios que modificações noestilo de vida podem proporcionar a quem tem estes riscos genéticos, e o impacto decuidados médicos baseados nestes testes, além de demonstrar quais intervenções erastreamentos são prioritárias. Em um outro artigo científico publicado há poucos dias(agosto de 2018), na Nature Genetics, pesquisadores do Broad Institute do MIT e Harvard,Massachusetts General Hospital e Harvard Medical School, ampliaram o mesmo tipo deanálise para incluir testes genéticos poligênicos não só para diabetes, câncer de mama edoença arterial coronariana, mas também arritmias cardíacas e doença inflamatóriaintestinal.

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Doença coronariana

Os pesquisadores analisaram milhões de variantes no DNA de 40 mil indivíduos do UKBiobank, uma enorme base de dados com informações médicas e genéticas de pessoasde origem britânica. Para se ter uma ideia do potencial destes escores, no que se refere adoença arterial coronariana, os pesquisadores demonstraram que 8% das pessoasanalisadas tinham mais de três vezes o risco de desenvolver a doença do que qualqueroutra pessoa do banco, e que só 0.8% dos indivíduos que foram classificados como baixorisco tinham doença arterial coronariana, comparado com 11% dos indivíduos que o testegenético demonstrou alto risco.

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Outro dado importante é que estes indivíduos cujo teste genético apontou alto risco, nuncatinham apresentado nenhum outro sinal de risco para doença coronariana, comohipertensão arterial ou colesterol elevado. São pessoas que sem o teste genético,nunca saberiam estar em risco de ter doença arterial coronariana, mesmo que fossemregularmente as consultas médicas. O teste pode ser aplicado muitos anos antes de umapessoa em alto risco ter as consequências de lesões ateroscleróticas.

Leucemia

Em julho de 2018, dois artigos publicados na prestigiosa revista Nature mostraram que épossível através de um exame de sangue, analisando meia dúzia de genes, em especialos genes TP53, IDH1 e IDH2, predizer o risco de uma pessoa ter uma forma rara deLeucemia, a Leucemia Mielóide Aguda, quase uma década antes do aparecimento dossinais da doença. A incidência deste tipo de leucemia aumenta com a idade e amortalidade é superior a 90% quando diagnosticada depois dos 65 anos de idade. Amaioria dos casos aparece sem nenhum sintoma detectado previamente e a doençageralmente já se manifesta de uma forma grave com falência da medula óssea.

Estes dois estudos mostraram que é possível detectar quem está em risco de ter este tipode câncer, ainda em estágio pré-maligno. Os próximos passos são melhorar o teste paraque ele seja mais sensível e mais específico, e, claro, tentar desenvolver estratégias paraque detectado o alto risco de câncer, este possa ser prevenido.

Veja também

Antecipando o futuro

Aproxima-se velozmente o dia em que com um exame genético vamos poder anteciparnosso futuro de saúde e doença. Por um lado estes novos exames vão num futuro próximopermitir o diagnóstico mais precoce de doenças, e reduzir drasticamente os investimentosem saúde estratificando e apontando quem está em maior e em menor risco dedesenvolvê-las, permitindo melhores estratégias de investimento em saúde pública,fazendo com que possamos viver mais e melhor, prevenindo mais, remediando menos.

Por outro lado, a chegada destas novas ferramentas preditivas trará novos dilemas éticos:quais grupos poderiam e quais deveriam ser testados? Com quais objetivos? Quem teráacesso a estas tecnologias? Trará esta nova modalidade de testes genéticosestigmatização e preconceito aos que tiverem elevado risco genético? Serão estes testesutilizados para fins menos nobres, como por exemplo estratificar entre aqueles com maiorpotencial de inteligência daqueles com menos? As pessoas e a sociedade em geral estãopreparadas para compreender que “risco elevado” não é sinônimo de “vai ter a doença” eque “risco baixo” não é sinônimo de “não vai ter a doença”? Será que a informação de queum indivíduo tem um alto risco genético para desenvolver diabetes ou doença arterialcoronariana será realmente um forte impulso para que ele adote estilo de vida maissaudável?

Do ponto de vista científico, será que os riscos estimados para a população de europeus eseus descendentes terão o mesmo valor para outras populações? Será que os paísesmenos desenvolvidos alocarão recursos para produzir suas próprias bases de dados

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genéticos de suas populações? Será que a população vai compreender a diferença entretestes preditivos com embasamento científico como os acima apresentados nos recentesartigos publicados nas melhores revistas científicas internacionais, em comparação comtestes sem embasamento científico, como os já comercialmente oferecidos paradeterminar a “dieta ideal”, o “atleta ideal”, entre outros?

Para que estes testes preditivos possam finalmente se tornar ferramentas úteis na práticamédica, ainda há necessidade de se avançar um pouco mais na compreensão docomponente genético das doenças mais comuns, pois apesar dos avanços colossais,apenas uma parte do risco genético destas doenças já pode ser explicado. A tecnologia jános permite analisar centenas de pontos do material genético em um único exame desangue, porém a análise simultânea de ~80 pontos do genoma explicam só ~20% docomponente genético da Doença Arterial Coronariana, ~100 pontos explicam ~20% dagenética do diabetes tipo 2, ~150 pontos explicam ~20% do componente genético docâncer de mama, ~100 pontos explicam ~33% do componente genético para câncer dePróstata e ~20 pontos genéticos explicam ~30% do componente genético da doença deAlzheimer.

Além disto, estes dados precisam ser validados em outras populações, como por exemplo,a brasileira. Mas de um fato não há mais dúvida: estes avanços, em especial os ocorridosnos últimos quatro meses, não tem mais retorno. Em muito breve esses testes terãoutilidade clínica e farão uma revolução na vida das pessoas que a eles tiverem acesso. Acomplexidade do contexto desses testes, não só as questões técnicas mas também suasimplicações médicas, éticas, legais e sociais, deixam claro a crescente importância e aresponsabilidade do geneticista, e como o Aconselhamento Genético se tornará parte cadavez mais integrante e imprescindível da rotina de cuidados de saúde.

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