VOLTA AO COMEÇO: DEMARCAÇÃO EMANCIPATÓRIA DE … · - Conferência Mundial dos Povos Indígenas...

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1 VOLTA AO COMEÇO: DEMARCAÇÃO EMANCIPATÓRIA DE TERRAS INDÍGENAS NO BRASIL Lino João de Oliveira Neves Orientador: Boaventura de Sousa Santos Coimbra, Agosto de 2012

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    VOLTA AO COMEO:

    DEMARCAO EMANCIPATRIA

    DE TERRAS INDGENAS NO BRASIL

    Lino Joo de Oliveira Neves

    Orientador: Boaventura de Sousa Santos

    Coimbra, Agosto de 2012

  • 2

    Esta Tese e todas as lembranas boas que a sua escrita me proporcionou

    so para

    meus amigos-irmos Z Bonotto (Silvio Jos Gasperini Bonotto), Xar (Ezequias Paulo Heringer Filho)

    e Ricardo Pereira Parente;

    para meu pai Lino de Oliveira Neves Filho e para minha me Hilda da Silva Pestana Neves

    meus mortos amados que, na minha saudade,

    como no dizer de Mia Couto, nunca mais param de morrer.

  • 3

    SIGLAS E REFERNCIAS

    Abril Indgena - Mobilizaes indgenas de mbito nacional realizadas

    anualmente no ms de abril

    Acampamento Rio

    +20

    - Acampamento Terra Livre Bom Viver/Vida Plena

    Acampamento

    Terra Livre

    - Acampamentos indgenas promovidos no mbito do Abril

    Indgena

    ACGTT - Associao do Conselho Geral da Tribo Ticuna, posteiormente

    denominada Federao das Organizaes e dos Caciques e

    Comunidades Indgenas da Tribo Ticuna

    AGU - Advocacia Geral da Unio

    AI - rea Indgena

    AIBRN - Associao Indgena do Baixo Rio Negro

    AM - Estado do Amazonas

    Amaznia Legal - Amaznia Legal brasileira

    Basa - Banco da Amaznia S. A.

    BEC - Batalho de Engenharia e Construo

    BM - Banco Mundial

    BN - Biblioteca Nacional

    BIA - Bureau of Indian Affairs, Escritrio de Assuntos Indgenas

    Calha Norte - Projeto Calha Norte

    Carta Magna - Constituio da Repblica Federativa do Brasil, Constituio

    Federal

    Carta da Terra - Carta da Terra dos Povos Indgenas

    CCJ - Comisso de Constituio e Justia do Senado Federal

    Cedi - Centro Ecumnico de Documentao e Informao

    CEEI - Conselho Estadual de Educao Indgena

    Centro Magta - Centro de Pesquisa e Documentao do Alto Solimes

    CES, CES-FEUC,

    CES/UC

    - Centro de Estudos Sociais, da Faculdade de Economia da

    Universidade de Coimbra

    CGTT - Conselho Geral da Tribo Ticuna

    Cimi - Conselho Indigenista Missionrio

    CIR - Conselho Indgena de Roraima

  • 4

    Civaja - Conselho Indgena do Vale do Javari

    CMS - Conselho Municipai de Sade

    CNBB - Conferncia Nacional dos Bispos do Brasil

    CNS - Conselho Nacional dos Seringueiros

    CNUMAD - Conferncia das Naes Unidas sobre o Meio Ambiente e

    Desenvolvimento, Rio-92; Eco-92

    Coiab - Coordenao das Organizaes Indgenas da Amaznia

    Brasileira

    Comin - Conselho de Misso entre ndios

    Comisso Pr-

    ndio; Pr-ndio

    - Organizao No Governamental de apoio ao ndio

    Conferncia dos

    Povos Indgenas,

    Rio-92

    - Conferncia Mundial dos Povos Indgenas sobre Territrio,

    Meio Ambiente e Desenvolvimento

    Conferncia de

    Estocolmo

    - Conferncia das Naes Unidas sobre Meio Ambiente Humano

    Conferncia

    Indgena

    - Conferncia dos Povos e Organizaes Indgenas do Brasil

    Constituio,

    Constituio de

    1988

    - Constituio da Repblica Federativa do Brasil, Constituio

    Federal de 1988

    Conveno 169 da

    OIT

    - Conveno 169 sobre Povos Indgenas e Tribais em Pases

    Independentes, da Organizao Internacional do Trabalho

    Copiam - Comisso dos Professores Indgenas da Amaznia

    CPI-SP - Comisso Pr-ndio So Paulo

    CPT - Comisso Pastoral da Terra

    CRI - Cartrio de Registro Imobilirio

    CSN - Conselho de Segurana Nacional

    CTI - Centro de Trabalho Indigenista

    Cpula dos Povos - Cpula dos Povos por Justia Social e Ambiental Contra a

    Mercantilizao da Vida, em Defesa dos Bens Comuns

    DAF/FUNAI - Diretoria de Assuntos Fundirios, da Fundao Nacional do

    ndio

  • 5

    DAN/Ufam - Departamento de Antropologia, da Universidade Federal do

    Amazonas

    DCiS/Ufam - Departamento de Cincias Sociais, da Universidade Federal do

    Amazonas

    Declarao da

    ONU sobre povos

    indgenas

    - Declarao sobre os Direitos dos Povos Indgenas, da

    Organizao das Naes Unidas

    DH - Decreto de Homologao

    DNPM - Departamento Nacional de Produo Mineral

    DOU - Dirio Oficial da Unio

    Dsei - Distrito Sanitrio Especial Indgena

    Eco-92 - Conferncia das Naes Unidas sobre o Meio Ambiente e

    Desenvolvimento; Rio-92

    Edua - Editora da Universidade Federal do Amazonas; antes Editora da

    Universidade do Amazonas

    FDDI - Frum de Debate dos Direitos Indgenas

    Fepi - Fundao Estadual de Poltica Indigenista

    FEUC - Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra

    FN - Fora Nacional

    Foccitt - Federao das Organizaes e dos Caciques e Comunidades

    Indgenas da Tribo Ticuna, inicialmente denominada

    Associao do Conselho Geral da Tribo Ticuna

    Foirn - Federao das Organizaes Indgenas do Rio Negro

    Funai - Fundao Nacional do ndio

    Funasa - Fundao Nacional de Sade

    G7 - Grupo dos 7

    GPS - Global Positioning System; Sistema de Posicionamento Global

    Greenpeace - Organizao No Governamental ambientalista

    GT - Grupo Tcnico

    GTZ - Deutsche Gesellschaft fr Technische Zusammenarbett

    IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica

    Incra - Instituto Nacional de Reforma Agrria

    ISA - Instituto Socioambiental

  • 6

    Jocum - Jovens com uma Misso

    Marcha Indgena - Marcha Indgena 2000

    MEC - Ministrio da Educao e Cultura

    MF - Ministrio da Fazenda

    MI - Museu do ndio, da Fundao Nacional do ndio

    MJ - Ministrio da Justia

    MMA - Ministrio do Meio Ambiente

    Museu Nacional,

    MN

    - Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro

    Movimento Brasil

    Outros 500

    - Movimento Brasil: 500 Anos de Resistncia Indgena, Negra e

    Popular Brasil Outros 500

    MPF - Ministrio Pblico Federal

    MS - Ministrio da Sade

    MST - Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra

    OIBI - Organizao Indgena da Bacia do Iana

    OIT - Organizao Internacional do Trabalho

    ONG - Organizao No Governamental

    ONU - Organizao das Naes Unidas

    Opan - Operao Amaznia Nativa; anteriormente, Operao Anchieta

    Oscip - Organizao da Sociedade Civil de Interesse Pblico

    OTCA - Organizao do Tratado de Cooperao Amaznica

    PAC - Programa de Acelerao do Desenvolvimento

    PD - Portaria Declaratria de posse indgena

    PD - Portaria Demarcatria

    PDPI - Programa Demonstrativo dos Povos Indgenas

    PEC - Proposta de Emenda Constituio

    Peti - Projeto Estudo sobre Terras Indgenas no Brasil

    PF - Polcia Federal

    PIN - Plano de Integrao Nacional

    PM - Polcia Militar

    Povos da Floresta - Aliana dos Povos da Floresta

    PP -Procuradoria Pblica

    PPG7 - Programa Piloto de Proteo das Florestas Tropicais Brasileiras

  • 7

    PPM - Po para o Mundo

    PPTAL,

    PPTAL/Funai

    - Projeto Integrado de Proteo s Populaes Indgenas da

    Amaznia Legal

    Probor - Programa de Incentivo Produo de Borracha Vegetal

    Programa Waimiri-

    Atroari

    - Programa de Apoio aos ndios Waimiri-Atroari

    PT - Partido dos Trabalhadores

    RE - Reservas Extrativistas

    Rio +20 - Conferncia das Naes Unidas para o Desenvolvimento

    Sustentvel

    Rio-92 - Conferncia das Naes Unidas sobre o Meio Ambiente e

    Desenvolvimento; Eco-92

    Secadi - Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao, Diversidade

    e Incluso

    Seduc, Seduc/AM - Secretaria do Estado de Educao e Cultura

    Sesai - Secretaria Especial de Sade Indgena

    Seind, Seind/AM - Secretaria do Estado para os Povos Indgenas

    SPI - Servio de Proteo ao ndio

    SPU, SPU/MF - Secretaria de Patrimnio da Unio do Ministrio da Fazenda

    STF - Supremo Tribunal Federal

    STR - Sindicato dos Trabalhadores Rurais

    Sudam - Superintendncia de Desenvolvimento da Amaznia

    Sudhevea - Superintendncia do Desenvolvimento da Borracha

    Taboca - Empresa de Minerao Taboca

    TI, T.I. - Terra Indgena

    Ticunio - Unio Ticuna

    UA - Universidade do Amazonas

    UC - Universidade de Coimbra

    Ufam - Universidade Federal do Amazonas

    UFPR - Universidade Federal do Paran

    UFSC - Universidade Federal de Santa Catarina

    UHE - Usina Hidreltrica

    UHE Balbina - Usina Hidreltrica de Balbina

  • 8

    UNI - Unio das Naes Indgenas

    UNI-Acre - Unio das Naes Indgenas do Acre e do Sul do Amazonas

    Unicamp - Universidade Estadual de Campinas

    Unind - Unio das Naes Indgenas

    UFRJ - Universidade Federal do Rio de Janeiro

    Univaja - Unio dos Povos Indgenas do Vale do Javari

    WTK - Grupo empresarial Datuk Wong Tuong Kwong

  • 9

    MAPAS E QUADROS CAPTULO 1

    MAPA 1 AMAZNIA INTERNACIONAL E AMAZNIA BRASILEIRA 49

    MAPA 2 AMAZNIA LEGAL BRASILEIRA 50

    QUADRO 1 MOMENTOS DA OCUPAO ECONMICA DA

    AMAZNIA

    59

    QUADRO 2 EXPROPRIAO DAS TERRAS INDGENAS NA

    AMAZNIA

    62

    QUADRO 3 ASSASSINATO DE NDIOS NO BRASIL 2011 63

    QUADRO 4 ASSASSINATO DE NDIOS NO BRASIL 2003 2011 64

    QUADRO 5 POVOS INDGENAS EXTINTOS NO BRASIL, POR

    REGIO

    69

    QUADRO 6 POVOS INDGENAS EXTINTOS, REGIO NORTE 70

    QUADRO 7 POPULAO RESIDENTE INDGENA, SEGUNDO AS

    GRANDES REGIES - 1991/2010

    73

    QUADRO 8 POPULAO AUTODECLARADA INDGENA NO PAS,

    SEGUNDO AS UNIDADES DA FEDERAO 2010

    73

    QUADRO 9 MUNICPIOS COM MAIOR POPULAO INDGENA,

    BRASIL 2000/2010

    74

    QUADRO 10 PARTICIPAO RELATIVA DA POPULAO

    INDGENA, NO TOTAL DA POPULAO DO ESTADO E

    NO TOTAL DA POPULAO INDGENA NO PAS 2010

    76

    QUADRO 11 TERRAS INDGENAS NO BRASIL MARO/2000

    DEZEMBRO/2007

    87

    QUADRO 12 TERRAS INDGENAS NO BRASIL 2011 88

    QUADRO 13 TERRAS INDGENAS NO BRASIL MARO/2000

    DEZEMBRO/2007 FEVEREIRO/2011

    89

    QUADRO 14 SITUAO GERAL DAS TERRAS INDGENAS

    FEVEREIRO/2011

    89

    QUADRO 15 OCUPAO FUNDIRIA EM RAPOSA DO SOL, NDIOS

    E NO-NDIOS

    96

    QUADRO 16 DENSIDADE POPULACIONAL NA TERRA INDGENA

    RAPOSA SERRA DO SOL

    98

  • 10

    QUADRO 17 EXTENSO DAS OCUPAES INDGENAS E DAS

    INVASES

    98

    CAPTULO 3

    QUADRO 18 PRINCIPAIS DROGAS DO SERTO 253

    QUADRO 19 UNIVERSO SERINGALISTA 265

    CAPTULO 8

    QUADRO 20 CONCEPES DE TERRA INDGENA 536

    CAPTULO 9

    QUADRO 21 CRONOLOGIA DA AUTO-DEMARCAO KULINA 581

    QUADRO 22 CRONOLOGIA DA 1 FASE DA AUTO-DEMARCAO

    KULINA

    584

    QUADRO 23 CRONOLOGIA DA 2 FASE DA AUTO-DEMARCAO

    KULINA

    591

    QUADRO 24 CRONOLOGIA DA DEMARCAO DA TERRA

    INDGENA MAWETEK

    609

    QUADRO 25 CRONOLOGIA DA DEMARCAO DA TERRA

    INDGENA KANAMARI DO RIO JURU

    618

    QUADRO 26 GANHOS E IMPACTOS DAS DEMARCAES 632

    QUADRO 27 GANHOS POLTICOS DAS DEMARCAES 633

    QUADRO 28 GANHOS DA DEMARCAO PARA O CONTROLE DA

    TERRA INDGENA

    634

    QUADRO 29 EXPRESSO DEMOCRATICA NOS PROCESSOS

    DEMARCATRIOS

    635

    QUADRO 30 EMANCIPAO VERSUS REGULAO, NOS

    PROCESSOS DEMARCATRIOS

    636

    QUADRO 31 GANHOS DA DEMARCAO PARA AS RELAES

    INTERTNICAS

    637

    QUADRO 32 IMPLICAES DA DEMARCAO PARA AS

    RELAES DE CONTATO

    639

    QUADRO 33 GANHOS DAS DEMARCAES PARA O MOVIMENTO

  • 11

    INDGENA 640

    QUADRO 34 CONTRIBUIES DA DEMARCAO PARA A

    EXPERINCIA ADMINISTRATIVA DOS NDIOS

    641

    QUADRO 35 RISCO DE INSTITUCIONALIZAO DO MOVIMENTO

    INDGENA

    642

    QUADRO 36 GANHOS ETNOPOLTICOS NAS DEMARCAES 643

    CAPTULO 10

    QUADRO 37 DISTINES ENTRE OS TRS PROCEDIMENTOS

    DEMARCATRIOS

    652

    QUADRO 38 PROCEDIMENTOS DEMARCATRIOS E DILOGO

    POLTICO COM O ESTADO NACIONAL

    677

  • 12

    SUMRIO Agradecimentos 18

    Introduo 25

    PARTE I - IDENTIFICAO: CENRIOS, PAISAGENS, OLHARES

    CAPTULO 1 - CENRIOS E PAISAGENS

    1.1. Amaznias Amaznia 47

    1.2. Por que Amaznia? 52

    1.2.1. O mito do vazio populacional 53

    1.3. Impactos da invaso nos padres de ocupao territorial indgena 56

    1.4. Nmeros do extermnio indgena 66

    1.5. Amaznia indgena 71

    1.6. Terras indgenas 81

    1.6.1. Situao das terras indgenas no Brasil 86

    1.7. Muita terra para pouco ndio ou pouco branco para muita terra? 92

    1.7.1. A quem interessa as terras indgenas? 101

    1.7.2. Reaes contra o reconhecimento de terras indgenas 106

    1.8. Colonizao e colonialidade na Amaznia 112

    1.8.1. Os muitos nomes da colonizao 115

    1.8.2. As muitas faces do colonialismo 117

    1.9. Desconstruir a colonialidade 123

    CAPTULO 2 - OLHARES: TERICOS E EMPRICOS

    2.1. Aproximaes 130

    2.2. Enquadramentos 142

    2.3. Enfoques 223

    PARTE II DELIMITAO: OCUPAO COLONIAL, LUTAS

    INDGENAS

    CAPTULO 3 - A CONQUISTA DA AMAZNIA INDGENA

    3.1. Frentes de conquista: momentos histricos de contato 251

    3.1.1. Extrativismo das drogas do serto 253

    3.1.2. Extrativismo do caucho 255

  • 13

    3.1.3. Extrativismo da borracha 256

    3.1.4. Empreendimentos agropecurios 268

    3.1.5. Extrativismo de madeira 269

    3.1.6. Extrativismo mineral 270

    3.2. Impactos da conquista no mundo indgena 276

    3.3. Quatro atos de uma longa tragdia, e um quadro final de resistncia 281

    CAPTULO 4 - O CAMPO DO INDIGENISMO NO BRASIL

    4.1. Surgimento e consolidao do movimento indgena no Brasil 288

    4.1.1. Anos 1970: as assembleias indgenas 291

    4.1.2. Anos 1980: da Unio a atomizao das organizaes 295

    4.1.3. Anos 1990: a consolidao de projetos tnicos 301

    4.2. Iniciativas indgenas contra-hegemnicas 303

    4.2.1. Marcha Indgena e Conferncia Indgena 304

    CAPTULO 5 - VOZES AUSENTES: RESISTNCIA E SUBORDINAO,

    NO DISCURSO INDGENA

    5.1. ndio cidado brasileiro 320

    5.1.1. A negao como estratgia pessoal e coletiva 320

    5.1.2. O chamado ancestral 325

    5.1.3. A identidade como propsito 327

    5.1.4. O exerccio da liderana 335

    5.1.4.1. Reorganizao do movimento indgena no rio Negro 335

    5.1.4.2. Coordenao operacional da demarcao 341

    5.1.5. A institucionalizao da liderana indgena 343

    5.2. Memria de homem que luta histria como aconteceu 350

    5.2.1. A afirmao do eu ndio 350

    5.2.2. A insero Ticuna no movimento indgena 357

    5.2.3. Do eu ndio ao movimento indgena 363

    5.2.4. A mobilizao pela demarcao das terras 369

    5.2.5. A luta para alm do movimento indgena

    organizado/institucionalizado

    379

    5.3. Vozes emergentes vozes silenciadas 389

  • 14

    CAPTULO 6 - LUTAS PELA AUTODETERMINAO: A CONSTRUO

    DE RELAES INTERCULTURAIS

    6.1. Cenrio internacional 393

    6.2. Cenrio nacional 398

    6.3. Estado neoliberal versus povos indgenas 407

    6.4. Antropologia e Direito: grandes aliados ou parceiros perigosos? 411

    6.5. Estratgias de relacionamento intertnico 417

    6.6. Realidades indgenas resistentes 428

    PARTE III DELIMITAO: METODOLOGIA, CONVIVNCIA,

    PESQUISA

    CAPTULO 7 - CAMPO SEMNTICO E METODOLOGIA

    7.1. Objeto de estudo 447

    7.2. Procedimentos metodolgicos 450

    7.2.1. Participao participante 450

    7.2.2. Convivncia prolongada 452

    7.2.3. Caderneta de campo 454

    7.2.4. Trabalho, entre aspas 456

    7.2.5. Entrevistas/conversatrios 457

    7.3. Pesquisa de campo/ativismo social 464

    7.4. Lugar fsico e conceitual da pesquisa participativa 470

    7.5. Hipteses de trabalho 473

    7.6. Memria-sentido 478

    CAPTULO 7A - TEMPO DE RECORDOS

    7A.1. A partida e o encontro 486

    7A.2. Por que Portugal? 496

    7A.3. Verdades como asas 503

    7A.4. Indigenista? Antroplogo? 506

    7A.5. Cabea, para sempre lembrar; memria, para nunca esquecer 511

    PARTE IV DEMARCAO: TERRITRIO, TERRA, TERRA

  • 15

    INDGENA

    CAPTULO 8 - TERRITRIO / TERRA INDGENA

    8.1. Territrio: a terra na viso do ndio 524

    8.2. Terra indgena: a terra dos ndios na viso do branco 530

    8.2.1. O reconhecimento do direito indgena terra 532

    8.2.2. A demarcao de terras indgenas 539

    8.2.2.1. "Demarcao tradicional 548

    8.2.2.2. Auto-demarcao 550

    8.2.2.3. Demarcao participativa 552

    8.3. Juridificao do processo de reconhecimento das terras indgenas 554

    8.4. Judicializao da questo indgena 560

    8.5. Demarcao emancipatria 567

    CAPTULO 9 - PROCEDIMENTOS DE DEMARCAO DE TERRAS

    INDGENAS

    9.1. Auto-demarcao: a demarcao da Terra Indgena Kulina do Mdio

    Juru

    578

    9.1.1. Primeira fase da auto-demarcao 581

    9.1.2. Dificuldades na primeira fase dos trabalhos 585

    9.1.3. Segunda fase da auto-demarcao 588

    9.1.4. Dificuldades na segunda fase dos trabalhos 594

    9.1.5. Ganhos e conquistas da auto-demarcao 598

    9.2. Demarcao participativa: a demarcao da Terra Indgena Mawetek 604

    9.2.1. Inconsistncias da demarcao participativa da Terra Indgena

    Mawetek

    610

    9.3. Demarcao tradicional: a demarcao da Terra Indgena Kanamari do

    Rio Juru

    615

    9.3.1. Implicaes da demarcao tradicional da Terra Indgena

    Kanamari do Rio Juru

    619

    9.4. Emancipao e regulao, na demarcao de terras indgenas 623

    CONCLUSO

    CAPTULO 10 - DA LUTA PELA AUTODETERMINAO S

  • 16

    ARMADILHAS DA PARCERIA

    10.1. Demarcao: um projeto etnopoltico 650

    10.2. Contribuies da auto-demarcao para a construo de relaes

    pluritnicas

    660

    10.3. Armadilhas da parceria: as alianas entre organizaes indgenas e

    Estado

    669

    10.3.1. Institucionalizao da auto-demarcao 674

    10.3.2. Trilhas sinuosas em caminhos certos Desperdcio da

    experincia indgena

    685

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 702

    ANEXOS

    Anexo A Declarao de Belm sobre ndios isolados 730

    Anexo B Os ndios na Constituio Federal de 1988 733

    Anexo C Demarcaes de terras indgenas nos governos ps-Ditadura 737

    Anexo D Placa de identificao - 1917, Comunidade Limo Surumu 738

    Anexo E Resumo dos principais instrumentos de proteo dos direitos

    humanos dos povos indgenas

    739

    Anexo F Consideraes crticas de Julio Cezar Melatti Conveno para a

    Grafia dos Nomes Tribais e ao seu uso

    740

    Anexo G Estatuto do ndio - Lei 6.001, de 19 de dezembro de 1973 742

    Anexo H Documento Final Confererncia dos Povos e Organizaes

    indigenas do Brasil, 21 de abril de 2000

    755

    Anexo I Declarao da Aldeia Kari-oca 758

    Anexo J Carta da Terra dos Povos Indgenas 759

    Anexo K Carta do Rio de Janeiro Documento Final do IX Acampamento

    Terra Livre, 20 de junho de 2012

    768

    Anexo L Letras de msicas Gonzaguinha e outros 772

    Anexo M 19 condies para demarcao de terras indgenas STF 816

    Anexo N Decreto 1.775/96, de 08 de janeiro de 1996 819

    Anexo O Portaria 14/96, de 09 de janeiro de 1996 822

    Anexo P Lista dos presidentes da Funai, 1967 2012 825

  • 17

    Anexo Q Estatuto das Sociedades Indgenas - Proposta para discusso 827

  • 18

    AGRADECIMENTOS

    Eu devia este livro a essa majestade verde, soberba e enigmtica, que a selva amaznica,

    pelo muito que nela sofri durante os primeiros anos de minha adolescncia

    e pela coragem que me deu para o resto da via. E devia-o, sobretudo, aos annimos desbravadores, que viriam a ser meus companheiros, meus irmos,

    gente humilde que me antecedeu ou acompanhou na brenha, gente sem crnica definitiva [...].

    Ferreira de Castro (1982 : 115)

    Ao contrrio de Ferreira de Castro, os anos em que vivi no meio da selva

    foram de alegrias imensas, de vivncias profundas, de experincias marcantes, de

    descobertas indescritveis, de satisfao cotidiana, de afirmao na confiana do agir

    solidrio, da complementaridade como princpio, que faz da competio arremedo

    desprezvel do viver em comunidade. Os meus anos de vida na selva foram de

    aprendizado inesquecvel, que me marcaro, estou certo, para o resto dos meus dias.

    Assim como Ferreira de Castro tambm eu devia essa Tese, majestosa,

    soberba, enigmtica, fascinante selva amaznica e suas gentes.

    Eu devia essa Tese a muitas pessoas:

    Ao velho Pedro Rafael, meu av Apurin, que ao me fazer seu neto por adoo

    se fez meu av por filiao afetiva infinita, ao Faustino e sua mulher Corina.

    Ao Amadeu, grande amigo-informante-professor do cerimonial e das nuances da

    diplomacia Apurin, aos primos Drio, Farnelo e Manuel Chimbica.

    Ao Senhor Lus, Dona Iolanda e Helinho.

    Ao velho Pedro Carlos e toda sua enorme famlia extensa.

    Ao Lopinho e ao Castelo Brasil.

    Ao Alfredinho, ao Capito Sur e ao velho Casemiro.

    A todos os Apurin que me acolheram em minha iniciao no universo

  • 19

    indgena na Amaznia pela porta de entrada atravs do mundo Popengare1.

    E, devia, mais especialmente, aos Kanamari que me acolheram em suas aldeias e

    no mundo Tkna:

    Ao Djahoma, Kayoma, Djoo, Monhawam, Aro, Tsabaro, Daora, Waro e todos

    do alto rio Juta.

    Ao Oke, Djekeha, Parawe e todos do igarap Bola.

    Ao Kadje, Tsewe, Towe, Tamakore e todos do Mawetek.

    Ao Kadjohpam, Nare e todos do igarap Santa Rita.

    Ao Djoreyom, Panaw, Heyo, Hetsamba e todos do igarap Trs Bocas.

    Ao Yodje, Parawe, Maemha, Kawatare e todos do rio Xeru.

    Wahdawe, Daora, Paemkarem, Kaeware nhane, Peeam, Naroa, Heyo, Aro, e

    todos do igarap Itucum, principalmente Yodje Tsemo e Tsawe, que ao me adotarem

    com irmo abriram o caminho para que os Kanamari me acolhessem como parente.

    A tantos outros Kanamari, que a falha de memria me faz omitir os seus nomes,

    que me fizeram Kaemo, inserindo-me no universo Tkna, onde ainda hoje, apesar da

    distncia, e suspeito que para sempre, estou afetivamente ligado.

    Devo ainda essa Tese a outras muitas pessoas, pelo apoio, incentivo e

    colaborao em diferentes momentos:

    Ceclia Maria Vieira Helm e Silvio Coelho dos Santos, os primeiro

    orientadores acadmicos, de cujos apoios e ensinamentos esta Tese devedora;

    Ao Iasi (Pe. Antnio Iasi Junior), o primeiro orientador na primeira incurso

    em campo.

    1 Popengare, autodenominao do povo comumente indicado na etnologia como Apurin.

  • 20

    Ao Chico (Guenter Francisco) Loebens e os demais primeiros companheiros dos

    tempos de indigenismo no mdio Purus.

    A todos que me concederam entrevistas para a Tese, em particular: ao Pedro

    Incio Pinheiro, ao Brs de Oliveira Frana, ao Bonifcio Jos, ao Edilson Martins

    Melgueira, ao Carlos Frederico Mars de Sousa Filho e ao Joo Pacheco de Oliveira

    Filho.

    Aos amigos que, cada qual ao seu modo, nunca me deixaram sentir a ausncia

    do outro lado do Atlntico:

    Ao Marcos Marques, amigo desde a primeira acolhida em Coimbra, e que me

    permitiu estar em sua casa como se esta fosse a minha casa em Coimbra.

    Ao Paulo Bernaschina, amigo de amigo que, para a minha satisfao, me

    estendeu a sua amizade.

    Paula Martinho e Carlos Lucas, pela acolhida nos ltimos tempos da minha

    primeira permanncia em Coimbra.

    Cludia DallAntonia comadre em terras lusitanas encontrada, e Carol,

    que me permitiram partilharam seus amigos no tempo de nossas distncias.

    Eli Weiss e Vitor Macedo, jovens amigos encontrados nas cantinas e

    repblicas coimbrs.

    Ao Fernando Sidnio, Graa Fonseca, ao Ricardo Manuel Ferreira de Almeida,

    Izabel Maria Rodrigues Craveiro, ao Bruno Sena Martins e ao Vasco Pauloro, mais do

    que colegas das sesses de seminrios de doutoramento;

    Marisa e ao Pedro, amigos queridos, como se desde sempre o tivssemos sido.

    Aos amigos do CES que me faziam sentir com se tambm da equipe do CES eu

    fosse.

  • 21

    (Ana) Carina, carinho imenso, que no precisou ir para alm da amizade

    imensa.

    Ins Barbosa de Oliveira, amiga querida e interlocutora privilegiada, para

    fazer uso de suas prprias palavras, alm de carinho imenso.

    Ao Senhor Jos de Almeida e demais funcionrios da Secretaria da Faculdade de

    Economia da Universidade de Coimbra, cordiais, atenciosos e sempre eficientes;

    Ao pessoal das cantinas universitrias, que fizeram a sua parte, talvez a

    principal, em si tratando de um lusitano, para que o componente gastronmico fizesse

    eu me sentir em casa, ou na parte da casa que mais importa a um lusitano, na cozinha,

    mesa.

    Maria Ioannis Baganha, misto de professora rigorosa e amiga meiga; com

    saudades.

    Maria Jos Carvalho e ao Accio Machado, amabilidade, ateno e eficincia,

    sempre dispostos a colaborar no acesso s informaes; um prazer enorme conhec-los.

    Em especial:

    Elione Angelim Benj, pela ajuda grande na reviso e ajuste para verso final;

    obviamente, os erros que subsistem a mim se dem.

    Eneida Alice Gonzaga dos Santos, amiga de toda hora, de confidncia, de

    angstia, de conversa trocada, de preferncia em torno de uma boa mesa, que ns dois

    apreciamos.

    Lassalete Paiva e ao Joo Arriscado Nunes, dois primos queridos

    (re)encontrados em meu (re)encontro com as origens ancestrais lusitanas.

  • 22

    Ao Joo Paulo Dias e Lusa Conceio e Hamilton, e tambm Knia,

    companhia e acolhida fundamental no meu retorno Coimbra para o perodo de

    finalizao da Tese, amigos para sempre.

    Luisa Saavedra Almeida, por tudo, que foi muito, e que podia ter sido mais;

    sem esquecer, e nem poderia, o estmulo para a formatao da primeira verso, que se

    constituiria no corao da verso final da Tese.

    Morena (Irani Chaves de Oliveira), leveza, bom humor, alto astral,

    companheirismo, carinho, que em meio do caminho ajudaram a repor as energias

    quando elas pareciam faltar; por tudo, que eu no soube e no pude retribuir.

    Leila Margareth Rodrigues Gomes, carinho e amizade, que ficou aps o tudo

    que foi bom.

    Selma de Jesus Cobra, importante como s ela, e por sua terapia de choque

    que deu o empurro final no deixando o desnimo tomar conta.

    Por tudo que me tm dado, devo essa Tese tambm:

    Araci Maria Labiak, apesar dos desencontros, sempre uma aliada.

    Ao Diogo Labiak Neves, companheiro de chegada e de instalao nos primeiros

    momentos em Coimbra, mais do que filho, um parceiro sempre atento.

    Hortnsia Labiak Neves, flor verdadeira, em carinho, ateno, cuidado e tudo

    mais; e ainda pelo presentinho Ariel recente que nos deu.

    Tia Alzira (Maria Alzira Bento de Medeiros), querida segunda me que

    sempre me estimulou.

    Ao Rogrio (de Oliveira Neves), irmo, irmo mesmo, em todos os sentidos, que

    apesar da minha distncia nunca permitiu que nos distancissemos.

  • 23

    Concluir a Tese saldar uma dvida com as instituies que me possibilitaram

    este doutoramento. Meus agradecimentos:

    Capes, pela bolsa (BEX - 1309/98-6) que me permitiu ficar em Coimbra de

    meados de 1999 a meados de 2003, no primeiro perodo de inscrio no doutoramento.

    Direo da Universidade Federal do Amazonas e ao Colegiado do Instituto de

    Cincias Humanas e Letras, pela liberao de minhas atividades docentes no perodo de

    setembro de 1998 a junho de 2003 e de abril a junho de 2008.

    Aos colegas do Departamento de Cincias Sociais, pela liberao de minhas

    atividades docentes no perodo de setembro de 1998 a junho de 2003 e, em

    demonstrao de enorme considerao, os colegas do Departamento Antropologia, pela

    liberao de abril a junho de 2008.

    Ao Centro de Estudos Sociais e Faculdade de Economia da Universidade de

    Coimbra, pelas inmeras e diversas atividades (seminrios, palestras, conferncias,

    colquios etc.) que contriburam para a minha qualificao acadmica.

    Concluir a Tese , ainda, saldar uma dvida com Boaventura, que mais que

    orientador, foi sempre um orientador-amigo.

    Um agradecimento pela confiana e estmulo demonstrados desde o primeiro

    contato, em 1994, pelas sugestes crticas, orientaes atentas, conversas instigantes,

    mesmo que disfaradas em convvios das sextas-feiras noite nos memorveis jantares

    no Casaro e noutras cantinas coimbrs; pela dose extra de incentivo e pacincia com

    relao demora exagerada para a concluso da Tese, demora essa que em algumas

    vezes levou-nos, a Boaventura e a mim mesmo, a um sentimento de frustrao que s

    conseguiu ser vencido graas ao apoio acadmico e profissional, confiana e amizade

  • 24

    que nunca me faltaram de sua parte e que foi renovado em sua acolhida minha

    segunda inscrio no doutoramento. Um agradecimento especial, escrito em tintas de

    respeito enorme, grande admirao e considerao imensa pela amizade que a mim

    sempre demonstrou, e que de minha parte recproca. Um agradecimento especial ao

    orientador-amigo, amigo-orientador e amigo Boaventura.

    Esta Tese para cinco pessoas queridas que se foram mais rpido do que eu

    pudesse entregar-lhes nessa forma concretizada em escrito o muito do meu

    agradecimento por tudo:

    Para Z Bonotto (Silvio Jos Gasperini Bonotto) e Xar (Ezequias Paulo

    Heringer Filho), amigos, irmos e verdadeiros mestres-companheiros que me

    ensinaram, cada um ao seu modo, os primeiros passos no indigenismo.

    Para Ricardo Pereira Parente, parente no s no nome, tambm no carinho,

    respeito e confiana que sempre demonstrou, e que de minha parte foram/sero sempre

    recprocos.

    Para Lino Filho, meu pai, e Hilda, minha me, por tudo que me estimularam e

    me permitiram ser.

    Diz Augusto Roa Bastos (1996) que um livro sempre escrito por muitas mos.

    Esta Tese foi escrita por muitas vozes de tanta, muita, diferente gente2

    ecoando em minha boca/fala, em minhas mos/escrita, e principalmente na saudade boa

    guardada em meu peito/sentimento-emoo em t-los em mim.

    No marear dos meus olhos/carinho ao record-los. A todos, obrigado.

    2 [...] E aprendi que se depende sempre/ De tanta, muita, diferente gente/ Toda pessoa sempre as marcas/ Das lies dirias de outras tantas pessoas/ E to bonito quando a gente entende/ Que a gente tanta gente onde quer que a gente v/ E to bonito quando a gente sente/ Que nunca est sozinho por mais que pense estar [...] (Gonzaguinha, Caminhos do Corao, 1982).

  • 25

    INTRODUO

    Como pois a escritura seja vida da memoria, e a memoria huma semelhana de immortalidade

    a que todos devemos aspirar, pela parte que della nos cabe, quiz movido destas razes, fazer esta breve historia,

    pera cujo ornamento nam busquei epitetos exquisitos, nem outra fermosura de vocbulos de que os eloqentes Oradores

    costumo usar pera com artifcio de palavras engrandecerem suas obras. Somente procurei escrever esta na verdade per hum estillo facil,

    e cho, como meu fraco engenho me ajudou, desejoso de agradar a todos os que della quizerem ter noticia.

    Pelo que devo ser desculpado das faltas que aqui me pdem notar: digo dos discretos, que com sam zelo o costumo fazer,

    que dos idiotas e mal dizentes bem sei que nam hei de escapar, pois est certo nm perdoarem a ningum.3 Pero de Magalhes Gandavo (1980: 76-77)

    Do Prologo ao Lector, escrito por Pero de Magalhes Gandavo para a sua

    Histria da Provncia Santa Cruz, publicado originalmente em 1576, em Lisboa, com

    o ttulo Histria da provncia scta Cruz a que vulgar mte chamamos Brasil, me veio

    a recomendao e orientao geral que de bom grado tomei em conta para a escritura

    desta Tese:

    Outra no a minha inteno com a escritura desta Tese, seno fazer esta

    breve historia (Gandavo,1980: 76) da relao do Estado brasileiro com os ndios,

    tomando como foco a demarcao das terras indgenas, em que, assim como em todos

    os muitos outros focos das relaes intertnicas, a nenhuma importncia atribuda aos

    povos indgenas e o desprezo por tudo que as contribuies possam trazer para o mundo

    do branco, marcam uma situao clssica de desperdcio da experincia ditada pela

    razo indolente da modernidade, que, como demonstra Boaventura de Sousa Santos

    (2000b), historicamente domina as relaes intertnicas entre o Estado e os grupos

    tnicos em todas as aldeias do planeta mundo.

    3 Grafia mantida como na publicao original.

  • 26

    Aps 30 anos de trabalho/vida indigenistas/antropolgicos envolvido com esse

    objeto complexo que o ndio no mundo das relaes intertnicas, constato que vrias

    iniciativas contra-hegemnicas responsveis por alimentar a perceverana4 otimismo

    trgico (BSS) que impulsiona as motivaes e os trabalhos com os ndios foram

    transubstanciadas em verdadeiros casos de regulao social a que foram submetidos

    lideranas e prprio movimento indgena, fazendo com que, por vezes, uma certa

    dimenso trgica parea suplantar as expectativas otimistas.

    Animado pela sociologia das emergncias (Santos, 2006a) que perscruta as

    aes e mobilizaes indgenas como iniciativas tnicas contra-hegemnicas de

    construo de contextos pluritnicos, me percebo mais ctico resistente do que otimista

    de qualquer matiz; um ceticismo resistente, que, com Florestan Fernandes, busca

    descobrir um modo congruente de fazer a ordem social estabelecida voar pelos ares

    (1995: 30), que, com Pierre Bourdieu, persevero no antigo propsito de jogar [meu]

    gro de areia na engrenagem lubrificada das cumplicidades resignadas (2001: 79). De

    minha parte, alimento o meu ceticismo resistente nos processos de resistncia dos

    grupos tnicos e nas realidades indgenas resistentes, em si mesmo fruto e origem da

    resistncia tnica como princpio e modelo de conduta no enfrentamento etnopoltico.

    Embora nas obras de Boaventura no aparea referncia ao nome e s ideias de

    Bonfil Batalla, as vises prospectivas destes dois autores sobre as relaes Estado-

    povos indgenas tm em comum a convico quanto a necessidade de conformao de

    uma sociedade no-colonial e de que esta deve buscar suas bases de referncias

    culturais, polticas, epistemolgicas etc. nos povos indgenas que, apesar de todo

    controle cultural e poder (Bonfil Batalla), regulao e hegemonia (Boaventura)

    das sociedades nacionais herdeiras da modernidade ocidental, preservam operantes os

    4 O que aqui estou chamando de perseverana caracterizado por Boaventura como otimismo trgico

  • 27

    sistemas tnicos de produo de conhecimento em toda a sua fora e eficcia.

    Trabalhando mais diretamente as situaes de contacto intertnico entre sociedades

    indgenas e sociedades nacionais mais especificamente a sociedade nacional mexicana

    , Bonfil Batalla fala em reconstituio de um Estado nacional plural pluritnico,

    como explicitamente defende em Identidad tnica y movimientos indios en Amrica

    Latina (Bonfil Batalla, 1988) e Mxico Profundo (Bonfil Batalla, 1990), enquanto

    Boaventura trabalhando principalmente sobre as sociedades nacionais, abordando em

    obras mais recentes as problemticas que envolvem os povos indgenas e os Estados

    nacionais, fala em reinveno de um Estado nacional plural pluritnico e

    plurinacional de modo mais explcito em La Reinvencin del Estado y el Estado

    Plurinacional (Santos, 2007c) e em vrias outras obras de sua reflexo. Um, falando do

    lugar da Antropologia Poltica, da etnologia indgena, dos estudos de relaes

    intertnicas, da persistncia cultural; outro, do lugar da Sociologia do Conhecimento, do

    debate epistemolgico, dos estudos ps-coloniais, do dilogo intercultural, ambos

    acenando para a necessria transformao da forma atualmente predominante de

    organizao poltica sob a forma de Estado-nao que venha a ser substituda por um

    Estado nacional plural que reconhea a existncias das mltiplas naes indgenas

    localizadas no seu interior.

    Dizendo, objetiva e diretamente, com Ins Barbosa de Oliveira, Boaventura de

    Sousa Santos o nome completo do autor, o que indicaria a necessidade de referi-lo

    como Santos. Porm, no s pela inequivocidade do seu primeiro nome como tambm

    pela sua beleza e facilidade de reconhecimento, optei por me referir a ele sempre como

    Boaventura (Oliveira, 2006: 9). E, nessa linha, tambm aqui Boaventura de Sousa

    Santos ser mencionado como Boventura, mantendo, contudo, a forma cannica das

    (2006a), conceituao que retomo no Captulo 10, em associao concepo de ceticismo resistente.

  • 28

    referncias bibliogrficas precisas, que tendemos a supor que do seriedade e provam o

    rigor de um trabalho acadmico (Bonfil Batalla, 1990: 16) para as citaes textuais e

    referncias bibliogrficas, no que este autor ser indicado como Santos.

    Na conferncia Conhecimento e Transformao Social: para uma ecologia dos

    saberes, proferida em Manaus, Estado do Amazonas, em 11 de setembro de 2006,

    Boaventura, referindo-se trajetria do seu prprio pensamento, assinalou que ao longo

    do tempo, na realizao de um mesmo trabalho ou de trabalhos/anlises sequenciados,

    as diferentes tematizaes reforam alguns pontos, redirecionam outros ou at mesmo

    colocam outros em segundo plano, dando a forma com que o pensamento se apresenta a

    cada momento. Em outras palavras, tambm o pensamento, como toda construo

    social, dinmico.

    Esta Tese est formulada a partir de dois momentos distintos, com tematizaes

    distintas. O primeiro momento, que em linhas gerais corresponde ao primeiro perodo

    de inscrio no doutoramento, de 1998 a 2003, com nfase nos temas de: globalizao

    hegemnica/globalizao contra-hegemnica, realidades emergentes e

    emancipao/regulao, tomados a partir da crtica ao dilogo assimtrico entre o

    Estado nacional brasileiro e os povos indgenas e da necessidade de reinveno da

    emancipao social. O segundo momento, que para efeitos prticos pode ser pensado

    como a partir de 2008, com nfase nos temas de: sociologia das ausncias e sociologia

    das emergncias, ecologia dos saberes e traduo intercultural, tomados a partir da

    crtica ao desperdcio de conhecimento pela razo indolente que conforma o

    pensamento ocidental moderno. Dois momentos5 intimamente relacionados entre si,

    articulados por dois eixos centrais de reflexo/anlise que, tomando os povos indgenas

    5 Cabe assinalar que de meados de 2003, quando de meu retorno a Manaus aps o largo perodo de permanncia em Coimbra, a meados de 2008, que marca a minha segunda inscrio no doutoramento, a Tese ficou adormecida entre as minhas atividades como professor na Universidade Federal do Amazonas (Ufam).

  • 29

    como objeto de estudo, formam as linhas mestras da anlise/reflexo no seu todo: a

    urgncia de reinventar a emancipao social e a necessria ruptura com o processo

    colonial imposto pelo mundo ocidental moderno sobre as outras culturas no-

    europeias.

    A auto-demarcao de terras indgenas , sem dvida, o mais vigoroso

    processo de afirmao dos direitos indgenas e de questionamento das relaes de poder

    impostas pelo Estado brasileiro aos povos indgenas.

    Volta ao Comeo: demarcao emancipatria de terras indgenas no Brasil,

    toma como objeto central de estudo a participao dos ndios nos processos

    demarcatrios de terras indgenas, analisada a partir de dois enfoques: as iniciativas

    indgenas como realidades tnicas capazes de inovar as relaes intertnicas e o

    desperdcio das iniciativas indgenas promovido pela sua institucionalizada como

    programas de ao estatal.

    Volta ao Comeo, expresso que d ttulo a este trabalho inspirada nas

    palavras da msica De volta ao comeo,6 de Luis Gonzaga do Nascimento Jnior, que

    embora no tenham sido inspiradas na realidade indgena falam, ao menos em

    interpretao que lhes dou, do processo de resistncia tnica explcito nas lutas

    organizadas enquanto movimento social indgena e da retomada de suas terras, nas

    quais sobressaem as iniciativas de autodemarcao.

    Comeo corresponde, assim, condio tnica da qual os indgenas foram

    distanciados poltica e culturalmente pela colonialidade do poder (Quijano, 2005) que

    subordinou/subordina os povos extraeuropeus (Gonzlez, 1935) condio de

    6 [...] E como se eu despertasse de um sonho/ Que no me deixou viver/ E a vida explodisse em meu peito/ Com as cores que eu no sonhei/ E como se eu descobrisse que a fora/ Esteve o tempo todo em mim/ E como se ento de repente eu chegasse/ Ao fundo do fim/ De volta ao comeo, De volta ao comeo, letra e msica de Luis Gonzaga do Nascimento Jnior, Gonzaguinha.

  • 30

    civilizaes e sociedades negadas, de culturas subordinadas ao paradigma da

    modernidade ocidental e de populaes condenadas mais completa excluso social.

    Negao, subordinao e excluso, situaes nas quais se abrem apenas as portas mais

    inferiores de participao na vida nacional s sociedades, culturas e populaes

    integradas/ aculturadas, e que no caso do Brasil se expressam inicialmente pela

    invaso e ocupao portuguesa e, posteriormente, pela hegemonia do Estado brasileiro,

    representante do projeto civilizacional europeu imposto ao Novo Mundo com o

    chamado Descobrimento.

    Volta ao Comeo no corresponde a um movimento de deslocamento

    espacial, nem, tampouco, a um momento temporal de retomada de princpios e valores

    tnicos, mas a uma deciso poltica que reafirma explicitamente, categoricamente,

    objetivamente, e, portanto, no mais disfarada sob estratgias de bom relacionamento

    intertnico, a alteridade tnica da qual os ndios foram forados a manter uma distncia

    estratgia que lhes permitisse continuar a ser diferentes como so, e como sempre

    foram, convivendo num mundo que nega a possibilidade da diferena positivamente

    vivenciada.

    Volta ao Comeo pretende assinalar uma postura tnica alimentada pela

    resistncia tnica que permite aos povos indgenas continuarem a ser o que sempre

    foram apesar de todas as formas de constrio regulao a que esto submetidos

    durante estes muitos anos de conquista (Dussel, 1993).

    O presente estudo est estruturado em quatro partes e uma concluso. Os ttulos

    das partes foram tomados em analogia trs etapas principais dos processos de

    reconhecimento das terras indgenas: Identificao, Delimitao e Demarcao. Na

    Parte I, Identificao: cenrios, paisagens, olhares, apresentada uma viso geral do

    cenrio amaznico e da presena indgena na regio e no pas, e do tratamento dado

  • 31

    pelo Estado e pelas populaes regionais s questes indgenas. So assinalados em

    traos gerais marcos e interpretaes conceituais e tericas que conformam olhares

    que podem contribuir para a compreenso da realidade enfrentada pelos povos

    indgenas sujeitos lgica colonial que continua a governar as relaes intertnicas, de

    modo especial no que diz respeito ao uso e controle da terra. Na Parte II, Delimitao:

    ocupao colonial, lutas indgenas, num primeiro momento analisado, a partir de uma

    perspectiva histrica, o processo de ocupao das terras indgenas e da conquista dos

    mundos indgenas, e, num segundo momento, a partir de uma perspectiva scio-

    antropolgica, so analisadas as lutas indgenas no Brasil, as suas vicissitudes e as

    expectativas promissoras que parecem acenar para horizontes mais satisfatrios para os

    ndios no Brasil. Na Parte III, Delimitao: metodologia, convivncia, pesquisa, como

    prprio ttulo indica, so apresentados o objeto de estudo e a sua delimitao, a

    metodologia e as tcnicas aplicadas no campo, as hipteses que nortearam a pesquisa.

    Como de praxe nos trabalhos acadmicos, a parte dedicada aos procedimentos

    metodolgicos e analticos aquela onde tambm so tecidas consideraes sobre o tipo

    de pesquisa adotado e as razes acadmicas e/ou polticas que conduzem a tal adoo.

    Na Parte IV, Demarcao: territrio, terra, terra indgena, so mencionadas as

    diferentes vises de mundo, da parte dos ndios e da parte dos brancos, que do origem

    a concepes distintas de territrio, terra e terra indgena, responsveis por posturas

    antagnicas de apropriao da terra e dos recursos nela disponveis. So tambm

    indicados os dois mecanismo adotados pelo Estado para regular estas situaes: um que

    de certa forma se apresenta favorvel aos ndios, a elaborao de instrumentos legais

    especficos para a regularizao da posse indgena e outro que totalmente contrrio

    aos direitos indgenas, a imposio de processos de regulao de alta intensidade que

    transformam o reconhecimento de terras indgenas em uma mera questo de ordem

  • 32

    jurdica, quando de fato se trata de uma negociao poltica de interesses distintos, de

    ndios e de brancos, mediados pelo Estado. Nesta parte apresentados os estudos de caso

    dos trs procedimentos demarcatrios, com nfase especial na participao, ou

    excluso, dos ndios e as suas implicaes para as lutas dos povos indgenas. Na

    Concluso esto sintetizados os pontos mais salientes vistos nos captulos anteriores,

    enfocando a partir da iniciativa Kulina de auto-demarcao e de outras realidades

    indgenas resistentes, exemplos de iniciativas indgenas contra-hegemnicas e

    fortemente marcadas pela dimenso emancipao, e das parcerias entre entidades

    indgenas e indigenista com instituies e rgos pblicos, exemplos da ao

    hegemnica e regulao impostas pelo Estado, a positividade das iniciativas indgenas

    versus o desperdcio das contribuies indgenas promovido pela racionalidade

    proclamada pelo pensamento ortopdico, uma mquina de injustia que se vende a si

    prpria como mquina de felicidade (Santos, 2008a).

    O Captulo 1, Olhares: Cenrios e paisagens, procura dar uma viso ampla sobre

    a Amaznia e a presena indgena no Brasil como um todo e na Amaznia em especial.

    O objetivo do captulo apresentar, a partir de introdues rpidas aos temas, a

    realidade indgena na Amaznia e como ela vista e tratada pelos poderes pblicos e

    pelo senso comum, principalmente no que diz respeito ao sempre oscilante

    reconhecimento-negao da presena fsica dos ndios na regio e do sempre negado

    direito de existncia dos ndios enquanto etnias diferenciadas. O captulo assinala

    continuidade histrica do colonialismo que submete no apenas os ndios, mas tambm

    outros segmentos sociais, um colonialismo que se apresenta sob diferentes formas,

    sempre renovadas. Frente a este cenrio de subordinao das populaes locais, o

    captulo ensaia alguns posicionamentos a serem assumidos para a superao da

  • 33

    colonialidade que faz da Amaznia um dos lugares do planeta de maior subalternizao

    tnica do planeta.

    O Captulo 2, Olhares: tericos e empricos, oferece elementos para uma

    aproximao temtica geral dos ndios no contexto de das sociedades nacionais,

    apresenta elementos sobre a realidade sociopoltica dos grupos indgenas na vida e na

    economia regional e nacional e sugere enquadramentos tericos que possam contribuir

    para uma viso crtica sobre a realidade dos povos indgenas submetidos politicamente

    aos Estados nacionais. Estruturado a partir de textos breves, onde cada um tomado

    como uma unidade em si mesmo, o captulo sugere enfoques que podem ser articulados

    livremente compondo o quadro geral das lutas indgenas no Brasil, evitando, com a

    formatao textual adotada, a rigidez excessiva das longas sesses argumentativas.

    Partindo do princpio de que as questes em torno da terra devem ser entendidas como

    resultado do confronto de concepes distintas, tanto do que vem a ser a terra (territrio

    simblico de pertencimento tnico versus bem material) como da sua destinao uso

    social coletivizado versus apropriao individual privativa , concepes formuladas

    por diferentes sistemas de produo de conhecimento, no caso o mundo dos ndios ou

    mundos dos ndios uma vez que se trata de etnias diferentes, e no uma nica etnia e o

    mundo do homem ocidental moderno, o captulo introduz a discusso sobre os conflitos

    pelas terras, que se configuram como os principais problemas enfrentados atualmente

    pelos ndios e os principais desafios sua continuidade tnica futura.

    O Captulo 3, A conquista da Amaznia indgena, traa em linhas gerais o

    cenrio social e poltico do processo de expanso econmica sobre a Amaznia, tendo

    como principal foco a ocupao produtivista dos territrios indgenas. O objetivo do

    captulo permitir uma viso sobre o tratado que ao longo dos diferentes momentos da

    histria poltico-econmica da Amaznia tem sido dispensado pelos Estados nacionais,

  • 34

    primeiro portugus e depois brasileiro, ao direito dos povos indgenas de ocupao de

    suas terras. Reconhecimento, por um lado, e invaso das terras e ausncia do Estado no

    seu papel de defensor pblico dos ndios, por outro; so esses o saldo das diferentes

    frentes de expanso econmica e dos projetos e programas de desenvolvimento

    responsveis pelo processo de ocupao-invaso-expropriao das terras, e que

    repercutem sobre todas as demais dimenses culturais, sociais, de sade, econmicas,

    poltica, epistemolgicas etc. do mundo indgena. Bem quisera que ao final este

    captulo pudesse contribuir para uma viso positiva, contudo a histria do contato no

    nada favorvel aos ndios.

    O Captulo 4, O campo do indigenismo no Brasil, faz uma breve histria do

    surgimento e consolidao do movimento indgena no Brasil. Analisando o perodo que

    vai incio dos anos 1970, quando das primeiras mobilizaes indgenas a nvel nacional

    para a estruturao de um movimento social organizado de carter etnopoltico, ao final

    dos anos 1990-2000, quando o movimento indgena comea a dar sinais visveis de

    perda do seu poder de mobilizao tnica, enquanto as principais organizaes

    indgenas vo perdendo gradativamente a sua representatividade junto as comunidade

    de base. O objetivo do captulo destacar as lutas de resistncia dos povos indgenas

    realizadas atravs de organizaes indgenas. Nesse sentido o captulo destaca duas

    mobilizaes em nvel nacional que denunciam a ao hegemnica do Estado de

    institucionalizao e cooptao de entidades e lideranas indgenas: Marcha Indgena

    e Conferncia Indgena, realizadas em abril de 2000. Como mobilizaes articuladas

    por entidades do movimento indgena organizado, Marcha Indgena e Conferncia

    Indgena, os componentes indgenas do Movimento Brasil: 500 Anos de Resistncia

    Indgena, Negra e Popular Brasil Outros 500 devem ser vistas como manifestaes

    contra-hegemnicas da luta dos povos indgenas contrrias s reformas neoliberais

  • 35

    adotadas pelos governos do perodo ps-Ditadura Militar e ao poder discriminatrio e

    repressivo do Estado. Apesar de tanto a Marcha Indgena, na qual participaram ndios

    de diferentes locais do pas, como a Conferncia Indgena, que se realizou Estado da

    Bahia, na regio Leste do pas, a presena de ndios da regio do mrio rio Juru ter se

    dado em pequeno nmero, estes acontecimentos so aqui mencionados devido a

    participao ativa de representantes indgenas de vrios povos da Amaznia e pela

    importncia que estes dois momentos polticos representam para o movimento indgena

    em todo o Brasil.

    O Captulo 5, Vozes Ausentes: resistncia e subordinao, no discurso indgena,

    apresenta narrativas de duas importantes lideranas indgenas no Amazonas. Sem

    pretender indicar nenhuma das duas narrativas, e muito menos nenhum dos dois lderes

    indgenas como exemplo de discurso emancipao nas lutas pela autodeterminao,

    tomado em confronto com o outro que poderia ser pensado como exemplo de discurso

    regulao submetido a institucionalizao das lutas tnicas, as trajetrias pessoais e

    polticas das duas lideranas representam dois dos possveis caminhos

    autodeterminao/emancipao e institucionalizao/regulao trilhados pelo

    movimento indgena no Brasil, permitindo visualizar horizontes de emancipao e

    horizontes de regulao presentes no dilogo intertnico. Este captulo procura levantar

    elementos que contribuam para a compreenso dos mecanismos e estratgias do

    processo de subordinao das lutas e mobilizaes indgenas operado pelo Estado, um

    processo de subordinao tnica que anula o potencial etnopoltico das lutas indgenas,

    instrumentalizando lideranas e organizaes do movimento indgena como

    viabilizadores da poltica indigenista oficial. O que o captulo evidencia que

    emancipao e regulao esto simultaneamente presentes no relacionamento entre

    povos indgenas e Estado, o que significa dizer que tanto as iniciativas indgenas

  • 36

    contm aspectos de regulao, como em aes promovidas pelo Estado podem estar

    presentes aspectos de emancipao, onde o desafio ao movimento indgena que se

    pretenda verdadeiramente comprometido com os grupos tnicos potencializar a

    dimenso emancipao posta em jogo nas relaes intertnicas.

    O Captulo 6, Lutas pela Autodeterminao: a construo de relaes

    interculturais, ressalta a importncias das iniciativas indgenas que lograram a formao

    de cenrios internacional e nacional nos quais as realidades vividas pelas populaes

    indgenas deixaram de interessar apenas aos prprios ndios e as lutas indgenas

    passaram a contar com o apoio de diferentes segmentos da sociedade externa.

    Considerando a tenso regulao versus emancipao presente nas relaes intertnicas

    o captulo apresenta uma leitura introdutria s estratgias e mecanismos de regulao

    social acionados pelo Estado para conter as mobilizaes indgenas e questiona o papel

    que a Antropologia e do Direito, assim como reas do conhecimento cientfico, devem

    desempenhar no contato entre mundos diferentes. Tendo como objetivo indicar a fora,

    o vigor e a eficcia da resistncia tnica que permite aos povos indgenas continuarem a

    existir apesar de cinco sculos de imposio colonial, o captulo assinala diferentes

    estratgias de relacionamento intertnico acionadas por diferentes povos em diferentes

    momentos do contato. Nesse mesmo propsito, destaca iniciativas indgenas que

    tomadas como realidades emergentes (Santos, 1998b) que afirmam perante os Estados

    nacionais os ndios como atores polticos na discusso de questes que lhe dizem

    respeito e os povos indgenas como entes sociais e polticos cuja presena

    contempornea ao mundo ocidental moderno acena para a necessria construo de

    relaes interculturais no mais fundadas na produo da desigualdade a partir de

    diferenas tnicas.

  • 37

    O Captulo 7, Campo semntico e metodologia, apresenta os procedimentos

    analticos e metodolgicos, assim como as tcnicas de pesquisa e prticas que campo a

    partir das quais me foi possvel recolher o material emprico da pesquisa em seu sentido

    lato7, sejam aqueles que me foram disponibilizados pelos meus informantes dados,

    informaes, relatos, depoimentos, testemunhos etc. , sejam aqueles obtidos a partir da

    observao direta por via da pesquisa participativa vivenciada em forma

    extrema/radical. Tendo como objetivo ir um pouco alm da apresentao da

    metodologia e dos procedimentos de pesquisa, este captulo procede a uma discusso,

    ainda que breve, e sem a inteno de esgot-la aqui, acerca das adequaes promovidas

    nos instrumentos e tcnicas de pesquisa, no prprio estilo da pesquisa, tendo por

    finalidade alcanar um melhor resultado do trabalho de campo. O captulo discute ainda

    a relao entre pesquisa de campo e ativismo social e o lugar, fsico e conceitual, da

    realizao da pesquisa, enfatizando a necessidade de compromisso/comprometimento

    do pesquisador para com o pesquisado, tanto no momento da pesquisa em si como

    para alm da pesquisa, questionando aquelas propostas que defende uma relao

    pesquisador-pesquisado mecanicista como condio de para uma pesquisa cientfica.

    O Captulo 7A, Tempo de Recordos, tem duas fontes de inspirao inegveis: o

    Captulo (Captulo Trs-ao-Espelho: Relaes entre Percepes a que Chamamos

    Identidade: Fazendo Pesquisa em Favela do Rio, de Toward a New Common Sense...

    (Santos, 1995) e Mister Book em Nova York (Santos, 2006b), dos quais recolhe tanto

    a forma na qual o captulo apresentado como a proposta de autorreflexiva comum aos

    dois textos mencionados. O captulo procura indicar balizamentos conceituais, tericos

    e polticos que me levaram a adotar a postura assumida durante o perodo de

    trabalho/convivncia direta com os ndios no qual me envolvi num misto de pesquisa

    7 Aquela etapa da pesquisa que Roberto Cardoso de Oliveira (2000: 18) indica como sendo as etapas do

  • 38

    participativa e convivncia pesquisadora, postura/prtica metodolgica que desde julho

    de 1979 orienta a minha atuao como indigenista/antroplogo com os ndios, levando-

    me a uma situao a que Malinowski certamente qualificaria como anti-etnlogo, uma

    vez que sempre estiveram ausentes de mim o sentimento de desnimo e desespero

    depois de terem fracassado inteiramente muitas tentativas obstinadas, porm, inteis, de

    estabelecer um verdadeiro contato com os nativos e de coletar qualquer material, os

    perodos de desesperana, nos quais me enterrava na leitura de romances, do mesmo

    modo que um homem recorre bebida num acesso de depresso e do enfado tropical

    (Malinowski, 1980: 41). Por tudo isso este captulo autorreflexivo no representa um

    olhar sobre o tempo passado nas aldeias ou as recordaes, recordos, da vida com os

    ndios. Em conjunto com o captulo anterior, ao qual est intimamente associado, estes

    captulos, 7 e 7A, representam o reafirmar do compromisso com o objeto de estudo e

    o estilo de pesquisa/convivncia que me fizeram indigenista/antroplogo.

    O Captulo 8, Territrio / terra indgena, assinala duas diferentes concepes de

    terra, oriundas de vises de mundo distintos, o que significa dizer de sistemas culturais

    distintos. A viso indgena, para a qual terra entendida como espao de vida em

    sociedade, uma viso para qual homem e terra esto intimamente relacionados, e a viso

    do branco, que mais corretamente deve ser dita, viso do mundo moderno ocidental,

    para a qual terra entendida a partir de lgica produtivista e individualista em que uso e

    propriedade adquirem o mesmo sentido, e na qual homem e terra so dissociados no

    sendo concebida nenhuma outra relao que no seja de ordem utilitria. Como assinala

    o captulo, a partir destas diferenas de entendimento que surgem os conflitos pela

    terra. E dos conflitos pela terra que surge a necessidade de reconhecimento pelo

    Estado do direito indgena terra, um direito que apesar de previsto em lei e

    ver e do ouvir de apreenso dos fenmenos sociais.

  • 39

    seguidamente desrespeitado at mesmo por instncias e interesses do Estado, que criam

    dificuldades e artifcios administrativos e jurdicos para dificultar e at mesmo

    inviabilizar a legalizao das terras ocupadas pelos grupos locais como terra indgena.

    O captulo assinala ainda cenrio poltico de enfrentamento dos direitos indgenas

    consignados em dispositivos legais nacionais e internacionais no qual interesses anti-

    ndio procuram anular, e mesmo excluir, os direitos coletivos dos grupos tnicos;

    cenrio marcado por poderes econmicos, polticos e miditicos que se opem a que o

    Estado reconhea terras indgenas destinadas ao uso exclusivo de populaes

    indgenas, contraposto pela ao inovadora das iniciativas efetivadas pelos prprios

    grupos locais de promover a demarcao das terras que ocupam, e por outro lado. Um

    cenrio de conflito alimentado por poderosos interesses de ocupao das terras e pelo

    preconceito contra os ndios, dando origem a processos de ordem jurdica que criam

    dificuldades ao reconhecimento das terras indgenas. Apesar das diferentes

    concepes (dos ndios e dos brancos) de terra, as disputas territoriais no decorrem

    apenas das diferentes concepes de terra, mas muito mais pelos interesses diferentes

    que tais concepes pem em jogo, principalmente no que diz respeito

    ocupao/controle/domnio/posse/propriedade da terra e ao uso produtivo e/ou

    mercantil da terra. O captulo introduz a discusso sobre os procedimentos de

    demarcao de terras indgenas e a iniciativa dos ndios de demarcar por conta prpria

    as suas terras. Os procedimentos demarcatrios e a participao dos ndios nas

    demarcaes so analisados mais aprofundadamente no prximo captulo.

    O Captulo 9, Procedimentos de demarcao de terras indgenas, toma para

    estudo de caso os trs procedimentos oficialmente reconhecidos pelo Estado para a

    demarcao fsica de terras indgenas demarcao convencional, demarcao

    participativa e auto-demarcao , sendo analisadas a iniciativa dos ndios Kulina no

  • 40

    mdio rio Juru, a primeira iniciativa de auto-demarcao reconhecida pelo Estado, e

    duas outras demarcaes de terras indgenas conduzidas a partir do procedimento

    tradicional de demarcao e outra conduzida a partir do procedimento institucionalizado

    pelo PPTAL/Funai da iniciativa Kulina. Para a definio dos trs procedimentos

    demarcatrios como estudos de caso foram levados em conta aspectos etnolgicos e

    de ordem geogrfica. A delimitao geogrfica foi facilitada pelo fato de que numa

    mesma regio, mdio rio Juru, foram realizadas trs demarcaes praticamente

    simultneas, cada uma efetivada por uma das sistemticas validadas pelo Estado

    brasileiro para o reconhecimento de terras indgenas, e, principalmente conhecimento

    que acumulei durante longo tempo de trabalho indigenista/antropolgico realizado na

    regio. O conhecimento etnolgico sobre os grupos Kulina e Kanamari, advindo deste

    tempo de trabalho no rio Juru, foi, talvez, o aspecto que mais pesou para a definio

    pelo estudo das trs demarcaes realizadas em terras Kulina e Kanamari no mdio rio

    Juru. Um terceiro aspecto que influiu nesta definio o fato de meu envolvimento

    pessoal, e como profissional, em diferentes nveis de envolvimento e diferentes

    momentos, nas trs demarcaes. O objetivo do captulo no detalhar a dinmica

    processual de demarcao das terras indgenas, nem, tampouco, fazer etnografias dos

    trs diferentes procedimentos de demarcao operacionalizados pela Funai como

    sistemticas de regularizao fundirias das terras ocupadas por grupos indgenas. O

    propsito analisar a participao dos ndios nos diferentes procedimentos

    demarcatrios, ressaltando as contribuies e/ou obstculos criados por cada um destes

    procedimentos para a retomada da autonomia tnica que desde os anos 1970 se constitui

    na principal reivindicao dos povos indgenas no apenas no Brasil, mas em toda a

    Amrica.

  • 41

    O Captulo 10, Da luta pela autodeterminao s armadilhas da parceria,

    observa a tenso emancipao-regulao presente em todo relacionado social,

    ressaltando a contribuio positiva das diferentes iniciativas indgenas para a construo

    de relaes intertnicas plurais, indicando a necessria de superao do Estado moderno

    por Estados pluritnicos. Uma nova forma de organizao poltica, portanto um novo

    tipo de Estado nacional que na opinio de vrios analistas est em construo,

    impulsionada, no exclusivamente, mas muito fortemente, pelas lutas dos povos

    indgenas da Amrica Latina, o que significa dizer pelos sistemas sociais, polticos e

    epistemolgicos dos grupos tnicos que ainda hoje continuam a existir em toda a sua

    fora e eficcia, apesar dos mais de quinhentos anos de regulao hegemonia imposta

    pela conquista. Por outra parte, a partir das constataes empricas observadas em

    sesses anteriores, este captulo assinala o risco de aniquilamento e anulao da

    emancipao social presente em iniciativas tnicas quando estas so submetidas a

    parcerias com o Estado para a implementao de polticas pblicas destinadas aos

    povos indgenas. Embora o desperdcio das experincias indgenas esteja sempre

    presente nas relaes de parceria entre organizaes e entidades indgenas e rgos

    pblicos, sendo possvel identific-lo atravs de uma anlise conduzida pelo

    pensamento crtico, o captulo no pretende assumir um tom negativo, sugerindo a

    postura de um ceticismo resistente nas relaes do Estado nacional com os povos

    indgenas, uma postura poltico-intelectual que adota o sentimento ctico para a crtica e

    que se alimenta na resistncia tnica dos povos indgenas para afirmar a seu

    componente efetivao da resistncia ctica. Todo o captulo toma como foco a

    autodemarcao enquanto um projeto etnopoltico para a construo de realidade futura,

    dando nfase na auto-demarcao Kulina, a forma mais completa iniciativa

    emancipatria produzida pelos povos indgenas no Brasil.

  • 42

    Durante os debates em um dos seminrios acadmicos realizados no Centro de

    Estudos Sociais (CES), Boaventura, em sua forma de instigar a discusso, perguntou-

    me: Por que estabelecer fronteiras para os ndios quando a globalizao derruba,

    elimina fronteiras? Por que demarcar terras indgenas hoje?.

    claro que a pergunta de Boaventura foi uma provocao, um convite ao

    debate, at porque o conjunto de suas proposies conceituais transio

    paradigmtica, globalizao contra-hegemnica, hermenutica diatpica, ecologia de

    saberes, traduo intercultural, democracia intercultural, estados pluritnicos e

    plurinacionais, justia cognitiva, igualdade na diversidade etc. deixa claro que no h

    uma contradio entre globalizao, ou globalizaes, como o prprio Boaventura

    prefere dizer, e a afirmao de identidades particulares, que para alm das fronteiras

    desfeitas pelos processos de globalizao, o que de fato vem ocorrendo a expresso

    cada vez mais forte de grupos locais que no contato entre povos diferentes se fortalecem

    enquanto expresses sociopolticas diferenciadas.

    O que eu espero que essa Tese se oferea como uma resposta quela pergunta

    (Por que estabelecer fronteiras para os ndios quando a globalizao derruba, elimina

    fronteiras? Por que demarcar terras indgenas hoje?). Uma resposta surgida da

    constatao de que para alm de simultneos ao mundo moderno os ndios conformam

    sociedades polticas contemporneas e que dessa contemporaneidade dos grupos tnicos

    com o mundo moderno podem surgir contribuies efetivas e eficazes para a construo

    de novas formas de organizao poltica que abdicando da uniformizao (ilusria!) e

    hegemonia (trgica!) estejam fundadas no reconhecimento da pluralidade e na cogesto

    do poder entre as diferentes parcialidades socioculturais que se completam no todo

    preservando as suas respectivas diferenas.

  • 43

    A palavra falada provem de muita gente, de muitos lugares. Surge em um

    tempo despojado de sua durao. A palavra escrita a de uma pessoa que no fala e se

    dirige a outra que tampouco fala, a quem no conhece e a quem nunca viu nem ouviu

    (Roa Bastos, 1996: 51). Em suma, o que diz Augusto Roa Bastos que um livro, e por

    extenso, uma tese, uma dissertao, um artigo, nunca escrito por uma nica pessoa.

    Esta Tese foi escrita por palavras de muitas pessoas de muitos lugares da

    Amaznia. Muita gente, muitos olhares, muitas vises de mundo; algumas que se

    articulam em harmonia, outras que se interrogam, e outras mais que se conflituam,

    como acontece na maior parte das vezes com os povos indgenas em situao de contato

    com as sociedades nacionais. Por muitos olhares, muitas histrias de vida e muitas

    estrias vividas, muitas narrativas de experincias pessoais, muitos relatos de estratgias

    de lutas e resistncias; muitas confidncias trocadas; muitas expectativas partilhadas.

    Muitas vozes, algumas distantes, outras hoje j silenciadas pelo passar do tempo que as

    levou para outros lugares ainda mais distantes. De modo especial o Captulo 7 foi

    escrito por muitas vozes que me ajudam pensar/repensar a minha prtica enquanto

    indigenista/antroplogo em contato com os ndios e o Captulo 7A, por muitas vozes

    que me ajudaram a pensar a mim mesmo, a partir do meu trabalho vivido entre os

    ndios. Por entender, como Malinowski, que uma breve descrio das atribulaes de

    um etngrafo, tal como eu mesmo as vivi, poder esclarecer melhor a questo do que o

    poderia qualquer longa discusso abstrata (Malinowski, 1980: 40), optei por adotar

    nestes captulos de metodologia uma atitude mais reflexiva, onde assinalo os enfoques e

    abordagens terico-conceituais, a postura metodolgica e as tcnicas de pesquisa que

    me acompanharam durante o perodo de permanncia/convivncia na aldeia e de

    pesquisa de campo para o doutoramento; em fim, os olhares e posturas que contriburam

    para a minha vida/trabalho com os ndios me permitisse tambm compreender ainda

  • 44

    que uma compreenso parcial, limitada pelo olhar que a minha cultura me condiciona

    de uma forma mais distanciada, mais mediada por teoria a vida/trabalho dos ndios,

    No muito tempo para a sua finalizao, essa Tese, essa bendita Tese, se tornou

    para mim uma obsesso insana, incontrolvel; uma nsia desenfreada de rechear, mais e

    mais e mais, a dita cuja com falas, expresses, ideias, conceitos, reflexes e

    formulaes tericas, minhas prprias e pinadas de outros, novos dados empricos mais

    recentes, atualizaes sempre interminveis. Obsesso insana, incontrolvel, at mesmo

    em sonho pesadelo!? , que no me deixava ver que uma Tese sempre inconclusa,

    sempre experimental; experimental, no sentido que Darcy Ribeiro e Boaventura do

    ao termo:

    Aqui na UnB, quando se fez a Lei fui eu que a redigi. Nela se inscreveu que esta uma Universidade experimental, livre para tentar novos caminhos na pesquisa e no ensino. [...] O importante que no se perca a liberdade de tentar acertar por diversos caminhos. A responsabilidade de ousar. O direito de errar (Ribeiro, 1986: 17); Por que fao aqui essa proposta de experimentalismo? Por duas razes. A primeira, como dizia, que realmente no temos as solues. [...] E muitas vezes no se pode antecipar tudo. O experimentalismo permite em primeiro lugar desdramatizar os conflitos. [...] Ter um marco, um horizonte temporal que depois se revisa, ou ter questes que se deixam abertas ajuda nessa direo tambm. A segunda razo que apia o experimentalismo constituinte que permite que o povo mantenha o poder constituinte (Santos, 2007c: 29).

    Uma Tese sempre inconclusa, sempre experimental; nunca perfeita, e, ao

    mesmo tempo, a mais completa que possvel a todo tesista candidato a doutor

    produzir no seu determinado momento histrico, intelectual, pessoal, emocional,

    afetivo, poltico etcetera.

    Descobri, por fim, apoiado em mxima de Boaventura em muitos textos exibida,

    que, para alm de viver obsessiva e insanamente a Tese eternamente prolongada/adiada,

    a compreenso do mundo muito mais ampla que a compreenso ocidental do mundo

    que a minha Tese me permitiria continuar a compreender. Assim, finalmente, descobri

  • 45

    que, em mim, a Tese estava pronta, bastando apenas format-la nos cnones ditados por

    essa Coimbra, cidade to ilustre, de to velhos sbios (Saramago, 1982: 116-117).

    Descobri... Redescobri em mim a necessidade, muitas vezes adiada de concluir a Tese e

    tornar a Coimbra para, em fim, defender a Tese e concluir o doutorado iniciado em

    1998; afinal conveniente que me saia doutor, ttulo sem o qual no me so permitidos

    novos vos.8

    Em guisa de prefcio, Florestan Fernandes, um dos mais, se no o mais

    ntegro cientista social brasileiro, realiza uma verdadeira profisso de f em seu ltimo

    livro, publicado aps a sua morte: Para o socilogo, no existe neutralidade possvel: o

    intelectual deve optar entre o compromisso com os exploradores ou com os explorados

    (1995: 29), e, para que no paire dvidas, sem meias palavras declara o seu

    compromisso:

    A recusa ostensiva do poder, em um poeta, e o colocar-se em cima do muro, atravs da neutralidade tica, de um cientista social ou de um filsofo, no so apenas modalidades disfaradas ou sublimadas de participar do poder e de exerc-lo hipocritamente. Elas constituem limites correntes de aceitar o poder maldito ou perigoso da inteligncia corrosiva e devastadora. [...] Ir s razes das coisas pode ser, para um escritor liberal, descobrir uma maneira inteligente de preservar a ordem social estabelecida, e, para um escritor revolucionrio, um modo congruente de fazer a ordem social estabelecida voar pelos ares (Fernandes, 1995: 29-30).

    Repetindo as palavras do mestre Florestan Fernandes, estou convencido que

    No momento atual, o que me impele para o movimento poltico no a ambio de poder, mas a compulso de servir. Servir a quem e por qu? Aos proletrios [no meu caso aos ndios], de onde provenho [aos quais adotei, e que me adotaram], e para que eles conquistem peso e voz na sociedade civil, poder real nas relaes com o Estado e com a demolio da ordem existente. Enfim, desempenhar um papel ativo na ruptura definitiva com um passado que se reproduz constantemente, sob novas formas. No quero ser ventrloquo ou o outro de um proletariado [de um ndio] que comea a lutar com evidente vitalidade. Porm, ocupar algum lugar no processo pelo qual esse proletariado

    8 [...] Bartolomeu Loureno, que no Brasil nasceu e novo veio pela primeira vez a Portugal, [...] (Saramago, 1982: 62); [...] vai tornar a Coimbra, um homem pode ser grande voador, mas -lhe muito conveniente que saia bacharel, licenciado e doutor, e ento, que no voe, o consideram (Saramago, 1982: 115).

  • 46

    [esse ndio] se transforma e, ao mesmo tempo, modifica a sociedade brasileira (Fernandes, 1995: 30).

    H sempre uma diferena fundamental entre objetividade e neutralidade. Ns

    precisamos ser objetivos, mas, no devemos ser neutros, so palavras de outro

    mestre (Santos, 2006c), que, convencido, repito,

    [...] Porque ser objetivo respeitar todas as metodologias que ns podemos criar para criarem uma coisa que fundamental a toda pesquisa cientfica: deixarmo-nos surpreender pela realidade. Ns s no seremos dogmticos se nos deixarmos surpreender pela realidade. [...] Ns devemos sempre saber de que lado estamos. Porque, neste mundo moralmente injusto, h os opressores e os oprimidos e ns, como cientistas, como cidados, devemos saber de que lado estamos. Devemos saber para que serve nossa cincia ou nosso conhecimento (Santos, 2006c).

    E, para que no paire dvidas sobre o meu compromisso, repito, aqui, as

    palavras destes dois mestres Florestan e Boaventura , que me acompanharam na

    feitura desta Tese, que agora lhes entrego.

    Portanto, no se iluda comigo, leitor. Alm de antroplogo, sou homem de f e

    de partido. [...] No procure, aqui, anlises isentas (Ribeiro, 1995: 17). E o meu

    partido, h muito j est tomado; o meu partido o ndio.

  • 47

    CAPTULO 1

    CENRIOS E PAISAGENS

    1.1. Amaznias Amaznia

    Quando se fala na Amaznia,

    a imensa regio que ocupa dois quintos da Amrica do Sul, falta consenso e sobram polmica, fantasia e impreciso.

    Em torno dessa terra cujo nome foi tirado das brumas da fantasia, foi-se formando uma srie de mitos e meias verdades

    que se incorporaram ao imaginrio coletivo. s vezes, tal imaginrio chega prpria cincia

    ou aos discursos oficiais dos pases que a compem. Esteves, Antnio R. (1993: 7)

    A Amaznia um espao em tudo diversificado; um espao mltiplo no apenas

    na sua configurao fsica, mas tambm imensamente diversificado em aspectos sociais,

    culturais, tnicos e polticos.

    A grandiosidade territorial e fsica da Amaznia de tal modo impactante que

    desde as primeiras investidas europeias a regio passou logo a dominar o imaginrio

    ocidental. Desse modo, a grande maioria das produes, no apenas no campo da

    literatura e dos meios de comunicao, mas mesmo nas chamadas cincias humanas,

    esto filiadas diretamente a uma episteme naturalista pautada em vastas digresses

    sobre o meio fsico como condio para elucidar os homens (Souza Santos, 2008).

    Uma grandiosidade territorial, fsica e ambiental que na maior parte das vezes acaba por

    impor uma determinao geogrfica aos estudos das sociedades amaznicas, sendo este

    um dos primeiros obstculos a serem superados para a formulao de uma viso no-

    etnocntrica que supere prenoes essencialistas sobre a Amaznia e suas populaes.

    A Amaznia um espao apenas homogneo no tratamento que lhe foi dado

    pela colonizao recente orientada por um modo de ser externo e um modelo estranho

    de ocupao social que no consideraram/consideram as experincias acumuladas pelas

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    populaes nativas que h milnios se acham instaladas na regio; uma colonizao

    externa baseada em princpios e fundamentos que para alm de seus objetivos

    pragmticos imediatistas, primeiro de tomada de posse e ocupao territorial colonial e

    logo a seguir, e quase sempre concomitante, de explorao econmica dos recursos

    naturais, pouco interesse manifesta, tanto pela rica diversidade natural como pela

    imensa diversidade social responsvel por fazer da Amaznia uma das reas de maior

    sociobiodiversidade no planeta.

    Embora hoje j se fale na importncia e riqueza que representa a

    sociobiodiversidade da regio, as populaes amaznicas continuam a no despertar um

    interesse efetivo em si mesmas, mas unicamente, e quando muito, como fonte de

    conhecimento sobre a biodiversidade e como agentes facilitadores do acesso aos

    recursos naturais (Oliveira Neves, 2009).

    Assim como nas antigas expedies naturalistas oitocentistas, os ndios, e

    tambm agora as populaes tradicionais, como so chamados os segmentos no-

    indgenas da sociedade regional, continuam a ser vistos no como produtores e

    mantenedores da biodiversidade, mas apenas como informantes, guias ou carregadores

    nativos; quase como uma espcie de matria prima disposio para ser tambm ela

    explorada na mesma lgica predatria descompromissada com qualquer princpio de

    direitos humanos e de cidadania.

    O olhar prtico sobre a Amaznia continua a perceber a regio segundo os dois

    termos clssicos da modernidade: natureza e cultura, tomados como entidades

    dissociadas, inconciliveis e mutuamente excludentes, principalmente no que se refere

    aos ndios, que antes de tudo so vistos como obstculo ocupao produtiva e ao

    desenvolvimento amaznico, tomados ocupao produtiva e desenvolvimento a

    partir da concepo positivista (Oliveira Neves, 2009). Em termos polticos, a

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    Amaznia uma extensa faixa de de 7,5 milhes de km2, o que representa 43% da

    Amrica do Sul, e que se estende por nove pases: Bolvia, Brasil, Colmbia, Equador,

    Guiana, Guiana Francesa, Peru, Suriname e Venezuela.

    MAPA 1 AMAZNIA INTERNACIONAL E

    AMAZNIA BRASILEIRA

    Fonte: www.geografiaparatodos.com.br

    Institudo em 1953, Amaznia Legal brasileira (Amaznia Legal) um conceito

    poltico, e no geogrfico, destinado a dotar o Estado brasileiro de dispositivos de

    governo para o planejamento e promoo do desenvolvimento da Amaznia brasileira,

    regio que abrange a totalidade dos Estados do Acre, do Amap, do Amazonas, do Par,

    de Rondnia e de Roraima e parte dos Estados do Mato Grosso, de Tocantins e do

    Maranho, com uma superfcie de aproximadamente 5.217.423 km, correspondendo a

    cerca de 61% do territrio brasileiro e 68% do territrio da Amaznia internacional.

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    MAPA 2 AMAZNIA LEGAL BRASILEIRA

    Fonte: http://www.google.com.br/imgres

    A Amaznia uma regio ambgua e, ainda hoje, tratada com ambiguidade,

    onde o discurso de preservao mera retrica de polticas pblicas, sendo

    frequentemente suplantado por prticas no-sustentveis.

    Nos ltimos anos a presso econmica tem sido a maior razo para a devastao

    da floresta e para o conseqente prejuzo na qualidade de vida amaznica, situao que

    j atingiu ndices crticos na fronteira sul da Amaznia Legal brasileira com a regio de

    cerrado do Centro-Oeste, onde o arco do desmatamento, como denominada a rea

    de floresta que se estende de Rondnia ao oeste do Maranho, passando pelo norte do

    Mato Grosso e sul do Par, funciona como a porta de entrada para a destruio

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    ambiental que o agronegcio vai deixando no rastro da expanso de seus campos de

    monocultura sobre a floresta tropical.

    Destruio ambiental, apoiada e estimulada pelos programas governamentais de

    desenvolvimento que a expanso do agronegcio, a extrao madeireira, a explorao

    mineral e a ocupao desordenada empurram cada vez mais para o interior da floresta.

    Soja, arroz e biodiesel; concesso de explorao florestal e mineral; projetos

    hidreltricos e abertura de estradas; muito mais do que novos modelos de

    desenvolvimento regional e nacional, so estes os atuais responsveis pelo

    desenvolvimento amaznico s custas da floresta em p e do desperdcio de saberes

    produzidos por sistemas de conhecimentos nativos (ndios e populaes tradicionais)

    menosprezados por uma lgica desenvolvimentista pseudocientfica de construo a

    partir da predao (Oliveira Neves, 2009).

    Por fim, cabe assinalar que esta sesso, Amaznias Amaznia, foi

    inicialmente pensada como Amaznia, Amaznias, pretendendo com isso ressaltar a

    existncia de muitas Amaznias, muitas realidades amaznicas distintas e

    profundamente diferentes entre si, que configuram aquilo genericamente denominado

    de Amaznia. Embora eu continue a pensar que o ttulo originalmente pensado o mais

    indicado, a opo adotada de inverso dos termos para a formatao do ttulo final desta

    sesso tem como propsito fugir repetio da expresso Amaznia, Amaznias, que

    d nome ao livro de Carlos Walter Porto Gonalves (2001). Assim, para no incorrer,

    ainda que inconsciente, no erro sempre imprprio e desnecessrio da reproduo do

    nome de uma obra, fao aqui uma alterao na ordem dos termos, at mesmo porque a

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    forma final adotada, Amaznias Amaznia, no modifica o sentido inicialmente

    pretendido para este texto9.

    1.2. Por que Amaznia?

    O nome Amaznia est ligado expedio do navegador espanhol Francisco

    Orellana, que em 1541, procura das lendrias civilizaes de ouro do El Dorado

    rasgou a floresta do Pacifico ao Atlntico, constituindo-se no primeiro europeu,

    juntamente com aqueles que o acompanhavam na expedio, a percorrer o rio-mar em

    toda a sua extenso10. Tendo lutado contra uma tribo que lhes pareceu de ndias

    guerreiras, Orellana e seus homens fizeram associao s amazonas, mulheres

    guerreiras da mitologia greco-romana, advindo da o nome Amaznia que perdura at os

    dias atuais. Muito provavelmente o que os espanhis julgaram serem mulheres

    guerreiras tenham sido ndios Omgua, avistados nas margens do alto-mdio rio

    Solimes, que resistiram entrada dos espanhis11.

    A toponmia amaznica est praticamente toda ela ligada presena indgena,

    numa prova inconteste da presena dos ndios anterior s populaes de origem

    europeia que apenas a partir da segunda metade do sculo XVI se instalou na regio.

    So vrias as teorias que procuram explicar as origens dos nomes dos estados brasileiros

    que compem a Amaznia:

    Acre derivao das palavras tupi a'kir (rio verde) ou da forma a'kir (dormir,

    sossegar).

    Amap derivao da palavra tupi ama'pa.

    9 Agradeo Diogo Labiak Neves pela leitura crtica, e por me apresentar o livro de Carlos Walter Porto Gonalves, chamando a minha ateno para a reproduo de nomes a que eu estava incidindo. 10 Rio-mar: o rio Amazonas, pela sua extenso. 11 Na cultura dos antigos Omgua, tradicionalmente habitantes da regio do alto rio Solimes, na fronteira Brasil Colmbia Peru, os homens usavam longos cabelos, o que deve ter contribudo para o mal entendido pelos membros da expedio Orellana.

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    Maranho derivao das palavras tupis pa'ra (mar), na, ana (semelhante) e jh

    (sair, ir correr), onde o significado semelhante a um mar que corre, era a forma como

    os indgenas das terras que hoje forma o Peru chamavam o rio Maraon.

    Par derivao da palavra tupi pa'ra (mar).

    Roraima derivao das palavras caribe rora (verde) e im (monte), sendo

    monte verde a forma como os indgenas chamavam o monte Roraima.

    Tocantins derivao da palavra tupi tucan-tim (nariz de tucano); etnnimo de

    um povo indgena, que batizou o rio de mesmo nome e mais tarde o estado.

    Rondnia nome atribudo em homenagem ao marechal Cndido Rondon, o

    fundador do Servio de Proteo ao ndio (SPI)12 e responsvel pela definio das bases

    da poltica indigenista no Brasil.

    Amazonas nome atribudo pelos espanhis ao rio Amazonas, a partir da

    associao com as amazonas guerreiras que pensaram ter avistado em suas margens.

    Mato Grosso nome atribudo pelos bandeirantes s minas de ouro encontradas

    na regio Centro-Oeste.

    1.2.1. O mito do vazio populacional

    Paralelamente percepo da grandiosidade da Amaznia, na mesma medida

    desenvolveram-se os preconceitos sobre a regio e suas gentes. Talvez um dos mais

    consolidados preconceitos seja aquele que toma a Amaznia como uma terra sem gente,

    um imenso vazio demogrfico, como em meados dos anos 1800 propagandeava o

    Imprio brasileiro13, vido por atrair para a regio um contingente populacional que

    12 Inicialmente SPILTN: Servio de Proteo ao ndio e Localizao dos Tra