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14 PENAS PRIVATIVAS DE LIBERDADE ___________________________ As penas privativas de liberdade constituem, modernamente, a base de todos os sistemas penitenciários do mundo civilizado. Se, em relação às penas corporais e à pena capital, são, aparentemente, mais humanas, à medida que não são perpétuas, a prática de sua execução, em todos os países do mundo, sem exceção conhecida, revela sua mais profunda desumanidade. A Constituição Federal, no art. 5º, XLVI, determinou que o legislador adotasse, entre outras, penas privativas ou restritivas de liberdade, de perda de bens, de multa, de prestação social alternativa e de suspensão ou interdição de direitos, proibindo, no inciso XLVII, a adoção da pena de morte, exceto em caso de guerra declarada nos termos do art. 84, XIX, das penas de caráter perpétuo, de trabalhos forçados, de banimento e de natureza cruel. Esses dois princípios constitucionais orientam o legislador ordinário na construção do direito penal. Atendendo ao mandamento constitucional, nosso Código Penal, no art. 32 estabeleceu que as penas são “I – privativas de liberdade; II – restritivas de direitos; III – de multa”. Nos arts. 33 a 42, estabelece as normas sobre as duas espécies de penas privativas de liberdade adotadas, a reclusão e a detenção, adiante tratadas. 14.1 RECLUSÃO E DETENÇÃO São duas, pois, as espécies de penas privativas de liberdade: reclusão e detenção. Qual a diferença entre elas, se é que existe? O art. 33 do Código Penal estabelece que a pena de reclusão deve ser cumprida em regime fechado, semi-aberto ou aberto, ao passo que a de detenção será cumprida em regime semi-aberto ou aberto, salvo a necessidade de transferência ao regime

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São duas, pois, as espécies de penas privativas de liberdade: reclusão e termos do art. 84, XIX, das penas de caráter perpétuo, de trabalhos forçados, de em regime fechado, semi-aberto ou aberto, ao passo que a de detenção será cumprida Se, em relação às penas corporais e à pena capital, são, aparentemente, mais humanas, à medida que não são perpétuas, a prática de sua execução, em todos os O art. 33 do Código Penal estabelece que a pena de reclusão deve ser cumprida

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PENAS PRIVATIVAS DE LIBERDADE

___________________________

As penas privativas de liberdade constituem, modernamente, a base de todos os

sistemas penitenciários do mundo civilizado.

Se, em relação às penas corporais e à pena capital, são, aparentemente, mais

humanas, à medida que não são perpétuas, a prática de sua execução, em todos os

países do mundo, sem exceção conhecida, revela sua mais profunda desumanidade.

A Constituição Federal, no art. 5º, XLVI, determinou que o legislador adotasse,

entre outras, penas privativas ou restritivas de liberdade, de perda de bens, de multa,

de prestação social alternativa e de suspensão ou interdição de direitos, proibindo, no

inciso XLVII, a adoção da pena de morte, exceto em caso de guerra declarada nos

termos do art. 84, XIX, das penas de caráter perpétuo, de trabalhos forçados, de

banimento e de natureza cruel.

Esses dois princípios constitucionais orientam o legislador ordinário na

construção do direito penal.

Atendendo ao mandamento constitucional, nosso Código Penal, no art. 32

estabeleceu que as penas são “I – privativas de liberdade; II – restritivas de direitos;

III – de multa”.

Nos arts. 33 a 42, estabelece as normas sobre as duas espécies de penas privativas

de liberdade adotadas, a reclusão e a detenção, adiante tratadas.

14.1 RECLUSÃO E DETENÇÃO

São duas, pois, as espécies de penas privativas de liberdade: reclusão e

detenção. Qual a diferença entre elas, se é que existe?

O art. 33 do Código Penal estabelece que a pena de reclusão deve ser cumprida

em regime fechado, semi-aberto ou aberto, ao passo que a de detenção será cumprida

em regime semi-aberto ou aberto, salvo a necessidade de transferência ao regime

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fechado.

Assim, a primeira diferença entre as duas modalidades de penas, que seria o

regime de seu cumprimento, não existe, pois tanto a pena de reclusão, quanto a de

detenção, podem ser cumpridas em quaisquer dos três regimes, cujas regras serão

estudadas adiante. Sim, pois dentro do sistema progressivo brasileiro, mesmo o

condenado à pena de reclusão poderá, em dado momento, cumprir parte dela no

regime aberto, e o condenado à pena de detenção poderá, se necessário, cumprir parte

dela em regime fechado.

Estaria a diferença das penas relacionadas com a gravidade dos crimes a que

correspondem? A de reclusão seria para crime mais grave e a de detenção para crime

menos grave?

Tomem-se dois exemplos: para o crime de induzimento, instigação ou auxílio a

suicídio, definido no art. 122 do Código Penal (induzir ou instigar alguém a suicidar-se

ou prestar-lhe auxílio para que o faça), a pena cominada é de reclusão, de dois a seis

anos, se o suicídio se consuma, ou reclusão, de um a três anos, se da tentativa de

suicídio resulta lesão corporal de natureza grave. Já para o crime de infanticídio,

tipificado no art. 123 do Código Penal (matar, sob a influência do estado puerperal, o

próprio filho, durante o parto ou logo após), a pena é de detenção, de dois a seis anos.

Nos dois crimes, havendo morte, a quantidade da pena é idêntica, de dois a seis

anos, mas na participação em suicídio a pena é de reclusão, ao passo que no infanticídio

a pena é de detenção. Qual dos crimes é o mais grave, se o bem jurídico é o mesmo, a

vida? Igual pena, de detenção por dois a seis anos, é cominada ao abandono de recém-

nascido, seguido de morte (“expor ou abandonar recém-nascido, para ocultar desonra

própria”).

Difícil afirmar qual dos crimes é o mais grave, qual comportamento merece

maior censura, maior reprovação. Discutindo-os, encontrar-se-iam as mais diversas

razões em todos os sentidos e muito provavelmente não se encontraria uma solução

pacífica, extreme de dúvidas.

Conquanto ambas sejam privativas da liberdade, aponta-se como diferença

entre as penas o rigor com que seriam executadas. A de reclusão seria executada com

maior rigor, necessariamente em estabelecimento penal de segurança máxima ou

média, ao passo que a de detenção seria cumprida em estabelecimento de segurança

mínima, ou em colônia agrícola, industrial ou similar.

Esta diferença, todavia, não diz respeito à natureza da pena, mas ao regime de

cumprimento de qualquer delas, conforme estabelece o § 1º do art. 33 do Código Penal.

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Se alguém for condenado a duas penas, uma de reclusão e outra de detenção, a

primeira será executada em primeiro lugar, como manda o art. 69 do Código Penal,

mas esta, evidentemente, também não é uma diferença entre elas.

Se alguém for condenado a uma pena de reclusão, por um crime doloso

cometido contra o próprio filho, um seu tutelado ou curatelado, será declarado incapaz

para o exercício do pátrio poder, da tutela ou da curatela, mas esse efeito da

condenação não é característica que distingue a pena de reclusão da pena de detenção,

pois tal conseqüência decorre da natureza do crime – doloso – e do sujeito passivo – o

próprio filho, tutelado ou curatelado –, não da pena a ele cominada.

Aponta-se, ainda, como diferença entre reclusão e detenção a possibilidade de o

juiz, na hipótese de inimputabilidade – exceto a decorrente de menoridade –

determinar tratamento ambulatorial se a pena cominada ao fato típico for de detenção.

Não é esse um critério diferenciador da qualidade das duas penas, pois a norma

do art. 97 do Código Penal cuida de outro instituto – medida de segurança – que é,

exatamente, a resposta que o direito dá ao que praticou um fato típico ilícito e que não

poderá ser apenado, por ser considerado inimputável. Esse critério diz respeito à opção

que o juiz poderá fazer entre as duas espécies de medida de segurança, de internação ou

ambulatorial, que estariam correlacionadas com as duas espécies de penas, reclusão e

detenção, respectivamente.

Com base nessa norma, o máximo que se pode afirmar é que a pena de reclusão

é mais severa que a de detenção, como é mais severo o tratamento médico mediante

internação, que o pela via ambulatorial. Aliás, melhor dizer, em vez de mais severo,

menos desejado, pois que, cientificamente e na prática, não se pode afirmar ser – por si

só – mais brando um tratamento ambulatorial que uma internação hospitalar.

Costuma-se falar, ainda, como sendo a diferença entre as modalidades de pena, o

tratamento estabelecido pelo Código de Processo Penal aos indiciados ou acusados da

prática de crimes punidos com reclusão, diferente do atribuído aos que teriam

praticado crimes punidos com detenção.

Por exemplo, no art. 323, I, que trata da concessão de fiança, a norma a proíbe

se o crime for punido “com reclusão em que a pena mínima cominada for superior a

dois anos”.

Evidentemente, essa norma não constitui critério diferenciador das duas

modalidades de pena. Tanto que o inciso III do mesmo artigo também proíbe a

concessão de fiança para os agentes de crimes dolosos punidos com pena privativa de

liberdade – reclusão ou detenção – se o acusado for reincidente, e o inciso IV, se o réu

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for vadio.

No art. 313, I, o estatuto processual esclarece a possibilidade de ser decretada a

prisão preventiva do acusado da prática de crime doloso punido “com reclusão”, e há

doutrinadores que vêem aí um critério diferenciador, mas outra vez não se trata de

diferença entre a espécie de pena, mas de requisitos estabelecidos pelo legislador do

processo penal que levam em conta a gravidade do crime.

Em síntese, a única diferença que se pode afirmar entre a penas de reclusão e a de

detenção é que a primeira deve ser mais grave, mais severa, executada de modo mais

rígido, pelo menos a princípio. Nada mais que isso.

Na prática do sistema punitivo brasileiro, todavia, não há diferenças entre as duas

penas, uma vez que tanto as penas reclusivas quanto as detentivas são, em sua grande

maioria, executadas nos mesmos estabelecimentos e sob as mesmas condições e regras.

O objetivo da lei, ao distinguir as espécies de pena, especialmente no momento da

cominação, foi o de contemplar os delitos mais graves com reclusão, e os menos graves,

com detenção, segundo seus critérios de valor que, se podem ser discutíveis do ponto

de vista filosófico, cultural, sociológico, são, todavia, o único meio inquestionável, em

face do princípio da legalidade.

ALBERTO SILVA FRANCO lembra:

“O legislador de 84 manteve a classificação ‘reclusão-detenção’, acolhida

na PG/40 e, sob este ângulo, não se posicionou de acordo com as legislações

penais mais modernas, que não mais a aceitam, porque as áreas de significado

dos conceitos de reclusão e de detenção estão praticamente superpostas e não

evidenciam nenhum critério ontológico de distinção”1, mas que as “mínimas

diferenças hoje detectadas (...) minimizam a separação entre a pena reclusiva e

a pena detentiva, reforçando cada vez mais a idéia da fusão de ambas no

conceito maior de penas privativas de liberdade.”2

Por isso, perfeitamente dispensável a preocupação com o encontro de diferenças

entre as espécies de penas, bem assim a luta para que os condenados a penas de detenção

sejam mais bem tratados que os condenados a penas de reclusão. O objetivo há de ser a

limitação de toda e qualquer pena privativa de liberdade – reclusão, detenção e prisão

simples – e a criação, consolidação ou implantação de outras penas autorizadas ou não

proibidas pela Constituição Federal: restrição de liberdade, restrição de direitos, multa,

1 Código penal e sua interpretação jurisprudencial. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 392. 2 Op. cit. p. 393.

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perda de bens, prestação social alternativa etc.

Enquanto não avança o legislador penal na construção de um novo sistema

punitivo que elimine, ou pelo menos restrinja de modo drástico, toda e qualquer pena

privativa de liberdade, é preciso conhecer, estudar, compreender o sistema atual, como

ele é, com suas regras e particularidades.

14.2 SISTEMA PROGRESSIVO E REGIMES PRISIONAIS

As penas privativas de liberdade deverão ser cumpridas com observância do

sistema progressivo, que é, segundo ALBERTO SILVA FRANCO, o “ponto de interseção

onde se conectam os princípios da legalidade, da individualização e da humanidade da

pena”. 3

A lição do grande mestre não pode ser ignorada.

Por muito tempo, somente se viu no princípio da legalidade sua face voltada

para a teoria do crime, para a necessidade da prévia tipificação, em lei federal

ordinária, stricto sensu, da conduta proibida pela norma penal. É verdade que, ao se

indagar do estudante o que é o princípio, ouve-se, na maior parte das vezes, a resposta

solerte: não há crime sem lei anterior que o defina. Ponto. Raramente, o interlocutor

recorda-se de que a necessidade da prévia lei diz respeito também à cominação da

pena, em qualidade e em quantidade.

Por outro lado, quando a Carta Magna afirma que não há pena sem prévia

cominação legal, está-se referindo aos três momentos da pena: cominação, aplicação e

execução. Em outras palavras, a legalidade deve imperar na necessidade da prévia

cominação, no momento da aplicação e por todo o processo de execução.

Na construção dos tipos, o legislador deve evitar o recurso a fórmulas dúbias

que levem à perplexidade. Bem assim deverá cominar penas de modo claro, preciso e

exato, em qualidade e em quantidade.

A pena, por sua vez, só pode ser aplicada com observância do conjunto das

normas processuais vigentes – due process of law – e de outros princípios

constitucionais, como o da amplitude da defesa e do contraditório e, principalmente, o

da exigência da fundamentação da decisão judicial que impuser a pena criminal. Além

disso, deverão ser observadas as normas do Código Penal atinentes à individualização –

outro princípio constitucional impostergável.

3 Op. cit. p. 389.

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Finalmente, a execução da pena também obedecerá aos princípios e normas

fundamentais. Legalidade, individualização, humanidade da pena. Eis a progressão.

Em que consiste o sistema progressivo brasileiro?

O Código Penal adotou três regimes de cumprimento das penas privativas de

liberdade: o regime fechado, o regime semi-aberto e o regime aberto, cujas regras e

características serão examinadas nos itens seguintes. Como as próprias denominações

indicam, o primeiro é o mais rigoroso e o último o mais brando. Vê-se, assim, uma

gradação dos três regimes.

A progressão implica a transferência do condenado do regime mais severo para

o regime mais brando. Do fechado para o semi-aberto e deste para o aberto no decorrer

do tempo e conforme seja o merecimento do condenado.

O sistema é de mão-dupla, pois, do mesmo modo que o sentenciado que

merecer poderá ser transferido para regime mais benéfico, igualmente poderá ser

transferido do regime mais brando para o mais severo: a regressão, que é a outra face

da moeda do sistema.

Como, quando e em que condições se darão a regressão e a progressão, e o que é

regime aberto, semi-aberto, fechado e quais suas regras são os temas abordados a

seguir, após breves considerações sobre o exame criminológico, a classificação e o

programa de tratamento dos condenados.

14.2.1 Exame criminológico, classificação e programa

individualizador

O sistema progressivo, com vistas na recuperação do condenado, não pode

prescindir de alguns institutos da maior importância: o exame criminológico, a

classificação e o programa individualizador.

O art. 34 do Código Penal estabelece que o condenado deverá ser submetido a

um exame criminológico, cujo objetivo é classificá-lo, a fim de que possa ser efetuada a

individualização – garantia constitucional – da pena durante a fase da execução.

Ninguém pode ignorar que, para se buscar o tratamento do condenado, torna-se

necessário, antes, o conhecimento de sua personalidade, com base no que será feita a

proposta de seu tratamento, a fim de que ele possa alcançar as condições necessárias a

sua reinserção na sociedade.

O exame criminológico é, na verdade, um conjunto de análises, de natureza

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médica, psicológica e social, com as quais o preso poderá ser classificado, com base no

qual se escolherão o estabelecimento prisional adequado e os métodos recomendados

para seu tratamento.

É fundamental conhecer a personalidade do condenado, por meio de exames

médico-biológico, psicológico, psiquiátrico, mais o estudo social de seu caso, sua

história.

Essa investigação científica tem por objetivo descobrir as causas da dificuldade

de adaptação do condenado no mundo social e estabelecer um diagnóstico sobre a

possibilidade de sua recuperação, com base no que se determina o tratamento

recomendado pelas ciências.

Este é o espírito da lei penal e da Lei de Execuções Penais (Lei nº 7.210/84)

que, em consonância com o art. 34 do Código Penal, prevê a obrigatoriedade do exame

criminológico para os condenados que tiverem de cumprir a pena no regime fechado,

facultada sua realização para os do semi-aberto.

A classificação visa formar grupos de condenados e distribuí-los nos vários

estabelecimentos prisionais, nos quais serão submetidos ao programa individualizador

de tratamento. Com a formação de grupos, separam-se aqueles considerados de mais

difícil recuperação dos mais facilmente emendáveis, juntando-se os de mesma

formação profissional, os de mesma terapia curativa, os de origem urbana, os de origem

rural. Com os grupos, o tratamento seria aplicado de forma melhor, vislumbrando-se

maior facilidade na recuperação dos condenados.

Na realidade, principalmente no Brasil, a classificação não atinge seus objetivos.

JASON ALBERGARIA informa:

“Para SUTHERLAND, o sistema de classificação pode terminar em malogro num

ponto qualquer de suas quatro fases: grande parte dos estabelecimentos

prisionais não possuem pessoal qualificado para elaboração do diagnóstico

inicial; ainda que exista o diagnóstico, não é suficiente para elaborar o programa

de tratamento: as entrevistas para o diagnóstico não duram mais de 15 minutos.

Em outros estabelecimentos, não se reúne a Comissão de Classificação; e quando

se reúne, suas decisões não se referem ao tratamento, mas à segurança e à

disciplina. É na terceira fase do tratamento que o fracasso é mais freqüente.

Acontece que os relatórios de observação nem chegam a ser lidos. O pessoal de

disciplina às vezes considera as recomendações da classificação como contrárias à

ordem e à segurança. O próprio pessoal especializado negligencia extremamente

a aplicação de suas próprias recomendações e se burocratiza, aderindo ao sistema

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repressivo. O sucesso da classificação depende da reação da opinião pública; um

tratamento coroado de êxito não interessa à opinião pública, mas uma fuga ou

um motim chamam a atenção de todos sobre a prisão.”4

No Brasil, o poder público jamais se preocupou com o sistema penitenciário, a

não ser quando ocorrem rebeliões, oportunidade em que se aumentam a disciplina e a

segurança, além da adoção de algumas medidas de natureza paliativa.

A vontade da Lei de Execução Penal, Lei nº 7.210, de 11-7-1984, estampada no

seu art. 1º – “A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou

decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração

social do condenado e do internado” –, pelo menos no que diz respeito à

execução de pena privativa de liberdade, não foi nem será jamais alcançada, ainda

porque a perda da liberdade é absolutamente incompatível com a harmônica integração

social de qualquer pessoa, mormente a condenada pela prática de um crime.

14.2.2 Regime fechado

O Código Penal considera fechado o regime de execução de pena privativa de

liberdade em estabelecimento penal de segurança máxima ou média (art. 33, § 1º, a,

CP), onde o condenado fica sujeito a trabalho no período diurno e a isolamento

durante o repouso noturno (art. 34, § 1º, CP).

A Lei de Execução Penal (LEP) estabelece que o condenado à pena de reclusão

em regime fechado cumprirá a pena em uma penitenciária, devendo ser alojado em

cela individual, com dormitório, lavatório e aparelho sanitário, que deverá ter ambiente

salubre pela presença de fatores de aeração, insolação, condicionamento térmico

adequado à existência humana e área mínima de seis metros quadrados (arts. 87 e 88,

Lei nº 7.210/84).

O regime fechado prevê o isolamento do condenado durante o período noturno,

em compartimento individual salubre e trabalho em comum durante o dia, conforme

suas aptidões e as ocupações anteriores, desde, é claro, que compatíveis com a privação

da liberdade.

O trabalho interno é obrigatório e está regulado na Lei de Execução Penal, nos

arts. 31 a 35, cabendo ressaltar que a jornada de trabalho não será inferior a seis, nem

superior a oito horas, assegurado o descanso nos domingos e feriados. O objetivo é a

4 Comentários à lei de execução penal. Rio de Janeiro: Aide, 1987. p. 23.

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formação profissional do condenado. Como incentivo ao trabalho do condenado, a lei

dispensa de licitação a aquisição, por órgãos da administração direta ou indireta, da

União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, de bens ou produtos do

trabalho realizado nos estabelecimentos prisionais.

Os recursos oriundos da comercialização dos produtos reverterão ao

estabelecimento penal ou à fundação ou empresa pública que gerenciar a atividade

laboral do presídio.

O § 3º do art. 34 do Código Penal prevê a possibilidade de o condenado em

regime fechado trabalhar fora da penitenciária, em serviços ou obras públicas. Os arts.

36 e 37 da Lei de Execução Penal regulam o trabalho externo, que, é óbvio, será

remunerado, e tem como requisito o cumprimento de, no mínimo, um sexto da pena.

Evidentemente, o trabalho externo merecerá rígida fiscalização, para evitar fugas e

manter a disciplina.

14.2.3 Regime semi-aberto

É semi-aberto o cumprimento de pena privativa de liberdade em colônia

agrícola, industrial ou estabelecimento similar (art. 33, § 1º, b, CP).

O art. 35 do Código Penal determina que o condenado que iniciar o

cumprimento da pena no regime semi-aberto será submetido ao exame criminológico,

mas o parágrafo único do art. 8º da Lei de Execução Penal afirma que

“ao exame de que trata esse artigo poderá ser submetido o condenado ao

cumprimento de pena privativa de liberdade em regime semi-aberto”.

Há gritante contradição entre uma e outra norma. A norma especial, da lei de

execução, deve prevalecer, como, aliás, têm decidido os tribunais, sendo, assim,

facultativo o exame. O juiz da execução decidirá, sendo de todo aconselhável fazê-lo

quando se tratar de crime doloso cometido com violência contra a pessoa.

No regime semi-aberto, o trabalho também é obrigatório e, se desenvolvido no

próprio estabelecimento, será em comum e durante o período diurno, observadas as

mesmas regras para o trabalho interno do regime fechado.

O trabalho externo poderá ser autorizado, ainda que em obras ou serviços

particulares, diferentemente do regime fechado, mas, igualmente, mediante

remuneração e fiscalização, é certo, mas sem vigilância.

O condenado cumprindo pena nesse regime terá direito a freqüentar cursos

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supletivos profissionalizantes e de instrução de segundo grau ou superior (art. 35, § 2º,

CP). Inexplicavelmente, a lei não permite, expressamente, a freqüência ao curso de 1º

grau, ou de alfabetização, mas é claro que essa omissão não impedirá, em nenhuma

hipótese, a freqüência ao ensino primário.

No regime semi-aberto, o condenado poderá obter autorização para sair do

estabelecimento temporariamente, sem qualquer vigilância direta, para visitar a família

e também para participar de atividades que proporcionem condições para seu retorno

ao convívio social.

14.2.4 Regime aberto

O regime aberto é o cumprimento de pena privativa de liberdade em casa de

albergado ou estabelecimento adequado (art. 33, § 1º, c, CP), onde também será

cumprida a pena de limitação de fim de semana (art. 93, da LEP).

A casa de albergado, segundo manda a lei de execução penal, deve localizar-se no

centro urbano das cidades, devendo ser separada dos demais estabelecimentos

prisionais – penitenciárias, colônias, cadeias públicas – e sua arquitetura deverá

contemplar instalações destinadas aos serviços de fiscalização e orientação dos

condenados, local para cursos e palestras, e aposentos para os presos, sem qualquer

espécie de obstáculo físico contra a fuga: grades etc.

Na maior parte das cidades brasileiras, não há estabelecimentos adequados ao

regime aberto, o que leva a duas medidas judiciais indesejadas: colocar em regime

semi-aberto ou fechado o condenado que faz jus ao regime aberto, ou conceder-lhe a

plena liberdade ou a prisão domiciliar, a que não faz jus.

Para a solução do problema, há os que defendem a permissão do cumprimento da

pena em regime aberto em recinto “especial e separado de outro estabelecimento

penal”. A idéia, apesar de sua boa intenção, no que diz respeito a impedir regime mais

duro para condenado que merece o regime aberto, colide frontalmente com a filosofia

desse regime, que exige arquitetura totalmente aberta, livre de celas, grades,

obstáculos, e localização distante dos demais estabelecimentos, indispensáveis para o

alcance dos objetivos do tratamento em regime aberto.

“Nesse regime deposita-se plena confiança no condenado, pois há prova de

que não regredirá no processo de sua ressocialização. Há ausência de precaução

sobre segurança e vigilância, em razão da aceitação voluntária da disciplina e do

senso de responsabilidade do condenado. No regime aberto, propõe-se a

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realização intensiva de formação escolar e profissional e a reinserção social

progressiva, notadamente a reinserção profissional.”5

A base desse regime é a autodisciplina e o senso de responsabilidade do

condenado (art. 36, CP), que terá plena liberdade durante o período diurno dos dias de

semana, devendo dedicar-se a trabalho lícito, fora do estabelecimento, sem, contudo,

qualquer vigilância, recolhendo-se à casa do albergado todas as noites e nos dias de

folga, feriados e fins de semana.

O art. 114 da Lei de Execução Penal estabelece como requisitos para o ingresso no

regime aberto:

a) estar o condenado trabalhando ou comprovar a possibilidade de fazê-lo

imediatamente;

b) apresentar, por seus antecedentes ou exame, indícios de que irá ajustar-se,

responsavelmente, ao novo regime.

A falta de comprovação do exercício de atividade laborativa ou da possibilidade

de fazê-lo imediatamente, num país de desempregados e que ainda não teve sua

economia completamente estabilizada, não pode ser empecilho para a concessão do

regime aberto. Seria desumano, injusto, absurdo, ilógico, irracional, manter o

condenado que fizer jus ao regime aberto, em regime mais severo, sem, pelo menos, lhe

facultar a oportunidade de procurar uma atividade laboral lícita. Seria um contra-

senso, a negação do próprio sistema, que busca a reinserção do condenado no meio

social.

Igualmente, é lógico que o condenado nesse regime poderá freqüentar cursos

noturnos e até mesmo realizar qualquer atividade lícita – trabalho etc. – em parte da

noite, recolhendo-se, após, ao estabelecimento.

O juiz da execução penal poderá, dentro de seu prudente arbítrio, fixar

condições para o cumprimento da pena em regime aberto, como as do art. 115 da Lei de

Execução Penal:

“I – permanecer no local que for designado, durante o repouso e nos dias de folga; II –

sair para o trabalho e retornar, nos horários fixados; III – não se ausentar da cidade

onde reside, sem autorização judicial; IV – comparecer a Juízo, para informar e

justificar as suas atividades, quando for determinado.”

É claro que as outras condições deverão levar em conta as características

5 ALBERGARIA, Jason. Op. cit. p. 235.

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pessoais do condenado e do crime por ele praticado, com vistas a oferecer melhores

condições para a sua recuperação.

14.2.5 Prisão domiciliar

A prisão domiciliar surgiu em 1967 com a Lei nº 5.256 e destinava-se a recolher

preso provisório nas cidades onde não havia estabelecimento adequado aos que tinham

direito à prisão especial, e consistia em seu recolhimento “na própria residência, de

onde o mesmo não poderá afastar-se sem prévio consentimento judicial”, permitida a

vigilância policial com discrição e sem qualquer constrangimento ao preso ou qualquer

de seus familiares.

Com a introdução do regime aberto, em 1977, juízes e tribunais brasileiros

passaram a permitir o que chamaram de “prisão albergue domiciliar” aos que faziam jus

ao novo regime nas localidades onde não existiam estabelecimentos adequados ao

regime aberto – as casas de albergado.

A Lei de Execução Penal, de 1984, exatamente para coibir os excessos de

liberalismo, que se converteram em verdadeiros abusos, ou, em outras palavras, em

verdadeira impunidade, regulou a matéria no art. 117:

“Somente se admitirá o recolhimento do beneficiário de regime aberto em residência

particular quando se tratar de: I – condenado maior de setenta anos; II – condenado

acometido de doença grave; III – condenada com filho menor ou deficiente físico ou

mental; IV – condenada gestante.”

A experiência da vida – lamentável, pois decorrente do descaso do poder

público – acabou por permitir a criação de mais um instituto democrático de

cumprimento de pena: a prisão domiciliar.

A norma é expressa no sentido de só permitir a prisão domiciliar ao condenado

que fizer jus ao regime aberto, o que indica a impossibilidade de o benefício alcançar o

condenado a pena superior a quatro anos, mas é de todo evidente que, em

circunstâncias especialíssimas, devidamente justificadas e fundamentadamente, pode o

juiz permitir ao condenado que se enquadre, em regra, no regime semi-aberto, ou até

mesmo no fechado, cumprir sua pena em residência particular, como, por exemplo, nos

casos de doença incurável, que se manifeste já em sua fase terminal. A medida, em

hipóteses como essa, atende precipuamente aos princípios de humanidade e de respeito

ao preso, e constitui atitude coerente do poder estatal, cujo objetivo não é o de castigar o

agente do crime, mas de reprová-lo com vistas em sua recuperação. Se, à toda

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evidência, sua morte precederá qualquer conquista da execução da pena, esta se torna

absolutamente inócua e, por isso, desnecessária.

Condenados portadores de doença grave, como a AIDS, por exemplo, podem ser

beneficiados com a prisão domiciliar. Ela favorece, ainda, as mães, gestantes ou com

filhos deficientes que necessitam de maior atenção materna, e idosos maiores de 70

anos.

Discute-se se apenas as condenadas com filhos menores ou portadores de

deficiência física ou mental poderiam beneficiar-se da prisão domiciliar, ou se também

os condenados em igual situação gozariam do benefício. Deve-se admitir a

interpretação extensiva, para conceder também ao pai condenado – com filho menor

que viva sob sua guarda, ou portador de grave deficiência física ou mental, desde que o

juiz verifique a necessidade, para o filho, da presença do pai em sua companhia.

Havendo essa necessidade, e negando o juiz ao pai tal direito, poderia estar violando o

princípio constitucional da responsabilidade pessoal (personalidade da pena), que

proíbe possa a pena ser transmitida aos sucessores do condenado.

14.2.6 Estabelecimento prisional feminino

Em atenção ao preceito constitucional do art. 5º, XLVIII, o art. 37 do Código

Penal dispõe que as mulheres condenadas cumprirão suas penas em estabelecimento

próprio, vale dizer, distinto e separado dos estabelecimentos destinados ao

cumprimento de penas dos condenados do sexo masculino.

Trata-se de dispositivo da mais alta importância, que deve ser observado ri-

gorosamente, e que visa proporcionar às mulheres tratamento adequado e exigido por

sua condição discriminada ao longo dos anos, protegendo-as de agressões além das

decorrentes da própria imposição da pena.

Infeliz a redação da rubrica Regime Especial, do mencionado art. 37, no

Código Penal, uma vez que as mulheres condenadas não estão sujeitas a regime

especial, mas a estabelecimento próprio e distinto, separado, devendo cumprir suas

penas privativas de liberdade nos três regimes, em face da igualdade, de direitos e

obrigações, entre elas e os homens.

14.2.7 Regime inicial de cumprimento da pena

Determina o art. 59, III, do Código Penal, que, ao condenar o acusado, o juiz

deverá estabelecer o regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade, e o

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14 – Direito Penal – Ney Moura Teles

§ 3º do art. 33 do estatuto penal manda que o juiz, ao fazê-lo, observe os critérios

previstos no art. 59 – culpabilidade, antecedentes, conduta social, personalidade do

agente e motivos, circunstâncias e conseqüências do crime, e comportamento da

vítima.

O § 2º do art. 33 estabelece critérios para a fixação do regime inicial, com base

na quantidade da pena e na condição pessoal do condenado: (a) se a pena aplicada for

superior a oito anos, o condenado deverá começar a cumpri-la no regime fechado; (b)

se a pena aplicada for igual ou inferior a oito anos e superior a quatro anos, o juiz fixará

o regime semi-aberto para o condenado não reincidente, e fechado, se ele for

reincidente; (c) se a pena for igual ou inferior a quatro anos, o regime será o aberto

para o não reincidente e o fechado para o reincidente.

A Lei nº 8.072/90 – dos crimes hediondos – determinava, no § 1º do art. 2º,

que “a pena por crime previsto neste artigo será cumprida integralmente em regime

fechado”, pelo que, se o crime fosse hediondo, prática da tortura, o tráfico ilícito de

entorpecentes e drogas afins e o terrorismo, o regime inicial e final deveria ser o

fechado.

A Lei nº 9.455, de 7-4-1997, que definiu os crimes de tortura, permitiu a

progressão, determinando que o regime inicial seria o fechado para esses crimes, pelo

que se defendeu aqui a revogação tácita do dispositivo do § 1º do art. 2º da Lei nº

8.072/90, como se demonstra no item 14.2.9, adiante.

A Lei nº 11.464, de 28 de março de 2.007, deu nova redação ao art. 2º da Lei nº

8.072/90, determinando que os condenados por crimes hediondos iniciarão o

cumprimento da pena privativa de liberdade no regime fechado, permitida a progressão

após o cumprimento de 2/5 (dois quintos) da pena, se o apenado for primário, e de 3/5

(três quintos), se reincidente.

Essa alteração legislativa somente se deu após o Supremo Tribunal Federal ter

declarado a inconstitucionalidade da proibição de progressão.

Se houver condenação por mais de um crime, o regime inicial será determinado

com observância do resultado da soma ou da unificação das penas (art. 111, LEP).

Com base nessas regras, uma pergunta: pode o juiz condenar alguém a uma pena

de cinco anos e quatro meses de reclusão em regime aberto? Ou o juiz está obrigado a

observar, estrita e rigorosamente, os critérios do § 2º do art. 33?

DYRCEU AGUIAR DIAS CINTRA JÚNIOR dá-nos notícia de que, na cidade de São

Paulo, em 24-10-1989, o Juiz Antonio Dimas da Cruz Carneiro, da 2ª Vara Criminal

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Penas Privativas de Liberdade - 15

Central, julgando o processo nº 434/89, condenou dois acusados de roubo a penas de

cinco anos e quatro meses de reclusão, a serem cumpridas, desde o início, no regime

aberto, porque

“os réus praticaram a infração para comprar alimentos, circunstância que, ‘se de

um lado não justifica a atitude delituosa, de outro lado torna a falta

compreensível, diante da grave crise social que ora acomete o país’” e também

porque são “primários e mal chegados à idade adulta, não sendo recomendável a

manutenção em cárcere”

e já terem eles permanecido 85 dias presos, tempo de prisão suficiente para

desestimulá-los a prosseguir no crime6.

A sentença foi cassada pelo Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, o qual

mandou que fosse aplicado, desde o início, o regime semi-aberto.

Mas, como assinala o noticiante, o juiz agiu corretamente, pois, ao fixar o regime

inicial, levou em conta as circunstâncias judiciais e o comando do preceito contido no

art. 59 do Código Penal, que manda o juiz fixar a pena – e também o regime –

conforme seja necessário e suficiente para prevenir e reprovar o crime. Eis a chave de

tudo: necessidade e suficiência. A pena – e o regime – devem ser apenas o necessário, e

não mais, nem menos, do que o suficiente para impor ao condenado a reprovação

penal, bem assim para alcançar as exigências da prevenção geral.

Desse modo, o juiz deve ter liberdade para fixar regime inicial mais brando do que

o recomendado pelo § 2º do art. 33, ao condenado que o merecer. É claro que

“o afastamento da regra genérica do regime semi-aberto para as penas superiores a

quatro anos e não excedentes a oito é situação a ser usada excepcionalmente e com

extrema cautela, em casos onde exista uma clara necessidade de fazê-lo, em

nome dos princípios maiores orientadores de todo o sistema, para dar

racionalidade material ao julgamento, evitando injustiças e soluções

contraproducentes”7.

6 Cinco anos e quatro meses de reclusão em regime inicial aberto. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo: Revista dos Tribunais, nº 5, p. 166-167, 1994. 7 CINTRA JÚNIOR, Dyrceu Aguiar Dias. Cinco anos e quatro meses de reclusão em regime inicial aberto. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo: Revista dos Tribunais, nº 5, p. 169, 1994.

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16 – Direito Penal – Ney Moura Teles

14.2.8 Progressão

Como já foi dito, o sistema punitivo brasileiro é progressivo; por meio dele, o

condenado passa do regime inicial mais severo para o regime mais brando, até

alcançar o livramento condicional ou a liberdade definitiva.

Exemplo: o condenado inicia o cumprimento da pena no regime fechado, depois é

transferido para o semi-aberto, mais tarde para o aberto, para, mais adiante, obter o

livramento condicional e, ao final, a liberdade definitiva. Ainda que condenado a pena

elevada, tem, desde o primeiro momento, a perspectiva de ir ganhando,

paulatinamente, melhor tratamento, até a liberação total. Com isso, o condenado pode

evitar, ou pelo menos diminuir, a revolta pela perda da liberdade e sentir-se estimulado

a merecer o regime mais brando, tendo a certeza de que a liberdade lhe será devolvida,

ainda que gradualmente.

A Lei de Execução Penal estabelece dois pressupostos para o condenado alcançar a

progressão, de regime mais severo para regime mais benéfico.

O primeiro é de natureza objetiva, o cumprimento de, pelo menos, um sexto da

pena. O outro é subjetivo, o mérito do condenado (art. 112, LEP).

O requisito objetivo – cumprimento de 1/6 da pena, exceto condenados por crimes

hediondos, prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o

terrorismo, em que o tempo é de 2/5 da pena se o apenado é primário e 3/5, se

reincidente – não exige maiores indagações. Se condenado a 30 anos de reclusão,

somente poderá progredir após o cumprimento de cinco anos. Se condenado a 18 anos,

poderá progredir após cumprir três anos.

Se se tratar de condenado por crime contra a administração pública, a progressão

somente será concedida se houver reparação do dano causado ou devolução do produto

do crime, com os acréscimos legais (§ 4º do art. 33, acrescentado pela Lei nº 10.763, de

12-11-2003).

O requisito subjetivo ensejava maiores discussões. Muitas decisões judiciais

exigiam realização de exame criminológico e conclusão favorável. Mas o juiz sempre foi

livre para apreciar o laudo e o parecer da administração penitenciária, e podia e pode

decidir inclusive contra a opinião de psiquiatras, psicólogos e outros agentes da

execução penal. O exame assim é absolutamente dispensável.

O juiz verificará se o condenado merece o regime mais brando, levando em conta

exclusivamente seu comportamento na prisão, não podendo indagar sobre questões de

natureza quase transcendental, como se ele está apto a conviver no novo regime, se já

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Penas Privativas de Liberdade - 17

não há possibilidade de que ele volte a delinqüir – todas, como se vê, absolutamente

indemonstráveis.

Nunca se pode olvidar que o direito penal é fragmentário e sua tarefa é

eminentemente tutelar – de proteção dos bens jurídicos mais importantes, das lesões

mais graves – e não a de purificação, redenção, beatificação ou santificação dos

humanos. Daí que, para ser transferido do regime mais duro para um mais brando, o

condenado não necessita demonstrar ter-se comportado na prisão como um verdadeiro

santo, ou um desses “anjos” que existem em organizações religiosas.

A Lei nº 10.792, de 1º-12-2003, alterou a redação do art. 112 da LEP, para

esclarecer o conteúdo do pressuposto subjetivo: “ostentar bom comportamento

carcerário, comprovado pelo diretor do estabelecimento”. Pôs fim à discussão.

Assim, após 1/6 da pena no regime fechado (ou 2/5, se primário, ou 3/5 se

reincidente, apenado por crime hediondo, prática da tortura, o tráfico ilícito de

entorpecentes e drogas afins e o terrorismo), o condenado que tiver bom

comportamento na penitenciária deverá ser transferido para a colônia agrícola ou

industrial, em regime de semiliberdade, em que, após cumprir mais 1/6 da pena (2/5

ou 3/%), e merecendo, será transferido para o regime aberto, em casa de albergado.

A hedionda Lei nº 8.072/90, de toda evidência, era flagrantemente

inconstitucional no ponto em que mandava todos os condenados por tais crimes

cumprir pena integralmente em regime fechado.

Inconstitucional por várias razões. Violadora do sistema do Código Penal, que

introduziu o sistema progressivo, como única solução para o grave problema do sistema

penitenciário. Não se harmonizando com o sistema progressivo, era um corpo estranho

a ele, incompatível e inaceitável.

Modernamente, só é admissível a pena privativa de liberdade, como medida

absolutamente extrema e necessária, e se vier a ser cumprida de modo suave, menos

rígido e progressivamente.

Além disso, proibir a progressão significava impedir, na fase da execução, a

individualização da pena, colidindo frontalmente com o princípio constitucional.

Depois que o Supremo Tribunal Federal declarou aquele dispositivo

inconstitucional, o legislador tratou de, imediatamente, criar norma impondo maior

prazo para a progressão nos casos de condenações por crimes hediondos, prática da

tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo.

Apesar de já resolvida a questão, por força da vigência da Lei nº 11.464, de 28 de

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18 – Direito Penal – Ney Moura Teles

março de 2.007, mantenho, nesta edição o texto integral do item 14.2.9, da edição

anterior deste volume, sem qualquer alteração, que demonstrava, então, a meu ver, a

revogação tácita do art. 2º da Lei nº 8.072/90, para que o leitor possa se inteirar de

aspectos importantes acerca do tema.

14.2.9 Revogação do texto original do § 1º do art. 2º da Lei nº

8.072/90

A Lei nº 9.455, de 7-4-1997, que definiu os crimes de tortura, no art. 1º, § 7º,

assim dispõe: O condenado por crime previsto nesta Lei, salvo a hipótese do § 2º,

iniciará o cumprimento da pena em regime fechado. Tendo determinado o regime

inicial fechado, implicitamente permite a progressão.

Defende-se aqui que a nova lei veio revogar, tacitamente, o art. 2º da Lei nº

8.072/90, que, entre outras restrições, proíbe a progressão no cumprimento da pena,

como se procura, a seguir, demonstrar.

O art. 5º, XLIII, da Constituição Federal, dispõe: a lei considerará crimes

inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática de tortura, o tráfico ilícito de

entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por

eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se

omitirem.

Determinou ao legislador ordinário: (a) definisse os crimes de tortura, de

terrorismo e os hediondos – os de tráfico já se encontravam definidos – e (b) proibisse,

quanto a esses crimes, a concessão de fiança, graça ou anistia. Explicou,

desnecessariamente, que por tais crimes respondem todos quantos para eles

concorrerem, inclusive por omissão.

14.2.9.1 Lei dos crimes hediondos

Quase dois anos depois veio ao mundo a Lei nº 8.072, de 25-7-1990, conhecida

como a Lei dos Crimes Hediondos, que, no entanto, não se limitou a definir tais crimes.

Essa lei, como tem sido comum no Brasil, tratou de várias questões penais e

processuais penais, como se mostra.

No art. 1º (ao depois alterado pela Lei nº 8.930, de 6-9-1994), relacionou os tipos

legais de crimes que considerou hediondos, inclusive as tentativas deles, e nos arts. 6º e

9º aumentou as penas de vários dos crimes hediondos, criando um caso de diminuição

de pena (delação premiada) para o crime hediondo de extorsão mediante seqüestro

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Penas Privativas de Liberdade - 19

(art. 7º). Assim, nesses artigos (1º, 6º, 7º e 9º), a Lei nº 8.072/97 cuidou

exclusivamente de crimes hediondos.

Nos arts. 2º, 5º e 8º, a Lei nº 8.072/90 tratou de todos aqueles crimes referidos

no art. 5º, XLIII, da Constituição Federal: tortura, tráfico ilícito de entorpecentes,

terrorismo e os hediondos, em outras palavras, os crimes hediondos e os a ele

assemelhados ou equiparados. No art. 2º, estabeleceu restrições para acusados e

condenados por crimes hediondos, prática de tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e

terrorismo (anistia, graça, indulto, fiança, liberdade provisória), impôs regime fechado

integral para o cumprimento de penas, exigiu que o direito de apelar em liberdade fosse

concedido somente em decisão fundamentada, e dilatou o prazo de prisão temporária

para tais crimes, e no art. 5º (o 4º foi vetado) impôs tempo maior de cumprimento de

pena (2/3) para a obtenção do livramento condicional, para os condenados por crimes

hediondos e assemelhados (tortura, terrorismo e tráfico ilícito de entorpecentes), não

reincidentes específicos em crimes dessa natureza. No art. 8º, criou nova modalidade

de crime de quadrilha e bando, quando a associação criminosa tiver por finalidade o

cometimento de crimes hediondos, prática de tortura, tráfico ilícito de entorpecentes ou

terrorismo (art. 8º) definindo, como causa de diminuição de pena a delação premiada

(parágrafo único, art. 8º).

Além disso, no art. 3º mandou a União manter estabelecimentos prisionais de

segurança máxima para condenados de alta periculosidade; como se tratava de norma

geral, não se referiu a quaisquer daqueles crimes. No art. 10, mandou contar em dobro

prazos procedimentais estabelecidos pela Lei nº 6.368/76, para os crimes tipificados

nos arts. 12, 13 e 14.

Em resumo, a Lei nº 8.072/90 contém dispositivos relativos a cinco matérias bem

delimitadas: (a) definição de crimes hediondos, com modificação de preceito

sancionatório e criação de causa específica de diminuição de pena; (b) imposição de

restrições penais e processuais penais para acusados e condenados por crimes de

tortura, tráfico, terrorismo e hediondos; (c) criação da modalidade de crime de

associação criminosa para o cometimento de tais crimes e uma causa específica de

diminuição de pena; (d) criação do encargo, para a União, da manutenção de presídios

federais; (e) duplicação de alguns prazos procedimentais estabelecidos na Lei nº

6.368/76.

Vê-se, pois, que a Lei nº 8.072/90 contém normas de cinco matérias distintas.

Uma das matérias tratadas, a das restrições impostas aos acusados e condenados por

crimes de tortura, tráfico, terrorismo e hediondos, alcançou preceitos de natureza

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20 – Direito Penal – Ney Moura Teles

penal (anistia, graça, indulto, regime fechado) e outros de natureza processual

(liberdade provisória, direito de apelar em liberdade e prazo de prisão temporária).

14.2.9.2 Lei dos crimes de tortura

Quase uma década após a promulgação da Constituição de 88, entrou em vigor a

Lei nº 9.455, de 7-4-1997, definindo os crimes de tortura e criando casos de aumento

de pena, inclusive por resultado mais grave (art. 1º, §§ 1º a 4º), tratando, ainda, de

efeitos da condenação (art. 1º, § 5º), de restrições constitucionais de natureza penal e

processual aos condenados por tais crimes, e do regime de cumprimento de pena (art.

1º, §§ 6º e 7º), e criando mais um caso de extraterritorialidade da lei penal brasileira

(art. 2º).

Mais uma vez, o legislador brasileiro, num único diploma legal, tratou de matérias

absolutamente distintas: (a) tipificação de crimes e criação de causas de aumento de

pena; (b) imposição de restrições de natureza penal e processual penal para acusados e

condenados por crimes de tortura; (c) criação de mais um caso de extraterritorialidade

da lei penal.

A matéria que interessa no âmbito desta abordagem sobre a nova lei, a das

restrições impostas aos acusados e condenados por crime de tortura, abrange normas

de natureza penal (graça ou anistia e regime de cumprimento de pena privativa de

liberdade) e processual penal (fiança).

Relativamente às restrições de natureza penal e processual penal, vale transcrever

os dois dispositivos da lei:

“Art. 1º, § 6º O crime de tortura é inafiançável e insuscetível de graça ou

anistia.

§ 7º O condenado por crime previsto nesta Lei, salvo a hipótese do § 2º,

iniciará o cumprimento da pena em regime fechado.”

Vigente a Lei nº 9.455/97, a pergunta se impõe: a vontade da nova lei é,

simplesmente, definir os crimes de tortura e dar-lhes tratamento restritivo específico,

mais brando que o concedido aos crimes hediondos, de tráfico e terrorismo, ou,

diferentemente, conferir, também a estes crimes, assemelhados aos de tortura,

tratamento restritivo penal e processual penal equânime e isonômico?

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Penas Privativas de Liberdade - 21

14.2.9.3 Finalidade da nova lei

Para se descobrir a vontade da nova lei, convém a lembrança das sempre justas e

pertinentes lições de GIUSEPPE BETTIOL:

“A lei não é considerada em sentido ‘rígido’ mas em sentido ‘flexível’, enquanto

exprime uma vontade que se ajusta às novas situações e possibilidades. (...) Não

vai pois a interpretação considerada como uma atividade que se manifesta fora do

tempo e do espaço, mas como um atuar incrustado – até que a norma não tenha

sido ab-rogada – no ambiente histórico em que o juiz vive e age. Já se vê portanto

que, à pureza de um juízo lógico ‘anti-histórico’, reage o ambiente social em que a

norma deve ter aplicação. Mas é que de uma lógica abstrata não será o caso de

falar-se, a propósito de interpretação da norma penal. Se o escopo é buscar o

significado de um ‘querer’ encerrado no cerne da norma, não se colhe o próprio

querer na linha de um procedimento lógico-formal, porque a ‘vontade’ da norma

apresenta uma direção finalista enquanto tutela de um ‘valor’. A lógica do

intérprete deve endereçar-se também a este valor, que dá tom e característica ao

querer da norma; deve ser portanto uma lógica finalista, uma teleológica.”8

De início, volte-se para o preceito inserto no art. 5º, XLIII, da Constituição

Federal, que determinou à lei ordinária desse tratamento diferenciado, restritivo, a

uma categoria de crimes muito graves: tortura, terrorismo, tráfico ilícito de

entorpecentes e os hediondos. De notar que o primeiro dos gêneros de crimes referidos

foi exatamente o da tortura, certamente por ser o mais grave deles. O preceito

constitucional considerou assemelhados ou equiparados uma categoria de crimes,

determinando tratamento restritivo isonômico e equânime.

Em outras palavras, a norma constitucional mandou o legislador elaborar leis

ordinárias, dando aos crimes de tortura e a seus assemelhados tratamento diferenciado

do dispensado aos demais crimes, consistente na impossibilidade de fiança, graça e

anistia. Nada mais. Esta foi a ordem constitucional.

A primeira determinação constitucional, de vedar a concessão de fiança, anistia e

graça aos acusados e condenados pelo crime de tortura e aos a ele assemelhados, fora

obedecida pelo legislador da Lei nº 8.072/90 que, ademais, construiu rol de crimes,

que passaram, então, a ser considerados hediondos. Sobre cada um dos tipos

selecionados pregou-lhes a etiqueta, o rótulo, de hediondo.

Não satisfeito e influenciado pelo movimento da Lei e da Ordem, o legislador foi 8 Direito penal. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977. v. 1, p. 152-153.

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22 – Direito Penal – Ney Moura Teles

além das sandálias, impondo, aos condenados por crimes de tortura, tráfico, terrorismo

e os então definidos hediondos, o cumprimento das penas integralmente em regime

fechado, proibindo para eles a concessão de liberdade provisória, aumentando o prazo

de prisão temporária, determinando que o juiz deliberasse fundamentadamente sobre o

direito de apelar em liberdade, majorando as penas de vários dos crimes considerados

hediondos e criando causas de aumento e de diminuição de penas.

Passados muitos anos de vigência da Lei dos Crimes Hediondos, é indiscutível o

fracasso de seus propósitos. Dando tratamento mais severo para os condenados pelos

crimes mais graves, especialmente os de extorsão mediante seqüestro, tráfico de

entorpecentes, estupros e atentados violentos ao pudor, como se buscando a combater

essa forma de criminalidade, e objetivando, é de todo óbvio, sua contenção, a lei, além

de não ter contribuído para nenhuma redução de quaisquer dos índices dessa

criminalidade, revelou-se verdadeiro fator do surgimento de outros fenômenos

indesejáveis: a rebelião, os motins nos presídios e as fugas.

FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO, ao combater o dispositivo que impunha o

cumprimento da pena em regime fechado integral, vislumbrava com lucidez:

“A determinação contida no § 1º do art. 2º (‘a pena por crime previsto neste

artigo será cumprida integralmente em regime fechado’) é fruto – só pode ser isso

– da mais completa ignorância a respeito do sistema progressivo de execução da

pena adotado pela reforma penal brasileira de 1984, a respeito do qual salientei,

na conferência proferida no encerramento do I Congresso Brasileiro de Política

Criminal e Penitenciária de 1981, ‘o seguinte’: ‘Em relação à pena de prisão,

instituiu-se um subsistema verdadeiramente progressivo, sem possibilidade da

perpetuação da segregação social, para cumprir-se o mandamento constitucional

do art. 153, § 11 da Carta Magna. E deu-se a essa discutida pena o caráter de ‘pena

programática’, ou seja, de algo que se modifica dentro de certos limites e certas

garantias, no curso da execução, por atuação da Administração da Justiça e do

próprio condenado, segundo o seu mérito ou demérito. Com isso, abre-se uma

concreta esperança, para todo condenado, no sentido de poder conquistar, por

seu próprio esforço, a liberdade, bem inalienável de todo ser humano. Essa

esperança na liberdade que, para o preso, deve significar uma conquista, é o

único ingrediente, de que se pode valer o aparelhamento penitenciário para

impregnar a execução da pena de algum utilitarismo, de sorte a não transformá-

lo em mero castigo, dentro de algum retributivismo kantiano, formal e

desalmado. (...) É lamentável que um legislador desatento e mal assessorado

tenha retirado da Administração da Justiça esse precioso instrumento de

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Penas Privativas de Liberdade - 23

manutenção da disciplina no interior dos estabelecimentos penais. Sim, porque,

sem o benefício do sistema progressivo, o condenado só terá um caminho para

antecipar a liberdade: a rebelião ou a fuga.’”9

Foi, assim, em momento de constatação do fracasso da Lei dos Crimes Hediondos,

que o Congresso decretou a nova lei, que foi, finalmente, sancionada e entrou em vigor.

Certo que veio ao mundo não só para definir os tipos de tortura, mas ainda para

revogar alguns dos dispositivos da Lei nº 8.072/90, acabando com suas imperfeições,

seus defeitos, sua rigidez, sua severidade, sua brutalidade, sua estupidez, enfim, suas

ignominiosas restrições aos mais comezinhos direitos processuais dos acusados. Veio

para corrigir o que estava errado, para erradicar os abusos, para riscar da história do

direito penal brasileiro um tempo de terror, de desnecessária e brutal violência legal,

para apagar dispositivos que feriram a Constituição não poucas vezes.

Como chegar-se à conclusão tão firme?

14.2.9.4 Descobrindo a vontade da lei

Entre as regras que presidem a boa interpretação da lei, importam, aqui, as

seguintes: (a) o princípio da isonomia; (b) o da eqüidade; e (c) o elemento sistemático

na interpretação finalística.

O princípio de isonomia, também chamado princípio de igualdade perante a

lei, ou de igualdade formal, inserto no art. 5º, caput, I, na lição de PONTES DE MIRANDA,

“dirige-se a todos os poderes do Estado. É imperativo para a legislatura, para a

administração e para a Justiça”.10 Dele decorre, portanto, a ordem para o legislador

tratar os indivíduos de modo igualitário, como bem distingue PINTO FERREIRA: “Tal

princípio deve ser apreciado com uma dupla perspectiva: igualdade na lei e igualdade

perante a lei, esta pressupondo a lei elaborada.”11

A lei deve dar tratamento isonômico aos iguais, vale dizer, aqui, aos crimes que

a lei fundamental considerou equivalentes, equiparados ou assemelhados, por sua

gravidade, como é o caso da tortura, do terrorismo, do tráfico e dos hediondos. Se o

preceito constitucional equiparou os quatro gêneros de crimes, impondo-lhes restrições 9 Crimes hediondos. Fascículos de Ciências Penais. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1992. nº 2. 10 MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1946. Rio de Janeiro: Henrique Cahen, 1947. v. 1, p. 165. 11 FERREIRA, Pinto. Comentários à Constituição brasileira. São Paulo: Saraiva, 1989. v. 1, p. 62.

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24 – Direito Penal – Ney Moura Teles

que não impôs, em conjunto, a qualquer outro gênero de crimes, cabe ao legislador

ordinário dar tratamento igualitário a todos aqueles gêneros de crimes. Não poderia,

por exemplo, tratar os crimes de terrorismo de modo mais brando nem mais severo que

os crimes de tráfico ilícito de entorpecentes, nem conferir aos crimes de tortura

tratamento mais duro, nem mais benigno, que o dispensado aos crimes hediondos.

A eqüidade, como ensina ESPÍNOLA FILHO

“não é, de modo algum, fonte do direito, mas é um expediente técnico, de atender

na aplicação das fontes do direito, isto é, no ajustamento da norma ao caso

apresentado. De fato, a eqüidade, tanto na doutrina, como nos sistemas

legislativos modernos, não passa de uma propriedade, ou qualidade, que a lei

tem, de se adaptar às circunstâncias do caso concreto, segundo estes critérios:

(1º) as coisas e relações iguais devem ser tratadas de modo igual, e as coisas e

relações desiguais, ou diferentes, devem ser tratadas de modo desigual, diferente;

(...) (3º) entre as soluções logicamente possíveis, deve preferir-se, sempre, a que

for mais branda, mais moderada e mais humana, pois, como acentuou

REGELSBERGER, corresponde ao nosso sentimento de eqüidade, o modo de tratar

uma relação prática, que se torna justo, pela sua própria natureza, com a

tendência sempre para o brando, para o moderado, para o humano”12.

Tendo a Carta Magna equiparado, expressamente, os crimes de tortura aos de

terrorismo, ambos aos de tráfico de entorpecentes, e todos estes aos que a lei definisse

hediondos, é de toda obviedade que criou uma classe de crimes assemelhados,

equiparados.

Gêneros de crimes equiparados, assemelhados, pela norma maior, devem ser

tratados de modo igual. Assim, as restrições de natureza processual devem ser as

mesmas e as proibições de obtenção de benefícios penais também devem ser as

mesmas. Afinal, tais crimes têm uma característica que os equipara ou assemelha: a

gravidade. Esse sinal característico, impondo maior reprovação, e que vai

materializar-se também na qualidade e na quantidade das sanções cominadas, fez com

que o legislador constituinte os reunisse sob a necessidade de merecer, também,

algumas restrições, proibindo a fiança e a concessão de graça ou anistia.

A lei que primeiramente tratou dessa matéria, a nº 8.072/90, fê-lo, é sabido,

exorbitando, restringindo mais do que a Constituição mandou, pelo que a agrediu. A

Lei nº 9.455/97, sabiamente, ajustou-se ao mandamento constitucional. Ao fazê-lo,

revogou a exorbitância. 12 Código de processo penal brasileiro anotado. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1943. v. 1, p. 184.

Page 25: VOLUME 01 - 14

Penas Privativas de Liberdade - 25

A nova lei é, assim, em todos os seus dispositivos pertinentes aos crimes de

tortura, mais benéfica que a Lei nº 8.072/90. Sua intenção não pode ser a de cuidar

apenas da tortura, mas também de seus assemelhados.

Essa intenção, não expressa, da lei exsurge cristalinamente de todo o seu espírito,

que é o do aperfeiçoamento da legislação penal brasileira, recuperando princípios

constitucionais necessários a uma política criminal eficiente, sem olvidar a proteção

dos interesses da sociedade, tratando rigorosamente os crimes de maior potencial

ofensivo, ao tempo em que observa a necessidade de valorizar a essência humana

presente nos delinqüentes.

O elemento sistemático da interpretação finalística também indica essa

conclusão. Como ensina BETTIOL,

“há, no seio das normas uma ordem sistemática freqüentemente decisiva para a

interpretação teleológica. As normas, na verdade, não vivem como ‘mônadas’

isoladas, como meras individualidades entre as quais não há nenhuma relação de

parentesco, mas se reagrupam entre si com base em critérios teleológicos

superiores aos escopos singulares próprios de cada uma das normas”.13

A importância da interpretação sistemática resplandece grandiosa na lição de

ESPÍNOLA FILHO:

“sempre se apontou, como circunstância capaz de elucidar as disposições

obscuras, a sua comparação, o confronto com outros dispositivos, tratando da

mesma matéria, ou de matérias diferentes, em forma que, não só a lei no seu

conjunto, e também todo o sistema da legislação formem um feixe, cujas partes

componentes são solidárias”.14

Se a nova lei não tivesse revogado o art. 2º da Lei nº 8.072/90, haveria,

doravante, tratamentos diferenciados para crimes assemelhados. Crime hediondo:

inafiançável, insuscetível de indulto, graça ou anistia, com a impossibilidade de

liberdade provisória, o cumprimento de pena em regime fechado integral, e prisão

temporária por 30 dias. Crime de tortura: inafiançável, insuscetível de graça ou anistia,

com a possibilidade de concessão de indulto, de liberdade provisória, o cumprimento

progressivo de pena, e prisão temporária por cinco dias.

Evidente que, se assim fosse, essas duas leis não formariam aquele feixe com

13 Op. cit. p. 164. 14 Op. cit. p. 198.

Page 26: VOLUME 01 - 14

26 – Direito Penal – Ney Moura Teles

todas as suas partes solidárias. Seria a desarmonia, a incongruência, a incoerência, a

desigualdade, o verdadeiro caos. Crimes de potencial ofensivo equivalentemente

graves, tratados de forma diferenciada. Transportando ambas as normas para a vida

prática, haveria alguns absurdos:

• Condenado, por crime de atentado violento ao pudor, a oito anos de reclusão

cumprirá a pena integralmente em regime fechado. Condenado, por crime de tortura,

seguida de morte, a uma pena de oito anos de reclusão cumprirá apenas 1/6 no regime

fechado, podendo progredir. Qual dos crimes é o mais grave?

• Condenado por estupro a pena mínima de seis anos deverá cumpri-la integralmente

em regime fechado. Condenado por crime de tortura seguida de lesão corporal

gravíssima, por exemplo, a extirpação do órgão sexual masculino, a pena de seis anos,

terá direito à progressão. Qual crime é mais grave?

• Nos dois exemplos anteriores, os acusados do atentado violento ao pudor e do

estupro não poderão obter liberdade provisória, ao passo que os agentes das duas

espécies de tortura poderão, ainda quando tiverem cometido o crime contra criança,

deficiente ou adolescente.

De toda obviedade que não podem as duas ordens conviver em harmonia. E o

Direito é um conjunto de normas que se harmonizam, que se complementam e que

convivem solidamente sem atritos, sem conflitos.

14.2.9.5 Subsistema de restrições da nova lei é incompatível com o

da Lei nº 8.072/90

A incompatibilidade entre as duas leis, no conjunto dos dispositivos que tratam

das restrições penais e processuais é gritante e o § 1º do art. 2º da Lei de Introdução ao

Código Civil determina que a lei posterior revoga a anterior quando “seja com ela

incompatível”.

Tais contradições não podem existir, é de todo óbvio, pois que o direito há de ser,

sempre, um sistema harmônico de normas, não um amontoado de incongruências.

“O princípio cardeal em torno da revogação tácita é o da incompatibilidade.

Não é admissível que o legislador, sufragando uma contradição material de seus

próprios comandos, adote uma atitude insustentável (‘simul esse et non esse’) e

disponha diferentemente sobre um mesmo assunto. O indivíduo, a cuja volição

a norma se dirige, não poderá atender à determinação, se se depara com

proibições ou imposições que mutuamente se destroem. Na incompossibilidade

Page 27: VOLUME 01 - 14

Penas Privativas de Liberdade - 27

da existência simultânea de normas incompatíveis toda a matéria da revogação

tácita sujeita-se a um princípio genérico, segundo o qual prevalece a mais

recente, quando o legislador tenha manifestado vontade contraditória. Um dos

brocardos, repetidos pelos escritores, diz precisamente que ‘lex posterior

derogat priori’; e o legislador pátrio adota como princípio informativo do

sistema (Lei de Introdução, art. 2º, § 1º). Mas é bem de ver que nem toda lei

posterior derroga a anterior, senão quando uma incompatibilidade se erige dos

seus dispositivos. Esta incompatibilidade pode ser o resultado da normação

geral instituída em face do que antes existia: quando a lei nova passa a regular

inteiramente a matéria versada na lei anterior, todas as disposições desta

deixam de existir, vindo a lei revogadora substituir inteiramente a antiga.

Assim, se toda uma província do direito é submetida a nova regulamentação,

desaparece inteiramente a lei caduca, em cujo lugar se colocam as disposições

da mais recente.”15

Patente e indiscutível a incompatibilidade entre as duas leis, a impossibilidade da

convivência harmônica entre as duas categorias de crimes, cada qual com sua

disciplina, é de todo lógico que a lei posterior, em face da incompatibilidade com a

anterior, simplesmente veio revogá-la, naqueles dispositivos, consoante manda o art.

2º, § 1º da Lei de Introdução ao Código Civil.

14.2.9.6 Nova lei regulou inteiramente a matéria restritiva da lei

anterior

A norma do art. 2º, § 1º, da Lei de Introdução ao Código Civil afirma que a “lei

posterior revoga a anterior”, quando regular “inteiramente a matéria de que

tratava a lei anterior”.

Entre as cinco matérias tratadas pela Lei nº 8.072/90, uma foi a das

restrições de natureza penal e processual penal impostas aos crimes hediondos e

assemelhados: a classe de crimes insuscetíveis de fiança, graça e anistia, criada pela

norma constitucional.

A Lei nº 9.455/97, ao definir os crimes de tortura, impôs-lhes apenas as

mesmas restrições determinadas pelo preceito constitucional do inciso XLIII do art. 5º:

inafiançabilidade e insuscetibilidade de graça ou anistia (§ 6º, do art. 1º), e fez

15 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1978. v. 1, p. 123.

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28 – Direito Penal – Ney Moura Teles

questão de esclarecer que o cumprimento da pena privativa de liberdade será iniciado no

regime fechado. Quanto à liberdade provisória, ao direito de apelar em liberdade e ao

livramento condicional, silenciou.

Verifica-se, com clareza, que a nova lei veio tratar de um dos gêneros de crimes

daquela classe de crimes que fora objeto da Lei nº 8.072/90, mencionados no preceito

constitucional.

De todo evidente que a vontade da nova lei é que os “crimes de tortura” recebam

tratamento diferenciado do conferido pela Lei nº 8.072/90, já que não reiterou as

restrições nela contidas, como a proibição da liberdade provisória, o que vem atender a

um reclame quase que uníssono da mais moderna doutrina e jurisprudência, o que, é

de toda obviedade, demonstra a vontade da lei de, corrigindo os defeitos da lei antiga,

não mais vedar essa possibilidade.

Inegável que a nova lei veio tratar integralmente dos crimes de tortura, que

integram o mesmo subsistema penal que fora regulado pela Lei nº 8.072/90,

declarando-os inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia (§ 6º). Em outras

palavras, cuidou daquela mesma matéria tratada pelo art. 2º da Lei nº 8.072/90.

O argumento de que a nova lei não cuidaria inteiramente da mesma matéria

contida nos art. 2º da Lei nº 8.072/90, por não trazer dispositivo algum acerca da

liberdade provisória, do direito de apelar em liberdade, nem da prisão temporária, e

que seria apenas uma lei especial em relação à Lei nº 8.072/90, não merece guarida.

Não há, entre a lei anterior e a lei nova, relação de gênero para

espécie. Ambas, a Lei nº 8.072/90 e a Lei nº 9.455/97, são especiais em relação ao

preceito constitucional do art. 5º, XLIII, que é a norma genérica e, ainda, em relação às

normas do Código Penal e do Código de Processo Penal, que constituem, cada qual, as

normas genéricas penais e processuais.

Não há, ademais, em qualquer dos crimes de tortura tipificados, algum minus,

que exigisse tratamento mais benigno que o conferido ao terrorismo, aos crimes

hediondos e ao tráfico ilícito de entorpecentes. Nada que justificasse a construção de

uma lei especial em relação à lei que impôs restrições àqueles crimes. Ao contrário, se

algo houvesse, de diferente, nos crimes de tortura, em relação aos demais, de

especializador, seria exatamente para considerá-los de maior gravidade, uma vez que,

pela conformação dos tipos criados, são sempre condutas por meio das quais alguém,

dolosamente, submete alguém a “sofrimentos agudos, físicos ou mentais”16, com a

16 Da definição de tortura adotada pela Convenção da ONU contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, aprovada pelo Dec. Legislativo nº 4, de 23-5-1989, promulgada pelo

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Penas Privativas de Liberdade - 29

finalidade de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa,

ou para provocar ação ou omissão criminosa, ou ainda como forma de aplicar castigo

pessoal ou em razão de discriminação racial ou religiosa.

Esses elementos subjetivos, aliados às formas e aos meios de execução, que

acarretam sofrimento intenso da vítima, tornam os crimes de tortura de maior

gravidade que os hediondos e o tráfico ilícito de entorpecentes. Assim, se houvesse

especialização, ela deveria ser para dar tratamento mais rigoroso, não ao contrário,

como acontece.

Tendo a nova lei, tão especial quanto a anterior, dado novo tratamento penal a

um dos gêneros de crimes daquela mesma classe de crimes de grande potencial

ofensivo assemelhados pela Constituição, e nada dito sobre liberdade provisória, direito

de apelar em liberdade e prazos de prisão temporária e procedimentais, é porque,

relativamente a essas questões, desejou sejam aplicadas as normas gerais do Código de

Processo Penal, e as da Lei nº 7.960/89, relativamente à prisão temporária.

Silenciando sobre essas questões processuais, é porque não desejou alterar

quaisquer dos subsistemas processuais, contidos no Código de Processo Penal e nas

outras leis adjetivas. Assim fez porque não desejou conferir tratamento especial quanto à

concessão da liberdade provisória, ou do direito de apelar em liberdade, nem quis

dilatar prazo de prisão temporária, nem quaisquer dos procedimentais.

Na verdade, o que a nova lei fez foi corrigir as imperfeições da lei antiga, que

impunha tratamento rigoroso, quando o que se exige é um tratamento penal severo, mas,

ao mesmo tempo, humanitário. Além disso, ajustou-se ao princípio da presunção da

inocência, que impede tratamento de condenado a quem ainda não o é.

Com o novo subsistema penal criado, no qual retorna a incidência das regras

gerais do cumprimento progressivo da pena privativa de liberdade, substituindo o

anterior, substitui-se também, em sua integridade, o subsistema processual penal da

Lei dos Crimes Hediondos, eivado de inconstitucionalidades, como apontam a doutrina

mais moderna e a jurisprudência mais democrática.

É certo que melhor teria sido se a lei tivesse, expressamente, afirmado sua

vontade de substituir os dispositivos mencionados da Lei dos Crimes Hediondos (art.

2º); todavia, a tarefa primordial é interpretar a norma e não censurar ou tecer críticas

ao legislador, especialmente quando parte de seu trabalho representa notável avanço

para o direito penal, e até porque pode ter sido sua vontade deixar para os

Decreto Presidencial nº 40, de 15-2-1991.

Page 30: VOLUME 01 - 14

30 – Direito Penal – Ney Moura Teles

operadores do direito a verificação da revogação tácita operada.

Penso, por todas as razões aqui expostas, que o ordenamento jurídico brasileiro

ficou livre da parte mais hedionda da famigerada Lei dos Crimes Hediondos.

Esse entendimento foi abraçado por diversos Tribunais do país, chegando a ser

acolhido pela 6ª. Turma do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do RHC 7.930,

relatado pelo Ministro Vicente Cernicchiaro. Todavia, assim não entendeu o Supremo

Tribunal Federal que, reiteradamente, passou a decidir no sentido contrário.

Felizmente, no dia 23 de fevereiro de 2006, a Corte Suprema, por maioria de seis

votos a cinco, julgando o HC n° 82.959, declarou a inconstitucionalidade do § 1° do art.

2° da Lei n° 8.072/90, afastando, assim, a proibição da progressão do regime de

cumprimento da pena para os condenados por crimes hediondos, de tortura, de tráfico

ilícito de entorpecentes e de terrorismo. Um avanço, sem dúvidas, que assegura a

efetividade do princípio da individualização da pena.

Permite-se a progressão, todavia caberá ao juiz da execução penal verificar as

condições objetivas e subjetivas do condenado. A declaração de inconstitucionalidade

não vai gerar conseqüências jurídicas em relação às penas já extintas.

No seu voto, o Ministro Marco Aurélio, Relator do HC 82.959, ressaltou que a

edição da lei de tortura (9.455/97), que permite a progressão, indica a necessidade de

igual tratamento para os outros delitos rotulados hediondos e corresponde a uma

derrogação implícita da norma do parágrafo 1º do artigo 2º do mencionado texto legal.”

14.2.10 Regressão

A outra face do sistema penal progressivo, seu reverso, é a regressão, que

significa a passagem do condenado, de um regime mais brando para regime mais

severo, ou ainda o simples indeferimento do pedido de progressão.

O condenado a regime fechado que, após cumprir 1/6 da pena (2/5 ou 3/5), não

preencher o requisito subjetivo – mérito – e, por isso, tiver negado seu pedido de

progressão ao regime semi-aberto, estará, na prática, sofrendo a regressão no

cumprimento de sua pena.

O art. 118 da Lei de Execução Penal estabelece as causas de regressão:

“A execução da pena privativa de liberdade ficará sujeita à forma regressiva, com

a transferência para qualquer dos regimes mais rigorosos, quando o condenado: I

– praticar fato definido como crime doloso ou falta grave; II – sofrer condenação,

por crime anterior, cuja pena, somada ao restante da pena em execução, torne

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Penas Privativas de Liberdade - 31

incabível o regime (art. 111). § 1º O condenado será transferido do regime aberto

se, além das hipóteses referidas nos incisos anteriores, frustrar os fins da

execução ou não pagar, podendo, a multa cumulativamente imposta. § 2º Nas

hipóteses do inciso I e do parágrafo anterior, deverá ser ouvido, previamente, o

condenado.”

Não é necessário que o condenado venha a ser condenado por crime doloso, para

justificar a regressão, mas tão-somente que tenha praticado o fato típico, sendo, por

isso, indiciado em inquérito policial. O simples indiciamento é causa para a regressão.

Evidente que, se o condenado vier a ser absolvido, provando, por exemplo, não ter

praticado ou concorrido para o crime, ou ter agido ao amparo de excludente – da

ilicitude ou da culpabilidade –, poderá progredir, de volta ao regime em que cumpria a

pena.

São faltas graves, que igualmente autorizam a regressão:

“I – incitar ou participar de movimento para subverter a ordem ou a disciplina; II

– fugir; III – possuir, indevidamente, instrumento capaz de ofender a integridade

física de outrem; IV – provocar acidente de trabalho; V – descumprir, no regime

aberto, as condições impostas; VI – desobedecer a ordem de servidor do sistema

prisional, desrespeitar qualquer pessoa com quem deva relacionar-se, deixar de

executar trabalho ou tarefa a si cometida” (arts. 50 e 39 da LEP).

A superveniência de condenação, por crime anterior, cuja pena, somada ao

restante da pena em execução, resultar em quantidade de pena privativa de liberdade

incompatível com o regime vigente, poderá importar em regressão.

Se o condenado estiver cumprindo pena em regime aberto, restando dois anos, e

vier a ser condenado a uma pena de dois anos e três meses de detenção, a soma da nova

pena, com o que falta para cumprir, resultará em quatro anos e três meses, quantidade

incompatível com o regime aberto, na forma da norma do art. 33, § 2º, c, do Código

Penal.

Em tal situação, a solução é a regressão ao regime semi-aberto; todavia, o juiz não

deve decidir jungido exclusivamente ao formalismo do preceito legal, mas deverá

verificar se há necessidade de regressão, com base nos princípios orientadores do art.

59. Em algumas situações, determinar a regressão com base exclusivamente no

elemento objetivo pode causar enormes prejuízos à ressocialização do homem.

A regressão do regime aberto para o semi-aberto se dará também se o condenado

frustrar os fins da execução penal – efetivar as disposições da sentença ou decisão

criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e

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32 – Direito Penal – Ney Moura Teles

do internado – ou se, podendo, não pagar a pena de multa que lhe tiver sido aplicada.

MIRABETE ensina que

“pode o condenado ser transferido para regime mais rigoroso se frustrar os fins

da execução, assumindo conduta que demonstra a incompatibilidade com o

regime aberto. A desobediência a ordens recebidas, a provocação de rescisão de

contrato de trabalho ou o seu abandono, a prática de contravenção ou crime

culposo, a prática de falta média ou leve etc. podem revelar que o condenado não

se está adaptando ao regime, nem se processa a sua reinserção social,

recomendando-se sua transferência para o regime mais rigoroso”17.

A omissão do pagamento da multa imposta, quando o condenado puder fazê-lo,

sem prejuízo para os que vivam sob sua dependência, pode, igualmente, autorizar a

regressão ao regime semi-aberto.

14.3 DIREITO AO TRABALHO E REMIÇÃO

O trabalho é um direito do condenado – interna ou externamente – como já

mencionado e deverá ser remunerado – o valor mensal não será inferior a ¾ do

salário mínimo –, garantindo-se-lhe os benefícios da previdência social (art. 38, CP),

não estando, todavia, sujeito ao regime da Consolidação das Leis do Trabalho (arts. 28

e 29, da LEP).

Na verdade, o trabalho é muito mais do que um direito, pois constitui, sem

dúvida, o mais eficiente e mais importante método para o tratamento do desajustado

social, que é o condenado, com vistas a obter sua reinserção na vida social livre. É, aliás,

o trabalho o meio pelo qual, originalmente, o homem se tornou um ser social.

Infelizmente, as autoridades administrativas brasileiras não se preocupam com

a seriedade que se exige, com os investimentos necessários para permitir aos

condenados – especialmente os do regime fechado e do semi-aberto – a possibilidade

de trabalhar, seja para produzir, seja para, por meio dele, ser educado, obtendo

inclusive a formação profissional que, na maior parte das vezes, não possui, e cuja

ausência muito contribuiu para seu ingresso na criminalidade.

A remição do tempo de execução da pena é um instituto de direito

penitenciário, nascido na Espanha, ao tempo da Guerra Civil, quando era aplicado

apenas para os presos políticos. Consiste no resgate, pelo trabalho – de qualquer

17 Execução Penal. 4. ed. São Paulo: Atlas, 1991. p. 315.

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Penas Privativas de Liberdade - 33

natureza, vale dizer, interno ou externo, manual, intelectual, agrícola, industrial e até

mesmo artesanal, autorizado pela administração do presídio – de parte do tempo da

pena, na forma do que dispõe o art. 126 da Lei de Execução Penal, assim:

“O condenado que cumpre a pena em regime fechado ou semi-aberto poderá

remir, pelo trabalho, parte do tempo de execução da pena.

§ 1º A contagem do tempo para o fim deste artigo será feita à razão de um dia de

pena por três de trabalho.

§ 2º O preso impossibilitado de prosseguir no trabalho, por acidente, continuará

a beneficiar-se com a remição.

§ 3º A remição será declarada pelo juiz da execução, ouvido o Ministério

Público.”

A cada três dias trabalhados, com jornada não inferior a seis horas, nem superior

a oito, a pena será diminuída em um dia.

A remição é, assim, uma forma de abreviar o tempo de cumprimento da pena,

antecipando a liberdade, e deverá ser considerada também para os efeitos de concessão

do livramento condicional e também para o indulto.

O direito à remição não se confunde com o direito ao trabalho, que é pressuposto

daquele. A remição poderá não ser obtida, se o condenado vier a ser punido –

regularmente, com obediência às normas procedimentais, em que se lhe assegure a

defesa – por falta grave, hipótese em que, perdido o tempo trabalhado, começará a

contar novo período de remição, a partir da data em que cometeu a infração disciplinar.

O trabalho não tem por objetivo a remição, mas uma finalidade educativa e, até mesmo,

de proporcionar recursos ao condenado, para fazer face a suas obrigações para com a

vítima e com seus dependentes.

Se o condenado ficar impossibilitado de trabalhar, em razão de acidente de

trabalho, continuará beneficiando-se do instituto da remição, o que significa que a cada

três dias de trabalho normal, exceto domingos e feriados, será descontado um dia de

pena.

Questão candente é saber se o condenado que não trabalha porque o Estado não

lhe oferece as condições para tanto terá, ou não, direito à remição.

O preso tem direito ao trabalho, em razão do que dispõe o art. 31 da Lei de

Execução Penal, que o considera obrigatório, na medida de suas aptidões e capacidade.

É um dever do Estado, portanto, proporcionar ao condenado condições para trabalhar.

O trabalho, todavia, não tem como fim permitir a remição, mas, segundo dispõe o art.

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34 – Direito Penal – Ney Moura Teles

28, sua finalidade é educativa e produtiva.

Dessa forma, o condenado tem direito ao trabalho para produzir e se educar, não

para, com ele, obter a remição da pena, razão por que a falta de trabalho, por desídia do

Estado, não implicará a concessão da remição ao condenado.

14.4 DETRAÇÃO

Detração é

“a operação aritmética por meio da qual é computada, no tempo de duração da

condenação definitiva, a parcela temporal correspondente à concreta aplicação de

uma medida cautelar ou à efetiva internação em hospital de custódia e

tratamento psiquiátrico”18.

Desde os tempos da Consolidação das Leis Penais, era um direito do condenado

computar na pena privativa de liberdade o tempo de prisão preventiva ou provisória,

executada no Brasil (art. 60, CLP), e, com o Código de 1940, também a executada no

estrangeiro (art. 34, CP/1940).

A regra atual, do art. 42 da parte geral nova, é clara:

“Computam-se, na pena privativa de liberdade, e na medida de segurança, o

tempo de prisão provisória, no Brasil ou no estrangeiro, o de prisão

administrativa e o de internação em qualquer dos estabelecimentos referidos no

artigo anterior”,

vale dizer em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico ou estabelecimento

similar.

Trata-se do desconto, na quantidade da pena, do tempo que o condenado tiver

sido privado de sua liberdade, seja por prisão provisória, seja administrativa e por

internação. Necessário, em primeiro lugar, esclarecer o conceito de prisão provisória.

Por prisão provisória, ou de natureza processual,

“deve-se entender não só a prisão temporária, a prisão preventiva, a prisão em

flagrante – tipicamente cautelares, no entender de Rogério Lauria Tucci (in

Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro, Saraiva, 1993, p.

406) – e a prisão decorrente de pronúncia, mas, também, a prisão resultante de

sentença penal condenatória recorrível, de natureza processual, para o grande

18 FRANCO, Alberto Silva. Op. cit. p. 588.

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Penas Privativas de Liberdade - 35

processualista. Outra corrente não faz distinção entre as primeiras e a última: ‘A

prisão em virtude de decisão condenatória recorrível também possui natureza

cautelar, visando a assegurar o resultado do processo, diante do perigo de fuga do

condenado, em face de um primeiro pronunciamento jurisdicional desfavorável;

tanto assim que se admite fiança como medida de contracautela’ (Ada Pelegrini

Grinover, Antonio Scarance Fernandes e Antonio Magalhães Filho, As nulidades

do processo penal, Ed. Malheiros, p. 241)”19.

Em outras palavras, prisão provisória é a prisão cautelar, processual, que se

contrapõe à prisão-pena, esta decorrente do trânsito em julgado da sentença penal

condenatória e que deriva da expedição e recebimento, pela autoridade incumbida da

execução da pena, da guia de recolhimento para cumprimento de pena (arts. 105 a 107,

da LEP).

A prisão administrativa é uma espécie de prisão destinada a compelir alguém ao

cumprimento de certa obrigação, e encontra-se regulada no art. 319 do Código de

Processo Penal, assim:

“A prisão administrativa terá cabimento: I – contra remissos ou omissos em

entrar para os cofres públicos com os dinheiros a seu cargo, a fim de compeli-los

a que o façam; II – contra estrangeiro desertor de navio de guerra ou mercante,

surto em porto nacional; III – nos demais casos previstos em lei. § 1º A prisão

administrativa será requisitada à autoridade policial nos casos dos nºs I e III,

pela autoridade que a tiver decretado e, no caso do nº II, pelo cônsul do país a

que pertença o navio. § 2º A prisão dos desertores não poderá durar mais de três

meses e será comunicada aos cônsules. § 3º Os que forem presos à requisição de

autoridade administrativa ficarão à sua disposição.”

Esse tempo de prisão também será descontado no tempo da pena.

A detração será possível nos seguintes casos:

a) quando houver nexo entre a prisão provisória e a pena, isto é, se ambas as prisões

tiverem o mesmo motivo, resultarem do mesmo crime. Exemplo: João teve sua prisão

preventiva decretada por crime de homicídio, ficando preso durante dois anos, quando

transita em julgado a sentença penal que o condenou a seis anos de reclusão. O tempo

de prisão provisória cumprida, dois anos, será computado, no tempo da pena, devendo

João cumprir apenas mais quatro anos;

19 Nosso artigo: Prisão processual: prazo máximo. Informativo Consulex, ano 10, nº 5, p. 136, 29 jan. 1996.

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36 – Direito Penal – Ney Moura Teles

b) quando, mesmo sem qualquer nexo, sem nenhuma relação entre os fatos que

motivaram as prisões, tiverem sido elas, todavia, decididas no mesmo processo.

Exemplo: Paulo foi preso em flagrante-delito de homicídio, não relaxado, e denunciado

por homicídio e ocultação de cadáver. Levado a julgamento pelo tribunal do júri, foi

absolvido do homicídio, por ter agido em legítima defesa, mas condenado pelo crime de

ocultação de cadáver a uma pena de dois anos de reclusão. Tendo ficado preso um ano,

em razão do homicídio, e dele tendo sido absolvido, será descontado o tempo de prisão

no tempo da pena a que foi condenado pela ocultação, devendo cumprir apenas mais

um ano;

c) quando o preso provisoriamente se vê absolvido e passa, sem solução de

continuidade, da prisão provisória para o cumprimento de pena decidida noutro

processo. Exemplo: Joaquim encontra-se preso em razão de prisão-preventiva

decretada em processo que tramita na 5ª Vara Criminal. Simultaneamente, está sendo

processado, sem prisão decretada, no juízo da 7ª Vara Criminal da mesma cidade. No

primeiro processo é absolvido. No segundo, após o trânsito em julgado de sentença

condenatória, o juiz, tendo conhecimento de que ele se encontra preso em razão da

decisão do juiz da 5ª Vara, determina a expedição da guia de recolhimento, que é

executada, permanecendo ele preso, a partir de então, cumprindo a pena a que foi

condenado. Desse modo, passa da condição de preso provisório para a de preso

condenado, sem nenhuma solução de continuidade, sem nenhuma interrupção na

privação de sua liberdade, havendo, pois uma prisão injusta que não se interrompeu e

que, num dado momento, tornou-se legal, pela expedição da guia de recolhimento para

cumprimento de pena. O tempo de prisão anterior ao cumprimento da guia deve ser

computado no tempo da pena que deverá cumprir.

Uma última hipótese tem sido aceita pela jurisprudência de nossos tribunais: a

da detração do tempo de prisão sofrida em processo em que o réu for absolvido ou tiver

a punibilidade extinta, na pena por crime cometido anteriormente à mesma pena.

Como nesse julgado:

“A pena sofrida por força de crime de cuja punibilidade o réu se vê livre será

computada na condenação por crime cometido anteriormente à mesma pena. Tal

critério não enseja a chamada ‘conta corrente’ com o criminoso, eis que o fato,

cuja pena é detraída, ocorreu antes do cumprimento do tempo computado. Trata-

se da orientação liberal aceitável, eis que considera tempo de prisão que não

deveria ter sido cumprido” (TACRIM-SP – RA – Rel. Walter Theodósio – RT

622/304).

O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL já decidiu no mesmo sentido:

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Penas Privativas de Liberdade - 37

“A detração do período de prisão a que se seguiu a absolvição do réu pode ser

concedida se se trata de pena por outro crime anteriormente cometido. Não,

porém, em relação à pena por crime posterior à absolvição” (STF – HC – Rel.

Aliomar Baleeiro – RTJ 70/324).

14.5 DEVERES E DIREITOS DO PRESO

O preso, condenado ou provisório, deverá ter sua integridade física e moral

respeitadas por todos, garantia constitucional inserta no art. 5º, XLIX, da Constituição

Federal. O art. 38 do Código Penal reafirma o princípio:

“O preso conserva todos os direitos não atingidos pela perda da liberdade,

impondo-se a todas as autoridades o respeito à sua integridade física e moral”,

e a norma do art. 40 comete, ao legislador especial, a tarefa de enumerar e regular os

direitos e deveres dos presos.

O art. 39 da Lei de Execução Penal dispõe sobre os deveres do condenado:

“I – comportamento disciplinado e cumprimento fiel da sentença; II – obediência

ao servidor e respeito a qualquer pessoa com quem deva relacionar-se; III –

urbanidade e respeito no trato com os demais condenados; IV – conduta oposta

aos movimentos individuais ou coletivos de fuga ou de subversão à ordem ou à

disciplina; V – execução do trabalho, das tarefas e das ordens recebidas; VI –

submissão à sanção disciplinar imposta; VII – indenização à vítima ou aos seus

sucessores; VIII – indenização ao Estado, quando possível, das despesas

realizadas com a sua manutenção, mediante desconto proporcional da

remuneração do trabalho; IX – higiene pessoal e asseio da cela ou alojamento;

X – conservação dos objetos de uso pessoal.”

Com exceção dos deveres contidos na última parte do inciso I e no inciso VII, os

demais deveres são, também, impostos aos presos ainda não condenados, provisórios.

A não-obediência aos deveres mencionados nos incisos II e V constitui falta

grave, que pode acarretar até a regressão a regime mais severo.

Os arts. 40 e 41 da Lei de Execução Penal descrevem, minuciosamente, os direitos

dos presos, condenado ou provisório.

14.5.1 Respeito à integridade física e moral

Todas as autoridades são obrigadas a respeitar a integridade física e a

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38 – Direito Penal – Ney Moura Teles

integridade moral do preso.

Esse mandamento consta da Constituição Federal, é repetido no Código Penal

(art. 38) e na Lei de Execução Penal (art. 40) e, apesar de três vezes declarado, é o

preceito mais violado nos estabelecimentos penais brasileiros. A Lei nº 9.455, de 7-4-

1977, veio, finalmente, tipificar os crimes de tortura, suprindo uma omissão até então

imperdoável e há muito reclamada por todo o mundo jurídico. A partir de então, foram

incriminadas as seguintes condutas:

“Constitui crime de tortura: I – constranger alguém com emprego de

violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental: a) com o

fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira

pessoa; b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa; c) em razão de

discriminação racial ou religiosa; II – submeter alguém, sob sua guarda, poder

ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso

sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida

de caráter preventivo. Pena – reclusão, de dois a oito anos. § 1º Na mesma

pena incorre quem submete pessoa presa ou sujeita a medida de segurança a

sofrimento físico ou mental, por intermédio da prática de ato não previsto em

lei ou não resultante de medida legal.”

Se resultar lesão corporal grave ou gravíssima, a pena será de reclusão de quatro a

dez anos e, se resultar morte, de oito a dezesseis anos, e, se a tortura for cometida por

agente público, ou contra criança, gestante, deficiente e adolescente, ou, ainda, mediante

seqüestro, a pena será aumentada de um sexto até metade.

Não podem os presos ser submetidos a quaisquer maus-tratos ou castigos, nem a

tratamento desumano, cruel, vexatório ou humilhante.

Desse direito decorre, igualmente, que não podem os presos ser obrigados a

habitar ambiente insalubre e sem a necessária higiene e segurança. A propósito, as

Regras Mínimas para o Tratamento dos Reclusos, adotadas pela Organização das

Nações Unidas, em seu primeiro Congresso sobre Prevenção do Delito e Tratamento do

Delinqüente, em 30-8-1955, estabelecem:

“10. Os locais em que ficam os reclusos, especialmente os destinados a

alojá-los durante a noite, deverão satisfazer às exigências de higiene de acordo

com o clima, particularmente no que concerne ao volume de ar, superfície

mínima, iluminação, calefação e ventilação. 11. Nos locais em que os reclusos

tenham de viver ou trabalhar: a) as janelas serão suficientemente grandes, para

que o recluso possa ler e trabalhar com luz natural, e deverão estar dispostas de

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Penas Privativas de Liberdade - 39

maneira que possa entrar ar fresco, haja ou não ventilação artificial; b) a luz

artificial será suficiente para que o recluso possa ler e trabalhar sem

prejudicar-lhe a vista. 12. As instalações sanitárias deverão ser adequadas

para que o recluso possa satisfazer suas necessidades naturais no momento

oportuno, de forma asseada e decente. 13. As instalações de banho e ducha

deverão ser adequadas para que cada recluso possa tomar um banho ou

ducha a uma temperatura adaptada ao clima e com a freqüência exigida pela

higiene geral, segundo a estação e a região geográfica, porém pelo menos uma

vez por semana, em clima temperado. 14. Todos os locais freqüentados

regularmente pelos reclusos deverão ser mantidos limpos e em perfeito

estado.”

Infelizmente, na grande maioria dos estabelecimentos prisionais brasileiros, essas

regras mínimas não são respeitadas.

14.5.2 Alimentação e vestuário

Direito básico, indispensável à conservação da vida e ao exercício dos demais

direitos, a alimentação deve ser suficiente, controlada, devidamente preparada e

corresponder, em quantidade e qualidade, às necessidades do preso. Especial atenção

deve merecer o preso que estiver acometido de qualquer enfermidade, cuja alimentação

deverá ser compatível com as recomendações médicas.

Igualmente, o vestuário deve ser fornecido pela administração do presídio, e

compatível com o clima do local, a fim de não prejudicar a saúde e a dignidade do

preso.

14.5.3 Atribuição de trabalho, previdência social e pecúlio

O trabalho, ao lado da educação, da saúde e do lazer, é um dos direitos sociais

de todos os cidadãos, assegurado pela Constituição Federal, no art. 6º. Estando o

homem preso, provisória ou definitivamente, em razão de condenação, não pode, só

por isso, ser privado do direito ao trabalho, razão por que a lei determina lhe seja

atribuído trabalho, com remuneração.

Costuma-se imaginar que o trabalho é só um dever do preso, mas, como se vê, é,

antes e acima de tudo, um direito impostergável, principalmente porque é pelo trabalho

que o condenado poderá encontrar o caminho para sua recuperação e reinserção social,

como já assinalado.

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40 – Direito Penal – Ney Moura Teles

Decorrente do direito ao trabalho é a integração do preso ao sistema

previdenciário oficial, sendo-lhe assegurada a constituição de um pecúlio, através de

desconto da remuneração pelo trabalho realizado, o que só poderá ser feito se

satisfeitas obrigações preferenciais, como as relativas à reparação do dano à vítima,

assistência a sua família, e ressarcimento ao Estado das despesas com sua manutenção

pessoal.

14.5.4 Descanso, recreação e atividades anteriores

O preso tem direito ao repouso e à recreação; daí por que o tempo de prisão

deverá ser proporcionalmente distribuído entre o trabalho e as atividades esportivas, de

lazer, culturais etc.

A lei assegura aos presos o direito de continuarem com suas atividades

profissionais, intelectuais, artísticas e desportivas anteriores, desde que não sejam

incompatíveis com a privação da liberdade. Por exemplo, escritores, pintores, atores,

têm o direito de, na prisão, exercer suas atividades anteriores, o que constitui

importante instrumento para sua recuperação. Impõe-se às autoridades proporcionar,

nos presídios, a possibilidade de acesso às bibliotecas, serviços de rádio, imprensa,

formação de equipes esportivas, de teatro, enfim, dotar os estabelecimentos desses

equipamentos indispensáveis ao exercício dessas atividades.

Na realidade, entretanto, os presos acabam por viver na mais total ociosidade,

pois não só falta o trabalho, como também atividades recreativas, permanecendo eles,

na grande maioria, sem qualquer atividade, o que é extremamente prejudicial ao

alcance de quaisquer dos fins da pena – prevenção, recuperação –, além de favorecer a

indolência, a preguiça, o contágio moral, o desequilíbrio, a criminalidade nos presídios.

14.5.5 Assistência e proteção contra o sensacionalismo

A lei obriga o Estado a proporcionar ao preso assistência material, à saúde,

jurídica, educacional, social e religiosa, com vistas à prevenção do crime e à orientação

para seu retorno ao convívio social, devendo estendê-la ao que já cumpriu a pena.

Todo preso, além disso, condenado ou provisório, deve ser protegido contra

qualquer forma de sensacionalismo praticado por órgãos de comunicação – jornais,

revistas, rádios, emissoras de televisão – que em suas comunicações procuram explorar a

notícia, conferindo-lhe roupagem fantasiosa que atenta contra a dignidade humana do

preso, podendo causar graves prejuízos para sua recuperação.

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Penas Privativas de Liberdade - 41

Não se pode negar igualmente que o sensacionalismo sobre o fato praticado,

bem assim sobre o próprio preso, pode exercer influência extremamente negativa sobre

sua personalidade, conferindo-lhe fama e alterando-lhe a personalidade de modo

prejudicial para si e para a própria sociedade. O mundo tem vários exemplos de

condenados que se tornam alvo da manipulação da imprensa, os quais, longe de se

emendarem, se tornam ainda mais perigosos.

14.5.6 Entrevista com advogado

É direito do advogado comunicar-se com seus clientes presos, detidos ou

recolhidos em qualquer estabelecimento, civil ou militar, ainda quando considerados

incomunicáveis, pessoal e reservadamente, mesmo sem ter procuração. Logo, a vista da

simples informação do advogado regularmente inscrito na Ordem dos Advogados do

Brasil, a autoridade que mantém alguém preso deve permitir a entrevista com o preso

(art. 7º, III, da Lei nº 8.906, de 4-7-94 – Estatuto da Advocacia).

A entrevista entre advogado e preso é assegurada também pela Lei de Execução

Penal (art. 41, IX), daí que, se o advogado tem direito ao encontro, também o preso tem

o mesmo direito à entrevista pessoal e reservada.

Todos os estabelecimentos prisionais devem manter recinto destinado às

entrevistas entre presos e advogados, a fim de que possam eles comunicar-se sem

qualquer interferência ou assistência de quem quer que seja. Trata-se de importante

direito, destinado a assegurar ampla liberdade de comunicação para o preso,

condenado ou não, imprescindível para o exercício da plena defesa.

14.5.7 Visitas e comunicação com o mundo exterior

O contato do preso com o mundo externo, seja por meio de comunicação de

dentro para fora do presídio, ou de fora para dentro, seja por meio do recebimento de

correspondência e visitas de amigos e parentes, é outro direito assegurado pela lei.

As visitas da mulher, companheira, dos parentes e dos amigos deverão ser

realizadas periodicamente, em dias e horários previamente determinados pela

administração do estabelecimento.

Importante conquista dos presos é a chamada visita íntima, destinada ao

convívio sexual entre o preso e sua companheira ou mulher, e também entre a

presidiária e seu marido ou companheiro. Trata-se, evidentemente, de um direito de

todos, mas é óbvio que deve ser exercido com limitações, podendo ser suspenso ou

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42 – Direito Penal – Ney Moura Teles

restringido. A visita é da mais alta importância, porquanto a abstinência sexual

prolongada leva, inevitavelmente, a diversos problemas, valendo lembrar o

homossexualismo forçado, geralmente acompanhado de violência física, disseminação

de doenças venéreas, e outros distúrbios de ordem psicológica, prejudicando a

recuperação do condenado.

As comunicações com o mundo exterior devem ser asseguradas, mas,

igualmente, subordinar-se a regras de controle, destinadas a evitar a entrada de armas,

substâncias entorpecentes e a organização de fugas, motins e, mesmo, de associações

criminosas.

14.5.8 Chamamento nominal e igualdade de tratamento

O preso será identificado e chamado pelo próprio nome e não por um número,

símbolo ou qualquer outra forma de tratamento, especialmente as alcunhas pejorativas

ou ligadas a seu passado. O chamamento nominal é direito impostergável e é

decorrência da inviolabilidade da dignidade do ser humano.

O preso é um ser humano, dotado de personalidade e não pode perder sua

dignidade pela perda da liberdade decorrente da condenação ou da autorização legal

para a custódia provisória, conservando todos seus direitos não atingidos pela prisão,

entre eles o de ser tratado pelo próprio nome.

A classificação dos presos não confere a eles tratamento desigual, mas visa

simplesmente à individualização da pena na fase de execução. Vedada, é claro, qualquer

discriminação, de qualquer espécie ou natureza, como racial, política, social, de

opinião, religiosa etc.

14.5.9 Audiência com o diretor, representação e petição

Outro direito dos presos é o de avistar-se com o diretor do estabelecimento

prisional, para oferecer reclamações ou quaisquer reivindicações. Da mais alta

importância, a medida protege o preso das perseguições que possam ocorrer, inclusive

de funcionários do presídio, permitindo-lhe denunciar, diretamente ao dirigente

máximo do estabelecimento, abusos e irregularidades.

Do mesmo modo, o preso conserva seu direito de representar e de peticionar em

defesa de qualquer de seus direitos.

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Penas Privativas de Liberdade - 43

14.6 DIREITOS POLÍTICOS DOS CONDENADOS

A Constituição Federal, no art. 15, assim estabelece:

“É vedada a cassação de direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nos

casos de: (...) III – condenação criminal transitada em julgado, enquanto

durarem seus efeitos.”

De conseqüência, todos os condenados pela prática de crime, enquanto durarem

os efeitos da condenação, têm seus direitos políticos suspensos, tanto os ativos, quanto

os passivos. Assim, o condenado criminalmente, enquanto perdurarem os efeitos da

sentença, não pode votar nem ser votado.

A Lei Complementar nº 64, de 18-5-1990, no art. 1º, I, e, considera inelegíveis

para qualquer cargo,

“os que forem condenados criminalmente, com sentença transitada em julgado,

pela prática de crimes contra a economia popular, a fé pública, a administração

pública, o patrimônio público, o mercado financeiro, pelo tráfico de

entorpecentes e por crimes eleitorais, pelo prazo de 3 (três) anos, após o

cumprimento da pena”.

Desse modo, por qualquer condenação criminal, enquanto perdurarem os efeitos

da sentença, o condenado está com todos os seus direitos políticos suspensos e, nos

casos dos crimes relacionados na alínea e do inciso I do art. 1º da Lei Complementar

64/90, serão inelegíveis – não poderão ser eleitos, apesar de poderem votar, participar

da vida partidária – por três anos após o cumprimento da pena, qualquer que seja ela.