Volume xv 2006

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO IV, Nº201 JANEIRO - PORTO VELHO, 2006

Volume XV Janeiro/Março

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL

ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia FABÍOLA LINS CALDAS - História

JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL - Geografia

MIGUEL NENEVÉ - Letras VALDEMIR MIOTELLO - Filosofia

Os textos no mínimo 3 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for

Windows” deverão ser encaminhados para e-mail:

[email protected]

CAIXA POSTAL 775 CEP: 78.900-970 PORTO VELHO-RO

TIRAGEM 150 EXEMPLARES

EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

ISSN 1517-5421 lathé biosa 201

A COOPERAÇÃO ENTRE OS PROFISSIONAIS

DA EDUCAÇÃO: UM EXEMPLO NECESSÁRIO.

Ivanir Olegário de Menezes

PRIMEIRA VERSÃO

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A COOPERAÇÃO ENTRE OS PROFISSIONAIS DA EDUCAÇÃO: UM EXEMPLO NECESSÁRIO. Ivanir Olegário de Menezes1

Resumo Uma das críticas que se faz à educação diz respeito à dicotomia entre a teoria e a prática em grande parte das ações desenvolvidas pela escola. O presente trabalho traz à tona um tema em torno do qual se percebe uma lacuna considerável entre o discurso e a prática da maioria dos profissionais da educação: a cooperação. Enfatiza, ainda, a necessidade de se desenvolver nas escolas trabalhos mais coletivos, a fim de que os discentes, mirando-se no exemplo daqueles que integram o quadro educacional, desenvolvam a capacidade de trabalhar em equipe e o espírito de solidariedade. Palavras-chave: cooperação, escola, profissionais da educação.

THE COOPERATION BETWEEN PROFESSIONALS OF THE EDUCATION: A NECESSARY EXAMPLE. Abstract One the critical that it becomes to the education to a large extent says respect to the dichotomy between the theory and the practical one of the actions developed for the school. The present work brings to display a subject around which if it perceives a considerable gap between the speech and the practical one of the majority of the professionals of the education: the cooperation. It emphasizes, still, the necessity of if to develop in the schools more collective works, so that the learning, looking at oneself in the mirror themselves in the example of that they integrate the educational staff, develop the capacity to work together and the spirit of solidarity. Key-words: cooperation, school, professionals of the education Introdução

Uma característica muito valorizada hoje no mercado de trabalho é a capacidade de trabalhar em equipe. Já não há mais espaço para o individualismo, o

isolamento, o fazer tudo sozinho. É necessário saber compartilhar idéias, colaborar para que projetos sejam executados com êxito, ser solidário com os colegas,

cooperar, a fim de que as metas comuns sejam alcançadas.

Uma pessoa que não interage com o grupo, que não contribui para que o local de trabalho seja agradável e produza resultados positivos tende a ser o principal alvo nas substituições que ocorrem nas empresas e instituições dos mais variados segmentos, inclusive nas públicas.

1 Licenciada em Língua Portuguesa pela UNOESTE/SP,especialista em Língua Portuguesa pela FPAA/SP,pós-graduanda em Metodologia do Ensino Superior pela Unintes/RO, é professora de Língua Portuguesa na Unicentro e na rede estadual de ensino em Jaru/RO. [email protected].

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Este artigo, embora fundamentado em pesquisas bibliográficas, é fruto também de experiências pessoais e tem o propósito de discutir a cooperação no

âmbito educacional, por entendermos que para a escola cumprir ‘bem’ o seu papel é preciso que todas as pessoas nela envolvidas estejam conscientes de que ali não

é um espaço para competições, mas um espaço de interação e troca.

Na escola todos são importantes e responsáveis pelo ensino

A escola é uma instituição social cujas atividades são desenvolvidas por pessoas que possuem diferentes graus de instrução e exercem funções diversas,

porém todos influenciam de algum modo a formação daqueles que a procuram. Para Lenhard,(1998) é importante que o grupo esteja consciente disso:

A escola é um espaço interativo e coletivo. Seus participantes devem ter como objetivo principal e atividade-fim: o ensino. Mesmo os que trabalham nas

atividades-meio (secretaria,lanchonete,quadra de esportes) devem ter consciência da importância de sua participação no ensino. (p. 28)

A consciência da importância da participação de todos no processo ensino-aprendizagem, independente da função que desempenham, implicará um trabalho

mais colaborativo, pois cada um dos membros da comunidade escolar (secretária, chefe de disciplina, direção, professor, auxiliar de serviços gerais, guarda, cantineiro,

bibliotecário,etc.) sabe que o resultado final é a soma do trabalho de todos. E isso resultará em posturas e atitudes bem diferentes das que se vêem hoje na maioria

das escolas, onde um grupo considera-se auto-suficiente, agindo como se não dependesse de ninguém para desempenhar bem a sua tarefa. Esquecem que:

Participando ou não diretamente do ensino, as pessoas até agora enumeradas trabalham dentro da unidade escolar, mantendo entrosamento relativamente

estreito. Podem, por isso, ser chamadas membros dela. Dificilmente a presença de qualquer uma delas será totalmente irrelevante para a interação educativa

conjunta. (LENHARD, 1998,p.29)

Outro grupo comporta-se como se o seu trabalho não tivesse relevância alguma, e um terceiro grupo, cuja preocupação maior é o salário que receberá no

final do mês.

O comportamento dos três grupos é negativo no ambiente escolar. O do primeiro, porque desenvolve em seus adeptos o espírito egoísta e individualista. Não

é raro encontrarmos nas escolas pessoas que mal cumprimentam os colegas. Incapazes de um gesto solidário, uma palavra de incentivo. Não compartilham idéias e

geralmente nunca participam das reuniões sociais promovidas pela escola, pois não “querem se misturar”. Segundo Rodrigues,(2000,p.72) “A escola não pode copiar

o espírito de competitividade individualista e egoísta da sociedade capitalista.”

O do segundo, porque se colocando na posição de ‘coitadinhos’ seus integrantes tendem a se tornarem displicentes e solitários. Muitos por julgarem a sua

função menos importante que as demais não se empenham em melhorar a qualidade de seu trabalho ou executam-no com tanta má vontade que o fazem malfeito.

Consideram que não há problema em faltar, chegar mais tarde ou sair mais cedo, pois ninguém sentirá sua falta. Pouco se interessam pelos projetos da escola, não

participam dos encontros de confraternização e reuniões, pois sua presença e idéias não têm importância.

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E o comportamento do último é negativo, porque preocupados apenas com o salário, os membros desse grupo agem com irresponsabilidade e

descompromisso. Faltam ao trabalho por qualquer motivo, são indiferentes às programações desenvolvidas pela instituição e quando solicitados a colaborar,

verbalizam “só se for no dia do meu trabalho e para aquilo que fui contratado” “não recebo para fazer isso” ou “não é minha função”.

Felizmente é possível encontrar um quarto grupo. Um grupo onde há o espírito de solidariedade e cooperação, cujos membros reconhecem que são

fundamentais no processo de ensino e juntos procuram, apesar de todas as dificuldades impostas pelo sistema, desenvolver um trabalho sério e de qualidade, visando

sempre ao bem-comum de toda a comunidade escolar, conscientes de que:

O processo pedagógico não se circunscreve à sala de aula, mas ao ambiente geral da unidade escolar. O aluno começa a compreender o valor da escola e o

seu sentido a partir do momento em que nela ingressa: a partir desse momento, todos os que aí militam são educadores (...) toda gama de comportamentos que

compõem a rotina escolar, concorrem para educar, formar o caráter, desenvolver conceitos éticos e políticos. (MASETTO, 2003,P.84)

Portanto, todos são importantes e responsáveis pelo ensino dentro de espaço escolar e devem trabalhar em cooperação, a fim de formar cidadãos que

contribuam na construção de um país melhor e mais solidário.

Corpo docente & cooperação

Muito se tem falado e escrito sobre interdisciplinaridade. Nos encontros e reuniões pedagógicas, percebe-se a preocupação e orientação quanto à

necessidade de se desenvolver trabalhos interdisciplinares. Contudo, nota-se, ainda, a resistência de muitos professores quando se fala no assunto, isto porque, como

afirma Luck (1994, p.88)

O estabelecimento de um trabalho interdisciplinar provoca, como toda ação a que não se está habituado, uma sobrecarga de trabalho, um certo medo de

errar, de perder privilégios e direitos estabelecidos (por menores que sejam). A orientação pelo enfoque interdisciplinar para orientar a prática pedagógica implica em

romper hábitos e acomodações(sic), implica em buscar algo novo e desconhecido(sic). É, certamente, um grande desafio.

Realmente é um desafio, já que por força do próprio nome “interdisciplinar” pressupõe atividades cujas características são o trabalho em equipe, a

cooperação, o diálogo, a troca de experiências, a ajuda mútua, o envolvimento. “Reconhece-se que, para o desenvolvimento da interdisciplinaridade é fundamental

que haja diálogo, engajamento, participação dos professores, na construção de um projeto comum voltado para a superação da fragmentação do ensino.” (LUCK,

1994, p.80).

O que se vê imperar em grande parte das escolas é o individualismo e comodismo. Muitos professores quando convidados a participar de um projeto

interdisciplinar até concordam, porém não querem “pôr a mão na massa”. Envolver-se, assumir responsabilidades, participar de encontros para elaborar o projeto,

sugerir, disponibilizar tempo para orientar os alunos e tomar outras providências para a execução da atividade, isso não. O máximo que fazem é dispensar os alunos e

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acompanhá-los no dia da apresentação, se for dia de sua aula. Isto quando não aproveitam o momento para ficar na sala dos professores tomando um cafezinho ou

para ir embora mais cedo, enquanto o colega coordena a programação na qual, muitas vezes, consta o nome dele como sendo um dos organizadores.

E há aqueles que alegam ser melhor trabalhar sozinhos, pois assim eles podem decidir o quê, quando e como fazer sem interferência de ninguém. Geralmente

nesse caso, nem os próprios alunos são consultados.

Como os alunos aprenderão a importância do trabalho em equipe e da cooperação com exemplos assim? Para Sacristán e Pérez apud Masetto (2003,p.40) “É

preciso transformar a vida da escola, de modo que possam vivenciar-se práticas sociais de intercâmbios que induzam à solidariedade, à colaboração,à experimentação

compartilhada.”

Faz-se necessário que essa solidariedade, colaboração e experimentação compartilhada sejam vivenciadas, primeiramente, no cotidiano dos professores, pois

apesar de a maioria cobrar de seus alunos trabalhos em grupo e discursar sobre a importância da troca de conhecimentos, poucos são os que estão dispostos a

desenvolver essas práticas em seu cotidiano profissional. Até entre os docentes da mesma área há pouca cooperação. Não se dispõe de tempo para troca de

experiências, para discutir idéias de como melhor trabalhar determinado conteúdo, para debater temas de interesse do grupo. Nota-se uma preferência pelo

individualismo. Por vezes, tem-se a impressão de que alguns têm medo dessa troca, talvez por que, como afirma Perrenoud (2000, p.104) “inúmeros professores

ainda se sentem ‘soberanos’, uma vez fechada a porta de sua sala de aula.” Porém, o mesmo autor alerta:

A evolução da escola caminha para a cooperação profissional. Modismo, sob a influência de sonhadores, dirão aqueles que só se sentem bem ‘sozinhos no

comando’. No entanto, há múltiplas razões para inscrever a cooperação nas rotinas do ofício do professor. (p.79)

Dentre as razões por que a cooperação deve estar presente na prática do professor, uma merece ser observada com atenção: a ênfase dada ultimamente aos

trabalhos com projetos.

Seja um projeto maior como o Projeto Político Pedagógica da Escola ou projetos menores envolvendo as disciplinas do currículo, todos exigem cooperação,

troca envolvimento. No trabalho com projetos não há espaço para o individualismo. No lugar do “eu” existe “nós”. Há uma equipe e todos trabalham de forma solidária

para alcançar os objetivos propostos pelo grupo. Ao participarem de um projeto interdisciplinar, os professores sabem da importância da integração entre os vários

componentes curriculares. Sabem que por vezes, assuntos podem se complementar, temas podem não se repetir, situações e experiências profissionais podem ser

exploradas conjuntamente, casos estudados com a participação de várias cadeiras, visitas técnicas preparadas, executadas e debatidas com mais de um professor,

(...) exemplos de interação entre professores que facilitam e promovem aprendizagem.(MASETTO, 2003, p.48).

É claro que esse tipo de trabalho não agrada a quem quer ser a “estrela principal”, aos que vêem a escola não como um espaço de interação, mas como um

espaço onde se disputa quem ou qual disciplina é melhor, quem realiza mais atividades extraclasses, quem está mais preparado e informado, quem possui a maior

titulação, etc.

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Porém, não são apenas aqueles que trabalham com projetos que compartilham idéias, são solidários, têm espírito de equipe. Cooperar é muito mais que

participar de trabalhos coletivos. Perrenoud (2000, p.83) diz que:

A cooperação nem sempre implica projeto comum. Mesmo quando cada professor segue seu caminho e “faz o que tem a fazer”, acontece ser de seu interesse

incitar a fazer alianças, arranjos, colaborações pontuais, sem, no entanto, fazer parte duradouramente do mesmo grupo. Saber cooperar é, desse modo, uma

competência que ultrapassa o trabalho de equipe.

A cooperação se faz presente quando um professor se coloca à disposição do outro para auxiliá-lo em uma tarefa qualquer: como utilizar/manusear um

recurso audiovisual, como elaborar um projeto, como proceder no preenchimento de um diário, etc. Há cooperação quando ocorre troca de informações sobre cursos,

palestras, programas, materiais. Quando ao ser convidado para apreciar uma atividade desenvolvida pelo colega, não apenas dispensa sua turma, mas acompanha os

alunos, ajuda a manter e ordem no recinto e abre espaço para comentar com os discentes o tema e a forma de apresentação.

São inúmeras as ações e atitudes dos professores que evidenciam existir ou não cooperação entre a classe. E os alunos, que estão sempre muito atentos,

sabem quando o discurso em sala é um e a prática outra.

3. A necessária integração entre as diversas áreas da educação

São comuns as queixas da falta de cooperação de muitos profissionais que atuam nas diversas áreas da educação, entretanto, frisaremos aqui as seguintes

categorias: secretarias e representações de ensino, equipe técnico-administrativa e pedagógica da escola, professores e alunos.

Por vezes tem-se observado no âmbito educacional atitudes semelhantes a dos personagens da fábula seguinte:

Conta-se que certa vez um leão encontrou um ratinho. Como estava aborrecido porque acabara de brigar com a mulher, pisou a cauda do rato e gritou

“Miserável criatura, estúpida, ínfima, vil, torpe. Não conheço na criação nada mais insignificante e nojento. Vou te deixar com vida apenas para que você possa sofrer

toda a humilhação do que lhe disse,você, desgraçado,inferior, mesquinho,rato!” E soltou-o. o rato correu o mais que pôde, quando estava a salvo, gritou pro

leão:”Será que Vossa Excelência poderia escrever isso para mim? Vou me encontrar agora mesmo com uma lesma e quero repetir isso pra ela. (FERNANDES,

1985,p.112)

Segundo Rodrigues (2000,p.72):

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As secretarias de educação impõem decisões a todo o sistema operacional de ensino, a inspeção escolar tende a se converter em vigilância burocrática, a

direção da escola em preposto do poder do Estado na escola, a supervisão educacional em autoridade sobre os professores e os professores em ditadores frente aos

alunos.

Nesse sistema de hierarquia cada grupo ao se deparar diante de outro, ao invés de agir coletivamente em solidariedade e colaboração ou age como o leão:

pisa todos que estão à sua frente, ou como o rato: quer repetir as mesmas ações com que foi tratado.

Para comprovar essas atitudes basta atentar para a realidade educacional brasileira. São inúmeros os casos de servidores que ao procurarem as secretarias

estaduais de educação ou representações de ensino são tratados com descaso e má vontade, isto porque alguns funcionários sentindo-se superiores esquecem que

estão ali para colaborar, ajudar aqueles que precisam de seus serviços. Muitas vezes ao invés de facilitar, dificulta a vida e o trabalho do servidor e/ou escola. Muitos

projetos e trabalhos desenvolvidos pelas escolas poderiam ter um alcance maior e resultados mais positivos se houvesse mais empenho e colaboração das secretarias

e representações de ensino.

Embora muito se fale em educação democrática, esta, infelizmente, não é a realidade na maioria das escolas brasileiras, já que são poucos os Estados onde

os administradores escolares são eleitos e não indicados, atendendo a interesses políticos. De acordo com Hora (2004, p35)

...a democratização de ensino, segundo os educadores, passa pelas mudanças nos processos administrativos no âmbito do sistema escolar, vislumbradas através da

participação de professores e pais nas decisões tomadas, eleições para cargos diretivos, assembléias e eliminação das vias burocráticas.

O resultado dessa não participação de pais, alunos e professores na escolha dos diretores, leva algumas direções a priorizarem o cumprimento de ordens

recebidas mesmo que estas não atendam à necessidade ou não sejam a realidade da escola. Há aqueles que dizem “ordem é para ser cumprida, não discutida” ou “

manda quem pode, obedece quem tem juízo”. Por mais absurda que seja a ordem, não há espaço para diálogo, um entendimento comum. Não se está aqui

apregoando que não se deve cumprir as ordens, mas é preciso ter, no mínimo, senso crítico para analisar sua viabilidade, necessidade e importância. A mesma autora

anteriormente citada, diz que numa gestão democrática “O diretor é aquele que está na liderança, a serviço da comunidade escolar para o alcance de suas

finalidades.” (p. 52)

Sabe-se que a direção pode em muito contribuir para desenvolver o espírito de solidariedade e cooperação dentro da escola. Como? Apoiando e participando

dos projetos desenvolvidos pelos professores, tendo em vista que é a direção quem administra os recursos financeiros e o patrimônio escolar, e muitos projetos para

serem executados dependem, em alguns casos, de aquisição de material e em outros da boa vontade do diretor para liberar espaço, som, computador, vídeo, etc.

Também sensibilizando o corpo docente e demais funcionários para que apóiem o colega que está desenvolvendo algum projeto ou trabalho extraclasse, facilitando os

intercâmbios entre escolas, instituições superiores (se houver), comunidade e escola. Incentivando e oportunizando aos alunos e professores da escola que prestigiem

eventos realizados por outras instituições de ensino da cidade e região. Existem casos em que os alunos são dispensados para assistir a shows e comícios, mas não

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para visitar uma feira do conhecimento ou um evento cultural que esteja acontecendo em outra escola.Luck (2000,p.17) afirma que é papel do diretor “A promoção

de um sistema de ação integrada e cooperativa.”

Quanto à equipe pedagógica (supervisores, orientadores) esta, infelizmente, é vista mais como adversária dos professores do que como parceira. Isto porque

é ainda reduzido o número de profissionais dessa área que realmente se coloca ao lado dos professores apoiando-os e buscando apoio para as ações pedagógicas da

escola.

Observa-se que muitas questões relacionadas à prática do professor não são discutidas, mas impostas por diretores, supervisores e/ou coordenadores que

desconhecem a realidade da sala de aula. Para Quaglio (2003, p.52)

Nos sistemas educacionais um grande problema é, pois, quando os administradores e supervisores transformam seus conhecimentos, suas técnicas em algo

estático, materializado, procurando estendê-los mecanicamente aos professores, invadindo o seu mundo, negando-lhes o poder de decisão.(...). Para muitos, o tempo

com o diálogo é perdido, o que não é verdade se, através do diálogo, problematiza-se, critica-se e, criticando, se inserem os professores na realidade como

verdadeiros sujeitos da transformação.

No entanto, não se pode aqui ignorar a atitude negativa de muitos professores frente ao trabalho da equipe diretiva da escola, dificultando ainda mais o

diálogo e cooperação entre os dois grupos. Além de conhecer o papel e importância dessa equipe, é preciso reconhecer que:

Os especialistas (supervisor, orientador, diretor) são possuidores de um conhecimento específico em uma área, assim como cada professor o é; o trabalho

coletivo dessas diferentes especialidades na escola é que provocará mudanças. (HORA, 2004, p.52)

Com respeito à falta de cooperação entre os professores já tratamos da questão no tópico anterior, contudo não se pode deixar de pontuar aqui a relação

professor x aluno. É lamentável constatar que ainda existem os professores fechados ao diálogo com os alunos, que os tratam como seres ‘inferiores’ e sem direito à

voz em sala de aula. Docentes que confundem autoridade com autoritarismo.

Não se pode conceber que o interior da escola funcione como uma arena onde se reúnem os melhores competidores para o espetáculo. É necessário que

todas as categorias trabalhem integradas, reconhecendo o valor e importância de cada uma, valorizando os pontos positivos, compreendendo e aceitando as

diferenças e ,acima de tudo, respeitando o outro como ser humano dotado de qualidades e defeitos.Porque:

Se a escola tem um projeto educacional a desenvolver, sob todos os aspectos solidário, não se pode admitir a competição entre direção e supervisão,

supervisão e professores, corpo docente e corpo discente. Há uma totalidade que deve ser resguardada, em todas as ações, e ela só pode ser atingida pela

cooperação e não pela competição. É necessário decidir o que se quer reforçar e as relações que devem ser enfatizadas. Porque o que se assiste hoje é o reforço dos

esquemas competitivos e egoístas, no interior da escola, a marcar as relações entre as várias categorias de pessoal que aí convivem. (RODRIGUES,2000,pp.68-69)

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Sabemos que como todo grupo social, a escola agrega pessoas com objetivos distintos, aspirações pessoais, visão de mundo particular, qualidades e

características peculiares, e é esse conjunto diversificado que enriquece o ambiente escolar, contudo é preciso fazer com que as diferenças contribuam para o

crescimento coletivo e não sirvam de divisão entre seus membros ou mesmo se transformem em armas para competições entre grupos. Como afirma o mesmo autor:

Somente mediante um trabalho solidário se poderá prevenir contra as decisões isoladas, permeadas de interesses individuais. Todos devem trabalhar conjuntamente

para alcançar o objetivo maior da escola e, por isso, o planejamento cooperativo é indispensável. (p. 85)

Quando todos os profissionais que integram a escola participarem da elaboração do planejamento, e as decisões que envolvem o grupo forem tomadas em

conjunto e não apenas por duas ou três pessoas, haverá um maior engajamento de todos nas atividades escolares e, consequentemente, maior cooperação e

cumplicidade entre os envolvidos, ou seja, existirão menos profissionais agindo como ‘leões e ratos’.

Considerações finais

Trabalhar em equipe não é uma tarefa fácil, pois exige de seus membros desprendimento de si mesmo, saber ouvir o outro. É preciso compartilhar, colaborar,

contribuir para que uma proposta tenha êxito e estar consciente de que no final, muitas vezes, seu nome nem será lembrado, e para muitos essa idéia é

desanimadora e frustrante já que o ser humano espera sempre ao final de um trabalho o reconhecimento (alguns mais que outros, é claro, mas a verdade é que todos

esperam).

Contudo, faz-se necessário que a palavra ‘cooperação’ deixe de constar apenas no papel e discursos e torne-se prática nas escolas brasileiras, lembrando que

se a escola quer formar cidadãos solidários e participativos, a melhor lição é o exemplo de todos aqueles que compõem o seu quadro funcional.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS FERNANDES, Millôr. Fábulas Fabulosas. 11 ed. Rio de Janeiro. Nórdica, 1995. HORA, Dinair Leal da. Gestão democrática na escola. 11 ed. Campinas, S.Paulo. Papirus,2004. LENHARD, Rudolf. Escola: dúvidas e reflexões. São Paulo. Moderna, 1998. LUCK, Heloísa. Ação Integrada. Administração, supervisão e orientação educacional. 17 ed. Petrópolis, RJ. Vozes, 2001. MASETTO, Marcos Tarciso. Competência pedagógica do professor universitário. SãoPaulo. Sunmus,2003. PERRENOUD, Philippe. Dez novas competências para ensinar. Por Alegre. Artes Médicas, 2000.

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QUAGLIO, Paschoal. “Administração, Supervisão, Organização e Funcionamento da Educação Brasileira.” In: MACHADO, Lourdes Marcelino (coord.) e MAIA, Graziela Zambão Abdian (org.). Administração e Supervisão escolar_questões para o novo milênio. São Paulo. Pioneira Thomson,2003. RODRIGUES, Neidson. Por uma nova escola: o transitório e o permanente na educação. 12 ed. São Paulo. Ed. Cortez, 2000.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO IV, Nº202 JANEIRO - PORTO VELHO, 2006

VOLUME XV Janeiro/Março

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL

ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia

FABÍOLA LINS CALDAS - História JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL - Geografia

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EDUCAÇÃO E LIBERDADE

ALBERTO LINS CALDAS

PRIMEIRA VERSÃO

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EDUCAÇÃO E LIBERDADE

ALBERTO LINS CALDAS Centro de Hermenêutica do Presente - UFRO www.unir.br/~caldas/Alberto [email protected]

incipt

[A Hermenêutica do Presente (1996) foi a conseqüência de uma atividade intelectual, de vários artigos, debates acadêmicos, leituras e, principalmente, a

necessidade de reunir meu percurso teórico numa espécie de visão de mundo ou, operacionalizando, nos conceitos, procedimentos e métodos que considerava

fundamentais para uma tentativa de compreensão do existente. Sua função tem sido, antes de tudo, a de uma leitura radical, não somente a contrapelo como queria

Benjamin, mas tosa, corte, dissecação, calcinação, dissolução, propondo a ação de um tipo de consciência crítica e de uma concepção de presente que diferem, e

buscam diferir, da racionalidade tradicional e das temporalidades que são ainda basicamente “coloniais”, voltando-se contra si mesmo, num processo de

autodissolução constante e absolutamente necessário para não se tornar “disciplina”, “saber”, “técnica”, “conhecimento”, “método”; como uma tentativa de

compreensão da virtualidade que caracteriza a ocidentalidade; como forma de entender as naturalizações e universalizações que moldam nossa maneira de

pensar e ser, sem cair imediatamente nas suas ilusões de perspectiva; numa postura epistemológica que entende o conhecimento e o real numa perspectiva

histórica radical, o que põe um limite tanto ao real quanto ao verdadeiro.

Ela representou para mim uma clivagem entre universos teóricos opostos. O primeiro praticamente desapareceu durante o ano de 1993, quando escrevi o

artigo “História e Ciência” no Boletim do Laboratório de Geografia Humana/1, sendo republicado no Jornal “O Estadão” em 26 de julho de 1993 e no Caderno de

Criação/1 no seu primeiro ano, e terminando seu percurso na palestra/debate promovido pela coordenação de História no dia 19 de julho de 1995, com uma sobrevida

no livro “Oralidade, Texto e História” (Loyola, São Paulo, 1999). Este texto representou, mesmo sendo pequeno e sem muito rigor, um momento de virada, um deixar

de aceitar o universo científico como visão privilegiada, mas como uma ideologia, como uma visão de mundo, como um momento imaginário exigindo historicização.

Ao mesmo tempo foi o texto inicial de uma longa polêmica universitária, onde, normalmente caminho sozinho e com uma multidão de pedras sobre minha cabeça.

Depois há um arrefecimento e alguns notam que o que venho dizendo já é mais velho que o mundo e, envergonhados, se tornam e se tornaram mais maleáveis com

uma visão que radicalmente historiciza e relativisa crenças, conceitos e realidades. Uma das principais virtudes da Hermenêutica do Presente é precisamente não

buscar nem coerência nem não-contradição: é uma síntese em movimento, em luta: sua lógica é contraditória e com específicos limites epistemológicos.

Partindo da idéia de “leitura negativa” a Hermenêutica do Presente na sala de aula não poderia ser uma “construção de positividades”, uma “relação de

aprendizagem”, uma “transmissão de conhecimento”, um momento de “formação de mão de obra” nem mesmo manter intacta a “relação pedagógica”, o respeito ao

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“mundo do aluno” ou ao “programa”. Principalmente porque essa Hermenêutica nasceu na sala de aula, no debate, na discordância sem mediação, no choque entre

concepções de mundo, de imagens, de crenças, de conceitos, de leitura, de vida. Ela tem se apresentado como uma mistura entre dialéticas, uma maiêutica

enraivecida, uma militância intelectual e uma concepção radical de historicidade: um marxismo enfrentando sua pós-modernidade.

Dessa maneira, a Hermenêutica do Presente tornou-se um “instrumento pedagógico” fundamental no ensino da “minha História”, aquela que nasce da leitura

daquilo que se construiu como História (disciplina) e como história (sociedades no tempo). Como constructo a história nasce principalmente da História, dos processos

prático-teóricos da ocidentalidade e deve ser enfrentada em sua dimensão de existência, na sua forma de existência, ou ficaremos imobilizados diante da sua

realidade: a história tornou-se nossa alienação fundamental, nosso esquecimento: nós a criamos, teórica e praticamente, mas a fetichizamos como algo natural, algo

além, algo com existência independente.

A Hermenêutica do Presente mobiliza completamente os alunos não somente na defesa das suas opiniões, pré-conceitos, visões de mundo, pondo em choque

crenças de todos os tipos que impedem, normalmente, o historiador de compreender mais profundamente não somente a diversidade de culturas em sua própria

dimensão, mas a constituição de um saber historiográfico, enfrentando a “natureza” e a “dignidade” da História com muito mais entusiasmo, o que não é pouco num

tempo desapaixonado.

A Hermenêutica assim entendida torna-se, para cada aluno, uma possibilidade de “parto de si mesmo”, uma busca de si que não se encontra no antes, mas na

busca, no processo de enfrentamento dos “programas fundamentais da virtualidade” e dos “programas singulares”.

Pessoalmente jamais pretendi mais que a sala de aula. Escrevo artigos, ensaios, livros; combato, grito, discuto, discordo; organizo, dissolvo, oriento: somente

para meus alunos, para torná-los senhores de si. Não ambiciono, na Universidade e no conhecimento, mais que o contato pedagógico: diálogo e atuação que faz

nascer, que permitirá um muito além, um melhor, um mais, um bem além de mim. Reservo minhas ambições à literatura, mas essa não é para os outros, essa se faz

comigo, entre mim e meus fantasmas, entre mim e minhas sombras, entre mim e os fluxos vivos de linguagem, entre mim e o horror, entre mim e as ruínas: os

outros são somente um complemento externo: não são necessários. Muito diferente dos meus alunos, do “conhecimento negativo” produzido para estimular, para

provocar, para fazer um se mover, um acordar, um se resolver, um enfrentar.

Sem essa posição perderia o contato com a realidade. Minha Hermenêutica do Presente como recurso pedagógico tem sido um instrumento de grande valia e

prazer. Ela não pretende ser mais que isso]

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A sala de aula não é o convivium dos iguais, íntimo, benevolente e de compreensão mútua (não é o mundo da tia, do irmão, do amigo, do companheiro, do

compadre, do vizinho, do pastor; não é igreja, casa, repartição). Esta é a imagem do ensino, aquilo que se impõe de fora, não da educação, o que nasce de dentro,

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logo, de uma caça conjunta, atritosa, conflituosa e sem término. Só há liberdade na sala de aula, só há liberdade na universidade (nosso lugar imediato de reflexão),

quando se consegue escapar da “formação da força de trabalho”, da estúpida perspectiva dos cursos práticos, científicos, objetivos. Essa perspectiva tem se

estabelecido como se fosse a perspectiva por excelência da universidade quando é exatamente seu lugar oposto.

Nas chamadas ciências o outro, a diferença aparece sempre como perturbação, algo paralelo que deve cessar, ser superado. Assim tem se apresentado a

educação em seu sentido amplo: lugar onde devemos chegar ao consenso ou, formar a personalidade, o corpo, o futuro. Quer dizer: transformamos a educação num

fascismo tupiniquim.

O outro não é somente o limite da minha liberdade, mas limite que se eu não confrontar com todos os outros limites, com seus próprios limites, se não se

despedaçarem-se entre si como cães em torno de uma cadela, não haverá conhecimento, pensamento, questões, educação, nem mesmo a própria liberdade, e esse

outro não passará de reles espectro de alteridade, alteridade essa que existirá somente em confronto.

Aquele ensino que exige parceria, auxílio, apoio, confiança, aprendizagem é aquele que visa “formar profissionais para o mercado de trabalho”: a universidade

mesmo não podendo escapar deste tristíssimo destino, não pode se conformar, não pode ser configurado por ele. A universidade que se funda em “relacionamentos

positivos” em sala de aula, em sua atuação social, está fadada a se transformar numa fábrica de mercadorias ridículas. O conhecimento advindo e produzido na

universidade não pode ser conciliador: a liberdade, a individualidade, o vão combate, a discordância são não somente seus elementos fundantes, mas uma medida

desses mesmos elementos numa comunidade. Quanto mais uma universidade ensina, menos a comunidade tem liberdade, individualidade e diferença; quanto mais

ela educa mais essas instâncias se difundem como dimensão não mais intelectual, mas social, grupal.

Se vivemos num universo descentralizado, fragmentado, francamente perigoso, agressivo, contraditório, competitivo (condições fundamentais do mundo do

capital), fundar uma atuação educacional no respeito ao outro, no ensino, na aprendizagem, na formação, estaremos não somente impossibilitando a crítica, a

liberdade e a diferença, mas formando trabalhadores incapazes de viver sequer conforme os requisitos medíocres do campo da produção e da reprodução. E nisso

falha a universidade duplamente, pois nem forma trabalhadores que consigam sobreviver decentemente aos fluxos e devires perversos do capital, nem intelectuais ou

revolucionários ou professores, seja lá o quê que forem, o respiradouro do imenso gulag em que o capital vem transformando o viver e impondo o passado como um

desmesurado deposito de mercadorias.

Já não há liberdade em nenhuma instância acadêmica. Os alunos entram somente como animais em adestramento, desejando, clamando adestramento e

continuação; os professores, depois do lento e doloroso processo de empobrecimento e substituição da classe que educava (agora são os pobres que ensinam,

aqueles que aceitam qualquer miséria e o livro didático cobre qualquer insuficiência), transformados em “funcionários públicos” ou “empregados”, produzem

reproduzindo somente seu ganha-pão. A liberdade deixa de ser realidade da palavra, do embate, da instituição, das idéias para se tornar mais um conceito, uma

noção, normalmente contestada na justiça, nos departamentos, nas relações universitárias como coisa velha e perigosa. A “livre escolha” para alunos e professores

são apenas horizontes de um passado não vivido.

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A condição da liberdade é o outro, os limites do outro, a diferença, o antagonismo, mas jamais esse outro pode vir com a justiça, o código, o dogma, a lei, a

norma, a pátria, a família, a religião, a propriedade: a liberdade exige a igualdade entre os diferentes e que as armas da força não sejam parte do seu arsenal. O

conflito é condição da liberdade, mas a Lei destrói qualquer conflito, ela instaura uma verdade, uma realidade, um lado certo. A liberdade, a criação, a alteridade, o

conflito que fazem a universidade cessam no círculo do senso comum, da justiça e dos dogmas.

Com essa destruição, dizendo que é um respeito, se destrói a base da própria liberdade, pois já não há universidade. O engajamento é substituído pelo

pertencimento na ordem, para a ordem: a comunidade se militariza sem perceber ou percebe militarizando.

Impor a comunhão (entre alunos e professores, entre a universidade e a cidade, entre a liberdade e a lei, entre a negação e a tradição) é transformar a

universidade numa comunidade religiosa de mãos dadas cantando ao mesmo deus, numa mesma língua, numa mesma história, para um mesmo fim. A compreensão

só é possível quando as diferenças não deixam de ser diferenças, não deixam de se expor, de se indispor, de transpor, de negar. Como a questão não é “auxiliar o

aluno” ou “prepará-lo para o trabalho”, mas fazê-lo enfrentar as diferenças, as oposições, as contradições, os limites da sua tribo, da sua língua, do seu cotidiano, das

suas crenças e atividades, sem a liberdade se poderá somente comungar com o estabelecido, isto é, não ser professor de universidade, não ser aluno de universidade,

mas “funcionários públicos” em reunião dominical. Se as batalhas são, na verdade, contra as redes de má-fé, sem a liberdade, sem a ex-posição, sem o processo de

negatividade, estaremos somente reforçando essa rede, em vez de dissolvê-la, provocá-la, confundi-la.

O aluno não precisa, nem pode precisar (se precisa é por uma deformação anterior que precisa ser combatida) de apoio para suas escolhas, para sua

autonomia, auxílio para sua posição diante de si mesmo, do mundo e do conhecimento: isso só advirá na luta intelectual, que também não pode visar ou vir de uma

“transmissão de conteúdo”, círculo vicioso das ciências técnicas e da visão ditatorial imposta como educação, não chegando satisfatoriamente sequer a ser ensino.

Diante das escolhas de um universo de conhecimento, diante dos limites disciplinares o aluno deve, em luta intelectual, cerzir sua própria posição com os mais

díspares e arbitrários materiais: a ordem, a disciplina, o limite, a tradição, o conteúdo são apenas pré-textos para o verdadeiro combate do conhecimento na

universidade.

O valor desse cerzir, o resultado perceptivo e intelectual, sem base alguma no “exterior”, deve provir da liberdade e da luta, ou será somente “assimilação de

conteúdo programático” que, de uma maneira ou de outra, seja nos debates, seja na escrita, seja nas leituras, se comporá, não mais como “conteúdo”, ciência,

matéria pronta, mas dimensão de trajeto, elementos vivos do sujeito no seu múltiplo enfrentamento onde o professor não faz parte fundamental senão enquanto

antagonista: a educação formal da universidade cessa quando o aluno torna-se livre diante dos combates, dentro do conhecimento, dentro da sua comunidade,

podendo assumir a busca iniciada, agora, por ele mesmo (anteriormente não havia busca, mas adestramento e inautenticidade; quando de constrói a busca sabe-se

que ela mira uma meta, pois sabe onde se esteve e porque se estava e sabe onde se estará; sabe que antes não havia liberdade, que só advém do negativo, mas

vontade do igual, do produtivo e do reprodutivo: a busca é a conquista da autenticidade através da liberdade).

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Partindo da perspectiva que a Escola é um inferno, a prisão dos medíocres, dos torturadores, dos pastores, das classes médias loucas para servir e consumir

mais e dos funcionários públicos; onde existem punições de toda espécie; violências, denúncias, disciplinamentos; onde o estado, as classes sociais, as religiões

preparam seus servos, sua tecnologia e suas ideologias; lócus de violência exatamente contra todas as liberdades, é exatamente ali onde não podemos continuar

reproduzindo a má-fé, o autoritarismo, as ideologias: ali é o lugar da liberdade quando se luta com ela e para ela: ao ser espécie de espelho social a universidade é o

lócus de teste, onde podemos avaliar o grau tanto das sutilezas quanto das brutalidades, tanto das possibilidades de mudança quanto dos empedramentos sociais,

mentais, imaginários que “correm pelo mundo”.

Mas não podemos esquecer que a liberdade não é a condição, mas fundamento imaginário da educação. Ela não se encontra na sala de aula, lócus da má-fé.

A liberdade advém no processo de luta intelectual, nos resultados pessoais e coletivos dessa luta. Não é abstração, mas algo relacional, rede imaginária que só existe

em ação. A situação de classe (de aula) só se torna de liberdade na ação de discordância, não antes, não institucionalmente, mas pelas brechas da hegemonia.

A relação viva e tensa (envolvimento por haver proximidade e intimidade com o que se combate e no campo em que se combate) entre a negatividade e a

má-fé, em diálogo, em áspera guerra, confronto com resistências, é o que gera a liberdade e mede a própria liberdade social, seu grau de integração bovina ou

sensibilidade à mudanças. A busca é o processo de transformação do ser alienado, coisificado em ser para-si, suficientemente forte para enfrentar outras lutas, não

porque “aprendeu”, mas porque sentiu como pode e deve fazer para se tornar e tornar alguém para a liberdade, pois no combate viu que liberdade não é isolamento,

mas relação fundamental, confronto de tudo contra tudo. São as resistências que criam, estranhamente, todo o processo educacional: sem a má-fé não poderíamos

falar de liberdade. O professor é aquele que se compromete com as resistências, pois nos seus devires os resultados são a liberdade.

O aluno é aquele que, arrotando-abarrotado de uma má-fé ingênua e perigosa, discorda, ameaça, solapa ativamente a mim mesmo, minha liberdade, meus

processos, meu conhecimento, minha vida, minha memória, meu futuro: ele é o sujeito que, enquanto outro, enquanto objeto, é a carne viva das armas sociais contra

mim, contra a liberdade, contra o conhecimento e a negatividade. Ele é o meu limite imediato, a minha missão, o modelo vivo de uma comunidade monstruosa. A

teratologia imediata. Ele apresenta meu campo de luta, a exterioridade que devo combater. O limite que aponta todos os limites da tribo, da galáxia cultural. Mas sua

existência disponível não é o carrasco absoluto: ele não me elimina nem física nem intelectualmente (pelo menos durante algum tempo): ele me ouve, ele está ali ao

lado, ele está sendo acutilado, batido, cercado, sufocado: ele reagirá iniciando o processo de afrontamento fundamental, de dissolução para a liberdade; sem ele não

haveria liberdade, sem ele não haveria grande parte de mim, que sou, antes de tudo, um ser para-nós: a liberdade, eu e eles em confronto, em negatividade, resgata,

refaz dimensões perdidas tanto de mim quanto deles.

A busca pela liberdade, feita em conjunto na ação educativa, é busca pela autenticidade num mundo inautentico, mercantil, consumista e unidimencional.

Nessa autenticidade o que se busca é, em primeiro lugar, a consciência de si e do lugar de sua fala, a responsabilidade por sua posição e pela posição do outro, a

capacidade de manter as deformações sociais como coisa “existente por si”, e a insatisfação por essas posições. Para isso é preciso processo rigoroso de

desnaturalização, desuniversalização, históricização e sociabilização do conjunto em questão, do real enquanto discurso e do real enquanto atividade pessoal, grupal e

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coletiva. Todos os elementos se abrem em conflito, nunca expondo o mesmo como instância discursiva: os devires se cruzam, se chocam, se misturam, mas não

cessam, não se estabelecem. O mundo social é compartilhado enquanto redes fragmentárias em choque, o que encaminha as devidas desnaturalizações: a

intersubjetividade, a compreensão, a convivência, a comunicação, a aceitação, as crenças são atingidas em sua má-fé, sem ao mesmo tempo se querer “construir algo

no lugar”: o campo da positividade é outro: o negativo em devires, com plenos direitos se consubstancia tanto na figura provisória do professor quanto na ação

educativa enquanto propagação de conflitos num universo onde a regra é cada vez mais o próprio conflito. Uma das metas é compreender as redes imaginárias,

virtuais que se tornam, nas práticas sócio-individuais, o real, o concreto, a história, a vida: ideologias que cimentam a hegemonia e permitem seu funcionamento e, ao

mesmo tempo, vislumbrar no processo negativo suas fissuras, suas contradições, suas parcializações, singularidades e funções. Com essa compreensão maior, atingir

a construção da individualidade e das suas múltiplas crenças.

Minha liberdade e a liberdade dos devires negativos é, primariamente, uma séria ameaça ao universo do outro, ao círculo de verdades e realidades, de

certezas e desejos, de segurança e limite, assim como esse outro é exemplo do meu próprio limite, ou melhor, limite que se apresente como matéria para minha

negatividade. A falta de liberdade e a hostilidade da má-fé são elementos para atingir o círculo educacional e não somente um segmento. Como não há relações

positivas a má-fé do outro atinge também minha má-fé, meus limites, que serão também e devem ser expostos. Todos nós sairemos transformados pelas resistências,

pelos afrouxamentos, pelas desistências, pelos desvios, pelas iluminações, pelos momentos de raiva, pelos becos sem saída, pelos labirintos, pela covardia, pela

coragem.

Mas a mudança, a conquista da busca, é uma rejeição ao existente enquanto projeção da hegemonia e reconhecimento da liberdade, não mais do professor

ou do processo educativo, mas da própria individualidade, dos seus procedimentos sociais.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO IV, Nº203 FEVEREIRO - PORTO VELHO, 2006

Volume XV Janeiro/Março

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL

ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia

FABÍOLA LINS CALDAS - História JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL - Geografia

MIGUEL NENEVÉ - Letras VALDEMIR MIOTELLO - Filosofia

Os textos no mínimo 3 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows” deverão ser

encaminhados para e-mail:

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CAIXA POSTAL 775 CEP: 78.900-970 PORTO VELHO-RO

TIRAGEM 150 EXEMPLARES

EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

ISSN 1517-5421 lathé biosa 203

A EDUCAÇÃO CONTRA A BARBÁRIE

Theodor Adorno

PRIMEIRA VERSÃO

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A EDUCAÇÃO CONTRA A BARBÁRIE

Theodor Adorno

Adorno – A tese que gostaria de discutir é a de que desbarbarizar tornou-se a questão mais urgente da educação hoje em dia. O problema que se impõe nesta

medida é saber se por meio da educação pode-se transformar algo de decisivo em relação à barbárie. Entendo por barbárie algo muito simples, ou seja, que, estando

na civilização do mais alto desenvolvimento tecnológico, as pessoas se encontrem atrasadas de um modo peculiarmente disforme em relação a sua própria civilização

— e não apenas por não terem em sua arrasadora maioria experimentado a formação nos termos correspondentes ao conceito de civilização, mas também por se

encontrarem tomadas por uma agressividade primitiva, um ódio primitivo ou, na terminologia culta, um impulso de destruição, que contribui para aumentar ainda mais

o perigo de que toda esta civilização venha a explodir, aliás uma tendência imanente que a caracteriza. Considero tão urgente Impedir isto que eu reordenaria todos

os outros objetivos educacionais por esta prioridade.

Becker --— Quando formulamos a questão da barbárie de um modo tão amplo, então, é evidente, é muito fácil angariar apoio, porque obviamente todos serão

de imediato contrários à barbárie. Mas se quisermos testar como a educação pode interferir nesse fenômeno ou agir profilaticamente para evitá-lo, parece-me

necessário caracterizar com mais precisão o que é a barbárie e de onde ela surge. Neste caso precisamos indagar se uma pessoa em todos os sentidos compensada,

temperada, esclarecida, livre de agressões e, portanto, não motivada à capacidade da agressão, constitui em si um produto almejável da sociedade.

Adorno — Eu começaria dizendo algo terrivelmente simples: que a tentativa de superar a barbárie é decisiva para a sobrevivência da humanidade. A

obviedade a que o senhor se referiu deixa de sê-lo quando observamos as concepções educacionais vigentes, sobretudo as existentes na Alemanha, em que são

importantes concepções como aquela pela qual as pessoas devam assumir compromissos, ou que tenham que se adaptar ao sistema dominante, ou que devam se

orientar conforme valores objetivamente válidos e dogmaticamente impostos. Pela minha visão da situação da educação alemã, o problema da desbarbarização não foi

colocado com a nitidez e a gravidade com que pretendo abordá-lo aqui. Isto basta para colocar em discussão uma tal aparente obviedade.

Becker -—- Talvez por um momento fosse necessário não se restringir à Alemanha e perguntar se este problema não se coloca de um modo semelhante no

mundo inteiro. Embora uma determinada forma da pedagogia de orientação idealista seja tipicamente alemã neste contexto, os perigos da barbarização, mesmo que

em roupagens diferentes, também se colocam em outros países. Se quisermos combater este fenômeno por meio da educação, deverá ser decisivo remetê-lo a seus

fatores psicológicos básicos...

Adorno — Não apenas aos psicológicos, mas também aos objetivos, que se encontram nos próprios sistemas sociais.

Becker — Eu concebo a psicologia também como um fator objetivo.

Adorno —— Sim, porém entendo como sendo fatores objetivos neste caso os momentos sociais que, independentemente da alma individual dos homens

singulares, geram algo como a barbárie.

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Neste momento estou mais inclinado a desenvolver essas questões na situação alemã. Não por pensar que não sejam igualmente agudas em outros lugares,

mas porque de qualquer modo na Alemanha aconteceu a mais horrível explosão de barbárie de todos os tempos, e porque, afinal, conhecemos a situação alemã

melhor a partir de nossa própria experiência viva.

Becker — Havendo consciência de se tratar de um fenômeno geral, podemos começar a partir do exemplo alemão. E como o senhor afirma com muita

procedência, existem muitos motivos para tanto. Na questão "O que é possível á educação?" sempre nos defrontamos com o problema de até que ponto uma vontade

consciente introduz fatos na educação que, por sua vez, provocam indiretamente a barbárie.

Adorno —-- Mas também o contrário. Quando o problema da barbárie é colocado com toda sua urgência e agudeza na educação, e justamente em instituições

como a sua, que desempenha um papel-chave na estrutura educacional da Alemanha hoje, então me inclinaria a pensar que o simples fato de a questão da barbárie

estar no centro da consciência provocaria por si uma mudança. Por outro lado, que existam elementos de barbárie, momentos repressivos e opressivos no conceito de

educação e, precisamente, também no conceito da educação pretensamente culta, isto eu sou o último a negar. Acredito que —-- e isto é Freud puro —- justamente

esses momentos repressivos da cultura produzem e reproduzem a barbárie nas pessoas submetidas a essa cultura.

Becker —— Por outro lado, poderíamos dizer que se exagerarmos a ênfase à desbarbarização, então contribuímos para evitar a mudança da sociedade.

Ajudamos eventualmente também a evitar um desenvolvimento em direção a "novas fronteiras", como se diz na América. Servimos, por assim dizer, à realização do

lema "A calma é a obrigação primordial da cidadania"; e penso que o decisivo estaria em determinar o conteúdo preciso da desbarbarização em face de muitas

exigências ingênuas de tolerância e de calma. Estou convencido que isto não significa para o senhor um desenvolvimento hostil a mudanças. Mas seria decisivo

determinar com precisão o que a desbarbarização deva ser neste contexto.

Adorno — Concordo inteiramente com o senhor quanto a que o que imagino ser a desbarbarização não se encontra no plano de um elogio à moderação, uma

restrição das afeições fortes, e nem mesmo nos termos da eliminação da agressão. Neste contexto parece-me permanecer totalmente procedente a proposição de

Strindberg: "Como eu poderia amar o bem, se não odiasse o mal".

De resto, o conhecimento psicológico defendido como teoria justamente por Freud, com cujas reflexões acerca dessas questões ambos nos revelamos

impressionados, encontra-se em concordância também com a possibilidade de sublimar de tal modo os chamados instintos de agressão, acerca dos quais inclusive ele

manifestou concepções bastante diferentes durante sua vida, de maneira que justamente eles conduzam a tendências produtivas. Portanto, creio que na luta contra a

barbárie ou em sua eliminação existe um momento de revolta que poderia ele próprio ser designado como bárbaro, se partíssemos de um conceito formal de

humanidade. Mas já que todos nós nos encontramos no contexto de culpabilidade do próprio sistema, ninguém estará inteiramente livre de traços de barbárie, e tudo

dependerá de orientar esses traços contra o princípio da barbárie, em vez de permitir seu curso em direção à desgraça.

Becker -— Gostaria de colocar uma questão muito precisa: recentemente um político afirmou que os distúrbios de rua em Bremen por causa dos

aumentos tarifários dos transportes seriam uma comprovação da falência da formação política, pois a juventude se manifestou por meio de formas bárbaras

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contra uma posição pública, acerca de cuja justeza poderia haver várias visões, mas que não poderia ser respondida mediante o que seriam confessadamente

intervenções bárbaras.

Adorno — Considero esta afirmativa citada pelo senhor como sendo uma forma condenável de demagogia. Se existe algo que as manifestações dos

secundaristas de Bremen demonstra, então é precisamente a conclusão de que a educação política não foi tão inútil como sempre se afirma; isto é, que essas pessoas

não permitiram que lhes fosse retirada a espontaneidade, que não se converteram em obedientes instrumentos da ordem vigente. A forma de que a ameaçadora

barbárie se reveste atualmente é a de, em nome da autoridade, em nome de poderes estabelecidos, praticarem-se precisamente atos que anunciam, conforme sua

própria configuração, a deformidade, o impulso destrutivo e a essência mutilada da maioria das pessoas.

Becker — Contudo precisamos tentar imaginar a perspectiva em que se situam os jovens. Onde adquirem os critérios para decidir o que é bárbaro?

Freqüentemente se distingue hoje em dia entre a violência contra os homens e a violência contra as coisas. Distingue-se entre a violência que é praticada, e aquela

que é apenas ameaça: fala-se de ausência de violência em ações em si mesmas proibidas. Por assim dizer, desenvolve-se uma graduação da ausência efetiva e da

ausência aparente de violência, e a partir deste padrão a questão da barbárie passa a ser avaliada por muitas pessoas. Se entendo bem, a barbárie parece ter um

outro sentido para o senhor. A violência pode ser um sintoma da barbárie, mas não precisa necessariamente sê-lo. Na realidade, ao senhor interessa uma outra coisa,

o que, na minha opinião, ainda não ficou claro.

Adorno — Bem, parece ser importante definir a barbárie, por mais que me desagrade. Suspeito que a barbárie existe em toda parte em que há uma regressão

à violência física primitiva, sem que haja uma vinculação transparente com objetivos racionais na sociedade, onde exista portanto a identificação com a erupção da

violência física. Por outro lado, em circunstâncias em que a violência conduz inclusive a situações bem constrangedoras em contextos transparentes para a geração de

condições humanas mais dignas, a violência não pode sem mais nem menos ser condenada como barbárie.

Becker — O senhor diria, se entendo bem, que, por exemplo, não é barbárie a demonstração de jovens ou adultos baseada em considerações racionais, ainda

que rompa os limites da legalidade. Mas que é barbárie, por outro lado, a intervenção exagerada e objetivamente desnecessária da policia numa situação destas.

Adorno — Certamente penso assim. Se examinarmos mais de perto os acontecimentos que ocorrem atualmente na rebelião estudantil, então descobriremos

que de modo algum se trata neste caso de erupções primitivas de violência, mas em geral de modos de agir politicamente refletidos. Se neste caso esta reflexão é

correta ou equivocada, isto não precisa ser discutido agora. Mas não é verdade que se trata de uma consciência deformada, imediatamente agressiva. Os

acontecimentos são entendidos, na pior das hipóteses, como estando a serviço da humanidade. Creio que, quando um time de fora que vence é ofendido e agredido

num estádio, ou quando um grupo de presumíveis bons cidadãos agride estudantes ainda que só mediante palavras, podemos apreender de um modo radical, a partir

desses exemplos tão atuais, a diferença entre o que é e o que não é barbárie.

Becker --— Entretanto, em minha opinião as reflexões por si só não garantem um parâmetro frente à existência da barbárie. Enquanto dirigente

governamental, por exemplo, posso me dispor ao uso de armas nucleares em algum lugar da Terra com base em considerações estritamente racionais, e

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este ato pode ser bárbaro, apesar do procedimento abrangente, controladíssimo, estritamente racionalizado e não subordinado a emoções graças à utilização de

computadores. As reflexões e a racionalidade por si não constituem provas contra a barbárie.

Adorno — Mas eu não disse isto. Se me recordo — e sou um pai de família cuidadoso — me referi também em nossa discussão a reflexões sobre fins

transparentes e humanos, e não a reflexões em abstrato. Pois, e nisto o senhor está coberto de razão, a reflexão pode servir tanto à dominação cega como ao seu

oposto. As reflexões precisam portanto ser transparentes em sua finalidade humana. É necessário acrescentar estes considerandos.

Becker — Chegamos a uma questão muito difícil: como educar jovens para que efectivamente apliquem essas reflexões a objetivos humanos, ou seja, isto é

factível para os jovens? Eu diria que pode muito bem ser possível, mas representa um rompimento com um conjunto de idéias que se tornaram muito simpáticas. Por

exemplo, uma proposição básica da pedagogia recorrente na Alemanha, a de que a competição entre crianças deve ser prestigiada. Aparentemente aprende-se latim

tão bem assim por causa da vontade de saber latim melhor do que o colega na carteira à nossa direita ou à nossa esquerda. A competição entre indivíduos e entre

grupos, conscientemente promovida por muitos professores e em muitas escolas, é considerada no mundo inteiro e em sistemas políticos bem diversos como um

princípio pedagógico particularmente saudável. Sou inclinado a afirmar — e me interessa saber sua opinião a respeito — que a competição, principalmente quando não

balizada em formas muito flexíveis e que acabem rapidamente, representa em si um elemento de educação para a barbárie.

Adorno — Partilho inteiramente do ponto de vista segundo o qual a competição é um princípio no fundo contrário a uma educação humana. De resto, acredito

também que um ensino que se realiza em formas humanas de maneira alguma ultima o fortalecimento do instinto de competição. Quando muito é possível educar

desta maneira esportistas, mas não pessoas desbarbarizadas. Em minha própria época escolar, lembro que nas chamadas humanidades a competição não

desempenhou papel algum. O importante era realizar aquilo que se tinha aprendido; por exemplo refletir acerca das debilidades do que a gente mesmo faz; ou as

exigências que colocamos para nós mesmos ou à objetivação daquilo que imaginávamos; trabalhar no sentido de superar representações infantis e infantilismos dos

mais diferentes tipos.

Abstraindo brincadeiras que transcorreram paralelamente, em minha própria formação não me lembro de que o chamado impulso agônico tenha

desempenhado aquele papel decisivo que lhe é atribuído. Na situação escolar, esta é uma daquelas mitologias que continuam lotando nosso sistema educacional e que

necessitam de uma análise científica séria.

Becker — Alegra-me muito o fato de o senhor ter freqüentado uma escola que lhe foi tão agradável, e alegra-me a nossa concordância tão profunda acerca da

recusa das idéias exageradas de competitividade. Creio que tanto no seu tempo como hoje a massa dos professores continua considerando a competitividade como

um instrumento central da educação e um instrumento para aumentar a eficiência. Eis um aspecto em que pode ser feito algo de fundamental em relação à

desbarbarização.

Adorno — Isto é, desacostumar as pessoas de se darem cotoveladas. Cotoveladas constituem sem dúvida uma expressão da barbárie. No sistema

educacional inglês — por menos que nos agrade o momento de conformismo que ele encerra, o objetivo de se tornar brilhante, o que de fato não é uma boa

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máxima, e que no fundo é hostil ao espírito — encontra-se na idéia de fair play momentos de uma consideração segundo a qual a motivação desregrada da

competitividade encerra algo de desumano, e nesta medida há muito sentido em se aproveitar do ideal formativo inglês o ceticismo frente ao saudável desejo do

sucesso.

Becker — Eu até iria mais além. Creio que erramos em insistir demasiado nesta idéia ainda hoje no esporte. Numa sociedade gradualmente liberada dos

esforços físicos, em que a atividade física assume uma importante função lúdica e esportiva na escola que é muito mais importante do que jamais ocorreu na história

da humanidade, ela poderia provocar conseqüências anímicas equivocadas por meio da competição. Neste sentido creio que um ponto decisivo consiste também em

diminuir o peso das formas muito primitivas e marcadas da competitividade na educação física.

Adorno — Isto levaria a um predomínio do aspecto lúdico no esporte frente ao chamado desempenho máximo. Considero esta uma inflexão particularmente

humana inclusive neste âmbito dos exercidos físicos, a qual, segundo penso, parece ser estritamente contrária às concepções vigentes no mundo.

Becker — Isto vale para todas as suas afirmações acerca da competição, pois evidentemente poder-se-ia defender a tese de que é preciso se preparar pela

competição na escola para uma sociedade competitiva. Bem ao contrário, penso que o mais importante que a escola precisa fazer é dotar as pessoas de um modo de

se relacionar com as coisas. E esta relação com as coisas é perturbada quando a competição é colocada no seu lugar. Nestes termos, creio que uma parte da

desbarbarização possa ser alcançada mediante uma transformação da situação escolar numa tematização da relação com as coisas, uma tematização em que o fim da

proclamação de valores tem uma função, assim como também a multiplicidade da oferta de coisas, possibilitando ao aluno uma seleção mais ampla e, nesta medida,

uma melhor escolha de objetos, em vez da subordinação a objetos determinados preestabelecidos, os inevitáveis cânones educacionais.

Adorno — Talvez eu possa voltar mais uma vez a certas questões fundamentais na tentativa de uma desbarbarização mediante a educação. Freud

fundamentou de um modo essencialmente psicológico a tendência à barbárie e, nesta medida, sem dúvida acertou na explicação de uma série de momentos,

mostrando, por exemplo, que por intermédio da cultura as pessoas continuamente experimentam fracassos, desenvolvendo sentimentos de culpa subjacentes que

acabam se traduzindo em agressão. Tudo isto é muito procedente, tem uma ampla divulgação e poderia ser levado em conta pela educação na medida em que ela

finalmente levar a sério as conclusões apontadas por Freud, em vez de substitui-las pela pseudo-profundidade de conhecimentos de terceira mão.

Mas no momento refiro-me a uma outra questão. Penso que, além desses fatores subjetivos, existe uma razão objetiva da barbárie, que designarei bem

simplesmente como a da falência da cultura. A cultura, que conforme sua própria natureza promete tantas coisas, não cumpriu a sua promessa. Ela dividiu os homens.

A divisão mais importante é aquela entre trabalho físico e intelectual. Deste modo ela subtraiu aos homens a confiança em si e na própria cultura. E como costuma

acontecer nas coisas humanas, a consequência disto foi que a raiva dos homens não se dirigiu contra o não-cumprimento da situação pacifica que se encontra

propriamente no conceito de cultura. Em vez disto, a raiva se voltou contra a própria promessa ela mesma, expressando-se na forma fatal de que essa promessa não

deveria existir.

Bem, na medida em que tais nexos, como o da falência da cultura, a perpetuação socialmente impositiva da barbárie e este mecanismo de

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deslocamento que há pouco descrevi são levados de um modo abrangente à consciência das pessoas, seguramente não se poderá sem mais nem menos mudar esta

situação, porém será possível gerar um clima que é incomparavelmente mais favorável a uma transformação do que o clima vigente ainda hoje na educação alemã.

Esta questão central para mim é decisiva; é a isto que me retiro com a função do esclarecimento, e de maneira nenhuma à conversão de todos os homens em seres

inofensivos e passivos. Ao contrário: esta passividade inofensiva constitui ela própria, provavelmente apenas urna forma da barbárie, na medida em que está pronta

para contemplar o horror e se omitir no momento decisivo.

Becker — Concordo inteiramente. Ainda mais quando eu temia nas suas exposições iniciais que a desbarbarização deveria começar, por assim dizer, com uma

diminuição da agressão. O senhor já havia respondido com a citação de Strindberg. Mas penso que precisamos nos proteger de equívocos. Certamente o senhor

conhece as propostas um pouco surpreendentes de Konrad Lorenz, que desenvolveu com suas exposições acerca da agressão o ponto de vista de que, se quisermos

preservar a paz mundial, será necessário abrir novos campos às agressões dos homens. E nessas considerações cabe, por exemplo, o campo esportivo há pouco

descrito pelo senhor ocupando o lugar da guerra a ser evitada. Acredito que — por mais interessantes e estimulantes que sejam as observações de Konrad Lorenz

acerca das agressões entre os animais — a conclusão a que se chega nestes termos, ou seja, a recomendação de agressões de alívio, é muito perigosa.

Adorno — Ele conclui assim por razões de darwinismo social. Também a mim ele parece extraordinariamente perigoso, porque implica de uma certa maneira

reduzir os homens ao estado de seres naturais.

Becker — Não creio que esta seja a opinião de Lorenz.

Adorno — Não, não é. Mas neste modo de pensar, como também no de Portmann, seguramente existem certas tendências desse tipo. Com a educação contra

a barbárie no fundo não pretendo nada além de que o último adolescente do campo se envergonhe quando, por exemplo, agride um colega com rudeza ou se

comporta de um modo brutal com uma moça; quero que por meio do sistema educacional as pessoas comecem a ser inteiramente tomadas pela aversão à violência

física.

Becker — Quanto à aversão eu seria cuidadoso

Adorno -—- Então pergunto se não existem situações em que sem violência não é possível. Eu diria que neste caso trata-se de uma sutileza. Mas creio que

antes de falarmos sobre as exceções, sobre a dialética existente quando em certas circunstâncias a antibarbárie requer a barbárie, é preciso haver clareza de que até

hoje ainda não despertou nas pessoas a vergonha acerca da rudeza existente no principio da cultura. E que somente quando formos exitosos no despertar desta

vergonha, de maneira que qualquer pessoa se torne incapaz de tolerar brutalidades dos outros, só então será possível falar do resto.

Becker — Bem, a palavra "vergonha" é muito mais do meu agrado, do que a palavra anterior, "aversão". Existe uma literatura ampla a este respeito que —

como é do seu conhecimento — conduz a luta contra a barbárie por meio de uma forma de descrição da barbárie que pode ser apreciada. E na aversão exagerada

frente à barbárie pode haver elementos análogos. Nestes termos considero mais procedente a sua afirmação de que é preciso gerar uma vergonha. Além

disto eu diria que a educação (e por isto o termo "esclarecimento" talvez ainda precise de esclarecimentos) nessas questões deveria se dar com as crianças

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ainda bem pequenas. É necessário que determinados desenvolvimentos ocorram num período etário — como diríamos hoje — da pré-escola, onde não se verificam

apenas adequações sociais decisivas e definitivas, como sabemos hoje, mas também ocorrem adaptações decisivas das disposições anímicas. E é preciso reconhecer

com bastante franqueza que em primeiro lugar sabemos pouco acerca de todo este processo de socialização, e também ainda temos pouco conhecimento

cientificamente comprovado acerca de que ações têm quais efeitos nesta idade. No fundo, o importante é deixar as agressões se expressarem nesta idade, mas ao

mesmo tempo iniciar a sua elaboração. Mas é isto precisamente que coloca as dificuldades maiores ao educador, deixando assim bem claro que no referente a esse

problema a formação de educadores encontra-se engatinhando, se é que chegou a tanto.

Adorno — Corno alguém que pensa psicologicamente, isto parece-me ser quase uma obviedade. Isto deve-se a que a perpetuação da barbárie na educação é

mediada essencialmente pelo princípio da autoridade, que se encontra nesta cultura ela própria. A tolerância frente às agressões, colocada com muita razão pelo

senhor como pressuposto para que as agressões renunciem a seu caráter bárbaro, pressupõe por sua vez a renúncia ao comportamento autoritário e à formação de

um superego rigoroso, estável e ao mesmo tempo exteriorizado. Por isto a dissolução de qualquer tipo de autoridade não esclarecida, principalmente na primeira

infância, constitui um dos pressupostos mais importantes para uma desbarbarização. Mas eu seria o último a minimizar essas questões, pois os pais com que temos de

lidar são, por sua vez, também produtos desta cultura e são tão bárbaros como o é esta cultura. O direito de punição continua sabidamente a ser, em terras alemãs,

um recurso sagrado, de que as pessoas dificilmente abrem mão, tal como a pena de morte e outros dispositivos igualmente bárbaros.

Becker — Se concordamos acerca de como é decisiva a educação na primeira infância, então provavelmente também concordamos em relação a que a

autoridade esclarecida, tal como o senhor a formula, não representa uma substituição da autoridade pelo esclarecimento, mas que neste âmbito e justamente na

primeira infância precisa haver também manifestações de autoridade.

Adorno — Determinadas manifestações de autoridade, que assumem um outro significado, na medida em que já não são cegas, não se originam do princípio

da violência, mas são conscientes, e, sobretudo, que tenham um momento de transparência inclusive para a própria criança; quando os pais "dão uma palmada" na

criança porque ela arranca as asas de uma mosca, trata-se de um momento de autoridade que contribui para a desbarbarização.

Becker — Isto está inteiramente correto. Creio que concordamos quanto a que, nessa primeira infância e no sentido da desbarbarização, a criança não pode

ser nem submetida autoritariamente à violência, nem submetida à insegurança total pelo fato de não se oferecer a ela nenhuma orientação.

Adorno ---- Contudo, creio que justamente as crianças que são anêmicas no sentido das concepções vigentes dos adultos e também dos pedagogos, as

chamadas plantas de estufa, com as quais foi exitosa já precocemente como que uma sublimação da agressão, serão também como adultos ou como adolescentes

aqueles que são relativamente imunes em face das agressões da barbárie. O importante é precisamente isto. Acredito ser importante para a educação que se supere

este tabu acerca da diferenciação, da intelectualização, da espiritualidade, que vigora em nome do menino saudável e da menina espontânea, de modo que

consigamos diferenciar e tornar tão delicadas as pessoas no processo educacional que elas sintam aquela vergonha acerca de cuja importância havíamos

concordado.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO IV, Nº204 FEVEREIRO - PORTO VELHO, 2006

Volume XV Janeiro/Março

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL

ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia FABÍOLA LINS CALDAS - História

JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL - Geografia MIGUEL NENEVÉ - Letras

VALDEMIR MIOTELLO - Filosofia

Os textos no mínimo 3 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for

Windows” deverão ser encaminhados para e-mail:

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CAIXA POSTAL 775 CEP: 78.900-970 PORTO VELHO-RO

TIRAGEM 150 EXEMPLARES

EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

ISSN 1517-5421 lathé biosa 204

A CRIAÇÃO DE UM MUNDO

Deyvesson Israel Gusmão

PRIMEIRA VERSÃO

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A CRIAÇÃO DE UM MUNDO

Deyvesson Israel Gusmão [email protected]

“Cada lugar é, à sua maneira, o mundo.”

Milton Santos

Este artigo nasce a partir de um dos pontos da interpretação que tenho feito das narrativas de Soldados da Borracha. Em síntese, este é um dos pontos a que

tenho me apegado no trabalho de História Oral desenvolvido no programa de Mestrado em Geografia, intitulado ENTRE MUNDOS, que desenvolvi como bolsista de

iniciação científica e tem se desdobrado no projeto de dissertação de mestrado denominado ENTRE MUNDOS – História Oral com Soldados da Borracha, que está

sendo desenvolvido dentro do programa de Mestrado em Geografia da Universidade Federal de Rondônia.

Em geral, os trabalhos sobre migração e populações tradicionais contemplam as questões relacionadas ao espaço e à formação deste, à territorialidade, ao

lugar e suas questões. Contudo, na maioria das vezes, é muito mais valorizado o aspecto geográfico do que o humano. A História Oral é campo do conhecimento a

partir do qual podemos abarcar e arregimentar para nossa interpretação todas as categorias citadas, trazendo sobre elas a valorização do aspecto humano da

Geografia, pelo fato de que a constituição da matéria da História Oral, a memória, está profundamente atrelada ao processo de construção de uma identidade. E esse

processo implica noutro: o de constituição do lugar.

A História Oral de que aqui tratamos se utiliza de um processo transcriativo que, através de um diálogo colaborativo, nos permite sondar instâncias das

experiências de vida que, por ir ao encontro do outro e em busca da experiência pessoal, dimensiona o vivido dentro de uma perspectiva de tempo presente onde o

passado aparece como um momento narrativo recriado pelo entrevistado. Trabalhos como Calama: uma comunidade no Rio Madeira (Caldas, 2000) e Seringueiros da

Amazônia: Sobreviventes da Fartura (Santos, 2002) são exemplos dessa possibilidade da valorização do aspecto humano da disciplina geográfica, tendo a História Oral

como instrumento mediador deste processo, como elemento que possibilita que venham à tona as relações sociais mais íntimas (relação homem/natureza e relação

homem/homem) que fundamentam a formatação do espaço e a criação do lugar.

A leitura das narrativas, que foram constituídas a partir de uma metodologia específica de História Oral, tem sido feita com base na obra A Câmara Clara, de

Roland Barthes (1984), onde o autor define a interpretação como uma projeção criada pelo intérprete a partir de um detalhe – o punctum. A idéia de detalhe é a

imagem significativa escolhida nos textos dos colaboradores, imagens essas que estamos relacionando e pondo em diálogo com autores como Santos (1997) e Eliade

(1992; 2002), onde buscamos multiplicar sentidos a partir do ponto comum encontrado nas narrativas, quando poderemos tratar das questões dos mitos e do

imaginário amazônico e qual a participação do nordestino na constituição desse imaginário. Além disso, serão tratadas aqui questões relativas aos conceitos de espaço

e lugar, bem como a relação entre estas duas instâncias.

Os Soldados da Borracha foram assim intitulados por terem vindo para a Amazônia durante a Segunda Guerra Mundial a fim de trabalharem na

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produção de borracha silvestre, que era fornecida aos países aliados. Houve então um fluxo migratório induzido por uma política de Estado, fluxo esse que trouxe

mais de cinqüenta mil homens para a região amazônica.

A vida dos Soldados da Borracha, desde a saída do Nordeste, é uma vida entre dois mundos: o nordestino e o amazônico. A relação desses homens com a

Amazônia dá-se, inicialmente, de maneira conflituosa. Eles interiorizaram uma vivência “natural” do mundo nordestino e quando chegaram na Amazônia,

desterritorializados, estabeleceram uma relação de estranhamento, onde as imagens da natureza nordestina entram em conflito com as constatações das formas da

natureza amazônica. Inicia-se então um processo de (re)significação do novo espaço, a fim de que seja transformado em lugar, o locus da relação e dos sentidos.

Em virtude da inexperiência na mata o soldado da borracha foi inicialmente estereotipado como o “brabo”, pois não sabia a forma com deveria trabalhar,

sendo também denominado de “arigó”, por ser migrante. Mais tarde essa denominação permanece, contudo aqueles que já se tornaram experientes na lida com a

seringa e entendidos da linguagem cabocla passam a ser “mansos” e não mais “brabos”. No geral, independentemente de serem “mansos” ou “brabos” esses homens

e suas famílias – apesar de a maioria dos soldados da borracha terem chegado solteiros à região amazônica – eram caracterizados como “cearenses”, não importando

de que Estado da federação vieram (Benchimol, 1999:35). Dessa forma o caboclo amazônico caracteriza grosseira e indiscriminadamente esses homens como

estranhos ao ninho amazônico e acabam apagando suas diferenças individuais, sendo o grupo caracterizado por semelhanças superficiais.

O espaço “natural” da Amazônia é reconstruído e ressignificado por estes homens a partir do estranhamento e das relações constituídas dentro do mundo

amazônico. E também a partir do estranhamento o homem nordestino vai criar um novo mundo, que não será nem aquele que ele deixou no Nordeste e nem muito

menos o mundo amorfo que ele encontrou na Amazônia.

A organização do seringal assenta-se no trabalhador que vive na mata, distante do convívio com os outros. A mata para o Soldado da Borracha possui vida e

vontade própria e apresenta-se, pela sua estrutura simbólica, como filha e fruto da comunhão da água com terra. As Águas, que trazem em seu curso os sedimentos

responsáveis pela inseminação e fertilização da Terra – elemento símbolo da fecundidade – aparecem não só como fonte de origem, mas também como elemento

mantenedor da vida na mata (Eliade, 1992: 110). As terras amazônicas, acolhedoras do homem nordestino, são responsáveis por parir a mata, território desconhecido

e “desocupado” que aparece, ao olhar do migrante, como um outro mundo e, por ser um outro mundo/um mundo de outro, apresenta-se sem forma, na modalidade

de Caos (Eliade, 1992: 34).

A partir da ação desses homens sobre essa massa verde caótica que se espalha sobre a terra, inicia-se um processo de organização, de cosmicização do Caos.

O homem passa a agir sobre o mundo caótico, amorfo, a fim de transformá-lo simbolicamente em Cosmos, em Mundo, em “seu-mundo”, em seu lugar, ou seja, em

seu espaço conhecido (Eliade, 1992: 32), passando a ser aqui espaço íntimo de relações do homem com o próprio homem e do homem com a exterioridade, ou seja,

espaço socialmente produzido, fruto da ação social sobre a forma. Não a forma em si, como simples objeto, mas a forma-conteúdo, objeto social carregado de valor,

que será, por sua vez atribuída de novos valores, ressignificada (Santos, 1997: 88).

A transformação do Caos em Cosmos é criação. Essa criação se dá através da ritualização das atividades exercidas pelo soldado da borracha. Através

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da atuação, ou seja, de atos regularizados, rotineiros sobre a forma, o homem passa a produzir uma ordem instauradora de temporalidades e de espacialidades

(Santos, 1997: 64). Assim, a repetição do trabalho diário – sair de manhã cedo ou até mesmo de madrugada, cortar a seringueira, colher o látex e defumá-lo para

obter as pélas de borracha – torna-se um movimento ritual que vai estruturar e organizar o espaço da mata, colocar nela os referenciais de que o Soldado da Borracha

precisa para nela viver e dela tirar seu sustento. Dessa maneira o que se dá é um processo de consagração desse espaço, processo que, segundo Eliade (1992: 36),

implica numa escolha existencial: a escolha do Universo que se está pronto a assumir ao “criá-lo”.

Assim a mata necessita de quem a consagrou e a sociabilizou, de quem a criou, tanto quanto o seu criador necessita dela para poder ter um referencial para

sua existência: ninguém existe sem um lugar, da mesma maneira que é impossível um lugar sem uma presença. A presença é que vai criar códigos que vão dar

significados ao espaço que, por sua vez, surge como concretização do modo de agir de uma sociedade, ou seja, como projeção de uma práxis (Caldas, 1997: 9).

Esse processo de sociabilização, de formação e criação do existente, de criação de um mundo, é responsável por tornar o “brabo” em um “manso”, ou seja,

fazer do homem nordestino recém chegado e inapto ao serviço de extração do látex – além de desconhecedor de um espaço físico complexo como o da floresta – um

homem apto ao trabalho com a seringueira e pronto para o convívio social com a mata.

BIBLIOGRAFIA

BARTHES, Roland. A Câmara Clara. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1984.

BENCHIMOL, Samuel. Os “Cearenses” – Nordestinos na Amazônia. In Amazônia – Formação Social e Cultural. Valer, Manaus, 1999.

CALDAS, Alberto Lins. Interpretação e Realidade. Caderno de Criação, UFRO/Dep. de História/CEI, n.º 13, ano IV, Porto Velho, setembro, 1997.

__________.Calama: Uma Comunidade no Rio Madeira. Tese de Doutorado, Mímeo, USP, São Paulo, 2000a

ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano. Martins Fontes, São Paulo, 1992.

__________. Mito e Realidade. Perspectivas, col. Debates/52, São Paulo, 2002.

SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço. Hucitec, São Paulo, 1997.

SANTOS, Nilson. Seringueiros da Amazônia: Sobreviventes da Fartura. Tese de Doutorado, Mímeo, USP, São Paulo, 2002.

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SUGESTÃO DE LEITURA

PRONOMES DE TRATAMENTO DO PORTUGUÊS DO SÉCULO XVI: Uma Gramática de Uso

TÂNIA REGINA EDUARDO DOMINGOS Annablume

RESUMO: O livro trata do uso dos pronomes de tratamento pelos portugueses contemporâneos do descobrimento e colonização do Brasil, através da análise das falas das personagens do teatro de cordel português do século XVI. A autora elegeu 13 autos do teatro de Gil Vicente para detectar as diferentes modalidades do uso dos pronomes nas relações de inferioridade, superioridade, igualdade, intimidade, afetividade de diversos tipos humanos. SUMÁRIO: Os Pronomes nas Gramáticas do Século XVI; Os Pronomes de Tratamento e o Uso nos Personagens dos Cordéis e Autos Populares do Teatro Medieval Português do Século XVI; Regras de Uso. Áreas de interesse: História, Letras, Linguística. Palavras-chave: Letras, Literatura Portuguesa, Língua Portuguesa.