Voto de Silêncio

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ALGUNS SEGREDOS SÃO TERRÍVEIS DEMAIS PARA SEREM REVELADOS. ALGUNS CRIMES TÊM SEGREDOS DEMAIS PARA SEREM RESOLVIDOS. Em Painters Mill, Ohio, os residentes amish e os “ingleses” convivem há dois séculos. Há dezesseis anos, porém, uma série de crimes brutais chocou a pacata comunidade rural. Uma jovem amish chamada Kate Burkholder sobreviveu ao terror do Assassino do Matadouro, mas acabou deixando sua comunidade. Após se aventurar no mundo exterior, Kate foi chamada para retornar a Painters Mill, agora como chefe de polícia. Suas raízes amish e sua experiência como policial na cidade grande fizeram dela uma candidata perfeita. Kate está certa de ter superado seu passado... Até que o primeiro corpo é encontrado no meio da neve. Kate jura deter o assassino antes que ele ataque novamente.

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Sã o Pau l o 2012

Voto de Silêncio

Linda Castillo

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Forthwith the devil did appear,For name him and he’s always near.

– Matthew Prior, “Hans Carvel”

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PRÓLOGO

Ela não acreditava em monstros desde seus seis anos de idade, quando sua mãe checava o armário e olhava por debaixo de sua cama à noite. Mas, com 21 anos, confinada, brutalizada e nua em um chão de concreto que era tão frio quanto um lago congelado, ela então acreditava.

Envolvida pela escuridão, ela ouvia a batida forte de seu cora‑ção. Não conseguia parar de tremer. Não conseguia fazer com que seus dentes parassem de ranger. Cada som minúsculo deixava seu corpo tenso em uma terrível antecipação do retorno do monstro.

No começo, ela tinha fantasias divertidas de como escapar ou convencer seu raptor de deixá ‑la ir. Mas ela era realista, isto não iria acabar bem. Não haveria negociação alguma. Resgate da polícia algum. Adiamento de última hora algum. O monstro iria matá ‑la. Não era mais uma questão de se, mas sim, de quando. A espera era quase tão infernal quanto a morte.

Ela não sabia onde estava ou por quanto tempo tinha estado lá. Ela tinha perdido toda a noção de tempo e lugar. Tudo o que podia discernir sobre o que estava ao seu redor era que o lugar fedia a carne podre e cada pequeno barulho ecoava como se ela estivesse em uma caverna.

Estava rouca de tanto gritar. Exausta de se debater. Desmora‑lizada pelos horrores que ele tinha infligido a ela. Uma pequena parte dela queria apenas que essa luta pela vida terminasse. Mas, Santo Deus, como ela queria viver...

– Mamãe – ela murmurava.

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Ela nunca havia encarado a morte. Tinha muitos sonhos. Estava também muito esperançosa quanto ao futuro e fortemente crente na promessa de que o amanhã seria melhor do que o hoje. Deitada sobre sua própria fria e lisa poça de urina, ela aceitou o fato de que não haveria amanhã. Nenhuma esperança. Nenhum futuro. Apenas o pavor sombrio de sua morte iminente e a agonia que o entendimento da situação trazia.

Deitou ‑se de lado com os joelhos encostados no peito. O arame que prendia seus pulsos por detrás a atormentaram no início mas, com o passar das horas, a dor havia amenizado. Tentou não pensar nas coisas que ele havia feito a ela. Primeiro, ele a havia estuprado. Mas mesmo esse ultraje não era nada comparado às outras depra‑vações que ela havia sofrido.

Ainda podia ouvir o estalo da eletricidade, sentir o pulso elé‑trico puxá ‑la bem forte e pular através dela, sacudindo seu cérebro dentro de seu crânio. Ela podia ainda ouvir o som animalesco de seus próprios gritos. O rugido de seu sangue repleto de adrenalina por entre suas veias. A batida feroz de seu coração fora de controle. Então, havia a faca.

Ele trabalhava com a extrema concentração de um artesão maca‑bro. Ele tinha chegado tão perto, que ela podia sentir o sussurro de sua respiração contra a sua pele. Quando ela gritou, ele a atingiu com uma picada elétrica. Quando ela esperneava contra ele, ele a atingia de novo. No fim, ela ficava imóvel e aguentava a agonia em silêncio. Ela tinha aceitado a dor. E, por alguns breves minutos, sua mente a levou para a praia na Flórida, aonde ela tinha ido com os pais há dois anos. A areia branca e quente em seus pés. Uma brisa quente e úmida era como a respiração de Deus em sua alma.

– Mamãe, me ajude...O som de botas contra o concreto a impedia de continuar com

seu devaneio. Ela erguia sua cabeça e olhava em volta de maneira descontrolada, tentando, em vão, enxergar além da venda em seus olhos. Podia ouvir sua respiração apressada por entre os dentes, como um animal selvagem que havia sido caçado para o abate. Ela o odiava. Odiava o que ele era, o que tinha feito a ela. Se pudesse apenas soltar o nó e correr...

– Fique longe de mim, seu desgraçado! – ela gritou. – Fique longe!

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Mas ela sabia que ele não ficaria.Uma mão com luva roçou seu quadril. Se contorcendo, ela se

lançou sobre ele com os dois pés. Uma breve sensação de satisfação se desfraldou quando seu algoz deu um gemido. Então, o estalo de eletricidade quebrou como um raio, a dor atravessou pelo seu corpo como se ela estivesse na ponta de um chicote que havia sido estalado.

Por um instante, o mundo se tornou silencioso e cinzento. Ela vagamente se lembrava de mãos tocando seus pés, do som distante do aço tinindo contra o concreto. Do calafrio se infiltrando nela até que seu corpo todo estremecesse incontrolavelmente.

Um novo e primitivo terror precipitou ‑se através dela quando percebeu que seu agressor tinha envolvido seu tornozelo em uma corrente. As juntas geladas dos elos da corrente, sendo estivada, cavavam sua pele. Ela tentou chutar, tentou livrar suas pernas para que pudesse fazer um último e desesperado movimento pra conse‑guir se levantar.

Mas era tarde demais.Ela gritou até ficar sem fôlego. Debateu ‑se, se enrolando e se

contorcendo, mas seu esforço era inútil. Acima dela, aço se preci‑pitava contra aço. A corrente, aos poucos, ergueu seus pés do chão.

– Por que você está fazendo isso? – ela gritou. – Por quê?A corrente soou, puxando seus pés pra cima, cada vez mais alto,

até que ela estava pendurada de cabeça pra baixo. Todo o sangue em seu corpo parecia se concentrar em sua cabeça. Pulsava em sua face, as veias latejando. Ela lutou para endireitar seu corpo, mas a gravidade a puxava forte pra baixo.

– Socorro! Alguém! Um pânico instantâneo tomou conta dela quando uma mão

com luva agarrou seus cabelos. Um grito verteu de seus pulmões quando o monstro puxou sua cabeça para trás. O súbito calor de uma navalha furou sua garganta. Como que longe dali, ela ouviu o som de água vazando, como o borrifar de um chuveiro ressoando em paredes de azulejo. Olhando dentro da escuridão de sua venda, ela ouvia seu sangue vital escorrer. Isto não podia estar aconte‑cendo. Não a ela. Não em Painters Mill.

Como que se alguém tivesse desligado o interruptor, sua mente ficou turva. Sua face ficou quente, mas seu corpo estava frio. O

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terror fluía em um sussurrar lento e regular. A dor desaparecia pra dentro do nada. Seus músculos se enfraqueceram. Seus membros começaram a formigar.

Ele não vai me fazer mal, afinal de contas, ela pensou.E ela fugiu para a praia de areia branca onde palmeiras esguias

se agitavam como dançarinas de flamenco. E a mais azul das águas que ela já tinha visto se alongava até onde os olhos pudessem ver.

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CAPÍTULO 1

Os estroboscópios do Cruiser da rádio ‑patrulha lançaram luzes azuis e vermelhas pelas árvores mortas do inverno. O oficial de polícia T.J. Banks jogou o carro para o acostamento e virou o holo‑fote, correndo o feixe de luz pela beira do campo onde espigas de milho tremiam no frio. A 18 metros, seis vacas da raça Jersey esta‑vam na vala, ruminando.

– Malditas e estúpidas vacas – ele resmungou. – Além das gali‑nhas, elas, sem dúvida, são os animais mais estúpidos da Terra.

Ele acionou o rádio.– Expedição, aqui é o 47.– O que foi, T.J.? – perguntou Mona, a expedidora da noite.– Eu tenho um 10 ‑54 aqui. As malditas vacas do Stutz estão pra

fora de novo.– É a segunda vez em uma semana.– Sempre no meu turno também.– Então, o que você vai fazer? Ele não tem telefone lá.Uma olhada rápida no relógio do console mostrou que eram

quase duas da manhã. – Bom, eu não vou ficar aqui nesse frio louco pra cercar essas

merdas malditas.– Talvez você devesse atirar nelas.– Não me atente. – Olhando ao redor, ele suspira. Gado na

estrada a essa hora era um acidente esperando acontecer. Se alguém fizesse a curva rápido demais seria muito ruim. Ele pensou em toda a papelada que implicaria um acidente e balançou a cabeça. – Vou levantar alguns sinais luminosos e depois arrancar seu traseiro amish da cama.

– Me avise se precisar de apoio. – Ela riu baixinho.

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Puxando o zíper do casaco até o queixo, ele pegou sua lanterna, que ficava ao lado do assento e saiu do carro. Estava tão frio que ele podia sentir os pelos do nariz congelando. Suas botas trituravam a neve enquanto ele caminhava até a vala, sua respiração ofegante à frente dele. Ele detestava o turno da noite quase tanto quanto o inverno.

Ele correu a luz da lanterna pela linha da cerca. Com certeza, a 6 m dali, duas margens de arame farpado tinham se soltado de um poste amarrado com madeira de alfarroba. Marcas de cascos mostra‑ram a ele que várias cabeças de gado tinham descoberto a abertura e se aventuraram para o acostamento a fim de uma pastagem ilícita.

– Malditas e estúpidas vacas. T.J. voltou pro carro e abriu o porta–malas com força. Remo‑

vendo dois sinais luminosos, ele os posicionou na parte central para alertar o tráfego. Ele estava voltando para o carro quando avistou algo na neve, do outro lado da estrada. Curioso, ele atravessou até lá. Um sapato solitário de mulher estava jogado no acostamento. A julgar pela sua condição e pela falta de neve por cima, não havia estado lá por muito tempo. Adolescentes, provavelmente. Este tre‑cho da estrada era o lugar favorito para fumar narcóticos e fazer sexo. Eles eram quase tão estúpidos quanto as vacas.

Carrancudo, T.J. cutucou o sapato com o pé. Foi quando ele viu as marcas, como que algo pesado tivesse sido arrastado na neve. Ele rastreou a trajetória com a luz de sua lanterna até a cerca e pra den‑tro do campo do outro lado. Os cabelos por detrás de seu pescoço se arrepiaram quando ele avistou sangue. Muito sangue.

– Mas que diabos!Ele seguiu o rastro pra dentro da vala onde a grama amarela

se metia pela neve. Ele pulou a cerca e encontrou mais sangue do outro lado, forte e escuro contra um branco imaculado. Era o sufi‑ciente pra deixar um cara arrepiado.

A passagem o levou até um cercado de macieiras de galhos vazios à beira de um milharal. Ele podia ouvir sua respiração forte, as espigas de milho mortas sussurrando em volta. T.J. firmou sua mão no revólver e varreu o feixe de luz em um círculo de 360 graus. Foi quando ele percebeu o objeto na neve.

A princípio, ele pensou que um animal havia sido atingido e se arrastado até ali pra morrer. Mas quando ele se aproximou, a luz

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revelou algo mais. Uma carne sem cor. Uma mecha de cabelos amo‑renados. Um pé descalço pra fora da neve. A adrenalina lhe deu um chute no estômago.

– Puta merda.Por um instante, ele não conseguiu se mexer. Não conseguia

parar de olhar para o círculo escuro de sangue e carne sem cor. Balançou a cabeça e caiu de joelhos ao lado do corpo. Seu primeiro pensamento foi de que ela poderia estar viva. Passando a mão pela neve, descobriu um ombro descoberto. A pele estava gelada, mas ele a virou, mesmo assim. Ele viu mais sangue e carne pastosa e olhos vidrados que pareciam fitá ‑lo.

Abalado, esforçou ‑se pra se colocar de pé de novo. Sua mão tremia enquanto ele agarrava seu microfone na lapela.

– Expedição! Aqui é o 47!– O que é agora, T.J.? Uma das vacas te perseguindo até o topo

de uma árvore? – Eu tenho um maldito corpo aqui na propriedade do Stutz.– O quê?Eles utilizavam o sistema de código de dez dígitos em Painters

Mill, mas ele jurava pela sua vida que não conseguia se lembrar do número para um cadáver. Ele nunca tinha precisado usar.

– Eu disse que tenho um cadáver aqui.– Eu te ouvi desde a primeira vez. – Mas as palavras foram

seguidas de uma pausa atordoante quando a percepção do fato a atingiu. – Qual a sua localização?

– Estrada Dog Led, bem ao sul da ponte coberta. Um breve silêncio.– Quem é?Todo mundo se conhecia em Painters Mill, mas ele nunca tinha

visto esta mulher.– Eu não sei. Uma mulher. Nua como veio ao mundo e mais

morta do que Elvis.– Destroços ou algo assim?– Isso não tem a ver com acidente. – Colocando sua mão na

coronha de seu 38, T.J. examinou as sombras por entre as árvores. Ele podia sentir seu coração batendo forte no peito. – Seria bom você chamar a chefe, Mona. Acho que temos um assassinato.