voto, facção, política

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o MARCIO GOLDMAN c RONALDO DOS SANTOS SANT'ANNA SANTOS, Wanderley Guilherme dos. 1987. Crise e Castigo: Partidos e Ge- nerais na Política Brasileira. Rio de Janeiro: Vérticel1UI'ERJ. SOARES, Gláucio Ary Dillon. 1973. Sociedade e Política no Brasil (Desen- volvimento, Classe e política Durante a Segunda República). São Paulo: Difel. SOUZA, Maria do Carmo Campello de. 197~. Estado e Partidos Políticos no Brasil (1930 a 1964). São Paulo: Alfa-Omega. VEYNE, Paul. 1984. "Os Gregos Conheceram a Democracia?" Diógenes, 6: 57-82. VEYNE, Paul. 1987. "Vlndividu Atteint au Coeur par ia puissance Publi- que". ln: Paul Veyne et alii, Sur l'lndividu. Paris: Seuil. pp 7-19. 40 POLÍTICA, FACç6ES E VOTO l Moacir Palmeira As imagens mais freqüentemente associadas à política local no Brasil são a do mandonismo exclusivista do chefe político sem competidores ou a de municípios divididos entre duas facções ou partidos afrontando-se permanentemente, muitas vezes de forma violenta, em torno do controle do poder local e do acesso aos que controlam o poder regional e nacional. Apesar do que ambas con- têm de verdadeiro, e sem que os que as utilizam se dêem necessa- riamente conta, elas minimizam o peso e o significado social do processo eleitoral. A primeira reduz o processo eleitoral a uma far- sa; a segunda assinala o acirramento de ânimos e paixões provoca- do pelas eleições, sem questionar, porém, a sua extensão e o seu significado. Paradoxalmente, não são imagens coladas a interpretações conflitivas de processos políticos passados ou atuais. São imagens que coexistem nos mesmos textos, nos mesmos autores. Em alguns casos, elas são explicitamente remetidas a uma certa evolução de uma situação de domínio absoluto de potentados a uma outra de poder já questionado (Vilaça e Albuquerque 1965: 17-21,31-41). Alguns autores sugerem uma certa diferenciação geográfica ou de estilos de exercício de um tipo de dominação que seria basicamente o mesmo (Vilaça e Albuquerque 1965: 43-45; Sá 1974: 77-108; Leal 1975: 22). Esse tipo de delimitação, todavia, não é capaz de dar conta de todas as situações - talvez as de maior freqüência ernpírica na literatura - em que, de forma aparentemente absur-

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  • o MARCIO GOLDMAN c RONALDO DOS SANTOS SANT'ANNA

    SANTOS,Wanderley Guilherme dos. 1987. Crise e Castigo: Partidos e Ge-nerais na Poltica Brasileira. Rio de Janeiro: Vrticel1UI'ERJ.SOARES,Glucio Ary Dillon. 1973. Sociedade e Poltica no Brasil (Desen-volvimento, Classe e poltica Durante a Segunda Repblica). So Paulo:

    Difel.SOUZA,Maria do Carmo Campello de. 197~. Estado e Partidos Polticosno Brasil (1930 a 1964). So Paulo: Alfa-Omega.VEYNE,Paul. 1984. "Os Gregos Conheceram a Democracia?" Digenes,

    6: 57-82.VEYNE,Paul. 1987. "Vlndividu Atteint au Coeur par ia puissance Publi-que". ln: Paul Veyne et alii, Sur l'lndividu. Paris: Seuil. pp 7-19.

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    POLTICA, FAC6ES E VOTOl

    Moacir Palmeira

    As imagens mais freqentemente associadas poltica localno Brasil so a do mandonismo exclusivista do chefe poltico semcompetidores ou a de municpios divididos entre duas faces oupartidos afrontando-se permanentemente, muitas vezes de formaviolenta, em torno do controle do poder local e do acesso aos quecontrolam o poder regional e nacional. Apesar do que ambas con-tm de verdadeiro, e sem que os que as utilizam se dem necessa-riamente conta, elas minimizam o peso e o significado social doprocesso eleitoral. A primeira reduz o processo eleitoral a uma far-sa; a segunda assinala o acirramento de nimos e paixes provoca-do pelas eleies, sem questionar, porm, a sua extenso e o seusignificado.

    Paradoxalmente, no so imagens coladas a interpretaesconflitivas de processos polticos passados ou atuais. So imagensque coexistem nos mesmos textos, nos mesmos autores. Em algunscasos, elas so explicitamente remetidas a uma certa evoluo deuma situao de domnio absoluto de potentados a uma outra depoder j questionado (Vilaa e Albuquerque 1965: 17-21,31-41).Alguns autores sugerem uma certa diferenciao geogrfica ou deestilos de exerccio de um tipo de dominao que seria basicamenteo mesmo (Vilaa e Albuquerque 1965: 43-45; S 1974: 77-108;Leal 1975: 22). Esse tipo de delimitao, todavia, no capaz dedar conta de todas as situaes - talvez as de maior freqnciaernprica na literatura - em que, de forma aparentemente absur-

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    da, a dominao exclusiva e absoluta coexiste com lutas faccionais

    intensas 2 Daniel Gross (1973) resolveu parte da questo, ao mostrar que

    o exclusivismo de mando de um chefe poltico corresponde a ummomento de um ciclo. Criado um municpio, o seu 'fundador' exerceum poder sem limites at o momento em que o chefe poltico deum distrito lhe comece a fazer oposio. O acirramento do conflitoacaba provocando a diviso do municpio e garantindo um perodode paz a ambos os municpios, at que, em cada um deles, o proces-so se reinicie 3. Essa idia do ciclo de uma faco no estranha aospolticos, mesmo quando a possibilidade de fragmentao do mu-nicpio, por que razes seja, no se coloca. Um poltico do serto dePernambuco, candidato derrotado a prefeito nas eleies de 1992,dizia-me no incio de 1995, animado com divergncias que apare-ciam na faco adversria e de olho nas eleies de 1996: "O que euvejo hoje que o grupo dos meninos est chegando aonde chegouo nosso. Cresceu demais e a ningum sustenta. Todo mundo querser [candidato a prefeito). Uma tendncia de diviso ... "

    Essa idia do ciclo capaz de ordenar, num perodo mais lon-go, momentoS de unidade (de exerccio da dominao sem contes-tao pblica) e de luta aberta entre pretendentes chefia poltica,mas no nos diz muito sobre como a dominao exercida, o querepresentam as eleies ou como os que so objeto de dominao semovem dentro desse esquema. Quando'aproximamos mais o noSSOolhar _ tendo, obviamente, comO referncia um tempo mais res-trito _ de situaes como aquelas analisadas pela literatura, cons-tatamos que a polarizaao da vida das localidades do interior entre'situao' e 'oposio', em especial das sedes dos municpios, pareceser um processo corrente e generalizado e, tambm, que o exerccioo.u a pretenso ao exerccio do poder absoluto e discricionrio peloadversrio objeto no apenas de denncias, mas do medo de mui-tos dos que so 'do outrO lado'. Mas isso se restringe poltica. E apoltica para essas populaes no uma atividade permj.nente enem se constitui em uffirdomnio delimitado de atividade~ poltica identificada a eleies e, sintomaticamente, o perodo eleitoral chamado de tempo da poltica, poca da poltica ou simplesmentepoltica. No se trata de mera sino nmia e muito menos de expres-ses de criao desse ou daquele indivduo. Est em jogo um certo

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    calendrio, um certo recorte social do tempo, com implicaes toobjetivas quanto aquelas que decorrem da delimitao do tempodo plantio

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    via, se a polarizao delimitada no tempo, dentro dos limites des-se tempo ela ainda mais radical do que se possa imaginar.

    Os estudos sobre poder local no Brasil- especialmente aque-les realizados por pesquisadores brasileiros, que associam muito for-temente as facespolticas s 'famlias de tipo patriarcal' dos grandessenhores de terra, e tambm as descries feitas por muitos estu-diosos estrangeiros, que se deixam tomar por essa essa 'representa-o nativa' - tendem a enfatizar a sua relativa fixidez duranteperodos de tempo mais longos e a acentuar uma certa rigidez noseu relacionamento mtuo, independentemente de calendrios dequalquer ordem. Mas, se as suas exposies ressaltam os episdiosou as consideraes sobre os episdios que caracterizam aquela es-pcie de 'guerrra permanente' entre famlias, parentelas ou partidosque teria marcado a histria poltica brasileira at o final da primei-ra repblica e, em muitas regies, at os dias de hoje, elas no tmcomo deixar de registrar divises de grandes famlias ou alianas(via casamento, por. exemplo) entre famlias inimigas ou, muitoantes de qualquer 'crise da representao', exemplos numerosos deinfidelidade partidria e de mobilidade interpartidria 6 De modoanlogo, quando adotam um enfoque mais morfolgico, escolhemdescrever tudo o que assinale as fronteiras rgidas e o conflito aber-to entre faces e a homogeneidade interna de cada uma, para logose verem obrigados a 'temperar' suas afirmaes por uma discretacontextualizao ("Isso era particularmente intenso durante o pe-rodo eleitoral" ou "Passadas as eleies, as pessoas dos dois grupostinham uma relao normal", para se referir s "hostilidades per-manentes" entre faces) ou a introduzir um 'discurso da exceo'("svezesocorria de parentes se desentenderem e at candidatarern-se por partidos opostos").

    Longe do j-se-sabe-quem-vai-ganhar, insinuado pela imagemdo mando quase absoluto de uma faco ou do revezamento inevi-tvel entre faces fixas e articuladas por um nico tipo de vnculo,as eleies representam um momento crucial na vida dessas comu-nidades, cujo desfecho est longe de ser algo preestabelecido. No por acaso que o processo eleitoral envolve tanta emoo e que, mes-mo os analistas mais crticos - contrariando s vezes seus prpriosesquemas explicativos -, tenham evidenciado a importncia daseleies para a vida social local e para o funcionamento de um certo

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    sistema de dominao, mesmo nas condies mais viciosas ou navigncia de sistemas eleitorais de participao restrita 7. Como a fac-o fora do tempo da poltica se resume aos chefes polticos e a unspoucos seguidores - embora seja uma referncia fundamental_,a disputa eleitoral exatamente uma disputa para incorporar o maiornmero possvel de pessoas, o maior nmero de apoios a cada fac-o. o seu lado da sociedade que tem que ser aumentado. Est emjogo, pois, uma disputa que mais ampla que a disputa eleitoralstricro sensu. Est em questo tanto a tentativa de acesso a certoscargos de mando, quanto o peso relativo de diferentes partes dasociedade, o que decisivo para a ordenao das relaes sociaisdurante um certo perodo de tempo.

    Nessas circunstncias, mais do que uma escolha individual,acertada ou no, o voto tem o significado de uma adeso. Numaeleio, o que est em jogo, para o eleitor - e a palavra serve paradesignar tanto aquele que est legalmente habilitado a votar quantoqualquer membro da comunidade a quem o processo eleitoral pos-sa interessar - no escolher representantes, mas situar-se de umlado da sociedade que, como lembramos acima, no um lado fixo.E, em se tratando de adeso, tanto quanto o voto, pesa a declaraopblica antecipada do voto. Diferentemente do que nos acostuma-mos a ver nas grandes cidades, o fato de algum ter um cartaz, umafotografia do candidato ou o nome do candidato na porta da suacasa, equivale a uma declarao de voto. E mais ainda, uma sina-lizao de que o dono da casa pertence a uma determinada faco.Manipulaes dessa associao entre a propaganda na fachada e oVOto- como a dos candidadatos que, nos meses que antecedem aseleies, distribuem cestas de alimentos entre famlias da 'periferia'e que se valem daquele expediente de identificao dos beneficiriospara criar a imagem de um apoio amplo a sua candidatura _ sservem para confirmar sua eficcia 8. Eficcia tanto maior quanto, 45ao 'emprestar' seu nome ou seu rosto, com inteno manipulatriaou no, o candidato beneficia-se da coero moral da adeso pbli-ca reconhecida no 'retrato na porta'.

    Se o Voto-escolha uma deciso, uma deciso individual', to-mada com base em certos critrios e em um determinado momen-to, a adeso um processo que vai comprometendo o indivduo,ou a famlia, ou alguma outra unidade social significativa, ao longo

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    do tempo, para alm do tempo da poltica. Mas este um processodiferenciado, que assume feies diversas para diferentes posiesou categorias sociais, e que pode assegurar maior ou menor mar-

    gem de escolha e de individualizao.

    H uma adeso (e o termo aqui no seria muito adequado)vinculada a certas 'lealdades primordiais' , solidariedade familiar,aos laos de parentesco, amizade, vizinhana. Nesse tipo de socie-dade, a vinculao familiar particularmete importante. Mesmoquando no est em jogo a militncia permanente numa faco, asobrigaes sociais que algum tem para com membros de sua fam-lia' estendem-se esfera poltica. H uma expectativa geral de queum candidato conte com os votos de seus parentes e, com relaoao eleitor individual, de que ele, tendo um parente candidato, voteneste. Dependendo do grau de parentesco ou da intensidade damilitncia de algum na faco liderada por um parente seu, con-siderado indelicado abord-Io para pedir voto para outrO candida-to. Dispor de uma famlia grande ou contar com uma extensaparentela, hoje, como no passado, um capital poltico no despre-

    zvel para quem disputa um cargo eletivo-

    Isso no significa (que fique claro!) postular a existncia deuma correspondncia entre certas relaes institudas, como as re-laes de famlia, e o pertencimento a um determinado partido oufaco poltica; e, ainda, a utihzao de determinados instrumentospolticos do tipo 'voto de fa~r'. Eu diria, ao contrrio, que parecehaver uma certa autonomia entre a 'lealdade do voto' e as 'lealdadesfundamentais' a familiares ou p;~entelas. Essas diferentes lealdadespodem convergir, mas isso nem sempre verdade; pode ou noacontecer. No me par,.ece que as divises familiares na poltica se-jam fatos excepcionais ou efeitos recentes de uma certa decompsi-

    46 o da 'ordem ""dion. f!. \c,jdadc politica, lcold.de do V?W, adquirida via compromisso: ela no implica, necessariamente, liga-es familiares ou vinculao a um partido; a lealdade poltica tema ver com o compromisso pSsOaI;-com favores devidos a uma de-terminada pessoa, em determinadas circunstncias. Ela articula, naverdade, uma outra esfera de sociabilidade e, eventualmente, as di-

    ferentes esferas podem entrar em conflito.

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    Parentes ou no, as pessoas relacionam-se, no dia-a-dia, atravsde mltiplos fluxos de trocas, que as vo vinculando umas s outras,confirmando ou no relaes preexistentes, cuja interrupo ca-paz de gerar conflitos ou redefinir clivagens dentro de uma comuni-dade. Via de regra, esto em jogo ajudas ou pequenos favores, quevo sendo saldados ao longo do tempo e que permitem a inversofreqente das posies de quem d ou recebe.

    Mas h tambm grandes favores ou ajudas maiores que sobuscados fora, junto a quem tem condies de faz-los, por disporde dinheiro, prestgio ou de um capital de relaes pessoais sufici-ente para mobilizar recursos de diferentes espcies de modo a aten-

    o der s solicitaes feitas. Esses favores, como emprego pblico paraum membro da famlia, atendimento gratuito num hospital priva-do ou atendimento especial num hospital pblico, um grande em-prstimo em dinheiro, servios dvocatcios gratuitos}o tm comoser reppstos no sUa-a-dia. A eleio pode ser se no um momentode saldar, p-elo menosde amortizar parte da dvida, a ajuda sendoretribuda com o voto. Quanto a este ponto no apresentamos grandediferena em relao ao que tem sido relatado pela literatura socio-lgica internacional sobre patronagem e clientelismo. Todavia, noscasos que estudamos, as coisas parecem ser um pouco mais comple-xas. Favores ou ajudas, grandes ou pequenos (sem que isso suprimao que foi dito antes), supem, de um lado, um pedido e, de outro,uma promessa, ou seja, diferentemente de outras formas de reci-procidade, supem o empenho da palavra das duas partes; 'portan-to, promessas recprocas: a promessa da retribuio e a promessa doatendimento. A reiterao dessas trocas dentro de um mesmo cir-cuito, mesmo naqueles casos em que no h um empenho explcitoe pblico da palavra, reconhecida como algo que cria um com-promisso, um vnculo que envolve a honra dos parceiros. Na horade votar, as pessoas votam na ('acompanham a', como se dizjfaco 47em que esto ou em que votam as pessoas com quem tm compro-misso (com quem esto comprometidas e/ou com quem se sentemcomprometidas)~

    Por outro lado, como as prprias aes polticas (aes prpriasI' ao tempo da poltica) supem promessas recprocas - a promessa, do candidato e a promessa do eleitor de votar no candidato -, elas.

    se enquadram no modelo do favor/ajuda. Assim, mesmo quando

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    no h rompwmi"'" pexh"n"" M a" poUti= so oapa,'" degenu compwmi"o,. E boa pa

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    escolher A e no B. Nas situaes estudadas,ou se tem uma espciede declarao prvia de adeso a uma faco, em funo de compro-missos publicamente conhecidos ou da manipulao de emblemascomo os cartazes aftxados na frente das casas ou do uso de cores deum determinado partido ou candidato, ou, ainda, da freqentaodos locais identiftcados, durante o tempo da poltica, a uma deter-minada faco,ou, ento, 'lu," rem a jmtiHcativa,'lu",,' ",pre a posteriori, no do voto, mas do votO que no foi dado.

    Essa ltima expressa, a um s tempo, a imprescindibilidade detodo e qualquer eleitor situar-se numa das partes em que a socieda-de se v cindida e o conflito entre compromissos ou entre 'lealdadesptimotdiai, ,comptomi"," politico" Frasescomo "sou seu ami-(go, lh, devo favot", mas tiv' 'lu' votat em Fulano potqu, me fezum favor muito grande'';'''sempre acompanhei o nossO partido mas,este ano, votei no outrO partido porque meu irmo se candidatou ...";ou "nem que meu pai mandasse, eu no votaria num candidatodesse partido", ditas por eleitores, no apenas a candidatos - o'lu, int"tatU,n" comp",n,iv,l numa ,oci,dad, ern qu' todo,praticamente se conhecem - mas tambm a no importa queinterlocutor com quem conversem sobre eleies, so moeda cor-rente nOSdias que anteced~m e, sobretudo, nos dias que se seguems eleies. Como esses conflitos so resolvidos, isto , como se che-ga ao' attanjo, indicado, n'''"'' ju"iHcativ"" um outtO oapit~lo,

    Ao contr,rio da simples confnmao do mando de um deter-minado chefe poltico ou faco sobre uma mesma clientela, as elei-es so a ocasio, por excelncia, para as migraes entre faces.O tempo da poltica o tempo em que so possveis os rearranjosou em que so formalizados os rearranjos de compromissos queforam se dando entre duas eleies, que, de outra forma, continua-riam sendo lidos como ingratides ou traies. Mesmo quando oresultado a confnmao do mando da mesma faco, esses movi-mentoS so fundamentais. Entre duas eleies muita coisa se passa:conflitoS interpessoais inviabilizam a permanncia de duas pessoasna mesma fa!.::o;favores de diferentes,fontes criam para um mes-mo indivduo, ou para uma mesma famlia, problemas de lealdade,e assim por diante. O tempo da poltica que permitir mudanasde fronteira capazes de readequar a sociedade imagem que faz de

    si prpria.

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    unlvel'$KSade Fed&f8' do RIO Grande ee NOItI ~

    Centro de ClnClllIIHumanas, LetraS e AMS fBiblioteca Selorla: ' ,oero,;;hzaoi>

    POLfTlCA. FACOES E VOTO

    IJ.

    A busca de aleses no passa, ento, pela caa ao eleitor inde-ciso. Essa, alis, uma figura poltica inexistente nesse tipo de co-munidade. A indeciso - o 'no sei em quem vou votar" - automaticamente associada ao voto no declarado na outra faco.O eleitor disputado pelos candidatos e por seus partidrios o elei-

    o ror de voto mltiplo (isto , aquele que, por sua insero social,define seu prprio voto e o de pe$soas a ele vinculadas por algumtipo de lealdade), envolvido em ou administrando conflitos capazesde justificar mudanas de lado: o pai de famlia enredado por com-promissos com diferentes pessoas e que poder, quem sabe, dividir'organizadamente os votos de seus dependentes; o sindicalistaincompatibilizado, por alguma razo, com o poltico em quem vo-

    -; rou na eleio anterior; o cabo eleitoral 'profissional' preterido por. seu chefe em favor de algum desafeto; o lder de um novo gruporeligioso, vido por estabelecer compromissos que olegitirnern.

    Mas, hoje em dia, a luta mais intensa por adeses, ou simples-.mente por votos, se d alm desses limites e em ternos que invertem~ busca tradicional de adeses. Nas ltimas dcadas, contingentes

    ~ crescentes de trabalhadores rurais transferiram-se de fazendas, stiose povoados para as chamadas 'periferias', 'bairros' ou 'favelas' dascidades do interior. Se, em certas reas, mesmo fora da terra, essestrabalhadores permaneceram na atividade agrcola e mantiveram seus

    ~ postos de trabalho, outras vezes, ocorreu uma diversificao de ati-vidades e uma grande mobilidade em busca de emprego ou terrapara arrendar. Neste ltimo caso, a referncia oferecida pelas fac-es deixou de operar nos termos em que operava antes. Por umlado, situaes de desemprego e suas seqelas, ou mesmo crises deoutra natureza, geraram uma demanda individualizada crescente deassistncia s prefeituras ou aos polticos dos municpios; por outrolado, esse mesmo fato e mais a mobilidade dessas populaes torna-ram mais difceis as possibilidades de compromissos. Os compro-missos tornaram-se, ento, mais estritamente eleitorais.

    Ainda uma vez, todavia, no estar em jogo o 'eleitor indeciso',mas o eleitor potencial 'em disponibilidade'. Disponibilidade rela-tiva, lembre-se de passagem, pois, embora se trate de algum sociale, muitas vezes, espacialmente deslocado, os cdigos culturais ma-nipulados permanecem os mesmos. No por acaso que os candi-datos continuaro a abord-lo nos mesmos termos que abordam

    -.!:

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  • o MOACIR PALMEIRA

    no importa que eleitor, valendo-se de ajudas, favores e promessas,capazes de faz-lo sentir-se comprometido com eles. Se o 'voto pordinheiro' ou a 'compra de voto' encontra melhores condies for-mais para se tornar uma realidade, essa no , ao menos por en-quanto, a mudana fundamental.

    A grande inverso operada pela caa ao voto nas 'periferias'ser exatamente a procura do voto de quem no tem vnculos. Nocom um apelo categorial ao voto dos 'trabalhadores rurais expulsos'ou algo que o valha, mas com a tentativa de comprometer indivi-dualmente eleitores enquadrados socialmente por novos recortessociais. o caso das 'mulheres largadas', que eram efetivamentenumerosas na cidade, cujo processo eleitoral acompanhei pessoal-mente, no serto de Pernambuco. Como, habitualmente, a nego-ciao do voto passa pelo homem chefe de famlia, a mulher inexistecomo eleitora individual. A condio de 'largadas', isto , abando-nadas por maridos-pais e no reabsorvidas pelas famlias de origem,torna esposas e flhas existentes para o processo eleitoral. Desprovi-das da experincia masculina da negociao do voto, elas se tornamum dos pblicos selecionados para a atividade de candidatos quequerem fazer pender, a seu favor, a balana que as ocorrnciasintereleitorais e a campanha desenvolvida nos moldes habituais incli-nariam para o outro lado. A subverso representada pelo voto con-servador da 'mulher largad, dos 'desempregados' (geralmente, osdesempregados da firma tal), dos 'velhos', dos 'que no so daqui'transparece duplamente: na denncia da 'compra do voto' feita tantopelos chefes polticos mais 'tradicionais' quanto pelos sindicalistas emilitantes de esquerda, o que encontraria nas 'periferias' a sua reali-zao mais completa; no seu elogio comum 'sinceridade do voto

    do campo'.

    52A associao entre voto e cidadania tornOU-seautomtica para

    nosso senso (comum) intelectual. Talvez, pelo papel histrico querepresentou em muitos pases. Na verdade, cada vez que essavinculao tem sido assumida socialmente, apresenta conseqn-cias importantes para o desenvolvimento da democracia. No setrata, todavia, de algo fcil. A adoo do voto universal no intro-

    POLfTlCA. FACOES E VOTO

    duz automaticamente valores ligados idia de democracia repre-sentativa. No por uma qualquer ausncia de conhecimentos doseleitores, mas pelo fato de que o voto, como qualquer outro utens-lio institucional, no existe num vazio cultural ou social.

    O que procurei mostrar foi como, nos marcos da polticafaccional, o voto, antes de ser uma escolha, tem o significado deuma adeso. Antes de ser pensado como uma indicao de repre-sentantes ou mandatrios, concebido como gesto de identificaocom uma faco. Antes de ser uma deciso individual, um proces-so envolvendo unidades sociais mais amplas que simples indiv-duos ou redes de relaes pessoais. Isso, no entanto, longe detransformar as eleies em algo secundrio, indica sua importnciacentral para a continuidade das relaes sociais em determinadotipo de sociedade e sua articulao com a prpria temporalidadedessa sociedade.

    Parece-me que essa importncia social do processo eleitoral(identificado com a prpria poltica em comunidades como as queestudamos) e o significado objetivo (isto , socialmente comparti-lhado) do voto podem nos ajudar a entender duas coisas: o porqude inovaes institucionais (mesmo radicais) afetando o sistema elei-toral e de mudanas sociais importantes (como as que so associa-das monetarizao da economia) serem, com relativa facilidade,reapropriadas e reinterpretadas pelos que fazem operar esse siste-ma, ao qual, apesar da idade, no falta plasticidade; o porqu de,ainda hoje, um sculo depois da adoo do sistema republicano edos princpios da democracia representativa, alinharmos democra-cia, representao, partidos, voto e cidadania como utopias.

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    J Este artigo uma tentativa de desenvolver alguns pontos de um outroanteriormente publicado (Palmeira 1992). As afirmaes aqui feitas basei-am-se fundamentalmente em resultados de uma pesquisa que venho reali-zando h alguns anos, junto com Beatriz Heredia, em Pernambuco e no RioGrande do Sul, sobre concepes de poltica de populaes rurais. Naqueleprimeiro estado, trabalhamos sobretudo na rea canavieira e no serto do

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    Paje. No Rio Grande do Sul, concentramo-nos na regio de Santa Rosa. Oleitor poder encontrar mais informaes a esse respeito em Palmeira e Heredia

    (1995).2 A viso relacional que tem Victor Nunes Leal do 'coronelismo' - resulta-do de um compromisso entre chefes locais e o governo estadual ou federal_ e a marca 'governista' que nele identifica ajudam a entender aquela coe-xistncia. A 'carta branca' dada aos coronis, em troca de votos, pelos gover-nos estaduais deixa espao para uma atuao mais branda ou mais agressivacom relao a seus adversrios. Mas a sua dependncia com relao ao gover-no permite que este, havendo uma mudana de governantes ou simplesmen-te um desentendimento entre o governo estadual e o chefe local, faa emer-gir uma oposio conhecida mas sufocada ou, por assim dizer, aparecer danoite para o dia uma oposio inexistente. Uma interpretao desse tipo nopermite, entretanto, perceber os pontoS de fissura ou, dito de outra maneira,quem e em que circunstncias capaz de se contrapor chefia local.

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    3 Bem antes dele, num trabalho de 1957, Maria Isaura Pereira de Queiroz(1969) chamava ateno para esse processo de segmentao aplicando-se amunicpios, mas tambm a capitanias durante o perodo colonial e sugeriaque, ao menos em parte, tambm fosse capaz de explicar as bandeiras.

    4 Essa descontinuidade entre poltica e cotidiano, cuja percepo, de certomodo, mudou o rumo da minha pesquisa, j havia sido assinalada, em 1974,no trabalho pioneiro de Maria Auxiliadora Ferraz de S, que s recentemen-te li. Trabalhando com a categoria 'movimento' - o " 'movimento' singulardas eleies" _ Ferraz de S descreve algo muito prximo daquilo a que merefiro como o tempo da poltica, embora ela enfatize bem mais a dimensode inverso daquele 'fato social extraordinrio: em que se constituem as elei-

    es municipais (S 1974: 77-108).

    5 H mltiplas defmies de faces, mas entre os antroplogos h um cer-to consenso de que se trata de unidades de conflito, cujos membros soarregimentados por um lder com base em princpios variados. Em geral,esto em jogo conflitos considerados polticos (envolvendo o uso do poder.pblico). As faces no so grupos corporados (via de regra os autores pen-sam-nas como quase-grupoS, grupOS didicos no corporados etc.). Ao con-trrio de partidos polticos, associaes ou clubes (para ficarmos em exem-plos muito prximos) "as faces so unidades de conflito ativadas em oca-sies especficas antes do que mantidas por uma organizao formal" (Mayer1977: 52) mas, como lembra Nicholas, "que as faces no sejam corporadas,que sejam basicamente impermanentes, isso no significa que no possampersistir por um longo perodo de tempo" (Nicholas 1977: 58).

    (, Isso no escapou ironia de Machado de Assis. Numa crnica de 1878,comenta a notcia de que os dois partidos "de uma das parquias do Norte,

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    POLITlCA. FACES E VOTO

    a parquia de S. Vicente (... ) dividiram-se e trocaram as metades". Depois dedizer ignorar "o modo pelo qual as duas metades dos dois programas foramcoladas s metades alheias" e fazer mais algumas consideraes, arremata: "Oponto mais obscuro deste negcio a atitude moral dos dois novos partidos,a linguagem recproca, as mtuas recriminaes. Cada um deles v no adver-srio metade de si prprio. (... ) Em vo busco adivinhar por que modo essesdois partidos singulares cruzaram armas no grande pleito; no encontro ex-plicaes satisfatrias. Nenhum deles podia acusar o outro de se haver ligadoa adversrios, porque esse mal ou essa virtude estava em ambos; no podiaum duvidar da boa-f, da lealdade, da lisura do outro, porque o outro era elemesmo, os seus homens, os seus meios, os seus fins.( ... )" (Machado de Assis1994: 16-17)

    7 Lembraria a importncia das Cmaras municipais e da eleio dos verea-dores - uma das nicas ocasies em que os colonos compareciam s vilas-realada por Maria Isaura Pereira de Queiroz (1%9) e a afirmao de VictorNunes Leal de que "o 'coronelismo' tem sido, no Brasil, inseparvel do regi-me representativo em base ampla" (Leal 1975: 248).

    8 Mais do que em qualquer outro momento, nesse perodo as pessoas estoatentas a determinados sinais. O depoimento espontneo, em tom de adver-tncia a um candidato ausente com quem me identificava, de um dono dehotel numa cidade do serto de Pernambuco, poucas horas depois de fecha-das as urnas em 1988, revelado r: "A gente aqui no interior se acostumacom essas coisas de eleio. A gente percebe quando a coisa est virando.Avisei a Catonho que meu amigo. A gente vai todo dia cidade. Eu mesmovou trs vezes por dia. E a gente vai vendo que tem cartaz que est desapare-cendo, comcio que fica menor, entusiasmo que diminui, povo que vai fa-lando menos do candidato".

    9 A tese da substituio do 'voto de cabresto' pelo 'voto-mercadoria', tradu-zindo no plano poltico a monetarizao da economia foi desenvolvida porRoberto Cavalcanti de Albuquerque na sua introduo ao Coronel, Coronis(Vilaa e Albuquerque 1%5). Ver, no mesmo sentido, S (1973).

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    Referncias Bibliogrficas

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    POLTICA, FAMLIA, COMUNIDADE

    Beatnz M. A. de Heredia

    Nas comunidades camponesas, a poltica no um tema quefaa parte do cotidiano I. No entanto, isso se altera no perodo elei-toral, quando a poltica est presente tanto atravs da mdia, especi-almente rdio e televiso, quanto pela presena fsica dos polticos ede seus smbolos - bandeiras, cartazes e msicas. Essa presena dapoltica em tempos de eleio permite-nos dizer, sem temor de equ-vocos, que nesses momentos ela faz parte de seu cotidiano 2. essapresena macia da poltica, e a maneira como ela se d, que fazreferirmo-nos ao perodo eleitoral nas comunidades camponesascomo sendo o tempo da poltica 3 .

    Propomos aqui analisar como a poltica irrompe em tais comu-nidades nessas ocasies, isto , de que maneira introduzida e seesta interfere nas relaesexistentes no interior das mesmas. Baseamo-nos em material de pesquisa colhido numa localidade situada naregio noroeste do Rio Grande do Sul e em outra situada na regiolimite da zona da mata de Pernambuco, nas margens da rea canavi-eira, onde havamos trabalhado anteriormente.

    No primeiro caso, trata-se de uma rea de pequenos produto-res de origem alem e italiana agrupados em algumas colnias. De-nomina-se colnia um conjunto de unidades de residncia cercadaspela rea destinada ao cultivo e agrupadas em torno de um centro- constitudo por uma capela, um salo (s vezes, o mesmo espao usado como capela e salo) e uma escola -, onde se realizam todasas atividades e renem-se os colonos. Por sua vez, um conjunto de