Vou chamar a polícia

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Y alom Irvin D. Do mesmo autor de Quando Nietzsche chorou Vou chamar a polícia e outras histórias de terapia e literatura Y

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De Irvin D. Yalom

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N esta coletânea de tex-tos, Irvin Yalom ofere-ce aos leitores que ao

longo dos últimos anos se torna-ram seguidores apaixonados deseus romances e ensaios os basti-dores do processo criativo.

Yalom conta, em meio a con-fissões acerca de sua intimidade,os passos que o levaram à concep-ção e à construção da trama queresultou no célebre Quando Nietzschechorou, revela quem foi o psicana-lista que o inspirou na discussãodos desafios fundamentais da te-rapia em Mentiras no divã e expõe assoluções que encontrou na litera-tura para desatar os impasses pro-vocados por pacientes desconfiadose refratários à psicoterapia.

No texto que dá título ao livro,o inédito e surpreendente “Vouchamar a polícia”, somos brindadoscom uma história desconcertante,que enriquece a compreensão doscaminhos tortuosos que desenhamo mapa da nossa vida psíquica.

Retomando algumas das suaspropostas essenciais, Yalom discutea posição do terapeuta, sua sinceri-dade, a exposição de seus própriossentimentos, os limites de seu en-volvimento com os pacientes e osbenefícios de analisar, em conjuntocom o paciente, os resultados decada sessão de terapia.YalomIr

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D. Do mesmo autor de

Quando Nietzsche chorou

Vou chamar a políciae outras históriasde terapia e literatura

i r v i n d. ya l o m nasceu em1931, em Washington, d.c. Seuspais eram imigrantes russos que seestabeleceram nos Estados Unidosem busca de uma vida melhor. Des-de criança, Yalom demonstrava pro-fundo interesse pelos livros. Talveztenha vindo daí sua paixão pelaescrita e a vontade de transformarem narrativa o precioso materialque seu trabalho como psiquiatralhe daria. Atualmente é professoremérito de Psiquiatria na Uni-versidade de Stanford. No Brasilforam publicados, de sua autoria,Quando Nietzsche chorou, A cura deSchopenhauer, Mentiras no divã, Os desa-fios da terapia, O carrasco do amor, Mamãee o sentido da vida e De frente para o sol.

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A os que o conhecem, os capítulos que se seguemservirão como um roteiro revelador do cenárioe das motivações que levaram Yalom a compor suas

histórias e a escrever seus livros de orientação paraterapeutas. Para aqueles que o leem pela primeira vez, ostextos representarão um convite irresistível à descoberta dasmúltiplas vertentes da obra desse autor incomum.”

(do prefácio de Paulo Schiller)

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e outras histórias de terapia e literatura

Irvin D. Yalom

tradução

Lucia Ribeiro da SilvaMauro Pinheiro

Vou chamar a polícia

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Texto estabelecido segundo o Acordo Ortográfi co da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 2009.

Títulos originaisI’m Calling the Police; Literature Informing Psychology; Th e Journey from Psychotherapy to Fiction; Th e Teaching Novel; Th e Psychological Novel

Copyright “I’m Calling the Police” © 2009, Irvin D. Yalom e Robert L. BergerCopyright Th e Yalom Reader © 1998, Irvin D. YalomCopyright da tradução © 2009, Agir Editora Ltda.

As citações de outros livros do autor foram retiradas das seguintes edições: Quando Nietzsche chorou, Agir, 2009, tradução de Ivo Korytowski; O carrasco do amor, Ediouro, 2007, tradução de Maria Adriana Veríssimo Veronese; Mentiras no divã, Ediouro, 2006, tradução de Vera de Paula Assis.

Capa Victor Burton

Imagens de capaDave Bradley Photography / Getty ImagesHuntstock / Getty Images

Copidesque Clara Diament

Todos os direitos reservados à Agir Editora Ltda. – uma empresa Ediouro Publicações S.A.Rua Nova Jerusalém, 345 – CEP 21042-235 – Bonsucesso – Rio de Janeiro – RJTel.: (21) 3882-8200 – Fax: (21) 3882-8212/8313

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte. Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

Yalom, Irvin D., 1931-Vou chamar a polícia: e outras histórias de terapia e literatura / Irvin

D. Yalom; [tradução Lucia Ribeiro da Silva, Mauro Pinheiro]. – Rio de Janeiro: Agir, 2009.

Tradução de: I’m Calling the PoliceConteúdo: I’m Calling the Police; Literature Informing Psychology;

Th e Journey from Psychotherapy to Fiction; Th e Teaching Novel; Th e Psychological Novel

ISBN 978-85-220-01049-3

1. Psicoterapia e literatura. 2. Psicoterapia de grupo. 3. Psicoterapia existencial. I. Título.

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CDD: 616.89CDU: 616.8909-4362

RevisãoWanda BrantClara Araújo

Produção editorialMaíra Alves

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Sumário

prefácio (Paulo Schiller)

Vou chamar a polícia (Irvin D. Yalom e Robert L. Berger)

A literatura instrumentando a psicologia

A viagem da psicoterapia à fi cção

O romance pedagógico

O romance psicológico

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Prefácio

Paulo Schiller

A partir da segunda metade do século XIX, um conjunto de avanços teó-ricos e experimentais — alicerçados na fundação da ciência moderna por Descartes no século XVII — levou à sucessão interminável de descobertas que fi zeram com que o médico deixasse de ser um simples profeta destinado a anunciar prognósticos precisos para se transformar em um profi ssional capaz de curar uma infi nidade de doenças, de prolongar a vida e aprimorar sua qualidade. A mesma evolução não aconteceu no terreno de estudo dos distúrbios mentais, no campo de conhecimentos voltados às angústias e in-certezas afetivas que acompanham os homens desde que a civilização existe.

Nascida, não por acaso, nos anos fi nais desse mesmo século XIX, a psica-nálise surgiu como uma reação ao poder extremo adquirido pela medicina, que passou a abordar os pacientes como donos de um organismo que navega à deriva, ao sabor de leis naturais. Ao desvendar a existência do inconsciente, Freud resgatou o psiquismo, ou seja, o indivíduo em sua singularidade, oprimi-do pelas generalizações e pelas estatísticas. Ao dar novamente ouvidos ao que cada um de nós tem a dizer, a clínica inventada por Freud determina que todas as modalidades de psicoterapia praticadas hoje em dia — independentemente de quem sejam seus idealizadores ou de suas bases teóricas — sejam derivadas, direta ou indiretamente, da psicanálise.

Esse sujeito, que ao falar pode identifi car as raízes de seus sintomas, embora silenciado pela ciência em um dado momento, nunca deixou de viver nas tradi-ções orais, nas narrativas épicas e mitológicas, na poesia e no romance moderno — de Dom Quixote a Harry Potter. O que convencionamos chamar de literatura

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evidencia a necessidade que tem o homem de dar uma forma a seu sofrimento e de compreender melhor a complexidade dos dramas que o afl igem.

Não são poucos os exemplos que temos de médicos transformados em escritores talentosos. Herdeiro dessa linhagem ilustre — que inclui Rabelais, Tchekhov, Conan Doyle e Guimarães Rosa —, Irvin Yalom mescla em seus escritos a vivência originada da medicina, a cuja prática ele foi compelido por circunstâncias familiares, e seu sonho adolescente de um dia se tornar um ro-mancista. Por conta de seus vínculos estreitos com a literatura, Yalom investiga as relações entre a fi cção e as histórias contadas pelos seus pacientes. As confi s-sões que fazemos em uma sessão de terapia — a reconstrução de nossas vidas — pertencem ao terreno da verdade ou têm parentesco com a fi cção? Nossas lembranças têm uma precisão fotográfi ca ou são interpretações subjetivas de acontecimentos passados? A realidade tem uma natureza objetiva ou é sempre única, impossível de ser compartilhada, fruto do psiquismo de cada um?

Nesta coletânea de textos, Yalom resgata sua dívida com os grandes fi c-cionistas e pensadores, que jamais deixaram de considerar os nossos confl i-tos e a busca de um sentido para eles como inerentes à condição humana, in-dependentes dos rumos da ciência e do saber acumulado nos laboratórios.

Inspirado, entre outros, por Epicuro, Sófocles, Shakespeare, Tolstói, Dos-toiévski, Nietzsche, Sartre e Camus, Yalom transforma, por um lado, as falas de seus pacientes, em terapia individual ou de grupo, em narrativas que a sensibi-lidade do clínico e as qualidades de escritor aproximam dos melhores roman-ces; por outro lado, nos romances em que ele realiza a aspiração adolescente, sem a aridez dos termos técnicos, mas sem perder jamais o rigor conceitual, Yalom combina a trama bem-articulada e sedutora com o desejo de transmitir ao leitor leigo e ao especialista as linhas mestras e os dilemas e controvérsias que permeiam o trabalho do psicoterapeuta.

Aos que o conhecem, os capítulos que se seguem servirão como um roteiro revelador do cenário e das motivações que levaram Yalom a compor suas his-tórias e a escrever seus livros de orientação para terapeutas. Para aqueles que o leem pela primeira vez, os textos representarão um convite irresistível para a descoberta das múltiplas vertentes da obra desse autor incomum.

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Vou chamar a políciauma história de recalque e recuperação

Irvin D. Yalom e Robert L. Berger

Ao fi nal do jantar do quinquagésimo aniversário de nossa formatura em medicina, meu velho amigo Bob Berger, o único que me restou dos tempos de faculdade, fez sinal para conversarmos. Apesar de havermos seguido caminhos profi ssionais diferentes — ele na cirurgia cardíaca, eu na cura pela fala para corações partidos —, tínhamos estabelecido um vínculo estreito, que ambos sabíamos que duraria a vida inteira. Quando Bob me segurou pelo braço e me puxou para o lado, tive certeza de que viria algo importante. Ele raramente me tocava. Nós, os “psis”, costumamos reparar nesse tipo de coisa. Bob se apro-ximou de meu ouvido e disse, com sua voz áspera:

— Está acontecendo uma coisa séria... o passado entrou em erupção... mi-nhas duas vidas, a noturna e a diurna, estão se juntando. Preciso conversar.

Entendi. Desde a infância, passada na Hungria durante o Holocausto, Bob levava duas vidas: uma diurna, na qual era um cirurgião cardíaco afável, dedi-cado e incansável; e uma noturna, em que fragmentos de lembranças pavorosas percorriam seus sonhos. Eu sabia tudo de sua vida diurna, mas, em nossos cinquenta anos de amizade, ele nunca me revelara nada dessa vida noturna. E eu também nunca ouvira um pedido explícito de ajuda: Bob era reservado, misterioso, enigmático. O homem que cochichou no meu ouvido era um Bob diferente. Fiz que sim com a cabeça. Fiquei preocupado. E curioso.

Era estranho termos feito amizade na faculdade de medicina. Berger co-meça com “B” e Yalom, com “Y”, o que já teria sido sufi ciente para nos manter afastados. Comumente, os alunos de medicina escolhiam os companheiros que estavam próximos pelo alfabeto: a dissecação de cadáveres, a parceria nos labo-

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ratórios e os ciclos clínicos costumavam ser distribuídos em ordem alfabética, e eu passava a maior parte do tempo com o grupo de S a Z — Schelling, Siderius, Werner, Wong e Zuckerman.

Talvez tenha sido a aparência inusitada de Bob. Desde o começo, o azul vívido de seus olhos me atraiu. Eu nunca tinha visto um olhar tão trágico e distante, um olhar que chamava, fl ertava com o meu, mas nunca chegava propriamente a me encarar. Seu rosto, nada comum, era cubista, cheio de ân-gulos por toda parte, nariz e queixo afi lados, e até as orelhas eram angulosas. A pele escanhoada era pálida. Faltava sol, pensava eu. Nada de cenouras nem de exercícios.

Sua roupa era amarrotada e de um marrom-acinzentado indefi nível (nunca o vi usar uma cor viva). Mesmo assim, Bob me atraía. Tempos depois, eu ouvi-ria algumas mulheres dizerem que, apesar de sem atrativos, ele era irresistível. Irresistível era meio forte, mas sedutor, talvez. Sim, eu estava fascinado por ele: no colégio e na faculdade, na minha provinciana Washington D. C., eu nunca tinha conhecido alguém remotamente parecido com Bob.

Nosso primeiro encontro? Lembro bem como foi. Eu estava estudando na biblioteca da faculdade de medicina, onde ele passava as noites fazendo pes-quisa bibliográfi ca para o manual de patologia do professor Robbins (um texto que teria um futuro brilhante, um texto que instruiu, e ainda instrui, gerações de médicos de todo o mundo). Uma noite, na biblioteca, Bob aproximou-se e me informou que eu já havia estudado o bastante para a prova de nefrologia do dia seguinte.

— Quer ganhar uma grana? — perguntou. — Robbins me deu trabalho demais e estou precisando de ajuda.

Aceitei prontamente a oferta. Fora uns trocados que eu conseguia ven-dendo meu sangue e meu esperma — a fonte tradicional de dinheiro rápido para os alunos de medicina —, eu era inteiramente sustentado pela receita da mercearia de meus pais.

— Por que eu? — perguntei.

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— Andei observando você.— E daí?— Daí que você talvez tenha potencial.Em pouco tempo, começamos a passar três ou quatro noites por semana na

biblioteca da Faculdade de Medicina da Universidade de Boston, trabalhando para o dr. Robbins, ou no meu apartamento, batendo papo e estudando. Basi-camente, era eu quem estudava — Bob parecia não precisar fazê-lo. Além disso, jogava paciência horas a fi o, às vezes, ele dizia, para o campeonato da Nova Inglaterra, às vezes para o cam peonato mundial.

Não demorei a fi car sabendo que ele era um refugiado de guerra, que tinha sobrevivido ao Holocausto e, como exilado, chegou sozinho a Boston aos 17 anos.

Pensei em mim mesmo nessa idade — cercado de amigos, abraçado pela família, preocupado com gravatas largas, com meu jeito canhestro de dançar e com a política do grêmio estudantil. Senti-me ingênuo, mole e frouxo.

— Como você conseguiu, Bob? Quem o ajudou? Você falava inglês?— Nem uma palavra. Com o equivalente a uma formação até o nono ano,

entrei para a Boston Latin High School e, um ano depois, já era calouro em Harvard; e, então, ingressei na faculdade de medicina.

— Como? Tenho certeza de que, se tivesse me candidatado, eu não teria conseguido entrar em Harvard. E onde você morava? Com quem? Com pa-drinhos? Parentes?

— Quantas perguntas! Eu consegui sozinho, a resposta é essa.Na nossa cerimônia de formatura, lembro que meus pais e minha mulher,

com nosso bebê no colo, fi caram perto de mim, e vi Bob ao longe, parado sozinho num canto, balançando-se de leve sobre os calcanhares, agarrado ao diploma. Uma vez formado, ele fez o internato em clínica geral e residência em cirurgia geral, seguida pela residência em cirurgias torácica e cardíaca. Um dia depois de terminar o treinamento, ofereceram-lhe o cargo de chefe de cirurgia cardíaca num hospital universitário de Boston, e cinco anos mais tarde já era

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professor titular de cirurgia e chefe do departamento de cirurgia cardiotorácica da Universidade de Boston. Publicou vários livros, lecionou e operou incansa-velmente. Foi o primeiro cirurgião do mundo a fazer um implante parcial de coração artifi cial com sobrevivência de longo prazo. E tudo isso completamente sozinho — havia perdido todos no Holocausto.

Mas Bob não dizia nada sobre o passado. Eu morria de curiosidade, pois nunca havia conhecido alguém que tivesse enfrentado diretamente o horror dos campos de concentração, mas ele rechaçava minhas perguntas, repreen-dendo-me pelo voyeurismo.

— Talvez — provocava —, se você se comportar, eu lhe conte mais alguma coisa.

Eu me comportei, mas anos se passaram até que Bob se dispusesse a res-ponder a perguntas sobre a guerra. Ao entrarmos na casa dos 60 anos, notei uma mudança. Primeiro, ele me pareceu mais receptivo e disposto a falar e, em seguida, com o passar dos anos, foi fi cando quase ansioso para me contar os horrores do passado.

Mas será que eu estava pronto para ouvir? Algum dia estive preparado para isso? Só depois que comecei a estudar psiquiatria, a fazer minha própria análise e a dominar algumas sutilezas da comunicação interpessoal foi que captei uma coisa essencial no meu relacionamento com Bob. Não era apenas ele que se calava sobre seu passado: eu também não fazia questão de saber. Nós éramos cúmplices nesse longo silêncio.

Quando adolescente, lembro-me de ter ficado paralisado, horrorizado, nauseado com os noticiários do pós-guerra que documentavam a libertação dos campos de concentração. Eu queria olhar, achava que devia olhar. Aquelas pessoas eram o meu povo — eu tinha que olhar. Mas, toda vez que o fazia, fi cava abalado até a alma, e ainda hoje não consigo bloquear a invasão daquelas ima-gens brutas — o arame farpado, os fornos fumegantes, os poucos sobreviventes esqueléticos com seus farrapos listrados. Eu tive sorte: poderia ter sido um daqueles esqueletos, se meus pais não houvessem emigrado antes de os nazistas assumirem o poder. E o pior de tudo eram as imagens das escavadeiras remo-

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vendo aquelas vastas montanhas de corpos. Alguns daqueles cadáveres per-tenciam à minha família: a irmã de meu pai fora assassinada na Polônia, assim como a mulher e os três fi lhos de meu tio Abe. Ele veio para os Estados Unidos em 1937, com a intenção de trazer a família, mas não houve tempo.

As imagens provocavam tamanho horror e geravam tantas fantasias carre-gadas de ódio que eu mal conseguia suportá-las. Quando entravam em minha cabeça à noite, perdia o sono. E eram indeléveis, nunca se apagavam. Muito antes de conhecer Bob, eu tinha resolvido não acrescentar imagens daquele tipo a meu arquivo mental e começara a evitar fi lmes e descrições escritas do Holocausto. Uma vez ou outra tentava enfrentar a história com mais maturi-dade, porém nunca conseguia. Eu me obrigava a ir ao cinema assistir a fi lmes como A lista de Schindler ou A escolha de Sofi a, mas não suportava mais do que trinta ou quarenta minutos, e sempre saía renovando minha determinação de evitar aquele sofrimento no futuro.

Os poucos incidentes que Bob tinha compartilhado comigo eram apavoran-tes. Tenho gravada na memória uma história que ele me contou há uns vinte anos sobre um amigo íntimo, Miklos. Quando Bob morava em Budapeste, aos 14 anos, fazendo-se passar por cristão e trabalhando na Resistência, esbarrou com Miklos, com quem não se encontrava havia meses. Bob fi cou chocado com a aparência do amigo, abatido e em frangalhos, como se tivesse acabado de fugir de um gueto ou, quem sabe, pular de um trem a caminho de Aus-chwitz. Alertando Miklos para o fato de que ele com certeza não demoraria a ser apanhado pelos nazistas, Bob insistiu para que o amigo o acompanhasse e aceitasse uma acomodação temporária, uma muda de roupa e documentos de identidade falsos, cristãos. Miklos assentiu, dizendo que primeiro deveria ir a um lugar, mas voltaria àquele ponto em duas horas. Bob tornou a avisá-lo do perigo e implorou para que ele o acompanhasse naquele instante, porém Miklos insistiu que precisava se encontrar com alguém para tratar de um assunto urgente.

Pouco antes da hora marcada para o encontro, entretanto, as sirenes de ataque aéreo soaram e as ruas foram esvaziadas. Noventa minutos depois, tão

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logo soou o sinal do fi m do ataque, Bob correu para o local do encontro, mas Miklos nunca apareceu.

Depois da guerra, ele fi cou sabendo do destino do amigo por um antigo professor de educação física, Karoly Karpati, um judeu que fora isentado das leis antissemitas por ter conquistado uma medalha de ouro para a Hungria, na Olimpíada de Berlim, na modalidade luta livre. Logo depois de soar o sinal do fi m do ataque, quando ia saindo do abrigo antiaéreo, a mulher de Karpati viu um grupo de nazistas arrastando um rapazinho para a entrada do prédio em que ele morava. Reconheceu Miklos e fi cou observando a distância. Os nazis-tas haviam abaixado as calças do garoto e, ao verem que ele era circuncidado, deram-lhe vários tiros na barriga. Miklos estava sangrando muito, mas con-tinuava consciente e implorou por água. A sra. Karpati tentou levar-lhe um pouco, mas os nazistas a afastaram com um empurrão. Ela fi cou cerca de uma ou duas horas por perto, vendo o menino sangrar até morrer. E Bob terminou seu relato de forma característica: culpando-se por não ter obrigado Miklos a ir com ele imediatamente.

Essa história me assombrou por anos. Muitas noites, fi quei acordado na cama, com o coração batendo forte, enquanto a cena do assassinato de Miklos se repetia sem parar no teatro de minha imaginação.

E assim, depois que nossos colegas fi nalmente deixaram o salão de jantar do hotel, em meio a um coro de “vamos nos rever em breve” e “até logo” — embo-ra todos aqueles garotos envelhecidos de 75 anos e cabelos brancos soubessem, no fundo, que era quase certo nunca mais se encontrarem —, achamos um canto sossegado no bar do hotel para conversar. Pedimos dois spritzers,* e Bob começou sua história.

— Semana passada fi z uma viagem de negócios a Caracas.— Caracas? Por quê? Você fi cou doido? Com toda aquela agitação política?— Aí é que está. Ninguém mais do nosso grupo queria ir. Achavam que

seria perigoso demais.

* Vinho, em geral branco, diluído com um pouco de água mineral e gelo. (N. dos T.)

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— E era seguro para você, um semi-inválido de 75 anos, com três stents no coração?

— Você quer ouvir a história ou mais uma vez vai bancar o terapeuta com o seu único amigo?

Ele tinha razão. Bob e eu sempre implicávamos um com o outro. Era um jeito de ser exclusivo do nosso relacionamento. Eu não agia assim com nenhum outro amigo. Tenho certeza de que essas brincadeiras eram um sinal de grande afeição; talvez fosse o único jeito de nos aproximarmos. As cicatrizes da infân-cia dele e suas muitas perdas deixaram-no incapaz de se mostrar vulnerável ou de expressar afeição abertamente.

Incapaz de sentir tranquilidade ou segurança, Bob sempre havia trabalhado num ritmo assustador, passando pelo menos setenta a oitenta horas por semana na sala de cirurgia ou acompanhando pacientes no pós-operatório. Apesar de ganhar muito bem com as duas ou três operações cardíacas diárias que fazia, ele dava pouca importância ao dinheiro: levava uma vida frugal e doava a maior par-te de sua renda a Israel ou a instituições benefi centes relacionadas com o Holo-causto. Em nome da amizade, eu não conseguia parar de censurá-lo pelo excesso de trabalho. Certa vez, comparei-o à bailarina de sapatilhas vermelhas que não parava de dançar.* No mesmo instante, ele respondeu ser exatamente o oposto: a bailarina dançava até morrer enquanto ele dançava para se manter vivo.

Sua mente, notavelmente fecunda, vivia gerando novas ideias, e Bob era famoso por desenvolver um fl uxo contínuo de novos procedimentos cirúrgicos que salvavam a vida de pacientes em estado grave. Ao se aposentar da prática cirúrgica, ele caiu numa longa e profunda depressão, mas a superou de uma forma notável: tornou-se um estudioso do Holocausto e entrou na acalorada polêmica a respeito de a medicina moderna dever ou não utilizar as descober-tas feitas pelos nazistas nos campos de concentração. Finalmente, um épico artigo de Bob no New England Journal of Medicine colocou fi m ao debate, ao

* Alusão a um célebre conto de Hans Christian Andersen, “Sapatinhos vermelhos”, que também

serviu de tema ao famoso fi lme homônimo de 1948, escrito e dirigido por Michael Powell e

Emeric Pressburger. (N. dos T.)

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provar que as pesquisas nazistas tinham sido predominantemente fraudulen-tas. A atividade e a efi ciência acabaram rapidamente com sua depressão.

Bob produzia ideias sem cessar, sufi cientes para diversos cientistas, a res-peito de vários tratamentos e novos dispositivos ou procedimentos cirúrgicos. Mais recentemente, ajudou a desenvolver novas abordagens para um tratamen-to não cirúrgico mais seguro para o enfi sema em estágio avançado. Era um dos fundadores da empresa criada para desenvolver esse sistema e andava fazendo inúmeras viagens e palestras para informar os médicos sobre o trabalho.

Eu sabia que ele não podia parar de dançar. Tampouco eu conseguia pa-rar de lhe dar conselhos inúteis sobre diminuir o ritmo, aproveitar a vida e arranjar tempo para os amigos. Bob andava tão compulsivamente atarefado e preocupado que, em certa ocasião, internou-se num hospital para fazer uma cateterização cardíaca devido a uma angina aguda, sem dizer nada à família ou aos amigos. Eu nunca parei de encorajá-lo a compartilhar mais, a aprender a reclamar, a pedir ajuda. E ele sempre ignorou meus conselhos.

Mas agora, na noite do quinquagésimo aniversário de nossa formatura, alguma coisa estava diferente. Pela primeira vez ele me pediu ajuda, e eu estava decidido a atendê-lo.

— Bob, me conte exatamente o que aconteceu em Caracas.— Eu estava terminando uma viagem de três dias. Tinha sido um sucesso:

os médicos venezuelanos fi caram impressionados com nosso novo sistema de tratamento do enfi sema e estavam prontos para iniciar uma experiência clínica no hospital universitário. Por causa do risco considerável de assaltos ou se-questros, meus anfi triões não saíram do meu lado nem por um minuto durante toda a viagem. Em meu último jantar lá, no entanto, eu disse a eles que não precisavam me acompanhar até o aeroporto: meu voo seria de manhã cedo, e o hotel providenciaria o transporte. Eles insistiram, mas fi quei fi rme e peguei a limusine do hotel. Pareceu-me algo seguro.

— Seguro? Seguro? Com o que anda acontecendo na Venezuela? — excla-mei. Estava alarmado com a avaliação feita por Bob e comecei a protestar, mas ele balançou o dedo para mim e disse:

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— Lá vem você de novo. Para me chatear, eu não preciso de psiquiatra, posso arranjar isso em qualquer lugar.

— É um refl exo, Bob, não consigo evitar. É de deixar qualquer um maluco saber que você se expõe ao perigo desse jeito.

— Irv, você se lembra de quando saímos do almoço ontem, na delicatéssen, e fomos andando até o carro?

— Bem, eu me lembro do almoço. O que andar até o carro tem a ver com isso?

— Lembra que dobramos a esquina e fomos andando pela rua em direção ao carro?

— Certo. Certo. Eu o critiquei por andar o tempo inteiro no meio da rua e perguntei se não havia calçadas em Budapeste.

— Houve mais uma coisa.— Mais? O que mais? Ah, é. Depois eu sugeri que a rua dava a impressão de

ser mais segura do que a calçada por proporcionar uma visibilidade maior.— Bem, fui educado demais para dizer isso, mas você estava completamen-

te errado: era exatamente o inverso. Fiz aquilo porque era mais perigoso. Essa é a questão, é uma coisa que você nunca entendeu a meu respeito. Eu cresci no perigo. Ele está programado dentro de mim. Um pouco de perigo me acalma. Percebi, recentemente, que a sala de operações substituiu minha vida perigosa na Resistência. Na sala de cirurgia, eu convivia com o perigo e o enfrentava com operações cardíacas arriscadas, mas que salvavam vidas. Sempre foi o lu-gar em que eu me senti mais à vontade. Como o leite materno. — “Entendeu?”, perguntava a expressão de seu rosto.

— Sou apenas um operário da psicoterapia que cuida de pequenos ferimen-tos, não estou acostumado com esses casos extremos de perturbação mental.

— Na verdade — continuou Bob, ignorando meu comentário —, passei anos sem reconhecer que eu era diferente. Achava perfeitamente natural, para qualquer um cujo trabalho merece respeito, trabalhar em cirurgia cardíaca e participar do jogo de vida e morte: quem não se interessava por cirurgia car-díaca ou era incapaz de entrar nesse campo perdia o maior desafi o da vida. Só

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nos últimos anos liguei minha paixão por correr riscos a meu passado. Há uns 25 anos, a Universidade de Boston resolveu, além de conferir um título hono-rífi co, criar um programa acadêmico em meu nome, e produziu um material de divulgação sofi sticado em papel couché. Na capa, eu aparecia na sala de operações, cercado de assistentes, com toda a roupa e a parafernália cirúrgicas, e a legenda dizia: “Para salvar vidas impossíveis de ser salvas.” Durante décadas, considerei que essa legenda era só um truque de propaganda para angariar mais verbas. Só recentemente me dei conta de que a pessoa que cunhou aquela frase me conhecia melhor do que eu mesmo na época.

— Fiz você se desviar do assunto. Vamos voltar a Caracas. O que aconteceu quando a limusine o buscou de manhã?

— Além do fato de o motorista ter me cobrado mais do que devia, a ida para o aeroporto não teve nenhum incidente. Pedi que me deixasse na entrada prin-cipal, mas o homem me disse que eu fi caria mais perto do balcão do check-in se saltasse numa porta lateral. Quando entrei no terminal, o balcão da companhia aérea estava a uns 50 ou 60 metros à minha frente, e podia ver os passageiros passando pelo portão. Mal tinha dado alguns passos, um rapaz de calças cáqui e camisa branca de manga curta se aproximou e, falando um inglês razoável, pediu para ver minha passagem. Perguntei quem ele era, e o sujeito me disse que era um guarda. Quando pedi uma comprovação, ele tirou do bolso da camisa um cartão de plástico, escrito em espanhol e com sua fotografi a. Entre-guei-lhe a passagem. Ele a examinou com atenção e me perguntou se eu tinha dinheiro sufi ciente em espécie para pagar a taxa de embarque. “Quanto é?” “Sessenta mil bolívares (cerca de 20 dólares)”, ele disse.

“Respondi que tudo bem, e, quando o homem quis ver minha carteira com o dinheiro, tornei a lhe assegurar que eu tinha o bastante para a taxa de embarque. Então ele informou que meu voo estava atrasado e que eu deveria acompanhá-lo, subindo a escada à nossa frente para esperar em outro saguão. Disse que me ajudaria com a bagagem e segurou minha mala. Depois, pediu meu passaporte. Meu passaporte? Soou um alarme na minha cabeça. Meu pas-

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saporte era minha identidade, minha segurança, meu bilhete para a liberdade. Antes de obter a cidadania e o passaporte norte-americanos, eu era um judeu errante e sem nacionalidade. Sem passaporte, não poderia voltar para minha casa em Boston. Tornaria a ser um exilado.

“Havia alguma coisa gravemente errada, percebi, e liguei o piloto automático. Tirando o celular do cinto, olhei fi xamente para o sujeito, pus o dedo na ante-ninha que subia do lado direito e disse: ‘Isto aqui é um transmissor com ligação direta com a polícia. Devolva minha mala, senão eu aperto o botão. Vou chamar a polícia.’ O homem hesitou, e eu repeti: ‘Vou chamar a polícia’, e tornei a repetir, ainda mais alto: ‘Vou chamar a polícia.’ Ele hesitou por uns segundos e eu agarrei minha mala, arranquei-a da mão dele, comecei a gritar, não lembro direito o que, e corri para o portão de segurança. Virei a cabeça para trás por um segundo e vi o sujeito correndo tão depressa quanto eu na direção oposta. No portão de segurança, sem fôlego, contei ao funcionário o que tinha acabado de acontecer. Ele chamou a polícia imediatamente e, ao desligar o telefone, disse: ‘O senhor teve muita sorte, porque por pouco não foi sequestrado. Tivemos seis sequestros no aeroporto no mês passado, e nunca mais se teve notícia das vítimas.’”

Bob respirou fundo, bebeu um grande gole de spritzer, virou-se para mim e concluiu:

— Essa é a parte da história que acontece na Venezuela.— É uma história e tanto! — comentei. — Há outras partes?— Isso é só o começo. Passei um tempo sem conseguir registrar o que havia

acontecido. Não conseguia compreender: fi quei atordoado, quase tonto. Mas não sabia por quê.

— Escapar por pouco de um sequestro não é brincadeira, é o bastante para atordoar qualquer um.

— Não, como eu disse, isso foi só o começo. Escute só. Passei sem pro-blemas pela segurança, e ainda estava meio zonzo quando entrei na sala de embarque e me sentei. Abri uma revista, mas não consegui ler uma palavra. Esperei cerca de uma hora, com a cabeça rodando, e depois embarquei feito um sonâmbulo no voo para Miami.

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“Durante a escala de três horas feita lá, fi quei sentado em silêncio numa pol-trona confortável, bebericando uma Coca diet. Quando eu estava pegando no sono, aconteceu: uma coisa em que eu não pensava havia quase sessenta anos me voltou à lembrança. Foi meio esquiva, a princípio, mas eu a agarrei com força, procurando captar cada detalhe. Acabei focando um episódio ocorrido seis décadas atrás em Budapeste, quando eu tinha 15 anos. Fui inundado por uma profusão de imagens e revivi todos os pormenores. Ao embarcar no avião para Boston poucas horas depois, estava aliviado e quase livre da angústia.”

— Diga-me o que você viu. Conte-me tudo... não deixe nada de fora — pedi, num ato de amor e amizade.

Intuí que Bob fi caria aliviado por compartilhar essa experiência, embora eu temesse o que estava prestes a ouvir. Mas também compreendi que era hora de acompanhar meu amigo em seu pesadelo.

Bob terminou o spritzer num só gole e se recostou no sofá do bar. Fechou os olhos e começou seu relato:

— Eu tinha 15 anos. Havia fugido de uma fi la que os nazistas estavam le-vando do Gueto à estação ferroviária para ser deportada, e voltei a Budapeste, onde fi quei vivendo como cristão, com documentos falsos. Todos os meus familiares já tinham sido presos e deportados. Eu alugava um quarto com um amigo que tinha fugido da Tchecoslováquia para a Hungria em 1942. Ele vivia com documentos falsos havia algum tempo e entendia do assunto. Seu codinome era Paul. Não lembro que sobrenome ele usava e nunca soube seu nome verdadeiro. Ficamos muito amigos. Além das lembranças, tenho uma velha foto dele ampliada, cheia de marcas de dobras, na escrivaninha do escritório. Tive outro amigo íntimo, Miklos, que tinha sido morto pelos nyilas alguns meses antes...

— Lembro-me de você ter falado do seu amigo Miklos, que foi pego e fuzi-lado pelos nazistas. Mas não conheço essa palavra, nyilas...

— Os nyilas eram os nazistas húngaros. Eram verdadeiros bárbaros, uma milícia de bandidos armados que circulava pelas ruas, capturando judeus e ma-tando-os na mesma hora, ou levando-os para as casas do partido, para serem

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torturados e mortos. Eram mais perversos com os judeus que os alemães ou a polícia húngara. Nyilas vem da palavra húngara correspondente a “fl echa”. O emblema deles eram duas fl echas cruzadas, bem parecido com a suástica.

“Paul e eu éramos muito amigos. Quando soubemos de um levante de judeus contra os nazistas na Eslováquia, resolvemos entrar para a Resistência de lá. Como eu não falava eslovaco, ele achou melhor ir na frente para sondar a situação. Se as perspectivas lhe parecessem boas, encontraria um canal clan-destino e voltaria a Budapeste para me buscar. Fui com ele à principal estação ferroviária da capital e, quando o trem partiu, eu tinha certeza de que tornaria a vê-lo dali a umas duas semanas. Só que nunca mais o vi. Procurei notícias de Paul depois da guerra, mas não consegui encontrar o menor vestígio. Tenho certeza de que os nazistas o mataram.

“Eu tinha diversas incumbências na Resistência e fazia o melhor possível quando surgia a oportunidade. Na verdade, fi quei muito bom em falsifi car documentos para judeus que queriam se passar por cristãos. Ganhava a vida fazendo o que sabia fazer, como um offi ce boy para todo tipo de tarefa numa pequena fábrica que produzia remédios para o Exército húngaro.

“Daí a lembrança que me voltou na semana passada, no terminal aéreo de Miami. Eu tinha 15 anos; uma manhã, estava atrasado, correndo para o traba-lho, quando vi do outro lado da rua um daqueles facínoras nyilas, de capacete do Exército, cinturão militar, uma pistola no coldre e a braçadeira dos nyilas, com as duas fl echas negras cruzadas, apontando uma submetralhadora para um pobre casal de judeus idosos que se arrastavam pouco mais de um metro à

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frente dele. Os judeus, provavelmente na casa dos 60 anos, usavam no lado es-querdo do peito aquela estrela amarela obrigatória, que media uns 10 centíme-tros. Era óbvio que o velho tinha sido espancado, provavelmente poucos minu-tos antes: o rosto estava tão inchado e pálido que mal dava para ver seus olhos. O nariz também estava inchado, todo roxo e vermelho, torto para um lado e sangrando. Filetes de sangue vermelho vivo desciam da cabeleira grisalha para a testa e lhe escorriam pelo rosto. As orelhas estavam grandes, ver melhas e machucadas. A mulher chorava enquanto andava ao lado dele. Cheguei a vê-la virar para trás e implorar ao bandido, mas ele apenas empurrou seu rosto com o cano da arma.

“Lembre-se de que isso não era nada incomum naquela época. Sei que é difícil se acostumar com a ideia, mas essa era uma cena usual em toda a cidade, acontecia muitas vezes por dia. Os judeus eram capturados na rua com frequên-cia e, em alguns casos, fuzilados ali mesmo. Os corpos fi cavam um ou dois dias na calçada até serem recolhidos. Sem dúvida, aquele casal estava sendo levado

diz a inscrição da placa: “Em memória das vítimas baleadas e lançadas no Danúbio por milicianos da cruz de fl echas em 1944-1945. Monumento erguido em 16 de abril de 2005.”

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para uma das casas do partido dos nyilas, onde seria interrogado, torturado e fuzilado com um tiro na cabeça ou enforcado com uma corda de piano presa a um gancho no teto. Ou, então, alvejado e afogado, um dos métodos favoritos dos algozes. Os nyilas faziam grupos de judeus marcharem até as margens do Danúbio, atiravam neles e os jogavam no rio gelado. Às vezes, amarravam jun-tos três judeus e atiravam em apenas um, mas todos eram lançados na água. Os outros dois morriam afogados ou congelados.”

Tive um calafrio involuntário e a premonição de que aquela visão dos três corpos amarrados, debatendo-se no rio congelado, irromperia em meus so-nhos durante a noite. Mas não disse nada.

Bob notou o calafrio e desviou os olhos.— A gente se acostuma, Irv; é difícil acreditar, mas a gente se acostuma.

Hoje em dia, nem eu consigo acreditar que em algum momento aquilo aconte-ceu, mas, na verdade, houve época em que isso acontecia diariamente. Assisti a vários desses fuzilamentos em massa e sabia que, mesmo que os tiros não fossem fatais, as vítimas não teriam como escapar da morte depois de serem lançadas na água gelada.

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“Sempre havia guardas nyilas atrás e na frente das fi las de judeus condu-zidas pelas ruas de Budapeste. Às vezes, principalmente à noite, depois que escurecia, um soldado da Resistência os seguia (eu mesmo fi z isso algumas vezes) e atirava uma granada nos guardas, na esperança de matar aqueles nyilas safados. É claro que a granada também matava judeus, mas esses morreriam logo, de qualquer jeito, e, na confusão, de vez em quando uns conseguiam es-capar. Essas lembranças do meu trabalho na Resistência nunca me saíram da cabeça. Sei que você está horrorizado por ouvir isso, mas quero que saiba que essas foram as maiores experiências da minha vida.

“Outra das minhas tarefas no grupo da Resistência sionista era seguir os ju-deus conduzidos pelos nyilas e anotar o endereço da casa do partido para a qual eles eram levados. Essas casas estavam espalhadas por toda a cidade, e, quando as informações de um grande número de espiões como eu indicavam a presença de uma porção de judeus detidos numa determinada casa, às vezes esse lugar era atacado durante a noite. Jovens judeus da Resistência passavam de motocicleta pela casa do partido, atiravam granadas de mão e dispara vam rajadas de sub-metralhadora.

“Embora costumássemos mirar nos andares superiores dos prédios e os prisioneiros fi cassem no porão, sabíamos que alguns deles morreriam, mas ti-rávamos essa ideia da cabeça; os prisioneiros judeus estavam perdidos mesmo. Apenas tentávamos matar os nazistas. Ao mesmo tempo, torcíamos para que a confusão criada pelos ataques permitisse a fuga de alguns judeus. De modo ge-ral, tenho certeza de que nossos ataques esporádicos não eram muito efi cazes, mas pelo menos fazíamos o que podíamos, e os nyilas sabiam que não podiam matar judeus e fi car totalmente impunes; queríamos que eles soubessem que também corriam perigo.

“Mais detalhes foram me voltando à cabeça. Lembro-me de ter demorado a reagir ao ver o velho espancado e a mulher dele chorando. Embora eu só tenha parado e olhado perplexo por um instante, provavelmente não mais de três ou quatro segundos, o guarda dos nyilas me viu e, do outro lado da rua, apontou a arma para mim e gritou: ‘Você aí, venha cá!’

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“Atravessei a rua, tentando aparentar descontração. Enfrentar situações difíceis e risco de morte fazia parte do meu dia a dia, e eu sabia como reagir. Por dentro, fi quei apavorado, mas não podia me dar ao luxo de deixar o medo me dominar: tinha que me concentrar num jeito de sair daquela situação. Na época, a gente precisava andar com um maço de documentos de identidade, e, embora os meus fossem falsos, eram benfeitos e pareciam autênticos. O guarda me perguntou se eu era judeu. Respondi que não e lhe mostrei um documento atrás do outro. Ele me perguntou onde eu morava e com quem. Quando eu disse que morava numa pensão, a desconfi ança do homem pareceu aumentar, e ele me perguntou por quê. Expliquei que trabalhava numa fábrica que produzia remédios para o Exército, para sustentar minha mãe e minha avó, ambas viúvas e pobres, que moravam no interior. E disse também que meu pai tinha sido um soldado húngaro morto na frente russa quando lutava contra os comunistas. Mas nada disso teve o menor impacto no canalha, de quem obtive apenas uma resposta seca: ‘Você tem cara de judeu.’ Depois, ele me apontou o revólver e rosnou: ‘Fique do lado dos outros dois judeus e trate de ir andando.’”

Minha ansiedade aumentava cada vez mais. Bob me viu virando a cabeça de um lado para o outro e mexeu o queixo, com ar intrigado.

— Isso tudo é um horror, Bob. Eu estou acompanhando, estou escutando cada palavra. Mas mal posso suportar. Minha vida tem sido tão segura, tão... tão tranquila, tão livre de ameaças...

— Você deve lembrar que eu convivia diariamente com esses encontros inesperados. Enquanto andava ao lado do casal de judeus, percebi que eu estava numa grande encrenca. Mas não era só isso. De repente, percebi que algo no meu bolso podia ser realmente perigoso: três carimbos de borracha ofi ciais do governo húngaro. Eu os havia roubado na véspera, de uma loja que fazia esses carimbos, e planejava encontrar meus companheiros da Resistência à noite para falsifi car documentos, permitindo que judeus assumissem uma identidade cristã. Era uma estupidez, uma estupidez danada, passar um dia in-teiro carregando comigo uma coisa incriminadora como aquela, mas eu estava

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decidido a fazer o que tinha que ser feito naquela noite. Todos nós vivíamos no limite o tempo todo.

“Portanto, esse é que era realmente o grande problema. Eu sabia que seria revistado e, quando achassem aqueles carimbos comigo, não teria a menor chance. Nenhuma chance. Eles me acusariam de ser espião ou de pertencer à Resistência, e me torturariam para obter informações sobre ela: endereços, nomes de meus companheiros. Depois da tortura, me matariam a tiros ou me enforcariam. E também senti medo de não resistir e dar com a língua nos den-tes. Tinha que me livrar daqueles carimbos.

“Por sorte eu levava uma cartas comerciais autênticas, endereçadas pela mi-nha fábrica ao quartel-general do Exército, que me haviam sido entregues para pôr no correio. Enquanto continuávamos nossa caminhada forçada, vi uma cai-xa de correio do outro lado da rua e compreendi que aquela era a minha grande oportunidade e que não podia perdê-la. Tirei da pasta as cartas dirigidas ao Exército húngaro, mostrei-as ao guarda dos nyilas e disse que meu patrão tinha mandado despachá-las naquele dia, pois continham instruções sobre a dosagem dos medicamentos que estavam sendo enviados para a frente russa.

“Disse ao nazista que tinha que pôr as duas cartas na caixa de correio do outro lado da rua. Ele baixou a arma, examinou-as com atenção e balançou a cabeça em sinal de concordância, mas me alertou a não tentar fazer nenhuma gracinha. Enquanto atravessava a rua em direção à caixa, tirei do bolso os ca-rimbos (graças a Deus, eu só estava com as almofadas de borracha, não com os cabos de madeira) e os enfi ei entre as cartas, levantei a tampa da caixa e joguei tudo no recipiente de metal. Senti um enorme alívio: tinha me livrado de uma tremenda prova incriminadora. Agora, só precisava me safar, convencendo aquele animal de que eu não era judeu. Sempre havia a possibilidade de que ele arriasse minhas calças para ver se eu era circuncidado. Como disse, eu sabia que não teria a menor chance se eles vissem os carimbos, mas também sabia que, se me levassem para uma das casas do partido, eu teria menos de 5% de probabi-lidade de sobreviver.”

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Não consegui fi car calado. Estava tão tenso, com o coração batendo tão forte, que tinha que dizer algo, qualquer coisa.

— Bob, não consigo imaginar como você fez isso, como passou por isso e fez o que fez na sua vida. O que você sentia no íntimo? Se eu me imaginar na sua situação, aos 15 anos, tendo que lidar com a morte quase certa... quer dizer, nem consigo imaginar. Durante a adolescência, meu maior trauma era não ter uma garota com quem sair na noite do Ano-novo. É ridículo. Não sei como você pôde enfrentar a morte desse jeito... Sabe, hoje eu sou capaz de lidar com a ideia de morte; tenho 76 anos, vivi bem, realizei tudo o que havia de promissor em mim. Estou preparado. Mas, naquela época, aos 15 anos... as poucas vezes em que me lembro de ter pensado na morte naqueles tempos... foi muito rapidamente — como se um alçapão se abrisse sob os meus pés... terrível demais para supor-tar. Acho que não há nenhum mistério na origem dos seus pavores noturnos e dos seus pesadelos. Fico apavorado só de ouvir como foi sua vida na juventude, e é provável que eu sonhe esta noite com a sua experiência.

Bob me deu um tapinha no ombro. Imagine, ele teve que me consolar.— A gente se acostuma. Lembre-se de que dessa vez eu escapei por um triz.

Uma em muitas. Acho que somos capazes de nos acostumar até com a pers-pectiva esmagadora da morte. E, também, procure se lembrar de que eu estava preocupado demais com a sobrevivência para pensar em morrer. Só em sobre-viver. Se eu me permitisse sentir isso naquela ocasião, ou mesmo nos vinte anos seguintes, teria sido demais. Está pronto para ouvir o resto?

Procurei disfarçar a tremedeira e fi z que sim com a cabeça:— É claro.Agora que Bob fi nalmente me deu o privilégio de conhecer seus segredos,

eu estava decidido a nunca mais fazer com que ele se fechasse.— Depois de andarmos mais uns dez ou quinze minutos, vi um policial

húngaro dobrar a esquina e vir andando em nossa direção. Eu estava desespe-rado e, no instante em que o vi, devo ter dito a mim mesmo: essa é minha chan-ce, é minha única chance de escapar, e pensei: Vou chamar aquele policial.

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“Chamei-o: ‘Policial, policial, por favor, eu queria falar com o senhor. Eu esta-va indo para o trabalho e este homem me deteve e não quer me deixar ir embora. Está me levando para algum lugar. Ele diz que sou judeu, mas não sou. Detesto judeus e tenho documentos para provar que sou cristão. Se ele não me soltar, vou perder o pagamento do dia inteiro, e não vou poder mandar dinheiro para minha mãe e minha avó, que são viúvas. Eis aqui, por favor, examine os meus documen-tos. Eu sou cristão. Estes papéis vão lhe mostrar isso, e o senhor me deixará ir trabalhar’, e lhe estendi a mão, mostrando-lhe os documentos de identidade.

“Quando o policial perguntou qual era o problema, o assassino do nyilas rosnou: ‘Ele é judeu. Vou cuidar dele e desses outros dois judeus.’ ‘Não, aqui você não vai, não’, bradou o policial. ‘Esta rua faz parte da minha patrulha. Eu resolvo isso.’ Os dois tiveram uma breve discussão, até que o policial perdeu a paciência, sacou a pistola e repetiu: ‘Esta área é minha. Sou eu quem está pa-trulhando, e vou levar esse garoto para a delegacia.’

“O nyilas fi cou surpreendentemente inseguro, e disse que me deixaria sob a custódia do policial, mas que verifi caria na delegacia se eu tinha sido levado para lá. Depois, saiu andando, empurrando o casal idoso pelo meio da rua. O policial, ainda com a pistola em punho, me mandou caminhar na frente dele. Virei-me para dar uma última olhada no casal judeu condenado. Eu não podia fazer nada por eles.

“Havia bastante rivalidade entre os nyilas e a polícia, porque a polícia achava que eles não eram profi ssionais, e sim um bando de criminosos que usurpava os poderes legítimos dos policiais. Confrontos como o que eu tinha provocado entre o policial e o nyilas não eram raros.”

Bob virou-se para me encarar — até aquele momento, havia contado sua história de olhos fechados, ou então contemplando a distância, como se so-nhasse. Estava com as pupilas enormes, e pela primeira vez olhei-as de frente; passados alguns segundos, instiguei-o:

— E depois?— O policial e eu começamos a andar; passado um quarteirão, ele repôs a

arma no coldre. Não fez nenhuma pergunta, e eu permaneci calado. Depois de

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andarmos mais alguns quarteirões, ele olhou em volta e disse: “Suma daqui e vá para o seu trabalho.” Agradeci-lhe e disse que eu era um patriota húngaro e que minha mãe lhe fi caria grata. Fui andando cada vez mais depressa, sem olhar para trás. Depois que virei a esquina e saí do seu campo de visão, quase saí correndo, e, quando um bonde que passava diminuiu a velocidade, pulei para dentro dele. Estava convencido de que havia alguém me seguindo. Avistei um policial nos fundos do vagão e fui me esgueirando de mansinho para a frente. Depois de mais uns quarteirões, o bonde tornou a reduzir a velocidade, e eu saltei e fui a pé para o trabalho, dando voltas, para ter certeza de que não havia ninguém atrás de mim. Quando cheguei na fábrica em que trabalhava, o patrão quis saber a razão do meu atraso. Pareceu satisfeito quando lhe expliquei que as ruas por onde eu costumava passar estavam fechadas, por causa dos destroços produzidos pelo bombardeio da noite anterior.

“E é essa a história.” Bob chegou para a frente no assento do sofá e me en-carou de novo. “O que acha? É isso que você chama de recalque, não é? Meio século de esquecimento?”

— Sem dúvida alguma — respondi. — É o exemplo mais claro de recalque e recuperação de que já tive notícia. Deveríamos descrevê-lo para uma revista de psicanálíse.

— Então talvez o seu Freud soubesse do que estava falando. Você sabia que Freud era um dos nossos? Era quase húngaro: seu pai era da Morávia, e toda aquela região fazia parte do Império Austro-Húngaro.

— Para mim, o que há de particularmente interessante é a associação de ideias que lhe permitiu arrancar isso das profundezas em que estava guardado. A frase “vou chamar a polícia” foi a ligação: salvou sua vida na semana passada, com o sequestrador na Venezuela, como também quando você tinha 15 anos. Diga-me, Bob, por que o policial húngaro o liberou?

— É, boychik,* está aí uma boa pergunta. Fiquei obcecado com ela durante algum tempo, mas depois a vida continuou. Fiz muitas perguntas a mim mes-

* Termo coloquial formado com o sufi xo diminutivo iídiche – chik, com o signifi cado de “garoti-

nho”, “parceirinho”, “rapazinho” etc. (N. dos T.)

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mo: “Será que ele sabia que eu era judeu? Será que foi um cara decente que quis praticar um ato digno? Será que me ofereceu a minha vida por espírito de generosidade? Ou simplesmente não teve vontade de desperdiçar seu tempo com uma coisa tão insignifi cante como eu? Será que tive alguma importância mesmo, ou fui só um incidente, um simples benefi ciário sortudo do ódio que ele sentia pelos nyilas?” Jamais saberei.

— E aconteceu mais alguma coisa? O que houve nesta semana desde que você voltou?

— Assim que aterrissei, fui direto do aeroporto para meu consultório em Boston (não há diferença de fuso horário entre Boston e Caracas), e não contei nada a meus colegas, porque um quase sequestro poderia assustar o grupo e impedi-lo de montar o teste de medicamentos na Venezuela. Nas próximas duas semanas, tenho mais meia dúzia de cidades para visitar.

— Isso é loucura, Bob. O que você está fazendo? Está se matando. Você tem 77 anos. Fico exausto só de saber da sua agenda.

— Sei que essa nova técnica pode fazer diferença para pessoas que sofrem terrivelmente de enfi sema, lutando para respirar e se asfi xiando lentamente até morrer. Gosto do que estou fazendo. O que poderia ser mais importante?

— Bob, a letra é diferente, mas a melodia é a mesma. Quando você estava operando, é provável que tenha feito mais cirurgias cardíacas do que qualquer outro cirurgião no mundo. Dia e noite, sete dias por semana. Tudo em excesso, tudo sem moderação.

— E que espécie de amigo “psi” é você? Por que não me impediu?— Tentei o máximo que pude. Lembro-me de ter falado com você, de ter

censurado, gritado, advertido, tentado convencê-lo, até o dia em que você me deu uma resposta que me deteve. Nunca mais a esqueci.

Bob levantou os olhos.— O que eu disse?— Você se esqueceu? Bom, estávamos falando sobre as razões de você

passar uma parte tão grande da vida na sala de operações. A ideia principal que lhe coloquei foi que, lá, você tinha o controle completo da situação. Isso

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neutralizava a sensação de desamparo que você havia experimentado ao ver sua família e seus amigos desaparecerem. Apesar de ter tido momentos esti-mulantes na Resistência, na maior parte do tempo você se sentia impotente, como milhões de judeus. Acima de tudo, tinha que sobreviver. Desde então, tornou-se insaciavelmente ativo. Você salvava vidas. Na sala de operações, você controlava quase tudo.

“Foi o meu melhor palpite. Mas aí, um dia, você me contou uma coisa dife-rente. Lembro a hora e o lugar com muita clareza. Estávamos na sua casa, você estava sentado embaixo daquele enorme quadro a crayon de uma montanha de corpos nus e retorcidos. Era onde sempre gostava de se sentar. Parecia fi car à vontade. Eu detestava aquele quadro e fi cava tenso quando o via, querendo ir para outro cômodo. E foi lá que você me contou como só se sentia realmente vivo quando segurava nas mãos o coração pulsante de outro ser humano. Aqui-lo me silenciou por completo. Fiquei sem resposta.

— Como assim “sem resposta”? Isso não é do seu feitio.— O que eu poderia dizer? Na verdade, você estava me informando que,

de fato, para se sentir vivo, precisava permanecer naquela membrana fi níssima entre a vida e a morte. Entendi que você precisava desse perigo, dessa situação crítica, para superar a sensação de apatia, de morte, que trazia dentro de si. Fiquei, mais do que nunca, impressionado com o horror que você vivenciou. Eu não conhecia nenhum recurso para isso. Não sabia o que dizer. Como eu poderia lutar com palavras contra a apatia? Acho que tentei fazê-lo com atos. Passamos inúmeras horas agradáveis juntos, fi zemos uma porção de coisas, você e eu e, mais tarde, também nossas mulheres e fi lhos, nossas viagens jun-tos. Mas será que aquilo era real para você? Real como sua outra vida, a no-turna? Ou seria algo efêmero que mal causava impressão em você? Bob, eu sei que, se tivesse passado pelo que você passou, eu teria morrido, ou me sentiria como se estivesse morto. Provavelmente, também quereria segurar nas mãos um coração palpitante.

Bob pareceu emocionado:

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— Entendo o que você diz, não pense que não entendo. Sei que você acha que eu luto contra o meu desamparo, contra o desamparo de todos os judeus, ciganos ou comunistas que enfrentaram as armas ou marcharam para as câ-maras de gás. Você tem razão, eu volto a me sentir potente quando trabalho, quando assumo o controle de todo o ambiente na sala de cirurgia. E sei que preciso do perigo, desse equilíbrio no fi o que separa a vida e a morte. Com-preendi tudo, todas as suas palavras, todas as suas ações. Mas há uma outra parte, talvez uma parte ainda maior, da qual você ainda não sabe. Uma parte que está prestes a conhecer. Esse pedaço só existe na minha segunda vida, na minha vida noturna. E apareceu no meu sonho.

Levantei os olhos, surpreso:— O quê? Você vai me contar um sonho? Isso é novidade!— Considere-o um presente de aniversário dos cinquenta anos de forma-

tura. Se você tirar boa nota na interpretação, eu lhe conto outro no aniversário de 75 anos. Os meus sonhos... eles quase sempre tratam de um destes dois assuntos: o Holocausto ou a sala de cirurgia. É uma coisa ou outra e, às vezes, as duas se fundem numa só. E, de algum modo, por mais horríveis, brutais e sangrentos que sejam, esses sonhos me deixam recomeçar o dia seguinte como se praticamente nada tivesse acontecido. Funcionam como uma espé-cie de válvula de escape, um turbilhão que passa e desanuvia as lembranças tenebrosas.

“Então, voltando à semana passada, ao dia que começou com o quase se-questro em Caracas. Cheguei em casa e não falei com ninguém sobre o que tinha acontecido. Estava exausto, cansado demais para comer, peguei no sono antes das nove horas e tive um sonho muito marcante. Talvez eu o tenha sonha-do para você: um presente para o meu amigo “psi”. Foi assim:

Era o meio da madrugada. Eu estava na sala de espera de um pronto--socorro parecido com o do Hospital Municipal de Boston, onde passei muitas noites ao longo de muitos anos. Olhei para os pacientes que aguardavam para ser atendidos. Chamou minha atenção um velho

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sentado num banco, com uma estrela de davi amarela, um amarelo vivo, no paletó. Pensei reconhecê-lo, mas não tive muita certeza de quem era.

Depois, eu me vi no vestiário do centro cirúrgico, tentando trocar a roupa pelas calças e o jaleco esterilizados. Não consegui encontrar a roupa de cirurgia em parte alguma e, por isso, entrei correndo na sala de operação com o pijama listrado que estava usando por baixo do terno. As listras eram azuis e cinzentas — sim, como o uniforme dos campos de concentração.

A sala de cirurgia estava deserta, sinistra: nada de enfermeiras, auxiliares ou técnicos, não havia anestesista, nenhuma mesa coberta por panos azuis e repleta de instrumentos cirúrgicos cuidadosamente alinhados, nem o que era o mais importante para o meu trabalho: uma máquina (coração-pulmão artifi cial). Senti-me sozinho, perdido, deses-perado. Olhei em volta. As paredes da sala de cirurgia estavam cobertas por malas velhas de couro amarelado, amontoadas em fi leiras de um canto a outro e em pilhas que iam do chão ao teto. Não havia janelas — na verdade, não havia espaço nas paredes nem mesmo para o visor de radiografi as —, não havia nada além de malas, como a carregada pelo velho judeu em Budapeste, andando à frente do nyilas truculento que apontava a metralhadora.

Na mesa de operação vi um homem nu, que se debatia em silêncio. Aproximei-me dele. Parecia conhecido. Era o mesmo homem que eu tinha visto no pronto-socorro. Então percebi que ele era o homem espancado e condenado que eu tinha visto com sua mala naquela rua de Budapeste. Nesse momento, ele estava perdendo sangue por duas perfurações à bala que atravessavam uma estrela de davi amarela costurada no peito nu. Ele precisava de cuidado imediato. E eu estava completamente sozinho, sem ninguém para me ajudar e sem instrumentos cirúrgicos. O homem gemeu. Estava morrendo, e eu tinha que abrir seu peito para chegar ao coração e conter a hemorragia. Mas não tinha um bisturi.

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Em seguida, vi o peito do homem, totalmente aberto. No meio da incisão, o coração dele estava mole, com os batimentos fracos. Cada batimento fazia esguichar jatos de sangue dos dois buracos de bala da parede frontal do coração. O sangue, de um vermelho vivo, borrifava no vidro da lâmpada da mesa de cirurgia, produzindo um borrão vermelho na luz forte e pingando de novo no peito nu do homem. Os buracos no coração tinham que ser fechados, mas eu não tinha retalhos cirúrgicos de Dacron para fazer isso.

Então, de repente, eu estava com uma tesoura na mão direita, e recortei um retalho circular da calça do meu pijama listrado. Cos-turei-o no coração para tampar um dos buracos. O sangramento estancou. O coração se encheu de sangue e os batimentos fi caram mais vigorosos. Mas aí o segundo orifício aberto começou a lançar verdadeiros gêiseres de sangue. Os batimentos fi caram lentos e os jatos de sangue foram diminuindo; já não atingiam a lâmpada, mas caíam nas minhas mãos enquanto eu trabalhava. Pus uma das mãos no orifício e cortei um segundo retalho circular do pijama listrado. Costurei-o na borda do segundo buraco no coração.

O sangramento estancou de novo, mas, passado pouco tempo, o coração se esvaziou e os batimentos fi caram fracos, até cessarem por completo. Tentei massagear o coração, mas minhas mãos não se mexiam. A essa altura, várias pessoas entraram na sala de cirurgia, que parecia mais um tribunal. Todos me olhavam com ar acusatório.

— Acordei suando. Os lençóis e o travesseiro estavam encharcados, e me peguei pensando: “Se tivesse conseguido massagear o coração dele, eu poderia ter salvado sua vida.” Aí, despertei de vez, percebi que fora tudo um pesadelo e me senti menos oprimido. Mesmo acordado, porém, continuei repetindo baixinho para mim mesmo: “Ah, se eu tivesse conseguido salvar a vida dele...”

— Se você tivesse conseguido salvar a vida dele, aí... então... Continue, Bob.

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— Mas eu não podia salvar a vida dele. Não havia instrumentos. Nem mes-mo um retalho ou uma sutura. Eu não podia.

— Certo, você não podia salvá-lo. Não estava equipado para salvá-lo na sala de cirurgia. E não estava equipado, aos 15 anos, quando era um menino aterrorizado que mal conseguiu salvar a própria pele naquele dia. Acho que aí está a chave do sonho. Você não podia ter feito outra coisa. Mas, ainda assim, toda noite se submete a um julgamento e se declara culpado, e passou a vida inteira expiando essa culpa. Faz muito tempo que eu o observo, Robert Berger, e cheguei a um veredicto.

Bob levantou os olhos. Eu atraíra sua atenção.— Eu o declaro inocente.Por uma vez na vida, ele pareceu fi car sem fala.Levantei-me, apontei o indicador para ele e repeti:— Eu o declaro inocente.— Não sei direito se o Meritíssimo levou em conta todas as provas. O sonho

não diz que eu poderia tê-lo salvado, sacrifi cando a mim mesmo? No sonho, eu corto minha roupa para salvá-lo, mas sessenta anos atrás nas ruas de Budapeste, não pensei duas vezes no velho e em sua mulher. Só tentei salvar minha pele.

— Mas, Bob, o sonho responde à sua pergunta. Explicitamente. No sonho, você dá tudo o que tem, chega a cortar a própria roupa, e, ainda assim, não é o sufi ciente. O coração dele parou de qualquer jeito.

— Eu podia ter feito alguma coisa.— Escute o seu sonho: a verdade dele vem do seu coração. Você não podia

salvá-lo. Tampouco salvar os outros. Nem naquela época nem agora. Você é inocente, Bob.

Ele concordou, mexendo a cabeça devagar, passou algum tempo calado, depois consultou o relógio:

— Onze horas. Já passou muito da minha hora de dormir. Estou começan-do a cair de sono. Qual é o preço da sua consulta?

— É astronômico. Vou precisar da calculadora para fazer as contas.

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VOU CHAMAR A POLÍCIA36

— Seja qual for, vou submetê-lo ao júri da madrugada. Pode ser que os ju-rados lhe concedam sua aprovação, ou, quem sabe, um pãozinho com salmão defumado no café da manhã.

Bob virou-se, olhou-me diretamente nos olhos e nos abraçamos; o abraço mais demorado desde que nos conhecemos. Depois, cada um se arrastou len-tamente para sua noite de sonhos.

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N esta coletânea de tex-tos, Irvin Yalom ofere-ce aos leitores que ao

longo dos últimos anos se torna-ram seguidores apaixonados deseus romances e ensaios os basti-dores do processo criativo.

Yalom conta, em meio a con-fissões acerca de sua intimidade,os passos que o levaram à concep-ção e à construção da trama queresultou no célebre Quando Nietzschechorou, revela quem foi o psicana-lista que o inspirou na discussãodos desafios fundamentais da te-rapia em Mentiras no divã e expõe assoluções que encontrou na litera-tura para desatar os impasses pro-vocados por pacientes desconfiadose refratários à psicoterapia.

No texto que dá título ao livro,o inédito e surpreendente “Vouchamar a polícia”, somos brindadoscom uma história desconcertante,que enriquece a compreensão doscaminhos tortuosos que desenhamo mapa da nossa vida psíquica.

Retomando algumas das suaspropostas essenciais, Yalom discutea posição do terapeuta, sua sinceri-dade, a exposição de seus própriossentimentos, os limites de seu en-volvimento com os pacientes e osbenefícios de analisar, em conjuntocom o paciente, os resultados decada sessão de terapia.YalomIr

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D. Do mesmo autor de

Quando Nietzsche chorou

Vou chamar a políciae outras históriasde terapia e literatura

i r v i n d. ya l o m nasceu em1931, em Washington, d.c. Seuspais eram imigrantes russos que seestabeleceram nos Estados Unidosem busca de uma vida melhor. Des-de criança, Yalom demonstrava pro-fundo interesse pelos livros. Talveztenha vindo daí sua paixão pelaescrita e a vontade de transformarem narrativa o precioso materialque seu trabalho como psiquiatralhe daria. Atualmente é professoremérito de Psiquiatria na Uni-versidade de Stanford. No Brasilforam publicados, de sua autoria,Quando Nietzsche chorou, A cura deSchopenhauer, Mentiras no divã, Os desa-fios da terapia, O carrasco do amor, Mamãee o sentido da vida e De frente para o sol.

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A os que o conhecem, os capítulos que se seguemservirão como um roteiro revelador do cenárioe das motivações que levaram Yalom a compor suas

histórias e a escrever seus livros de orientação paraterapeutas. Para aqueles que o leem pela primeira vez, ostextos representarão um convite irresistível à descoberta dasmúltiplas vertentes da obra desse autor incomum.”

(do prefácio de Paulo Schiller)

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