Voulme XXVII

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO) CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE PRIMEIRA VERSÃO ANO VIII, Nº 245 - SETEMBRO - PORTO VELHO, 2009. Volume XXVII - Set/Dez. ISSN 1517-5421 EDITOR NILSON SANTOS CONSELHO EDITORIAL ALBERTO LINS CALDAS – História - UFRO CLODOMIR S. DE MORAIS – Sociologia - IATTERMUND ARTUR MORETTI – Física - UFRO CELSO FERRAREZI – Letras - UFRO HEINZ DIETER HEIDEMANN – Geografia - USP JOSÉ C. SEBE BOM MEIHY – História – USP MARIO COZZUOL – Biologia – PUC-RGS MIGUEL NENEVÉ – Letras - UFRO ROMUALDO DIAS – Educação - UNICAMP VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia - UFSC Os textos no mínimo 3 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows” deverão ser encaminhados para e-mail: [email protected] CAIXA POSTAL 775 CEP: 78.900-970 PORTO VELHO-RO TIRAGEM 200 EXEMPLARES EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA 245 EDUCAÇÃO APÓS AUSCHWITZ Theodor Adorno PRIMEIRA VERSÃO ISSN 1517-5421 lathé biosa

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Volume XXVII do Primeira Versão (Setembro/Dezembro de 2009)

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO

ANO VIII, Nº 245 - SETEMBRO - PORTO VELHO, 2009. Volume XXVII - Set/Dez.

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL ALBERTO LINS CALDAS – História - UFRO

CLODOMIR S. DE MORAIS – Sociologia - IATTERMUND ARTUR MORETTI – Física - UFRO

CELSO FERRAREZI – Letras - UFRO HEINZ DIETER HEIDEMANN – Geografia - USP JOSÉ C. SEBE BOM MEIHY – História – USP

MARIO COZZUOL – Biologia – PUC-RGS MIGUEL NENEVÉ – Letras - UFRO

ROMUALDO DIAS – Educação - UNICAMP VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia - UFSC

Os textos no mínimo 3 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for

Windows” deverão ser encaminhados para e-mail:

[email protected]

CAIXA POSTAL 775 CEP: 78.900-970 PORTO VELHO-RO

TIRAGEM 200 EXEMPLARES EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

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EDUCAÇÃO APÓS AUSCHWITZ

Theodor Adorno

PRIMEIRA VERSÃO ISSN 1517-5421 lathé biosa

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EDUCAÇÃO APÓS AUSCHWITZ

Theodor Adorno

A exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação. De tal modo ela precede quaisquer outras que creio não ser possível nem

necessário justificá-la. Não consigo entender como até hoje mereceu tão pouca atenção. Justificá-la teria algo de monstruoso em vista de toda monstruosidade

ocorrida. Mas a pouca consciência existente em relação a essa exigência e as questões que ela levanta provam que a monstruosidade não calou fundo nas pessoas,

sintoma da persistência da possibilidade de que se repita no que depender do estado de consciência e de inconsciência das pessoas. Qualquer debate acerca de metas

educacionais carece de significado e importância frente a essa meta: que Auschwitz não se repita. Ela foi a barbárie contra a qual se dirige toda a educação. Fala-se

da ameaça de uma regressão à barbárie. Mas não se trata de uma ameaça, pois Auschwitz foi a regressão; a barbárie continuará existindo enquanto persistirem no

que têm de fundamental as condições que geram esta regressão. E isto que apavora. Apesar da não-visibilidade atual dos infortúnios, a pressão social continua se

impondo. Ela impele as pessoas em direção ao que é indescritível e que, nos termos da história mundial, culminaria em Auschwitz. Dentre os conhecimentos

proporcionados por Freud, efetivamente relacionados inclusive à cultura e à sociologia, um dos mais perspicazes parece-me ser aquele de que a civilização, por seu

turno, origina e fortalece progressivamente o que é anticivilizatório. Justamente no que diz respeito a Auschwitz, os seus ensaios O mal-estar na cultura e Psicologia

de massas e análise do eu mereceriam a mais ampla divulgação. Se a barbárie encontra-se no próprio principio civilizatório, então pretender se opor a isso tem algo

de desesperador.

A reflexão a respeito de como evitar a repetição de Auschwitz é obscurecida pelo fato de precisarmos nos conscientizar desse elemento desesperador, se não

quisermos cair presas da retórica idealista. Mesmo assim é preciso tentar, inclusive porque tanto a estrutura básica da sociedade como os seus membros, responsáveis

por termos chegado onde estamos, não mudaram nesses vinte e cinco anos. Milhões de pessoas inocentes ---- e só o simples fato de citar números já é humanamente

indigno, quanto mais discutir quantidades —foram assassinadas de uma maneira planejada. Isto não pode ser minimizado por nenhuma pessoa viva como sendo um

fenômeno superficial, como sendo uma aberração no curso da história, que não importa, em face da tendência dominante do progresso, do esclarecimento, do

humanismo supostamente crescente. O simples fato de ter ocorrido já constitui por si só expressão de uma tendência social imperativa. Nesta medida gostaria de

remeter a um evento, que de um modo muito sintomático parece pouco conhecido na Alemanha, apesar de constituir a temática de um best-seller como Os quarenta

dias de Musa Dagh, de Werfel. Já na Primeira Guerra Mundial os turcos —- o assim chamado movimento turco jovem dirigido por Enver Pascha e Talaat Pascha —

— mandaram assassinar mais de um milhão de armênios. Importantes quadros militares e governamentais, embora, ao que tudo indica, soubessem do ocorrido,

guardaram sigilo estrito, O genocídio tem suas raízes naquela ressurreição do nacionalismo agressor que vicejou em muitos países a partir do fim do século XIX.

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Além disso não podemos evitar ponderações no sentido de que a invenção da bomba atômica, capaz de matar centenas de milhares literalmente de um só

golpe, insere-se no mesmo nexo histórico que o genocídio. Tornou-se habitual chamar o aumento súbito da população de explosão populacional: parece que a

fatalidade histórica, para fazer frente à explosão populacional, dispõe também de contra-explosões, o morticínio de populações inteiras. Isto só para indicar como as

forças às quais é preciso se opor integram o curso da história mundial.

Como hoje em dia é extremamente limitada a possibilidade de mudar os pressupostos objetivos, isto é, sociais e políticos que geram tais acontecimentos, as

tentativas de se contrapor à repetição de Auschwitz são irnpelidas necessariamente para o lado subjetivo. Com isto refiro-me sobretudo também à psicologia das

pessoas que fazem coisas desse tipo. Não acredito que adianta muito apelar a valores eternos, acerca dos quais justamente os responsáveis por tais atos reagiriam

com menosprezo; também não acredito que o esclarecimento acerca das qualidades positivas das minorias reprimidas seja de muita valia. É preciso buscar as raízes

nos perseguidores e não nas vitimas, assassinadas sob os pretextos mais mesquinhos. Torna-se necessário o que a esse respeito uma vez denominei de inflexão em

direção ao sujeito. É preciso reconhecer os mecanismos que tornam as pessoas capazes de cometer tais atos, é preciso revelar tais mecanismos a eles próprios,

procurando impedir que se tornem novamente capazes de tais atos, na medida em que se desperta uma consciência geral acerca desses mecanismos. Os culpados não

são os assassinados, nem mesmo naquele sentido caricato e sofista que ainda hoje seria do agrado de alguns. Culpados são unicamente os que, desprovidos de

consciência, voltaram Contra aqueles seu ódio e sua fúria agressiva. E necessário contrapor-se a uma tal ausência de consciência, é preciso evitar que as pessoas

golpeiem para os lados sem refletir a respeito de si próprias. A educação tem sentido unicamente como educação dirigida a uma auto-reflexão crítica. Contudo, na

medida em que, conforme os ensinamentos da psicologia profunda, todo caráter, inclusive daqueles que mais tarde praticam crimes, forma-se na primeira infância, a

educação que tem por objetivo evitar a repetição precisa se concentrar na primeira infância. Já mencionei a tese de Freud acerca do mal-estar na cultura. Ela é ainda

mais abrangente do que ele mesmo supunha: sobretudo porque, entrementes, a pressão civilizatória observada por ele multiplicou-se em uma escala insuportável. Por

essa via as tendências à explosão a que ele atentara atingiriam uma violência que ele dificilmente poderia imaginar. porém o mal-estar na cultura tem seu lado social

---- o que Freud sabia, embora não o tenha investigado concretamente. É possível falar da claustrofobia das pessoas no mundo administrado, um sentimento de

encontrar-se enclausurado numa situação cada vez mais socializada, como uma rede densamente interconectada. Quanto mais densa é a rede, mais se procura

escapar, ao mesmo tempo em que precisamente a sua densidade impede a saída. Isto aumenta a raiva contra a civilização. Esta torna-se alvo de uma rebelião violenta

e irracional.

Um esquema sempre confirmado na história das perseguições é o de que a violência contra os fracos se dirige principalmente contra os que são considerados

socialmente fracos e ao mesmo tempo ---- seja isto verdade ou não —- felizes. De uma perspectiva sociológica eu ousaria acrescentar que nossa sociedade, ao

mesmo tempo em que se integra cada vez mais, gera tendências de desagregação. Essas tendências encontram-se bastante desenvolvidas logo abaixo da superfície da

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vida civilizada e ordenada. A pressão do geral dominante sobre tudo que é particular, os homens individualmente e as instituições singulares, tem uma tendência a

destroçar o particular e individual juntamente com seu potencial de resistência. Junto com sua identidade e seu potencial de resistência, as pessoas também perdem

suas qualidades, graças a qual têm a capacidade de se contrapor ao que em qualquer tempo novamente seduz ao crime. Talvez elas mal tenham condições de resistir

quando lhes é ordenado pelas forças estabelecidas que repitam tudo de novo, desde que apenas seja em nome de quaisquer ideais de pouca ou nenhuma

credibilidade.

Quando falo de educação após Auschwitz, refiro-me a duas questões: primeiro, à educação infantil, sobretudo na primeira infância; e, além disto, ao

esclarecimento geral, que produz um clima intelectual, cultural e social que não permite tal repetição; portanto, um clima em que os motivos que conduziram ao

horror tornem-se de algum modo conscientes. Evidentemente não tenho a pretensão de sequer esboçar o projeto de uma educação nesses termos. Contudo, quero ao

menos indicar alguns pontos nevrálgicos. Com freqüência por exemplo, nos Estados Unidos —- o espirito germânico de confiança na autoridade foi responsabilizado

pelo nazismo e também por Auschwitz. Considero esta afirmação excessivamente superficial, embora na Alemanha, como em muitos outros países europeus,

comportamentos autoritários e autoridades cegas perdurem com mais tenacidade sob os pressupostos da democracia formal do que se ~‘4ueira reconhecer. Antes é

de se supor que o fascismo e o horror que produziu se relacionam com o fato de que as antigas e consolidadas autoridades do império haviam ruído e se esfacelado,

mas as pessoas ainda não se encontravam psicologicamente preparadas para a autodeterminação. Elas não se revelaram à altura da liberdade com que foram

presenteadas de repente. É por isso que as estruturas de autoridade assumiram aquela dimensão destrutiva e ---- por assim dizer — de desvario que antes, ou não

possuíam, ou seguramente não revelavam. Quando lembramos que visitantes de quaisquer potentados. já politicamente desprovidos de qualquer função real, levam

populações inteiras a explosões de êxtase, então se justifica a suspeita de que o potencial autoritário permanece muito mais forte do que o imaginado. Porém quero

enfatizar com a maior intensidade que o retorno ou não retorno do fascismo constitui em seu aspecto mais decisivo uma questão social e não uma questão

psicológica. Refiro-me tanto ao lado psicológico somente porque os demais momentos, mais essenciais, em grande medida escapam à ação da educação, quando não

se subtraem inteiramente à interferência dos indivíduos.

Freqüentemente pessoas bem-intencionadas e que se opõem a que tudo aconteça de novo citam o conceito de vínculos de compromisso. A ausência de

compromissos das pesssoas seria responsável pelo que aconteceu. Isto efetivamente tem a ver com a perda da autoridade, uma das condições do pavor

sadomasoquista. É plausível para o entendimento humano sadio evocar compromissos que detenham o que é sádico, destrutivo, desagregador, mediante um enfático

"não deves". Ainda assim considero ser uma ilusão imaginar alguma utilidade no apelo a vínculos de compromisso ou até mesmo na exigência de que se

reestabeleçam vinculações de compromisso para que o mundo e as pessoas sejam melhores. A falsidade de compromissos que se exige somente para que provoquem

alguma coisa —- mesmo que esta seja boa ----, sem que eles sejam experimentados por si mesmos como sendo substanciais para as pessoas, percebe-se muito

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prontamente. E espantosa a rapidez com que até mesmo as pessoas mais ingênuas e tolas reagem quando se trata de descobrir as fraquezas dos superiores.

Facilmente os chamados compromissos convertem-se em passaporte moral --— são assumidos com o objetivo de identificar-se como cidadão confiável — ou então

produzem rancores raivosos psicologicamente contrários à sua destinação original. Eles significam uma heteronomia, um tornar-se dependente de mandamentos, de

normas que não são assumidas pela razão própria do indivíduo, O que a psicologia denomina superego, a consciência moral, é substituído no contexto dos

compromissos por autoridades exteriores, sem compromisso, intercambiáveis, como foi possível observar com muita nitidez também na Alemanha depois da queda

do Terceiro Reich. Porém justamente a disponibilidade em ficar do lado do poder, tomando exteriormente como norma curvar-se ao que é mais forte, constitui

aquela índole dos algozes que nunca mais deve ressurgir. Por isto a recomendação dos compromissos é tão fatal. As pessoas que os assumem mais ou menos

livremente são colocadas numa espécie de permanente estado de exceção de comando. O único poder efetivo contra o princípio de Auschwitz seria autonomia, para

usar a expressão kantiana; o poder para a reflexão, a autodeterminação, a não-participação.

Certa feita uma experiência me assustou muito: numa viagem ao lago de Constância, eu lia num jornal de Baden em que se informava acerca da peça Mortos

sem sepuItura, de Sartre, que representa as situações mais terríveis. A peça incomodava visivelmente o critico. Mas ele não explicou este incômodo mediante o

horror da coisa que constitui o horror de nosso mundo, mas torceu a questão como se, frente a uma posição como a de Sartre, que se ocupara do problema, nós

tivéssemos, por assim dizer, um sentido para algo mais nobre: que não poderíamos reconhecer a ausência de sentido do horror. Resumindo: o critico procurava se

subtrair ao confronto com o horror graças a um sofisticado palavrório existencial. O perigo de que tudo aconteça de novo está em que não se admite o contato com a

questão. rejeitando até mesmo quem apenas a menciona, como se, ao fazê-lo sem rodeios, este se tomasse o responsável, e não os verdadeiros culpados.

Em relação ao problema de autoridade e barbárie considero importante um aspecto que geralmente passa quase despercebido. Ele é mencionado numa

observação do livro O Estado da SS, de Eugen Kogon, que contém abordagens importantes deste todo complexo e que não recebeu a atenção merecida por parte da

ciência e da pedagogia. Kogon afirma que os algozes do campo de concentração em que ele mesmo passou anos eram em sua maioria jovens filhos de camponeses.

A diferença cultural ainda persistente entre a cidade e o campo constitui uma das condições do horror, embora certamente não seja nem a única nem a mais

importante. Repudio qualquer sentimento de superioridade em relação à população rural. Sei que ninguém tem culpa por nascer na cidade ou se formar no campo.

Mas registro apenas que provavelmente no campo o insucesso da desbarbarização foi ainda maior. Mesmo a televisão e os outros meios de comunicação de massa,

ao que tudo indica, não provocaram muitas mudanças na situação de defasagem cultural. Parece-me mais correto afirmar isto e procurar uma mudança do que elogiar

de uma maneira nostálgica quaisquer qualidades especiais da vida rural ameaçadas de desaparecer. Penso até que a desbarbarização do campo constitui um dos

objetivos educacionais mais importantes. Evidentemente ela pressupõe um estudo da consciência e do inconsciente da respectiva população. Sobretudo é preciso

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atentar ao impacto dos modernos meios de comunicação de massa sobre um estado de consciência que ainda não atingiu o nível do liberalismo cultural burguês do

século XIX.

Para mudar essa situação, o sistema normal de escolarização, freqüentemente bastante problemático no campo, seria insuficiente. Penso numa série de

possibilidades. Uma seria — e estou improvisando — o planejamento de transmissões de televisão atendendo pontos nevrálgicos daquele peculiar estado de

consciência. Além disto, imagino a formação de grupos e colunas educacionais móveis de voluntários que se dirijam ao campo e procurem preencher as lacunas mais

graves por meio de discussões, de cursos e de ensino suplementar. Naturalmente sei que dificilmente essas pessoas serão muito bem-vistas. Mas com o passar do

tempo se estabelecerá um pequeno círculo que se imporá e que talvez tenha condições de se irradiar.

Entretanto não deve haver nenhum mal-entendido quanto à inclinação arcaica pela violência existente também nas cidades, principalmente nos grandes

centros. Tendências de regressão — ou seja, pessoas com traços sádicos reprimidos — são produzidas por toda parte pela tendência social geral. Nessa medida quero

lembrar a relação perturbada e patogênica com o corpo que Horkheimer e eu descrevemos na Dialética do esclarecimento. Em cada situação em que a consciência é

mutilada, isto se reflete sobre o corpo e a esfera corporal de uma forma não-livre e que é propicia à violência. Basta prestar atenção em um certo tipo de pessoa

inculta como até mesmo a sua linguagem —-- principalmente quando algo é criticado ou exigido — se torna ameaçadora, como se os gestos da fala fossem de uma

violência corporal quase incontrolada. Aqui seria preciso estudai também a função do esporte. que ainda não foi devidamente reconhecida por uma psicologia social

crítica. O esporte é ambíguo: por um lado, ele pode ter um efeito contrário à barbárie e ao sadismo, por intermédio do fairplay, do cavalheirismo e do respeito pelo

mais fraco. Por outro, em algumas de suas modalidades e procedimentos, ele pode promover a agressão a brutalidade C o sadismo, principalmente no caso de

espectadores. que pessoalmente não estão submetidos ao esforço e à. disciplina do esporte; são aqueles que costumam gritar nos campos esportivos. Épreciso

analisar de uma maneira sistemática essa ambigüidade. Os resultados teriam que ser aplicados à vida esportiva na medida da influência da educação sobre a mesma.

Tudo isso se relaciona de um modo ou outro à velha estrutura vinculada à autoridade, a modos de agir ---- eu quase diria — do velho e bom caráter

autoritário. Mas aquilo que gera Auschwitz, os tipos característicos ao mundo de Auschwitz, constituem presumivelmente algo de novo. Por um lado, eles

representam a identificação cega com o coletivo. Por outro, são talhados para manipular massas, coletivos, tais como os Himmler, Höss, Eichmann. Considero que o

mais importante para enfrentar o perigo de que tudo se repita é contrapor-se ao poder cego de todos os coletivos, fortalecendo a resistência frente aos mesmos por

meio do esclarecimento do problema da coletivização. Isto não é tão abstrato quanto passa parecer ao entusiasmo participativo. especialmente das pessoas jovens, de

consciência progressista. O ponto de partida poderia estar no sofrimento que os coletivos infligem e se filiam a eles. Basta pensar nas primeiras experiências de cada

um na escola. ~ preciso se opor àquele tipo de folk-ways, hábitos populares, ritos de iniciação de qualquer espécie, que infligem dor física —muitas vezes

insuportável -— a uma pessoa como preço do direito de ela se sentir um filiado, um membro do coletivo. A brutalidade de hábitos tais como os trotes de qualquer

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ordem, ou quaisquer outros costumes arraigados desse tipo, é precursora imediata da violência nazista. Não foi por acaso que os nazistas enalteceram e cultivaram

tais barbaridades com o nome de "costumes". Eis aqui um campo muito atual para a ciência. Ela poderia inverter decididamente essa tendência da etnologia

encampada com entusiasmo pelos nazistas, para refrear esta sobrevida simultaneamente brutal e fantasmagórica desses divertimentos populares.

Tudo isso tem a ver com um pretenso ideal que desempenha um papel relevante na educação tradicional em geral: a severidade. Esta pode até mesmo

remeter a uma afirmativa de Nietzsche, por mais humilhante que seja e embora ele na verdade pensasse em outra coisa. Lembro que durante o processo sobre

Auschwitz, em um de seus acessos, o terrível Boger culminou num elogio à educação baseada na força e voltada à disciplina. Ela seria necessária para constituir o

tipo de homem que lhe parecia adequado. Essa idéia educacional da severidade, em que irrefletidamente muitos podem até acreditar, é totalmente equivocada. A

idéia de que a virilidade consiste num grau máximo da capacidade de suportar dor de há muito se converteu em fachada de um masoquismo que — como mostrou a

psicologia — se identifica com muita facilidade ao sadismo. O elogiado objetivo de "ser duro" de uma tal educação significa indiferença contra a dor em geral. No

que, inclusive, nem se diferencia tanto a dor do outro e a dor de si próprio. Quem é severo consigo mesmo adquire o direito de ser severo também com os outros,

vingando-se da dor cujas manifestações precisou ocultar e reprimir. Tanto é necessário tornar consciente esse mecanismo quanto se impõe a promoção de uma

educação que não premia a dor e a capacidade de suportá-la, como acontecia antigamente. Dito de outro modo: a educação precisa levar a sério o que já de há muito

é do conhecimento da filosofia: que o medo não deve ser reprimido. Quando o medo não é reprimido, quando nos permitimos ter realmente tanto medo quanto esta

realidade exige, então justamente por essa via desaparecerá provavelmente grande parte dos efeitos deletérios do medo inconsciente e reprimido.

Pessoas que se enquadram cegamente em coletivos convertem a si próprios em algo como um material, dissolvendo-se como seres autodeterminados. Isto

combina com a disposição de tratar outros como sendo uma massa amorfa. Para os que se comportam dessa maneira utilizei o termo "caráter manipulador" em

Authoritarian personality (A personalidade autoritária), e isto quando ainda não se conhecia o diário de Höss ou as anotações de Eichmann. Minhas descrições do

caráter manipulador datam dos últimos anos da Segunda Guerra Mundial. Às vezes a psicologia social e a sociologia conseguem construir conceitos confirmados

empiricamente só muito tempo depois. O caráter manipulador — e qualquer um pode acompanhar isto a partir das fontes disponíveis acerca desses lideres nazistas

—- se distingue pela fúria organizativa, pela incapacidade total de levar a cabo experiências humanas diretas, por um certo tipo de ausência de emoções, por um

realismo exagerado. A qualquer custo ele procura praticar uma pretensa, embora delirante, realpolitik. Nem por um segundo sequer ele imagina o mundo diferente

do que ele é, possesso pela vontade de doing things, de fazer coisas, indiferente ao conteúdo de tais ações. Ele faz do ser atuante, da atividade, da chamada efficiency

enquanto tal, um culto, cujo eco ressoa na propaganda do homem ativo. Este tipo encontra-se, entrementes — a crer em minhas observações e generalizando

algumas pesquisas sociológicas ----, muito mais disseminado do que se poderia imaginar. O que outrora era exemplificado apenas por alguns monstros nazistas pode

ser constatado hoje a partir de casos numerosos, como delinqüentes juvenis, lideres de quadrilhas e tipos semelhantes, diariamente presentes no noticiário. Se fosse

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obrigado a resumir em uma fórmula esse tipo de caráter manipulador — o que talvez seja equivocado embora útil à compreensão — eu o denominaria de o tipo da

consciência coisificada. No começo as pessoas desse tipo se tornam por assim dizer iguais a coisas. Em seguida, na medida em que o conseguem, tornam os outros

iguais a coisas. Isto é muito bem traduzido pela expressão aprontar, que goza de igual popularidade entre os valentões juvenis e entre os nazistas. Esta expressão

aprontar define as pessoas como sendo coisas aprontadas em seu duplo sentido. Conforme Max Horkheimer, a tortura é a adaptação controlada e devidamente

acelerada das pessoas aos coletivos. Algo disso encontra-se no espirito da época, por menos procedente que seja falar em espírito nesses termos. Enfim, resumirei

citando Paul Valéry, que antes da última Guerra Mundial disse que a desumanidade teria um grande futuro. É particularmente difícil confrontar esta questão porque

aquelas pessoas manipuladoras, no fundo incapazes de fazer experiências, por isto mesmo revelam traços de incomunicabilidade, no que se identificam com certos

doentes mentais ou personalidades psicóticas.

Nas tentativas de atuar contrariamente à repetição de Auschwitz pareceu.me fundamental produzir inicialmente uma certa clareza acerca do modo de

constituição do caráter manipulador, para em seguida poder impedir da melhor maneira possível a sua formação, pela transformação das condições para tanto. Quero

fazer uma proposta concreta: utilizar todos os métodos científicos disponíveis, em especial psicanálise durante muitos anos, para estudar os culpados por Auschwitz,

visando se possível descobrir como uma pessoa se torna assim. O que aqueles ainda podem fazer de bom é contribuir, em contradição com a própria estrutura de sua

personalidade, no sentido de que as coisas não se repitam. E essa contribuição só ocorreria na medida em que colaborassem na investigação de sua gênese.

Obviamente seria difícil levá-los a falar; em nenhuma hipótese poder-se-ia aplicar qualquer procedimento semelhante a seus próprios métodos para aprender como

eles se tornaram do jeito que são. De qualquer modo, entrementes eles se sentem — justamente em seu coletivo, com a sensação de que todos são velhos nazistas —-

- tão protegidos, que praticamente nenhum demonstrou nem ao menos remorsos. Porém presumivelmente também neles, ou em alguns deles, existem pontos de

apoio psicológicos mediante os quais seria possível mudar isto, como, por exemplo, seu narcisismo, ou, dito simplesmente, seu orgulho. Eles se sentirão importantes

ao poder falar livremente a seu respeito, tal como Eichmann, cujas falas aparentemente preenchem fileiras inteiras de volumes. Finalmente, é de supor que também

nessas pessoas, aprofundando-se suficientemente a busca, existam restos da velha instância da consciência moral que se encontra atualmente em grande parte em

processo de dissolução. Na medida em que se conhecem as condições internas e externas que os tornaram assim — pressupondo por hipótese que esse conhecimento

é possível —, seria possível tirar conclusões práticas que impeçam a repetição de Auschwitz. A utilidade ou não de semelhante tentativa só se mostrará após sua

concretização; não pretendo superestimá-la. É preciso lembrar que as pessoas não podem ser explicadas automaticamente a partir de condições como estas. Em

condições iguais alguns se tornaram assim, e Outros de um jeito bem diferente. Mesmo assim valeria a pena. O mero questionamento de como se ficou assim já

encerraria um potencial esclarecedor. Pois um dos momentos do estado de consciência e de inconsciência daninhos está em que seu ser-assim —que se é de um

determinado modo e não de outro ---- é apreendido equivocadamente como natureza, como um dado imutável e não como resultado de uma formação. Mencionei o

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conceito de consciência coisificada. Esta é sobretudo uma consciência que se defende em relação a qualquer vir-a-ser, frente a qualquer apreensão do próprio

condicionamento, impondo como sendo absoluto o que existe de um determinado modo. Acredito que o rompimento desse mecanismo impositivo seria

recompensador.

No que diz respeito à consciência coisificada, além disto é preciso examinar também a relação com a técnica, sem restringir-se a pequenos grupos. Esta

relação é tão ambígua quanto a do esporte, com que aliás tem afinidade. Por um lado, é certo que todas as épocas produzem as personalidades — tipos de

distribuição da energia psíquica — de que necessitam socialrnente. Um mundo em que a técnica ocupa uma posição tão decisiva como acontece atualmente, gera

pessoas tecnológicas, afinadas com a técnica. Isto tem a sua racionalidade boa: em seu plano mais restrito elas serão menos influenciáveis, com as correspondentes

conseqüências no plano geral. Por outro lado, na relação atual com a técnica existe algo de exagerado, irracional, patogênico. Isto se vincula ao "véu tecnológico".

Os homens inclinam-se a considerar a técnica como sendo algo em si mesma, um fim em si mesmo, uma força própria, esquecendo que ela é a extensão do braço dos

homens. Os meios —— e a técnica é um conceito de meios dirigidos à autoconservação da espécie humana — são fetichizados, porque os fins — uma vida humana

digna — encontram-se encobertos e desconectados da consciência das pessoas. Afirmações gerais como estas são até convincentes. Porém uma tal hipótese ainda é

excessivamente abstrata. Não se sabe com certeza como se verifica a fetichização da técnica na psicologia individual dos indivíduos, onde está o ponto de transição

entre uma relação racional com ela e aquela supervalorização, que leva, em última análise, quem projeta um sistema ferroviário para conduzir as vitimas a Auschwitz

com maior rapidez e fluência, a esquecer o que acontece com estas vítimas em Auschwitz. No caso do tipo com tendências à fetichização da técnica, trata-se

simplesmente de pessoas incapazes de amar. Isto não deve ser entendido num sentido sentimental ou moralizante, mas denotando a carente relação libidinal com

Outras pessoas. Elas são inteiramente frias e precisam negar também em seu íntimo a possibilidade do amor, recusando de antemão nas outras pessoas o seu amor

antes que o mesmo se instale. A capacidade de amar, que de alguma maneira sobrevive, eles precisam aplicá-la aos meios. As personalidades preconceituosas e

vinculadas à autoridade com que nos ocupamos em Authoritarian Personality, em Berkeley, forneceram muitas evidências neste sentido. Um sujeito experimental ---

- e a própria expressão já é do repertório da consciência coisificada -— afirmava de si mesmo: "I like nice equipament" (Eu gosto de equipamentos, de instrumentos

bonitos), independentemente dos equipamentos em questão. Seu amor era absorvido por coisas, máquinas enquanto tais. O perturbador — porque torna tão

desesperançoso atuar contrariamente a isso — é que esta tendência de desenvolvimento encontra-se vinculada ao conjunto da civilização. Combatê-lo significa o

mesmo que ser contra o espírito do mundo; e desta maneira apenas repito algo que apresentei no começo como sendo o aspecto mais obscuro de uma educação

contra Auschwitz.

Afirmei que aquelas pessoas eram frias de um modo peculiar. Aqui vêm a propósito algumas palavras acerca da frieza. Se ela não fosse um traço básico da

antropologia, e, portanto, da constituição humana como ela realmente é em nossa sociedade; se as pessoas não fossem profundamente indiferentes em relação ao que

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acontece com todas as outras, executando o punhado com que mantêm vínculos estreitos e possivelmente por intermédio de alguns interesses concretos, então

Auschwitz não teria sido possível, as pessoas não o teriam aceito. Em sua configuração atual — e provavelmente há milênios —- a sociedade não repousa

em atração, em simpatia, como se supôs ideologicamente desde Aristóteles, mas na persecução dos próprios interesses frente aos interesses dos demais. Isto se

sedimentou do modo mais profundo no caráter das pessoas. O que contradiz, o impulso grupal da chamada lonely crowd, da massa solitária, na verdade constitui

uma reação, um enturmar-se de pessoas frias que não suportam a própria frieza mas nada podem fazer para alterá-la. Hoje em dia qualquer pessoa, sem exceção, se

sente mal-amada, porque cada um é deficiente na capacidade de amar. A incapacidade para a identificação foi sem dúvida a condição psicológica mais importante

para tornar possível algo como Auschwitz em meio a pessoas mais ou menos civilizadas e inofensivas. O que se chama de "participação oportunista" era antes de

mais nada interesse prático: perceber antes de tudo a sua própria vantagem e não dar com a língua nos dentes para não se prejudicar. Esta é uma lei geral do

existente. O silêncio sob o terror era apenas a conseqüência disto. A frieza da mônada social, do concorrente isolado, constituía, enquanto indiferença frente ao

destino do outro, o pressuposto para que apenas alguns raros se mobilizassem. Os algozes sabem disto; e repetidamente precisam se assegurar disto.

Não me entendam mal. Não quero pregar o amor. Penso que sua pregação é vã: ninguém teria inclusive o direito de pregá-lo, porque a deficiência de amor,

repito, é uma deficiência de todas as pessoas, sem exceção, nos termos em que existem hoje. Pregar o amor pressupõe naqueles a quem nos dirigimos uma outra

estrutura do caráter, diferente da que pretendemos transformar. Pois as pessoas que devemos amar são elas próprias incapazes de amar e por isto nem são tão

amáveis assim. Um dos grandes impulsos do cristianismo, a não ser confundido com o dogma, foi apagar a frieza que tudo penetra. Mas esta tentativa fracassou;

possivelmente porque não mexeu com a ordem social que produz e reproduz a frieza. Provavelmente até hoje nunca existiu aquele calor humano que todos

almejamos, a não ser durante períodos breves e em grupos bastante restritos, e talvez entre alguns selvagens pacíficos. Os utópicos freqüentemente ridicularizados

perceberam isto. Charles Fourier, por exemplo, definiu a atração como algo ainda por ser constituído por uma ordem social digna de um ponto de vista humano.

Também reconheceu que esta situação só seria possível quando os instintos não fossem mais reprimidos, mas satisfeitos e liberados. Se existe algo que pode ajudar

contra a frieza como condição da desgraça, então trata-se do conhecimento dos próprios pressupostos desta, bem como da tentativa de trabalhar previamente no

plano individual contra esses pressupostos. Agrada pensar que a chance é tanto maior quanto menos se erra na infância, quanto melhor são tratadas as crianças. Mas

mesmo aqui pode haver ilusões. Crianças que não suspeitam nada da crueldade e da dureza da vida acabam por ser particularmente expostas à barbárie depois que

deixam de ser protegidas. Mas, sobretudo, não é possível mobilizar para o calor humano pais que são, eles próprios, produtos desta sociedade, cujas marcas

ostentam. O apelo a dar mais calor humano às crianças é artificial e por isto acaba negando o próprio calor. Além disto o amor não pode ser exigido em relações

profissionalmente intermediadas, como entre professor e aluno, médico e paciente, advogado e cliente. Ele é algo direto e contraditório com relações que em sua

essência são intermediadas. O incentivo ao amor ----- provavelmente na forma mais imperativa, de um dever — constitui ele próprio parte de uma ideologia que

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perpetua a frieza. Ele combina com o que é impositivo, opressor, que atua contrariamente à capacidade de amar. Por isto o primeiro passo seria ajudar a frieza a

adquirir consciência de si própria, das razões pelas quais foi gerada.

Para terminar gostaria ainda de discorrer brevemente a respeito de algumas possibilidades de conscientização dos mecanismos subjetivos em geral, sem os

quais Auschwitz dificilmente aconteceria. O conhecimento desses mecanismos é uma necessidade; da mesma forma também o é o conhecimento da defesa

estereotipada, que bloqueia uma tal consciência. Quem ainda insiste em afirmar que o acontecido nem foi tão grave assim já está defendendo o que ocorreu, e sem

dúvida seria capaz de assistir ou colaborar se tudo acontecesse de novo. Mesmo que o esclarecimento racional não dissolva diretamente os mecanismos inconscientes

— conforme ensina o conhecimento preciso da psicologia —, ele ao menos fortalece na pré-consciência determinadas instâncias de resistência, ajudando a criar um

clima desfavorável ao extremismo. Se a consciência cultural em seu conjunto fosse efetivamente perpassada pela premonição do caráter patogênico dos traços que se

revelaram com clareza em Auschwitz, talvez as pessoas tivessem evitado melhor aqueles traços.

Além disso seria necessário esclarecer quanto à possibilidade de haver um outro direcionamento para a fúria ocorrida em Auschwitz. Amanhã pode ser a vez

de um outro grupo que não os judeus, por exemplo os idosos, que escaparam por pouco no Terceiro Reich, ou os intelectuais, ou simplesmente alguns grupos

divergentes. O clima ---- e quero enfatizar esta questão — mais favorável a um tal ressurgimento é o nacionalismo ressurgente. Ele é tão raivoso justamente porque

nesta época de comunicações internacionais e de blocos supranacionais já não é mais tão convicto, obrigando-se ao exagero desmesurado para convencer a si e aos

outros que ainda têm substância.

De qualquer modo, haveria que mostrar as possibilidades concretas da resistência. Por exemplo, a história dos assassinatos por eutanásia, que acabaram não

sendo cometidos na dimensão pretendida pelos nazistas na Alemanha, graças a resistência manifestada. A resistência limitava-se ao próprio grupo; e justamente este

é um sintoma bastante notável e amplo da frieza geral. Além de tudo, porém, ela é limitada também em face da insaciabilidade presente no princípio das

perseguições. Em última instância, qualquer pessoa não-pertencente ao grupo perseguidor pode ser atingida; portanto, existe um interesse egoísta drástico a que se

poderia apelar. Enfim, seria necessário indagar pelas condições específicas, históricas, das perseguições. Em uma época em que o nacionalismo é antiquado, os

chamados movimentos de renovação nacional são, ao que tudo indica, particularmente sujeitos a práticas sádicas.

Finalmente, o centro de toda educação política deveria ser que Auschwitz não se repita. Isto só será possível na medida em que ela se ocupe da mais

importante das questões sem receio de contrariar quaisquer potências. Para isto teria de se transformar em sociologia, informando acerca do jogo de forças localizado

por trás da superfície das formas políticas. Seria preciso tratar criticamente um conceito tão respeitável como o da razão de Estado, para citar apenas um modelo: na

medida em que colocamos o direito do Estado acima do de seus integrantes, o terror já passa a estar potencialmente presente.

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Em Paris, durante a emigração, quando eu ainda retornava esporadicamente à Alemanha, certa vez Walter Benjamin me perguntou se ali ainda havia algozes

em número suficiente para executar o que os nazistas ordenavam. Havia. Apesar disto a pergunta é profundamente justificável. Benjamm percebeu que, ao contrário

dos assassinos de gabinete e dos ideólogos, as pessoas que executam as tarefas agem em contradição com seus próprios interesses imediatos, são assassinas de si

mesmas na medida em que assassinam os outros. Temo que será difícil evitar o reaparecimento de assassinos de gabinete, por mais abrangentes que sejam as

medidas educacionais. Mas que haja pessoas que, em posições subalternas, enquanto serviçais, façam coisas que perpetuam sua própria servidão, tornando-as

indignas; que continue a haver Bojeis e Kaduks, contra isto é possível empreender algo mediante a educação e o esclarecimento.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO VIII, Nº246 - OUTUBRO - PORTO VELHO, 2009.

VOLUME XXVI – SET/DEZ

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL ALBERTO LINS CALDAS – História - UFRO

CLODOMIR S. DE MORAIS – Sociologia - IATTERMUND ARTUR MORETTI – Física - UFRO

CELSO FERRAREZI – Letras - UFRO HEINZ DIETER HEIDEMANN – Geografia - USP JOSÉ C. SEBE BOM MEIHY – História – USP

MARIO COZZUOL – Biologia – PUC-RGS MIGUEL NENEVÉ – Letras - UFRO

ROMUALDO DIAS – Educação - UNICAMP VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia - UFSC

Os textos no mínimo 3 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for

Windows” deverão ser encaminhados para e-mail:

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TIRAGEM 200 EXEMPLARES

EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

246

FLÁVIO DUTKA

O uso da narrativa no ensino de filosofia

Dalva Aparecida Garcia

PRIMEIRA VERSÃO ISSN 1517-5421 lathé biosa

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Dalva Aparecida Garcia O uso da narrativa no ensino de filosofia

Uma filosofia concreta não é uma filosofia feliz. Seria preciso que se mantivesse junto da experiência e que, contudo, não se limitasse ao empírico, que restituísse em cada experiência a cifra ontológica que anteriormente a marca. Por muito difícil que seja, nestas condições, imaginar o futuro da filosofia, duas coisas parecem seguras: nunca mais voltará ela a encontrar a convicção de, com seus conceitos, deter as chaves da natureza ou da história, e, ainda, não renunciará ao seu radicalismo, a esta procura dos pressupostos e dos fundamentos que produziu as grandes filosofias. Tanto menos se renunciará a isso, durante o tempo em que os sistemas perdiam seu crédito, as técnicas ultrapassaram a si próprias e reclamavam a filosofia. Nunca como hoje o saber científico transformou seu próprio à priori. Nunca a literatura foi tão filosófica quanto no século XX, refletiu tanto sobre a linguagem, sobre a verdade, sobre o sentido do ato de escrever. Nunca, como hoje, a vida política mostrou suas raízes ou a sua trama, contestou suas próprias certezas... Ainda que os filósofos esmorecessem, estariam os outros presentes para nos chamar de novo à filosofia. A menos que esta inquietação a si mesma se devore, pode-se esperar muito de um tempo que não crê mais na filosofia triunfante, mas que, pelas suas dificuldades, é um apelo permanente ao rigor, à crítica, à universalidade, à filosofia militante” (MERLEAU PONTY in SINAIS)

O PROBLEMA Os professores envolvidos com o Ensino de Filosofia para jovens refutam a tese da impotência da filosofia frente às rápidas transformações que

atingem a escola neste início de século. Entende-se o filosofar como esforço da construção dos valores humanos para conhecer e reconhecer, destruir e

recriar os múltiplos significados da cultura e do conhecimento. Neste contexto, alimentamos o sonho de retirar a filosofia das Instituições Acadêmicas

para colocá-la no espaço que até então estava reservado à informação dos produtos das ciências. A escola como espaço de informação e aprendizagem se

vê diante de um desafio: compreender o sentido de uma prática reflexiva distante de respostas únicas. Por outro lado, o professor de filosofia se vê diante

de uma árdua empreitada: transformar o esforço da reflexão presente na história do pensamento em investigação viva, instigante, que revê e cria novos

significados no cotidiano do aluno e da escola.

Da experiência de cerca de 14 anos como professora de filosofia no Ensino Médio, tanto na rede pública como em escolas particulares, que emerge uma

questão: Como iniciar esse processo? Se perseguirmos o raciocínio de Marilena Chauí em seu “Convite à Filosofia”, poderíamos afirmar que a filosofia requer uma

“atitude filosófica”, que começa quando nos espantamos com o mundo que nos cerca. Essa atitude consiste no questionamento das evidências do cotidiano, ou seja,

requer um certo distanciamento do “óbvio” para que seja possível a problematização, a suspensão provisória dos juízos e a análise profunda dos princípios que

cercam nossas certezas. Todavia, em um contexto de transformações meteóricas nada mais espanta, vive-se a primazia dos fatos, das informações que se aglomeram

e se perdem com assustadora rapidez. O que era importante ontem, hoje perde o valor, o que era enigma torna-se evidência. Como se distanciar de um universo de

valores que é impossível vislumbrar?

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Somada as características de nosso tempo com a ação intempestiva, característica da juventude e da adolescência, podemos afirmar que uma das principais

dificuldades para os professores é provocar o estranhamento de um mundo que tão de estranho passa a ser evidente.

Habituados a um universo fragmentado, a uma visão de mundo utilitarista e imediatista, os adolescentes encontram-se a margem dos procedimentos do

filosofar, tais como: a capacidade de abstração, de contemplação, de análise e síntese, de reflexão radical.

Um dos grandes desafios do professor de filosofia é buscar caminhos para que seja possível provocar um deslocamento que permita o questionamento das

evidências e inaugure um trabalho de problematização e investigação filosófica. Como na prática educativa apontar e fornecer subsídios para a construção desse

caminho?

Comumente acredita-se que ao se colocar as temáticas filosóficas no universo de formação dos adolescentes já se está, de alguma forma, aproximando os

alunos do filosofar. Afinal, séculos e séculos de trabalhos sistematizados acerca das indagações humanas não poderiam ser infrutíferos. Desta forma, apresenta-se

temas e construções teóricas que pouco ou nada significam para os jovens. Em nome do pressuposto que o distanciamento do senso comum é necessário ao filosofar,

acabamos distanciando o aluno da própria filosofia. Por outro lado, em nome da aproximação dos alunos da filosofia temos que cuidar para não instaurar na sala de

aula um debate vazio sobre opiniões e crenças infundadas. O risco dessa ação pedagógica é o de termos o senso comum institucionalizado e legitimado com o nome

de “filosofia”.

Ora, se verdadeiramente consideramos a filosofia importante na formação e entendemos seu valor educacional como esforço de reflexão crítica do

conhecimento e dos valores, não podemos nos distanciar dos valores e conhecimentos presentes na cultura e nos elementos constitutivos do imaginário destes jovens.

Neste sentido, é preciso abrir espaço para a análise de um suposto caminho de mediação na prática pedagógica. Ainda mais porque a suposta “descentralização

pedagógica” e a “recomendação do ensino de filosofia” pela própria LDB vêm permitindo que a filosofia seja reintroduzida nas escolas.

Porém, antes de buscarmos preconizar o ensino de filosofia como necessidade nesses nossos tempos e travarmos uma nova luta pela sua obrigatoriedade nos

currículos de Ensino Médio e Fundamental é necessário nos perguntarmos sobre o papel educacional da Filosofia. Essa discussão iniciada em meados de 1976,

aponta para alguns instigantes caminhos que vão desde o questionamento político frente às novas diretrizes das Reformas Educacionais até o enfrentamento das

questões relacionadas ao conteúdo que se deve ensinar e à formação de profissionais competentes: Devem dar aulas de filosofia licenciados em Filosofia ou não?

Poderia estar o ensino de filosofia nas mãos do pedagogo? Deve-se privilegiar a história da filosofia como centro de um conteúdo programático ou como referência

para a análise contextualizada de temas e problemas? Devemos inserir o aluno no universo árido da análise conceitual dos textos filosóficos ou devemos partir do

esforço de interpretação da realidade vivida? É relevante o conhecimento dos sistemas filosóficos que se erigiram em toda a história do pensamento ou podemos

fazer recortes desse universo? Se podemos, quais os critérios que usaríamos neste recortes?

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Há quase duas décadas profissionais envolvidos com o Ensino da Filosofia, assim como pesquisadores preocupados com compromisso educacional da

Filosofia abordam essas e outras questões. Todavia, neste caldeirão de idéias, críticas, concepções e até propostas é negligenciada uma das mais complexas questões:

a questão de um método para introduzir jovens e crianças no universo do Filosofar e da Filosofia, o estudo de um caminho capaz de conciliar o esforço sistemático

de construção teórica com os procedimentos do filosofar. Nos perguntamos freqüentemente: Filosofia ou Filosofar com crianças e jovens? Por trás de toda a

discussão que marca, nestas duas últimas décadas, a reintrodução da filosofia no currículo do Ensino Médio e, recentemente, a introdução no Ensino Fundamental

revela-se um dualismo entre conteúdo e forma, entre teoria e prática. Apesar das críticas e da análise de diferentes propostas que despontam no meio educacional

quase como uma avalanche de modismos, nos colocamos à margem de um estudo rigoroso para um caminho de superação. Nos colocamos à margem, talvez por

acreditarmos que a questão de um método educacional esteja nas mãos dos pedagogos, se bem que negamos a eles a competência de ensinar filosofia; talvez porque

apesar de todas as transformações que ocorreram desde a passagem da consciência mítica à consciência filosófica na Grécia Antiga ainda nos colocamos no papel de

observadores atentos do que ocorre a nossa volta, de theoros... A filosofia nas escolas nos exige agora uma outra postura, um novo desafio se não quisermos

contemplar sua banalização para depois escrevermos sistematicamente e com rigor um tratado sobre seu fracasso: a filosofia nas escolas nos exige a busca de uma

ação educacional, o estudo de metodologias que garantam seu sentido e significado.

Da reflexão do contexto acima exposto que se constrói as teias deste texto, na busca de um caminho que permita a conciliação entre a teoria

filosófica e a prática do filosofar. É da inquietação oriunda da prática com o ensino de Filosofia para alunos de Ensino Médio que se pergunta sobre o

papel da Narrativa no Ensino de Filosofia e sobre as aproximações entre literatura e filosofia. O sucesso avassalador do texto “O mundo de Sofia” de

Jostein Gaarden, publicado pela Ed. Companhia das Letras, “As novelas filosóficas” que compõem o “Programa de Filosofia para Crianças” de Matthew

Lipman nos remetem a necessidade de análise da narrativa enquanto um dos recursos metodológicos para o ensino de filosofia.

No entanto, antes de tratar propriamente do problema que pretendo abordar, julgo pertinente localizá-lo no cenário de indefinições que configura o ensino de

filosofia no Ensino Médio.

Marcada pelo fracasso do ensino técnico-profissionalizante, a reintrodução da filosofia nos currículos do Ensino Médio, no início da década de 80,

trazia em seu bojo a retomada da crença em uma educação revolucionária, capaz de romper as amarras e marcas da ditadura que afastaram o aluno da

crítica, do esforço de construção teórica autônoma, da prática do diálogo e da argumentação. Essa empolgação logo se diluí quando se constata que as

marcas do tecnicismo eram bem mais profundas do que se imaginava. A filosofia não poderia se configurar como salvadora de um cenário educacional no

mínimo desolador. Acrescenta-se a este cenário uma espécie de indefinição dos objetivos do Ensino Médio: Se não se trata mais de um ensino com o

objetivo de inserir jovens no mercado de trabalho, qual sua função? A resposta oferecida pelo MEC é que o Ensino Médio deveria oferecer aos estudantes

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“uma formação geral”. Assim, num currículo de generalidades haveria lugar para filosofia como parcela significativa e importante do acervo cultural da

humanidade: filosofia para cidadania é assim que se configura o papel da filosofia no Ensino Médio. No início da década de 80, nos entraves da

redemocratização, a cidadania e a filosofia, é claro, ficariam como “questões optativas” .

As indefinições sobre os objetivos do Ensino Médio e o papel da filosofia nos currículos se estende ao longo dessas duas décadas. A Lei 9394/96

parece tentar solucionar o impasse: o ensino deverá vincular-se ao mundo do trabalho e à prática social, deverá superar o dualismo entre teoria e prática,

conciliar formação humanista e uso de tecnologias. O foco é aprender a aprender, ou seja, oferecer condições para continuidade do processo de

aprendizagem, seja ele dentro ou fora das Instituições Educacionais; daí a ênfase no desenvolvimento de competências e habilidades. Qual o papel da

filosofia neste novo contexto? A LDB, em seu artigo 36, §1, afirma que os educandos devem demonstrar domínio dos conhecimentos de Filosofia e

Sociologia necessários ao exercício da cidadania. Quais seriam os conhecimentos necessários a esse fim? A que modelo de cidadania se refere o texto?

Os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio apontam para três dimensões do conceito de cidadania: estética, ética e política. Estética

no sentido do exercício da sensibilidade; ética no sentido de construção da identidade autônoma e política, visando a participação democrática através do

acesso a bens culturais e naturais. O conceito de cidadania é formulado na esfera ideal e caberá à escola aproximá-lo do real. É, neste contexto, que a

Filosofia entra desenvolvendo algumas competências e habilidades.

Examinemos algumas dessas competências e habilidades, assim como os procedimentos indicados pelo texto dos Parâmetros:

- Ler textos filosóficos de modo significativo:

� Fazer o estudante aceder a uma competência discursivo-filosófica, ou seja, tornar evidente a conexão interna entre conteúdo e método;

� Exercitar a capacidade de problematização, isto é, apropriar-se reflexivamente do conteúdo;

� Tematizar e criticar, de modo rigoroso, conceitos, proposições e argumentos, valores e normas, expressões subjetivas e estruturas

formais;

� Apropriar-se de quadro referencial a partir de conceitos, temas, problemas e métodos conforme elaborados a partir da própria tradição

filosófica.

Mas como o fazê-lo? Quais conteúdos escolher? Após considerações sobre as possíveis formas de se construir o conteúdo, seja por temáticas,

sistemas ou autores, o texto alerta:

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Deve-se ter critérios muito claros na escolha que se fizer deles para o cotidiano pedagógico. Um deles, talvez o mais influente, será o ponto de vista filosófico do professor, conjugado à sua formação cultural”. Ainda no mesmo texto pode-se ler: “Considerando o critério da realidade do aluno, acredita-se que, num país de baixa literatação, como é o nosso caso, uma disciplina com o grau de abstração e contextualização conceptual e histórica, como ocorre com a Filosofia, supõe que a opção do curso que for feita deve corresponder um cuidado redobrado com respeito às metodologias e materiais didáticos, levando em conta o que é necessário para introduzir os alunos significativamente no Filosofar. (PNCEM)

Mas quais são os materiais e metodologias capazes de auxiliar o professor a cumprir essa tarefa? Seria um bom critério a escolha pautada pela

formação cultural do professor? Estaria o professor de filosofia alheio aos problemas “de um país de baixa literatação”?

Sem a busca e estudo sistemático de metodologias e materiais, seria possível atingir o desenvolvimento das demais competências e habilidades,

como pressupõe o texto dos Parâmetros?

Revisitando a prática do ensino de filosofia na sala de aula

(...) Enfim Micrômegas disse

- Já que sabeis tão bem o que está fora de vós, sem dúvida sabereis melhor o que está dentro de vós. Dizei-me o que é vossa alma, e de que modo formais vossas idéia?.

- Os filósofos falaram todos ao mesmo tempo, como antes. Mas cada um tinha uma opinião diferente. O mais velho citava Aristóteles, outro pronunciava o nome de Descartes, este o de

Malebranche, o outro o de Leibniz, outro ainda o de Locke. Um velho peripatético disse alto, com toda a confiança:

- A alma é uma enteléquia e uma razão pelo qual tem o poder de ser o que é. É o que declara expressamente Aristóteles, página 633 da edição do Louvre.- Não entendo bem o grego – disse o gigante.

- Eu também não- disse a traça filosófica. - Por que então- retomou o siriano- citais um certo Aristóteles em grego? - É que é bom citar o que não se compreende na língua que menos se entende – replicou o sábio. - O cartesiano tomou a palavra e disse: - A alma é espírito puro, que recebeu, no ventre da mãe, todas as idéias metafísicas, e que, ao sair de lá, é obrigada a ir à escola e

aprender de novo o que sempre soube tão bem e que nunca mais saberá. - Então não vale a pena que a alma seja tão sábia no ventre da mãe, para ficar tão ignorante quando tiver barba na cara- respondeu

o animal de oito léguas. – Mas o que é que entendeis por espírito? - O que é que estais me perguntando? Não tenho a mínima idéia do que seja – disse o raciocinador. - Dizem que o espírito não é a matéria (...)

(VOLTAIRE, 1997)

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O pequeno trecho acima, extraído de um dos contos do filósofo iluminista Voltaire, aponta para uma interessante forma que o autor encontra para

questionar as finalidades da filosofia e dos dogmatismos filosóficos. Por outro lado, lança alguns elementos para pensarmos o próprio ensino da filosofia e

nossa concepção do filosofar como estudo analítico de sistemas e teorias sistematizadas ao longo da história. Todavia, antes de iniciarmos essa reflexão,

seria pertinente oferecer uma síntese do instigante trabalho de Voltaire no conto.

O personagem Micrômegas é um extraterrestre de estatura gigantesca que chega ao minúsculo globo terrestre, vindo da estrela Sírius, em

companhia de um Saturniano. Micrômegas é ser de espírito culto, não apenas por saber muitas coisas, mas também por ter inventado tantas outras. Quando

saiu da infância, com cerca de 450 anos, o gigante envolveu-se em conflitos graças a uma pesquisa sobre a forma substancial das pulgas e pôs-se a viajar

de planeta em planeta com o objetivo de formar o espírito e coração. Em seu encontro com o habitante de Saturno, secretário da academia, Micrômegas

estabelece um interesse diálogo acerca dos limites do conhecimento e após trocarem informações do pouco que sabiam e do muito que não sabiam,

resolveram empreender uma viagem filosófica. Como gigante que é, Micrômegas não tem apenas cinco sentidos, mal mil. Enquanto seu amigo Saturniano

tem apenas 72 sentidos. Acidentalmente os dois viajantes chegam à Terra convictos que, dadas as irregularidades de construção do globo, ali não poderia

existir vida inteligente Mas o gigante depara-se com alguns homens em um navio em pleno oceano e os coloca na palma da mão. As partículas minúsculas

que falam são filósofos e iniciam uma conversa com o gigante a fim de demonstrar sua pretensa sabedoria. Todos falam ao mesmo tempo e iniciam uma

disputa acirrada que provoca os risos do gigante, afinal como seres tão infinitamente pequenos podem alimentar orgulho e pretensão tão grandes? Com dó

daqueles seres, o gigante promete entregar a seus interlocutores um livro, em letras bem miúdas, com a resposta da finalidade de todas as coisas. Os

filósofos levam o livro à Academia e em abertura solene descobrem que o livro está inteiramente em branco.

Como podemos interpretar o conto de Voltaire? Ironia, sarcasmo ou descrença na filosofia?

Podemos encontrar algumas chaves de interpretação da narrativa na própria obra de Voltaire, inserindo-a no contexto de sua produção e ação

históricas. A idéia de uma razão crítica tem na história a sua arma para lutar contra a intolerância e para fazer do filosofia ação capaz de mudar a história.

Crítico ferrenho dos grandes sistemas filosóficos, Voltaire se nega a construir o seu, antes coloca todos sobre o crivo da razão.

Neste sentido os contos de Voltaire são fascinantes. Revela-se um encontro entre conteúdo e forma, pois se os grandes sistemas filosóficos foram

edificados por uma cadeia de argumentos dedutivos e indutivos, a crítica aos sistemas empresta da literatura a forma da narrativa para revelar o absurdo de

um enredo que pretende se colocar para além do tempo vivido e da história. Afirma Maria das Graças Nascimento e Silva:

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“Os personagens dos contos de Voltaire são, quase sempre viajantes. Viaja o gigante espacial Micrômegas, “de planeta em planeta, para acabar de formar o espírito e o coração”, até que vem dar na nossa Terra que, para ele, por causa da pequenez, parece mais um formigueiro. Viaja também o herói Cândido, em sua incrível peregrinação pelas mais diversas regiões do mundo, em busca da amada Cunegundes. Viaja por fim o ingênuo huroniano semi-selvagem, tentando compreender as loucuras dos europeus. (...) A aventura de descobrir o mundo até os confins traz à luz uma série de elementos para a reflexão. Viajar permite comparar, opor, duvidar e chegar ao sentimento de que as coisas são, no final das contas, relativas. Dessa aventura pode resultar uma visão de mundo diferente daquela que teríamos sem sair do mesmo lugar. Os personagens de Voltaire nos conduzem a mundo de surpresas, a fatos inesperados, às vezes maravilhosos, às vezes grotescos. Que visões do mundo e das coisas ele quer revelar ao leitor? (NASCIMENTO, 1993)

A aventura da viagem implica na possibilidade de perder-se, por isso em sua Teoria do Romance, Lukács ao analisar a epopéia grega

afirma:

Ao sair em busca de aventuras e vencê-las, a alma desconhece o real tormento da procura e o real perigo da descoberta, e jamais põe a si mesma em jogo; ela ainda não sabe que pode perder-se e nunca imagina que terá que buscar-se. (LUKACS,2003)

Acerca da filosofia, Lukács entende representar esta uma cisão entre o interior e o exterior, um índice da diferença essencial entre o eu e o mundo,

da incogruência entre a alma e ação. Neste sentido, a filosofia grega não se distancia da epópeia. Afirma Lukács que nos tempos da filosofia grega, todos

os homens são filósofos, depositários do objetivo utópico de toda a filosofia:

O grego conhece somente respostas, mas nenhuma pergunta, somente soluções (mesmo que enigmáticas), mas nenhum enigma, somente formas, mas nenhum caos. (...) Por isso, a conduta do espírito nessa pátria é acolhimento passivo- visionário de um sentido prontamente existente. O mundo do sentido é palpável e abarcável com a vista, basta encontrar nele o locus destinado ao individual. O erro, aqui, é questão somente de falta ou excesso, de uma falha de medida ou de percepção. Pois saber é alçar véus opacos; criar, apenas copiar as essencialidades visíveis e eternas; virtude, um conhecimento perfeito dos caminhos; e o que é estranho aos sentidos decorre somente da excessiva distância em relação ao sentido. (Idem)

Longe da certeza de sair e voltar, da sensação de viajar mantendo a sensação de sempre sentir-se em casa, tanto a filosofia quanto a literatura

moderna, nos propõe a aventura de perde-se, de ultrapassar fronteiras em que os limites não são prontamente demarcados. Resta-nos saber, enquanto

professores de filosofia, se queremos enfrentar esses perigos ou se consideramos a filosofia e seu ensino como afirma Novalis: “Filosofia é na verdade

nostalgia, o impulso de sentir-se em casa em toda a parte”

Por hora, creio que o conto de Voltaire poderia nos introduzir na reflexão que se pretende abordar neste texto, ou seja, a reflexão sobre as “filosofias”

e as finalidades de seu ensino e de sua prática em sala de aula, por meio de algumas metáforas que poderiam se configurar como visões caricatas da

problemática que envolve o ensino de filosofia.

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É claro que esta empreitada nos oferece riscos. Riscos dos reducionismos próprios das caricaturas, mas para ser coerente com a proposta de

ultrapassar fronteiras entre o literário e filosófico, partirei das múltiplas leituras que nos oferece o conto de Voltaire para tentar reescrevê-lo à luz das

inquietações que extrapolam o tempo e o espaço que lhe deram origem, enfim, para torná-lo presente no agora de nossa situação problemática. De

qualquer forma, é preciso admitir que, algumas vezes, as caracterizações na filosofia podem ser mais arriscadas que as caricaturas.

Diria que alguns educadores se vêem como os filósofos do conto de Voltaire e encerram a discussão na citação de obras e autores. A filosofia seria

portadora de um saber que só seria alcançado através do pleno domínio de sua linguagem. Quem a ensina, portanto, deveria introduzir o aprendiz em um

universo de conceitos e argumentações construído ao longo de sua história. Considerando-se que essa não é uma tarefa que poderia ser realizada em curso

introdutório, tal como se configura no Ensino Médio, a filosofia só poderia ser tarefa de filósofos. Caso contrário, se constituiria em “coisa que não se

compreende em língua que menos se entende”.

Outros, como o gigante do conto, tomam os pequenos nas palmas da mão e se deliciam com sua ignorância. Trata-se da posição de quem é detentor de algum tipo

de saber e que, benevolentemente, se compraz daqueles que pensam que sabem. Seria, portanto, preciso oferecer-lhes a promessa do saber enquanto autoridade,

mesmo que sem nenhuma linha traçada. Pelo menos duas possibilidades poderiam ser extraídas desta posição:

A primeira, que geralmente nos faz retomar a atividade socrática como metáfora da própria filosofia, é a de que a finalidade do ensino de filosofia

estaria em destruir as certezas, ou melhor, as falsas certezas. A ironia socrática cumpriria a missão de quem pergunta para constatar a ignorância de quem

não pode responder. Essa postura, se por um lado contém o gérmen da crítica, por outro, nos remete à crença na existência de uma verdade que estaria nas

mãos de poucos capazes de reconhecê-la e ler aquilo que ninguém pode ver. Sendo assim, o professor de filosofia seria o guia dos cegos até que eles

pudessem enxergar.

A segunda possibilidade é entender a filosofia como exercício de puro questionamento, o lugar dos “porquês”. Ainda aqui, a finalidade da filosofia

seria a de demolidora de certezas, não das certezas mais imediatas ou inconsistentes, mas de tudo que esteja estabelecido. O professor de filosofia seria

aquele sabe questionar, questiona a existência de Deus, as possíveis evidências das percepções e dos sentidos, pois acredita ser o filósofo aquele que

pergunta mas não responde. Não há nada escrito no livro, portanto nada vale, tudo pode.

Há ainda aqueles que abrem os livros e que inconformados com os espaços vazios, interpretam o vazio à luz de algum sistema. Para estes a filosofia estaria

sempre pronta a arranjar o desarranjado, basta-lhe um procedimento seguro. Só não vê aquele que ainda não domina as ferramentas da visão. Se apropriar das

ferramentas adequadas para ler o livro do mundo e ensinar a utilizá-las com precisão constituiria a tarefa do professor de filosofia. Pouco importa o conteúdo ou se

há conteúdo, a filosofia seria , em seu fazer, exercício intelectual.

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Mas há ainda uma outra maneira de ler o conto de Voltaire e essa me parece promissora para pensarmos as finalidades da filosofia no Ensino Médio. Seria a de

entender a filosofia como livro aberto para cravarmos os sinais e os significados na ação e no exercício de interpretação e reinterpretação que envolve as questões do

presente à luz de certas tradições filosóficas. Se esse for o objetivo da filosofia e de seu ensino, seria o texto filosófico o instrumento mais adequado para introduzir o

aluno na aventura do perder-se de si para buscar reencontrar-se?

Tentando buscar indícios para responder esta questão, façamos um pequeno passeio pela prática da filosofia em sala de aula tomando emprestado alguns

depoimentos extraídos do trabalho de pesquisa de Maria Helena Prado Maddalena “Lecionar filosofia uma prática em Debate: um estudo de caso do ensino de

filosofia nas Escolas Estaduais de Ensino Médio de Mogi das Cruzes”(MADDALENA, 2001) Embora várias questões elaboradas em entrevistas com professores do

ensino médio nos interesse, nos limitaremos a duas: “O que é filosofia para você? Qual metodologia é usada nas aulas?”

Primeira Questão : O que é filosofia para você ou o que espera das aulas de filosofia?

Professor I

A filosofia é a busca do conhecimento, a busca de respostas, a busca da sabedoria, a busca de acertar. Seria mais ou menos isso... a busca de acertar. Com

todos os erros que acontecem na vida, mas estamos em busca de fazer os erros o menos mal, o mais certo.

Professor II

Olha, eu tenho uma expectativa... eu gostaria muito de levar o aluno, um pouquinho, ao raciocínio abstrato; não consegue abstrair-se nada. Terceiro colegial

eles não conseguem tirar uma reflexão de um filme, de uma música..., eu pelo pouco tempo que tenho de uma aula, faço um debate para poder ver as coisas na

sociedade, tentar refletir, que as coisas que estão aí nem sempre são aquilo que está sendo apresentado, mas existe algo por trás que a gente tem que descobrir. Eu

sonho muito com a filosofia, inclusive com a filosofia individual, enquanto filosofia clínica.

Professor III

A filosofia é uma forma de conhecimento. O que eu tenho passado aos alunos é que a reflexão contribui para ciência, porque a ciência analisa de uma forma

e a filosofia de outra, porque a filosofia não está presa a um só aspecto - ela analisa os fatos em seus vários aspectos. A reflexão é importante para todo o mundo;

então, todos nós temos que filosofar. Nós todos temos que ser filósofos no sentido de estar sempre refletindo, pensando.

Professor IV

A concepção que eu tenho de filosofia, enquanto disciplina para o ensino médio, ela tem a funcionalidade de estruturar outras disciplinas. A filosofia faz a

análise de todas as ciências, sempre no ponto de vista filosófico. Neste sentido, a filosofia é extremanente importante, porque ela vai dar uma totalidade diferente

para a ciência, das visões que se tem em relação à ciência e das visões que a maioria dos professores têm em relação às suas próprias disciplinas. Então a filosofia vai

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despertar um senso crítico-filosófico nos alunos, para que eles possam enxergar as diversas disciplinas que assistem de forma diferente, para que não sejam

conduzidos a terem uma visão apenas unilateral das ciências.

Professor V

Para mim é tudo. Ela está vinculada a todas as áreas de nossa vida, em todas as disciplinas, em toda a parte. Tem quem pense que a filosofia é uma coisa

assim sofisticada, um “bicho de sete cabeças. Antigamente havia essa idéia, até um tempo atrás, de que a filosofia era coisa para elite, mas não é. Ela está em tudo,

tudo o que se faz, se usa a filosofia.

Professor VI

É primordial, é fundamental. É justamente a filosofia que vai trazer novamente à tona os valores que estão perdidos. É justamente este o papel da filosofia;

num momento de crise, num momento que o senso comum não consegue responder mais nada, entra a filosofia. Ela foi desprezada muito tempo, não lhe deram a

devida atenção; professor de filosofia no Estado não tem capacitação, não tem um cursinho, não tem nenhuma palestra para se inteirar. Eu acho isso um horror, um

descaso muito grande, porque eles ficam com medo de que o aluno faça greve, mas isso não é verdade. A filosofia ensina a criticar, mas de uma maneira racional, de

uma maneira organizada, que não tende à baderna. Eles não tem que ficar com medo disso.

Professor VII

Particularmente, eu gosto muito. Eu sou realizada; acho muito importante, na atualidade abrir a mente dos jovens, apesar da apatia dos jovens, que não

gostam de pensar. Eles acham que a filosofia não serve para nada, não cai no vestibular. Eu acho que o ser humano, a própria sociedade, preparou o homem para ter,

não para ser. Tudo visa a utilidade, o para que serve, o que eu vou ganhar com isso, e não o que eu vou ser, o que vai me enriquecer em termos de pessoa, de ser

humano. Infelizmente, é isso que está faltando na cabecinha deles; eles estão muito na visão capitalista, do ter, e estão deixando o lado do ser.

Nos diversos depoimentos acerca do que é filosofia ou da finalidade de seu ensino é fácil observar que permanece a crença de um certo poder redentor da

filosofia, seja enquanto conhecimento que se opõe ao cientificismo, seja enquanto forma de se recuperar valores esquecidos, ou mesmo enquanto crítica do

capitalismo e da sociedade de consumo. A filosofia como exercício de abstração e análise crítica caracteriza o processo do filosofar, embora algumas expressões

utilizadas mereçam atenção, pois revelam ser esses procedimentos essenciais da filosofia que precisam ser acordados ou despertados no aluno quase que de forma

espontaneísta: “Eles não conseguem tirar uma reflexão de um filme...” - “A filosofia vai dar uma totalidade diferente às ciências” – “todos nós temos que ser

filósofos no sentido de estar pensando refletindo” – “A filosofia vai trazer à tona os valores que estão perdidos” – “Acho importante(...) abrir a mente dos jovens.”

Vejamos pois os meios ou caminhos escolhidos para atingir tais objetivos:

Professor I

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No primeiro ano eu sentia muita dificuldade, durante os primeiros seis meses, porque quando eu sai da faculdade, às vezes eu queria passar a filosofia como

era na faculdade, mas a gente vê que no segundo grau é completamente diferente. Você tem que colocar o aluno no contexto definindo o que é a filosofia... Olha a

metodologia, geralmente é a aula expositiva, discussões, debates, sem dar respostas prontas, mas fazendo com que cada um dê sua opinião e pergunte o “porquê” das

coisas. Sempre falando, às vezes com filmes, colocando situações que a gente vive. Por exemplo, um dos filmes que eu trabalhei com a questão das emoções, da

razão, da intuição, que foi um filme novo, “O sexto sentido”. Então deu para trabalhar com um lado intuitivo. Para mostrar que quando as coisas acontecem,

acontecem sempre em cima de causa e efeito. Então eu identifiquei esse nome técnico com os alunos – causa e efeito- que para eles é muito novo. Não é um

acontecimento traz outro- nada vêm do além- então tento sempre colocar coisas que chamem atenção e aproveito o interesse deles naquilo que eles colocam com

certa evidência.

Professor II

Normalmente eu adoto alguns livros básicos para o meu trabalho, “Um outro olhar”, que eu gosto muito, da Sônia Maria Ribeiro de Souza. “O filosofando”,

“O mundo de Sofia”, e um outro, muito interativo, da Angélica Sátiro e Mirian Wuensch. Esse livro deveria estar na mão de todos os alunos, pelas atividades... é

difícil estar usando, porque você acaba tendo que passar muita coisa na lousa, com uma aula...

Professor III

Olha, eu tenho feito mais aula expositiva, isso devido à dificuldade que os alunos têm para interpretar, para ler, escrever – nos terceiros anos a gente encontra

erros bárbaros: que eu vou fazer? Dá desânimo

Professor IV

Eu trabalho com temas, no meu planejamento eu tenho temas que eu trabalho no bimestre. Por exemplo no primeiro bimestre eu trabalho com a cultura-

abordo as questões do desenvolvimento da própria antropologia, da antropologia filosófica, da antropologia cultural, e aí, bem no início, a questão da relação

linguagem com o conhecimento, o desenvolvimento do processo, como se processou a própria abstração... Eu pego Gramsci, pego Marx, faço a análise do

pensamento político, econômico, para que eles possam entender o que se passa hoje, sempre fazendo uma análise histórica. Há uma necessidade...as aulas do terceiro

ano permitem a você abordar a questão histórica, contextualizar, porque há uma dificuldade tremenda no conhecimento da história, não há bagagem de história, a

não ser o conhecimento mais comum e superficial que todos tem. Não uso livro-texto, eu uso aí uma miscelânea...a gente que já tem uma certa experiência, nunca

usa um referencial só. Nem sempre textos de filosofia; são artigos de jornal do Gilberto Dimenstein, do Marcelo Coelho, da Marilena Felinto, que são textos

interessantes. Esses são mais textos de jornais, e eu trabalho com outros textos, também. Tem uma revistinha muito interessante, produzida em Porto Alegre, se

chama Mundo Jovem. É uma revista produzida pela Pastoral da Juventude Operária da Igreja Católica, em que eles produzem essa revista é muito interessante; então

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você tem ali... a própria revista dá trabalhar com os alunos. Então tem várias temáticas, separadas em textos. A própria revista nem grampeada é, que é para você

destacar para poder trabalhar. Então tem aspectos assim: filosofia – e aí tem uma análise, tem questões, muito interessante esta revista...

Professor V

Olha, para eu trabalhar em sala de aula, é muito difícil. Eu trabalho com dois livros- eu gosto de trabalhar com apostilas, porque os livros eles (os alunos)

falam que não podem comprar, então eu tiro xerox para eles. Os livros são “Temas de Filosofia” de Maria Lúcia Arruda Aranha e Maria Helena Pires Martins e “Um

outro olhar” de Sonia Maria Ribeiro de Souza. Esse livro é muito bom, os alunos gostam dele porque ele traz poesia, traz música, coisas que estão mais perto deles.

São temas atuais, não tem aquela coisa do passado, que eram mais textos que eles tinham que pegar em outras fontes. Aí não, tem quase tudo que é da realidade

deles – jornais, revistas, cita algumas coisas que estão ao acesso deles. Entre o trabalho com temas e capítulos, trabalho com capítulos que abordam vários temas. Por

exemplo: agora eu estou trabalhando com o mito. Eu já trabalhei dois capítulos. O primeiro – Filosofia, processo e produto – e – O homem, quem é ele, afinal – o

terceiro – Mito- religião e Filosofia, que estou trabalhando agora.

Professor VI

Eu estou buscando; montei o programa com capítulos do livro. Estou buscando uma definição melhor. Dentro dos capítulos do livro vou trabalhando dia a

dia; trato dos acontecimentos atuais, vou usar vídeos da TV Cultura. É tudo uma novidade, são tentativas.

Professor VII

Eu faço o Programa, inclusive eu era sozinha aqui, me reunia com os professores de sociologia, para ver se os temas não se repetiam muito, conseguindo

fazer um trabalho que não ficasse tão repetitivo para o aluno... Enfim a gente faz um programa, não deixando de lado a história, fazendo mais a parte histórica, e

também abordando temas importantes como a ética, a política, etc... Não consigo adotar um livro didático, não. Eu uso muito o “Filosando”. Eu tenho mais ou

menos preparado, na cabeça... depois de tantos anos...eu procuro sempre estar trazendo uma coisa nova. Agora estava dando uma olhada no “Convite à Filosofia” da

Marilena Chauí, achei muito bom.

É importante salientar que os 7 professores entrevistados pela pesquisadora, todos são licenciados em filosofia.

Embora eu não pretenda fazer um análise detalhada das respostas é interessante destacar alguns elementos que nos servem aqui como pano de fundo para

uma reflexão mais ampla:

1) Há em todos os depoimentos uma preocupação em fazer o aluno conhecer a história da filosofia;

2) O programa de curso é, geralmente, marcado por capítulos de livros didáticos, embora os professores não os adotem;

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3) O que determina a escolha dos livros didáticos ou demais recursos utilizados não é a concepção de filosofia do autor ou os problemas que os textos apresentam,

mas a presença de elementos que permitam uma certa aproximação do aluno dos temas a serem abordados: música, poemas, artigos de jornal e indicação de

filmes;

4) Não há nenhuma preocupação em aproximar o aluno do texto filosófico ou da leitura filosófica de textos narrativos. A dificuldade de leitura dos alunos leva o

professor a intercalar aulas expositivas que inferimos serem referentes a apresentação da história da filosofia, com aulas onde é possível discutir alguns temas

capazes de mobilizar os alunos.

Podemos, também, de certa forma afirmar que há uma ruptura entre o conteúdo e a forma. O conteúdo contido na tradição filosófica é tratado em aulas

expositivas e forma crítica da reflexão é vivenciada em debates onde o aluno pode pensar e emitir opiniões, embora caiba ao professor “abrir a cabeça” do aluno para

que este possa desvencilhar-se das respostas prontas e do senso comum. Embora não queria fazer julgamentos precipitados pareceu-se que as entrevistas com os

professores mantém algumas similaridades no que se refere a forma de entender a filosofia. Apontarei aqui duas:

1) A crença que, num universo fragmentado, a filosofia enquanto atividade totalizadora, exposta em uma espécie de “epopéia do pensamento”, poderia auxiliar

os alunos na busca da verdadeira sabedoria. A explicação do que é a filosofia se faz, na maioria das vezes, pela narração da grande aventura dos grandes

heróis do pensamento. Cabe ao professor contar essa história em aulas expositivas, de forma linear ou não, na maioria das vezes com o auxílio do livro

didático;

2) A compreensão da filosofia como atividade crítica e questionadora, capaz de fazer o aluno pensar com autonomia. A filosofia indicaria a necessidade de um

trabalho de abstração e análise e, se não é possível acompanhar a abstração do texto filosófico, é possível tratar as questões polêmicas (sexo, aborto, drogas)

de forma crítica.

A afirmação de Walter Benjamin que a narrativa estaria se definhando pois a sabedoria(o lado épico da verdade) estaria em extinção nos conduz ao

questionamento da verdade como patrimônio da tradição (seja da experiência vivida ou tradição filosófica). As transformações tecnológicas transformam nossa

vida de forma abrupta e impessoal. Não seria mais possível aconselhar. Ora, se admitimos com Benjamin que o conselho extraído da experiência vivida nos

parece antiquado, o que dizer do “conselho” extraído da tradição filosófica que se apresenta de forma enigmática aos alunos? O que dizer quando esta tradição é

apresentada com uma narrativa historiográfica de idéias e pensamentos contada pelo professor de filosofia?

Mesmo admitindo inúmeras respostas às dúvidas colocadas na história da filosofia, considerando-a como uma atividade distante de respostas prontas, o

professor não crê na possibilidade da própria filosofia se perder e crê que na filosofia reside a promessa da sabedoria.

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Neste contexto seria pertinente, dada as dificuldades do professor trabalhar com o texto filosófico, nos perguntarmos o que efetivamente caracteriza um texto

como filosófico e quais as possibilidades da narrativa.

Do filosófico ao literário- fronteiras e possibilidades

O Rei fartou-se de reinar sozinho e decidiu partilhar o poder com a Opinião Pública. - Chamem a Opinião Pública – ordenou aos serviçais Eles percorreram as praças da cidade e não a encontraram. Havia muito que a opinião deixara de frequentar os lugares públicos. Recolhera-se ao beco sem saída, onde furtivamente, abria só um olho, isso mesmo lá de vez em quando. Descoberta, afinal, depois de muitas buscas, ela consentiu em comparecer ao Palácio Real, onde sua Majestade, acariciando-lhe docemente o queixo, lhe disse: - Preciso de ti. A Opinião muda como entrara, muda se conservou. Perdera o uso da palavra ou preferia não exercitá-la. O rei insistia, oferecendo-lhe sequilhos e perguntando o que ela pensava disso e daquilo, se acreditava em discos voadores, horóscopos, correção monetária, essas coisas. E outras. A Opinião Pública abanava a cabeça: Não tinha opinião. - Vou te obrigar a ter opinião – disse o Rei, zangado. – Meus especialista te dirão o que deves pensar e manifestar. Não posso mais reinar

sem teu concurso. Instruída devidamente sobre todas as matérias, e tendo assimilado o que é preciso achar sobre cada uma em particular e sobre a problemática geral, tu me serás indispensável.

E virando-se para os serviçais: - Levem esta senhora para o curso intensivo de Conceitos Oficiais. E que ela só volte aqui depois de decorar bem as apostilas.

(DRUMMOND, 1985)

Quando nos perguntamos o que é literatura ou mesmo o que é filosofia tendemos a afirmar que o campo da racionalidade e dos sistemas

explicativos seria o campo da filosofia e o espaço das emoções e dos afetos seria o campo da arte e da literatura, capaz de nos arrebatar. Aqui convém

questionar: Estariam as relações entre filosofia e literatura marcadas com certezas claras e distintas, como no cogito cartesiano? O que, então, caracteriza

o texto filosófico?

Essa caracterização não é simples porque esbarra na caracterização da própria filosofia. Alguns referenciais para traçar essa distinção podem ser encontrados

nas obras de G.G Granger e Frederick Cossutta. Para esses pensadores a especificidade do texto filosófico seria a construção de um universo de significação que tem

sua raíz na experiência vivida, mas se desloca da mesma através de conceitos. Enquanto o artista cria significações e nos faz vivê-las, o filósofo transpõe o vivido em

termos de abstrações conceituais.

Independentemente dos mecanismos de construção de um texto filosófico, seja por meio de uma cadeia dedutivas de argumentação ou por estilizações

subjetivas e metafóricas, o que nos permite identificar um texto como filosófico é a possibilidade da construção e reconstrução dos conceitos. No universo conceitual

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estaria a instância mediadora do vivido e do pensado, do particular e do universal, do concreto e do abstrato que permite ao filósofo deslocar, atribuir sentidos,

destruir e construir significações.

A elaboração dos conceitos no interior do texto filosófico permite-nos distinguir filosofia e literatura. Na literatura temos a suspensão dos referenciais do

vivido e a substituição destas referências do discurso descritivo por um equivalente ficcional. A filosofia, através do conceito, propõe a reconstrução desse discurso e

não simplesmente sua suspensão e substituição. Exatamente por isso, Granger alerta para o perigo do uso de metáforas na construção do texto filosófico, pois o uso

excessivo da imagem interrompe a exposição abstrata e a substitui por um equivalente concreto, a metáfora alude às imagens que podem ser compreendidas sem

exatidão, a situação poética poderia ser um problema para o rigor filosófico e, consequentemente, para os mecanismos da demonstração filosófica necessários para a

reconstrução do vivido.

De forma geral, poderíamos considerar os conceitos como pontos de vista sob o qual a experiência se organiza e podem ser entendidos como feixes de

explicação para as experiências, sendo assim é preciso admitir que os conceitos só podem ser criados a partir das referências vividas na experiência. Por outro lado,

tais ponto de vista podem ser desligados de sua relação referencial e considerados em si. O conceito, neste caso, torna-se reflexivo, torna-se auto- referente. No texto

sistemático – entendido por hora como texto filosófico- os conceitos reflexivos servem reciprocamente para a organização dos esquemas de organização da

experiência. Se a filosofia ganha em rigor, paga o preço de uma abstração capaz de distanciar o conceito de seu campo referencial de experiência.

Mas seria possível admitir um universo conceitual num texto de ficção? Exatamente por substituir as referências do discurso descritivo por “pseudo-

referências”, o texto literário supõe uma maleabilidade em relação aos conceitos. Apresenta-se, desta forma, possibilidades de uso de conceitos e, com isso,

possibilidades de diferentes esquemas para a organização da experiência. O real e a ficção se estrelaçam, a unidade da ficção não é a unidade de uma consistência

sistemática, mas sim uma unidade que se configura como equivalente de uma experiência. Essa unidade pode subverter os esquemas da realidade em camadas

sobrepostas no texto literário. Aqui seria preciso um esforço de leitura para o encontro com essas camadas.

A literatura pode não somente apresentar conceitos, mas também problematizar conceitos e representar condensações pré-conceituais. No texto literário é

possível encontrar a tematização de experiências pré-conceituais e se abrir ao universo de problematização e criação de conceitos. Talvez por esse motivo, a filosofia

quando duvida da validade dos grandes sistemas explicativos se aproxima da literatura. Vemos esse exemplo em Voltaire.

Ora, se admitirmos com Voltaire que a filosofia é livro a ser escrito, o que supõe uma atividade criadora e criativa, a literatura teria muito a ensinar à

filosofia e poderia apontar caminhos para seu ensino. Considerando o caráter introdutório da filosofia no Ensino, o discurso narrativo poderia se configurar com uma

ponte entre a realidade e o conceito e se abrir ao processo de criação de conceitos. Neste sentido é preciso aprender com Carlos Drumond de Andrade, para não

corrermos o risco de transformar as salas de aulas de filosofia em “Palácios do Rei”.

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Para finalizar recorro a Walter Benjamin:

Cada manhã recebemos notícias de todo o mundo. E, no entanto, somos pobres em histórias surpreendentes. A razão é que os fatos já nos chegam acompanhados de explicações. Em outras palavras: quase nada do que acontece está a serviço da narrativa, quase tudo está a serviço da informação. Metade da arte narrativa está em evitar explicações (...) A informação só tem valor enquanto é nova. Ela só vive nesse momento, precisa entregar-se inteiramente a ele e sem perda de tempo tem que se explicar nele. Muito diferente é a narrativa. Ela não se entrega. Ela conserva suas forças e depois de muito tempo ainda é capaz de se desenvolver. (...) por isso é ainda capaz de suscitar espanto e reflexão. Ela se assemelha a essas sementes de trigo que durante milhares de anos ficaram fechadas hermeticamente nas câmaras das pirâmides e que conservam até hoje suas forças germinativas. (BENJAMIN, 1985)

Referências Bibliográficas

ANDRADE, Carlos Drummond de. A opinião em palácio. In: Contos Plausíveis. Ed. José Olympio, 1985.

BRASIL, Ministério da Educação, Secretaria de Educação Média e Tecnologia. Parâmetros Curriculares Nacionais: Ensino Médio. Brasília: MEC, 1999.

BENJAMIN, Walter. O narrador- Considerações sobre a obra de Leskov. In: Obras Escolhidas – Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1985,

pp. 197 a 222.

COSSUTTA, Frederic. Elementos para a análise do texto filosófico. São Paulo: Martins Fontes.

GRANGER, Gilles Gaston. Por um conhecimento filosófico. Campinas- SP: Papirus, 1989.

LIMA, Luis Costa. (org). A literatura e o leitor: textos de estética de recepção. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

LUKÁCS, Georg. A teoria do Romance. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2000.

MADDALENA, Maria Helena. Lecionar Filosofia: uma prática em debate- Um estudo de caso do Ensino de Filosofia nas Escolas Estaduais de Ensino Médio de

Mogi das Cruzes.(Dissertação de mestrado em Filosofia da Educação). FEUSP- São Paulo, 2001.

NASCIMENTO, Maria das Graças S. do. Voltaire: A razão militante. São Paulo: Ed. Moderna, 1993. – (Col. Logos).

VOLTAIRE. Micrômegas- História Filosófica. IN: Contos. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO VIII, Nº 247 - NOVEMBRO - PORTO VELHO, 2009.

VOLUME XXVI – Set/Dez ISSN 1517-5421

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NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL ALBERTO LINS CALDAS – História - UFRO

CLODOMIR S. DE MORAIS – Sociologia - IATTERMUND ARTUR MORETTI – Física - UFRO

CELSO FERRAREZI – Letras - UFRO HEINZ DIETER HEIDEMANN – Geografia - USP JOSÉ C. SEBE BOM MEIHY – História – USP

MARIO COZZUOL – Biologia – PUC-RGS MIGUEL NENEVÉ – Letras - UFRO

ROMUALDO DIAS – Educação - UNICAMP VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia - UFSC

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Afinal, quem educa os educadores indígenas? Pensando a questão da formação dos

professores indígenas

Rosa Helena Dias da Silva

PRIMEIRA VERSÃO

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Afinal, quem educa os educadores indígenas? Pensando a questão da formação dos professores indígenas1

Rosa Helena Dias da Silva2

Trabalho apresentado na III Conferência de Pesquisa Sócio-cultural, UNICAMP, 16 a 20/07/00

1. Iniciando a conversa: escolhendo um caminho para a reflexão

“(...) é necessário formar e valorizar profissionais voltados para a própria comunidade, visando a nossa autonomia e para que as escolas sirvam como

instrumento para a permanência dos jovens em nossas aldeias e não como portas de saída".3 "A escola é porta onde podem entrar coisas boas e coisas ruins, como a corrupção. O professor vigia esta porta que chama escola para que entrem só as coisas boas e não

o que não presta. O professor é agente de transformação para melhor. Ele tem poder frente ao futuro, pois ele conhece o passado".4

A questão da formação de professores indígenas tem se destacado nos últimos anos, no cenário indígena e indigenista (oficial e alternativo), quer enquanto

reivindicação do movimento indígena, em especial dos professores, quer enquanto políticas públicas, que procuram atender a essa "demanda", no bojo da

problemática da oficialização das escolas indígenas.

Avanços legais - que têm como expressão máxima a Constituição Federal de 1988 e, mais recentemente, com respeito à educação, a nova Lei de Diretrizes e

Bases da Educação Nacional5, têm contribuído para o surgimento deste novo quadro (complexo e conflituoso), quer seja: do reconhecimento da alteridade

constitutiva da nação, e do chamado "direito à diferença", ao superar, na legislação, a premissa integracionista, deixando emergir como novo enfoque das relações, a

temática da autonomia. Segundo Guimarães (1996), "a substituição da perspectiva incorporativista pelo respeito à diversidade étnica e cultural é o aspecto central

que fundamenta a nova base de relacionamento dos povos indígenas com o Estado"6.

1 Inspirei-me, na escolha do título deste trabalho, no texto de autoria de Luiz Antônio Cunha, "Quem educa os educadores?", publicado na Revista Educação e Sociedade, São Paulo, nº 5, 1980. 2 Doutora em Educação (USP/1998), Professora na Faculdade de Educação da Universidade do Amazonas, assessora do Movimento dos Professores Indígenas da Amazônia. 3 Documento final do IX Encontro dos Professores Indígenas do Amazonas, Roraima e Acre - São Gabriel da Cachoeira/AM, 1996. 4 Relatório do VIII Encontro dos Professores Indígenas do Amazonas, Roraima e Acre - Boa Vista/RR, 1995. 5 Inúmeras são as normas legais (como é o caso do Decreto 26 - 04/02/91, da Portaria 559 - 16/04/01 e da recém aprovada Resolução do Conselho Nacional da Educação) que regulamentam a questão da educação escolar indígena. 6 GUIMARÃES, Paulo Machado. "A polêmica do fim da tutela aos índios", Brasília, 1996, texto datilografado.

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Neste processo de reconhecimento do Brasil enquanto país pluricultural e dos povos indígenas como totalidades sócio-culturais que dele fazem parte, têm se

complexificado inúmeros debates, como é o caso exemplar da noção de "cidadanias indígenas" e da necessidade de políticas públicas alterativas - isto é que dêem

conta da diversidade de realidades, experiências e situações históricas vividas pelos povos indígenas.

Neste contexto, sobressai, com bastante intensidade, a discussão acerca dos limites e possibilidades, dilemas e contradições das escolas indígenas, no

processo mais amplo de estabelecimento de novas relações entre os povos, o estado e a sociedade civil.

Para pensar mais detidamente em uma das questões que surgem na esteira da reflexão e das práticas de escolarização indígena - a formação e o papel dos

professores indígenas - estarei, neste texto, retomando idéias e revisitando análises explicitadas em trabalhos anteriores7. Coloco-me como desafio, ao reler os

próprios escritos, assim como os diversos Relatórios dos Encontros do Movimento dos Professores Indígenas da Amazônia8, concentrar meu olhar e curiosidade

investigativa no problema da formação dos professores indígenas, tendo como referencial, o tema da autonomia indígena, no marco das discussões realizadas pelo

movimento dos professores indígenas da Amazônia e seus esforços de construir uma política indígena para a educação escolar, e seu constante embate com as

políticas da educação nacional.

Algumas questões estarão norteando esta busca: a escola, um dos principais instrumentos usados durante a história do contato para descaracterizar e destruir

as culturas indígenas, pode vir a ser hoje um instrumental decisivo na reconstrução e afirmação das identidades sócio-político-culturais? Pressupondo-se esta

possibilidade, qual é o papel dos novos agentes político-culturais, que surgem nesta nova situação educativa, quer seja, os professores indígenas? Quais são os

saberes necessários a essa nova prática pedagógica? Onde e como "adquiri-los"? Afinal, quem educa os educadores indígenas?9

2. Algumas questões iniciais para pensar nas escolas (para) indígenas: percorrendo atalhos

7 Em especial, minha tese de doutorado intitulada A autonomia como valor e a articulação de possibilidades: Um estudo do movimento dos professores indígenas do Amazonas, Roraima e Acre, a partir dos seus Encontros anuais, publicada por Abya-Yala, Quito/Ecuador, 1998. 8 Já foram realizados doze encontros anuais. No último evento, realizado em Manaus, em agosto de 1999, com participação de mais de 140 pessoas, os professores indígenas decidiram, após reflexão sobre os rumos e ampliação de seu processo articulatório e organizativo, alterar o nome de seu movimento, anteriormente conhecido como Comissão dos Professores Indígenas do Amazonas, Roraima e Acre (COPIAR), para Conselho dos Professores Indígenas da Amazônia (COPIAM). 9 Desde logo é preciso dizer que, mais do que responder a estas questões - pertinentes à problemática da presença das escolas nas vidas indígenas e dos esforços do movimento indígena (e indigenista) em "indianizá-las", ou seja, de construir modelos próprios de escola - é possível que a reflexão pretendida neste texto aguce ainda mais essas indagações posto que, por um lado, é uma temática nova na história da educação brasileira e, por outro, surge, no contexto dos movimentos indígenas - com destaque aos dos professores - com maior intensidade na última década. Sendo assim, é um problema que carece/merece ainda muito estudo e aprofundamento.

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Como se sabe, historicamente, projetos de educação escolar para as populações indígenas têm sido implementados, fundados na idéia de que é necessário

“fazer a educação do índio”. Em outras palavras, escola e alfabetização entram em cena como sinônimos de educação. Como lembra Meliá (1979), “pressupõe-se

que os índios não têm educação, porque não têm a nossa educação”10 . Nesse sentido, a perspectiva oficial de escolarização indígena fundamentou-se no

entendimento etnocêntrico de que - por não possuírem a instituição denominada "escola" - os povos indígenas não possuem sistemas educacionais.

Contrariamente a essa tendência hegemônica, a história dos povos indígenas no Brasil, nesses 500 anos, tem mostrado não só a existência de formas próprias

de educação, ou seja, de sistemas indígenas de educação, como também a sua eficácia e força criativa na dinâmica do contato com o/os "outro/s", balizando os

processos de resistência, permanência e/ou mudanças culturais.

Esses modos próprios de educar, que chamarei de "pedagogias indígenas" constituem-se, no meu entendimento, valor fundamental, que deve também

orientar os trabalhos escolares. Assim, concebe-se a escola não como único lugar de aprendizado, mas como um novo espaço e tempo educativo que deve integrar-se

ao sistema mais amplo de educação de cada povo. Segundo depoimento de um professor indígena, a escola

“é uma maneira de organizar alguns tipos de conhecimento para ensinar às pessoas que precisam, através de uma pessoa que é o professor. Escola não é o prédio construído ou as carteiras dos alunos, são os conhecimentos, os saberes. Também a comunidade possui sua sabedoria para ser comunicada, transmitida e distribuída”11 .

Assim, para uma mudança no entendimento e nas posturas inicialmente apontadas quanto aos projetos de escolarização impostos aos índios, é extremamente

importante reconhecer que os povos indígenas mantêm vivas as suas formas de educação tradicional, que podem contribuir na formação de uma política e prática

educacional adequada, capaz de atender aos anseios, interesses e necessidades diárias da realidade hoje.

Uma outra questão inicial está ligada à avaliação de que a escola é hoje uma espécie de necessidade “pós-contato”, que tem sido assumida pelos índios, mesmo com

todos os riscos e resultados contraditórios já ocorridos ao longo da história. A escola, neste contexto, tem sido vista como um lugar onde a relação entre os

conhecimentos tradicionais e os novos conhecimento poderão se articular de forma equilibrada, além de ser uma possibilidade de informação a respeito da sociedade

nacional, facilitando o “diálogo intercultural” e a construção de novas relações, igualitárias.

10 MELIÁ, Bartomeu. Educação Indígena e Alfabetização, São Paulo, Loyola, 1979, p.9. 11 Palavras do Prof. Gersem dos Santos Luciano, povo Baniwa, região do Rio Negro/AM, publicada no Informativo FOIRN/Educação, São Gabriel da Cachoeira, 1996 Documento dos Guarani do Ocoy/PR sobre Escola e Currículo Indígena, abril/1995, texto digitado.

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O desafio que se coloca é o de pensar as escolas indígenas - e, no cerne desta reflexão, o papel dos professores indígenas e a crucial questão de sua formação - nos

seus limites e possibilidades, dentro da realidade atual, cada dia mais norteada por tendências homogeneizadoras e globalizantes.

Algumas citações ilustram a avaliação dos índios quanto à presença das escolas em suas vidas e as possibilidades vislumbradas, quanto ao futuro:

"Para nós, a escola é um instrumento para nos defender, conhecer e entender melhor o mundo do branco, para enfrentar as políticas contrárias e proteger a nossa cultura. No meio de toda esta dificuldade, uma parte está sendo aproveitada para chegar com o objetivo surgido pela comunidade. Agora nós já temos professor próprio e a criança continua e continuará aprendendo. Não tem como parar"12 .

"A escola foi o principal instrumento de destruição cultural dos povos, mas também pode ser o principal instrumento de reconstrução e afirmação de uma nova era.(...) Particularmente, os dez anos de trabalho na FOIRN - Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro, sempre dedicado à luta mais global dos índios e mais precisamente à educação indígena, me convenceram de que o caminho da educação escolar indígena é a nossa grande esperança de conquista definitiva dos nossos direitos e da nossa terra"13.

3. Re-significando a escola, ou, o processo de "indianização" da instituição escolar

Poderia afirmar que, ao aceitar a escola, e mesmo reivindicá-la, os índios a têm “re-significado”, dando a ela um novo valor: a possibilidade de decifrar o

mundo “de fora”, “dos brancos”. Em síntese, decifrar a nova realidade advinda do contato. Assim, como afirma Bonin (1999), longe de ser uma “adesão” ao nosso

modelo, é, neste sentido, uma "estratégia de resistência"14 .

Dentro desta análise, uma questão fundamental é a da criação e autogestão dos processos de educação escolar indígena, ou seja, os próprios povos indígenas

poderem discutir, propor, decidir, enfim, realizar - não sem dificuldades, tensões e contradições - seus modelos e ideais de escola, segundo seus interesses e

necessidades imediatas e futuras.

Vejamos, em dois depoimentos, como os professores indígenas têm analisado essa questão:

"A escola entrou como um corpo estranho. A escola entra e se apossa da comunidade. Não é a comunidade que é seu dono. Hoje, os índios começam a dar as regras para o jogo da escola: 'tá, você fica aqui, mas dessa forma!' Temos leis que dão respaldo, mas ainda não estamos sabendo usar"15 .

12 Prof. Gersem dos Santos Luciano, Informativo FOIRN/Educação, 1996 13 BONIN, Iara Tatiana. "Encontro das águas: educação e escola no dinamismo da vida Kambeba" Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Educação/UNB, 1999. 14 Depoimento do Prof. Bruno, povo Kaingang, durante sua participação na mesa-redonda intitulada “A posição das Organizações Indígenas”, no Encontro Interno “Leitura e escrita em escolas indígenas: domesticação X autonomia”, durante o 10º COLE, UNICAMP, julho/1995

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"Precisamos pegar esses mecanismos colocados de fora (no caso, a escola) e fazer deles parte da nossa sociedade. Precisamos nos organizar como povo: preservar nossa cultura, nossa língua...mas não podemos preservar a fome!"16 .

O que podemos perceber é que, nos processos de concretização das escolas pelos povos indígenas, surgem dificuldades, conflitos e tensões ligadas

principalmente às contradições entre autonomia e oficialização. Inúmeros problemas e pontos de estrangulamento podem ser identificados, como é o caso do

discurso oficial da defesa da diversidade cultural e do direito à especificidade, versus a prática dos concursos públicos para contratação, onde é exigida "a prova" de

que os professores estão capacitados para atuar em suas comunidades. Ou ainda, entre o direito à "educação escolar diferenciada" e a frustração dos currículos

próprios não aprovados pelas instâncias governamentais competentes; entre as pedagogias indígenas e as metodologias homogeneizantes com suas formas de

avaliação individualizadas.

Apesar de toda essa complexa problemática, acreditar na urgência e na possibilidade da conquista de escolas verdadeiramente indígenas - que estejam a

serviço de cada povo, sendo instrumentos de resistência e afirmação cultural, enfim, que contribuam no processo histórico de sobrevivência enquanto povos

etnicamente diferenciados - é a força articulatória que tem aglutinado os esforços e reflexões de professores indígenas da Amazônia, num movimento que realiza,

anualmente, desde 1988, um grande Encontro para debater a realidade das escolas, assim como princípios e estratégias de ação para transformá-las.

Nesse processo de organização dos professores indígenas, os Encontros anuais têm representado momentos decisivos, onde as articulações culturais e

políticas tornaram-se possíveis, e as trocas de experiências e conhecimentos fazem surgir novas concepções de educação escolar, que respeita os conhecimentos, as

tradições e os costumes de cada povo, valorizando e fortalecendo a identidade étnico-política, ao mesmo tempo que procura passar conhecimentos necessários à

relação com a sociedade não-índia.

Busquemos enxergar, na experiência do povo Ticuna, relatada e analisada por Leite (1997), qual a concepção de escolarização que tem sido construída.

“Partindo do modelo ‘civilizado’ de escola, conhecido por via da subjugação cultural, passaram a forjar algo novo, feito à sua imagem e semelhança, uma escola Ticuna. Uma escola, sim, com sua origem formal nitidamente não indígena, mas exibindo agora a marca inconfundível do perfil Ticuna: uma escola onde se falava Ticuna, onde se estudava e se preservava a língua Ticuna, onde se estudavam assuntos relativos ao mundo Ticuna, onde as avaliações eram feitas à moda Ticuna, onde a comunidade Ticuna dizia a sua palavra, onde Ticuna formava Ticuna, onde se estabeleciam relações com a sociedade envolvente de forma a garantir os interesses Ticuna, onde - e sobretudo - as decisões eram tomadas pelos Ticuna” .

15 Depoimento do Prof. Orlando, povo Macuxi, na mesa-redonda “A posição das Organizações Indígenas”, no Encontro Interno “Leitura e escrita em escolas indígenas: domesticação X autonomia”, representando a COPIAR, durante o 10º COLE, UNICAMP, julho/95. 16 LEITE, Arlindo Gilberto de Oliveira. "Educação Indígena Ticuna: livro didático e identidade étnica", Dissertação de Mestrado, Universidade federal do Mato Grosso, Cuiabá, 1997, p. 137.

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4. Criando e recriando a vida: aprendendo na comunidade educativa

No I Encontro dos professores indígenas do Amazonas e Roraima (1988)17 , ao enfocar a questão “como se aprende a viver?”, os diversos grupos relataram a

sua maneira de educar dentro de suas comunidades. A respeito das formas próprias de educação, desde logo se complexifica a questão, posto que, estão

reunidos neste movimento sempre mais de uma dezena de povos distintos18, e o que se constata é que “existem tantos modelos de educação indígena, quantas

culturas”19.

Porém, dentro da diversidade dos conteúdos e formas apresentadas nas exposições, há aspectos que se repetem. Assim, esta recorrência (de atitudes, modos

de atuar, práticas e valores) constante nos relatos, sugere serem estas, algumas das características gerais da educação indígena: aprende-se a viver dentro da vida

cotidiana; adquire-se os conhecimentos necessários para a vida, com o pai, a mãe, e a comunidade; aprende-se pelo exemplo e pela experimentação; a tradição

cultural dos antepassados é valor fundamental e base do trabalho pedagógico; preserva-se a tradição da oralidade; valoriza-se o trabalho, como meio educativo e

como inserção na vida do grupo; o valor fundamental da terra é afirmado constantemente; aprende-se a conhecer e respeitar a natureza. Destaca-se, como princípios,

a alegria e o prazer de viver.

Meliá (1979) esclarece o observado acima:

“As sociedades indígenas brasileiras, como, aliás, muitas outras sociedades em todo o mundo, se educaram perfeitamente durante séculos sem recorrer à alfabetização, conseguindo, com meios quase que exclusivamente orais, criar e transmitir uma rica herança cultural. (...) Também se pensou, com frequência, que a educação indígena é simplesmente utilitária, orientada somente à sobrevivência, sem tempo nem interesse para a cultura. (...) o índio está educado para o prazer de viver e o seu 'tempo de cultura', dedicado a rituais, jogo ou simples gracejos, é mais extenso e intenso do que aqueles das sociedades modernas que trabalham para comer. O índio trabalha para viver”20 .

A criança indígena participa ativamente, e de forma integrada, da vida da comunidade. Ou seja, de todos os seus momentos, incluindo tanto as festas e

rituais, como as atividades produtivas - ou propriamente de trabalho - como caça, pesca, roça, entre outros. Esse “acompanhar” a vida do grupo é parte intrínseca do

processo de formação/educação.

17 Professores do Acre passaram a integrar o movimento a partir do seu V Encontro, realizado em Boa Vista/RR (1992) 18 O XII Encontro, realizado em Manaus (1999), contou com o maior número de povos: 34. 19 MELIÁ, Bartomeu. op. cit., p.12 20 Idem, ibidem.

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“A criança indígena faz em miniatura o que o adulto faz. Vive, no jogo, a vida dos adultos. Aprende as atividades sociais rotineiras, participa da divisão social do trabalho e adquire as habilidades de usar e fazer instrumentos e utensílios de seu trabalho, de acordo com sua idade e a divisão de sexo”21 .

O que se pode perceber no contato direto com a realidade indígena e através de relatos de diferentes experiências, é que a criança aprende brincando, num

clima de ampla liberdade.

Contudo, a consciência das contradições e complexidade dos problemas e desafios enfrentados na realidade histórica vivida, acrescentou (para a maioria dos

povos) aos conhecimentos tradicionais, a urgente necessidade de entender a dinâmica da sociedade majoritária, assim como de ter o domínio sob novos saberes, que

os ajudem no encaminhamento das novas situações.

5. Construindo novos modelos: o caráter conflituoso da luta pela incorporação das escolas indígenas no sistema nacional de educação

Ainda durante seu I Encontro Anual (1988), ao refletirem sobre a questão “se já existia educação na originalidade, para que funciona a escola atual”, os

professores indígenas da Amazônia, evidenciaram alguns conflitos existentes na questão do contato da sociedade envolvente com as populações indígenas, assim

como nas relações que se estabelecem entre as diferentes culturas e os diversos modelos de sociedades. Dentre eles, a introdução da educação escolar ou seja, da

escola enquanto nova instituição; posto que, como lembram Emiri e Monserrat (1989), “(...) o espaço da aldeia acaba por ser invadido por uma realidade que logo

reclama para si o status de uma verdadeira instituição”22 .

Neste contexto, uma questão central - e a meu ver, decisiva - quando se trata da perspectiva da realização de escolas realmente indígenas é a da auto-gestão

dos processos. Entra em cena a complexa relação entre educação/escola, política e poder. Conforme refletiu Freire (1982),

“no fundo, esses problemas todos que a gente quer discutir: escola, cultura, invasão da cultura, respeito pela cultura, isso é sobretudo um problema político e um problema ideológico. Não existe neutralidade em coisa nenhuma; não existe neutralidade na ciência, na tecnologia. A gente precisa estar advertido da natureza política da educação. Não há uma escola que seja boa ou ruim em si mesma, enquanto instituição. Ao mesmo tempo, não é possível pensar a escola, pensar a

21 Idem, ibidem. 22 Ao falar especificamente da educação das crianças do povo Kaiowá, Meliá (1979) nos mostra que “no primeiro período (de um a três anos), é sobretudo a comunidade que atua sobre a criança, aprovando ou rechaçando suas atividades ou comunicando-lhes através do jogo e de exemplos da própria vida, atitudes e valores. De três a cinco anos, a criançada constitui uma verdadeira mini-sociedade, onde a vida adulta é imitada em todas as atividades diárias, até as religiosas. O respeito que os pais têm para a criança, o modo de falar com ela, quase nos pareciam exagerados. O adulto considera o papel da criança na sociedade com muita seriedade. O que não quer dizer que as relações entre eles sejam tensas ou tristes. Adulto brinca com criança e criança brinca com adulto".

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educação, fora da relação de poder. Na verdade, o educador é um político, é um artista. Ele não é só um técnico, que se serve de técnicas, que se serve da ciência. E por isso mesmo ele tem que ter uma opção, e essa opção é política, não é puramente pedagógica, porque não existe essa pedagogia pura”23 .

Essa análise e posicionamento de Paulo Freire, expressa há mais de quinze anos, é, a meu ver, de uma atualidade marcante. Os professores indígenas, ao

longo da história de seu movimento, têm dado mostras de que estão atentos a essa questão. É o que no mostra o seguinte depoimento:

"Então, as discussões em torno da educação, eram também redescobrir, planejar o que hoje os povos indígenas querem para o seu futuro. Foi o início de planejar, de construir o futuro, a partir da realidade em que os diversos grupos étnicos se encontravam. E esse compromisso foi sendo assumido a partir dos professores, dos educadores e das organizações indígenas, das lideranças indígenas. Então, nessa caminhada, hoje prá nós, na questão específica da educação, existe uma coisa muito clara: nós não podemos separar a prática educacional, ou seja, aquilo que se faz, seja no ensino, na escola, mas sobretudo que está na comunidade, não dá para separar da própria caminhada política dos povos indígenas"24.

Jaci de Souza, tuxaua25 Macuxi, da aldeia Maturuca, Área Indígena Raposa Serra do Sol, e expressiva liderança do Conselho Indígena de Roraima, coloca

sua interpretação quanto ao papel da educação escolar e a responsabilidade do professor indígena:

"Porque vocês professores, é bom ver bem o que vocês estão ensinando para chegar longe... Como vocês são professores, é bom refletir bem para o futuro de nossas crianças. Quero dizer que se vocês se comprometem a defender as crianças, educar, isso é um compromisso!" .

6. O surgimento e proliferação dos Cursos ("específicos") de Formação

"Se nós professores não dominamos essa política educacional, não sabemos o que se passa a nível nacional sobre educação (e como as populações indígenas estão enfrentando essa dificuldade), se a gente não dominar essa problemática, eu acho que nós não vamos conseguir a escola realmente indígena que tanto a gente almeja. A nossa responsabilidade como educador, como pessoas que trabalham dentro das nossas comunidades é mostrar para nossos povos, nossos alunos, a real situação dos povos indígenas hoje. Creio que nós professores tanto ensinamos como aprendemos, a cada dia. Eu acho que esse assunto - educação - é um assunto de prioridade nas nossas organizações e, junto com as nossas lideranças, tanto professores como agentes de saúde, representantes das nações, grupo de mulheres organizado, tem esse objetivo, esse ideal de conquistar esse espaço para uma educação realmente indígena"26 .

23 Esse processo, na maioria das vezes, é permeado por conflitos/tensões e dominação, exercida por parte da nossa sociedade. 24 EMIRI, Loreta e MONSERRAT, Ruth. A conquista da escrita - Encontros de Educação Indígena, São Paulo, Editora Iluminuras, 1989. 25 Esta citação consta do texto “Um diálogo com Paulo Freire sobre educação indígena”. É a transcrição da gravação feita durante a 8ª Assembléia do CIMI (Conselho Indigenista Missionário), regional Mato Grosso, realizada em junho/1982, em Cuiabá, da qual o Prof. Paulo Freire participou como assessor. 26 Prof. Gersem dos Santos Luciano, do povo Baniwa, região do Alto Rio Negro, na mesa redonda “Povos indígenas e a educação na América Latina”, como parte do II Congresso Ibero Americano de História da Educação Latino-Americana, UNICAMP, 1994.

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Como podemos perceber neste depoimento, os professores indígenas da Amazônia sentem a responsabilidade de seu papel enquanto um dos principais envolvidos no

processo de educação formal de suas comunidades. Esse novo agente educativo é visto não como o único portador do saber, valorizando-se muito o aspecto do aprendizado mútuo,

presente na relação professor-aluno-comunidade. Sua tarefa é ser multiplicador, informante de novos conhecimentos, sendo que, desta forma, o saber é partilhado e não apenas

apropriado individualmente. Sua responsabilidade é ser aquele que “transita” nos dois mundos: o indígena e o do “branco”, segundo suas próprias palavras. O desafio é conseguir

manter um certo equilíbrio nesse complexo processo de inter-relação entre as diferentes culturas.

É neste cenário que a necessidade e a busca por uma formação adequada, que responda aos desafios, aparece nas reflexões do movimento, desde o seu I Encontro (1988).

Nos passos indicados como necessários para chegar à escola que desejam, os professores Ticuna presentes ao evento deram destaque à questão da formação:

"A capacitação dos professores bilíngüe - sem essa capacitação não podemos fazer nada para nossa comunidade, para os alunos. Precisamos de uma orientação mais avançada para alcançar aquilo que queremos"27 .

Durante o II Encontro (1989), a temática surgiu novamente e ao final, como um dos pontos importantes definidos pelo movimento, consta o entendimento da

necessidade de garantir "a formação dos professores em nível da região"28. No documento encaminhado ao Congresso Nacional na mesma ocasião, com

reivindicações e posicionamentos quanto a temática das escolas indígenas, no contexto das discussões da nova LDB - então em elaboração/tramitação - aparece:

"Todos os professores indígenas terão direito ao curso bilíngüe. A formação bilíngüe deve ser garantida com cursos de capacitação".

A questão da formação dos professores indígenas é um desafio crucial, que demanda urgência no sentido de pensar e concretizar propostas que atendam e

respondam às necessidades e expectativas dos índios, além da preocupação em avaliar os inúmeros cursos que têm proliferado Brasil a fora.. Várias iniciativas têm

sido levadas a frente por entidades de apoio a causa indígena, como a CPI (Comissão Pró-Indio) no Acre; o IAMÁ (Instituto de Antropologia e Meio Ambiente), em

Rondônia e o CIMI (Conselho Indigenista Missionário), em diferentes regiões do país.

Mais recentemente, diversos Programas Oficiais de Formação de Professores Indígenas surgiram, como é o caso do Projeto Tucum, no Mato Grosso e o

Projeto Pira-yawara, no Amazonas, ambos ligados às Secretarias de Educação dos referidos estados. Alguns são fruto de reivindicação dos próprios índios, como é o

caso do Magistério Indígena de Roraima, coordenado pelo DEI (Departamento de Educação Indígena), setor da SEDUC/RR .

Há ainda experiências inéditas e paradigmáticas, de tentativa de efetivação de um Curso de (e não para) Professores Indígenas, dentro de projetos mais amplos de

educação indígena, considerada na sua íntima relação com os projetos de futuro dos povos, no contexto de seus sistemas educativos próprios, como é o caso do

27 Cargo de chefia dentro da estrutura de organização tradicional Macuxi. 28 Relatório do II Encontro dos Professores Indígenas do Amazonas e Roraima - Manaus, 1989.

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Programa de Formação dos Professores Indígenas "Construindo uma Educação Escolar Indígena", coordenado pela Secretaria Municipal de Educação de São

Gabriel da Cachoeira, município do Amazonas com população predominantemente indígena (95%)29. Até final do ano de 1999, esta Secretaria teve a sua frente o

Prof. Gersem dos Santos Luciano, povo Baniwa. Lamentavelmente, por questões de correlação de forças da política local, o Curso encontra-se paralisado,

aguardando decisões sobre sua possível continuidade, e, principalmente, a garantia da linha político-pedagógica definida em seu projeto inicial.

Esteban Emilio Mosonyi, em seu texto “Familia indígena y Educacion Intercultural Bilingue”, fala com clareza sobre esse aspecto fundamental da relação de

propostas de escolarização com projetos mais abrangentes:

“nem a Educação Intercultural Bilíngue, nem outros mecanismos de vitalização das características profundas da identidade poderão prosperar por tempo indefinido, senão pela via de um ataque à problemática de conjunto que, em dada conjuntura, atravessa uma comunidade ou etnia. É imperativo emoldurar qualquer esforço em um projeto comunal ou regional de alcance integral, que leve em conta parâmetros como as terras ancestrais e recém adquiridas, uma economia que conjugue a autosubsistência com o mercado de alguns produtos, uma organização participativa no níveis de decisão, principalmente a resolução dos problemas angustiantes da saúde, serviços e direitos humanos elementares. Se, de alguma maneira, não se contemplam todas essas vertentes, qualquer programação isolada está destinada ao fracasso”30.

7. Retomando o debate sobre a possibilidade de processos de "indianização" da instituição escolar

Concebo as escolas indígenas como canais de intermediação, como instrumentais que se colocam entre as diferentes culturas, não sendo assim um

mecanismo apenas interno, mas sim uma necessidade criada “pós-contato” com a sociedade envolvente31 . Tomando por base tal idéia, busquemos olhar mais de

perto alguns conceitos chaves, na tentativa de entender como se dá a dinâmica das relações interétnicas.

Guilhermo Bonfil Batalha é um dos autores que se preocupou com essa questão, trazendo análises pertinentes e elucidativas à problemática aqui tratada. O

referido autor, após discorrer sobre o que chamou de "os quatro âmbitos da cultura, em função do controle cultural: cultura autônoma; cultura imposta; cultura

apropriada; cultura alienada"32 , enuncia alguns processos que permitem compreender a dinâmica das relações interétnicas. Três deles se originam no interior do (ou

dos) grupo étnico que se toma como foco de análise. São eles:

29 Depoimento do Prof. Sebastião Duarte, povo Tukano, Rio Negro/AM. 30 Relatório do I Encontro dos Professores Indígenas do Amazonas e Roraima - Manaus, 1988. 31 Relatório do II Encontro dos Professores Indígenas do Amazonas e Roraima, Manaus, 1989. 32 Registre-se que há uma série de outros cursos, de diferentes concepções e orientações, financiados por diversas fontes (em especial, verbas públicas, através do próprio MEC), acontecendo mais recentemente, e que merecem um estudo específico, para que se possa avaliar profundamente as diferentes propostas, verificando se estas têm respondido às aspirações, necessidades, anseios e princípios colocados pelo movimento indígena.

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Resistência - “O grupo dominado ou subalterno atua no sentido de preservar os conteúdos concretos do âmbito de sua cultura autônoma. A resistência pode ser explícita ou

implícita (consciente ou inconsciente). A defesa legal ou armada do território ameaçado é explícita e consciente; a manutenção do costume, qualquer que seja este, pode ser uma

forma de resistência implícita e inconsciente. Em todo caso, o exercício de ações culturais autônomas, em forma aberta ou clandestina, é objetivamente uma prática de resistência

cultural, assim como sua contra-parte: a recusa de elementos e iniciativas alheios (o chamado conservadorismo de muitas comunidades: sua atitude refratária às inovações alheias)”.

Apropriação - “É o processo mediante o qual o grupo adquire capacidade de decisão sobre elementos culturais alheios. Quando o grupo não só pode decidir sobre o uso de

tais elementos, senão também que é capaz de produzi-los, o processo de apropriação culmina, e os elementos passam a ser elementos próprios”.

Inovação - “Através da inovação, um grupo étnico cria novos elementos culturais próprios, que em primeira instância passam a formar parte de sua cultura

autônoma”.

Na experiência do movimento de professores indígenas da Amazônia, pude constatar a pertinência desses conceitos e idéias elaboradas por Batalha,

principalmente quanto à questão da inovação e criatividade.

“A criatividade que se expressa nos processos de inovação não se dão no vazio, mas sim no contexto da cultura própria e, mais particularmente, da cultura autônoma. Este é o marco que possibilita e ao mesmo tempo põe limites às capacidades de inovação: seus componentes específicos são o plano e a matéria para a criação cultural”33 .

No que tenho podido compreender, a perspectiva de escolas que os povos indígenas têm acreditado e se empenhado em conquistar, é um exemplo concreto,

real e atual de inovação. Representam pequenas grandes mudanças construídas cotidianamente. É preciso estar atento e sensível para enxergá-las e interpretá-las com

toda sua força e significação. É como nos diz esse autor:

“as inovações culturais são, por uma parte, mais frequentes do que comumente se pensa: há muito novo em baixo do sol. Sobretudo, se não se pensa somente nas grandes invenções capazes de marcar por si mesmas um momento da história, se não se repara também, e sobretudo, nas mudanças cotidianas aparentemente insignificantes”34 .

8. Professores e Pedagogias indígenas: concluindo a conversa com outra série de perguntas em um debate que continua em aberto

33 Segundo Censo autônomo realizado pela FOIRN - Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro. 34 MOSONYI, Estaban Emilio. "Familia indígena y Educacion Intercultural Bilingue", palestra proferida no II Congresso Latinoamericano de Educacion Intercultural Bilingue, Santa Cruz, Bolivia, 11.11.96.

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No início deste trabalho, fiz menção à existência de pedagogias indígenas, enquanto sistemas indígenas de educação, ou seja, modos próprios de educar. Ao

ser introduzida a escolarização, entram em cena outros conceitos fundamentais como interculturalidade e biliguismo/multilinguismo, no contexto do debate acerca de

seus limites e possibilidades. Procurarei enfocar esta discussão, na perspectiva do diálogo35 . Podemos falar dos povos indígenas enquanto povos da resistência. Essa

mesma resistência que tem permitido a esses povos sobreviver aos processos históricos que tem vivido e enfrentado, pode ser vista também como direito de entrar

em diálogo: um diálogo como conquista, enquanto mecanismo e símbolo de um povo que reconquistou sua palavra. Assim, os povos indígenas estariam nos falando:

“nós temos a nossa palavra; temos algo a dizer”36 .

Quando colocamos a possibilidade do diálogo entre os diferentes povos e culturas como horizonte a ser alcançado, precisamos logo esclarecer que ele

pressupõe que os povos estejam fortalecidos e seguros, seja quanto à questão de suas terras, quanto à sua identidade étnica e na suas relações com “os outros”. A

dialogicidade não se constrói enquanto posição de adesão, “entreguismo” ou retirada, nem é estabelecida entre “vencidos e vencedores”. Ao contrário, é uma posição

de confiança. Reforça a necessidade de novas relações entre aqueles que se encontram, que entram em contato, como condição de um novo diálogo, que reclama,

que exige, que está carregado de conflitos.

Perguntamo-nos: pode a escola contribuir neste processo? Que escola? Qual seria o papel dos professores indígenas? Como fica a questão de sua formação?

Procurando enxergar alguns rumos para ajudar a pensar essas questões, vejamos alguns pressupostos básicos, ligados a um conceito fundamental:

comunidade educativa indígena. Nela, segundo Meliá, há três atores principais da educação, a saber, a economia, a casa e a religião. Olhar a economia como

elemento pedagógico, significa enxergar como circulam os bens, como são os modos de produção, os modos de troca. Neste sentido, a reciprocidade é um valor

sumamente educativo. A casa - espaço educativo doméstico - com todas suas características próprias: o pai, a mãe, a complexidade do parentesco, com todas suas

redes de relações, com regras e normas, é um elemento da educação. A religião, enquanto concentração simbólica de todo sistema: mitos, rituais, momentos críticos -

nascimento - vida - morte.

Efetivamente, o processo histórico colonial teve uma forte tendência a separar essa unidade. A consequência é que as pessoas passaram a ter centros

educativos diferentes e isolados. Quebra-se o que era antes uma totalidade.

35 Esse entendimento da escola como uma "necessidade" pós-contato foi explicitado, com muita clareza, pelo Prof. Alírio Mendes, do povo Tikuna, quando avaliou: "Se não tivesse branco no meio dos Tikuna, talvez até hoje não teria escola" (Relatório do I Encontro dos professores Indígenas do Amazonas e Roraima, Manaus, 1988. 36 BATALHA, Guilhermo Bonfil. “La teoria del control cultural en estudio de processos étnicos” in Arinsana, nº 10, Caracas, 1989, p.21 e 22

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A partir do contato, o sistema de educação da comunidade nacional é introduzido como uma espécie de “nuvem” que pousa sobre esta realidade. Na

reivindicação do Estado nacional, ele passa a ser o dono dos símbolos. Essa, como se sabe, é uma pretensão de vários séculos: a educação única, universalizante.

Na comunidade educativa indígena, há um domínio completo, por parte de todos, da língua, enquanto língua comunitária. A economia é participativa e

recíproca. Porém, cada vez mais, o Estado nacional quer invadir esses espaços educativos próprios. Na comunidade educativa nacional, saber deixa de significar

prestígio, e torna-se poder, numa estrutura hierarquizada, numa sociedade dividida, com interesses conflitantes. Há “línguas especializadas”; o português do Brasil

tem um mínimo que é comum a todos. Há uma fragmentação da língua. A economia é a de mercado; a casa é o lugar dos progenitores e a religião, hierárquica e

institucionalizada.

A escola faz parte de um programa mais amplo que poderíamos chamar aqui de bilinguismo. A noção de bilinguismo é uma noção epistemológica; é um

modo de pensar as sociedades indígenas e sua relação com a sociedade nacional. Assim, nessa teoria, a escola assume o papel de uma nova linguagem - um novo

espaço e tempo educativo - uma nova pedagogia, necessária ao atual momento da comunidade, uma nova comunicação.

Retomando, o bilinguismo nunca deve ser pensado como passagem, como transição, mas como diálogo. A escola é então uma nova linguagem, que poderá (ou não)

permitir esse diálogo muito importante.

Lamentavelmente, a história registra resultados desastrosos, ocasionados por distintos projetos de educação escolar “para índios”. A escola foi (e é) uma

grande ruptura no espaço e tempo das próprias pedagogias indígenas. Podemos porém olhar esse rompimento enquanto processo dinâmico, ao qual os povos reagem

e interagem, cujos conteúdos são ora assumidos, ora rejeitados; às vezes apropriados, e mesmo recriados e reinventados.

As comunidades educativas tradicionais se confrontam com situações de contato. Isso configurou novas comunidades educativas históricas. Tradição e

história criam uma grande diversidade de tipos e situações. Vemos povos indígenas onde a comunidade educativa é “presente e atual”; outras onde ela é “memória

viva e desejada”; outras, porém, já são imaginadas como uma espécie de “paraíso perdido” e mesmo como “ilusão”37 .

Segundo Florestan Fernandes, “inovação e tradição se interpenetram de tal modo que uma conduz à outra, podendo-se afirmar: 1) que toda inovação, por

mais radical que seja, lança raízes no passado e se alimenta de potencialidades dinâmicas contidas nas tradições; 2) que a inovação já nasce, culturalmente, como

tradição, como experiência sagrada de um saber que transcende ao indivíduo e ao imediatismo do momento”38 .

Atualmente, nas diferentes realidades, há um novo ator que surge: o professor indígena. O desafio que se coloca para esse novo ator é imenso, já que inúmeras

tensões podem surgir: conflito e “choque de lideranças”; substituição do saber tradicional; a escrita no lugar da oralidade; o prestígio transformando-se em poder.

37 Idem, ibidem. 38 Idem, ibidem.

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44

É fundamental que o professor indígena possa reencontrar-se com sua própria comunidade educativa, já que, na maioria dos casos, ele foi formado fora

desta. Tornando-se parte da comunidade educativa, poderá contribuir na busca de novas respostas, colocando a escrita a serviço de uma nova expressão; procurando

inspiração nos sábios da comunidade; colocando-se como ouvinte - aquele que domina novas técnicas modernas, mas coloca-as em continuidade do saber indígena,

como forma de ampliação do mundo, como expansão cultural, nunca como substituição.

Nesta ótica, o professor pode ser participante de um projeto que vai além da própria educação. Para isso, irá, necessariamente, envolver-se com questões

fundamentais como a defesa e garantia das terras indígenas; construção de alternativas de subsistência (auto-sustentação). Nesse sentido, conforme analisou

Mosonyi39 , as comunidades educativas indígenas hoje precisam pensar em pelo menos dois tipos de programas, que precisam andar juntos: linguístico-cultural e

econômico-político.

Procurei, ao longo do texto pensar o professor indígena, como um novo ator; a escola, como novo elemento cultural; a escrita, como novo recurso de

comunicação e registro; enfim, todas essas questões ligadas à busca de novas soluções, para novos problemas. Dessa síntese, poderíamos indagar: tudo isso

conseguirá caminhar para uma nova perspectiva de futuro, com a conquista de novas relações e o convívio igualitário nas diferenças, deixando estas finalmente de

significar desigualdades?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

BATALHA, Guilhermo Bonfil. “La teoria del control cultural en estudio de processos étnicos” in Arinsana, nº 10, Caracas, 1989 BONIN, Iara Tatiana. "Encontro das águas: educação e escola no dinamismo da vida Kambeba" Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Educação/UNB, 1999 EMIRI, Loreta e MONSERRAT, Ruth. A conquista da escrita - Encontros de Educação Indígena, São Paulo, Editora Iluminuras, 1989 FERNANDES, Florestan. Investigação etnológica no Brasil e outros ensaios, Petrópolis, 1975 GUIMARÃES, Paulo Machado. "A polêmica do fim da tutela aos índios", Brasília, 1996, texto datilografado LEITE, Arlindo Gilberto de Oliveira. "Educação Indígena Ticuna: livro didático e identidade étnica", Dissertação de Mestrado, Universidade federal do Mato Grosso, Cuiabá, 1997 MELIÁ, Bartomeu. Educação_Indígena e Alfabetização, São Paulo, Loyola, 1979 ---------. Elogio de la lengua guaraní, Assunción, Paraguai, CEPAG, 1995 SILVA, Rosa Helena Dias da. A autonomia como valor e a articulação de possibilidades: Um estudo do movimento dos professores indígenas do Amazonas, Roraima e Acre, a partir dos seus Encontros anuais, Abya-Yala, Quito/Ecuador, 1998

39MOSONYI, op. cit.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO VIII, Nº248 - DEZEMBRO - PORTO VELHO, 2009.

VOLUME XXVI - SET/DEZ

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL ALBERTO LINS CALDAS – História - UFRO

CLODOMIR S. DE MORAIS – Sociologia - IATTERMUND ARTUR MORETTI – Física - UFRO

CELSO FERRAREZI – Letras - UFRO HEINZ DIETER HEIDEMANN – Geografia - USP JOSÉ C. SEBE BOM MEIHY – História – USP

MARIO COZZUOL – Biologia – PUC-RGS MIGUEL NENEVÉ – Letras - UFRO

ROMUALDO DIAS – Educação - UNICAMP VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia - UFSC

Os textos no mínimo 3 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for

Windows” deverão ser encaminhados para e-mail:

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ISSN 1517-5421 lathé biosa 248

O Sujeito na Vila: Vontade de Poder e Ressentimento

Vagner da Silva

PRIMEIRA VERSÃO

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Vagner da Silva40

[email protected] O Sujeito na Vila: Vontade de Poder e Ressentimento

“Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (Jo. 8; 32) “O que é a verdade?” (Jo. 18; 34)

Não sem alguma malícia escolhi as epígrafes acima para iniciar este artigo. Embora não sejam passagens contíguas no Evangelho de João, a primeira sendo

palavras de Jesus, e a segunda uma pergunta que lhe foi feita por Pôncio Pilatos, me parece que as duas juntas formam um dos mais breves e brilhantes discursos da

literatura humana: a busca de uma libertação através da verdade, e ao mesmo tempo um total desconhecimento do que pode vir a ser a verdade, talvez até uma

pergunta irônica pelo sentido da verdade.

Quero dedicar este texto a uma análise de até que ponto precisamos da verdade, ou de alguma verdade para viver, porém pretendo fazer esta análise a partir

de dois pontos específicos: o filme A Vila (The Village) do cineasta indiano M. Night Shyamalan, lançado no ano de 2004 e alguns elementos do pensamento de

Nietzsche.

O Filme.

O filme é bastante envolvente, se passa em uma pequena vila rural cercada por uma bela floresta outonal. Todavia na floresta escondem-se criaturas terríveis

às quais os moradores da vila se referem como “aqueles de quem não falamos”. A vila foi construída por um grupo de homens e mulheres que ainda a governam.

Todos eles fugiram das cidades carregando uma herança comum: o medo. O medo é o sentimento fundador da vila, afinal todos que estiveram presentes em sua

fundação foram de algum modo vítimas das mais terríveis violências nas cidades, motivo de sobra para que fugissem delas e se refugiassem neste vilarejo bucólico e

protegido de todo o mal das cidades, sujeito apenas ao mal proveniente “daqueles de quem não falamos”, mas estes são sempre mantidos fora da vila por um pacto

bastante simples: “nós não invadimos suas florestas, eles não vêm à nossa vila”.

A vila foi construída com a perspectiva de que lá não houvesse os problemas das cidades, em especial o problema da violência e do homicídio, o que não

exclui a morte. Todavia este isolamento inevitavelmente deixa os habitantes da vila à margem de toda inovação tecnológica, até das mais simples: remédios.

40 Mestre em Filosofia Social e doutorando em Filosofia da Educação pela Universidade de Campinas – Unicamp.

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Este é o motivo que leva o jovem Lucius Hunt41 a pleitear, sem sucesso, por duas vezes junto ao conselho dos anciãos o direito de atravessar a floresta,

mesmo enfrentando as criaturas que lá habitam, e ir até às cidades em busca de medicamentos. As tentativas de Lucius Hunt são sempre frustradas por um motivo

bastante simples, mas que o enredo do filme nos esconde até o fim: a vila é uma farsa. As temíveis criaturas são os próprios anciãos vestidos com fantasias.

Este artifício foi claramente concebido e posto em prática por eles para que o medo se tornasse o elemento de união e centralização da comunidade. Porém

este medo só afeta os jovens, pois os mais velhos sabem que não passa de uma farsa. O medo aqui é posto como uma espécie de herança de fundação: se é o medo

das cidades que funda a vila, é o medo “daqueles de quem não falamos” que mantém sua estrutura interna, impedindo que os jovens questionem os mais velhos e

queiram romper o elemento de sustentação da vila: o isolamento, única forma de impedir o “contágio” com as cidades.

Mesmo a morte de uma criança, filho de um dos fundadores da vila, provavelmente por alguma doença comum na infância, não é suficiente para demovê-los

da idéia de manter a vila um espaço isolado do mundo. Afinal, admitimos que a natureza nos mate, e isso não nos causa tanta dor como quando a morte vem por um

outro de nós, de nossa espécie. O problema maior da vila é a intencionalidade da ação. Lá, e creio que não somente lá, é fácil perdoar a natureza por nos causar dano,

mas quando imaginamos um homem, um sujeito supostamente livre, fazendo as mesmas coisas, não podemos admitir.

A situação toda se altera quando acontece um crime na vila. O mal do qual haviam fugido surge entre eles, mesmo apesar de todos os esforços educativos

(ou adestrativos), para fazer calar nos indivíduos deste grupo toda tendência destrutiva. O responsável pelo ato é o personagem Noah Flint42, que na falta de uma

expressão melhor vou qualificar como louco. A vítima é Lucius Hunt, esfaqueado por Noah (um ataque da loucura à razão?), mas o motivo do crime é o que mais

interessa: paixão. Lucius acabara de se tornar noivo da bela Ivy Walker43, por quem Noah também era apaixonado. Esse acontecimento causará uma intensa

41 Os nomes de alguns personagens do filme são bastante significativos, é o caso de Lucius Hunt. O primeiro nome, de origem latina, possui o mesmo radical (luci) que forma as palavras latinas que designam luz (luci) e claridade, fulgor (lucidus). O segundo nome é o verbo caçar em inglês, que possui o mesmo radical de hunter (caçador). Deste modo podemos dizer que o personagem é um caçador lúcido. Gostaria de lembrar que em nossa espécie a caça sempre esteve ligada à visão, ao contrário de outros animais. Visão que também é o sentido da racionalidade por excelência, e para termos certeza disso não precisamos ir longe, basta lembrarmos do período das luzes, e dos próprios métodos científicos, que em suas etapas sempre requerem a observação. Associando a racionalidade à personalidade de Lucius Hunt, podemos entender melhor seu quase constante mutismo, e também o motivo porque, nas duas vezes que se apresenta ao conselho dos anciãos (os fundadores da vila), o faz através de um texto escrito: a escrita está na base da racionalidade, ou esta na base daquela, como se queira. Mas também porque a razão não admite improvisações. 42 O nome Noah Flint também permite interessantes reflexões. Noah é o nome inglês do personagem bíblico Noé. Podemos dizer também e sem precisar argumentar muito que Noé é um louco. Sua loucura não consiste em ouvir a voz de Deus, muito menos em meio a um povo que sempre fez isso, mas levar suas palavras a extremos, construindo sua bendita arca, embora também possamos chamar isso de fé, o que também não era raro entre os Hebreus, e até com rompantes mais extremados, como é o caso de Jó e Abraão. Mas Noé tem outra peculiaridade que também encontraremos em Noah: ele não assume seus erros, o que fica claro pela maldição que lançou sobre seu filho Cã, por este lhe ter visto nu, mesmo sendo Noé, o único culpado por sua embriaguez e nudez. O segundo nome, Flint, é o mesmo que pederneira em português. Uma pedra bastante dura, que atritada com outra semelhante pode produzir fagulhas, a mesma pedra que se usa em isqueiros. Poderia então, com alguma liberdade, dizer que Noah Flint é um incendiário extremado ou desmedido. 43 Também Ivy Walker é um nome instigante. Ivy é uma planta de tipo trepadeira dos Estados Unidos, semelhante à hera, mas não é só, nos Estados Unidos existe uma variante da planta, conhecida como Poison Ivy, que é uma trepadeira venenosa, que causa forte irritação na pele, como a urtiga. A palavra Ivy também guarda semelhanças em seu radical com a

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reviravolta na estrutura da vila, e levará seus anciãos a importantes discussões e permitirá que Ivy atravesse a floresta em busca de medicamentos para seu amado.

Todavia creio ter narrado o suficiente do filme para que possa fazer a análise a que me propus, alguns outros elementos aparecerão inevitavelmente ao longo do

texto.

A verdade dos anciãos: Vontade de Poder e fundamentalismo.

Quero aqui tratar o fundamentalismo não apenas como comportamentos ou idéias radicais e extremadas, mas também, e principalmente, como os

comportamentos e idéias radicais e extremadas que se encontram na base de todo processo criativo de uma realidade, ou seja, na base de toda fundação de uma nova

realidade, assim poderei mostrar o fundamentalismo dos anciãos como um ato de Vontade de Poder e também de ressentimento.

A vida para Nietzsche se manifesta via de regra através da expansão, que nem sempre é favorável ao indivíduo mais forte, como poderiam pensar os adeptos

de Darwin. Esta característica expansiva da vida o filósofo alemão denominou de Vontade de Poder. A natureza se move de modo a criar indivíduos cada vez mais

potentes, indivíduos criadores de novos valores, de novos mundos, que justifiquem e façam a própria natureza expandir-se sobre territórios até então não seus. Porém

este indivíduo não nasce pronto, ele é produzido, preparado, através de diversas provas e testes, todos eles duros:

Anti-Darwin. No que concerne à célebre luta pela vida, ela me parece a princípio mais afirmada do que provada. Ela acontece, mas enquanto exceção; o

aspecto conjunto da vida não é a indigência e a penúria famélicas, mas muito mais a riqueza, a exuberância, mesmo o desperdício absurdo – onde há luta, luta-se por

potência... Não se deve confundir Malthus com a natureza. No entanto, suposto que haja esta luta – e, de fato, ela se dá -, ela transcorre infelizmente de modo inverso

ao que a escola de Darwin deseja; de modo inverso ao que talvez se pudesse desejar: isto é, em detrimento dos fortes, dos privilegiados, das felizes exceções. As

espécies não crescem em meio à perfeição os fracos sempre se tornam novamente senhores sobre os fortes. Isto acontece porque eles estão em grande número e

porque eles também são mais inteligentes... Darwin esqueceu o espírito (-isto é inglês!), os fracos possuem mais espírito... É preciso ter necessidade de espírito para

obter um espírito – nós o perdemos quando não temos mais necessidade dele. Quem possui a força se desprende do espírito (-“Deixemo-lo ir!” pensa-se hoje na

Alemanha – “O império há, contudo de permanecer conosco”...). Eu entendo por Espírito, como se vê, a cautela, a paciência, a astúcia, a dissimulação, o grande

autocontrole e tudo que é mimicry (a este último pertence uma grande parte da assim chamada virtude). [Nietzsche, 2000b, p. 75.]

palavra ivory (marfim), símbolo de brancura. Não é só, há ainda a famosa Ivy League, uma liga feminina, formada por brilhantes ex-acadêmicas de algumas das maiores, mais ricas e famosas universidades norte americanas: Harvard, Princeton e Columbia. Nos estados Unidos a expressão é sinônimo de inteligência. O segundo nome da personagem é Walker, que significa andarilho. Nada pode parecer mais irônico que um andarilho cego, todavia lembremos que na base da formação mitológico da sociedade ocidental, há um cego bastante famoso, ele também andarilho: Édipo. E me parece que nenhum personagem literário viveu tanto as solicitações de uma razão e uma loucura, ambas extremadas como Édipo.

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Mas às vezes estes indivíduos vingam e surgem os grandes artistas, conquistadores, legisladores, aqueles que de um modo geral podemos chamar de

civilizadores, que irão indicar aos outros, aos pequenos, aos que fracassaram nos testes de resistência e criatividade impostos pela natureza, o caminho que eles

devem seguir. Este criar caminhos e impor ao mundo e aos que estão no mundo a sua vontade é uma das características da Vontade de Poder. Em um breve texto de

Nietzsche lê-se: “ao devir impor o caráter do ser – essa é a máxima vontade de poder” [Nietzsche, 2002b, p. 94.]. Para ele grandes conquistadores como César e

Napoleão, e também artistas como Goethe, não estavam e não deveriam estar preocupados com a verdade, ou com as gerações futuras, queriam apenas imprimir no

mundo sua vontade, sua aparência, sua força. Para Nietzsche os fracos também têm essa pretensão, todavia sabem-se incapazes, e por isso advogam uma outra

espécie de transformação, uma na qual a vida é desvalorizada, e onde se requer menos das pessoas: uma moral tolerante e passiva no cristianismo atual, por exemplo;

ou a democracia na política; ou uma vila que seja uma repetição, não uma inovação, uma manutenção, não uma expansão. Um dos elementos constitutivos do

comportamento destes homens, que Nietzsche nomeou de últimos homens, é a falta de força para viver. Nos últimos homens a vida se desvaloriza ao extremo, a vida

quer perecer.

Proponho que os anciãos da vila, mas em especial o senhor Walker líder do grupo dos anciãos, e o legítimo criador da idéia e organizador da vila44 sejam

vistos como estes últimos homens, que foram submetidos a duras provas e sucumbiram, e buscam na vila uma forma de se refugiar do mundo e criar um lugar no

qual suas Vontades de Poder tenham algum efeito. Proponho também que a vila seja vista como sua grande obra, a grande manifestação de suas Vontades de Poder,

Vontades de Poder decadentes e ressentidas. Para isso quero ressaltar ainda um outro ponto sobre a Vontade de Poder: sua irracionalidade. Alguns intérpretes do

pensamento de Nietzsche vêem-no como um utilitarista (em especial ingleses e norte-americanos), como se a Vontade de Poder atuasse através de cálculos, nos

quais se escolhe o prazer e se evita a dor. Porém o próprio Nietzsche manifestou-se contrariamente a este utilitarismo afirmando que:

O ser humano não procura o prazer e não evita o desprazer: que se perceba quais preconceitos famosos eu com isso contradigo. Agrado e desagrado são

meras conseqüências, meros fenômenos secundários, - o que o ser humano quer, o que cada partícula de um organismo vivo quer é um a-mais de poder. Da busca

disso decorre tanto agrado quanto desagrado; partindo de tal vontade, ele busca resistências, ele precisa de algo que se contraponha. O desagrado enquanto entrave à

sua vontade é, portanto, um fato normal, o ingrediente normal de todo acontecer orgânico, o ser humano não foge a isso; pelo contrário, ele tem nisso algo

continuamente necessário, toda vitória, toda sensação de prazer, todo acontecer pressupõem uma resistência vencida. [Nietzsche, 2002b, p. 99.]

44 O papel de fundador e mantenedor da vila cai muito bem ao senhor Walker, para isso corrobora seu cargo de único professor do grupo. Isso permite pensarmos os professores como fundadores, ou ao menos mantenedores de algum tipo de realidade, como p. ex. a realidade na qual a alienação e a ignorância são ruins, e que as pessoas devem estudar para abandoná-las e consequentemente submeterem-se à Vontade de Poder destes professores.

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A partir deste texto posso afirmar que os fundadores da vila não a criaram apenas buscando fugir da dor e sofrimento que experimentaram com a morte dos

seus. Mas que eles buscaram a criação de um mundo no qual suas Vontades de Poder não fossem superadas. Não é da dor ocasionada pela morte que eles fogem, a

morte continua lhes seguindo sempre, o que é mostrado logo nas primeiras imagens do filme, quando um pai sepulta seu filho. A dor da qual fogem é a da

incapacidade. O próprio Nietzsche afirmou que um humano sofre muito mais quando é agredido por outro humano do que quando é agredido pela natureza45, e não é

apenas por acreditar que o agressor tinha outra escolha, a escolha de não agredir, mas também e principalmente, porque essa agressão implica um atentado contra sua

Vontade de Poder. Então não há uma fuga da dor, ela acompanha cada fundador na forma das lembranças domésticas que cada um deles esconde dentro de caixas

em suas casas, sempre trancadas à chave, mas para eles é preferível essa dor diária e quotidiana que um enfrentamento de uma realidade que os feriu e marcou

profundamente, é preferível a dor da perda à dor da impotência que revela a incapacidade da Vontade de Poder. A vila enquanto obra da Vontade de Poder dos seus

criadores é também e simultaneamente uma obra prima da mentira, mas não poderia ser diferente.

A vila, uma verdade além do bem e do mal.

Em 1873 Nietzsche escreveu o texto Sobre Verdade e Mentira em Sentido Extramoral, apesar de breve o texto é de grande importância para a compreensão

da crítica que o filósofo faz da verdade. No texto a verdade é mostrada como uma mentira coletiva. Devido à fraqueza física do homem ele desenvolveu um outro

instinto: o intelecto, que lhe permitiu criar a arte da dissimulação: a linguagem. A linguagem surgiu originalmente como forma de uns homens triunfarem e

enganarem outros, todavia com a necessidade de viver gregariamente os homens passaram a usar a linguagem para designar o mundo a sua volta, chegando a

acordos políticos sobre o que receberia cada designação, deste modo, a verdade tem um estabelecimento político, e a mentira torna-se então, um atentado contra as

forças políticas que estabeleceram as designações corretas, a verdade é uma aceitação coletiva da mentira.

A verdade constitui-se a partir de uma série de relações políticas de poder, mas para que seja mantida como verdade sua origem deve ser esquecida, tomada

como sagrada, como dogma inquestionável. Por isso é ato de heresia questionar os princípios básicos e origem dos fundamentos das religiões. O mentiroso deste

modo é sempre um meio mentiroso. Ele usa instrumentos da mentira coletiva (palavras), para designar coisas, acontecimentos, ações, estados etc. que não são

coincidentes com a designação geral, estabelecida a partir de relações de poder.

45 A este respeito conferir um dos mais importantes fragmentos não publicados por Nietzsche sobre o niilismo, seu famoso O Niilismo Europeu, com uma ótima tradução em português: NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A “Grande Política”, fragmentos. Introdução, seleção e tradução: Oswaldo Giacóia Jr.. Campinas: Departamento de Filosofia, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas-IFCH-UNICAMP, 2002.

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A busca pela verdade e sua preferência em relação à mentira é um ato moral, está ligado ao preconceito moral de que a verdade é superior à mentira. É claro

que uma afirmação como esta se põe em choque não apenas com toda a tradição religiosa da humanidade, mas também com toda a tradição filosófica e científica.

Mas com isso Nietzsche não quer ainda interditar a busca da verdade em favor da mentira, pois preferir a mentira à verdade não seria melhor, pois no fundo se teria

apenas uma inversão de papéis, pois aquilo que é tomado por verdadeiro hoje em algum momento foi mentiroso, abandonar a verdade e aceitar a mentira como

padrão de vida, seria o mesmo. Isso imaginando apenas os dois extremos da mesma linha verdade/mentira, e ignorando todas as gradações que se encontram entre

ambas: as meias-verdades, as quase-mentiras etc. Para o pensador alemão, mais importante do que escolher e aceitar uma em detrimento da outra é saber qual das

duas aumenta a quantidade de poder. É a partir da Vontade de Poder como critério que Nietzsche defenderá a idéia de que muitas vezes a mentira é superior à

verdade:

(...) Com todo o respeito que possa merecer o que é verdadeiro, veraz, desinteressado: é possível que se deva atribuir à aparência, à vontade de engano, ao egoísmo e à cobiça um valor mais alto e mais fundamental para a vida. É até mesmo possível que aquilo que constituí o valor dessas coisas boas e honradas consista exatamente no fato de serem insidiosamente aparentadas, atadas, unidas, e talvez até essencialmente iguais, a essas coisas ruins e aparentemente opostas. [Nietzsche, 1992, p. 10.]

Os fundadores da vila mentem? Sim, eles mentem. Eles são estes meio-mentirosos que usam um sistema verdadeiro de comunicação (a linguagem) e que no

fundo não passa de uma mentira coletivamente aceita. Eles utilizam este sistema para fundar uma nova verdade na qual esteja a marca de sua Vontade de Poder, que

aqui é decadente porque essa criação é uma repetição e será sempre mentirosa para aqueles que não compactuam com eles. A vila pode-se dizer, é sua assinatura no

mundo.

Aqui se pode fazer, a respeito dos fundadores, o questionamento moral: a mentira não é errada, não é o mal? Porém a pergunta não faz sentido porque trai a

si mesma, pois essa mesma moral também é mentira porém, uma mentira coletivamente aceita. Mas sabendo-se então que a verdade é uma mentira coletivamente

aceita, atentar contra ela não seria atentar contra a coletividade e enfraquecê-la? Gostaria de responder esta pergunta por dois caminhos, o primeiro: a possibilidade

daquele que assume o papel de fundador de romper com o estabelecido; segundo, a importância da mentira.

Preciso fazer ainda uma observação antes das respostas: a mentira assumirá papel diferente dependendo da pessoa que minta. O comportamento dos homens

superiores46 e dos últimos homens é bastante parecido, o que diferencia um do outro é o produto final: enquanto nos homens superiores há uma criação, nos últimos

homens há uma repetição.

46 Em toda a filosofia de Nietzsche encontramos pares lingüísticos antagônicos: senhor/escravo, forte/fraco, homens do amanhã/últimos homens, homens superiores/homens inferiores etc. entre eles não há uma diferença em essência ou coisa assim, o que os difere é o grau de seu ressentimento com a vida, os tipos fracos para Nietzsche são aqueles que em face da terrível descoberta de que a vida não tem sentido, ou seja, o niilismo, fogem da vida, tentam encontrar um novo valor, deixam-se abater ou ignoram esta realidade,

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Na segunda dissertação do livro A Genealogia da Moral Nietzsche mostra a sociedade como um pacto entre seus fundadores, uma obrigação dos mais fortes

uns para com os outros, a obrigação de cumprir promessas que eles mesmos haviam feito. Só o homem superior é capaz de fazer promessas e cumpri-las. Cumprir

uma promessa significa ter tanto controle sobre si, e sobre as infinitas variáveis à sua volta, que se poderá no futuro continuar querendo o que se quis no passado, daí

nasce todo o sentimento de nobreza e honra que se encontrou nas sociedades aristocráticas.

Os fundadores da vila assumem um pacto entre si, assumem uma responsabilidade que não é com o futuro ou com os jovens, mas uns com os outros, de

continuar querendo a vila e suas regras absolutas, independente do que aconteça. Inevitavelmente este pacto que para os fundadores é um compromisso de força gera

uma moral. Se para os fundadores a manutenção deste pacto é um exercício de Vontade de Poder, pois requer lutas acerbas, em especial quando são novamente

defrontados com a morte, como a de uma criança que poderia ser curada por um simples antibiótico; para os mais jovens a obediência a este pacto é um ato de

submissão e enfraquecimento de sua Vontade de Poder.

Os mais velhos porém são moralistas, fundadores de uma moral na qual se encontram todos os valores da moral cristã, em especial a negação das paixões.

Todavia entre estes homens capazes de assumir promessas uns com os outros motivados por uma vontade comum de fugir à realidade que lhes cercava nas cidades,

há um capaz de romper o pacto. Este é o senhor Walker. Quando permite que Ivy saia da vila, ele aceita um furo na moral que ele mesmo criou. Como maneira única

de manter esta moral, ele obriga que a moral se expanda e abarque situações e casos que anteriormente não abarcava.

Poderíamos sem dúvida categorizar o comportamento dos fundadores como utilitarista. A fundação da vila está baseada em um cálculo bastante simples: "é

preferível, menos doloroso, a vida na vila, onde estamos à mercê apenas da natureza, do que nas cidades, onde também estamos à mercê dos homens". Esta negação

da natureza humana em toda sua amplitude é o ato máximo da moral na vila. Dentro deste comportamento utilitarista o senhor Walker representa o ressentimento

máximo, ele é o que leva o cálculo utilitarista mais além: se ele não permitisse que a regra básica da comunidade (não invadir as florestas) fosse quebrada,

sentenciaria a comunidade ao próprio fim, pois como ele mesmo afirma no filme, o lugar perderia sua inocência. Ele faz então, um arriscado cálculo no qual a dor

presente pode ser maximizada (pela eventual morte de Ivy e Lucius), em favor de um prazer futuro bastante duvidoso. Mas ele não é capaz de se responsabilizar

sozinho pelo seu ato, e após tomá-lo precisa comunicá-lo aos outros anciãos, dividir o peso da culpa que o pode esmagar, o senhor Walker mostra-se incapaz de

responder por si. Aqui há um ponto bastante interessante que nos permite ver a profundidade com que Nietzsche tematizou a moral fugindo a categorizações: um

homem superior poderia tomar a mesma atitude do senhor Walker e também quebrar sua palavra, arriscando o futuro e vida seus e da comunidade, porém este

homem superior se responsabilizaria sozinho por seus atos, sem precisar confessá-lo aos demais.

retornando para o seio já exaurido de Deus. Os fortes se resignam a esta realidade, e buscam criar algo novo, todavia essa criação ainda é uma tentativa de negar o anterior estado de coisas.

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(...) o indivíduo soberano, igual apenas a si mesmo, novamente liberado da moralidade do costume, indivíduo autônomo supramoral (pois “autônomo” e “moral” se excluem), em suma, o homem da vontade própria, duradoura e independente, o que pode fazer promessas – e nele encontramos, vibrante em cada músculo, uma orgulhosa consciência do que foi finalmente alcançado e está nele encarnado, uma verdadeira consciência de poder e liberdade, um sentimento de realização. Este liberto ao qual é permitido prometer, este senhor do livre-arbítrio, este soberano – como não saberia ele da superioridade que assim possui sobre todos os que não podem prometer e responder por si, quanta confiança, quanto temor, quanta reverência desperta – ele “merece” as três coisas – e como, com esse domínio sobre si, lhe é dado também o domínio sobre as circunstâncias, sobre a natureza e todas as criaturas menos seguras e mais pobres de vontade? [Nietzsche, 1998, p. 49.]

A partir da pergunta colocada por Nietzsche ao fim desta citação volto ao questionamento moral de, mesmo sabendo-se que a verdade é uma mentira

coletiva, não seria importante mantê-la, e neste caso, atentar contra ela seria atentar contra a coletividade, em cuja base se encontra os homens fortes e capazes de

fazer promessas? Havia me proposto a responder essa pergunta por dois caminhos, o primeiro era o significado da ruptura da promessa inicial, agora responderei ao

segundo – a importância da mentira. A mentira está presente tanto no homem superior quanto no último homem, aqui novamente o que as diferencia é aquilo que

cada mentira cria.

O homem superior só pode controlar e conduzir os outros porque ele se dá o direito de mentir, e assume sobre si, para si, todas as responsabilidades advindas

de suas mentiras, inclusive a responsabilidade da desestruturação social, possível a partir do momento em que ele mentindo, retira a palavra empenhada aos que com

ele se comprometeram. Para este homem superior, mais importante do que a manutenção da sociedade é sua necessidade de assumir responsabilidades novas.

(...) O orgulhoso conhecimento do privilégio extraordinário da responsabilidade, a consciência dessa rara liberdade, desse poder sobre si mesmo e o destino, desceu nele até sua mais íntima profundeza e tornou-se instinto, instinto dominante – como chamará ele a esse instinto dominante, supondo que necessite de uma palavra para ele? Mas não há dúvida: este homem soberano o chama de sua consciência... [Nietzsche, 1998, p. 50.]

Este assumir compromissos e responsabilidades, que este grande homem chamaria de consciência, é também sua Vontade de Poder, mentir é criar novas

realidades, isso também é Vontade de Poder, porém Vontade de Poder ascendente. Aquele que assume os compromissos da transformação, não importa em qual

escala isso se dê, seja a de um estadista, seja a de um professor, dá-se o direito de mentir, de burlar a realidade já estabelecida, e construir uma nova realidade.

Enquanto no homem superior a mentira é o primeiro passo para a criação de uma nova realidade afirmadora da vida e de sua realidade, mesmo as mais duras, no

último homem a mentira é o caminho de fuga da vida, é através dela que ele funda a vila e passa a negar uma parte significativa do próprio ser-humano que é a força

de suas pulsões.

Há então um duplo sentido na moral: ela favorece a vida, ela expande os campos da experiência, ela é Vontade de Poder forte e ascendente, mas também

pode ser uma proteção contra o horror da verdade, a única que Nietzsche sempre aceitou: a vida não tem nenhum sentido transcendental, e a existência humana é um

mero acaso. Quantos são fortes o suficiente para agüentar o peso de tal verdade? Por isso a mentira favorece a vida, mesmo em sua forma mais perigosa, a moral:

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Portanto a moral tem defendido a vida diante do desespero e do salto para o nada naquelas pessoas e naquelas classes que foram violentadas e oprimidas por seres

humanos: pois é a impotência diante dos homens, e não a impotência diante da natureza, que gera a amargura mais desesperada contra a existência. [Nietzsche,

2002b, p. 50.]

A moral, e a mentira que a moral representa, protegeu aqueles que não poderiam enfrentar o mais terrível e devastador niilismo. A moral foi em certa medida

uma válvula de escape, através da moral o homem poderia mentir para si mesmo, e admitindo que havia um pós vida, criar uma ética própria. Ética de

enfraquecimento e desestruturação do homem, uma ética que por buscar apenas a manutenção, e não a expansão da vida, já sentencia-se à morte. Todavia para

Nietzsche a moral se distingue das outras mentiras por uma peculiaridade, ela é uma mentira que busca a verdade.

Niilismo, fundamentalismo e ressentimento na fundação da vila.

Tendo compreendido a moral como a mais perigosa de todas as mentiras, perigosa justamente porque esquece que é mentirosa também, e lança-se na busca

pela verdade, podemos analisar a relação entre niilismo, fundamentalismo e ressentimento.

Na base do niilismo atual encontra-se a moral, em especial a moral cristã, com sua busca por verdade47, esta vontade de verdade que o cristianismo plantou

no homem o levou a buscar cada vez mais a verdade, processo que se intensificou na ciência, e acabou por desmascarar a moral e seu fundamento máximo – Deus. A

ciência, herdeira da vontade de verdade da moral, acabou voltando-se contra a própria moral e atacando-a naquilo que ela tinha de mais importante: a crença em um

ser soberanamente bom e justo e que dava sentido à vida. Todavia com o enfraquecimento das religiões o homem ainda buscou na ciência um sentido para a vida. Na

passagem do século XIX para o século XX havia uma forte crença na ciência, na capacidade da ciência de solucionar os problemas humanos e dar sentido para a

existência a partir de uma ética universal e racional. Todavia as duas grandes guerras e a corrida armamentista que o século XX viu foram suficientes para mostrar a

incapacidade da ciência para criar valores. Isso causou inevitavelmente um aprofundamento do niilismo, novamente a vida humana vagava sem sentido pelo espaço

de suas próprias possibilidades. Para Nietzsche este niilismo abre duas grandes possibilidades, uma é o ressentimento, a outra é a postura ativa, o niilismo ativo de

Nietzsche.

Aqui entram os fundadores da vila. É a perda dos valores que os leva a fundar a vila. Poderíamos dizer que a violência da qual todos eles foram vítimas

estava ligada também a este niilismo. Mas eles não se tornam niilistas ativos e afirmadores da vida em seus múltiplos aspectos. Eles se tornam ressentidos,

47 Para isso basta relembrar a frase de Jesus que tomei como epígrafe para este artigo: “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”.

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ressentem-se tanto com a perda dos valores supremos, que fogem desta realidade na qual o mundo aparece sem máscaras e tentam criar uma nova realidade, na qual

possam imprimir no mundo sua própria Vontade de Poder. Mas isso é ressentimento, a vila é Vontade de Poder ressentida, Vontade de Poder decadente porque não

consegue afirmar a vida e passa a negá-la em todas as suas pulsões, tanto as belas quanto as horríveis.

O ressentimento está também na base daqueles homens que Nietzsche nomeia de fracos, eles são os que não conseguem viver com a idéia de que a vida não

tem um fundamento que ao mesmo tempo também é sentido, e buscam um novo fundamento para a vida, eles tornam-se fundamentalistas. Os fundadores da vila são

esse tipo fraco e é por isso que tornam-se fundamentalistas, mas não apenas no sentido de que fundam algo, mas no sentido de que revalorizam a idéia de que a vida

carece de fundamentos para existir. Aqui podemos fazer a passagem do fundamentalismo à violência.

A vila enquanto ato da Vontade de Poder de seus fundadores foi criada para fugir da violência, violência que nas cidades estava ligada à perda dos valores

eternos, que sustentavam a ética das pessoas a partir da moral cristã. Para os fracos a perda deste fundamento implica em uma total liberação da vida, pois eles nunca

amaram os valores que defendiam, apenas temiam as conseqüências funestas de sua desobediência, logo, com a desvalorização destes valores, podiam liberar

novamente seus instintos mais primitivos. A moral foi a camisa de força que os conteve, como afirma Nietzsche no trecho abaixo:

O super animal. – A besta que existe em nós quer ser enganada; a moral é mentira necessária, para não sermos por ela dilacerados. Sem os erros que se acham nas suposições da moral, o homem teria permanecido animal. Mas assim ele se tomou por algo mais elevado, impondo-se leis mais severas. [Nietzsche, 2000a, p. 49.]

O que os fundadores da vila não percebem é que eles estão profundamente afetados por este niilismo que arruína os valores éticos e que nas cidades conduz

ao caos e ao homicídio, somente isso lhes permite usar a violência como regra de bem proceder na manutenção da vila. Só através do medo e do terrorismo que

“aqueles de quem não falamos” representam aos jovens do grupo, era possível manter o grupo. Os fundamentos para serem novamente recriados e se solidificarem a

ponto de sustentarem uma nova moral, carecem da imoralidade que no futuro eles mesmos condenarão. Aqui Nietzsche mostra-se mais uma vez brilhante e original,

ao afirmar que a moral em sua fundação, nunca pôde prescindir dos instrumentos imorais que ela mesma condenará no futuro. Os fundadores já levam para dentro de

sua vila a violência que queriam deixar de fora, o seu paraíso terreno já está manchado por um pecado original.

A relação entre últimos homens e o fundamentalismo aparece de um modo bastante intenso em Assim Falou Zaratustra. Um dos pontos mais interessantes

nesta temática é que os últimos homens admitem a morte de Deus, porém não conseguem viver sem o que a religião sempre significou em suas vidas: ao mesmo

tempo fundamento e sentido final, e logo que Zaratustra se afasta eles fazem uma festa na qual adoram um asno48, e sob as repreensões de Zaratustra confessam-se

saudosos de Deus. É este saudosismo, que se mostra como incapacidade de governar a si próprio carecendo de uma força superior e externa que o faça, que os leva a

48 Sobre a adoração do asno e o sentido deste animal na filosofia de Nietzsche ver: SALAQUARDA, Jörg. Zaratustra e o Asno. In: MARTON, Scarllet (org.). Nietzsche na Alemanha. São Paulo: Discurso Editorial; Ijuí RS: Editora Unijuí, 2005.

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construir um novo fundamento, no Zaratustra teria sido a festa do asno, no filme de Shyamalan este novo fundamento é a vila. Este saudosismo também é a base do

ressentimento.

O ressentimento em Nietzsche, em especial no Zaratustra, é visto sob um duplo registro, por um lado é o próprio saudosismo, saudade de uma experiência

vivida e que não pode ser repetida; e por outro é uma mágoa contra o acontecido que não pode ser revivido ou desfeito. Na base de todo ressentimento, em qualquer

um dos dois registros, está uma questão não resolvida com o passado. O passado para Nietzsche é o ponto crucial no qual se radica todo ressentimento, é também o

desafio máximo à toda Vontade de Poder, a este respeito afirma em Assim Falou Zaratustra:

Vontade – é este o nome do libertador e trazedor de alegria: assim vos ensinei, meus amigos! Mas, agora, aprendei também isto: a própria vontade ainda se

acha em cativeiro.

O querer liberta: mas como se chama aquilo que mantém em cadeias também o libertador?

“Foi assim”: é este o nome do ranger de dentes e da mais solitária angústia da vontade. Impotente contra o que está feito – é ela um mau espectador de todo o

passado.

Não pode a vontade querer para trás; não pode partir o tempo e o desejo do tempo – é esta a mais solitária angústia da vontade.

O querer liberta; e que inventa a própria vontade, para livrar-se da angústia e zombar da sua prisão?

Doido, ai de nós, torna-se todo o prisioneiro! E pela doidice redime-se, também, a vontade prisioneira.

Que o tempo não retroceda, é o que a enraivece; “Aquilo que foi” – é o nome da pedra que ela não pode rolar.

E assim, de raiva e despeito, vai rolando pedras e vinga-se naquilo que não sente, como ela, raiva e despeito.

Destarte, a vontade libertadora torna-se causa de dor; e, em tudo o que pode sofrer, vinga-se de não poder retroceder.

Isso, sim, só isso já é uma vingança: a aversão da vontade pelo tempo e seu “Foi assim”. [Nietzsche, 1977, p. 151.]

Quando afirmei anteriormente que o que distingue os homens superiores dos inferiores para Nietzsche é apenas uma questão de grau, o grau de seu

ressentimento, me referia à esta incapacidade de lidar com o passar do tempo. O fundamentalismo é um ressentimento com um mundo que se modificou, e se

modifica sempre, o fundamentalismo enquanto esse esforço por paralisar experiências vividas no tempo, é na verdade, um medo do devir e das mudanças nele

implícitas.

Para Nietzsche em face do tempo, os homens sempre se ressentem, os mais ressentidos criam um mundo imaginário, o mundo metafísico, onde o tempo não

passa (eternidade), e não passando não é necessária a cisão entre o acontecido e o por acontecer. Já os mais fortes, aceitam essa condição de irreversibilidade do

tempo, o que não quer dizer que vivam bem com ela, eles são o paciente terminal que aceita a morte por saber que não pode livrar-se dela, mas que a odeia.

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Ao diagnosticar esse niilismo por toda a Europa de seu tempo, Nietzsche propôs a vivência do niilismo sob um novo registro, que ele chamou de niilismo

ativo, que nada mais é do que encarar a ausência de fundamentos e fins na existência, como a possibilidade máxima de criação. Se nada disso existe, que o homem

crie tudo, através da mentira criativa, ou seja, através de novas combinações sobre o valor das coisas e de novas promessas assumidas entre os homens fortes e

superiores.

Moral privada e moral mundial – após o fim da crença de que um deus dirige os destinos do mundo e, não obstante as aparentes sinuosidades no caminho da

humanidade, a conduz magnificamente à sua meta, os próprios homens devem estabelecer para si objetivos ecumênicos, que abranjam a Terra inteira. A antiga

moral, notadamente a de Kant, exige do indivíduo ações que se deseja serem de todos os homens: o que é belo e ingênuo; como se cada qual soubesse, sem

dificuldade, que procedimento beneficiaria toda a humanidade, e portanto que ações seriam desejáveis; é uma teoria como a do livre-comércio, pressupondo que a

harmonia universal tem que produzir-se por si mesma, conforme leis inatas de aperfeiçoamento. Talvez uma futura visão geral das necessidades da humanidade

mostre que não é absolutamente desejável que todos os homens ajam do mesmo modo, mas sim que, no interesse de objetivos ecumênicos, deveriam ser propostas,

para seguimentos inteiros da humanidade, tarefas especiais e talvez, más, ocasionalmente. – Em todo caso, para que a humanidade não se destrua com um tal

governo global consciente, deve-se antes obter, como critério científico para objetivos ecumênicos, um conhecimento das condições da cultura que até agora não foi

atingido. Esta é a imensa tarefa dos grandes espíritos do próximo século. [Nietzsche, 2000a, pp. 33-4.]

O importante para Nietzsche é que estas novas mentiras nunca se esqueçam de sua origem, e não se tomem por verdades absolutas, imortais e inacabáveis,

pois no momento em que fizerem isso, retornam imediatamente para a vila do ressentimento e do fundamentalismo.

Conclusão.

O fim do filme representa um novo início para a vila, uma espécie de redenção moralista. A morte de Noah Flint na floresta repete até mesmo o enredo

teológico cristão, no qual a redenção se dá pela morte de um inocente. Morte que é responsabilidade de todos e não é de ninguém, pois a única pessoa presente no

acontecimento não poderia ser diretamente responsável pelo acontecimento, porque embora o tenha planejado, estava apenas se defendendo. E assim como no

enredo cristão, Deus aceita a morte de Jesus como elemento de redenção da humanidade, os pais de Noah também aceitam que a morte dele seja utilizada como

reafirmação da existência “daqueles de quem não falamos”: os pais aceitam a morte do filho como ponto da redenção de todos. O filme deixa transparecer que Noah

se tornaria uma espécie de herói, o primeiro a ser morto por “aqueles de quem não falamos” por ter rompido a regra básica da vila: não ir às suas florestas. Somente a

morte de Noah permite que os anciãos reafirmem suas vontades, e sigam querendo aquilo que quiseram no princípio da vila.

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Aqui há uma aparente ambigüidade: e quanto à Ivy que rompeu a regra de não ir à floresta e continua viva? Ivy conhece a verdade sobre a vila, embora o

ataque de Noah possa tornar essa crença incerta para ela. Ela é também uma espécie de heroína: sem seu retorno e seu testemunho, a morte de Noah não faria sentido

e a vila não poderia continuar. É o depoimento dela que dá valor à morte de Noah. O conhecimento que ela adquire fora da vila a afasta dos outros jovens e a

aproxima inevitavelmente dos anciãos, porém sob um pacto ainda mais forte: o pacto de sangue. Claro que poderíamos evocar Freud e sua refeição totêmica, descrita

em Totem e Tabu como elemento a partir do qual se forma uma comunidade, afinal, se Ivy e o conselho dos anciãos não são responsáveis diretos pela morte de

Noah, o são quando aceitam que seu sangue derramado sirva de móvel para a continuação da vila.

Recuo um pouco mais no tempo porém, e recordo Dostoievski em seu brilhante romance Os Demônios, mais especificamente o diálogo travado entre os dois

“conspiradores políticos” Piotr Stiepánovitch e Nikolai Vsievolódovitch sobre a morte de um terceiro, pelo grupo revolucionário do qual faziam parte:

Todo esse funcionalismo e esse sentimentalismo, tudo isso é um bom grude, mas existe uma coisa ainda melhor: convença quatro membros do círculo a

matarem um quinto sob o pretexto de que ele venha a denunciá-los, e no mesmo instante você prenderá todos com o sangue derramado como se fosse um nó. Eles se

tornarão seus escravos, não se atreverão a rebelar-se nem irão pedir prestação de contas. [Dostoiévski, 2004, p. 375.]

É o sangue derramado junto ou o aproveitamento deste sangue que fortalece a moral, moral que no futuro condenará o derramamento de sangue. Somente

este laço pode torná-la o fundamento de uma sociedade. Talvez por isso o cristianismo precise ainda hoje de um cristo pregado a uma cruz.

Bibliografia.

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