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Revista VOX MUSEI: arte e património

Volume 2, Número 3, janeiro-junho

2014 — Tema Cultura Fluvial e Marítima:

património, museus e sustentabilidade

ISSN 2182-9489 / e-ISSN 2182-0002

Revista Internacional — Comissão Científica

e Revisão por Pares (sistema double blind review)

Centro de Investigação e de Estudos em Belas-Artes

da Universidade de Lisboa, Portugal.

Grupo de Pesquisa, CNPq VOX MUSEI: arte e património,

Universidade Federal do Piauí, Brasil

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Revista VOX MUSEI: arte e património

Volume 2, Número 3, janeiro-junho

2014 — Tema Cultura Fluvial e Marítima:

património, museus e sustentabilidade

ISSN 2182-9489 / e-ISSN 2182-0002

Revista Internacional — Comissão Científica

e Revisão por Pares (sistema double blind review)

Centro de Investigação e de Estudos em Belas-Artes

da Universidade de Lisboa, Portugal.

Grupo de Pesquisa, CNPq VOX MUSEI: arte e património,

Universidade Federal do Piauí, Brasil

Periodicidade: semestral

Revisão de submissões: arbitragem

duplamente cega pelo Conselho Editorial

Diretor: Áurea da Paz Pinheiro

Editor Chefe: Áurea da Paz Pinheiro

Editores Adjuntos: Fernando António Baptista Pereira,

Luís Jorge R. Gonçalves

Assessoria: Ana Rita Antunes, Cássia Moura

Imagem da capa: Cássia Moura

Projecto gráfico: Jorge dos Reis

Paginação: Inês Chambel

Gestão financeira: Cristina Fernandes, Isabel Pereira

Logística: Lurdes Santos

Propriedade e serviços administrativos

Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa,

Centro de Investigação e de Estudos em Belas-Artes

Grupo de Pesquisa — CNPq VOX MUSEI: arte e património,

Universidade Federal do Piauí

Largo da Academia Nacional de Belas-Artes,

1249-058 Lisboa, Portugal

T +351 213 252 108 / F +351 213 470 689

Impressão e acabamento: Gráfica Expansão

Tiragem: 350 exemplares

Depósito legal: 360924/13

PVP: 10€

ISSN 2182-9489 e-ISSN 2182-0002

Aquisição de exemplares, assinaturas e permutas:

Revista VOX MUSEI arte e património

Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa,

Centro de Investigação e de Estudos em Belas-Artes,

Largo da Academia Nacional de Belas-Artes,

1249-058 Lisboa, Portugal

T +351 213 252 108 / F +351 213 470 689

Mail: [email protected]

www.voxmusei.fba.ul.pt

Organização

Apoio

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CONSELHO EDITORIAL · PARES ACADÉMICOS

PARES ACADÉMICOS INTERNOS

Áurea da Paz Pinheiro, Brasil

Universidade Federal do Piauí

Universidade de Lisboa

Alice Nogueira Alves, Portugal

Universidade de Lisboa

André Riani Costa Perinotto, Brasil

Universidade Federal do Piauí

Edvania Assis, Brasil

Universidade Federal do Piauí

Érica Rodrigues Fontes, Brasil

Universidade Federal do Piauí

Deusa Maria de Sousa, Brasil

Universidade Federal do Piauí

Fernando António Baptista Pereira, Portugal

Universidade de Lisboa

João Paulo Queiroz, Portugal

Universidade de Lisboa

Jorge dos Reis, Portugal

Universidade de Lisboa

Luís Jorge Gonçalves, Portugal

Universidade de Lisboa

Marta Rovai, Brasil

Universidade Federal do Piauí

PARES ACADÉMICOS EXTERNOS

Ângela Âncora da Luz, Brasil

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Ana Maria Sosa González, Brasil

Universalidade Federal de Pelotas

Cristiane de Andrade Buco, Portugal

Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro

Clarissa Ismério, Brasil

Universidade da Região da Campanha

Faculdade IDEAU — Bagé

Eloisa Capovila da Luz Ramos, Brasil

Universidade do Vale do Rio dos Sinos

Enrique Caetano Henriquez, Espanha

Universidade de Sevilha

Gercinair Silvério Gandara

Universidade Estadual de Goiás, Brasil

José Antonio Aguiar, Espanha

Universidade de Sevilha

Lourdes Furtado, Brasil

Universidade Federal do Pará

Manuel Calado, Portugal

Instituto Politécnico de Setúbal

Maria de Fátima Pereira Alves, Portugal

Universidade Aberta

Marta Rosa Borin, Brasil

Universidade Federal de Santa Maria

Mila Simões de Abreu, Portugal

Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro

Miridan Bugyja Britto Falci, Brasil

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Nuno Sacramento, Reino Unido

Scottish Sculpture Workshop

Olga Duarte Piña, Espanha

Universidade de Sevilha

Rosemar Gomes Lemos, Brasil

Universidade Federal de Pelotas

Roseli Farias Melo de Barros, Brasil

Universidade Federal do Piauí

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Editorial

Áurea da Paz Pinheiro

pág. 18-25

Artigos

Património, Museus, Cultura Marítima e Fluvial

Heritage, Museums, Maritime and Fluvial Culture

Luís Jorge Rodrigues Gonçalves

e Áurea da Paz Pinheiro

pág. 28-37

O patrimônio ambiental das cidades-beira

Roncador-GO, Guadalupe-PI, Remanso-BA

e seus destinos históricos

The environmental heritage of border-cities:

Roncador-GO, Guadalupe-PI, Remanso-BA

and its historical destinations

Gercinair Silvério Gandara

pág. 38-45

A influência do mar na visão museológica

de Ramalho Ortigão

The influence of sea on Ramalho Ortigão’s

museological concept

Alice Nogueira Alves

pág. 46-55

A Praia dos Prodígios. O que o rio traz

à obra de Lagoa Henriques

Praia dos Prodígios. What the river brings

to the work of Lagoa Henriques

Rita Nobre de Carvalho

pág. 56-64

Tratados de construção naval ibéricos

nos séculos XVI e XVII

Iberian Treatises of Shipbuilding in the sixteenth

and seventeenth centuries

António Teixeira e Brígida Baptista

pág. 65-74

As três confrarias marítimas de Sesimbra

num Regimento de 1563

The three sea fraternities from Sesimbra

in a Regiment of 1563

Fernando Alberto Gomes Pedrosa

pág. 75-83

Transformações nas armações de pesca

de Sesimbra, no século XIX

Changes in the fisheries of sesimbra, during

the 19th century

João Augusto Aldeia

pág. 84-91

Uma proposta de desenvolvimento humano

assente na Cultura Fluvial Avieira

A proposal of human development based

on Avieira Fluvial Culture

João Manuel Monteiro Serrano

pág. 92-101

Rio abaixo, rio arriba. Património e tradição

ribeirinha no Meio Norte do Brasil

River below rio arriba. Heritage and tradition

in the Middle Riverside Northern Brazil

Rita de Cássia Moura Carvalho

pág. 102-112

Os Espelhos de uma vila de pescadores

The mirrors of a fishing village

Luís Martins e João Augusto Aldeia

pág. 113-119

Caracterização do ambiente natural e cultural dos

catadores de caranguejo da RESEX Delta do Parnaíba

Characterizing and defining the environment and

the cultural life style of the crab-pickers within the Delta

of Parnaíba RESEX

Ana Helena Mendes Lustosa

pág. 120-130

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Tradição oral e patrimônio cultural na Ilha

das Canárias, Brasil

Oral tradition and cultural heritage in Canary

Island, Brazil

Marta Gouveia de Oliveira Rovai

pág. 131-137

Área de Proteção Ambiental Delta do Rio Parnaíba,

Brasil: importância biológica e socioeconômica para

as comunidades ribeirinhas

Environmental Protection Area of Parnaíba River Delta,

Brazil: biological and socio-economic importance for

riverside communities

Silmara Erthal

pág. 138 -147

Arquivos de Memória

Memory Archives

Ana Duarte

pág. 148 -156

Patrimônio ambiental da Ilha Grande, Piauí, Brasil

Environmental Heritage the Ilha Grande, Piauí, Brasil

Francinalda Rodrigues Rocha

pág. 157-164

APA Delta do Parnaíba e o Peixe-Boi

APA Delta of Parnaíba and the manatee

Patrícia dos Passos Claro

pág. 165-172

O Brasil em defesa do patrimônio histórico, artístico,

arqueológico e natural

Brazil in defense of the historical, artistic, archaeological

and natural heritage

Valério Rosa de Negreiros e Áurea da Paz Pinheiro

pág. 173-180

Protecção e salvaguarda do património

cultural subaquatico

Protection and safety of underwater cultural heritage

Iolanda Cristina Barreira Pereira

pág. 181-187

O restauro da Fortaleza de Sagres no Estado Novo

The restoration of the Fortress de Sagres

during Salazar’s New State

Pedro Figueiredo Tavares da Silva

pág. 188-196

Patrimônio, cultura e sustentabilidade: construção

identitária e social através dos festejos no litoral sul

do Rio Grande do Sul, Brasil

Heritage, culture and sustainability: identity

construction and social celebrations across the south

coast of Rio Grande do Sul, Brazil

Rosemar Gomes Lemos

pág. 197-205

Ecoturismo, patrimônio natural e cultural na

cidade de Parnaíba, Piauí, Brasil

Ecotourism, natural and cultural heritage in the city

of Parnaiba, Piauí, Brazil

Edvania G. de Assis e Francisco P. da Silva Filho

pág. 206-212

Museus e Instituições de Arte e Cultura

Museus Marítimos. A urgência de projectos culturais

Maritime Museums. The urgency for cultural projects

José Augusto da Costa Picas do Vale

pág. 214-223

Embarcações Tradicionais do Brasil: patrimônio e

memória no Museu Nacional do Mar

Traditional Ships from Brazil: heritage and memory

in the National Museum of the Sea

Andrea Oliveira

pág. 224-228

Museu Etnográfico da Praia de Mira

— Trabalho desenvolvido na comunidade

Ethnographic Museum of Praia de Mira

— Community based-work

Serviços de Cultura da Câmara Municipal de Mira

pág. 229-235

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A Rede de Museus do Mar de Esposende

— um projeto de agregação da cultura costeira

Network of Museums of Esposende

— A project to the aggregation of seaside culture

Ivone Magalhães e Elsa Teixeira

pág. 236-243

Fluviário de Mora – O Património Natural

Dulciaquícola como promotor de Patrimónios

Culturais e de Desenvolvimento Regional

Fluviário de Mora – The Natural Freshwater heritage

as a mean to promote Cultural Patrimony,

and Regional Development

José Manuel Ribeiro Pinto e João Pimenta Lopes

pág. 244-250

Núcleo Museológico da Pesca do Atum

Museum of the Tuna Fishing

César Emanuel Alvito Gaspar

pág. 251-260

O Museu Municipal da Póvoa

de Varzim e a preservação da memória

da comunidade marítima

The Municipal Museum of Póvoa de Varzim

and the preservation of the memory

of the maritime community

Deolinda Maria Veloso Carneiro

e José Manuel Flores Gomes

pág. 261-272

Museu do Trabalho Michel Giacometti:

entre o edifício e a comunidade – projectos

que estreitam relações

Museum of Work Michel Giacometti;

the museum and its communities – projects

that reinforce relationships

Maria Miguel Cardoso

pág. 273-279

Círios dos marítimos de Alcochete

Alcochete boatman festivity

Marto da Cunha Alves

pág. 280-289

O Museu da Nazaré nas representações do mar.

Participação e revisão identitária da comunidade

The Museum of Nazaré in the representations of the sea.

Engaging the community and reviewing identity

Dóris Santos

pág. 290-296

Trabalhar com e para as comunidades: reflexão sobre

a experiência do Ecomuseu Municipal do Seixal

no âmbito da temática marítima

Work with and for the communities: thinking about

maritime heritage in the Ecomuseu Municipal do Seixal

João Martins

pág. 297-304

Resenha

Terra Tecida: o cinema documental como

registro de experiências culturais

José Luís de Oliveira e Silva

pág. 306-308

Mares de Sesimbra – História, Memória e Gestão

de uma Frente Marítima em torno de “A Indústria da

Pesca em Sesimbra” de Baldaque da Silva (1897)

Carlos Alberto Salsugem

pág. 309-310

Crítica de Arte e Design

A mari usque ad mare

Do mar para o mar

Ana Rita Antunes

pág. 312-315

Olho de peixe

Jorge dos Reis

pág. 316-317

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Entrevista

História da Arte, Arqueologia, Património

e Museologia

Luís Jorge Rodrigues Gonçalves

pág. 320-326

Memórias

Memórias de investigação em uma Comunidade

de Pescadores Tradicionais no Litoral do Piauí, Brasil

Fábio José Lustosa da Costa Ferreira

pág. 328-336

Notas de Dissertação e Tese

Discursos de Memória, Expectativa e Identidade:

o fazer cinematográfico de Cipriano e o agenciamento

das imagens do sertão na cultura piauiense

(1997-2003)

José Luís de Oliveira e Silva

pág. 340-341

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Quando eu morrer voltarei para buscar os instantes que não vivi junto ao mar

Sophia de Mello Breyner Andersen

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EditorialÁurea da Paz Pinheiro

Saudade! Olhar de minha mãe rezando,

E o pranto lento deslizando em fio...

Saudade! Amor da minha terra... o rio

Cantigas de águas claras soluçando.

Noite de junho... O cabaré com frio,

ao luar, sobre o arvoredo, piando, piando...

E ao verão as folhas lívidas cantando...

a saudade infeliz de um sol de estio.

Saudade! Asa de dor do pensamento!

Gemidos vão de canaviais ao vento

Ai! Mortalhas de névoas sobre a serra.

Saudade! O Parnaíba – velho monge

As bordas brancas alongando... E ao longe,

O mugido dos bois da minha Terra.

(Saudade. Da Costa e Silva / Brasil)

A sardinha vem à terra todas as tardes e retira pela manhã. Se há luar, desaparece. Os

vapores navegam com as luzes apagadas no silêncio entorpecido destas noites de Verão,

em que as estrelas se reflectem na água como faúlhas de lume e a Via Láctea desdobrada

ilumina ao mesmo tempo o céu e o mar duma vaga brancura. Um ou outro fantasma de

vapor passa por nós e some-se. O mestre Fagadulha, concentrado, espera... A bordo não

se respira, e dir-se-ia que os outros barcos andam também na ponta dos pés. Silêncio e

estrelas, cada vez mais estrelas. E sempre este movimento que sinto debaixo dos pés e este

negrume que me envolve em círculos concêntricos, à medida que o barco se desloca, sob o

céu que se aproxima e que sinto arfar. Toda a tripulação está atenta, desde os criados, os

proeiros, até ao pedreiro e ao mestre, que são as pessoas importantes de bordo. O mestre

não é apenas um observador – é um bruxo. Para largar a rede é preciso saber não só onde

está o peixe – e o mestre adivinha o cardume – mas calcular de antemão a qualidade e a

quantidade de sardinha que se vai tirar no lanço porque não vale a pena fazer a manobra

por uma pequena porção.

(Pescadores. Raul Brandão / Portugal)

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Nesta edição, a Revista VOX MUSEI arte e património apresenta a temática Cultura Fluvial e Marítima: património, museus e sustentabilidade, o nosso desejo é fomen-tar a investigação, valorizar e divulgar o património cultural e natural de base comunitária fluvial e marítima, que apesar de uma longa tradição é ainda rela-tivamente recente no que tange a investigações realizadas por instituições de ensino e pesquisa, cultura, museus e património.

Acolhemos, portanto, estudos que nos permitem refletir sobre os distin-tos modos de agir e pensar das comunidades, o papel político e social dos museus e patrimónios; ampliar reflexões e debates sobre a complexidade das identidades, culturas, histórias, memórias dos diferentes grupos e comuni-dades fluviais e marítimas.

A Revista está organizada nas seções: artigos; museus e instituições de artee cultura: saberes, experências e práticas; resenha; crítica de arte e design; entre-vista; memórias; notas de dissertação e tese, que traduzem e materializam cer-tamente este espaço de debate não só para a comunidade científica nacional e internacional, mas também para as comunidades locais.

Pretendemos que este número da Revista seja um ponto de partida para es-tudos, pesquisas, debates e intervenções nas ciências sociais e históricas, artes, patrimónios e museologia, permita-nos refletir e dialogar sobre as comunidades de Pescadores, suas memórias, identidades, culturas, patrimónios, sustentabili-dade, bem como sobre conceitos, metodologias e práticas no campo do Patrimó-nio Cultural Fluvial e Marítimo.

Na seção Artigos encontramos textos ricos e diversos:Património, museus, cultura marítima e fluvial (Heritage, museums, maritime

and fluvial culture), de autoria de Luís Jorge Rodrigues Gonçalves e Áurea da Paz Pinheiro, apresenta o Programa Museológico do Museu do Mar, a ser implantado na Fortaleza de Santiago, edificação do século XVII, em Sesimbra, inserida na Serra da Arrábida, Parque Natural, área costeira, clima e paisagem mediterrâni-cos em pleno Atlântico.

O patrimônio ambiental das cidades-beira Roncador-GO, Guadalupe-PI, Remanso--BA e seus destinos históricos (The environmental heritage of border-cities:Roncador--GO, Guadalupe-PI, Remanso-BA and its historical destinations), de autoria de Gercinair Silvério Gandara, traz um conjunto de reflexões em torno de trabalhos de pesquisa desenvolvidas pela autora sobre Cidades-beira: em busca das raízes urbanas e de suas relações com a natureza; investigações materializadas em di-ferentes trabalhos que abordam, cada um por sua vez, três regiões brasileiras, Goiás, Bahia e Piauí.

A influência do mar na visão museológica de Ramalho Ortigão (The influence of sea on Ramalho Ortigão’s museological concept), neste texto, a autora Alice Nogueira Alves nos remete ao universo sensível do mar como tema de reflexão constante na obra de Ramalho Ortigão.

Em a Praia dos Prodígios. O que o rio traz à obra de Lagoa Henriques (Praia dos Prodígios. What the river brings to the work of Lagoa Henriques), Rita Nobre

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de Carvalho discorre sobre a obra artística de Lagoa Henriques e sua intimamente ligada à história dos poetas portugueses que escreveram, contemplaram e teme-ram o mar.

Em Tratados de construção naval ibéricos nos séculos XVI E XVII (Iberian Treatises of Shipbuilding in the sixteenth and seventeenth centuries), António Teixeira e Brígida Baptista dão a conhecer importante colecção dos chamados tratados e regimentos de construção naval publicados no período da chamada Época da Tratadística (1570/80-1640), que consideram a base de qualquer estudo sobre a fábrica dos navios da época.

Em As três confrarias marítimas de Sesimbra num Regimento de 1563 (The three sea fraternities from Sesimbra in a Regiment of 1563), Fernando Alberto Gomes Pedrosa discorre sobre um regimento de 1563, que menciona três confrarias ma-rítimas em Sesimbra; para atintir o seu intento, recorre a documentos de outras povoações, em especial de Lisboa, Setúbal e Pontevedra.

Transformações nas armações de pesca de Sesimbra, no século XIX (Changes in the fisheries of sesimbra, during the 19th century), neste texto, João Augusto Al-deia escreve sobre as alterações institucionais e legais ocorridas em Portugal ao longo do século XIX, que configuraram a substituição do Antigo Regime pelo Liberalismo e tiveram implicações diretas e profundas sobre a atividade econó-mica das pescas em Sesimbra.

No texto, Uma proposta de desenvolvimento humano assente na Cultura Fluvial Avieira (A proposal of human development based on Avieira Fluvial Culture) João Manuel Monteiro Serrano recorre ao segundo quartel do século XIX e trata dos pescadores Avieiros e suas famílias, que procuraram e encontraram no rio Tejo sustento que o oceano lhes negava no Inverno, narra os enfrentamentos, o inimaginável e a constituição de uma comunidade culturalmente inimitá-vel, que perpetuou valores de origem da Praia da Vieira de Leiria, pessoas sim-ples que edificaram um património que testemunha as lutas pela afirmação e pelo reconhecimento, atualmente em processo de candidatura a património nacional imaterial.

Rita de Cássia Moura Carvalho, no artigo Rio abaixo, rio arriba. Património e tradição ribeirinha no Meio Norte do Brasil (River below rio arriba”. Heritage and tradition in the Middle Riverside Northern Brazil), nos apresenta o universo das diversas populações tradicionais que habitam a região do rio e delta do Parnaíba, no Meio Norte do Brasil; fala-nos dos pescadores e construtores de embarcações, dos catadores de caranguejos, de moluscos, de mariscos; das rendeiras, das ben-zedeiras, dos artesãos em barro, palha e madeira.

Em Os Espelhos de uma vila de pescadores (The mirrors of a fishing village), Luís Martins e João Augusto Aldeia apresentam o embrião de um projeto de inven-tariação das práticas fotográficas e dos fotográfos que trabalharam na vila de Sesimbra e, em especial, registraram as atividades que envolvem a comuni-dade piscatória.

Caracterização do ambiente natural e cultural dos catadores de caranguejo da

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RESEX Delta do Parnaíba (Characterizing and defining the environment and the cultural life style of the crab-pickers within the Delta of Parnaíba RESEX), texto de autoria de Ana Helena Mendes Lustosa, analisa a cultura e as práticas pro-dutivas dos catadores de caranguejo da Reserva Extrativista (RESEX) Marinha Delta do Parnaíba, Brasil; no texto é possível perceber as potencialidades das ati-vidades produtivas e as mudanças sociais em curso na região, as repercussões no modus vivendi das populações tradicionais, fruto de embates no contexto de uma ordem global racionalizadora.

Marta Gouveia de Oliveira Rovai escreve Tradição oral e patrimônio cultural na Ilha das Canárias, Brasil (Oral tradition and cultural heritage in Canary Island, Brazil), nos permite conhecer as populações que vivem no Delta do Rio Parnaíba, nomeadamente na Ilha das Canárias, Brasil; a cultura material e imaterial, o pa-trimônio histórico-cultural e ambiental, por meio de memórias; os diálogos que realiza com um grupo de jovens pesquisadores que coordena e que procura apro-ximar da comunidade, em estudos sobre o sentido da preservação e da tradição.

Silmara Erthal, no artigo, Área de Proteção Ambiental Delta do Rio Parnaíba, Brasil: importância biológica e socioeconômica para as comunidades ribeirinhas (Envi-ronmental Protection Area of Parnaíba River Delta, Brazil: biological and socio-economic importance for riverside communities), trata, de forma institucional, do Delta do Parnaíba, constituído por um dos ambientes mais ricos do planeta, os manguezais, que garantem a sustentabilidade de milhares de famílias da re-gião, além de função de proteção da costa; destaca a importância do Governo Brasileiro decretar a criação de duas Unidades de Conservação, a Área de Pro-teção Ambiental Delta do Parnaíba e a Reserva Extrativista Marinha Delta do Parnaíba, com objetivos de melhorar a qualidade de vida das famílias residentes e usuárias da região deltaica.

Em Arquivos de Memória (Memory Archives), Ana Duarte narra um projeto que coordenou com utentes de um Lar de 3ª Idade em Setúbal, formado por um grupo de professores de vários graus de ensino e diversas disciplinas, inclindo a sua direção, composta por professores aposentados que, de forma voluntária, gerem uma casa com todo o conforto e respondem de uma forma eficaz às neces-sidades dos residentes. A autora apresenta o trabalhado e seus resultados, a sua condição de voluntária, ao ministrar o curso de História de Portugal e recolha de memórias dos habitantes do lar; memórias centradas nos ciclos de vida da famí-lia, vida profissional e relações com o sagrado; a autora destaca que o motor da vida das pessoas é constituído pelas relações que estabelecem e pelas estruturas relacionais que sobrevivem às próprias pessoas.

No texto, Patrimônio ambiental da Ilha Grande, Piauí, Brasil (Heritage environ-mental the Ilha Grande, Piauí, Brasil), Francinalda Rodrigues Rocha apresenta, igualmente, pesquisa cujo objetivo foi apreender às concepções de patrimônio ambiental de estudantes da Ilha Grande de Santa Isabel, Piauí, Delta do Parnaí-ba, Brasil; informa sobre o método de captura de informações; utilizou questio-nário e mapas mentais sobre a vida na comunidade; nos diz que há uma estreita

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relação entre os bens naturais e a comunidade local, que requer cuidados com o meio ambiente.

APA Delta do Parnaíba e o Peixe-Boi (APA Delta of Parnaíba and the manatee) de Patrícia dos Passos Claro, nos informa sobre a criação da Área de Proteção Ambiental Delta do Parnaíba em 1996; a autora trata da relação íntima com os mais de 30 anos de história do Projeto Peixe-boi; discorre sobre as pesquisas ini-ciadas pelo projeto desde a década de 1980 e assinala alguns resultados, a impor-tância do Delta do Parnaíba e particularmente de um estuário menor, o do Timo-nha e Ubatuba, para a alimentação e reprodução da espécie Trichechus manatus no litoral norte brasileiro.

Em O Brasil em defesa do patrimônio histórico, artístico, arqueológico e natural (Brazil in defense of the historical, artistic, archaeological and natural heritage), Valério Rosa de Negreiros e Áurea da Paz Pinheiro apresentam uma trajetória pos-sível das discussões sobre o patrimônio histórico, artístico, arqueológico e natu-ral do Brasil a partir das políticas públicas adotadas para o estudo, a preservação e a divulgação de bens culturais de valor nacional.

Iolanda Cristina Barreira Pereira, no texto Protecção e salvaguarda do patrimó-nio cultural subaquatico (Protection and safety of underwater cultural heritage), alerta para o crescente interesse pelo património cultural subaquático, para o fato de sítios arqueológicos serem sistematicamente destruídos e pilhados; trata ainda da Convenção da UNESCO (2001) para a Protecção do Património Cultu-ral e Subaquático, do caso específico de Portugal, que em 2006 ratificou o dis-positivo legal; mas alera que o documento carece urgentemente de um plano preventivo para a exploração e comercialização do património cultural.

O restauro da Fortaleza de Sagres no Estado Novo (The restoration of the For-tress de Sagres during Salazar’s New State), de Pedro Figueiredo Tavares da Silva, reporta-nos ao estudo da intervenção de restauro da Direção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais no conjunto arquitetónico existente na Fortaleza de Sagres, bem como ao modo como este se insere no panorama geral das campa-nhas do restauro cultural e ideológico protagonizado pelo Estado Novo sobre o património português.

Rosemar Gomes Lemos, ao tratar de Patrimônio, cultura e sustentabilidade: construção identitária e social através dos festejos no litoral sul do Rio Grande do Sul, Brasil (Heritage, culture and sustainability: identity construction and social ce-lebrations across the south coast of Rio Grande do Sul, Brazil), destaca a impor-tância da diversidade religiosa e das ações políticas no âmbito federal brasileiro; firma-se em resultados obtidos, nos quais percebeu que ações políticas podem interferir na constituição do patrimônio histórico imaterial de um povo e con-tribuir para um desenvolvimento sustentável com base no aproveitamento de recursos naturais e culturais.

Edvania Gomes de Assis e Francisco Pereira da Silva Filho escolhem como tema O Ecoturismo, patrimônio natural e cultural na cidade de Parnaíba, Piauí, Brasil (Eco-tourism, natural and cultural heritage in the city of Parnaiba, Piauí, Brazil) e

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nos mostram a importância de conhecer as atividades humanas, diretamente relacionadas ao uso do patrimônio cultural e natural, no bairro Ilha Grande de Santa Isabel na cidade de Parnaíba-PI; tratam de resultados de pesquisa, es-clarecem o processo complexo de adaptação na relação sociedade/natureza e seus impactos.

Nesta edição, a Revista VOX MUSEI inova ao criar a seção Museus e Institui-ções de Arte e Cultura: saberes, experiências e práticas. Alguns pesquisadores aceitaram o desafio de apresentar o museu, o núcleo museológico ou mesmo o trabalho que desenvolvem, individualmente ou de forma institucional, junto às comunidades que circunscrevem as instituições: no Brasil, o Museu Nacional do Mar – Embarcações Brasileiras, em São Francisco do Sul – Santa Catarina; em Portu-gal, o Museu de Marinha, em Lisboa; o Museu Etnográfico da Praia de Mira, em Mira; Museu do Mar de Esposende, em Esposende; Fluviário de Mora, em Mora; o Núcleo Museológico da Pesca do Atum; em Tavira; o Museu Municipal da Póvoa de Varzim, em Póvoa de Varzim; o Museu do Trabalho Michel Giacometti, em Setúbal; o Museu Marítimo de Alcochete, em Alcochete; o Museu Nazaré, em Nazaré; e o Museu Muni-cipal do Seixal, em Seixal.

Na Seção Resnha, sob o título Terra Tecida, o cinema documental como re-gistro de experiências culturais, José Luís de Oliveira e Silva, nos apresenta im-pressões do filme documental Terra Tecida, de Juliana Campos, que retrata o cotidiano de mulheres rendeiras residentes na comunidade Morros da Mariana, localizada no município de Ilha Grande de Santa Isabel, pequena cidade do ex-tremo Norte do estado do Piauí, Brasil; descamos ainda a Resenha sob o título, Mares de Sesimbra: história, memória e gestão de uma frente marítima, de auto-ria de Carlos Alberto Salsugem. A obra evidência três fatos: a greve dos pescado-res das armações, iniciada em novembro de 1896, e que se terá prolongada por vários meses; o relatório A Indústria da Pesca em Sesimbra (Março de 1897), da autoria de Baldaque da Silva, engenheiro hidrógrafo e oficial da marinha, mem-bro da Comissão Central de Pescarias, que era então o órgão consultivo para a gestão das pescas em Portugal; o desejo antigo da população de Sesimbra, não só a piscatória, mas também notáveis locais e de fora, com a particulari-dade de alguns estarem ligados à cultura e ao mundo académico, que entre os anos 1960 e 1970 deram os primeiros passos para o estabelecimento de medidas de proteção das espécies piscícolas nos mares da Costa da Arrábida, movimento que culminaria na implementação do Parque Marinho Luís Sal-danha nos inícios dos anos 1980.

Na Seção Crítica de Arte e Design, Ana Rita Antunes discorre sobre a com-posição, conceito e montagem da Exposição Mediação entre Dois Mundos, revela o olhar atento e sensível de Cássia Moura sobre as comunidades de pescadores no Delta do Parnaíba, Brasil; e de fotógrafos portugueses sobre a comunidade de Pescadores de Sesimbra, Portugal, entre os anos 50 a 70 do século XIX. Jorge dos Reis nos apresenta a metodologia do projeto de design, que seguiu para cons-truir o símbolo, que serve de identidade gráfica para o Congresso Internacional

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Cultura de Cultura Fluvial e Marítima (Património, Museus e Sustentabilida-de), do colectivo luso-brasileiro VOX MUSEI – arte e património. Explica que pretendeu falar para dois grupos sociais distintos: por um lado, marcar um filão de comunicação sofisticado, com os investigadores, por outro, estabelecer uma linguagem que chegue à comunidade piscatória.

Na Seção entrevista deste número conversamos com o professor, historia-dor da arte, arqueólogo e museólogo Luís Jorge Gonçalves, atualmente diretor da Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa e responsável pela co-ordenação dos trabalhos museológicos em Sesimbra, Portugal.

Criamos ainda a Seção Memórias. Fábio José Lustosa da Costa Ferreira, Mestre em Educação, Especialista em Arqueologia e Docente do Departamento de Ciên-cias Sociais da Universidade Federal do Piauí, narra as suas memórias de inves-tigação realizada na comunidade de Pescadores da Praia do Macapá, litoral leste do estado do Piauí, Brasil; dos estudos centrados em uma abordagem etnográfica; observação atenta dos saberes, fazeres, táticas e estratégias de subsistência que caracterizam o modo de vida tradicional daquela comunidade; evidencia alguns elementos da cultura material ribeirinha relacionados à habitação e à pesca, cujo objetivo foi registrar a interação homem-meio ambiente-sustentabilidade.

Na Seção Notas de Dissertação e Tese, divulgamos o trabalho de José Luís de Oliveira e Silva, Tese de Doutorado, defendida em 2013, sob o título “Discursos de Memória, Expectativa e Identidade: o fazer cinematográfico de Cipriano e o agencia-mento das imagens do sertão na cultura piauiense (1997-2003)”, na Universidade Fe-deral de Goiás (UFG) - Brasil, Faculdade de História, Programa de Pós-graduação em História, Área de Concentração: Culturas, Fronteiras e Identidades. Linha de Pesquisa: Identidades, Fronteiras e Culturas de Migração, sob a orientação de Libertad Borges Bittencourt (UFG). A pesquisa trata das relações entre História e Cinema, tem como objeto o filme Cipriano (Douglas Machado, 2001) – consi-derado o primeiro longa-metragem piauiense; como problemática apresenta o desafio de entender as formas como o filme e os discursos em torno desse pro-duto cultural foram construídos e traduz o universo sertanejo piauiense, como esses significados se relacionam com as estereotipias que historicamente foram tomadas como referências para pensar o universo, o universo cultural que se aprenta na narrativa do filme.

A Revista VOX MUSEI arte e património é publicada em formato impresso e eletrónico. Em sua versão on line, utiliza-se o SEER (Sistema Eletrónico de Edito-ração de Revistas), disponível em http://www.ojs.ufpi.br/index.php/voxmusei/index. Ao se disponibilizar o conteúdo da Revista na rede mundial de computa-dores, pretendemos ampliar uma rede de pesquisadores e públicos interessados nos debates que envolvem as temáticas centrais do periódico.

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Introdução

Sesimbra está no limite meridional de um vale tifónico, rodeado pela Serra e pelo Mar, o que lhe confere particularidades geológicas, mercê dos substratos de argila e camadas detríticas vulcânicas; singularidades ambientais, com zonas marítimas salinizadas e um clima ameno. A localização geográfica privilegiada favoreceu-lhe

Património, Museus, Cultura Marítima e FluvialHeritage, Museums, Maritime and Fluvial Culture

Luís Jorge Rodrigues GonçalvesHistoriador da Arte, Arqueólogo e Museólogo; diretor da Faculdade de Belas-Artes

da Universidade de Lisboa; pesquisador do CIEBA, Centro de Investigação e Estudos em

Belas-Artes; docente dos Programas de Pós-Graduação em Museologia e Museografia

(Mestrado) e Belas-Artes, especialidade Museologia (Doutorado).

Áurea da Paz PinheiroHistoriadora; Pós-doutora em Ciências da Arte e do Património, Especialidade

Museologia, Capes/Sénior; pesquisadora do CIEBA; docente da Universidade Federal

do Piauí e da Universidade de Lisboa, nomeadamente nos Programas de Pós-Graduação

em Museologia e Museografia (Mestrado) e Belas-Artes, especialidade Museologia

(Doutorado); líder do Grupo de Pesquisa VOX MUSEI arte e patrimônio CNPq | CIEBA.

Resumo: Trata-se neste artigo do Programa Museológico do Museu do Mar, a ser instalado na Fortaleza de Santiago, edificação do século XVII, em Sesimbra, vila localizada a 40 km a sul de Lisboa, inserida na Serra da Arrábida, Parque Natu-ral, área costeira, clima e paisagem mediterrânicos em pleno Atlântico; reserva marítima, na qual não é possível a pesca e a paragem de barcos; área procurada pelos praticantes de mergulho. A sua inserção no complexo calcário da Arrábida traz à Vila algumas peculiaridades geográficas.

Palavras-chave: Património. Museus. Cultura Fluvial e Marítima. Sustentabilidade.

Abstract: This article intends to design the Program of the Museum of the Sea, which will be installed in a seventeenth-century fortress in Sesimbra, village located 40 km south of Lisbon in the Serra da Arrábida, Natural Park, coastal area, climate and Medi-terranean landscape, in the Atlantic; marine reserve where is not possible fishing or mooring boats; this area is searched by divers. Its insertion in the limestone complex of Arrábida, brings to the Village some geographical peculiarities.

Keywords: Heritage. Museums. Fluvial and Maritime Culture. Sustainability.

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o desenvolvimento de uma intensa atividade ligada ao mar, nomeadamente a pesca; trata-se a par dos do Algarve, do único porto do país virado a Sul, abrigado dos fortes ventos e tempestades que habitualmente se abatem sobre o território português.

Recortada por três grandes ribeiras de água doce, desde o período romano que as evidências arqueológicas suportam a existência de uma estrutura portuá-ria, ao centro da baía, a qual se manteve até meados do século XX, momento em que foi construído o Porto de Abrigo, na zona poente. Com uma vocação emi-nentemente marítima, desde tempos imemoriais que a pesca é uma das princi-pais formas de subsistência de seus habitantes.

Há evidências de ocupação humana na região da Arrábida desde há 30.000 anos, com o Homem de Neanderthal. Entre os cerca de 10.000 e 5.000 a.C., há vestígios de comunidades Mesolíticas, que aproveitavam os recursos do mar. As primeiras comunidades agro-pastoris e metalúrgicas deixaram as suas marcas cerca dos 5.000 a 3.000 a.C., em povoados ou em marcas funerárias nas grutas da região calcária (GONÇALVES, CALADO et al, 2009).

Os Fenícios também deixaram fortes evidências de sua presença, sendo o mais significativo um santuário em uma gruta sobre o mar, onde depositaram um tesouro como oferenda (informação ainda inédita). Da época Romana, há restos de uma fábrica para produção de pastas de peixe, o famoso garum, e de conservas (FERREIRA, CONCEIÇÃO, 2009:164-165). Ainda da época romana, na área do Cabo Espichel, foram descobertos cerca de 55,1% dos cepos de ânco-ra em chumbo identificados na costa portuguesa (ALVES et al,1988-1989:120).

Na época islâmica, as evidências às pescas são menores, mas existiu uma es-cola corânica, que legou uma placa em madeira do século X com a shura 39 do Corão (GONÇALVES, CALADO et al, 2009). A partir do século XII e, sobretudo, no século XIII, começou a se constituir a moderna comunidade de marítimos e pescadores que perdurou até os dias atuais (Ibidem).

Os pescadores de Sesimbra tiveram a capacidade de serem inovadores e de-monstrarem ao longo dos séculos um espírito de resposta aos novos desafios.

1. Museus relacionados a contextos marítimos e fluviais

Em Portugal, os museus ligados às atividades marítimas em sentido lato, espaços museológicos que de alguma forma apresentam em suas coleções temas do mar e da vida das comunidades ribeirinhas (de mar e de rio), têm uma tradição que remonta ao final do século XIX. Em nota informativa, no final deste artigo, elen-camos cada um desses museus1.

2. O Museu do Mar de Sesimbra

Remonta aos anos trinta a primeira tentativa de criação do Museu do Mar de Se-simbra, contudo, foi a partir de 1982, com a realização de uma exposição tempo-rária, que o projeto se consolidou, com a criação posterior de uma reserva técnica.

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A partir de 1998, o projeto ganhou novo fólego com o Programa Museológico de Sesimbra (GONÇALVES, 2000). Nesse Programa, foi criada uma rede museo-lógica, que elabora uma narrativa sobre o território e sua ocupação pelo homem desde a pré-história até os nossos dias. Nesse contexto, a memória das pescas em Sesimbra estará representada nas instalações da Fortaleza de Santiago, um edifício que remonta ao início do século XVI, profundamente reestruturado em 1640 e que, no século XX, foi símbolo da autoridade naval, local onde todos os pescadores tinham que ir para obter as suas licenças de pesca.

Situado no centro da Vila, a Fortaleza é para a população de Sesimbra o único espaço possível para a instalação do Museu do Mar, quer pela localização, quer pelo que simbolizava para a comunidade de pescadores. 2.1. Um pólo museológico sobre as atividade marítimas e a vida quotidiana de Sesimbra

Pretendemos que o futuro pólo museológico assuma a ligação de Sesimbra, e respectivo município, ao mar e à pesca; represente eventos e realizações do pas-sado, descreva o presente e projete as potencialidades do oceano e de suas ativi-dades culturais, científicas, lúdicas e económicas.

O centro do discurso da exposição permanente deverá assentar sobre as constantes respostas inovadores que os pescadores de Sesimbra deram sempre - e continuam a dar - à boa exploração dos recursos marinhos e também dos oce-anos como fronteira sempre aberta. Sem desvalorizar a apresentação dos fatos históricos e das técnicas e artefatos do passado, pretendemos mostrar que em cada época houve uma organização social, tecnologias e artefatos, que o proces-so de mutação social e tecnológica se mantém no presente e continuará no futu-ro. Assim, a exposição deverá salientar permanentemente os elementos de con-tinuidade, apresentando as soluções do presente na sua equivalência com as do passado; mostrar como as formas organizacionais e os artefatos tecnológicos do presente estão destinados, eles próprios, a constituirem passado em um futuro próprio, valorizando o processo de mudança, sacrifício, altruísmo e sofrimento, criatividade e capacidade de adaptação às mudanças, respeito pelo ambiente e preservação de seus recursos.

Pretendemos, ainda, que o Museu do Mar de Sesimbra tenha uma natureza lúdica, assentada na dinâmica dos Serviços Educativos, de Educação Museal, que valori-zem e promovam novas vias de interatividade com os diferentes públicos, como a experimentação, o utilizar e apreender com recurso a todos os sentidos e aos materiais expostos.

Acreditamos em um projeto que tenha como um de seus públicos os jo-vens, que poderão recorrer às instalações especiais e às novas tecnologias (reais e virtuais), que permitam a simulação de atos como remar, zingar, alar redes, preparar e lançar as artes de pesca (empatar anzol, ensarremar apare-lho, cozer redes, etc), identificar as diversas espécies piscícolas e respectivos

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ecossistemas (habitat), navegar na cabina do barco, usando o leme e aparelhos de orientação e comunicação (GPS, rádio, sondas, orientação pelos astros), di-vidir o produto da pesca pelo sistema das partes, venda e compra do peixe em lota, com pregão de viva voz.

Ao longo dos anos foram efetuadas pesquisas junto à comunidade de Se-simbra, realizadas reuniões públicas, que permitiram a captura de narrativas de experiências de anos de vida no mar em uma terra de pescadores; as sessões foram sistematizadas em no projeto “Memória e Identidade”; há registos de várias horas de conversas em filmes, que nos permitem contar uma história.

2.2. Programa museológico e definição das narrativas

O programa museológico está condicionado por um espaço histórico, a Fortale-za de Santiago; foi elaborado no âmbito de um trabalho sistemático e pluridisci-plinar desenvolvido ao longo de vários anos. A equipa técnica do Museu do Mar de Sesimbra estruturou o Programa com base nas componentes de investigação, documentação, incorporação, registo e inventário, sempre na ótica da preserva-ção e salvaguarda da memória social.

A distribuição funcional e temática da componente museológica da Fortaleza de Santiago é a seguinte:

a) O Território e o Mar;b) História da Fortaleza; c) Primeiras evidências das pescas e da navegação em Sesimbra; d) Homens e embarcações de Sesimbra;e) Proteção do divino;f) A literatura e as pescas em Sesimbra;g) Percursos pela fortaleza e leitura da paisagem; h) Espaço laboratorial e expositivo dedicado à oceanografia;i) Visitas em uma embarcação tradicional;j) Estaleiro Naval.

Pretendemos que o futuro pólo museológico assuma a ligação de Sesimbra e seu território ao mar e à pesca, assinale eventos e realizações do passado, descrevendo o presente e projetando as potencialidades do oceano e de todas as atividades culturais, lúdicas e económicas.

A relação com o mar é a referência do Programa Museológico e a fronteira marítima um limite ultrapassável com o apoio imprescindível da comunidade local. Do ponto de vista museográfico, pretendemos uma forte componente grá-fica com recurso à fotografia.

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2.2.1 As Narrativas

No Museu do Mar de Sesimbra, a instalar na Fortaleza de Santiago, bem no cen-tro da Vila e sobre o Oceano, serão construídas diferentes narrativas que se con-jugarão em uma narrativa que leva à descoberta de uma comunidade.

2.2.1.1 O Território e o Mar

Tratam-se de dois aspetos, por um lado, o contexto geográfico e ambiental, por outro, os primórdios mais recuados da história da comunidade. No que se refere ao contexto geográfico e ambiental, será abordada a formação do território ao se colocar em exterior da Fortaleza elementos que permitam ler a paisagem.

No que se refere aos primórdios da comunidade, serão apresentados obje-tos que assinalam as atividades pesqueira e marítimas em épocas precisas: a) últimas comunidades de caçadores/recolectores do Mesolítico, de há cerca 10.000/5.000 anos a.C., um artefacto de sílex de um arpão; b) primeiras comuni-dades de agricultores/pastores, do Neolítico, cerca de 4.000 anos a.C., um anzol de osso; c) comunidades metalúrgicas da Idade do Bronze, cerca de 1.000 anos a.C., um anzol de bonze; d) Idade do Ferro, cerca de 500 a.C., um brinco em ouro Fenício; e) época romana, cerca dos séculos I-IV d.C., uma ânfora e um cepo de âncora; f) época visigótica, uma cerâmica de um monge anacoreta, que viu na proximidade ao mar o seu refúgio do mundo; g) época islâmica, do século X, uma cerâmica do norte de África.

2.2.1.2 História da Fortaleza

O espaço do Museu do Mar é a Fortaleza de Santiago, um edifício histórico, por-tanto, haverá uma exposição dedicada à mesma: a) construção da primeira for-taleza no início do século XVI, posteriormente atacada por uma armada inglesa em 1602; há uma planta de Sesimbra daquela época e uma reprodução da pintura que representa o referido ataque; b) atual Fortaleza, se fará referêcia ao contexto histórico de sua construção, bem como a ligação a outras fortalezas da região; arquitetura, cronologia, acontecimentos relevantes, uso militar, organização do espaço, militares e personalidades, que passaram pela Fortaleza, a Fortaleza como centro da autoridade marítima, para onde os pescadores tinham que se des-locar, história mais recente; haverá manequins trajados de soldados por toda a Fortaleza; além de plantas da Fortaleza e fotografias de atividades mais recentes.

2.2.1.3 Primeiras evidências das pescas e da navegação em Sesimbra

Neste núcleo, serão abordados os primórdios da atual comunidade sesimbren-se, desde o século XIII, em textos e objetos das épocas referidas: a) referências, na época islâmica, à Costa do Âmbar, como sendo Sesimbra; b) apresentação do

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Foral de fundação da Vila de 1201, então instalada no castelo, com a primeira menção às pescas; c) a origem da comunidade junto do mar, a Ribeira de Sesim-bra, com o rei D. Dinis (1279-1325), apresentando uma moeda desse reinado, descoberta na vila; d) embarcações e primeiras referências à construção naval com alusão aos conhecimentos náuticos, que influenciaram os descobrimentos, com apresentação de maquete de uma Caravela de Sesimbra; e) artes de pesca e espécies pescadas.

2.2.1.4 Espécies de peixe mais capturadas

Em ilustração científica se fará uma alusão às espécies capturadas ao longo do tempo pelos pescadores de Sesimbra.

2.2.1.5 A comunidade de Sesimbra e o mar

Trata-se do principal núcleo expositivo, centrado em imagens fotográficas, atuais e passadas, o propósito é que a comunidade se identifique hoje, mas também como os seus antepassados mais recentes; serão apresentados objetos em contexto nas fotografias. Pretende-se a construção de uma narrativa que aborde a vida na co-munidade em Terra e no Mar, ambas as realidades frente a frente. Haverá tex-tos, fotografias, vídeos, objetos, frases de depoimentos, maquetas de barcos, etc.

Em Terra: a) pescadores e pescadoras; b) relação com a autoridade marítima, os registos, as cédulas de inscrição marítima, os livros de registo e de embarque; c) o escritório do armador; d) a casa; e) a família, as mulheres e as suas ocupa-ções, os filhos e a educação; f) a formação profissional nas pescas; g) os tempos livres; h) em terra, preparar o trabalho no mar; i) os Estaleiros navais; j) o porto de pesca; l) a vila e aspectos da vivência quotidiana; k) associações recreativas; m) associações profissionais e organização do trabalho; n) as lutas por melhores condições de vida; o) as lotas; p) o comércio; q) a indústria conserveira; r) festa e diversão; s) turismo de pesca desportiva; t) o moço chamador para o mar.

No Mar: a) saída para o mar; b) os mares de Sesimbra, com mapa do mar local e mar longínquo; c) tipos de barcos; d) espaço da viagem, com a presentação de um vídeo e fotos de uma saída para o mar; e) técnicas de pesca; f) vida a bordo no mar; g) cozinhar a bordo e respetivas receitas culinárias; h) preparar redes; i) limpar o barco; j) pilotar e respetiva tecnologia e sua evolução; l) preparar o peixe; k) dormir e repousar; m) desembarcar e retirar o peixe, denominada “a verga”.

2.2.1.6 Homens e embarcações de Sesimbra

Neste núcleo, pretendemos realizar uma homenagem a todos os pescadores mortos no mar e uma evocação a todos os homens e mulheres que trabalharam no mar em Sesimbra, por meio de projeção e da criação de um banco de dados com cédulas marítimas, que há registos fotográficos desde o final do século XIX,

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com fotografias de pescadores em diferentes momentos de suas vidas. Faremos referência aos nomes de todos os barcos, pelo menos desde o início do século XX, dada a forte carga simbólica desses nomes e a sua presença constante na memória coletiva dos sesimbrenses. Será realizada projeção de barcos e ainda possibilidades de acesso à base de dados.

2.2.1.7 Proteção do divino

Neste núcleo, fortemente encenado, se tratará das sensibilidades, da religiosi-dade, centrada na principal celebração, ainda presente em Sesimbra, a festa ao Senhor Jesus das Chagas, que ocorre sempre no dia 4 de Maio; abordar-se-á a lenda do milagre de aparecimento da imagem, que deu origem à celebração; as representações de componente artística (a própria imagem do século XVI) e da história da celebração. Seguir-se-á com a evocação das festas na atualidade, com a descrição do ritual, a sua preparação, os mordomos, os objetos de devoção (sendais, bandeiras, registos em escamas de peixe, etc.), a procissão e as festivi-dades, os cânticos, etc. Imagens e representações da celebração ao Senhor Jesus das Chagas em textos, fotografias, vídeo, etc. Serão ainda evocadas outras cele-brações organizadas pelos homens do mar, referências aos mitos de origem, as suas componentes artísticas e históricas, com destaque para aquelas em louvor à Nossa Senhora da Boa Viagem e à Nossa Senhora do Cabo Espichel.

2.2.1.8 A literatura e as pescas em Sesimbra

Referências a textos literários e clássicos em torno das pescas, a Sesimbra e aos seus pescadores: Luís de Camões (século XVI), Baldaque da Silva (século XIX), Raul Brandão (século XX), dentre outros.

2.2.1.9 Percursos pela Fortaleza e leituras da paisagem

Trata-se de uma dupla interpretação: da paisagem envolvente e da arquitetura da fortaleza histórica em que se insere o museu. A primeira será realizada por meio de leitores da paisagem, explicitando-se a formação da mesma, em termos geoló-gicos; a segunda, assinalando-se os diferentes espaços da Fortaleza: entrada; torres, esplanada; cozinhas, camaratas, cômodos de oficiais; cisterna; paiol; residência do governador da Fortaleza, capela privada.

2.2.1.10 Espaço laboratorial e expositivo dedicado à oceanografia

Será criado um espaço laboratorial de introdução às ciências oceanográficas, que pretende ser lúdico, como experimentação e introdutório dos processos uti-lizados para se conhecer os oceanos que importa preservar. Terá um laboratório e um apalpario de espécies marítimas.

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2.2.1.11 Visitas em uma embarcação tradicional

O museu dispõe de uma embarcação tradicional, o “Nossa Senhora da Aparecida”, que permitirá ao visitante sentir a dimensão de uma embarcação.

2.2.1.12 Estaleiro naval

Na área portuária será criado um pólo museológico em um estaleiro naval cuja continuação está comprometida de acordo com mercado atual; dadas as restrições nas pescas, devido à área de reserva marítima. Este pólo funcionará como uma extensão do espaço museológico da Fortaleza de Santiago. Trata-se de um estaleiro naval equipado com todos os meios necessários para a construção de embarcações em madeira. Hoje, devido aos constrangimentos nas pescas, estas embarcações têm sido as maiores vítimas. Pretendemos que este pólo funcione como espaço de estaleiro, de atelier/escola de construção naval e dos saberes de mestres estaleiros e como reserva de embarcações, cujo futuro seria o da destruição, sendo que, neste caso, se avançaria para a sua recuperação.

Neste sentido, o primeiro aspeto é a continuação dos atuais mestres a desen-volverem o que será um atelier/escola, ou seja, um espaço de museologia experi-mental. Como reserva o conceito é de recolher as embarcações de madeira que estão para serem abatidas e iniciar um processo de restauro das mesmas, com a participação dos visitantes, criando com estes um vínculo que os liguem ao proce-dimento de recuperação de cada embarcação e participação ativamente. Por outro, pretendemos que os barcos recuperados possam ter uma nova vida, agora não nas pescas, mas no desenvolvimento de um turismo marítimo ou como embarcações de recreio adquiridas por particulares ou associações. Podem ser mesmo particula-res, ou associações, que patrocinem a recuperação das embarcações.

Este processo irá permitir a continuação do estaleiro naval, dos seus saberes, mas ainda de uma viabilidade económica.

3. A comunidade de pescadores de Sesimbra

Atualmente, vivemos tempos de acelerada mudança no mundo das pescas, que se constitui a última grande atividade do homem como caçador (a pesca é uma forma de caça). Os recursos pesqueiros não se conseguem reproduzir ao ritmo das capturas que houve, têm ao seu serviço toda uma tecnologia de apoio, que coloca o homem em grande vantagem. Em consequência, as quantidades pes-cadas nunca foram tão elevadas; em resultado, assistiu-se nos últimos anos ao financiamento do abate de navios e ao decréscimo do número de pescadores. Hoje, a média etária dos pescadores é muito elevada, não vendo os mais jovens futuro nas pescas; por todo, em território português, as comunidades piscatórias começam a viver cada vez mais das suas memórias.

Os museus surgem como instituições que evocam e fixam a memória

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coletiva, social de uma comunidade. Ao longo da breve abordagem dos museus ligados ao mar (e aos rios), verificamos que predominam aqueles dedicados às comunidades de pescadores e às tecnologias das pescas, o que se revela como um resultado da necessidade social de salvaguardar memórias de vivências quo-tidianas, de tecnologias. Os casos mais evidentes são o Museu da Graciosa e o Mu-seu Baleiro das Lajes do Pico centrados em práticas pesqueiras já extintas, a pesca à baleia, resultado de acordos internacionais, reconvertendo-se no contexto da economia local, em visitas de aproximação aos cachalotes.

No caso de Sesimbra, a comunidade piscatória teve uma enorme redução de sua frota pesqueira nos últimos anos, por via de diretivas da União Euro-peia. Acresce ainda a classificação de particamente toda a costa marítima de Sesimbra como reserva marinha, impedindo qualquer prática de pesca, mes-mo a mais artesanal.

Como consequência direta, o estaleiro naval tradicional deixou de ser viável e fechou as suas portas; por outro lado, ao longo da história, os pescadores de Sesim-bra souberam ter a capacidade de inovar, procurar novos mares, introduzir novas tecnologias, buscar novas espécies, diversificar as capturas e as suas atividades.

É esse o momento em que nos encontramos: a busca de novos processos, que permitam a continuação da comunidade com o turismo costeiro; com novos produtos resultantes das pescas com maior valor acrescentado; continuar a pro-curar novos mares e novas espécies.

Assim, a construção do Museu do Mar, no espaço mais simbólico para a co-munidade, a Fortaleza de Santiago, onde outrora estava a autoridade marítima, é uma necessidade social, de salvaguarda de memórias ancestrais, de evocação de epopeias, mas, sobretudo, da vida da comunidade. O Museu do Mar de Sesimbra poderá ser a essência das memórias mais vivas da Vila.

Referências e Notas

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Museu da Vida Submarina e da História Submersa, 1969, Lisboa; Museu de Marinha, criado em 1863,

inaugurado em 1962, Lisboa; Museu do Rio, Alcoutim; Museu Municipal de Vila Franca de Xira, Vila

Franca de Xira; Museu Municipal de Alcochete, 2003, Alcochete; Museu Municipal da Moita, Moita;

Ecomuseu Municipal do Seixal, 1993, Rio Tejo; Museu Naval de Almada, 1991, Olho-de-Boi; Museu do

Mar D. Carlos, 1879, Cascais; Museu de Portimão, 2008, Portimão; Museu do Trabalho Michel Giaco-

metti, 1995, Setúbal; Museu da Indústria Conserveira de Matosinhos, ainda não inaugurado, Matosi-

nhos; Museu da Pesca do Atum, Tavira; Museu Marítimo Almirante Ramalho Ortigão, 1962, Capitania

do Orto de Faro; Museu Etnográfico da Santa Casa da Misericórdia de Alvor, Alvor; Museu de Arque-

ologia e Etnografia do Distrito de Setúbal, Setúbal; Museu Municipal de Peniche, Peniche; Museu Dr.

Joaquim Manso, Nazaré; Navio-Museu Santo André, Aveiro; Museu Marítimo de Ílhavo, 1937, Ílhavo;

Museu Etnográfico da Paria de Mira, 1997, Aveiro; Rede de Museus de Matosinhos, Matosinhos; Núcleo

Museológico do Mar, 2012, Figueira da Foz; Museu Municipal de Etnografia e História da Póvoa de

Varzim, 1937, Póvoa de Varzim; Museu Municipal de Esposende, 1993, Esposende; Museu da Graciosa,

1997, lha Graciosa, Açores; Museu da Horta, 1977, lha do Faial, Açores; Museu Baleiro das Lajes do Pico,

1988, Ilha do Pico, Açores

Contactar os autores: [email protected] · [email protected]

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O patrimônio ambiental das cidades-beira Roncador-GO, Guadalupe-PI, Remanso-BA e seus destinos históricosThe environmental heritage of border-cities:Roncador-GO, Guadalupe-PI, Remanso-BA and its historical destinations

Gercinair Silvério GandaraHistoriadora; docente da Universidade Estadual de Goiás - UnU Pires do Rio, Brasil.

Pós-doutoranda Programa Nacional de Pós-Doutorado (PNPD-Capes), Universidade

Federal de Goiás.

Resumo: O objetivo do presente texto é apresentar breves reflexões em torno de trabalhos de pesquisa que desenvolvemos sobre Cidades-beira: em busca das raízes urbanas e de suas relações com a natureza. São diferentes trabalhos de pesquisa que abordam cada um por sua vez, três regiões brasileiras, Goiás, Bahia e Piauí – Brasil. Esses trabalhos partem da constituição/desconstituição urbana por meio dos rios Corumbá, São Francisco e Parnaíba. Salientamos que a força geradora sociocultural de uma cidade-beira e sua sinergia com o espaço geográfico coloca em destaque a importância do Patrimônio Cultural e Ambiental.

Palavras-chave: Cidades. Rios. Patrimônio Ambiental. Memória. Ambiente.

Abstract: The objective is to present brief reflections around the research papers that wehave developed about Border-Cities: in search of urban roots and their relationship with nature. They are different research papers that address each in turn, three Brazil-ian regions: Goiás, Bahia and Piaui. These works come from the urban constitution /de-constitution formed by the rivers Corumbá, São Francisco and Parnaíba. Highlighting that sociocultural force generated by a border city and its synergy with the geographic space puts in evidence the importance of Cultural and Environmental Heritage.

Keywords: Cities. Rivers. Environmental Heritage. Memory. Environment.

1. Cidades-beira: raízes urbanas e suas relações com o ambiente/natureza

Dentre as múltiplas possibilidades de leituras da cidade elegemos agrupar a análise das cidades dos vales dos rios Parnaíba (Piauí), São Francisco (Bahia) e Corumbá (Goiás), sob uma categoria considerada central nesta investigação, a de “Cidade-beira”. Enfatizamos que este conceito é na realidade o aspecto cru-cial para compreensão da gênese de cidades que se constituem nas beiras. Estas têm uma função sempre ligada às possibilidades de contato e de circulação, pois proporcionam o acesso, a concentração, a condensação, enfim, o crescimento demográfico, o ir e vir. Como diz Geles La Blache “[...] todos os vales dos quais os

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cursos d’água têm o papel de primeiros caminhos, favorecem para a concentra-ção de riqueza e de potência”. (1954:51).

A categoria beira explica como o contexto da paisagem “natural” partici-pou ou ausentou-se na configuração de uma cidade. Trata-se de caracterizar e estabelecer em que medida, por exemplo, as formas do relevo, do solo de um rio ou de um lago participaram do desempenho do lugar. Por meio das beiras, podemos, também, analisar as transformações dadas à evolução do sítio físi-co, materializados em elementos como ruas, estradas, caminhos, rodovias, etc. Na medida em que se acredita que as beiras são as linhas mestras de origem e desenvolvimento de algumas cidades, pode-se estabelecer uma fisionomia entre seu passado, sua origem e sua feição posterior. Quando dizemos que a “beira” é uma categoria de análise, estamos afirmando que designa espaços ge-ográficos ou coisas físicas comensuráveis, do ponto de vista geográfico, mas, incomensuráveis, no que tange às estruturas de significação que se constroem e se constituem. Em nossos estudos, a “beira” se revelou lugar de nascimento e renascimento das cidades; significou “portas” de entrada e saída dos lugares ou de acesso entre as partes internas de uma cidade. Mas o ponto fundamental é o fato de que se podem ler as cidades brasileiras de um ponto de vista da beira, ou seja, da perspectiva do rio, do mar, do ribeirão, das estradas, da rodovia, da ferrovia, do campo de pouso, do cemitério, da fábrica etc.. E mais, essas possi-bilidades estão institucionalizadas entre nós.

As cidades e rios que analisamos são as representações da vida que come-ça de um conjunto integrado de relações sociais e econômicas diferentes, mas com destinos semelhantes. Vale dizer que não pretendemos fazer um retros-pecto da vida humana nas margens dos rios Corumbá, Parnaíba e São Fran-cisco, mas esboçar e ressaltar os fatos que possam ser úteis à história e à ideia de Patrimônio Ambiental, para compreender as relações socioambientais das/nas regiões em que foram alocadas as cidades Roncador-GO, Remanso-BA, Guadalupe-PI.

2. História, Memória e Patrimônio Ambiental

A noção de Patrimônio Ambiental nos permite acompanhar as transformações dadas ao espaço-geográfico com os surgimentos das cidades-beira, mas, tam-bém, dos seus destinos ao longo do tempo com o desaparecimento dos seus re-ferenciais, tais como marcos arquitetônico, paisagens e manifestações culturais. Como se percebe nossas preocupações comportam as questões de ordem social, ambiental e patrimonial.

O desenvolvimento de uma reflexão dos espaços-rio Corumbá, Parnaíba e São Francisco como Patrimônio Ambiental exigiu novos enfoques interpretati-vos. Não basta sublinhar a importância desses rios no curso dos séculos, seja eco-nômica, cultural ou social, ou lembrar os contatos que se entrecruzaram em suas margens; é preciso sensibilidade para tratar as paisagens desaparecidas, sejam

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naturais ou humanas. Ressente, portanto, de serem analisados como “perfor-mance” integrante da paisagem ambiental e citadina que se incorporam como símbolo do lugar e como construção do imaginário coletivo que nos remete à relação indivíduos/natureza por meio da memória.

Nessa perspectiva, a história das cidades-beira-rio e beira-trilhos se desenvol-ve sobre o modelo de rememoração. Foi a memória do passado das gentes daque-las cidades-beira que nos permitiu uma reconstituição compreensiva dos frag-mentos da vida cotidiana urbana que entraram para o horizonte dos silêncios e dos esquecimentos. Como afrima Le Goff, (1992: 426) “[...] os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores...”. Destacamos a memória como base para a construção da identidade, é ela quem vai registrar o processo de identificação dos sujeitos com o espaço. Sabemos que as formas de apropriação do espaço va-riam de acordo com diferentes escalas temporais e espaciais. Destarte, a cons-trução da identidade depende da forma pela qual se dá essa apropriação. Como diz Lefebvre (1974: 211), “um espaço é a inscrição de um mundo de um tempo.”

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Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, to-

mados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à

memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:

V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico,

paleontológico, ecológico e científico. (grifo nosso)

Hugues de Varine Bohan1 (1974) sugeriu três grandes categorias de ele-mentos em que se dividiria o patrimônio cultural, aqueles que: pertencentes à natureza, ao meio ambiente; não tangíveis do Patrimônio Cultural, com-preendendo toda a capacidade de sobrevivência do indivíduo no seu meio ambiente - conhecimento, técnicas, saber e saber- fazer; e o grupo de elemen-tos que reúne os chamados bens culturais que englobam toda sorte de coisas, artefatos e construções obtidas a partir do meio ambiente.

A ideia de Patrimônio Ambiental surge e associa-se ao conceito de espaço e tempo; surge a partir da delimitação de um território, onde se considera dese-jável preservar as histórias e memórias do lugar. Verifi camos que devemos es-Verificamos que devemos es-tar atentos às relações necessárias que existem entre o meio ambiente, o saber, o artefato, o indivíduo e a natureza. Destarte, o patrimônio cultural de uma sociedade, região ou comunidade é múltiplo. Particularmente, consideramos que a noção de Patrimônio Ambiental se insere nesse conceito, pois se refere a elementos materiais e imateriais decorrentes de uma produção cultural que representa a experiência histórica acumulada e a relação com a natureza.

A categoria cidade-beira por si só nos conduz à conceituação de Patrimônio

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Ambiental. Em verdade, a cidade é memória densa que superpõe, fazendo com que o exercício de identificá-la seja prática e restrita. Entendemos que aconteci-mentos, objetos e ambiente devem ser conhecidos e preservados, pois são coleti-vamente significativos em sua diversidade e constituem o Patrimônio Ambien-tal de uma comunidade. Preservar o espaço geográfico em sua ambiência e me-mória dá coesão às pessoas, conferindo-lhes identidades. Marcos Lobato Martins (2007) nos explica que “[... ] a crônica das relações entre os homens e a natureza é lida na própria paisagem, nas águas e nas barrancas dos rios, nas cicatrizes, que cortam a superfície da terra, nas trilhas e clareiras, que interrompem o verde da floresta” (2007: 23). Acreditamos nas inter-relações entre os diversos fatores que norteiam a relação entre uma dada sociedade e o ambiente natural que a cerca. Sobre essa abordagem, Fernand Braudel (1983) influenciou/influencia os historiadores com sua reflexão sobre história, que é também uma reflexão sobre a relação humana com o meio.

Braudel se preocupou em estudar os vínculos homem-natureza, pensada na forma de uma ação e reação ao longo do tempo. Para além desses aspectos, cremos ser preciso politizar o tema articulando-o com as lutas pela qualidade de vida, preservação do ambiente, direitos à pluralidade e, sobretudo, direito à cidadania. Numa palavra, falar de Patrimônio Ambiental é nos referir a objetos, valores, tempo e espaço. Ressaltamos que em nossas leituras/estudos, a memó-Ressaltamos que em nossas leituras/estudos, a memó-ria é entendida não como uma propriedade da inteligência, mas a base sobre a qual se inscrevem concatenações de atos.

3. O Patrimônio Ambiental e Ferroviário do Rio Corumbá no Sudeste Goiano

A inserção do Estado de Goiás/Brasil no mercado nacional teve dois fatores fun-damentais, o desenvolvimento da economia cafeeira no Centro-Sul do País e a penetração dos trilhos da Estrada de Ferro Goiás. Esses fatores deram início a um processo de diferenciação no desenvolvimento regional do Estado de Goiás. A Estrada de Ferro Goiás aliada a uma teia de estradas de rodagem implantadas entre 1915 e 1921 concretizava a política econômica do Estado que presenciou uma expansão da agricultura e da pecuária.

A construção da Estrada de Ferro Goiás ampliou a relação de complemen-taridade no estado provocando uma fluidez de mercadorias e o surgimento de algumas cidades que possuíam estações ferroviárias e/ou que forneciam mer-cadorias como arroz, café, charque, couro, toucinho, feijão, gado etc. A ferrovia tomou forma, com sua construção iniciada em fins de 1909, com o ramal de Ara-guari a Goiandira liderada por Xavier de Almeida. Três anos depois, os trilhos chegaram ao sudeste do território goiano2, às proximidades do rio Corumbá. Inaugurou-se a estação de Roncador em 1914, ali permanecendo como ponta de linha por oito anos, quando foi aberta a estação seguinte.

A Estrada de Ferro de Goiás chegou ao grande “obstáculo” ambiental, às mar-gens do rio Corumbá. Na várzea deste rio parou sua construção, estimulando

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o surgimento de um núcleo beira-rio, que ficou denominado Roncador. Como ponta de linha, chegou a ser um povoado considerável advindo das/pelas ativi-dades de um porto fluvial e dinamizada pela presença da ferrovia. Em verdade a Estação do Povoado de Roncador era um ponto terminal de comércio, que cres-cia com a inserção da linha ferroviária. Contudo, a Estrada de Ferro de Goiás precisava seguir rasgando a hinterlândia. Era preciso sobrepor o “obstáculo” na-tural, pois a estrada férrea tinha a missão de continuar em extensão até atingir a capital do Estado. Assim sendo, a construção de uma ponte era vista como um divisor de águas na história da ferrovia no sudeste goiano, pois eliminaria o en-trave causado pelo rio Corumbá.

Deu-se inicio a construção de uma ponte de estrutura metálica sobre o rio Corumbá, originária dos Estados Unidos, mas concluída e inaugurada no porto fluvial de Roncador em 1922, sob a denominação de “Ponte Epitácio Pessoa”. Ela tinha além do destino de estender os trilhos pela hinterlândia a função explici-ta de ligar, unir espaços e gentes. Contudo, após sua conclusão, o porto fluvial perdeu seu esplendor e sua utilidade, levando ao fim a existência do povoado de Roncador, pois o terminal ferroviário e o porto fluvial que o mantinha sob um elevado movimento comercial e econômico desativaram-se. “[...] Roncador perdera o esplendor da localidade ameaçado pela construção da ponte Epitácio Pessoa”. (Boletim Goiano de Geografia, 1987-1988)

Com a desativação do porto e o progresso em ascensão a margem da Estação Ferroviária de Pires do Rio, a população migrou, levando tudo que podia, desde pertences pessoais até materiais de construção das edificações do povoado Ron-cador que desapareceu completamente. Diz Nogueira (1977:23) que “Roncador desaparecia tão depressa quanto nascera e crescera. Essa certeza, por si só, fez com que a população do lugar migrasse toda, carregando consigo todo material de construção: telhas, tijolos. Tudo das casas que demoliram [...]”. De fato a po-voação Roncador desapareceu completamente e a estação foi descaracterizada, restando apenas alguns cômodos internos originais e sua plataforma. É interes-sante registrar que esta localidade hoje é um sítio arqueológico em ruínas, aban-donado político e socialmente. A maior parte do seu patrimônio desaparecera, igualmente, as gentes se foram. A ponte Epitácio Pessoa, nos anos 1980, em prol de sua salvaguarda fora tombada juntamente com vários objetos ligados à Es-trada de Ferro de Goiás pela Lei 1484 de 17/07/1985, que fez o tombamento do Patrimônio Histórico Municipal.

4. O Patrimônio Ambiental e Citadino “Engolido” Pelas Águas das Barragens

A cidade-beira Remanso é um município do estado da Bahia, localizado à beira rio São Francisco. No começo do século XVII, o território integrava a sesmaria do Conde da Ponte, que fazia parte de Juazeiro. Conforme Ferreira (1958:150) “[...] para a fazenda Arraial, seu ponto de origem, convergiram os que fugiram às lutas armadas travadas em Pilão Arcado em fins do séc. XVIII”. Esse contigente

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aumentou o núcleo existente às margens do rio São Francisco, no local onde um grande remanso formava seguro porto de atracação. Seus terrenos férteis e vegetação adequada à criação de gado atrairam novos refugiados e se formou o arraial de Nossa Senhra do Remanso, solenemente instalada em 01/01/1901. Essa cidade-beira se encontra hoje encoberta pelas águas do Lago de Sobradinho. No período de estiagem, contemplam-se as suas ruínas.3 O período da mudança da cidade “velha” para a nova Remanso é contada politicamente como um dos mais importantes fatos históricos do Município.

A antiga cidade-beira Remanso era porto fluvial dos mais importantes e movimentados no Baixo São Francisco. Grandes barcas com carrancas na proa, navios/vapores movidos à lenha, conhecidos também como gaiolas do São Francisco, dentre eles o Barão, Saldanha Marinho, Wenceslau Guimarães, Pirapora, etc. as lanchas-ônibus, embarcações modernas que ali aportavam, revezando-se no transporte de mercadorias em geral além de passageiros. Di-vidia-se em seis bairros principais, Remanso (centro), Rua de Cima e Rua de Baixo, Capão de Cima, de Baixo e do Meio, além da Gameleira, Piseiro, Poarema e Cancelão. A cidade possuía mais de três mil prédios e cerca de doze mil habi-tantes. Inúmeras ilhas eram cultivadas o ano inteiro, como a Ilha do Meio, Ilha Severo Rocha, Ilha do Lamarão, pareciam gigantescos canteiros flutuantes nas águas do velho Chico, embelezando a frente da velha Cidade. As famílias desse povoado, como outras na beira do rio São Francisco, praticavam uma cultura que combinava a agricultura de caatinga (áreas secas), com a agricultura de vazante (áreas úmidas). A agricultura feita na beira-rio e nas ilhas é aquela agricultura de vazantes, regulada pela oscilação do nível das águas. O gado era criado solto, nos tabuleiros circundados pelos carnaubais de onde se extraia a cera de carnaúba, que era o segundo produto mais importante do Município. Plantas nativas da várzea tinham usos diversificados a exemplo dos juazeiros (uso contra caspa), criulizeiros (fruta), jatobazeiros (fruto e lambedor), ma-rizeiros (tintura para os cabelos louros), oitizeiros (frutos) e pajeús (frutos). O topônimo está ligado, segundo os remansenses, ao fato de as águas do Rio São Francisco correr vagarosamente, estabelecendo-se com paradas naquele trecho, local, onde há um grande remanso (redemoinho, na linguagem local) resultante de correnteza contrária ao seu curso.

Quanto a Guadalupe, no estado do Piauí, cidade-beira-rio Parnaíba, há os que lhes atribuem o nome de “Bom Princípio”, em época ignorada e não loca-lizada em nossas pesquisas, nome que presente na oralidade e em documentos escritos, oficiais ou particulares, iguamente está presente a denominação Porto Seguro. Contudo na região atribuem o nome “Porto das Melancias”, como sendo o primeiro nome da localidade, em razão da Fazenda Melancias de propriedade do Sr. João Maria Tomaz Mousinho. Parafraseando Jurandir Ferreira (1958), a localidade de Porto Seguro foi desbravada, em época ignorada, por Alexandrino Mousinho, que com seus próprios recursos promoveu o melhoramento da lo-calidade. Dada à fertilidade de suas terras e a ótima localização para o comércio

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formou-se no lugar um núcleo populacional. Como porto fluvial, na segunda metade do séc. XIX e primeiras décadas do séc. XX, recebeu barcos a vapor, balsas e outros meios de transportes. Recebeu, também, os primeiros fluxos de vida comercial de tal modo que em 1929 se apresentava com características de um povoado.4 A antiga “Bom princípio” e/ou “Porto das Melancias”, Porto Seguro e/ou cidade-beira Guadalupe5 viram inundar todos os seus sonhos, histórias e memórias pela Barragem de Boa Esperança. Foi na década de 1960, com a cons-trução da hidrelétrica de Boa Esperança, que os guadalupenses se viram em des-pedidas devido à inundação da velha cidade, hoje submersa nas águas do Lago de Boa Esperança.

A construção das barragens de Boa Esperança no Piauí e de Sobradinho na Bahia submergiram as cidades-beira Guadalupe, Piauí, e Remanso, Bahia, des-truindo ambas as cidades, o que causou impactos ambientais e emocionais. A submersão do patrimônio construído das cidades, da paisagem geográfica e a transformação dos corpos fluviais em lagos artificiais �afogaram os teste-munhos de um tempo de palpitações e emoções das/nas vidas beiradeiras. A sentimentalidade se manifesta concretamente nos relatos dos antigos mora-dores, pois suas cidades foram transferidas, deixando submersas nas águas das barragens práticas, hábitos, constumes, saberes, fazeres, sonhos e marcas de suas vidas quotidianas.

Roncador, em Goiás, Guadalupe, no Piauí, e Remanso, na Bahia, seus ricos complexos patrimônio ambiental foram destruídos pela estrada que seguiu e/ou pelas águas dos lagos artificiais; desapareceram arrastadas pelas correntezas da história. As chamadas “cidades velhas” desaparecidas sobrepõem-se histori-camente por meio dos contornos da memória. Afinal, a memória é uma fonte de imortalidade, para o historiador Jacques Le Goff (1992), “história e memória confundem-se praticamente”.

Das pesquisas de campo, retiramos dos fragmentos de memória, das falas dos remanescentes das cidades desaparecidas a presença de sentimentos que ligam intimamente as pessoas e o lugar, às gentes e aos rios. Há intimidade daquelas pessoas com a natureza, reforçada pelo fluxo de navegação de pequenas, médias e grandes embarcações que passavam pelos portos fluviais daquelas cidades, pontos de apoio e de comércio. Os citadinos foram os personagens de uma “tea-tralidade”, revelada ao se emocionarem e sentirem o impacto social e ambiental que atingiu tanto o espaço físico quanto o social dessas comunidades.

Sabemos que as ações humanas podem desviar, mas não recuperar a flecha do tempo. Ao consideramos acontecimentos e fatos selecionamos aspectos da realidade que nos informam e, ao mesmo tempo, deixam de lado outras dimensões dessa mesma realidade, o que significa e implica dizer que não colocamos em discussão a plena realidade, abarcando simultaneamente to-dos os aspectos das relações entre as sociedades e seus espaço/tempo. Em consequência, ao tecermos os fios da trama histórica do patrimônio ambien-tal das cidades-beira dos rios Corumbá-GO, Parnaíba-PI e São Francisco-BA,

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acreditamos que foram produzidas, ao mesmo tempo, iluminações, exclusões, silêncios e esquecimentos que juntos compõe “renda” daquelas águas.

Referências e Notas

· BOLETIM GOIANO DE GEOGRAFIA, Vol. 7/8 n.1/2, janeiro/dezembro 1987/1988

· FERREIRA, Jurandir Pires. Enciclopédia dos Municípios Brasileiros. Rio de Janeiro: Conselho Nacional de

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· LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas, SP. 2 ed., Ed. Unicamp, 1992.

· LEFEBVRE, Henri. La production de l’espace. Paris: Antrophos, 1974.

· NOGUEIRA, Wilson Cavalcante. Pires do Rio Marco da História de Goiás. Goiânia: Kelps, 1997.

· 1 Aula ministrada na FAU-USP, 1974.

· 2 Em 1913, a estrada de ferro chegou a Ipameri, no ano seguinte, a Roncador, em 1924, em Vianópolis, e

em 1935, a Leopoldo de Bulhões.

· 3 Essas ruínas se localizam a cerca de 7 km do centro da nova cidade de Remanso.

· 4 Por efeito do decreto-lei estadual n� 754 de 30.12.1943 passou a ter a denominação de Guadalupe aten- Por efeito do decreto-lei estadual n� 754 de 30.12.1943 passou a ter a denominação de Guadalupe aten-Por efeito do decreto-lei estadual n� 754 de 30.12.1943 passou a ter a denominação de Guadalupe aten-

dendo às disposições da legislação federal relativas à duplicidade de nomes das cidades e vilas brasileiras

· 5 É importante frisar que esta cidade tinha como principais riquezas vegetais, carnaúba, babaçu, buriti e

madeiras para construção. Como riqueza mineral, a pedra calcária e o barro para fabricação de telhas e

tijolos. O município tem sua economia assentada na pecuária, extração da cera de carnaúba e babaçu.

A agricultura praticada para subsistência.

Contactar a autora: [email protected]

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A influência do mar na visão museológica de Ramalho Ortigão The influence of sea on Ramalho Ortigão’s Museological Concept

Alice Nogueira AlvesDoutora em História da Arte, Património e Teoria do Restauro na Faculdade

de Letras da Universidade de Lisboa; professora auxiliar convidada da Faculdade

de Belas-Artes da Universidade de Lisboa; pós-doutoramento em História

e Teoria da Conservação e Restauro da Pintura em Portugal.

Resumo: O mar é um tema de reflexão constante na obra de Ramalho Ortigão. Neste artigo é realizada uma análise de vários exemplos das suas diferentes abor-dagens. Para além das questões da vilegiatura e da higiene, o mar é entendido como um elemento de identificação simbólica do povo português, na sua História glorio-sa. São também exploradas as questões relacionadas com o expoente artístico al-cançado pelas gerações anteriores que deveriam servir como exemplo à produção das contemporâneas.

Palavras-Chave: Mar. Museologia. Ramalho Ortigão. Século XIX.

Abstract: The sea is a subject of constant reflection on Ramalho Ortigão work. This document presents an analysis of several of is different approaches. In addition to the questions of summer holiday and hygiene, the sea is understood as a symbolic identifi-er of the Portuguese people in its glorious history. There is also explored the questions related to the artistic exponent achieved by previous generations that should serve as an example for the production of the new ones.

Keywords: Sea. Museology. Ramalho Ortigão. Nineteen century.

Introdução

Ao longo da obra de Ramalho Ortigão vamos encontrando muitas referências ao mar; seja nas descrições de viagens de barco, nas considerações sobre “mo-mentos” de lazer e de reflexão ou nos contactos com as “gentes” do mar, a sua relação com os portugueses é frisada constantemente. Esta ligação assume tal importância que chega a ser considerada como essencial para o ressurgimento de Portugal no contexto internacional. A exploração das nossas pequenas indús-trias mostraria, segundo ele, a capacidade tecnológica do país, num raciocínio imbuído das discussões da época sobre estas matérias.

Ramalho teve a oportunidade de colocar estas ideias em prática, na compo-nente artística, quando foi nomeado como um dos responsáveis pela montagem da representação portuguesa na Exposição Colombina de Madrid em 1892. Nesta

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ocasião, os elementos decorativos do espaço foram realizados com cordames, re-produzindo motivos marítimos e elementos arquitectónicos de monumentos.

Enquanto membro activo das Comissões e Conselhos dos Monumentos Nacio-nais, teve também a oportunidade de frisar a importância histórica desta relação, ao discutir questões relacionadas com emblemáticos monumentos manuelinos, cujo estilo considerava um reflexo da interação dos portugueses com o Mundo.

1. Ramalho Ortigão

José Duarte Ramalho Ortigão nasceu no Porto a 24 de Novembro de 1836 e fale-ceu em Lisboa no final do mês de Setembro de 1915. Ao longo da sua vida, pro-duziu uma vasta obra sobre as mais variadas temáticas, desde a crítica de teatro, às curiosidades artísticas, problemáticas da Arte Portuguesa, estética, questões políticas, higiene e lazer, compilações de vocabulário, culinária, entre tantas ou-tras que seria difícil enumerar. A sua vasta bibliografia foi reeditada repetidas vezes ao longo do século XX e conta já com algumas edições na última década e na presente. Esta Obra é parte do património português, por constituir o traba-lho de um escritor oitocentista mas, principalmente, como fonte de memória de costumes e acontecimentos caracterizadores da sociedade portuguesa da sua época. Ao material publicado, junta-se um grande espólio documental, maiori-tariamente recolhido na Biblioteca Nacional de Portugal, mas também disperso pela posse de familiares e colecionadores particulares.

Embora a sua publicação mais conhecida sejam as Farpas, escrita em parelha com Eça de Queirós, têm-se desenvolvido várias análises a outras vertentes do seu trabalho. Para além das inúmeras biografias existentes (veja-se como exem-plo MALPIQUE, 1957), devem ainda ser destacados alguns estudos académicos onde são exploradas várias vertentes desenvolvidas pelo escritor, como a litera-tura de viagens (ONOFRE, 1991), a crítica estética (OLIVEIRA, 1988), as questões da educação (BARREIRA, 1992) ou, mais recentemente, o trabalho por nós de-senvolvido sobre o seu importante papel na divulgação e defesa do património português (ALVES, 2013).

2 … o Mar

Assim como quatro quintas partes do corpo humano são agua, assim quatro quintas

partes da grande corpulencia do globo são mar. Parecendo separar os homens, o bello

destino eterno do mar é reunil-os. (ORTIGÃO, 1876: 5)

A relação dos portugueses com o mar foi explorada na literatura por vá-rios autores no século XIX. À visão romanceada vêm juntar-se outras, entre as quais destacaremos neste artigo duas, as questões da vilegiatura e da higiene e as relações histórico/simbólicas. As primeiras, relacionadas com os benefícios

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do descanso e dos ares do mar, desenvolveram-se com a ascensão de uma nova burguesia. Por outro lado, nas segundas encontramos a histórica relação filial do nosso povo com este elemento da natureza por onde nos aventurámos na nossa expansão em épocas extraordinárias.

Este último aspecto, sempre presente na nossa concepção como portugue-ses, vem tomar especial destaque com a comemoração do centenário de Ca-mões em 1880, no coroar do renascimento desta personagem nobre da nossa História. Este escritor foi inserido nos círculos literários românticos desde o início, podendo destacar-se o poema Camões escrito por Almeida Garrett no exílio, publicado em 1825. Outro acontecimento marcante para a valoriza-ção da nossa relação com o mar no fim do século XIX foi o Ultimatum inglês. Ao serem colocados em causa os direitos filiais dos portugueses sobre as suas colónias, incontestáveis desde a época das conquistas, começou a surgir uma onda nacionalista que se veio a reflectir na valorização do nosso património material e imaterial. Embora as definições destes últimos conceitos na época não fossem ainda estas, surgem na altura as primeiras Comissões dos Monu-mentos Nacionais diretamente relacionadas com o Estado, bem como movi-mentos de recolha de tradições populares, entre os quais podemos destacar o neogarrettismo (ALVES, 2013).

O papel ativo de Ramalho Ortigão na nossa sociedade insere-se exatamente neste contexto, como veremos no decorrer deste texto. Se o mar nos tinha for-mado como país, se tinha inspirado a realização de grandes feitos nos gloriosos momentos da nossa História, tinha também influenciado o nosso apogeu artís-tico. Deveríamos agora recorrer a esta fonte de inspiração para reencontrar o nosso elemento definidor entre as outras nações.

Para portuguezes, o mar tem attractivos especiaes, Para nós, elle é o caminho das con-

quistas, dos descobrimentos, da poesia, da inspiração artistica, da gloria nacional.

A nossa bella architectura manoelina, as capellas imperfeitas na Batalha e os Jerony-

mos, têem na escolha dos ornatos predilectos, na repetição de certos pormenores, o pro-

fundo cunho maritimo; vê-se a miudo a preocupação do embarcadiço; acha-se a cada

passo a revelação do marinheiro.

[…]

Tal é o grito valoroso e sublime da alma de um povo que a Providencia destinou a ter no

mar a sua historia, a sua inspiração artistica, a melhor, a mais bella, a mais gloriosa

parte da sua existencia, finalmente a sua segunda patria:

A minha alma é só de Deus,

E o meu corpo é do mar!

(RAMALHO, 1876: 19-21)

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2.1 As Praias de Portugal - 1876

Ainda enquadrada na referida relação do Homem novecentista com o mar em termos de veraneio e dos benefícios para a nossa saúde, deve ser destaca-da uma obra de Ramalho Ortigão intitulada As Praias de Portugal, publicada pela primeira vez em 1876. Inspirada em artigos e livros estrangeiros, nos seus textos encontramos bem vincada a importância dada ao mar na nossa saúde física e mental.

Neste trabalho Ramalho começa por referir vários aspectos de interesse, como os estudos exploratórios do fundo do mar que tinham vindo a ser rea-lizados, revelando a riqueza maravilhosa da vida em profundidade, até então considerada como impossível. Em seguida, depois de louvado este elemento, eram apresentados os vários locais de vilegiatura em Portugal, do ponto de vis-ta geográfico, mas principalmente social, descrevendo-se os hábitos costumes e tradições, bem como alguns episódios pitorescos. Para além da enumeração destes aspectos, eram também referidos vários pontos de interesse nas suas re-dondezas, onde se poderiam realizar agradáveis passeios ou visitar monumen-tos essenciais da História de Portugal. No fim, aparecem várias considerações relativas à influência do mar na vida e saúde das pessoas, salientando-se as suas virtudes medicinais.

Guia dos homens, promotor das civilisações, revelador do universo, progenitor de idéias

que determinaram o abraço fraterno da humanidade em todo o mundo, o mar é ainda o

mais poderoso fóco, o mais abundante manancial da vida. (ORTIGÃO, 1876: 6)

A nossa relação centenar com o mar devia agora ser reforçada. Era essencial continuar a usufruir de todos os seus benefícios para a nossa integridade como nação e como indivíduos.

2.2 Outros textos

Ao longo da sua obra vamos encontrando ainda outros comentários curiosos e várias referências ao mar de diferentes espécies (FERREIRA, 2002). Desde des-crições de viagens por si realizadas de barco, passando não só pela admiração da sua imensidão, como também da análise do ambiente social formado dentro da embarcação, através de comentários sobre os outros viajantes e a sua relação com os caprichos do mar, muitas vezes descrevendo certos episódios com o seu humor característico.

São verdadeiramente notáveis os caprichos, as pertinências e as insistências dos homens

enjoados! Um senta-se no lugar mais pontudo que encontra e imagina que vai ali me-

lhor do que em nenhuma outra parte. Outro abraça-se a um cabo e julga que morre se o

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desenlaçarem de lá. Há alguns que, em apanhando um objecto à mão, agarram-o com a

fúria de afogados e nunca mais o soltam…

É um divertimento ou é um suplício isto? Perguntem-lho a eles. Agora respondem

todos que é um inferno. Depois de amanhã em terra, dizem-nos que fizeram uma

viagem regalada (ORTIGÃO, 1867: s.p.)

3. Exposição Colombina – Madrid – 1892/93

Em 1892 encontramos a sua primeira oportunidade de colocar na prática um conjunto de ideias que vinha desenvolvendo sobre a identificação dos portugue-ses com o mar, através do enaltecimento da nossa história artística, bem como das pequenas indústrias por onde nos distinguiríamos dos outros países.

Como secretário da Academia Real das Ciências de Lisboa, foi escolhido para representante da legação portuguesa na Exposição Colombina realizada em Madrid entre 1892 e 1893, onde permaneceu durante todo o certame. Neste contexto, integrou a equipa de preparação da exposição, ficando responsável, juntamente com outros académicos, da escolha e recolha de objetos artísticos para ali serem apresentados, bem como do estudo das salas destinadas a Por-tugal e da sua decoração. Para esta última tarefa fez-se ajudar pelo seu amigo Rafael Bordalo Pinheiro, na altura detentor de uma fábrica de porcelanas nas Caldas da Rainha. É a este artista que devemos os desenhos do projeto realizado para a mostra (Figura 1).

Sendo o objetivo da Exposição uma comemoração relacionada com as desco-bertas e encontrando-se Portugal no momento debilitado referido relativamen-te às suas bases e implantação pelo mundo, obviamente que se aproveitou esta oportunidade para mostrar aos outros países a legitimidade dos portugueses na possessão dos territórios coloniais. Estes pontos encontram-se bem refletidos no Catálogo redigido por Ramalho em castelhano:

Esta Exposición tiene por objecto:

(a) Dar á conocer el papel que los portugueses desempeñaron en el desenvolvimiento de las ide-

as geográficas, en la navegación, en los descubrimientos y las conquistas del Nuevo Mundo.

(b) Contribuir al estudio de la etnografía americana por medio de uma colección de ar-

tefactos indígenas, traídos principalmente del Brasil, por los misioneros portugueses,

durante el régimen colonial anterior á la independencia de la nación brasileña.

(c) Definir, por medio de algunos documentos de arte, pintura, platería, mobiliario y foto-

grafías de monumentos arquitectónicos, el grado de cultura y de civilización de Portugal

durante los siglos XV y XVI.

(d) Evidenciar con algunas demonstraciones de la pesca y de la navegación en las costas

de Portugal, que la índole del pueblo portugués es todavia en nuestros días esencialmente

marina e aventurera. (ORTIGÃO, 1892: 3-4)

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Fig. 1 - Vista geral da primeira sala da Exposição

Colombina de Madrid, 1892. (PINHEIRO, 1892-1: 632).

Imagem proveniente de ©Hemeroteca Digital

da Hemeroteca Municipal de Lisboa.

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Deve ser destacada a ideia da exploração dos motivos estéticos e das tecno-logias tradicionais, numa espécie de retorno às origens que nos distinguiria. Havia aqui uma confusão já frisada anteriormente por outros autores (COSTA, 1997) (LEANDRO, 2008), entre a nossa micro-indústria, ainda relacionada com uma produção artesanal, com a produção industrial caracterizadora dos países mais desenvolvidos. Em muitos locais, começavam a ser realizadas iniciativas para a educação estética dos operários, no sentido de se incrementar uma pro-dução industrial mais cuidada, do ponto de vista formal e estético, mas tam-bém relacionada com a produção artística histórica e artística nacional.

Neste sentido, era necessário explorar as potencialidades artísticas do povo português, não só ao longo da sua História, sendo para isso recolhidos objetos previamente selecionados em várias instituições museológicas e coleções pri-vadas, como na escolha dos próprios motivos decorativos das salas.

Sob projecto de Rafael Bordalo Pinheiro, um conjunto de marinheiros da Rela Armada portuguesa, realizou em cordame um conjunto de motivos e em-blemas arquitectónicos nacionais da época do renascimento, reproduções de azulejos do século XVI, elementos dos bergantins reais como remos e faróis, uma escultura de D. Henrique, bem como pormenores de monumentos como a porta da igreja da Madre de Deus, numa ambiguidade por nós explorada nou-tro local (ALVES, 2013: 312-313). Este conjunto foi amplamente louvado nos meios internacionais, onde destacamos os elogios realizados num artigo espe-cialmente dedicado à representação portuguesa (FORT-RION, 1895).

Para conseguir concretizar os objetivos da Exposição foram definidas quatro secções: Marítima, Documental e Bibliográfica, Etnografia Americana e Arte Orna-mental (ARAUJO, 1892). Na primeira, podemos destacar as reproduções de barcos portugueses, das principais variedades de peixes, molúsculos e crustáceos existen-tes nas águas de Portugal e uma coleção completa de todos os trabalhos realizados a bordo dos navios da real armada, pelos referidos marinheiros portugueses: “nós, pinhas, voltas, costuras, gaxetas, michelos, unhoes, bocas, coxins, lingas, alcas, estropos, ra-bos de raposa e de cavallo, répuxos, agulheiros, agulhas, palhetas, massetes, polès, noitoes, estralheiras, teques, borlas, etc.” (itálico no original) (ORTIGÃO, 1892: 13)

A legenda pessimista da nossa completa decadência, como um nevoeiro tenue, dissipou-

-se. A nossa arte e a vossa industria, tidas e havidas como coisas velhas, anemicas, esfar-

rapadas, vestidas de teias d’aranha, ficaram sendo olhadas pelos olhos dos estrangeiros

como duas das mais fortes columnas que hão-se aguentar o peso da contemporanea gloria

europea. (PINHEIRO, 1892-2: 630)

4. Os Monumentos

Depois do encerramento da exposição, ao voltar a Portugal, Ramalho Ortigão este-ve envolvido em várias iniciativas relacionadas com a protecção dos monumentos

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portugueses, como membro assíduo da Comissão dos Monumentos Nacionais, e mais tarde, como presidente dos Conselhos sucessores. Na produção literária desta época, vamos novamente encontrar uma grande ligação com o mar. Para mostrar esta vertente, apresentamos em seguida duas obras, realizadas neste contexto, onde está muito vincado este aspecto. Nestes trabalhos é referida a originalidade artística do povo português, a ser readquirida e explorada, como estava a ser realizado por Rafael Bordalo Pinheiro na sua fábrica das Caldas, e as questões ligadas com o mar como elemento caracterizador da nossa História. Por essa razão, os nossos principais monumentos encontravam-se veiculados à nossa aventura marítima, não podendo estes aspectos ser dissociados de todas as atitudes a ser tomadas no seu restauro. Era essencial compreender a nossa História para perceber os nossos monumentos e intervir sobre eles.

4.1 O Culto da Arte em Portugal – 1896

Na sua obra mais conhecida relacionada com os monumentos, nascida do seu trabalho no seio da Comissão dos Monumentos Nacionais, Ramalho referia mais uma vez a importância da revolução das indústrias caseiras, dando como exemplo a aptidão artística do marinheiro português, por si comprovada em Madrid.

Ninguem como elle manusêa os ferros e as amarrações, o poleame e o talhame, o cabo, a

adriça ou o pano. Ninguem como elle confecciona o coxim, a gaxeta, o mixelo, o unhão, a

boça, a linga, o estropo, o repuxo, o massete ou a agulha. E não ha mais dextro em lançar

a volta, em enastrar a pinha e em dar o nó de escota, de fateixa ou de botija, o nó direito

e o nó torto, o de cogula, o de borla de pescador, ou o de espia. (ORTIGÃO, 1896: 127)

Sendo o mar um elemento tão importante, na nossa História e na nossa iden-tidade, era inacreditável o facto de não existir um Museu Naval em Portugal. Um local onde se celebrassem as descobertas portuguesas e o poder do povo so-bre o mar. Nenhum local seria mais indicado para este fim do que o Mosteiro dos Jerónimos. Não conseguimos descobrir se esta ideia foi originalmente sua, mas o Museu da Marinha encontra-se sediado naquele local desde o início da década de sessenta do século XX.

4.2 A Conclusão do Edificio dos Jeronymos – 1897

Não podem criticos portuguezes, ao tocar tal assumpto, eximir-se a consignar a sua

admiração enternecida por tão perfeito conjuncto de arte e de poesia, assignalando

aquelle ponto da praia do Rastello, de onde levantou ferro e se fez ao mar, fremente

de mysterio, empavesado pela marinhagem em festa subida ás vergas, benzido pela

igreja, sagrado pelas lagrimas de um povo, que lhe confiava o seu destino, o primeiro

galeão das Indias. (ORTIGÃO, 1897: 8)

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Em 1897, no culminar dos debates em torno do destino a dar à enorme la-cuna existente no corpo lateral do Mosteiro dos Jerónimos, consequência da queda de uma torre para ali projetada duas décadas antes, voltamos a encon-trar uma forte relação com o mar.

No seu parecer redigido conjuntamente com o arquiteto Ventura Terra para a reconstrução deste elemento, era frisado o facto de o edifício ter sido erigido para glorificar as navegações portuguesas. Ali se encontrava o expoente do nos-so estilo nacional por excelência – o Manuelino.

À beira do mar, quasi beijada pela maré cheia, uma das mais bellas igrejas de todo o mun-

do, com uma crasta sem rival, na sua alta expressão de fé, de aventura e de gloria, verda-

deira flor esculptural da alma enthusiastica de uma grande raça. (ORTIGÃO, 1897: 8-9)

O Manuelino e o Plateresco eram considerados fenómenos análogos na Penín-sula Ibérica “desconhecidos do resto da Europa, tendo causas comuns na historia, no espirito, no temperamento da raça, e tomando uma especial acentuação regio-nal em cada um dos lugares em que se manifestam”. (ORTIGÃO, 1897: 17). Era pre-ciso honrar e preservar essa originalidade nacional e todos os monumentos onde a podíamos encontrar como reflexo da nossa grandiosa História, feita de momentos heroicos distintos dos demais povos pela nossa bravura e coragem.

Conclusões…

Ao longo deste percurso por alguns aspectos da obra de Ramalho Ortigão conse-guimos constatar vários pontos essenciais. Em primeiro lugar, para além das suas virtudes medicinais, o mar é, sem dúvida alguma, um elemento definidor do povo português. Como tal, deveria ser explorada a relação histórica e o nosso desenvol-vimento artístico através das influências trazidas das terras longínquas. Estas épo-cas áureas, pela sua capacidade financeira, levaram ao desenvolvimento da nos-sa aptidão artística, não só pelas novidades vindas das novas terras descobertas, como pela afluência de artistas europeus ao nosso país, trazendo a sua experiência e os seus conhecimentos. Nestes momentos desenvolveram-se técnicas nacionais verdadeiramente singulares e, segundo o nosso autor influenciado pelas discus-sões da época, seria através do seu ressurgimento e implementação na dita arte industrial que poderíamos novamente alcançar um período áureo artístico no momento contemporâneo. Para alcançar este objectivo, uma das grandes fontes de aprendizagem seria o estudo dos monumentos nacionais das épocas de maior produção e capacidade técnica, relacionados com os Descobrimentos.

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Nota final

A autora gostava de agradecer ao Dr. Rui Ortigão Neves pelo desafio realizado para o desenvolvimento deste tema que resultou numa primeira abordagem intitulada “Ramalho Ortigão e o Mar” no âmbito das Conversas Informais no Museu da Marinha, no dia 15 de Dezembro de 2012.

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Contactar a autora: [email protected]

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Praia dos Prodígios. O que o rio traz à obra de Lagoa HenriquesPraia dos Prodígios. What the river brings to the work of Lagoa Henriques

Rita Nobre de Carvalho Doutoranda em Belas-Artes, especialidade de Ciências da Arte. Atualmente

é conferencista convidada no curso de Mestrado em Museologia e Museografia

na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa.

Resumo: A obra artística de Lagoa Henriques está intimamente ligada à história dos poetas portugueses que escreveram, contemplaram e temeram o mar. Aproveitando a citação de Lagoa Henriques “Acreditamos ser a poesia a raiz de todas as artes”! Este artigo tem como objetivo analisar o modo como o autor materializa as suas palavras.

Palavras-chave: Poesia. Lenda. Mito. Ekphrasis.

Abstract: The artistic work of Lagoa Henriques is deeply connected with the history of Portuguese poets who wrote about, admired and feared the sea. Using the quote of Lagoa Henriques “We believe that poetry is the root of all arts”! This article primarily aims to analyze how the author materializes his words.

Keywords: Poetry. Legend. Myth. Ekphrasis.

Introdução

António Augusto Lagoa Henriques é uma figura marcante na arte portuguesa do século XX. Para além de um grande escultor foi também desenhador, poeta, cenó-grafo, pedagogo e sobretudo, abrangendo todos os ofícios e relações humanas, um notável comunicador.

A obra poética de Lagoa Henriques, inédita e desconhecida, o foco principal da minha investigação, encontra-se agora excepcionalmente reunida nas insta-lações da Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa. Por vontade ex-pressa do artista, esta instituição seria a herdeira de todo o seu espólio artístico após a morte do Prof. Carlos Amado, seu companheiro de sempre.

Porém, a herança cultural que nos deixou estende-se por todo o país, em to-das as dimensões físicas. Desde os programas televisivos de intuito pedagógico à sua extensa obra escultórica, a sensibilização para o património cultural e o seu melhor entendimento, foi desde sempre o seu propósito.

Por ter sido aluna do Mestre na Escola de Belas Artes conhecia-lhe os dons da palavra, da genialidade e do reconhecimento das qualidades do outro. Conhecia o seu atelier, apreciado com o empréstimo dos seus olhos e guiado pela sua voz, conhecia a sua obra escultórica por todo o país e a beleza dos seus desenhos, do

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seu traço que expressivamente revelava uma peculiar perspectiva do quotidia-no e da figura humana.

Em Fevereiro de 2010, um ano após a morte de Lagoa Henriques (1923-2009), fui convidada pela Fundação LIGA para montar a 1ª exposição em sua homena-gem - “Mestre Lagoa Henriques, um percurso de vida”. Uma exposição sobre a vida e obra deste artista português que para além de escultor, desenhador e pedagogo, era também um amigo frequentador e colaborador daquela instituição. Foi o pon-to de partida da minha investigação sobre a poesia de Lagoa Henriques e a relação ekphrástica dos seus poemas com a sua vasta obra gráfica e escultórica.

1. Do rio e do mar

Filho de um empregado do comércio que nos tempos livres se dedicava ao tea-tro e à música, e de uma professora de inglês, francês e música, casal com um raro e peculiar interesse pelas artes naquele tempo e condição social, António Augusto Lagoa Henriques foi aos três anos de idade viver para casa de seu avô, na rua dos Douradores, ao lado da morada de Fernando Pessoa, a pouco mais de cem metros do Tejo.

Do rio lisboeta, de onde acaba a terra e o mar começa, a memória mais antiga que sempre manteve evoca um passeio com o seu avô até ao cais das colunas. Um despertar artístico e silencioso que continuou pelos corredores e jardins do Museu de Arte Antiga, com o rio ali ao lado, sempre pela mão do seu avô.

As memórias marítimas posteriores banham-se no mar da Nazaré, vila pis-catória onde, até aos 20 anos de idade, passava lealmente dois meses de férias. Lugar agreste que lhe pegou o gosto das fortes camisas axadrezadas, e onde veio a conhecer o seu mestre Barata Feyo. Mais tarde o mar da Grécia, o Egipto, Roma, o mundo... acompanhado pela leitura de Camões, Fernando Pessoa, Cesário Ver-de, toda a mitologia clássica e sobretudo a Egípcia.

Em 1945, Lagoa Henriques iniciou o curso especial de Escultura, na Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa, depois de reprovar uma primeira vez no exa-me de admissão; em 1954, conclui, na Escola Superior de Belas-Artes do Porto, com a tese final que se encontra actualmente nos jardins da Escola de Belas Artes do Porto, e que lhe valeu a classificação de 20 valores.

Agostinho da Silva, seu explicador e orientador nos estudos de história e fi-losofia nos tempos de liceu, detectara já nos desenhos de Lagoa Henriques a pre-sença de uma espacialidade tão particular no desenho dos escultores. Uma pe-culiaridade que confere ao desenho um carácter de ferramenta de busca de uma terceira dimensão das coisas, de um movimento, uma qualidade sonora, ou ex-travasão temporal que exclui a carga do pressuposto de que um desenho é sem-pre uma fase preparativa para uma pintura ou que simplesmente acaba ali. Esta apreciação eliminaria facilmente a presença do impulso, do momento da von-tade ou do arrependimento, do erro, e da procura do enigma, da lenda e do mito.

Mais do que a definição visível, a matéria que Lagoa Henriques utiliza na sua

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obra ultrapassa as fronteiras da representação e expande-se a outros suportes e ou-tros sítios, no seus aspectos físico e material, e na sua dimensão volátil e simbólica.

Lagoa Henriques viveu desde 1973 no seu atelier da Avenida da Índia, em Lisboa, um barracão cedido pela Câmara Municipal após o violento incêndio de 1972 do anterior atelier onde trabalhava, e que herdara de Francisco Franco.

Esta trágica destruição representou a perda quase total da sua obra, do seu percurso artístico e pessoal até aquele momento, e foi, tal como um presságio ou síntese de toda a sua vida, um instante decisivo, um momento da realidade fugaz e inesperada que tornou inadiável qualquer impulso, qualquer poema, qualquer desenho e qualquer pequeno risco.

Pouco a pouco o armazém frio e abandonado que lhe fora cedido ganhou vida própria. Surgem os gessos e os panos molhados a envolver o barro, os bronzes e os retratos, as violas, as vozes, os cantos e os risos. Plantas vivas enormes, flores, papéis, livros e muitos desenhos, amigos e afectos. A um canto pedras grandes e conchas que recolhe e colecciona, numa mistura a que dá sentido. Como disse Saramago tudo filtrado por um pequeno raio de luz que entrava por “uma janela que rasgara para olhar o mundo” (SARAMAGO, 1987) e o mar seu vizinho. Lagoa Henriques transforma o seu espaço num universo singular, único, e que foi seu e partilhado com os amigos que cativou até ao dia da sua morte, no ano 2009.

O universo poético e literário esteve desde sempre presente na obra de Lagoa Henriques: seja ele o próprio tema ou a fonte de inspiração. Poetas ou escritores, e a sua herança poética são os fundamentais impulsionadores do seu desenho ou escultura. Harmoniosamente envolvidos por sugestões históricas ou mito-lógicas, poesia, desenho e escultura estão em permanente diálogo na obra de Lagoa Henriques, são uma ininterrupta conversa, em discurso directo, sobre o banal e o extraordinário, o belo e o sublime, o quotidiano e o universo, a terra e o mar; e sempre o corpo, o amor e o desejo.

Com os seus poemas, desenhos ou registos diários Lagoa Henriques permite-nos acompanhá-lo na sua caminhada apaixonante, de quem sofre e perde mas também goza e ama. Uma epopeia que nos transporta à descrição camoniana como um desti-no espelhado em quem mora tão perto do mar e que, com sagacidade, o contempla.

Lagoa Henriques mantem com a natureza uma relação profunda de admira-ção e dependência. Tanto na dimensão terráquea, das flores, das árvores, ou das raízes, como na vasta dimensão do mundo marítimo, oceânico, em cíclica mu-tação. Movimento constante, oscilante e (im)previsível que ora lhe dava uma maré vazia de esqueleto exposto, ora uma praia-mar de pleno horizonte.

Da “Praia dos Prodígios”, local à beira Tejo que elege, adopta e denomina, em frente do seu atelier junto à Torre de Belém, traz pedras e troncos arrastados pe-las marés, objectos que prefere eleger como mistérios, sobrelevando a evidência do seu carácter de detrito. Uma alusão ao belo e ao sublime, à aceitação e rejei-ção, ao impulso fluído e à incompreensão. Um estado de alma que projecta na sua poesia e traduz a excepcional confluência de sentimentos, que lhe conhecemos como artista e ser humano generoso, que todos acolheu com espanto.

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Fig. 1 - Lagoa Henriques: Poema (15 Janeiro 1997);

Desenho (não datado). Composição para o painel Poesia

da exposição Mestre Lagoa Henriques – Um Percurso

de Vida, Fundação LIGA, 2010.

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MAIS UMA PENA

ANÓNIMA

HETERÓNIMA,

SUBTÍL

SINZENTA

MAIS TRÊS FLÔRES

DE HIBISCO,

DOIS PREGOS FERRUGENTOS

DO SÉCULO XVIII,

JULGO

VULGARMENTE

NINGUÉM DÁ IMPORTÂNCIA

A ESTAS COISAS

COISAS DE LOUCOS!

POUCOS,

SIM; SE DESLUMBRAM

E SE ENCANTAM

COM ESTAS FRÁGEIS

DÁDIVAS

DA VIDA

SINGULARES HARMONIAS

NO DESCONCERTO

DO MUNDO

(Lagoa Henriques, 14 outubro 2006)

As pequenas mensagens que circunscreve na estrutura breve e livre dos seus poemas, variam entre o carácter auto reflexivo, contemplativo e estético. Na maioria das vezes prevalece o recurso fonológico, a utilização do som das palavras como estrutura do discurso, articulado pela pertinência de similitude ou absoluta dissonância dos seus significados, recurso tão genialmente utilizado também nas suas aulas e palestras, testemunhado por quem teve o privilégio de o ouvir.

Escrever poesia era, para Lagoa Henriques, escrever intensamente a verdade. A verdade não como um inventar errante ou um oscilar da mera re-presentação e imaginação no irreal (HEIDEGGER, 2012: 60), mas no sentido heideggereano de desocultação do ente, de projecto clarificador. É tratar em profundidade a matéria do seu imaginário, da sua génese de comunicador e da sua plasticidade artística, e transformá-la num mar poético. Mar coerente, de uma só água que une as palavras, de onda larga que nos permite ver através dela o autor que se expõe. Que se expõe duplamente porque a sua obra plástica acompanha em similar correspondência os pensamentos escritos.

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Efectivamente, uma metamorfose poética aconteceu na obra de Lagoa Henriques, progressivamente, pela introdução no seu trabalho de elementos naturais que casualmente encontrava na cidade, no campo ou na praia, escul-pidos pelo poder transformador da natureza, conferindo-lhes uma inesperada leitura poética, uma nova interpretação ou sentido compositivo. Desde a re-presentação puramente figurativa da estátua de Guerra Junqueiro, 1968 (Praça de Londres em Lisboa), à conceptualização da esfera das palavras e do universo introspectivo de Antero de Quental, 1991 (no Príncipe Real, também em Lis-boa), sugerido pelos três círculos de aço inoxidável sobre um sólido bloco de pedra, há um deslocamento e uma transformação da visualidade do modelo figurativo representado, para uma conceptualização, liberta da materialização identificável da figura aludida.

No Dicionário de Escultura Portuguesa dirigido por José Fernandes Pereira, 2005, Fernando António Baptista Pereira realça os temas estruturantes da obra de Lagoa Henriques: o binómio terra e mar, a relação com a natureza, e o univer-so literário e mitológico companheiros de sempre do artista.

2. Entrelaçar a terra e o mar, a escultura e a poesia, e sempre o corpo, o amor e o desejo

Em Leiria o grupo escultórico O Lis e o Lena, 1973, eternizou visualmente o amor da história mais popular desta cidade. Reza a lenda que o rio Lis e o seu afluente rio Lena se perderam de amores, e que um dia, à saída da cidade, se juntaram e celebraram a sua união tornando-se num só rio. Marques da Cruz (1888-1958) descreveu assim a lenda O Lis e o Lena em poesia:

Nasceu o rio Lis junto a uma serra

No mesmo dia que nasceu o Lena;

Mas com muita Paixão, com muita Pena

De seu berço não ser na mesma Terra.

Andando, andando alegres, murmurantes,

Na mesma direcção ambos corriam;

Neles bebendo, as aves chilreantes

Cantavam esse amor que ambos sentiam

Um dia já espigados, já crescidos

Contrataram casar, de amor perdidos

Num Domingo, em Leiria de mansinho...

Mas Lena, assim a modo envergonhada

Do povo, foi casar toda enfeitada

Com o Lis mais abaixo um bocadinho.

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Lagoa Henriques interiorizou, interpretou e sintetizou este amor devoto à cidade de Leiria num episódio alusivo à fertilidade das terras da região, ao bucólico descanso pastoril à sombra dos troncos que ladeiam os rios que se fizeram um só.

O grupo escultórico A Leda e o Cisne que se encontra em Brasília, no lago do edifício da Embaixada de Portugal daquela cidade além oceano, é uma transpo-sição de um domínio descritivo mitológico para a visualidade material: uma ekphrasis que transforma um leitor de palavras em espectador de imagens. Já muito utilizada por outros artistas, ( desde os mosaicos do período romano, am-plamente no renascimento, Leonardo, Michelangelo, Correggio... até Cézanne e para além dele) a célebre lenda da mitologia grega conta como Zeus se trans-figura em cisne para seduzir e desflorar Leda, a rainha de Esparta, e com ela se envolver numa luta amorosa ambígua, entre o assalto e o erotismo. W.B Yeats escreveu assim A Leda e o Cisne, em 1923:

A sudden blow: the great wings beating still

Above the staggering girl, her thighs caressed

By the dark webs, her nape caught in his bill,

He holds her helpless breast upon his breast.

How can those terrified vague fingers push

The feathered glory from her loosening thighs?

And how can body, laid in that white rush,

But feel the strange heart beating where it lies?

A shudder in the loins engenders there

The broken wall, the burning roof and tower

And Agamemnon dead.

Being so caught up,

So mastered by the brute blood of the air,

Did she put on his knowledge with his power

Before the indifferent beak could let her drop?

Outro grupo escultórico, de sua autoria, que se encontra em Constância, uma pequena vila debruçada sobre o Tejo, A ilha dos Amores é outra represen-tação ekfrástica, uma demonstração da reciprocidade deste método descritivo com origens na antiguidade clássica. O mito da Ilha dos Amores é escrito por Ca-mões e traduzido visualmente por Lagoa Henriques. No canto IX dos Lusíadas é contada a recompensa que Vénus oferece ao heróis portugueses: um merecido descanso agraciado com prazeres divinos e jogos amorosos numa ilha imaginá-ria e paradisíaca, a Ilha dos Amores.

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DE UMA OS CABELOS DE OURO O VENTO LEVA,

CORRENDO, E DE OUTRAS AS FRALDAS DELICADAS;

ACENDE-SE O DESEJO, QUE SE CEVA

NAS ALVAS CARNES, SÚBITO MOSTRADAS.

UMA DE INDÚSTRIA CAI, E JÁ RELEVA,

COM MOSTRAS MAIS MACIAS QUE INDIGNADAS,

QUE SOBRE ELA, EMPECENDO, TAMBÉM CAIA

QUEM A SEGUIU PELA ARENOSA PRAIA.

( Camões, Lusíadas IX, 71 )

O brilhantismo do discurso camoniano e a evidente interação entre a palavra escrita e o objecto artístico foram aqui amplamente utilizados por Lagoa Henriques.

Depois do descanso e recompensa merecida, os portugueses regressam a Lisboa.A ekphrasis, nestes exemplos, para além da sua função original clássica de

descrição, possibilita a síntese de todo um processo criativo, confere unidade à obra do artista, com a virtuosa capacidade de transformar o leitor de palavras em espectador de imagens. Mais ainda neste caso que nos revela um autor apaixo-nado pela vida, fazedor de grande obra e incansável na busca do saber e do sentir.

tudo o que se possa dizer dum artista

é secundário.

o que conta é a sua obra que essa sim é que nos diz da sua aventura

da sua passagem mais ou menos deslumbrada

mas sempre inquieta

na intenção de decifrar o enigma

de corporizar emoções e entendimentos.

(Lagoa Henriques, não datado)

Conclusão

Na diversidade dos métodos de aplicação, descritiva, poética, ou literária, a ekphrasis encontra uma única história comum: a da multiplicidade de estraté-gias com as quais cada arte, individualmente, utiliza as representações de outra para falar de si própria e do seu autor.

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Referências

· AA.VV. “…O risco inadiável”. O Caderno do Desenho. Lagoa Henriques. Lisboa: Escola Superior de Belas

Artes de Lisboa, 1988.

· AVELAR, Mário. Ekphrasis – O poeta no Atelier do Artista. Chamusca: Edições Cosmos, 2006.

· BERGMANN-LOIZEAUX, Elizabeth. Twentieth-Century Poetry and the Visual Arts, Cambridge: Cam-

bridge University Press, 2010.

· DESENHOS RECUPERADOS. Lisboa: Sociedade Nacional de Belas-Artes, 1973.

· DIAS, Margarida. O Segredo. O atelier de Lagoa Henriques. Lisboa: Câmara Municipal de Lisboa, 2001.

· DRUCKER, Johanna. The Century of Artists’ Books, New York City: Granary Books, 1995.

· FREITAS, Lima de. “Lagoa Henriques, Mestre de Desenho”. In: Diário Popular, 4 jan., 1973.

· HEIDEGGER, Martin. A Origem da Obra de Arte. Lisboa: Edições 70, 2012.

· MORIN, Edgar. Os Sete Saberes para a Educação do Futuro, Lisboa: Instituto Piaget - Horizontes Peda-

gógicos, 1999.

· PEREIRA, Fernando António Baptista. “Henriques, António Augusto Lagoa”. In: PEREIRA, José Fernan-

des (coord.). Dicionário de Escultura Portuguesa. Lisboa: Editorial Caminho, 2005.

· SARAMAGO, José. “Carta a Lagoa Henriques”. Texto dactilografado, 1987, in espólio da Faculdade de

Belas Artes da Universidade de Lisboa.

· SARDO, Delfim. “Lagoa Henriques”. In: Aula Extra. Lisboa: Faculdade de Belas-Artes da Universidade

de Lisboa, 2006.

· YEATS, W.B.. Os Pássaros Brancos e Outros Poemas. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2012. (tra-

dução de Maria de Lourdes Guimarães e Laureano Silveira).

Contactar a autora: [email protected]

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Tratados de Construção Naval Ibéricos nos Séculos xvi e xvii

Iberian Treatises of Shipbuilding in the Sixteenth and Seventeenth Centuries

António TeixeiraInvestigador do Centro de Investigação do Mar (CIDMAR) da Universidade

Atónoma de Lisboa (UAL); professor dos Cursos Livres de Arqueologia Naval

e mestrando em História da Náutica e Arqueologia Naval da UAL.

Brígida BaptistaArqueóloga, pós-graduada em Arqueologia Sub-aquática

Mestranda em Arqueologia pela FCSH-Universidade Nova de Lisboa

Resumo: A importante colecção dos chamados tratados e regimentos de construção naval publicados no período da chamada Época da Tratadística (1570/80-1640), cons-titui a base de qualquer estudo sobre a fábrica dos navios da época. O seu estudo não deverá ser feito cada um per si, considerando-os como repositórios de conhecimentos, resultantes da passagem a escrita da prática artesanal e empírica da construção na Ri-beira, mas de uma forma global, tendo em conta os diversos contextos, nomeadamente histórico, geográfico, naval e a prática dos estaleiros. Certamente, que para além de muitas dúvidas que subsistirão, o conhecimento dos navios da época da Expansão, das regras e procedimentos propostos e praticados será mais alargado e fundamentado.

Palavras-chave: Tratados. Ribeira. Construção Naval. Empirismo. Arqueologia.

Abstract: The important collection of the so called Treaties and regiments of ship-building published during the Treatises Period (1570/80 - 1640), is the basis for any study on the manufacture of vessels. Their study must be done as a all; they must be considered as repositories of knowledge. They are the result of the man craft empiri-cal practice of shipbuilding, not only at “Ribeira” but also in several other contexts, including historical, geographic and naval shipyards. In spite of all the doubts that might persist, the knowledge of ships from the Discoveries, the rules and procedures proposed and practiced are beyond the actual knowledge and will be further expand-ed and grounded.

Keywords: Treaties. Ribeira. Shipbuilding. Empiricism. Archaeology.

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Introdução

«A notável colecção de documentos técnicos portugueses de 1550-1580 a 1640, [é] em nossa

a opinião a mais completa que se conhece e a de maior importância, devido a incluir nume-

rosos desenhos de diversos tipos de navios» (BARATA, 1989)

Para se poder avaliar a importância do estudo dos tratados portugueses de construção naval portuguesa nos séculos XVI e XVII e o impacto que a trata-dística teve na chamada Época da Tratadística, há que ter em conta a chamada Construção na Ribeira.

Esta prática era a usada até aos fins do século XVII e era caracterizada por algumas particularidades, sendo as mais importantes as seguintes:

– Desenho no chão;– Peças pré-traçadas e pré-montadas;– Procedimentos e técnicas empíricas;– Segredo corporativo;– Algoritmos geométricos (graminhos);

Mais tarde, no século XVIII, a construção naval assumiu aspectos técnicos que a tornam uma verdadeira ciência que tem como centro a Sala do Risco. As suas características mais importantes são:

– Construção baseada num plano– Desenho completo do navio em 3 dimensões– Algoritmos matemáticos

O carácter empírico da construção naval da Ribeira perdurou até aos dias de hoje no âmbito da construção naval artesanal. Até há bem pouco tempo, quando se perguntava a mestres tradicionais onde estavam os planos por onde se regiam para construir os seus navios, a resposta limitava-se a:“Primeiro traçamo-los no terreiro, depois construímo-los e quando acabados, pedimos que nos elaborem o projecto para obter a matrícula”

Nos séculos XVI e XVII, período a que se reporta este artigo, a empíria estava presente e enraizada. Tudo era feito como sempre, da mesma forma que os seus antepassados faziam, tentando somente com a experiência, optimizar o que era feito, como era feito e o que era imperativo ser feito. O modelo inspirador seria a própria natureza. Já Fernando Oliveira dizia no seu Livro da Fabrica das Naus: “[…] Poys assy tambem fezerão os nauegantes, que para levar os barcos pella ao-gua tomarão exemplo dos peyxes que remão co as barbatanas […]” (OLIVEIRA, 1991: 82)

Em Portugal, se podemos considerar a data de 1415 (Conquista de Ceuta) como

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o início da epopeia dos Descobrimentos, com o consequente desenvolvimento das várias áreas relacionadas (náutica, construção naval, artilharia, cartografia, etc.) na fabrica de navios, só passados cerca de 150 anos, é conhecido o primeiro tra-tado de construção naval português. Trata-se da obra de Fernando Oliveira Ars Nautica, cuja segunda parte trata da construção naval. Estávamos em 1570 e ini-ciávamos a chamada Época da Tratadística. Até esta data, os navios portugueses não são conhecidos senão genericamente. Quanto à sua construção não há co-nhecimento de qualquer tipo de documento técnico.

A partir desta data e até meados do século XVII é publicada uma vasta docu-mentação relacionada com a Construção Naval, a que se chama tradicionalmente tratados, que vão proporcionar um conhecimento bastante aprofundado das re-gras e procedimentos da construção naval. Coincidindo este período com o domí-nio filipino, a questão da tratadística deverá ser abordada num contexto ibérico.

A qualidade e a profundidade desta colecção documental é deveras notável proporcionando um conhecimento profundo não só da construção como dos navios da época. Daí, o afirmar-se que “Os navios portugueses de 1600 conhe-cem-se melhor do que os de 1500 ou 1650” (DOMINGUES, 2004:15)

Quando se fala de Tratados, várias questões se põem, fundamentalmente relacionadas com o facto de, como afirma Filipe de Castro, “Não foram escri-tos por carpinteiros de ribeira, nem para carpinteiros de ribeira. Parecem ser, mais, uma consequência do gosto Renascentista de coleccionar e organizar o conhecimento”. Assim, devemos ter presente as seguintes premissas: Conside-rá-los como repositórios de conhecimentos e não manuais técnicos; estarem sujeitos à possível política de sigilo dos Descobrimentos, no que respeita à fá-brica desses navios. Por fim e não menos importante, o segredo corporativo tão presente nas organizações de artífices. A maioria, se não a totalidade dos trata-dos não foram escritos por mestres carpinteiros. Quem os redigiu viu, ouviu e interpretou uma realidade que não dominava. Até que ponto o que está escrito corresponde à informação transmitida?

Lista de TratadosDurante a Época Tratadística Ibérica (1570/80-1640) podemos referenciar os

seguintes documentos, que reportamos como a mais significativa documenta-ção de construção naval publicada na Península Ibérica:

– 1570: Ars Nautica, Fernando Oliveira– 1580: Livro da Fábrica das Naus, Fernando Oliveira

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– 1587: Instrucción náutica, Diego Garcia Palácio – Fins Séc. XVI: Livro Náutico, Anónimo– Fins Séc. XVI: Coriosidades de Gonçallo de Sousa– 1610: Livro Primeiro de Arquitectura Naval, João Baptista Lavanha– 1611: Arte para fabricar, fortificar y aparejar naos, Tomé Cano– 1616: Livro de Traças de Carpintaria, Manuel Fernandez– c. 1630: Tratado de la galafeteria y carena de las naos, Anónimo – c. 1632: Dialogo entre un Vizcaino y un Montañés, Anónimo– 1640: Advertências de navegantes, Marcos Cerveira de Aguilar– 2ª metade séc. XVII: Tratado do que deve saber um bom soldado para ser bom Ca-

pitão de Mar e Guerra - Anónimo

Classificação da Documentação Técnica de Arquitectura Naval

Uma qualquer classificação da documentação técnica deverá, segundo Contente Domingues (2004: 22), passar pelas respostas a perguntas concretas, tais como quem escreveu, o quê, para quem e quando.

Pimentel Barata propõe uma organização dos documentos do período em questão segundo aquilo que considerava ser a “adequação dos preceitos expos-tos à prática dos estaleiros” (ibidem: 23). Assim, estrutura quatro grupos:

Documentos teóricosArs nautica — Fernando OliveiraLivro da Fabrica das Naos — Fernando Oliveira

Documentos teórico-práticosLivro Primeiro da Architectura Naval - João Baptista LavanhaTratado do que deve saber um bom soldado para ser bom Capitão de Mar e Guerra — AnónimoAdvertências de Navegantes — Marcos Cerveira de Aguilar

Documentos práticosLivro Náutico — AnónimoCoriosidades — Gonçalo de SousaLivro de Traças de Carpintaria — Manuel Fernandes

Documentação dispersaConstrução de uma nau de 17 rumos, Sebastião TemudoContrato para a construção de um patacho, entre o bailio de Leça e o carpinteiro Pero Franco

Contente Domingues opta por uma organização em função do carácter in-trínseco dos documentos, agrupando-os por géneros e não em função da tipologia

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formal, isto é, opta pela espécie e não pela funcionalidade, argumentando que não se pode garantir que um determinado preceito descrito num documento se aplicava no estaleiro. (ibidem:24)

Tratados (Obras de Autor)Livro da Fabrica das Naos — F. OliveiraLivro Primeiro de Architectura — J.B. LavanhaLivro de Traças de carpintaria — M. Fernandes

Regimentos GeraisReferentes à construção dum tipo de navioRegimentos EspeciaisReferentes à arquitectura e construção de um dado navio, além de orçamentos e afins

Tratados

Como já foi referido, a construção naval no período conhecido como Época da Tra-tadística observava uma componente de transmissão do saber de experiência feito, ou seja, o conhecimento era transmitido por via oral do mestre para o aprendiz, de pais para filhos, ao longo das gerações. As obras desta época dar-nos-ão uma visão do que e como se fazia, explicitando algumas regras que deveriam ser cumpridas quer em termos de dimensionamento, quer em termos procedimentos de fabrico; raras são as que pretendem normalizar esses procedimentos, e muito menos dar um caracter científico à construção naval. Como excepções, temos o Livro da Fabri-ca das Naus e o Livro Primeiro de Arquitectura Naval para o primeiro e o segundo caso.

Este último defende, primeira vez, a existência da arquitectura naval com todas as suas regras e metodologias à semelhança da arquitectura civil.

Vejamos, duma forma muito sucinta, os documentos mais notórios da cons-trução naval portuguesa.

Livro da Fábrica das Naus

Manuscrito do Padre Fernando Oliveira, permanece na Biblioteca Nacional de Lisboa, Códice 3702, tendo sido publicado pela primeira vez em 1898, por Lopes de Mendonça incorporado no seu livro Padre Fernando Oliveira e a Sua Obra Nau-tica e recentemente (1991) pela Academia de Marinha, com comentários de F. Contente Domingues e Richard Baker.

Terá sido escrito circa 1580, versando matérias relacionadas com a cons-trução naval. Pelo índice verifica-se que está incompleta, terminando abrupta-mente no capítulo nono. No Prólogo, Oliveira menciona a intenção de abordar assuntos que não constam nos capítulos existentes “[…] mastos, uergas, uelas, remos, enxarceas, cabres, ancoras, bombas, & otras machinas, & instrumentos

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necessários pera o serviço das dictas naos, & das taracenas, & uaradouros. Dos quaes também por derradeyro se diraa alg�a cousa: & do modo, & engenhos, de uarar, & lançar as naos.”

Fernando Oliveira propõe-se reduzir a escrito todo o conhecimento exis-tente na posse de quem estava encarregue de construir os navios segundo regras expressas nos regimentos gerais. Era o conflito entre o artesão e o te-órico, o dos procedimentos práticos e o das formulações genéricas. “Era o conflito entre a ordem antiga do saber e fazer e essa tendência normaliza-dora e regularizadora que marcou o Renascimento”, como refere Contente Domingues (2004: 91)

Tivesse Fernando Oliveira terminado o seu Livro e teríamos hoje uma ver-dadeira enciclopédia sobre Construção Naval nos fins do século XVI. Quanto ao seu conteúdo, este tratado está organizado em nove capítulos, antecedidos por um Prólogo, onde expõe os motivos que levaram o autor a escrevê-lo.

Sem dúvida que o capítulo oitavo é o mais importante no contexto do fabri-co de naus, pois o autor dita algumas normas e procedimentos, numa tentativa de normalização teórica da construção naval. O tipo de navio que Oliveira toma como referência é a nau, tecendo considerações sobre o tamanho que os navios devem ter consoante como a duração da viagem, as rotas e a sua função. De re-alçar que é estabelecida para todos os navios uma proporcionalidade entre uma determinada parte do navio (neste caso a quilha) e todas as outras partes, aquilo a que o autor chama a pars rata. Esta proporcionalidade conduzia a que sabendo o comprimento da quilha, a dimensão de todas as outras componentes do navio são deduzidas, desde a boca, à roda de proa (altura e lançamento), ao cadaste (altura e cadaste), ao pontal, ao gio, etc.

À harmonia das dimensões, deve juntar-se uma optimização da forma do casco de forma a aumentar a sua capacidade de navegar. A forma das cavernas deve assumir um desenho em que para vante e para ré elas sejam mais estreitas e mais levantadas para dar ao casco a melhor forma hidrodinâmica. Este aspecto da construção do casco é obtido através de algoritmos geométricos, chamados graminhos. No Livro da fabrica das Naos, Oliveira não só indica como se constro-em os diversos tipos de graminho, nomeadamente a besta ou meia lua, o rabo de espada e a brusca, como indica quando e aonde deverão ser usados.

Este tratado de Fernando Oliveira pode ser considerado como o percursor de tra-tados de construção naval, dando aos estudiosos da construção naval do século XVI a possibilidade de um melhor conhecimento das características gerais dos navios ibéricos.

Livro Primeiro da Arquitectura Naval

Manuscrito escrito por João Baptista Lavanha, pertencente à colecção Salazar y Castro da Biblioteca da Real Academia de la Historia de Madrid, devendo-se a Cesáreo Fernandez Duro a sua descoberta, publicando nas suas Disquisiciones Nauticas o respectivo índice dos capítulos.

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Graças a João da Gama Pimentel Barata é publicado pela primeira vez no ano de 1965 (BARATA, 1965:221) sendo também recentemente publicado em edição fac-simile pela Academia de Marinha em 1996, com anotações por Contente Domingues e Richar Barker. Obra também inacabada, não se tendo conhecimento de qual seria o projecto de Lavanha quanto ao seu conteúdo, permitindo no entanto a reconstituição do traçado do casco de uma nau até à primeira coberta.

A sua datação constitui a primeira dificuldade que se depara a quem estuda esta obra, sendo a data de c. 1600 a possibilidade mais acertada segundo Contente Domin-gues (2004: 152). O Livro está estruturado em doze capítulos sendo os sete primeiros numerados sequencialmente, o oitavo sem qualquer referência e os quatro restantes, sem numeração mas com a indicação de Capítulo na linha de baixo do título.

A primeira parte composta pelos primeiros quatro capítulos dá um enqua-dramento genérico à obra, teorizando sobre a Arquitectura e evidenciando as di-ferenças entre o Arquitecto Universal e Naval, Arquitectura Universal e Naval, duas expressões novas à data.

Para Lavanha, o arquitecto naval arquitecta o navio, sendo o seu responsável, deixando para o carpinteiro naval a sua fabrica, propondo uma série de procedi-mentos usados até à data, na arquitectura convencional. Assim, ele propõe que se deva fazer um plano em papel do navio a construir, e a construção de um modelo que espelhe fielmente o navio a construir. Estes modelos permitiriam detectar e corrigir os erros, para além de apresentar o projecto ao contratador. Estas etapas (plano e modelo) terão constituído as bases da futura construção na-val, a chamada da Sala do Risco, tornando O Livro Primeiro numa obra percursora.

A segunda parte trata das madeiras (capítulos cinco e seis), das achegas - ou-tros materiais necessários para a construção (capítulo sétimo) e nos últimos cin-co capítulos a explicação de como construir uma nau de quatro coberta e 17,5 rumos de quilha, ficando interrompida na primeira coberta.

É notável a preocupação de Lavanha em enunciar o que deveria ser feito no estaleiro de uma forma clara e sistemática .

Não se pode falar do Livro Primeiro sem referir o rigor dos seus textos com-plementados pelos seus desenhos, de um notável rigor geométrico, Muitos des-ses desenhos apresentam uma novidade: são à escala e em perspectiva o que constitui uma evolução brilhante para a época.

Livro de Traças de Carpintaria

Manuel Fernandes é o nome que consta como autor do Livro de Traças de Car-pintaria com todos os modelos e medidas pera se fazerem toda a navegação, assy d`alto bordo como de remo, traçado por Manoel Fernandez, official do mesmo officio na era de 1616. Sobre o autor e sobre a obra ainda persistem muitas dúvidas, nomeada-mente sobre quem terá sido Manoel Fernandez, qual a sua profissão, onde a terá exercido, porque elaborou esta memória e a quem a dirigiu.

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O Livro foi descoberto na década de 80 do século XIX na Biblioteca do Pa-lácio da Ajuda (DOMINGUES, 2004). Contente Domingues afirma que a obra poderá ter sofrido alterações, em 1898 quando foi encadernada, o que explica-rá alguns dos erros existentes (Ibidem:163).

O Livro de Traças de Carpintaria está dividido em duas partes, a primeira com-posta por textos explicativos para a construção de quinze tipologias de navios que se subdividem por tonelagem, comprimento de quilha, a remos, e de apetre-chos (guindaste, grade e envazadura). A segunda parte da obra contém o dese-nho de vinte e dois navios que ilustram alguns dos textos da primeira parte, em diferentes vistas (plantas e alçados), e planos de construção de balizas, paus reais e mastros. Contabiliza-se um total de duzentos e sessenta e seis desenhos, alguns considerados únicos como no caso das caravelas, patachos e galizabras, navios ainda pouco estudados (BARATA, 1989:58-159). De salientar, que se denota um maior cuidado gráfico na elaboração dos desenhos dos navios de remos do que nos de alto-bordo. No caso da nau, Pimentel Barata refere que a obra possui dois desenhos únicos da literatura da época, o da envazadura e o da grade de lança-mento de uma nau. (Ibidem:159).

Há muitos erros de escrita, alguns dos quais são admissíveis a um ignorante da matéria, mas não a profissionais, como seria o caso de Manoel Fernandez o que dá azo a uma das grandes dúvidas sobre a obra, que já foram referidas.

Entre outros autores, Melba Costa é de opinião de que se trata de um registo para a posteridade, “ […] de iniciativa própria […] Escassamente manuseada, não parece cartapácio para uso dos mestres da Ribeira; antes, pelo modo da sua orga-nização, pela beleza que se lhe imprimiu, se nos afigura o intuito da consagração para o futuro de uma prática a todos os títulos notável, na história marítima de Portugal.” (COSTA, 1989:122).

Compreende-se, na sequência de diversos trabalhos que provavelmente o Livro de Traças de Carpintaria é uma obra inacabada, apresentando imprecisões, erros e contradições. Muitas vezes para além da difícil interpretação da narrati-va do regimento, nem sempre o que está registado corresponde ao que está dese-nhado. Identificam-se erros na paginação dos fólios, nos títulos dos regimentos e nos desenhos dos respectivos navios.

Este tratado, o primeiro que se conhece que aborda um regimento sobre mas-tros e o único que trata dos apetrechos do navio: guindaste, envazadura, grade, estrinca e cabrestante, proporcionou no seu conjunto e continuará a proporcio-nar um volume de informação, de questões e interrogações que nos ajudará a melhor conhecer o Navio dos séculos XVI e XVII.

Conclusão

Não restam dúvidas que a colecção de manuscritos dos finais do século XVI e do XVII, mais ou menos técnicos sobre construção naval, constitui um corpus documental de importância ímpar para o estudo da construção naval ibérica

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desta época. Muitos estudiosos têm-se debruçado sobre eles, mas quase sempre de uma forma individual e muito poucas vezes comparativa. Os resultados têm sido altamente valiosos, mas sem deles podermos concluir de uma forma clara e indiscutível a forma como os navios eram construídos. Por várias razões já adu-zidas, restam sempre dúvidas com origem em diversos factores, como nomen-claturas confusas, referências pouco claras às unidades de medida, procedimen-tos omissos, alguns deles certamente por serem intuitivos e usuais na Ribeira. Estudar os tratados sem os contextualizar historicamente, ou sem os comparar entre si, sem os enquadrar na legislação em vigor, sem tentar explicar qual o impacte das polémicas da época, limitam a interpretação dos conteúdos. Não relacionar a prática das Ribeiras com os manuscritos, pode-nos induzir em erro sobre o que na verdade foram os processos aí executados.

A arqueologia naval pondo a descoberto despojos submersos, dá-nos um oportuno e valioso contributo no estudo da tratadística, mostrando a realidade da construção naval num determinado momento, de acordo ou em contradição com o que estava estabelecido nos regimentos.

Estamos ainda longe da completa compreensão de todos os conceitos, das regras, das sequências de construção, e de muitos segredos do ofício. Assim, o conhecimento dos “tratados” de construção naval deverá ser a base de trabalho dos arqueólogos navais.

O conhecimento relacionado dos tratados, aliado ao conhecimento dispo-nibilizado pela arqueologia naval, certamente vai possibilitar um conheci-mento mais correto e profundo dos navios desta época, como também saber como é que se construíam.

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Contactar os autores: [email protected] · [email protected]

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As Três Confrarias Marítimas de Sesimbra num Regimento de 1563The Three Sea Fraternities from Sesimbra in a Regiment of 1563

Fernando Alberto Gomes Pedrosa Membro emérito da Academia de Marinha (Lisboa), licenciado em Ciências Militares e

Ciências Sociais e Políticas, dedica-se há 37 anos ao estudo da história marítima, com espe-

cial incidência na história da pesca, do corso, da artilharia naval e das devoções marinheiras.

Resumo: Um regimento de 1563 menciona três confrarias marítimas em Sesim-bra. Para interpretar o texto, torna-se necessário recorrer a documentos de outras povoações, em especial de Lisboa, Setúbal e Pontevedra. Afinal era só uma, prin-cipal, a do Corpo Santo, subordinada à qual estavam as outras duas, a do Espírito Santo e a do Corpo de Deus.

Palavras-chave: Sesimbra. Pontevedra. Confrarias. Corpo Santo.

Abstract:A regiment of 1563 mentions three sea fraternities in Sesimbra. To interpret the text, it becomes necessary to use documents from other villages, especially Lisbon, Setúbal and Pontevedra. After all, there was only a main one, Corpo Santo, to which the other two – Holy Spirit and Corpus Christi – were subordinated.

Keywords: Sesimbra. Pontevedra. Fraternities. Corpo Santo.

Introdução

É bem conhecido um importante documento de 1563 que menciona três confra-rias marítimas em Sesimbra. É o chamado “Regimento de como se amde fazer as elleyções dos juizes e ofeciais da Cassa do Espírito Santo.” (MONTEIRO, 1961, 34) (LAPA, 1954, 63-66). Tendo surgido “duvidas nos tempos pasados amtre os mareantes e os acedadeyros da dita villa sobre as eleyções dos juizes e mordo-mos das suas confrarjas do espirito samto e do corpo de deos e do corpo samto,” o rei determina que os confrades elejam quatro juízes e dois mordomos para servirem no ano seguinte, a saber, dois juízes e um mordomo dos mareantes e pescadores do alto, e outros dois juízes e um mordomo dos acedadeiros; os juízes dos acedadeiros “usarão no mar de seus caregos acerqua das duujdas de suas pes-carjas como até quj costumarão fazer por se escusar aver amtre eles brjgas.” Isto revela a importância dos acedadeiros: elegem dois juízes e um mordomo, tantos como todos os outros mareantes e pescadores.

Convém esclarecer o significado que neste texto têm as palavras “mareantes,”

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“pescadores do alto” e “acedadeiros.” Mareantes são os que transportam merca-dorias em navios de comércio. Os acedadeiros pescam com acedares, redes de cerco de grandes dimensões que assentam a tralha inferior no fundo do mar; são redes “do baixo,” porque estão em contacto com o fundo do mar. Os “pescadores do alto” usam artes que não chegam ao fundo, por exemplo a linha e o anzol. Um processo judicial, em 1622, menciona o pescado “que se mata fora da Barra [de Setúbal], além da Torre do Outão e da Ponta do Faro [em Tróia], que eram os limites do mar alto.” A barra de Setúbal era, portanto, definida pela linha entre a Torre do Outão e a Ponta do Faro.1 E da barra para fora era o mar alto. Os forais manuelinos de Sesimbra e Setúbal, ambos de 1514, mencionam com grande des-taque os acedares e fazem a distinção entre o peixe capturado “no alto” ou “com mester de jorro.” “Mester de jorro” é uma arte de pesca que está em contacto com o fundo do mar.

O Corpo Santo foi a principal devoção marinheira em Portugal entre os séculos XV e XVIII. Trata-se de Frei Pedro Gonçalves, dominicano espanhol que nasceu entre 1180 e 1190, viveu nos conventos de Compostela, Amarante e Tui, morreu à volta de 1246 e está sepultado em Tui, perto do rio Minho. Em data desconhe-cida acrescentou-se ao nome, o de Telmo, passando a ser conhecido por S. Pedro Gonçalves Telmo, Santelmo ou Corpo Santo.

1. A confraria do Corpo Santo e o hospital do Espírito Santo

Junto ao castelo de Sesimbra havia uma albergaria do Espírito Santo, docu-mentada desde o séc. XIV, que era sustentada por uma confraria do Espírito Santo, à qual pertenciam juízes, vereadores, procuradores, em suma, a elite local. Depois os pescadores construíram na povoação ribeirinha, entre 1488 e 1492, o seu Hospital do Espírito Santo, com uma capela anexa (OLIVEIRA, 2008, 180, 196, 585). Foi o rei D. João II que, sendo governador e perpétuo administrador do Mestrado de Santiago, lhes deu licença para “alevantarem altar na dita casa, e terem capelão,” como se lê na “Visitaçam da villa de Ce-zimbra feita pelo mestre dom Jorge nosso Snõr” em 1516. Acrescenta esta visitação que no hospital há uma confraria do Corpo Santo, dos pescadores, que tem um “compromisso,” (CONDE, 2004: 49-67) ou seja, uns estatutos aprovados. Pode depreender-se que o “compromisso” foi aprovado pelo rei D. João II em finais do séc. XV.

Os reis apoiaram especialmente algumas confrarias marítimas conce-dendo-lhes a redízima (dízima da dízima) do pescado, o que é um incenti-vo importante. Só temos conhecimento de terem sido contempladas as de Lisboa, Setúbal, Sesimbra e Algarve, e não sabemos o motivo da escolha. Em Sesimbra, a redízima era para a confraria do Corpo Santo como se lê no foral manuelino (1514): da dízima velha do pescado, “ha de dar ha ordem [Ordem de Santiago] ho dizimo aos pescadores pera ho corpo santo.” Em vá-ria documentação posterior a confraria é dita, indiferentemente, do Corpo

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Santo ou do Espírito Santo, e acabará mais tarde por prevalecer a invocação do Espírito Santo.

2. As confrarias marítimas do Corpo de Deus

As festas e procissões do Corpo de Deus eram as mais imponentes que se realiza-vam em todo o reino. Os pescadores de Lisboa tiveram hospitais, ditos do Corpo de Deus, que só estão documentados no séc. XV e mudaram depois de nome. Em 23.7.1408, o rei concedeu isenção aos pescadores, mordomos e confrades dos hospitais do Corpo de Deus, edificados em Lisboa, de prestarem contas peran-te Rodrigo Anes, contador do arcebispo de Lisboa, como lhes era agora exigido, contrariando o antigo uso e costume de prestarem contas anualmente, em cabi-do, perante os seus confrades. Os hospitais não rendem mais de dez mil libras, e os pescadores e confrades fazem em suas casas cada um seu mealheiro, os quais mealheiros dizem que rendem mais que os ditos hospitais; e por este agravo que recebem de Rodrigo Anes, “eles nom querem fazer os dictos mealheiros e que per este aazo se perdem os pobres e os dictos spritaaes nom som tam bem re-pairados nem visitados. E que esto he gram perda e dampno dos pobres e dos spritãães.” (MARQUES, 1944: 455). Em 18.9.1434, foi confirmado o compromisso dos pescadores de Lisboa, confrades dos hospitais do Corpo de Deus e do Espíri-to Santo, pelo qual se obrigavam a não ir pescar aos domingos e dias de guarda (MARQUES, 1944, 123). O hospital do Espírito Santo pertencia à confraria do Espírito Santo, dos pescadores do alto, de Alfama, sita na igreja de São Miguel. A confraria foi instituída em 1428, como se vê no preâmbulo do seu compromisso reformado em 1606 e aprovado por alvará régio de 6.12.1608 (OLIVEIRA, 1899: 86). Havia outra confraria em Alfama, a de Nossa Senhora dos Remédios, dos pescadores chincheiros, sita na ermida dos Remédios. Também tinha um hospi-tal que talvez nesta época se chamasse do Corpo de Deus.

Conhece-se um “Traslado do alvará régio dos pescadores de Alfama e da Boa Vista, dos mealheiros que pagam para a procissão do Corpo de Deus, de Alfama.”2 O alvará é de 6.10.1457. Os mordomos e confrades do hospital do Corpo de Deus, dos pescadores de Lisboa, disseram ao rei que o compromisso do hospital, feito pelos antigos, obrigava todos os arrais ou seus filhos por eles a levarem no dia do Corpo de Deus os círios na procissão, e os que não quise-rem levar paguem uma multa para ajuda do hospital e festa; desde há algum tempo não levam os círios, e os mandam levar aos “bragamtes e homens vys e desmedrados;” os que não quiserem levar paguem a multa de 500 reais. Mais disseram que todos os pescadores que têm barcas e redes sempre fizeram cada um o seu mealheiro, para ajuda das despesas do hospital e festa, e no dia do Corpo de Deus, depois de comer, os entregarem aos mordomos do hospi-tal que nesse dia tomam posse; que os faltosos paguem de multa 1.000 reais para o hospital e para os cativos. O rei anuiu aos dois pedidos (SALGADO, SALGADO, 1996: 518).

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Os pescadores de Lisboa participavam com aparato na festa do Corpo de Deus. Em meados do séc. XVI, faziam-na sozinhos, no domingo a seguir ao Cor-po de Deus, e de tal modo que rivalizava com a festa da cidade: “Gasta a cidade na festa de Corpus Christi [Corpo de Deus] mil cruzados. Gastam os pescadores na sua festa do Santo Sacramento, a qual fazem no domingo seguinte depois de passado o dia de Corpus Christi, com clerezia que acompanha a procissão, e outros gastos e cera que é muita, 500 cruzados.” (OLIVEIRA, 1987: 80). Esta foi a época de ouro da pesca em Portugal. Os pescadores, sozinhos, fazem uma festa que rivaliza com a principal festa de Lisboa.

Cristóvão Rodrigues de Oliveira chama “festa do Santo Sacramento” à que os pescadores faziam para celebrar o Corpo de Deus. A maior parte das confra-rias do Corpo de Deus medievais deu origem a irmandades do Santíssimo Sacra-mento (PENTEADO, 1995: 38). Foi recentemente leiloado no Palácio do Correio Velho um in-fólio de 34 fólios, datado de 1567, com o título “Compromisso do Sanctissimo Sacramento & Corpo de Deos dos pescadores de Alfama.”3 Trata-se certamente de uma irmandade do “Santíssimo Sacramento & Corpo de Deus” que, entre outras atribuições, organizaria a participação dos pescadores de Alfa-ma na festa do Corpo de Deus.

3. As confrarias do Corpo Santo e do Corpo de Deus, de Pontevedra

Pontevedra era em meados do séc. XVI a maior povoação da Galiza e tinha a maior confraria marítima, a do Corpo Santo, com mais de 2.000 mareantes (MOLINA, 1675: 64-65). Estes “mareantes” são, na maioria, pescadores, que também podem navegar em viagens comerciais. A confraria do Corpo Santo está documentada desde 21.1.1435. Convém não confundir, diz Clodio González Pérez (1998: 296-297), esta confraria com a do Corpo de Deus, que também se documenta em Ponte-vedra por estes mesmos anos, em 10.5.1437: “e aos bigarios da confraria do Corpo de Deus da dita billa duzentos maravedis de moneda bella branca em tres dineiros para fazeren e ordenaren as cousas que fosen nesçesarias para a festa do Corpo de Deus.” E acrescenta: “A decadência do culto [ao Corpo Santo] começa no séc. XVIII, de tal modo que há pessoas cultas que identificam o Corpo Santo com o Cor-po de Deus ou o Corpus Christi, desconhecendo que era frei Pedro González.” Dá como exemplo a carta escrita pelo padre Martín Sarmiento, em 1770, referindo-se à Descripcion del Reyno de Galicia, do licenciado Molina, publicada em 1550: “En este mismo tomo, que no suele ser raro, se hallará que Pontevedra era el lugar de Galicia de mas población (…) y que alli se congregaba la Cofradía de mas de dos mil Mareantes, que celebraban la Fiesta del Corpus Santo de Christo, y no de algún Santo particular.” (CORNIDE DE SAAVEDRA, 1774, 137).

O padre Martín Sarmiento, um dos autores Espanhóis mais famosos do séc. XVIII, que escreveu vários textos sobre as actividades marítimas, não sabe que o Corpo Santo era Frei Pedro Gonçalves, e confunde-o com o Corpo de Deus. Esclarece melhor a sua opinião noutra obra: “La gran cofradía se instituyó en

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honor y veneración del cuerpo santo de Cristo Señor Nuestro (…) se estabeleció en el siglo XIII, cuando el Santísimo Sacramento salió en procesión por las cal-les, para celebrar la fiesta del Corpus Christi (…).” (MARTÍN SARMIENTO, 2008, 257). Não foi assim. O que se estabeleceu no séc. XIII foi a festa e procissão do Corpo de Deus (Corpus Christi).

Os pescadores de Lisboa tiveram hospitais do Corpo de Deus que só estão documentados no séc. XV e mudaram depois de nome. Todos os pescadores con-tribuíam para a festa do Corpo de Deus. Do mesmo modo, todos os mareantes de Pontevedra contribuíam para essa festa. A confraria do Corpo de Deus, do-cumentada em 1437, seria organizada dentro da confraria do Corpo Santo, para tratar da participação dos mareantes na festa.

4. As confrarias no regimento de 1563

No regimento de 1563 o rei determina, no essencial, o seguinte: para a eleição dos juízes e mordomos das confrarias do Espírito Santo, do Corpo de Deus e do Corpo Santo, os confrades elejam quatro juízes e dois mordomos, a saber, dois juízes e um mordomo dos mareantes e pescadores do alto, e outros dois juízes e um mordomo dos acedadeiros; os juízes dos acedadeiros decidam os litígios que ocorrerem entre os pescadores. O texto dá origem a confusões sugerindo que haveria três confrarias. Era só uma, principal, de início chamada do Corpo San-to, que tinha um hospital do Espírito Santo, com confraria própria. A confraria do Corpo de Deus seria também organizada dentro da confraria do Corpo Santo para tratar da festa do Corpo de Deus.

Era assim em Pontevedra. A confraria do Corpo de Deus, documentada em 1437, seria organizada dentro da confraria do Corpo Santo. No séc. XVI, mais três confrarias, estas de carácter puramente devoto, nasceram dentro da confraria do Corpo Santo e a ela sempre ligadas: a do Sacramento, a do Bom Jesus e a do Rosário (FILGUEIRA VALVERDE, 1946: 27).

O caso de Sesimbra, em que uma confraria do Corpo Santo tem um hospital com invocação diferente (Espírito Santo) é muito raro. Quase sempre a invoca-ção é a mesma, como sucedeu com os pescadores de Lisboa: confrarias e hospi-tais do Espírito Santo, da Senhora dos Remédios e da Senhora da Graça e Corpo Santo (OLIVEIRA, 1987, 56) (OLIVEIRA, 1904, 246). Também em Setúbal (con-fraria e hospital do Corpo Santo), Lagos (confraria e hospital do Corpo Santo)4 e outros portos. Como já havia junto ao castelo uma albergaria do Espírito San-to, apoiada por uma confraria do Espírito Santo, os pescadores deram o mesmo nome ao hospital que construíram na povoação ribeirinha.

5. A origem das confrarias

A confraria dos pescadores e mareantes de Sesimbra, que está documentada em 1516, com o nome de confraria do Corpo Santo, e se julga datar de finais do

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séc. XV, pode ser muito mais antiga. Em todas as povoações marítimas havia um colectivo de pescadores que defendia os seus interesses profissionais. Em Espanha, dava-se muitas vezes a esse colectivo o nome de “Común.” Em 1238, o rei de Aragão informou o “Común de Pescadores de la Ciudad de Valencia” que havia reservado para a coroa os direitos da pesca na Albufeira; o “Común” era uma espécie de corporação inicial que agrupava todos os pescadores da cidade (GONZÁLEZ ARCE, 2008: 291). Na França mediterrânica, os pescadores agrupa-Na França mediterrânica, os pescadores agrupa-vam-se nas “Prud’homies,” que existem pelo menos há mil anos, só foram reco-nhecidas oficialmente como representativas dos pescadores no séc. XIV e legali-zadas no séc. XVII (FRANGOUDES, 2008: 46).

Em Portugal, as confrarias marítimas, ditas profissionais ou de ofício, como estas do Corpo Santo, são também na origem um colectivo que defen-de os seus interesses profissionais, e só mais tarde se institucionalizam, com estatutos aprovados. Isto entende-se melhor com um exemplo: o de Setúbal.

A generalidade dos autores situa o compromisso original da confraria do Corpo Santo, de Setúbal, no ano de 1340. João Carlos d’Almeida Carvalho sus-tenta que a confraria já existiria em 1274 (BRAGA, 1998: 396).5 Nesse ano de 1274, a 3 de Fevereiro, o rei e a Ordem de Santiago celebraram uma composição e avença, nos termos da qual a Ordem receberia em Setúbal e nas outras suas terras a dízima do peixe descarregado pelos pescadores dessas suas terras, e o rei a dízima do peixe descarregado pelos de fora, nacionais ou estrangeiros; desta dízima o rei daria à Ordem a redízima (MARQUES, 1944: 11). Não é dito no documento mas, possivelmente, assim como o rei dava à Ordem a redízima dos pescadores de fora, a Ordem daria aos de Setúbal a redízima do seu pesca-do, como se sabe que fazia nos séculos seguintes. Em 1341, um ano depois da institucionalização da confraria, segundo a generalidade dos autores, a 26 de Abril, o rei D. Afonso IV confirmou uma composição e avença entre o conce-lho de Setúbal e a Ordem de Santiago. O Mestre da Ordem residia no Convento do Castelo de Alcácer (do Sal), então casa mestral da Ordem. O concelho apre-sentara 15 agravos, entre os quais o seguinte:

Outrossy se agravam o dicto Concelho do dicto Meestre e convento dizendo que he

seu costume que os pescadores da dicta villa ajam a Redizima da dizima do preço dos

pescados que vendem na dicta villa de que o dicto Meestre e convento ha a dizima e que

o dicto Meestre e convento lha nom quer dar e manda e deffende aos seus homens que

o seu ham de veer na dicta villa que lha non dem.’ Resposta do procurador do Mestre:

‘De prazimento do dicto Meestre e convento manda daqui en deante que os pescadores

ajam a dicta Redizima assy como a ante aviam dando o pescado a ssan Juyãao assy

como senpre derom. (CHANC. D. AFONSO IV, III, 1992: 161; MARQUES, 1997:

299-305; LIVRO DOS COPOS, I, 2006, 491; TOMBO DOS BENS EM SETÚBAL,

1611-1612: 146).

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Portanto, em 1341 a Ordem comprometeu-se a voltar a dar aos pescadores a redízima, como já era costume antigo. Mas a expressão Corpo Santo só em 1415 está documentada em Setúbal (FONSECA, 2012: 122). É o hospital do Corpo Santo, que nesse ano solicita ao rei confirmação de uma carta de 11.2.1397 que concedera privilégios aos mareantes de Setúbal.6 A confraria do Corpo Santo, com este nome, só está documentada ainda mais tarde. Portanto, a confraria não existia em 1274, nem teve compromisso em 1340. O que existia era um colecti-vo, “os pescadores” ou “os mareantes” de Setúbal, a quem o rei reconhecia cate-goria jurídica, porque lhe enviava diplomas legislativos e concedia privilégios.

Uma confraria pode viver muito tempo sem estatutos aprovados. Nos últi-mos anos do séc. XV ou nos primeiros do XVI, os pescadores dos acedares de Se-túbal separaram-se da confraria do Corpo Santo e formaram uma confraria pró-pria, a de Santo Estêvão. Nos primeiros anos do séc. XVI já a de Santo Estêvão se sentiu tão importante que suscitou um conflito de precedências. Em 22.6.1510 D. Jorge, Mestre de Santiago, sentenciou um pleito entre os mordomos e con-frades do Corpo Santo e os mordomos e confrades de Santo Estêvão, sobre qual das confrarias teria precedência nas procissões.7 Segundo a visitação efectuada a Setúbal em 1552, pelo prior-mor do convento de Palmela e da Ordem de Santia-go, a confraria do Corpo Santo não tinha compromisso.8 A de Santo Estêvão não tinha compromisso, nem livro de contas, nem livro de confrades.9

Conclusão

Os pescadores de Sesimbra construíram, entre 1488 e 1492, o seu hospital do Espí-rito Santo, com uma capela anexa, e nesse hospital tinham, segundo a Visitação de 1516, uma confraria do Corpo Santo. O regimento de 1563 sugere que haveria três confrarias marítimas: Corpo Santo, Espírito Santo e Corpo de Deus. A do Corpo de Deus não voltou a estar documentada. A confraria dos pescadores e mareantes de Sesimbra é dita, na documentação posterior, indiferentemente, do Corpo Santo ou do Espírito Santo, e acabará por prevalecer a invocação do Espírito Santo.

Para interpretar o regimento de 1563 torna-se necessário recorrer a documen-tos de outras povoações marítimas, com confrarias semelhantes. Estes mostram que havia apenas uma, principal, a do Corpo Santo, que tinha um hospital, do Espírito Santo, com confraria própria. A do Corpo de Deus seria também organi-zada dentro da confraria do Corpo Santo para tratar da festa do Corpo de Deus. A confraria do Corpo Santo tinha um hospital com invocação diferente (Espírito Santo), o que é muito raro; em quase todas as povoações marítimas a invocação era a mesma. Como já havia junto ao castelo uma albergaria do Espírito Santo e uma confraria do Espírito Santo, os pescadores deram o mesmo nome ao seu hospital.

A confraria dos pescadores e mareantes de Sesimbra, que se julga datar de finais do séc. XV, pode ser muito mais antiga. Em todas as povoações marítimas, antes de aparecerem as confrarias legalizadas, com estatutos aprovados, já exis-tia um colectivo, por vezes chamado “Común” em Espanha e “Prud’homie” em

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França, reconhecido oficialmente como representativo dos pescadores, que na prática era uma confraria sem nome. Em Setúbal, o Corpo Santo só está docu-mentado em 1415, mas a confraria, sem nome, já era antiga em 1341. Deve ter sucedido o mesmo em Sesimbra.

Referências e Notas

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· 1 IAN/TT, Conselho da Fazenda, livro n� 216. Foral e regimentos da Tábola de Setúbal, fols. 103 v e ss.

· 2 A Boa Vista incluía o actual Largo do Corpo Santo, o Cata que Farás (Cais do Sodré), São Paulo, Santos,

Santa Catarina, a Esperança, o Mocambo e a actual Madragoa. Alguns documentos, ao pretenderem

abranger todos os pescadores de Lisboa, indicam os de Alfama e os da Boa Vista (Castilho, Júlio de, A

Ribeira de Lisboa, vol. V, 2. Ed., Lisboa, 1968, p. 13).

· 3 “Tesouros do Arquivo Histórico do Patriarcado de Lisboa”, Voz da Verdade, de 18.7.2010. Disponível em

<http://www.vozdaverdade.org/site/index.php?id=1345&cont_=ver2>. Acesso em 28 ago. 2013.

· 4 Paiva, José Pedro (coord.), Portugaliae Monumenta Misericordiarum, vol. 2, Lisboa, União das Misericór-

dias Portuguesas, 2003, p. 158.

· 5 Para Portela, Manuel Maria (Diário Histórico Setubalense, Setúbal, Câmara Municipal de Setúbal, 1915,

p. 2), o ano de 1340 não é o do primeiro compromisso, mas sim o da confirmação desse compromisso.

· 6 Livro dos Copos, vol. I, p. 287-290.

· 7 Livro dos Copos, vol. I, p. 492.

· 8 IAN/TT, Ordem de Santiago e Convento de Palmela, liv. 193, fols. 97-97 v.

· 9 IAN/TT, Ordem de Santiago e Convento de Palmela, liv. 193, fols. 25-26.

Contactar o autor: [email protected]

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Transformações nas armações de pesca de Sesimbra, no século XIXChanges in the fisheries of Sesimbra, during the 19th century

João Augusto AldeiaLicenciado em Economia, Universidade Técnica de Lisboa (Instituto Superior de Economia).

Atualmente é técnico superior (economista) na Câmara Municipal de Sesimbra.

Resumo: As profundas alterações institucionais e legais ocorridas em Portugal ao longo do século XIX, e que configuraram a substituição do Antigo Regime pelo Libe-ralismo, tiveram implicações directas e profundas sobre a actividade económica das pescas em Sesimbra.

Palavras-chave: Pescas. Legislação. Regulação. Liberalismo.

Abstract: The deep institutional and legal changes that occurred in Portugal during the nineteenth century, as the Liberalism was replacing the Ancien Régime, had direct and profound implications on economic activity of fisheries, in Sesimbra.

Keywords: Fisheries. Law. Regulation. Liberalism.

O sistema das armações de pesca – grandes armadilhas de rede colocadas em fundos baixos, próximos de terra – era de uso antigo na vila piscatória de Se-simbra, havendo referências documentais reportadas à década de 1640 (CARVA-LHO, s.d.). A importância que este sistema tinha em Sesimbra, no século XIX, é comprovada pela Memória apresentada pelo Barão de Vila Cova à Academia Real das Ciências de Lisboa, em 1858, onde se lê que “ [...] as sete armações da vila de Sesimbra (que é em grande parte de pescadores) são de muito valor e interes-se, custando cada Armação nada menos de três contos de réis, e o valor das suas pescas tem subido alguns anos a mais de 50 contos de réis”. (VILA COVA, 1858).

Ainda em plena guerra civil, o governo Liberal instalado nos Açores, emitiu um decreto, com data de 6 de Novembro de 1830, tornando livre o exercício da pesca, e isentando-a de “todos os direitos, contribuições, dízimas, gabelas ou im-posições”, e bem assim fazendo cessar a “necessidade que há em alguns portos de ser incorporado em algumas Confrarias, irmandades ou compromissos, para poder ser pescador”. (Chronica Constitucional de Lisboa, 1833a).

A vitória Liberal e a publicação, em Julho de 1833, deste Decreto, deram ori-gem a uma rápida reacção da comunidade sesimbrense, quer através de Auto de Aclamação a D. Maria II, aprovado pela Câmara de Sesimbra, (Chronica Consti-tucional de Lisboa, 1833b) quer através da “deputação”, que a Corporação Maríti-ma da Casa do Espírito Santo da Vila de Sesimbra enviou a Sua Majestade Imperial,

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D. Pedro, e que foi por ele recebida no dia 12 de Agosto de 1833 (Chronica Cons-titucional de Lisboa, 1833c). O conteúdo do documento entregue nessa ocasião foi depois publicado na folha: nele se dá conta das felicitações:

[...] pelas assinaladas Vitórias, com que o Céu tem, por terra e por mar, coroado os herói-

cos esforços de V.M.I. a favor do Trono da Rainha, e das Liberdades da Nação Portugue-

sa. A Corporação Marítima beija com respeito e acatamento a Sagrada Mão de V.M.I.

porque se dignou isentar de todos os tributos, e gabelas as Pescarias de Portugal, e com

esta Sábia e Providente Medida V.M.I. deu a vida a duzentas mil Famílias da nossa pro-

fissão, que nos diversos Portos do Reino sofriam os horrores da fome e da miséria debaixo

das velhas, e ruinosas instituições, as quais, boas há cinco séculos, faziam hoje a desgraça

deste importante Ramo da prosperidade pública, e dos humildes e pacíficos Cidadãos.

Digne-se V.M.I. completar esta grande obra, promovendo os Estabelecimentos de Seca

e Salga, que tornarão desnecessário o pescado estrangeiro. Os Pescadores de Sesimbra

são súbditos fieis da Rainha, amam e respeitam a V.M.I. como Libertador do Trono, e da

Nação, e como Pai da Pátria, e nunca deixarão de dar a V.M.I. provas da sua fidelidade,

e gratidão. (Chronica Constitucional de Lisboa, 1833d).

A isenção de todos os impostos não era coisa de pequena monta. O Padre Marcos Vaz Preto, na qualidade de membro da Câmara dos Deputados, na ses-são de 27 de Maio de 1843, refere-se desta forma à situação existente antes do período Liberal:

O que fez o Augusto Libertador da nossa Pátria? Libertou o pescado, libertou-o de 60

por cento que pagava!... (Sensação) Isto é verdade, eu o assevero, porque é verdade,

60 por cento pagava o pescado!.. E para que todos entendam bem, eu faço a conta, eu

ponho o exemplo. Pescavam os Pescadores por exemplo dez corvinas. Uma era do dízi-

mo, uma dos direitos Reais, uma da saída da Foz, uma da imposição e vinténs do mar,

uma de cestearia, uma de vendage, ficavam quatro! (PRETO, 1843).

Mas já em 1820 um outro autor fundamentara a existência de uma carga fis-cal semelhante, imposta às pescarias de Sesimbra, chegando a atingir os 54% (DULAC, 1820).

O Decreto de 1830 não podia deixar de ter consequências para a regulação da pesca em Sesimbra, e nomeadamente na das armações, sistema dispendioso e que, por esse motivo, poderia atrair investimento de gente exterior ao sector, e até de fora da comunidade local.

Em 22 de Agosto de 1832, foi celebrada em Sesimbra um escritura para regular o funcionamento de uma armação de pesca, montada por iniciativa do mandador--armador Joaquim José Serra, escritura essa subscrita ainda por um outro manda-dor, Joaquim de Oliveira, e por mais trinta e nove pescadores (Arquivo Distrital de

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Setúbal, 1832). Não é provável que o referido Decreto de 6 de Novembro de 1830 tenha tido influência neste contrato, pois fora emitido nos Açores, numa altura em que D. Miguel ainda governava sobre o território continental Português, de-correndo entretanto uma acesa guerra civil nesse mesmo território. Só três dias depois de ter sido “lançado por terra o Colosso do Despotismo, na manhã de 24 de Julho de 1833“ (Chronica Constitucional de Lisboa, 1833e), é que a folha ofi-cial publicou esse Decreto. Ou seja, esta escritura terá sido realizada ainda debai-xo do quadro legal anterior, sendo que todos os intervenientes – mandadores e restantes pescadores – são nela considerados como societários, sendo, fixando-se na mesma escritura o valor de 8 mil reais para a posição de cada um dos sócios.

Uma escritura posterior, com data de 8 de Outubro de 1838, apresenta já uma estrutura muito diferente: são seis mandadores que acordam entre si a forma a lançar as suas armações em seis lugares da costa de Sesimbra: Risco, Baleeira, Burgau, Varanda, Cavalo e Torre (Arquivo Distrital de Setúbal, 1838). Nesta es-critura fazem referência a uma Provisão que obtiveram da Rainha D. Maria II, em resultado do requerimento que lhe tinham dirigido em 30 de Agosto daquele ano. O objectivo era o de que eles, armadores, pudessem ocupar, de futuro, ro-tativamente, os referidos lugares de armação, sem “desavenças entre eles, sobre os lugares [em] que deverão armar as suas ditas Armações”, e também para que “qualquer outra pessoa de fora os não esbulhar destas.”

Numa escritura posterior, de 18 de Janeiro de 1848, são quatro os armado-res que regulam a ocupação de lugares de pesca com armações: Manuel Ramos Pinto, Joaquim Gomes Pólvora, Elisiário Carlos Nunes Pinto e Bernardino José da Silva (Arquivo Distrital de Setúbal, 1848). Esses locais são sete: Cabo d’Ares, Risco, Baleeira, Burgau, Varanda, Cavalo e Torre, e a escritura estipula uma ro-tação para um período de sete anos, entre 1848 e 1854. Sendo apenas quatro os armadores, este esquema de rotação deixa de fora, em cada ano, três dos locais re-feridos, indiciando a hipótese de haver outros armadores a explorar esses locais, ou de os mesmos ficarem vagos. Nesta escritura, tal como na anterior, é evidente o intuito de reserva dos lugares de pesca para aqueles que já em anos anteriores os ocupavam, embora num sistema rotativo.

Levanta-se, nesta escritura, a hipótese de surgir, pela primeira vez, um inves-tidor exterior à comunidade piscatória: o outorgante Bernardino José da Silva, embora residente em Sesimbra, era natural da vila de S. Romão, do distrito de Coimbra (Arquivo Distrital de Setúbal, 1849). Identificado como “proprietário”, Bernardino José da Silva teve, em Sesimbra, uma intensa actividade de compra de propriedades, pelo menos desde Janeiro de 1838.

Em 17 de Junho de 1861 surge algo de novo neste tipo de escrituras de socie-dade para exploração de diversos lugares de armação: António Gomes Pólvora, Manuel Pinto Soares, Manuel Esteves Frade, João Nero de Carvalho, Justiniano José Preto, Julião José de Oliveira e José Filipe Preto, na qualidade de “proprietários, donos e mandadores de armações de pesca nesta costa”, alegam que a “experiên-cia de muitos anos”, lhes tem mostrado que a armação de pesca que se arma na

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Baleeira dá graves prejuízos aos donos, e por isso, “qualquer deles outorgantes, no ano em que por turno lhe pertencer armar a sua armação de pesca na Baleei-ra, não armará nesse dito ano, e deixará a dita armação em terra” (Arquivo Dis-trital de Setúbal, 1861a). Em compensação, esse armador participará das receitas das restantes armações. Ou seja: os armadores reservam o local de pesca, mesmo não fazendo uso dele.

No final do mesmo ano, no dia 3 de Outubro, o mesmo grupo de armadores, mas sem Manuel Esteves Frade, faz uma escritura semelhante, onde a armação referida como não devendo ser armada, passa a ser a de Cabo de Ares (Arquivo Distrital de Setúbal, 1861b). Mais uma vez, parece evidente o intuito de reser-var os tradicionais lugares de pesca de armações para os outorgantes, mesmo quando, por motivos operacionais, não os podiam ocupar na totalidade num determinado ano.

No ano de 1864, na sequência da queixa de um pretendente a um desses lu-gares de pesca por armação, o Governo emitiu a Ordem de 13 de Maio de 1864 ao Governador Civil de Lisboa, no sentido de ser intimada a Câmara de Sesim-bra para alterar as posturas camarárias que impediam o livre acesso de qualquer pessoa à pesca, nos mares da sua zona costeira, com o fundamento de “serem bens nacionais as praias e mares adjacentes, e não logradouro comum privativo dos habitantes da vila, e por isso devia aceitar empresários de fora no sorteio a dois dos seus lugares de pesca, o Cabo de Ares e a Baleeira” (MARTINS, 2000).

A 23 de Junho desse mesmo ano de 1864 foi celebrada uma escritura de so-ciedade colectiva de pescarias na costa de Sesimbra, sendo todos os outorgantes identificados como “marítimos”, à excepção Manuel Caldeira da Costa, expres-samente identificado como “não marítimo” (Arquivo Distrital de Setúbal, 1864). Originário de Arganil, é referenciado em Sesimbra pelo menos desde 1838, em actividades de aquisição de terrenos e casas, e de empréstimo de dinheiro a par-ticulares, sendo nessas escrituras identificado como “negociante” e “proprietário”.

Desta forma ia-se consolidando a abertura da actividade de investidor na pesca, a indivíduos fora da comunidade sesimbrense, e que também não eram de origem pescadores. À medida que cresce o domínio destes investidores exter-nos, dá-se a separação entre as funções de “armador” e “mandador”, passando a actividade destes últimos a ser exercidas no regime de assalariamento, tal como acontecerá aos restantes membros da companha de pesca (MONTEIRO, 1973).

No início da segunda metade do século XIX dá-se também uma importante alteração técnica no sistema de pesca das armações, com o surgimento das deno-minadas armações “com copo à valenciana”, ou simplesmente “à valenciana”, ou ainda “valencianas”.

A armação do sistema anterior, também denominada “armação redonda”, possuía, como estruturas principais, o “rabo”, ou “rabeira” (longa rede vertical, perpendicular à linha de costa, destinada a conduzir o peixe) e o “bucho”, câma-ra onde era conduzido e onde ficava aprisionado, sendo depois, de novo “pesca-do”, com as redes denominadas “malheira” e “sacada” (Figura 1). A armação à

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valenciana, para além da “rabeira” e do “bucho”, passa a ter uma outra câmara contígua, designada “copo”. O peixe aprisionado no bucho é depois “empurra-do” na direcção do copo, sendo este alado até à superfície, pelos pescadores colo-cados a toda a sua volta, a bordo de embarcações (Figura 2).

Desta forma, a colheita do peixe para bordo torna-se muito mais fácil, efi-ciente e rápida. Apesar de terem maiores dimensões, as armações à valenciana exigem companhas de menores dimensões: capturam mais peixe com menos pescadores ao serviço, tornando-se assim mais produtivas. As armações à valen-ciana exigem também investimentos mais avultados, contribuindo para que os armadores-pescadores de origem local sejam gradualmente substituídos pelos armadores capitalistas oriundos de fora da comunidade, e as armações de pesca irão crescer em número, das sete que tradicionalmente eram lançadas na cos-ta de Sesimbra, para vinte e três (BALDAQUE DA SILVA, 1887), ocupando cada nesga de costa.

É também possível assinalar a data de chegada a Sesimbra do novo tipo de armações: em 24 de Dezembro de 1866, treze armadores sesimbrenses celebram com António Ferreira, da cidade de Lagos, “mandador de uma Armação de pesca pelo sistema Valenciano”, um contrato para que arme “a sua Armação pelo sis-tema valenciano na costa desta Vila pelo espaço de seis anos tendo princípio no presente ano”. António Ferreira comprometia-se a, ”durante este contrato e pelo tempo já referido” a não se despedir “nem tão pouco durante o mesmo prazo dos seis anos ensinar nem armar Armação alguma que não seja deles primeiros outorgantes” (Arquivo Distrital de Setúbal, 1866).

A mudança operada nas armações de pesca terá igualmente consequências na vida política de Sesimbra. São estes novos armadores quem passarão a domi-nar a política local, polarizada em torno dos partidos Liberais: os Regeneradores ficarão sob a tutela política da família de Gomes Pólvora, e os Progressistas da família Caldeira da Costa. Esta tutela também se fará através das duas associa-ções recreativas e culturais da vila, que funcionaram igualmente como clubes políticos, e que tinham as respectivas sedes em edifícios de propriedade das fa-mílias Gomes Pólvora (Sociedade Recreio Impressão Musical, cujos sócios foram apodados como Trapilhas) e Caldeira da Costa (Grémio Philarmónico Cezimbrense, cujos sócios foram apodados como Coques) (MARQUES, 2003).

A proletarização dos pescadores das armações – trabalho pouco qualificado, duma massa de gente que residia permanentemente durante a costeira, quer nos Arraiais construídos na vila de Sesimbra e no Portinho da Arrábida, quer nas barracas dos Calhaus pendurados nas arribas da costa sesimbrense – criou condições laborais conflituais que abriram caminho à penetração da ideologia operária socialista, através do Partido Socialista, de Azedo Gnecco, com criação duma Associação de Classe dos Operários Marítimos das Armações de Sesimbra, e a instalação de um período conflitual e grevista que, com altos e baixos, perdu-rou desde 1896 até 1924, datas das duas grandes greves que balizam este conflito (MARTINS 2013). Como consequência secundária, ocorreu também a mudança

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Fig. 1 - armação redonda da costa de Sesimbra. A forma do bucho é aproximadamente

rectangular, mas com dois dos lados ligeiramente arredondados, denominados

os “redondos da Armação”: daí talvez a designação de “armação redonda” 1.

Fig. 2 - armação à valenciana 2.

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do trajar tradicional do pescador sesimbrense, que do fato de barrete de carapinha, camisa de riscado e faixa à cintura, passou para um modelo de vestuário aparenta-do com o dos operários, incluindo o boné ou boina, sinais “progressistas”.

Referências e Notas

· Arquivo Distrital de Setúbal. Notas do Tabelião da freguesia de Santiago – Sesimbra, livro 592, fls. 35-26v, 1832.

· Arquivo Distrital de Setúbal. Notas do Tabelião da freguesia de Santiago – Sesimbra, Lúcio Pimentel, livro

596, fls. 52-53v, 1838.

· Arquivo Distrital de Setúbal. Notas do Tabelião da freguesia de Santiago – Sesimbra, Lúcio Roque José

Vieira Silva, livro 601,1848.

· Arquivo Distrital de Setúbal. Registo paroquial do baptismo do seu filho Gaspar, em 19 de Julho de 1849 –

Livro n. 11, fls. 34, 1849.

· Arquivo Distrital de Setúbal. Notas do Tabelião da freguesia de Santiago – Sesimbra, livro 616, 1861a

· Arquivo Distrital de Setúbal. Notas do Tabelião da freguesia de Santiago – Sesimbra, livro 616, fls. 24-25v, 1861b.

· Arquivo Distrital de Setúbal. Notas do Tabelião da freguesia de Santiago – Sesimbra, livro 621, fls. 15-19v, 1864.

· Arquivo Distrital de Setúbal. Notas do Tabelião da freguesia de Santiago – Sesimbra, livro 624, 1866.

· BALDAQUE DA SILVA, A. A. Enseada, Barra e Porto de Setúbal e Relatório sobre a Pesca Marítima e Fluvial

nesta Localidade, p. 10, 1887.

· CARVALHO, Almeida. Exigências dos Rendeiros sobre os Pescadores, Arquivo Distrital de Setúbal,

Fundo Almeida Carvalho, pasta PT-ADSTB-PSS-APAC-Q-0116, s.d.

· Chronica Constitucional de Lisboa. Decreto de 6 de Novembro de 1830, publicado na edição de 27 de Julho

de 1833 (p. 6-7), 1833a.

· Chronica Constitucional de Lisboa. Edição de 8 de Agosto de 1833, p. 50, 1833b

· Chronica Constitucional de Lisboa. Edição de 14 de Agosto de 1833, p. 79, 1833c.

· Chronica Constitucional de Lisboa. Edição de 15 de Agosto de 1833, p. 86, 1833d.

· Chronica Constitucional de Lisboa. Edição de 27 de Julho de 1833, p. 7. Foi em 24 de Julho de 1833

que Lisboa passou para o domínio dos Liberais, 1833e.

· DULAC, António Maximino. Vozes dos Leais Portugueses, Tomo I, Lisboa, pág. 256. 1820.

· MARQUES, António Reis. O Clube Sesimbrense, Contributos para a sua história, Câmara Municipal de

Sesimbra, 2003.

· MARTINS, Luís. Antecipações de um País – comunicação na Evocação Pública do Comandante António Arthur

Baldaque da Silva, em 16 de Novembro de 2000. Disponível em <http://socgeografia-lisboa.planetaclix.

pt/baldaque.htm>.

· MARTINS, Luís et al. “Mares de Sesimbra – História, Memória e Gestão de uma Frente Marítima“, p.

40-48, 2013.

· MONTEIRO, Rafael. “Esclarecimento da História da Vila Piscatória de Sesimbra”, jornal O Sesimbrense,

edição de 16 de Setembro de 1973, Caderno 2, 1973.

· PRETO, Marcos Vaz. Câmara dos Senhores Deputados da Nação Portuguesa, Actas da sessão de 27 de Maio

de 1843, Vol. 5, p. 398-402, 1843.

· VILA COVA, Barão de. Memória sobre as pescarias nas Costas de Portugal, Biblioteca da Academia de Ci-

ências de Lisboa, Manuscrito 1.069-Azul, 1858.

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· 1 Imagem reproduzida de Barão de Vila Cova, “Linhas, ou Aparelhos, Redes, ou Grandes Artes, Arma-1 Imagem reproduzida de Barão de Vila Cova, “Linhas, ou Aparelhos, Redes, ou Grandes Artes, Arma-Imagem reproduzida de Barão de Vila Cova, “Linhas, ou Aparelhos, Redes, ou Grandes Artes, Arma-

ções”, Manuscrito 1.070-Azul da Biblioteca da Academia de Ciências de Lisboa (VILA COVA, 1858).

· 2 Imagem reproduzida de A. A. Baldaque da Silva, 1892, “Estado Actual das Pescas em Portugal”, p. 225.

(BALDAQUE DA SILVA, 1892: 225).

Contactar o autor: [email protected]

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Uma proposta de desenvolvimento humano assente na Cultura Fluvial AvieiraA proposal of human development based on Avieira Fluvial Culture

João Manuel Monteiro Serrano Doutorando em Ciências da Educação pela Universidade de Évora. Atualmente,

desempenha funções no Instituto Politécnico de Santarém, como coordenador do projeto

de candidatura da cultura Avieira a património nacional e criação de um novo destino

turístico em Portugal, baseado no rio Tejo e na cultura Avieira.

Resumo: No segundo quartel do século XIX, os pescadores Avieiros e as suas famílias procuraram e encontraram no rio Tejo o sustento que o oceano lhes negava no Inverno. Enfrentaram o inimaginável e construíram uma comunidade culturalmente inimitável. Perpetuaram os valores que trouxeram da origem, - a Praia da Vieira de Leiria -, e edifica-ram um património que testemunha a sua luta pela afirmação e pelo reconhecimento, actualmente em processo de candidatura a património nacional imaterial.

Palavras-chave: Património Cultural. Memória. Ensino. Identidade. Sustentabilidade.

Abstract: In the second quarter of the nineteenth century, Avieiros fishermen and their families sought and found in the Tagus river what the ocean denied them in win-ter. Facing the unimaginable, they settle down and built there a cohesive and cultural-ly inimitable community. They perpetuated the values brought from their origins, the beach of Vieira de Leiria – in the central west coast -, and structured a cultural build-ing that witness their struggle for affirmation and recognition, currently running in a research process with the objective of submission for national intangible heritage.

Keywords: Cultural Heritage. Memory. Education. Identity. Sustainability.

Nómadas do rio, como os ciganos na terra, tinham vindo da Praia da Vieira e faziam vida

à parte: chamavam-lhes avieiros.

Nunca ouvira falar de semelhante gente.

(Alves Redol: Avieiros, 1942)

Introdução

Os Avieiros constituem-se como uma comunidade piscatória, cujos ancestrais imigraram da Praia de Vieira de Leiria no segundo quartel do século XIX para

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se fixarem nas margens do rio Tejo. Os primeiros registos conhecidos da sua fixação datam de 1833, e foram recolhidos numa investigação realizada nos arquivos do Hospital da Santa Casa da Misericórdia de Santarém (VÉSTIA, RA-FAEL, 2012). Aí se revelaram algumas das localidades de proveniência dos pri-meiros pescadores: Lavos, Ílhavo, Tocha, Vagos, Ovar, Figueira da Foz, Aveiro e, em grande número, Vieira de Leiria. Aí também se registaram nomes como os Charana, Tocha, Petinga, Lobo, Rabita, Vieira… Estão associados ou à proveniên-cia dos pescadores – Pelarigo, Tocha, Mira, Lameira, Vieira de Leiria – todas po-voações do litoral central português (BRANDÃO, 2002, 2009), ou à identificação com homónimos avieiros que hoje habitam as aldeias e as povoações próximas para onde se deslocaram entretanto – Lobo, Petinga, Cosme, Tomás... Estão hoje estabelecidos ao longo do Tejo, desde a Póvoa de Santa Iria até Abrantes, assim como na foz do Sado, em Alcácer do Sal.

A pesquisa antroponímica em curso (NUNES, 2009) revela as ligações entre homónimos e famílias e define a sua localização ao longo do Tejo e do Sado, onde todos são aparentados.

Por razões culturais, o casamento só era permitido entre os elementos da própria comunidade Avieira. Por isso, ainda hoje aí se apresentam “níveis de solidariedade familiares consideravelmente mais intensos que as populações limítrofes, herdeiros que são de modelos comunitários de mais tardia transfor-mação” (LOPES, SERRANO, 2009).

Estes homens e estas mulheres estão na origem de uma das mais originais afirmações culturais nacionais (GIRÃO, 1951), baseada nos laços familiares e noutros traços culturais relevantes – materiais e imateriais – como o barco, a casa palafítica, as artes de pesca, a gastronomia, a fala, a religiosidade, o traje, o folclore, os aldeamentos e outros, numa densa nuvem que actualmente está na fase de caracterização sistemática, de acordo com os princípios metodológicos da investigação-acção, que permitirão fundamentar a proposta de candidatura da cultura Avieira a património nacional imaterial.

1. O barco Avieiro

O barco foi, como ainda é, o centro da vida Avieira, considerado como o instru-mento decisivo para assegurar a subsistência familiar e comunitária. Os Aviei-ros sempre dependeram de si próprios para construir as suas embarcações. Os barcos oferecidos no dote – considerado obrigatório para o homem – eram cons-truídos pelos pais do noivo, ou por familiares muito próximos. Não raro, eram o único pertence das novas famílias.

Quando chegaram ao Tejo, adaptaram-no para aí habitar permanen-temente. Autores como de Oliveira et al (1988) consideram-no como uma habitação primitiva.

Nele dormiam, à proa, cobertos por um toldo, sempre que precisavam de se deslocar para seguir os cardumes errantes, ou quando ainda não possuíam casa,

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Fig. 1 - O barco como instrumento e centro da vida familiar Avieira.

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ou barraca, própria. A ré era, como ainda hoje é, o local de reparação das redes, funcionando assim como oficina. No centro da embarcação, junto à emparadei-ra, cozinhavam as refeições durante o dia e, à noite, era aí que dormiam os filhos. A divisão destas áreas foi tão bem definida que na actualidade ainda há embarca-ções onde as famílias proprietárias decidiram identificá-las por cores.

Para completar essa característica peculiar, decidiram também identificar a embarcação pelo seu colorido exterior, pintando os barcos de acordo com os gos-tos familiares. Com esse acto de escolha e aplicação de cores se individualizava o reconhecimento por parte das outras famílias da comunidade, e se afirmava uma vontade particular de afirmação, conforme com uma gramática própria, com significados e intencionalidades próprias (SERRANO, 2012) (DIAS, 2013).

Por último, mas não por fim, os Avieiros prestam honras aos seus mor-tos fazendo esculpir embarcações em campas mortuárias. Para Lopes e Ser-rano, representam “nas lápides dos túmulos […] motivos relacionados com a actividade piscatória (barcos, redes, remos, canastras e peixes) com que o defunto trabalhou em vida, sendo o barco […] o símbolo mítico que, mais frequentemente, acompanha o homem para o Além” (LOSPES, SERRANO, 2009) (Figura 2).

2. A casa palafítica

A construção das casas palafíticas ocorreu quando as condições de vida dos Avieiros melhoraram o suficiente para que pudessem comprar materiais leves de construção, nomeadamente madeiras. À semelhança do barco, as casas eram feitas pelos próprios pescadores, com técnicas aprendidas na Praia de Vieira de Leiria. No litoral, as casas – ou palheiros – eram construídas assentes em estaca-ria, no areal. Aqui, o assentamento em pilares permitia evitar que as areias das praias, trazidas pelos ventos, as cobrissem.

Nas margens do Tejo, as casas – aqui chamadas barracas – são também as-sentes em estacas, ou palafitos, mas para evitar que as cheias as destruam. O interior é simples, pequeno e funcional, composto por uma sala – que serve de cozinha – e dois quartos, um para o casal e outro para as crianças. Por cima dos quartos localiza-se uma arrecadação, onde são guardadas redes e instrumentos de trabalho. A arquitectura tem a mesma matriz, no litoral e no Tejo.

O exterior também é muito simples. O acesso ao interior da habitação é garantido por uma escada. As paredes de madeira ganham consistência com a aposição vertical de ripas de madeira, para colmatar as frestas que resultam das imperfeições da madeira (Figura 3).

As tábuas eram adquiridas em serrações e escolhidas as que provinham dos primeiros cortes dos troncos de pinho, trazendo por isso muitas imperfeições. O problema resolvia-se, aplicando as tábuas na construção das paredes e vedando as fendas com a aplicação de ripas de pinho, para tapar as brechas. Tal procedi-mento, comum praticamente a todos os palheiros do litoral central português

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Fig. 2 - Placa mortuária de José Fernandes, pescador

Avieiro, e família. O túmulo está localizado no cemitério

de Alpiarça. Alto-relevo com barco e peixes.

Fig. 3 - Barraca de Escaroupim (Salvaterra de Magos).

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(DE OLIVEIRA, GALHANO, 1964), acabou por conferir um traço e uma beleza inconfundíveis a estas habitações vernaculares.

À semelhança do barco, o exterior é pintado com cores escolhidas pelas famí-lias dos pescadores, que fazem correspondê-las às cores das embarcações, pelas mesmas razões já apontadas, aqui também se necessitando de uma gramática própria para interpretar o significado verdadeiro das escolhas (SERRANO, 2012).

Dos cerca de oitenta assentamentos Avieiros existentes em meados do sécu-lo XX, testemunhados pela investigadora Micaela Soares (2014), subsistem as aldeias Avieiras de Porto da Palha (Azambuja), Palhota (Cartaxo), Escaroupim (Salvaterra de Magos), Caneiras (Santarém), Patacão (Alpiarça) e Azinhaga (Go-legã). Estamos em presença da única cultura palafítica fluvial da Europa, com casas palafíticas aglomeradas em aldeias – muitas delas ainda vivas – aguardan-do restauro e valorização.

3. As artes de pesca

No início do século XIX vieram atraídos pelo chamamento do peixe, especial-mente o sável, com alto valor comercial no mercado de Lisboa (ILLUSTRAÇÃO PORTUGUEZA, 1916), à época e ainda hoje. Vieram na altura em que as espécies piscícolas eram abundantes no rio Tejo, o “jardim de peixe” como então o consi-deravam. Vieram porque o período migratório do sável, e da sua extraordinária abundância, correspondia aos meses de inverno – Janeiro a Março –, na mesma altura em que o mar da Praia da Vieira de Leiria não lhes permitia pescar.

Fugiam à fome e à enorme dureza que o litoral oceânico lhes impunha para praticar a sua forma de pescar no litoral marítimo, de cerco e alamento para terra, ou Arte-Xávega. Assim o praticaram no rio Tejo desde meados do século XIX até meados do século XX. De tal forma foi o sável abundante nos meses de inverno que as formas de pescar eram semelhantes às praticadas no mar, com o mesmo tipo de redes, lançadas por companhas de vários homens e recolhidas a partir das praias, ou mouchões, do Tejo (BENTO, 1987) (Figura 4).

Com o tempo e à medida que foram conhecendo os ecossistemas complexos do rio, e as várias espécies aqui existentes, foram aplicando novas técnicas de captura, de que resultaram redes próprias para cada local. Como consequência, criaram um conjunto de artes distintas, como as de rede, de armadilha e de anzol (BENTO, 1987).

Aparelhos como o tresmalho e os tapa-esteiros; redes envolventes, como a varina, a camaroeira, as armadilhas e a tarrafa, entre muitas outras, fazem parte de um vasto conjunto de instrumentos de trabalho produzidos para garantir a captura das espécies piscícolas existentes. Todos estes instrumentos foram e são produzidos pelos avieiros e pelas suas mulheres. Tornaram-se especialistas – eles e elas – na produção destes ela-borados aparelhos, ao longo de décadas de experiência de pesca no Tejo.

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Fig. 4 - Pesca no Tejo com Arte-Xávega adaptada, em 1941 ou 1942.

Fig. 5 - Casal de Avieiros veteranos no finalde uma pescaria, com uma lampreia.

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4. A gastronomia

Cada Avieiro consegue afirmar-se pelo menos por um traço distintivo em relação ao conjunto dos seus pares. Em cada assentamento procuram apresentar traços específicos distintivos – pessoais ou familiares – dos traços próprios existentes nos outros assentamentos. Isso ajuda a explicar, por exemplo, que cada pescador tenha a sua própria maneira de construir o seu barco ou a sua casa, embora fiéis à matriz originária.

Da mesma forma, em cada aldeamento há uma maneira de construir o alma-naque culinário, baseado na tradição, na maneira de fazer não-escrita e transmi-tida de geração para geração. Os homens cozinham tão bem quanto as mulhe-res, e fazem questão de o manifestar. Com o trabalho de investigação em curso pretende-se atingir o objectivo de editar o Atlas Gastronómico dos Avieiros. Pretende-se que o “receituário culinário seja constituído por receitas do dia-a--dia, em casa e no barco”.

Para os investigadores, com base no levantamento de campo das receitas Avieiras nas diversas zonas será efectuado o levantamento das características nutricionais antes e depois de cozinhado, tendo em conta o modo de preparação e analisada a distribuição de padrões alimentares nas várias zonas Avieiras do Tejo e Sado, ao longo dos tempos (Figura 5).

São muito variadas as receitas recolhidas até à data. Exemplifica-se com a sopa de sável e sável assado na brasa; enguias fritas, enguias de escabeche, caldei-rada de enguias e enguias de fricassé; arroz de sável com ovas de sável e lampreia com arroz de lampreia; sopa de linguados e linguados de fricassé; fataça na telha, jardineira de polvo e caldeirada, de entre outras, inúmeras e saborosas, e em fase de recolha e organização.

É uma gastronomia baseada nos recursos do rio Tejo e dos seus afluen-tes, confeccionada por homens e mulheres ao longo de gerações. Repre-senta algo muito comum às tradições ribeirinhas do Tejo, usos e costumes passados, ligados à terra, ao rio e à natureza, adaptando-se às condições do meio e acrescentando um valor que só as comunidades com fortes tradições culturais possuem.

5. Uma proposta de desenvolvimento humanoassente na cultura fluvial Avieira

A partir do Instituto Politécnico de Santarém, está a construir-se um projecto de desenvolvimento humano, tendo como âncora a candidatura da cultura Avieira a património nacional imaterial, de acordo com quatro condições.

A primeira condição é a do investimento produtivo, obrigatório para criar uma Rota Turística e Cultural com base no Tejo, na cultura Avieira e nos tra-ços atrás evidenciados. A segunda condição é a de se continuar a desenvolver o projecto educativo da cultura Avieira, pelo qual as crianças e as comunida-des educativas ribeirinhas são convidadas a envolver-se no (re)conhecimento

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da cultura Avieira. A terceira condição é que se reúnam as vontades das en-tidades regionais para construir um modelo assente na cooperatividade, que permita aproveitar o projecto de uma forma integrada, com base no restauro das aldeias Avieiras e no seu património. A quarta condição, que se aproxima do conceito de museu vivo, visa mobilizar as comunidades piscatórias ribeiri-nhas do Tejo para dar a conhecer os seus usos, costumes, e aspectos dos seus traços materiais distintivos, interagindo com os visitantes.

O contacto com as memórias vivas Avieiras – com os seus 16 porta-vozes da memória já eleitos nas comunidades, homens e mulheres, patriarcas e matriar-cas, um de cada comunidade –, a aprendizagem que resulta do convívio com os membros desta sociedade matrifocal, os utensílios, as casas palafíticas restau-radas, a mostra do saber-fazer organizado, a gastronomia, os recursos do rio, a paisagem natural – desconhecida e irrepetível – do rio Tejo, são vários dos traços distintivos singulares, no contexto do mosaico cultural Português e Europeu.

Trata-se de um investimento e de uma investigação multidimensional em curso, onde as componentes - material e imaterial - não se dissociam e se inter-penetram, para que as bases estruturais da cultura Avieira, consubstanciadas nas memórias e nos instrumentos, possam dar-se a conhecer ao mundo, sempre com a proximidade e a participação dos membros de todas as comunidades pis-catórias Avieiras, e das suas associações eleitas e representativas.

As memórias, as tradições e os legados materiais agora apresentados, são o cimen-to aglutinador de experiências comunitárias, e devem constituir-se como garantia de evolução, adaptabilidade e perenidade culturais, assim como de sustentabilidade.

Estas interacções entre cultura e património são uma parte integrante dos fundamentos de uma renovada cultura organizacional construída de acordo com os princípios do altruísmo, da filantropia e a da cooperatividade. Daí con-cordarmos com Martins (2009) quando considera que o desenvolvimento hu-mano é indissociável do património e “não é compreensível nem realizável sem o reconhecimento do papel da criação cultural, em ligação estreita com a educa-ção e a formação, com a investigação e a ciência” e com uma renovada atitude.

A investigação actualmente em curso assenta nos pilares apresentados e é realizada por equipas multidisciplinares, coordenadas pelo Instituto Politécni-co de Santarém. Os seus resultados fundamentarão a candidatura a património nacional e apresentarão propostas fundamentadas de intervenção para garantir a valorização desta cultura e a preservação da sua autenticidade. Abrir-se-á a pos-sibilidade de um conjunto de novas investigações, referentes às ligações cultu-rais e patrimoniais com a cultura da Arte-Xávega, do litoral central Português.

Referências

· BENTO, Carlos Lopes. “As tecnologias tradicionais de pesca em Portugal. O caso concreto das

comunidades piscatórias dos Avieiros dos rios Tejo e Sado”. In: Que Tejo, Que Futuro?, Vol. II.,

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Lisboa: Associação dos Amigos do Tejo, p. 153-165, 1987.

· BRANDÃO, Raul. Os Pescadores. Porto: Porto Editora, 2002.

· ______. Praia de Mira: Os Pescadores. [1.ª Edição 1923]. Mira: Edição do Centro de Estudos do Mar e da

Câmara Municipal de Mira, 2009.

· DE OLIVEIRA, Ernesto Veiga, GALHANO, Fernando, PEREIRA, Benjamim. Construções Primitivas em

Portugal. Lisboa: Publicações D. Quixote, 1988.

· ______, GALHANO, Fernando. Palheiros do Litoral Central Português. Lisboa: Instituto de Alta Cultura, 1964.

· DIAS, Fernando Simões. O Barco Avieiro. Lisboa: Âncora Editora. [No prelo], 2013.

· GIRÃO, Amorim. Geografia de Portugal. Porto: Portucalense Editora, 1951.

· ILUSTRAÇÃO PORTUGUEZA. “A Pesca do Sável”. Lisboa, 31 de Janeiro de 1916, II Série, n. 519, p. 158-60, 1916.

· LOPES, Aurélio, SERRANO, João Monteiro. A Reconstrução do Sagrado. Religião Popular nos Avieiros da

Borda d’Água. Lisboa: Âncora Editora, 2009.

· MARTINS, Guilherme de Oliveira. Património, Herança e Memória. A Cultura Como Criação. Lisboa:

Gradiva, 2009.

· NUNES, Hermínio. “Os pescadores da Praia de Mira e os pescadores da Praia da Vieira (Raízes e Relações).”

Mira: Comunicação apresentada nas VII Jornadas Culturais da Gândara. Câmara Municipal de Mira, 2009.

· REDOL, Alves. Aveiros. Mem-Martins, Publicações Europa América, s/d.

· SERRANO, João Monteiro. “A afirmação nacional da cultura Avieira. A bateira como factor identitá-

rio”. In: Soares, Maria Micaela [Coord.]. Boletim Cultural n. 92, p. 89-104. Lisboa: Assembleia Distrital de

Lisboa, 2012.

· SOARES, Maria Micaela. Retalhos da Epopeia Avieira. Lisboa: Âncora Editora. [No prelo], 2013.

· VÉSTIA, Maria de Lurdes, RAFAEL, Emídio. Avieiros, Dores e Maleitas. Lisboa: Âncora Editora, 2012.

Contactar o autor: [email protected]

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“Rio abaixo, rio arriba”. Património e tradição ribeirinha no Meio Norte do Brasil“River below rio arriba”. Heritage and tradition in the Middle Riverside Northern Brazil

Rita de Cássia Moura CarvalhoFotógrafa e documentarista; doutoranda em Belas-Artes

na Universidade de Lisboa; bolsista Capes, Brasil

Resumo: Das diversas populações tradicionais que habitam a região do rio e delta do Parnaíba, no Meio Norte do Brasil, destacamos neste artigo, os pescadores e cons-trutores de embarcações; os catadores de caranguejo, de moluscos, de mariscos; as rendeiras; as benzedeiras; os artesãos em barro, palha e madeira.

Palavras-chave: Museus. Patrimônio. Comunidades. Sustentabilidade.

Abstract: Among the traditional communities living in the region of the river and Parnaíba delta in the Mid-North of Brazil, in this article we highlighted the fisher-men and the traditional boat builders, the crab, mollusks and shellfish pickers, the women weavers (rendeiras) and the spiritual healers (benzedeiras), and the clay, straw and wood artisans.

Keywords: Museums. Heritage. Communities. Sustainability.

Saudade! Olhar de minha mãe rezando,

E o pranto lento deslizando em fio...

Saudade! Amor da minha terra... o rio

Cantigas de águas claras soluçando.

Noite de junho... O cabaré com frio,

ao luar, sobre o arvoredo, piando, piando...

E ao verão as folhas lívidas cantando...

a saudade infeliz de um sol de estio.

Saudade! Asa de dor do pensamento!

Gemidos vão de canaviais ao vento

Ai! Mortalhas de névoas sobre a serra.

Saudade! O Parnaíba – velho monge

As bordas brancas alongando... E ao longe,

O mugido dos bois da minha Terra.

(Saudade. Da Costa e Silva)

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O rio e o delta do Parnaíba, no Meio Norte do Brasil, reúnem riquezas cul-turais e naturais singulares. O rio, divisa natural entre os estados do Piauí e do Maranhão, desde a sua nascente na Chapada das Mangabeiras ao encontro com o oceano Atlântico, abriga em suas margens populações que guardam uma di-versidade de saberes e fazeres ancestrais.

Dentre essas populações destacam-se os vareiros, em número significativo até a década de 1970, presença obrigatória na região, homens que em balsas de buriti trans-portam carvão vegetal, uma forma tradicional de sobrevivência até os dias atuais.

As balsas de buriti continuam a ser usadas; a economia desse meio de trans-porte é evidente, a balsa pode ser desmanchada e os talos vendidos para cerca-mentos que duram de três a quatro anos.

Era comum ainda as pessoas descerem nos balseiros as águas vermelhas do rio até a capital do Piauí, Teresina, para comprarem produtos para o abas-tecimento de mercados locais. As mercadorias chegavam ao seu destino “rio arriba”, meses depois, transportadas nas grandes barcas arrastadas por grossos cabos de fibra de juta, pelos vapores ou motores que faziam a navegação até Santa Filomena ou nos pitorescos botes, embarcações de casco de madeira, de porte maior que o da canoa tradicional, com uma cobertura de palha de ba-buçeiro, provido de um leme de madeira de popa, cuja força motriz era a do braço humano. A musculatura do peito desempenhava a maior função, servia de apoio a uma extremidade do varão pesado para empurrar a embarcação “rio abaixo ou rio arriba”.

“Gentes dos rios”, eternizados na vida ribeirinha por sua força e altivez, os va-reiros compunham um importante elemento que viabilizava a navegação do rio Parnaíba, primordialmente, nas áreas de maiores dificuldades, da região do Alto Parnaíba. Os vareiros, figuras emblemáticas nas águas do rio Parnaíba, represen-tam a força motriz de comunicação e desenvolvimento a partir da força física. É preciso destacar que navegavam nas balsas tradicionais de talos de buriti. Com suas braçadas, no vai e vem das águas do Parnaíba, desempenham um papel esta-fante, chegam ao limites físicos do corpo humano. A navegação empreendida por esses homens foi de suma importância para o desenvolvimento do Piauí.

O articulista do Almanaque da Parnaíba, edição de 1946, destaca a figura des-ses trabalhadores:

[...] Os canoeiros que passavam, com os caboclos que desciam nas balsas, até o porto de Siá

Ana. [...] A ‘Paco- Paco’ ia avançando. [...] O chefe da família andava por aí, rio acima, com

uma turma de varejo, empurrando com o peito calejado e forte alguma barca carregada de

babaçu ou de couro. A vara comprida e grossa, uma ponta mergulhada na água até tocar

o leito do rio e a outra calçada no peito, noites e noites, dias e dias. Um dia aquela vara

quebraria e ele cairia estrepado sobre a ponta inferior, em estilhaços, que se lhe encravaria

no ventre, rasgando-lhe as entranhas. Ou apanharia empaludismo e iria definhando, até

morrer no fundo duma rede. E, então, o filho tomaria o seu lugar e continuaria o mesmo

trabalho que fora do pai de seu avô. E o tempo seguiria.

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Fig. 1 - Vareiro – embracação tradicional – rio Parnaíba. Acervo fotográfico

do Arquivo Público do Estado do Piauí.

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Os termos que designam os navegadores são muito diversos, desde “vareiro ou ‘porco d’água’” à simplesmente as “gentes do rio”.

As balsas [...] não obedecem a nenhum regulamento marítimo ou fluvial e seus dois únicos

tripulantes, o mestre e o contra-mestre galgam estes postos sem a burocracia das cader-

netas, exames, vistos, impressões digitais e penalidades por que passam os porco-d’água

da Capitania, como são tratados, entre si, os nautas do Parnaíba; são eles o produto da

experiência de longos anos de prática, que fazem desde pequenos em companhia do pai, a

quem, mais tarde, há de substituir. São, assim, os balseiros do alto Parnaíba uma espécie de

linhagem de modestos navegadores fluviais, a quem o rio, nas suas voltas bruscas, nas suas

cachoeiras inquietas, no seu leito, ora raso, ora pedregudo ou nos seus remansos traiçoeiros

ou, ainda, nos grandes perigos das cheias, nenhuma dificuldade lhes apresenta. E é bem

certo, como dizem: ‘filho de mestre, bom mestre será’. [Almanaque da Parnaíba, 1946]

Uma das formas tradicionais de navegar o rio Parnaíba era por meio da for-ça de trabalho dos vareiros, que usavam a vara e o cabo de espiada de manilha, atados ao tronco de árvores robustas crescidas ao longo das margens do rio, ser-vindo, assim, de força auxiliar no seguimento da embarcação nos locais de cor-redeiras mais fortes. Também a vela inflada de meia lona ou de algodãozinho recozido, em tintura mangue, tinha a sua utilidade, quando a viração soprava mais forte no verão, embora com pouca influência.

É, portanto, da rica forma de viver o rio Parnaíba que destacamos a ação dos vareiros, em cortar as suas águas de forma arriscada e diversa, estabelecendo so-ciabilidades com as populações ribeirinhas que conheciam a cada parada.

O interesse pela cultura fluvial e marítima no Piauí teve início em pes-quisa etnográfica que realizamos na região do delta do Parnaíba desde 20091. Identificamos e registramos a vida cotidiana de pescadores, catadores de ca-ranguejo, rendeiras, construtores de embarcações tradicionais, etc., respon-sáveis por memórias ancestrais de ofícios e saberes ligados ao rio e ao mar. O propósito da pesquisa/ação, ainda em andamento, é estudar a constituição com e para as comunidades de museus de territórios, nos quais os saberes e fazeres daqueles trabalhadores estejam representados; museus nos quais haja a gestão do patrimônio natural e cultural pelas pessoas que habitam os territórios, que vivem experiências pessoais únicas, subjetivas; museus que possam se configurar em espaços de trocas, de reflexões sobre a gestão sustentável dos patrimônios, o que a equipe que realiza o trabalho com as co-munidades compreende como função social desse tipo de museus, que igual-mente devem primar pela educação patrimonial, capacitação e formação das comunidades, para uma museologia que se revele transformadora, em que se valorize a cultura e os saberes, comprometida com uma missão de desenvol-vimento das comunidades. (VARINE, 2012)

No delta do Parnaíba há muitos artesãos, escultores em madeira, argila e palha,

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Fig. 2 - Rendeira em sua oficina. Ilha Grande de Santa Isabel, jul., 2009.

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Fig. 3 - Construtor de embarcações tradicionais em estaleiro

às margens do rio Igaraçu. Porto dos Tatus, Ilha Grande de Santa Isabel. Jan. 2010.

Fig. 4 - Pescador tece sua rede [caçoeira]. Ilha das Canárias, delta do Parnaíba. Jan., 2010.

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Fig. 5 - Fateixa, âncora artesanal usada pelos pescadores nas embarcações tradicionais. É confeccionada

com três estacas de madeira na vertical e três na horizontal formando ganchos. No centro é colocada uma pedra

grande e pesada, para que o instrumento não afunde e ancore a embarcação. É usada pelos habitandes

do rio e delta do Parnaíba. Cajueiro da Praia, out. 2009.

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Fig. 6 - Balança de Pedra usada para quantificar o pescado. Confeccionada com uma estaca horizontal

[1m30cm], cujas extremidades sustentam cordas que seguram as tábuas em formato quadrangular

de aproximadamente 50cm. Usam-se pedras de diversos tamanhos que servem para mensurar em quilogramas

o pescado. O instrumento é afixado geralmente em uma árvores, quase sempre o cajueiro, abundante

em toda a região do rio e delta. Ilha das Canárias, ago., 2009.

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Fig. 7 - Catadores de caranguejos retornam às suas casa, atracam

no Porto dos Tatus, depois de mais um dia de trabalho no delta do Parnaíba.

Alguns voltam das plantações de arroz. Jan. 2010.

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Fig. 8 - Paisagem de Carnaubais. Vegetação típica do Piauí. No apogeu portuário do território foi artigo

de exportação, sobretudo a cera de carnaúba. Pode ser encontrada em abundância e é usada no artesanato local:

vassouras, redes, cordas, etc. Sua madeira é usada na edificação das casas, assim como as palhas são usadas

para a cobertura das habitações. Ilha Grande de Santa Isabel, jan. 2010.

rendeiras, artífices da cultura regional, uma arte que representa o cotidiano de agricultores, pescadores, barqueiros, rendeiras, etc. (PINHEIRO; MOURA, 2009)

Os estudos que realizamos com equipe inter e multidisciplinar nos permi-tem acreditar ser possível a criação na região do delta do Parnaíba de uma escola de artes e ofícios, com estaleiro escola e outras oficinas que incentivem o apren-dizado de artes seculares em um diálogo com artistas, historiadores, arquitetos, designers; oficinas de modelismo, desenho, escultura, renda, apetrechos de pes-ca, artefatos como landuá, jequi, fateixa, caçoeira, lemes, etc.

Entendemos o rio e delta do Parnaíba como patrimônios cultural e natural brasileiros; é preciso estimular pesquisas sobre as relações que as populações ribeirinhas e praieiras tradicionais e os habitantes das cidades estabelecem com esse patrimônio. O rio e o delta ainda estão presentes no dia a dia da população, que os utilizam para atividades fundamentais do cotidiano. Esse fato diferen-cia cidades ribeirinhas como Parnaíba de inúmeras outras com características semelhantes, onde, usualmente, as áreas ribeirinhas são transformadas em de-pósitos de lixo e em pontos de despejo de esgotamento sanitário, além de serem ocupadas por meio de assentamentos espontâneos.

Atividades como pesca artesanal, agricultura familiar, pecuária extensiva, artesanato e navegação estão presentes no dia a dia das populações, que demons-tram uma íntima relação com o meio ambiente.

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As embarcações cortam rio e mar com produtos naturais que são enviados para outros estados ou para os mercados de cidades próximas, como Parnaíba. Peixes, produtos extraídos ou cultivados diariamente pelas populações que habitam o rio e delta do Parnaíba. Essas populações vivem harmonicamente com a natureza. Pimentão, maxixe, quiabo, abóbora, pimenta, feijão, maracu-já, manga, siriguela são alguns dos frutos e vegetais encontrados na região. São usados na alimentação pelas populações ribeirinhas e transportados e vendidos em localidades próximas. Com esses frutos são feitos sucos, doces, alguns deles ainda são usados para temperar, dar mais sabor a peixes, mariscos, crustáceos e pescados diversos, encontrados no rio e delta. Palmeiras de babaçu, dendê e côco são recorrentes na região. O côco d’água é encontrado em abundância e usado no preparo dos pescados.

Essas atividades e produtos garantem a sobrevivência de parte significativa das comunidades, que utiliza os recursos de maneira sustentável, o que não eli-mina a fragilidade das relações homem-meio ambiente, justificada pelo crescente desenvolvimento urbano e turístico, que tem ocorrido de forma desordenada na região. Notamos uma tendência cada vez maior de ocupação das margens do rio e delta, mas observamos que a população ribeirinha não representa uma ameaça aos recursos naturais, mas que a exploração turística pode, em poucos anos, com-prometer a qualidade do meio ambiente e sobrevivência das populações locais.

Referências e Notas

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Medianiz, 2012.

· 1 A pesquisa tem natureza colaborativa, dela participam instituições governamentais e não-gover-

namentais: UFPI, Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, ICMBio, Comissão Ilha Ativa

(CIA), dentre outras.

Contactar a autora: [email protected]

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Os Espelhos de uma Vila de PescadoresThe Mirrors of a Fishing Village

Luís MartinsTese de Dissertação em Antropologia Social, I.S.C.T.E. (13 de Fevereiro de 2003). Exposi-

ção “Pescas, a Natureza Desafiada”, Centro de Artes de Sines (Maio 2008). Estudo das co-

lecções de objectos de cultura piscatória do Museu Nacional de Etnologia (recolhidos nos

anos 1960 e 1970) e Recolha e Documentação de artes de pesca para a constituição de

uma colecção representativa das culturas piscatórias portuguesas para o Museu Nacional

de Etnologia (2002 – 2006). Participação em projecto europeu de investigação de Culturas

Piscatórias nas costas portuguesas – Celebração da Cultura Costeira (2007-2011).

João Augusto AldeiaLicenciado em Economia, Universidade Técnica de Lisboa (Instituto Superior de Economia).

Atualmente é técnico superior (economista) na Câmara Municipal de Sesimbra.

Resumo: Este paper apresenta o embrião de um projecto agora iniciado de inventa-riação das práticas fotográfica e dos fotográfos que trabalharam na vila e, em espe-cial, fotografaram as actividades que envolvem a comunidade piscatória.

Palavras-chave: Fotografia. Fotógrafo. Documento. Classificação.

Abstract : This paper presents the task, now at its beginning, of inventory of photo-graphers that worked in the village of Sesimbra and, in particular, that photographed the local fishing community.

Keywords: Photography. Photographer. Document. Classification.

1. Coleções fotográficas particulares: uma proposta de estudo e classificação

Parte do encantamento que a fotografia exerce em nós resulta do facto de nos ajudar a construir uma percepção da passagem do tempo. Isolada, em caixas e álbuns de família, numa sequência de registos administrativos de carreira, as marcas físicas visíveis e subcutâneas deslocam-se com o indivíduo, ao longo da vida, como traços distintivos de carácter, elementos de psicologia e de presságio.

Ganhou rapidamente espaço logo após 1838, o ano da sua invenção, concor-rendo para a alteração de hábitos de cientistas, viajantes e artistas, e do cidadão comum próximo do final deste século: nas ciências expunha a existência do local, das pessoas, do ambiente, dos objectos e modos-de-fazer, transmitindo um sen-timento caro às humanidades e aos estudos sociais, o da relação e partilha com os indivíduos e o grupo analisados; no contexto judiciário e policial, revelou-se

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um dispositivo adequado para captar os indícios da realidade, sendo utilizada ao lado da antropometria, da frenologia, das impressões digitais; na investigação académica e jornalística, com o nascimento do documentário fotográfico, colocou o uso de uma tecnologia, talvez pela primeira vez na história da humanidade, o aparelho fotográfico, perante os valores de verdade e integridade; quando nasce-ram meios mais eficazes para interrogar a sociedade, como a reportagem vídeo e televisiva, os seus utilizadores mais talentosos libertaram-na do estatuto de referência à realidade e desenvolveram abordagens criativas e dialécticas dos fe-nómenos do mundo; por fim, os trabalhos dos fotógrafos com estabelecimento aberto, dos amadores, dos artistas, dos artífices da foto “à la minuta”, e, sobretudo, o emprego dos aparelhos portáteis pela pessoa comum – surgem no mercado em 1888, diversificando motivos e interesses –, deram ensejo a novos convívios, parti-lha de emoções, momentos de introspecção e subjectividade, que Pierre Bourdieu (1965a;1965b) relacionaria, no que diz respeito aos usos e significações da fotogra-fia nas classes populares, aos valores transmitidos no interior destas, onde o acto de fotografar é motivado pelos assuntos que se registam e que celebram a unidade do grupo, as férias, convívios de amigos e familiares.

Com base na bibliografia consultada, estabelecemos como hipótese de tra-balho para a análise e classificação de colecções particulares de fotografias um sistema de treze tópicos: i) datar ou estimar as datas em que as fotos foram tira-das; ii) tendo em conta o conjunto de fotos, quais objectivos e ideias do autor; iii) quais os princípios e pontos de vista que o orientam; iv) que temas predominam e quais são as possibilidades de ordenação e classificação (incluindo o registo dos sistemas sob que se encontram distribuídas se o autor ou proprietário já teve essa iniciativa); v) diagnosticar os vestígios que permitem reflectir acerca das preferências temáticas do autor (pessoas, monumentos, situações, etc.); vi) que intenções é possível descodificar, pelo menos nas fotos ou conjuntos mais im-portantes; vii) que potencial informativo possuem; viii) identificar os textos que legendam e informam as imagens; ix) identificar os factores técnicos perceptí-veis, incluindo a evolução da carreira do fotógrafo; x) quais são as influências técnicas, literárias e teóricas que podemos determinar; xi) teorias e convenções que foram seguidas; xii) possibilidades de comparação com outros conjuntos e fotógrafos; xiii) localização de fotos que pertencem a este autor ou estes autores e presença delas em galerias, jornais ou outros lugares de divulgação.

Esta proposta, que é longa, detalhada e, com alguns pontos, certamente, coincidentes, levanta algumas questões. Gostaríamos de referir duas, que nos parecem das mais pertinentes: a relação da imagem fotográfica à palavra, à escri-ta, ao texto; e a sua relação ao movimento, ao espaço e ao tempo.

2. A fotografia, a palavra, a legenda e o texto

A relação da imagem fotográfica à palavra, à legenda, ao texto, que explicitam, sugerem ou condicionam, os sentidos possíveis, pode pensar-se, do nosso ponto

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de vista, entre dois extremos: a legenda artística ou poética, onde as palavras jogam com múltiplas hipóteses de significado, como fez o fotógrafo Vladimir Kupreyanov, que legendou dezesseis fotografias de telefonistas, para destacar o que nelas seria essencial, com versos do poeta Alexander Pushkin; no extremo oposto podemos pensar na legenda com uma informação breve, genérica ou de-talhada, que é a mais vulgar, e sobre a qual se levantam conjecturas sobre como condicionam a interpretação da fotografia.

Parece-nos que a escrita exerce em ambos os casos uma certa hegemonia re-lativamente à imagem: por sentirmos necessidade de identificar o que estamos a ver, e porque nos estádios mais abstractos da reflexão – estamos a pensar nas ci-ências, na passagem da dimensão empírica à dedutiva –, a fotografia desaparece.

Constituem uma excepção os estudos dos fenómenos da comunicação não--verbal – olhares, expressões, mímicas, gestos, distâncias sociais, movimentos individuais e colectivos –, onde a articulação das linguagens científica e artística é feita com base em procedimentos criativos.

Supomos, porém, que este método está longe de autonomizar a imagem face à palavra e à escrita – os dados representados esclarecem e são esclarecidos por textos –, e reflecte especialmente a eventualidade de se obter melhores depoi-mentos em contexto de diálogo mais fácil: o artesão, que no essencial comunica por meios visuais e tácteis, explica mais facilmente os movimentos e os modos--de-fazer com o apoio da foto.

3. A fotografia, o movimento, o tempo e o espaço

Se a fotografia é uma imagem privada de som, da palavra e da escrita, faltam-lhe também as propriedades do movimento: a deslocação dos objectos e pessoas de um lugar para outro, a percepção dialética do espaço, a noção de tempo ou de duração.

A mobilidade de objectos e pessoas possui uma natureza cultural específica que a simulação do movimento feita com a ajuda de uma câmara vídeo, que se desloca sobre a imagem, é um artifício insuficiente para e assinalar e fornecer um suporte de exame. E também em nada contribui para pensarmos sistemas de apontamento ou notação nesta área de investigação.

Há uma interpretação pessoal implícita no acto de fotografar, que confir-ma o facto dos intentos da fotografia, ou de uma pesquisa, estarem para lá do desejo de tirar a foto ou de escrever sobre a realidade – isto é, do lapso de tem-po que é pressionar o obturador, ou do tempo mais longo e ponderado que é passar à escrita os pensamentos –, como podemos perceber pelas sugestões de movimento subjacentes ao estilo de cada autor: as personagens de grande realismo, mas rígidas e austeras, de Auguste Sander (1876-1964), as embebidas em desígnios estéticos de Walker Evans (1903-1975), as figuras humanizadas e em contexto de trabalho de José Arsénio (1957-), e os cenários de trabalhos colectivos mergulhados em linhas geométricas de Artur Pastor (1922-1999) e de Américo Ribeiro (1906-1992).

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Na nossa proposta de sistematização, e na hipótese de trabalho que lhe está subjacente, o que está em causa é menos se a realidade está correctamente repre-sentada, do que o modo como cada fotógrafo estruturou o seu olhar e como cada foto é construída. Sabemos que toda a fotografia tem uma “arquitectura”: a foto publicitária destaca as características sociais dos objectos, mas oculta o carácter social dos trabalhos que os produzem, induzindo a ideia que trabalho e produto se encontram separados; a foto colonial, complexa pela multiplicidade de cir-cunstâncias, exalta a alteridade de costumes e o exotismo, assentando em grande medida numa percepção da realidade que nega aos povos alógenos uma história.

4. Fotógrafos de Sesimbra – temas e orientações dominantes

Neste título, procuramos identificar de forma resumida alguns dos nomes de referência entre os fotógrafos que, em Sesimbra, captaram imagens da comu-nidade piscatória e das suas actividades. Falta neste inventátrio um registo das colecções particulares, bem como dos particulares possuidores de conjuntos de fotografias de interesse patrimonial, cujas investigações ainda não iniciámos.

A maioria da fotografia da pesca de Sesimbra é da autoria dos fotógrafos de três grandes casas comerciais. A que julgamos ser a mais antiga, a Foto Lealdade, de Luís Rocha – que, desde 1928, teve em Sesimbra uma sucursal do estabeleci-mento de Lisboa – à qual se seguiram, por esta ordem, a de Idaleciano Cabecinha (Foto Cabecinha) e a de Américo Ribeiro (Foto Ameri). O espólio desses dois es-tabelecimentos foi herdado pelo fotógrafo Valdemar Capítulo.

O periódico O Sesimbrense publicou entre 2011 e 2012 uma série de artigos com pequenas biografias de fotógrafos que foram registando as actividades na vila, e que achamos oportuno aqui retomar: Denyse Gérin-Lajoie, António Pas-saporte, Valdemar Capítulo, José Arsénio, Artur Pastor, Roque de Arriaga, Amé-rico Augusto Ribeiro, Eliot Elisofon e Leonore Mau. Tratam-se de praticantes com origens, motivações e experiências muito diversas, como podemos facil-mente perceber numa rápida passagem pelos artigos.

Denyse Gérin-Lajoie nasceu no Canadá e desenvolveu uma intensa actividade de reconhecimento da identidade piscatória de Sesimbra a partir dos anos 1980, quando a facilidade de comunicação com os habitantes da vila, em especial com a comunidade piscatória, a motivou a fazer várias reportagens, das quais destaca-mos os trabalhos sobre os últimos anos da frota de pesca do anzol em Marrocos.

António Pedro Passaporte, natural de Évora, reuniu uma das mais notáveis colecções de fotografias de Sesimbra, publicada em Bilhetes postais a preto-e--branco, cuja produção iniciou em 1940, com o selo das edições “Passaporte-Lo-ty”. Rigoroso, ele próprio fazia os trabalhos de revelação e lavagem dos clichés, essenciais para a qualidade e fixação das imagens, repetindo, por exemplo, a la-vagem final em água bastantes vezes, que, por isso, ainda hoje mantêm o preto--e-branco original. A sua colecção de postais, que se encontra numerada, pelo menos até ao número 116, foi distribuída em Sesimbra por Fernando Figueiredo

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Lopes, que editou também alguns destes bilhetes-postais a preto-e-branco. Valdemar Capítulo é natural de Sesimbra, e aos 19 anos de idade começou

a trabalhar para a casa de Idaleciano Cabecinha (revelando rolos) e para outras casas comerciais onde se fazia a entrega de rolos. Adquiriu em 1974, por trespas-se, o estabelecimento que este fotógrafo tinha no Largo da Marinha, e posterior-mente comprou também a casa fotográfica de Américo Ribeiro, na rua Cândido dos Reis. Ficou assim com o espólio de ambos os fotógrafos, que tem vindo a divulgar desde então, ao mesmo tempo que os ofereceu à Câmara Municipal. As reportagens e os casamentos dominaram a sua actividade durante muitos anos, mas manteve sempre um olhar atento para o quotidiano da vila.

José Arsénio nasceu também em Sesimbra, em 1957, no seio de uma família pis-catória, e dedica-se à prática fotográfica nos tempos livres. Teve formação em foto-grafia em 1980, pela Associação Portuguesa de Arte Fotográfica, e tem desenvolvido a sua actividade como fotógrafo através da realização de exposições e da publicação de livros temáticos, no âmbito do património natural, arquitectónico e etnográfico.

Artur Pastor nasceu em Alter do Chão em 1922, e a sua actividade de fotógra-fo foi exercida em paralelo com a profissão, a de regente agrícola. Adivinhamos o seu dinamismo pelo número de exposições e trabalhos publicados, postais, selos e cartazes, incluindo colaborações em jornais do Sul do País com artigos de opinião e de cariz literário. Como Engenheiro Técnico Agrário, foi responsável pela obtenção e organização das mais de 10 mil fotos que compõem a Fototeca da Direcção Geral dos Ser viços Agrícolas. Artur Pastor fotografou Sesimbra em duas ocasiões, em 1957 e em 1961, retendo informações de grande valor para a vila e as suas gentes, que terão escapado a outros fotógrafos. De entre os temas mais fotografados podemos indicar a Praia, em especial a Lota, o interior da po-voação, o trabalho nas ruas estreitas e no mar.

Roque de Arriaga, filho de Manuel de Arriaga, doutrinário do republicanismo português e primeiro presidente da República Portuguesa, terá passado fugazmente pela vila, onde documentou o levante de uma armação de pesca da costa de Sesim-bra – possivelmente, a armação Cova, da empresa Loureiro & Filhos – e pormenores do levantar do copo da armação, acompanhado da batida das águas com remos.

Américo Augusto Ribeiro (1906-1992) nasceu em Setúbal, onde expôs pela primeira vez (estúdio fotográfico de Alberto Sartoris, 1922). Desenvolveu tam-bém actividade comercial, com um estúdio nesta cidade (Foto Cetóbriga: 1936-1984) e outro em Sesimbra, a Foto Améri, na rua Cândido dos Reis, estabeleci-mento que ainda existe, com a designação de Foto Manouche, gerido pela fo-tógrafa sesimbrense Rosa Marques. O essencial do seu espólio relativo à vila, encontra-se entregue ao Arquivo Municipal.

Eliot Elisofon, natural de Nova Iorque, fotojornalista da revista LIFE (1942-1964), ao serviço da qual fez em Portugal, em Setembro de 1948, um trabalho de registo, tendo então publicado uma fotografia sob o título “Velho pescador usando um barrete de lã” (um velho marítimo sentado no muro frente à So ciedade Musical Sesimbrense).

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Leonore Mau, de origem alemã, produziu, juntamente com o marido, o es-critor Hubert Fichte, um filme de 9 minutos em Sesimbra intitulado “A lota e o peixe” (“Der Fischmarkt und die Fische”), mostrando o quotidiano e a vida na aldeia piscatória de Sesimbra. Com este filme foi apresentada uma exposição de fotografias de Leonore Mau, que destacavam os padrões geométricos da activida-de, como os peixes espalhados na areia para a venda em leilão.

5. Conclusão

Os trabalhos destes fotógrafos documentam a vila, em especial a comunidade piscatória, introduzindo uma estrutura narrativa distinta da escrita e de outras modalidades de representação, como a pintura ou a literatura: nas suas imagens, mais do que o talento dos autores, ou em simultâneo com este, perdura a identi-dade da vila em fases da sua história, a identidade dos pescadores que o aparelho fotográfico captou.

Como instrumento de inventariação do património, enquanto elemento do arquivo e do museu, estes fotógrafos e as suas fotografias, assim como as das co-lecções particulares dos residentes da vila, parece colocar-se no intervalo entre estes dois pólos: o da absoluta informação referida à realidade dos pescadores e das suas áreas; e o da absoluta ou quase absoluta informação referida à coerência intrínseca dos elementos figurados. É nesta base que concebemos a proposta de classificação exposta no início deste artigo. Classificada, a imagem fotográfica, protagoniza um tipo de conhecimento distinto daquele que se gera no quotidia-no mais comum e em interacção com outros discursos: se as suas possibilidades de sentido são separadas dos contextos de uso, ganha na capacidade de docu-mentar e criar saber.

Referências

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Maio de 2011; O Sesimbrense, Edição 1151 de 30 de Junho de 2011; O Sesimbrense, Edição 1152 de 25 de

Julho de 2011; O Sesimbrense, Edição 1156 de 24 de Novembro de 2011; O Sesimbrense, Edição 1158 de 27

de Janeiro de 2012; O Sesimbrense, Edição 1159 de 29 de Fevereiro de 2012; O Sesimbrense, Edição 1161 de

30 de Abril de 2012; O Sesimbrense, Edição 1165 de 1 de Setembro de 2012; O Sesimbrense, Edição 1167 de

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Contactar os autores: [email protected] · [email protected]

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Caracterização do ambiente natural e cultural dos catadores de caranguejo da RESEX Delta do Parnaíba1

Characterizing and defining the environment and the cultural life style of the crab-pickers within the Delta of Parnaíba RESEX

Ana Helena Mendes LustosaNúcleo de Educação Ambiental (NEA). Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos

Naturais Renováveis (IBAMA) Piauí, Brasil

A primeira sociedade com que travei conhecimento foi a sociedade dos caranguejos. Depois,

a dos homens habitantes dos mangues, irmãos de leite dos caranguejos. Só muito depois é

que vim a conhecer a outra sociedade dos homens – a grande sociedade. E devo dizer com

toda a franqueza que, de tudo o que vi e aprendi na vida, observando estes vários tipos de

sociedade, fui levado a reservar, até hoje, a maior parcela de minha ternura para a socieda-

de dos mangues – a sociedade dos caranguejos e a dos homens, seus irmãos de leite, ambos

filhos da lama. (Josué de Castro)

Resumo: Neste artigo, analisamos a cultura e as práticas produtivas dos catado-res de caranguejo da Reserva Extrativista (RESEX) Marinha Delta do Parnaíba, Brasil; na investigação, identificamos as potencialidades das atividades produ-tivas e as mudanças sociais em curso, assim como as repercussões no modus vi-vendi das populações tradicionais, fruto de embates no contexto de uma ordem global racionalizadora.

Palavras-chave: Sustentabilidade Socioambiental. Gestão Ambiental. Educação Ambiental.

Abstract: This article analyzes the culture and the practices of productivity of the crab-pickers in the Extrativist Reserve of Marinha Delta do Parnaiba (RESEX), Brazil. As a result of this investigation on this reserve, there were indentified the potentiality of its practice of productivity and its social changes that are in course, as well as the repercussions on the life style (modus vivendi) of this traditional population, that we consider as a result of the struggle within the globalization.

Keywords: Environmental Sustainability. Environment Management. Educational Environment.

1. Os manguezais do Delta do Parnaíba

A palavra manguezal é um “[…] substantivo coletivo que designa um ecossiste-ma formado por uma associação muito especial de animais e plantas que vivem

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na faixa entre-marés das costas tropicais baixas, ao longo de estuários, deltas, águas salobras interiores, lagoas e lagunas” (VANUCCI, 1999: 25).

O Delta do Parnaíba é uma formação geomorfológica única nas Américas, com extensas planícies fluviomarinhas cortadas por uma rede de canais distri-butários labirínticos, formadores de cerca de 80 ilhas de dimensões diversas, com extensos manguezais.

Cerca de 65% da área do Delta do Parnaíba está localizada em território ma-ranhense e os demais 35% em território piauiense. Os canais do delta são ladea-dos por numerosas ilhas e conjuntos de dunas e lagoas, formando um complexo sistema onde ainda convivem espécies de um mangue com porte de floresta tro-pical e uma fauna local. O litoral do Delta do Parnaíba compreende uma faixa de praias ainda pouco conhecidas, e apresenta grandes extensões de dunas das mais diversas feições (MMA, 2002)2.

O rio Parnaíba nasce da confluência dos rios Água Quente e Corriola ou Pau--Cheiroso, mananciais que descem da vertente setentrional da Chapada das Man-gabeiras, e sua extensão é de aproximadamente 1.500 Km, formando linha divisó-ria com o Estado do Maranhão na direção Sul-Norte (RODRIGUES, 2001), consti-tuindo o “mais importante sistema fluvial da bacia do Nordeste (Brasil), cobrindo áreas de três estados, com cerca de 362.000 Km2, abrangendo quase todo o Piauí, 20% do Maranhão e pouco menos de 10% do Ceará” (PAIVA, 1999:09).

Dentre seus afluentes, destacam-se os rios Parnaibinha e Balsas, no Ma-ranhão, e os rios Uruçuí-Preto, Gurguéia, Itaueira, Canindé, Longá e Piauí, no Piauí, e ainda o rio Poti, no Ceará, antes de desaguar no Atlântico, formando cinco barras, quatro das quais situadas no Estado do Maranhão e apenas uma no Estado do Piauí, a de Igaraçu (CARVALHO, CORDEIRO, SANTOS, 1999).

O manguezal do Delta do Parnaíba é composto por uma formação arbórea de até 20 metros de altura, “representada pela vegetação Perenifólia de Mangue (sic), constituindo-se numa formação descontínua, devido à existência de diver-sos cursos d’água que impedem sua continuidade” (CAVALCANTI, 2000:56). O número de espécies é reduzido, contudo, é grande o número de indivíduos, for-mando exuberantes florestas de mangue.

As referências de Marta Vanucci às florestas de mangue traduzem bem a grandiosidade e a peculiaridade desse ambiente:

Não há, como nas outras florestas, chão sobre o qual andar. Durante a maré cheia, a flo-

resta está inundada e, quando a maré recua, deixa atrás de si um emaranhado caótico de

raízes de todo tipo [...]; troncos mais ou menos recobertos por mucilagem, liquens e algas

que crescem também sobre os galhos e emergem do lodo, onde é possível afundar-se até os

joelhos, se houver espaço suficiente para apoiar os pés (VANUCCI, 1999:33).

De acordo com Agostinho Paula Brito Cavalcanti, foi constatada a presen-ça das espécies Rhizophora mangle (mangue vermelho), Laguncularia racemosa

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(mangue branco) eAvicennia schauariana (mangue preto) no manguezal do Delta do Parnaíba.

O Plano de Gestão e Diagnóstico Geoambiental e Sócio-econômico da Área de Proteção Ambiental Delta do Parnaíba aponta, ainda, a ocorrência da espé-cie Avicennia germinans (mangue Siriba). Essas espécies de manguezal “repro-duzem-se por viviparidade, através de estruturas denominadas propágulos” (LIMA-E-SILVA, GUERRA, MOUSINHO, 1999:147).

O mangue vermelho, também conhecido por mangue verdadeiro, ocorre em solos lamacentos, na proximidade das desembocaduras dos rios. Este tipo de mangue possui um complexo sistema de raízes aéreas, que servem para sua sustentação, nutrição e aeração. O mangue branco é encontrado em solos mais arenosos e possui raízes do tipo pneumatóforo, mas de menor tamanho e em quantidade menor que o mangue preto.

O mangue preto se desenvolve onde a lama é mais firme e a salinidade é alta, em consequência de glândulas que existem em suas folhas, capazes de elimi-nar o excesso de sal. Essa espécie possui essas raízes especiais (pneumatóforos). Apesar do reduzido número de espécies de plantas, em consequência da baixa capacidade adaptativa das espécies vasculares a esse ambiente peculiar, que é influenciado pelas marés e pela contribuição da água doce pluvial e continental, o manguezal é um ecossistema que apresenta elevada produtividade, especial-mente onde a temperatura é alta durante todo o ano.

Essas altas taxas de produção são de grande importância para a pesca cos-teira, a aquicultura e o extrativismo, quando gerenciado de forma racional e sustentável, respeitando as práticas culturais e produtivas desenvolvidas pelas populações tradicionais que fazem uso desse recurso ambiental há gerações, e que sabem empiricamente como utilizá-lo e aos seus produtos.

No Delta do Parnaíba, a fauna que utiliza os manguezais como habitat, é de uma grande diversidade, são várias as espécies de aves, mamíferos, peixes, crus-táceos, moluscos e outros pequenos animais.

A avifauna dos manguezais não é típica desse ecossistema, pode ser en-contrada em vários outros, contudo, aves como a garça, o guará, o gavião-do--mangue, o socó e o martim-pescador, desenvolveram uma certa dependência desse ambiente, encontrando proteção, abrigo e alimentação, além de local para nidificar.

Da mesma forma, os mamíferos também não são característicos dos man-guezais, mas, desse ambiente, retiram alimento e encontram proteção. Várias es-pécies de micos e de macacos, raposas, guaxinins e gatos-do-mato são visitantes dessas áreas. Segundo Cavalcanti (2000), a maior parte dos peixes que ocorre nos manguezais é de origem marinha, entretanto, a fauna ictiológica está também representada por comunidades de peixes oriundas do rio Parnaíba. As espécies marinhas encontradas nos manguezais são: serras, pescadas, baiacus, corós, ca-murupins, bagres e outros. As espécies de água doce que habitam nas proximidades do rio Parnaíba, ou em áreas de baixa concentração salina, também procuram os

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manguezais para se alimentar, como por exemplo: a traíra, o mandi, a piramuta-ba, o mussum e o tucunaré.

Outros importantes componentes da fauna dos manguezais, os moluscos, têm uma alta produção nesse ambiente, como a ostra-do-mangue e o sururu.

A fauna microscópica abrigada nos manguezais é composta por bactérias, protozoários, nematódios, rotíferos e microcrustáceos. Os camarões marinhos são invertebrados de grande importância, que utilizam os manguezais para o desen-volvimento de suas larvas e jovens, e também, como local de abrigo e alimentação.

Os crustáceos decápodos são, porém, aqueles que mais caracterizam e dão singularidade

aos manguezais, como é o caso do caranguejo-uçá e o gaiamum: os primeiros estágios de

vida desses organismos ocorrem na água, posteriormente, em outras fases, passam a viver

no ambiente terrestre, podendo ser encontrados em contínua movimentação entre as raízes

e troncos de mangue. Geralmente são ariscos, deslocando-se rapidamente e escondendo-se

em suas tocas ao menor sinal de perigo. Estes animais fragmentam as folhas que caem das

árvores, facilitando sua utilização por parte de outros organismos menores. Para a constru-

ção de suas tocas, onde se abrigam e armazenam alimento, reviram a lama, trazendo à su-

perfície grande quantidade de matéria orgânica. Servem ainda de alimento para o homem

e diversos peixes e aves. Dessa forma desempenham um importante papel na manutenção

da dinâmica do manguezal. (MIRANDA; NÓBREGA, 1990:12).

O caranguejo-uçá (Ucides cordatus) é uma espécie típica da interseção entre água doce e salgada, e seu habitat preferencial é o interior do manguezal, onde vive durante praticamente o ano inteiro em galerias individuais, construídas sob as árvores (NORDI apud ALVES, NISHIDA, 2002). De acordo com Rômulo R. da Nóbrega Alves e Alberto Kioharu Nishida, no ciclo de vida do caranguejo, distinguem-se três principais fases: a ecdise (muda), o acasalamento (andada) e a desova. Os autores esclarecem ainda que: o ciclo lunar e as variações das marés são fatores que exercem grande influência sobre o ciclo de vida do caranguejo, atuando diretamente no padrão geral de atividade desse crustáceo em seu ha-bitat. Em virtude da importância destes fatores para o sucesso das capturas e a organização das atividades de coleta, os catadores desenvolveram um elaborado conhecimento sobre as fases da lua e os tipos de maré. Tais conhecimentos as-sociados ao saber dos caranguejeiros acerca da bionomia do caranguejo, podem, portanto, subsidiar estudos científicos relacionados à biologia e ecologia desse crustáceo (ALVES, NISHIDA, 2002:110)

O caranguejo-uçá é o recurso ambiental mais característico da RESEX Del-ta do Parnaíba, encontrado nas Ilhas das Canárias, do Manguinho, das Barro-cas, do Guará, do Serrote, da Desgraça, do Croatá de Dentro e na Ilha do Bagre Assado. Nos manguezais do Delta do Parnaíba, o caranguejo-uçá ainda é um recurso natural abundante, e sua captura é uma das principais práticas produti-vas desenvolvidas pela população tradicional da região.

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A atividade extrativista do caranguejo no Delta do Parnaíba, e todo um modo de vida tradicional dependem integralmente da manutenção do ecossistema manguezal.

2. Práticas produtivas

As atividades econômicas na região da APA Delta do rio Parnaíba se desenvol-vem basicamente nos municípios de Parnaíba, Ilha Grande e Luís Correia no Piauí; e em Araióses, Água Doce, Paulino Neves e Tutóia no Maranhão; as mais expressivas são a pesca, a carcinicultura, a agricultura de subsistência, o extrati-vismo vegetal, a pecuária extensiva, a produção artesanal e o turismo, esta últi-ma se configurando como uma das maiores potencialidades locais, graças à sin-gularidade das paisagens, a diversificação da fauna e o clima propício durante todo o ano, mas é premente a necessidade de planejamento e gestão adequados.

2.1 Pesca - a captura do caranguejo-uçá

A produção pesqueira é quase inteiramente artesanal, representando “uma das principais potencialidades e, ao mesmo tempo, um dos fatores de desequilíbrio ao ecossistema” (IEPS/UECE, 1998:61), sobretudo no que concerne à transição da pesca artesanal do caranguejo-uçá Ucides cordatus para a exploração comercial. O produto comercializado, geralmente pescado fresco, provém de uma econo-mia totalmente informal. O documento síntese do Plano de Gestão Ambiental para a APA Delta do Parnaíba considera que:

O principal foco de atividade pesqueira na região do Delta está concentrado no litoral do

Piauí, onde numa extensão de apenas 66 Km, estão inseridas 10 comunidades pesqueiras.

O pescado produzido nesta região é desembarcado em sua totalidade nas localidades de

Parnaíba, Tatus, Pedra do Sal [e] Luís Correia. (IEPS/UECE, 1998:61).

Dentre as comunidades pesqueiras piauienses, destacam-se aquelas dos mu-nicípios de Parnaíba, Luís Correia, Cajueiro da Praia e Ilha Grande, nesta última se localiza o porto de Tatus, principal ponto de desembarque do caranguejo-uçá. Já nas comunidades de Barra Grande e Pedra do Sal ocorre a pesca do camuru-pim (Tarpon atlanticus), e na comunidade do Coqueiro, localizada em Luís Cor-reia, caracterizada pelo grande número de pescadores, proprietários de canoas artesanais equipadas com o petrecho de pesca denominado caçoeira (rede). A especialidade nesta comunidade é a captura de serras (Scomberomus brasiliense), cavalas (Scomberomus cavalla) e pescadas (Cynoscion sp).

São muitas as espécies capturadas na região da Área de Proteção Ambiental--APA Delta do Parnaíba e na RESEX Marinha Delta do Parnaíba: serras, cavalas, pargos (Lutjanus porpureus), pescadas e camurins estão entre aqueles mais aprecia-dos e que alcançam maior valor comercial. Já os cações (Carcharhinus sp), bagres

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(Trachysurus sp), bonitos (Euthynnus alletteratus), meros (Epinephelus itajara) e taínhas (Mugil brasiliensis) são considerados de segunda ou terceira categorias, e são pouco apreciados no mercado consumidor local, consequentemente, au-ferem menores preços. A análise de Carvalho Neto et al (1996:173) em relação a essas espécies é a de que:

As artes de pesca não são voltadas para a captura destes peixes e por isso, podem ser consi-

derados como subprodutos das pescarias, e a medida em que os pescadores mais se equipam

e se especializam, menos subprodutos são obtidos. A produção pesqueira, desembarcada na

costa piauiense, nos anos de 1995, 1999 e 2004 foi de, respectivamente, 2.134,2, 2.256,0 e

2.329,6 toneladas, segundo o ESTATPESCA 3.

A captura do caranguejo-uçá (Ucides cordatus) na APA Delta do Parnaíba é a atividade pesqueira com a maior significação econômica na região. Sua con-tribuição vem decrescendo nos últimos anos, uma vez que desde o início das coletas de dados para a investigação de estatística pesqueira, a captura dessa es-pécie representava cerca de 50% do pescado desembarcado no Estado do Piauí (IBAMA/CEPENE, 1995, 1996, 1997, 1998, 1999). Atualmente, ainda apresenta o maior percentual dentre os demais, mas com um significativo decréscimo, pas-sando de 48,2 % em 1995 a 35,3% em 2004, conforme os dados obtidos.

A captura dessa espécie ocorre com maior abundância nos manguezais das re-giões Norte e Nordeste do Brasil, sendo mais relevante social e economicamente no Nordeste, onde é capturada em grande quantidade (IBAMA/CEPENE, 1999).

O Delta do Parnaíba é a principal região produtora do Piauí, localizado entre os Estados do Piauí e Maranhão (IBAMA/CEPENE, 1998). Carvalho & Cordei-ro (1999:23) chegam a afirmar que “o Delta do Parnaíba é o maior produtor de caranguejo-uçá do mundo”.

O tradicional método de captura do caranguejo, realizado manualmente, com a introdução simples do braço ou auxiliado por um instrumento de coleta adaptado pelo próprio catador, denominado cambito, ocorre principalmente nos mangues do Delta do Parnaíba, na divisa dos Estados do Piauí e Maranhão. Em outros locais do Brasil, apesar de preponderar a técnica manual de captura do caranguejo, são uti-lizados “diferentes tipos de artefatos como: laço, redinha, gancho [cambito], foice, óleo quente (diesel ou carbureto) e gás” (VERGARA FILHO, 2004:05).

Na RESEX Delta do Parnaíba, alguns relatos sobre a utilização de técnicas dife-renciadas, predatórias, foram feitos pelos participantes de entrevistas que realiza-mos. Entretanto, constatamos que, quem se vale das mesmas, são catadores estra-nhos às comunidades do Delta do Parnaíba, o que nos permite concordar com Karen Diele (2004:01), quando esclarece sobre as técnicas do braceamento e do gancho:

Como essas técnicas não permitem a captura da totalidade da área, elas têm caráter sus-

tentável. Em áreas de raízes densas os tiradores não conseguem capturar o caranguejo

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com braço ou gancho, e essas áreas assim funcionam como refúgios naturais para o ca-

ranguejo. [...] Provavelmente os refúgios exercem um papel importante em prevenir uma

sobre-pesca rápida.

O transporte da produção do caranguejo-uçá do Delta do Parnaíba é fei-to por lanchas e canoas até o porto de Tatus, e de lá é embarcado em cami-nhões e caminhonetas para o seu principal destino, o mercado consumidor de Fortaleza, “que tem pressionado o crescimento da exploração no mangue, revelando-se um dos principais tensores sobre esta espécie” (CARVALHO, CORDEIRO,SANTOS, 1999:16).

Apesar de ser a prática produtiva que dá sustentação financeira ao maior número de trabalhadores da região, pois, a captura do caranguejo representa o maior volume de produção pesqueira na região do Delta do Parnaíba, essa ati-vidade não tem revertido em melhores condições de vida para os catadores, em consequência dos baixos preços oferecidos pelo mercado.

A captura e comercialização do caranguejo absorvem grande parte da mão--de-obra do Delta do Parnaíba, em torno de 20 comunidades da região sobrevi-vem deste trabalho, são cerca de 2.500 famílias, entre catadores, transportadores e vendedores dos Estados do Piauí, Maranhão e Ceará, que têm nesta atividade sua principal fonte de renda. Anualmente, segundo dados coletados pelo ESTA-TPESCA, são comercializadas cerca de 1.200 toneladas de caranguejo, oriundas dos manguezais do Delta do Parnaíba.

O que podemos constatar é que essa atividade extrativista vem dando sinais de decréscimo nos últimos anos; os caranguejos capturados são de menor tama-nho e peso, abaixo daquele considerado ideal no mercado consumidor, assim como a dificuldade de captura é maior; essa conjuntura revela indícios de so-brepesca, que impossibilitam o aumento das capturas; e, torna-se cada vez mais provável a diminuição da produção, caso não forem adotadas medidas eficazes para eliminar a situação de sobreexploração desse recurso no Delta do Parnaíba.

Nos manguezais dos rios Cardoso/Camurupim no Piauí e Ubatuba/Timonha na divisa com o Ceará, dentro da área de abrangência da APA Delta do Parnaíba, também há ocorrência e captura de caranguejo-uçá, porém essa atividade econô-mica tem maior importância nos manguezais do Maranhão e Piauí, por causa da grande extensão do ecossistema manguezal.

Em média, a produção diária de um catador de caranguejo no Delta do Parnaí-ba é de 15 cordas, 4 caranguejos por corda, cada uma pesando em torno de 0,700 Kg; as cordas de caranguejo são entregues para o atravessador por um preço que varia de R$1,00 a R$2,50, dependendo do tamanho dos animais e do período do ano, isto é, caso seja época de veraneio, conseguem o maior valor. Essa mesma quantidade de caranguejos é comercializada nas praias do Piauí por R$12,00 e em Fortaleza por R$20,00, o que nos dá indícios da exploração econômica da categoria4.

A comercialização do caranguejo no Delta do Parnaíba é realizada através

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de intermediários, que compram dos catadores e repassam para outros interme-diários. Segundo Nordi (1995), esse procedimento é comum, em razão dos ca-tadores enfrentarem dificuldades em vender o produto eliminando a figura do intermediário, uma vez que essa atividade conflita com a captura e necessitaria de uma habilidade adicional.

A observação de Nordi (1995) em relação aos catadores de caranguejo da região de Várzea Nova, município de Santa Rita, no Estado da Paraíba, de que eles estabelecem ligações com determinados compradores, como se estes fos-sem seus patrões e entregam a mercadoria a preços previamente contratados, se aplica aos catadores do Delta do Parnaíba. Esta situação, observada em vá-rias ocasiões, quando da realização da pesquisa, nos sugeriu uma situação de submissão e de dependência. Ainda é Nivaldo Nordi (1995:42) quem nos expli-cita no mesmo trabalho:

Normalmente, é uma relação de apadrinhamento ou companheirismo, que reforça a

submissão, pois o compromisso de entregar o produto ao ‘compadre’ ou ‘companheiro’

é mais forte. Em troca, ele tem assegurado a compra da produção, eliminando assim o

risco de perder o dia de trabalho.

Existem dois tipos de intermediário no Delta do Parnaíba. O primeiro tipo é aquele atravessador munido de uma boa infra-estrutura de transporte e de armazenamento, que compra a produção de várias comunidades e a revende aos grandes centros consumidores, principalmente ao mercado consumidor de Fortaleza. O segundo tipo de intermediário apresenta padrões culturais e tecnológicos mais tradicionais, forjado no companheirismo, no cotidiano da comunidade, contudo, geralmente é mantido a serviço do primeiro tipo nas comunidades, assegurando a compra da produção e trabalhando com uma pre-visão mínima de lucro.

No Delta, segundo relatos de atravessadores deste último tipo e dos comu-nitários, o lucro obtido é de no máximo R$1,00 (um real) em cada corda de ca-ranguejo “pantanal”, denominação local do caranguejo-uçá de grande porte, encontrado em poucas áreas da região, a exemplo da região do manguezal do Jacarandá, localizado no município de Araióses, na área de abrangência da RE-SEX Delta do Parnaíba.

Outro aspecto relacionado à comercialização, merecedor de análise, diz res-peito à elevada mortalidade dos exemplares de caranguejo-uçá comercializados nos Estados do Piauí, Maranhão e Ceará. As taxas de mortalidade, segundo Legat et al (2004), variam de 40 a 60% do total capturado, gerando grandes danos so-cioambientais e econômicos. A explicação preliminar encontrada pelos autores da pesquisa é a de que a mortalidade está relacionada ao método de captura que se vale do cambito e ao manejo inadequado no transporte. Porém, não há ainda resultados conclusivos desse trabalho.

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Alternativas precisam ser encontradas para reduzir essas insustentáveis ta-xas, porque os impactos decorrentes dessa elevada mortalidade, aliados a outros fatores de estresse, como a captura indiscriminada de caranguejos, com tama-nhos inferiores ao permitido (largura de carapaça inferior a 6 cm); a utilização de técnicas e artefatos predatórios de pesca, como a rede de arrasto, a zangaria e a pesca com batedeira; o desmatamento para fins agrícolas; e, o corte de madeira para utilização na construção civil, podem causar irremediáveis danos ao ecos-sistema manguezal do Delta do Parnaíba.

Na Reserva Extrativista Marinha Delta do Parnaíba, o cultivo de arroz para sub-sistência se configurava como a principal atividade econômica até a década de 1990 do século passado. A rizicultura, ainda hoje praticada nas áreas de manguezais, mui-tas vezes com a utilização de agrotóxicos, representa impactos ao frágil equilíbrio deste ecossistema e constitui fonte de ameaça ao extrativismo do caranguejo-uçá, como podemos constatar na “fala” de Pedro Mundico, morador da região:

Este negócio de derribar mangue eu acho que ele [IBAMA] devia proibir mesmo, por-

que se derribar mangue, acaba... Sabe como é... Eu começo uma área ali que era de

muito caranguejo... Hoje em dia o pessoal tão acabando de derribar o mangue pra

tirar, e outro derriba, e ele bota remédio e mata a produção, tudo vai diminuindo,

tudo vai se acabando.

Segundo relatos de técnicos do IBAMA, em reuniões de trabalho, e de mo-radores da área da RESEX, extraídos de conversas informais, parte do ecossiste-ma manguezal na região é secundário, tendo se regenerado após o abandono da plantação extensiva de arroz, predominante até o início do funcionamento da Usina Hidrelétrica de Boa Esperança, oficialmente denominada Usina Hidrelé-trica Presidente Castelo Branco, que barrou o curso dorio Parnaíba, e em con-sequência, diminuiu o volume d’água que chega no Delta do Parnaíba. Dessa forma, o solo foi salinizado e terminou representando um impacto positivo para o manguezal, pois, atualmente, apesar dessa atividade comportar danos à biodi-versidade e ensejar conflitos entre produtores de arroz e catadores de carangue-jo, ela é realizada em pequena escala, somente naquelas áreas que não sofrem diretamente influência das marés.

Para ilustrar a discussão acima, transcrevemos abaixo trecho de uma entre-vista realizada na comunidade Torto, localizada na ilha das Canárias, município de Araióses/MA, com Chico Euzébio.

- Por que o senhor escolheu a profissão de catador de caranguejo?

- Na época que eu vim pra cá, eu morava em Canária, na época eu vim pra cá trabalhar

com arroz. Existia muito planti de arroz aqui, era muito bom! Porque o seguinte: a água

começou a ficar salgada e não deu mais planti de arroz, é... A opção foi todo mundo traba-

lhar no caranguejo. Na época era muito bom!

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- Isso faz quanto tempo mais ou menos?

[pausa] Doze anos, treze, talvez quatorze. Não tenho bem certeza, mas num...

- Quer dizer que há mais ou menos treze anos, a atividade de renda aqui era mesmo a

plantação de arroz?

- Existia já o caranguejo, mas… mas eram as pessoa de fora, os daqui viviam mais de

plantação de arroz, e pescar peixe, quando o arroz terminou, aí se envolveu todo mundo

no caranguejo.

As mudanças das práticas produtivas dos moradores do Delta do Parnaíba certamente foram influenciadas pela construção e funcionamento da Usina de Boa Esperança. De acordo com os depoimentos e dados coletados, como, por exemplo, sobre a colocação em funcionamento das unidades da usina, as pri-meiras datando de 1970 e a quarta de 1991, período em que vários participantes das entrevistas por nós realizadas, afirmaram ter sido o tempo em que houve a troca da atividade do plantio de arroz para a captura do caranguejo, podemos trabalhar com essa possibilidade, o que poderá suscitar investigações de outros pesquisadores, uma vez que desconhecemos qualquer estudo que possa corro-borar essa hipótese e esse não foi nosso principal objetivo de pesquisa.

Referências e Notas

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· BRASIL. Ministério do Meio Ambiente - IBAMA/Centro de Pesquisa e Extensão Pesqueira do Nordeste,

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preliminar das taxas de mortalidade do caranguejo-uçá (Ucides cordatus) após a captura: método tradicional X

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do ecossistema manguezal. In: I SIMPÓSIO SOBRE A SUSTENTABILIDADE DA PESCA DO CARANGUEJO-

UCÁ, 1. 2004, Parnaíba, Resumos... Parnaíba (PI): EMBRAPA Meio Norte, 2004. 1 CD-ROM.

· 1 Este artigo resulta de pesquisa realizada para a Dissertação de Mestrado sob o título “PRÁTICAS PRO-

DUTIVAS E (IN) SUSTENTABILIDADE: os catadores de caranguejo do Delta do Parnaíba”, orientado

pela Profª Drª Maria do Carmo Bezerra Maciel Bédard, no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvi-

mento e Meio Ambiente da Universidade Federal do Piauí, Brasil.

· 2 Cf.: www.mma.gov.br/

· 3 ESTATPESCA era um projeto desenvolvido pelo IBAMA, através da Diretoria de Gestão Estratégica,

coordenado pelo Centro de Pesquisa e Extensão Pesqueira do Nordeste/CEPENE, hoje vinculado ao Ins-

tituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade-ICMBio. No período da pesquisa era executado

pela então Gerência Executiva do IBAMA no Piauí, com o objetivo de fornecer informações sobre o

setor pesqueiro no Piauí.

· 4 Valores atualizados (2014)

Contactar a autora: [email protected]

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Tradição oral e patrimônio cultural na Ilha das Canárias, BrasilOral tradition and cultural heritage in Canary Island, Brazil

Marta Gouveia de Oliveira RovaiDoutora pela Universidade de São Paulo (USP); professora da Universidade Estadual do

Piauí (UESPI); pesquisadora do Núcleo de Estudos em História Oral (NEHO/USP) e do

Núcleo de Pesquisa Cidade, Cultura e Identidade (CCI/UESPI).

Resumo: Este artigo trata de pesquisa realizada com a população que vive à beira do delta do Rio Parnaíba, na Ilha das Canárias, situada no estado do Maranhão, Brasil. O objetivo do trabalho, iniciado em 2009, é realizar um inventário da cultura material e imaterial, do patrimônio histórico-cultural e ambiental, por meio de memórias, cola-borando para o diálogo com a comunidade sobre o sentido da preservação e da tradição.

Palavras-chave: Patrimônio Cultural. Cultura Fluvial. Canárias.

Abstract: This article discusses research conducted with people living on the edge of the delta river in Canárias Island, located in the state of Maranhão, Brazil. The purpose of the study, begun in 2009, is to conduct an inventory of material and immaterial culture, the historical-cultural and environmental, through memories, contributing to dialogue with the community about the meaning of the preservation and tradition.

Keywords: Cultural Heritage. Cultural River. Canárias.

Introdução

Este artigo trata dos primeiros contatos com a população que vive na cidade beira--rio de Araioses, Maranhão, região do Meio Norte do Brasil. A pesquisa se desen-volve na comunidade da Ilha das Canárias, pretende-se fazer um levantamento do patrimônio cultural por meio da tradição oral. O rio Parnaíba tem sua nascente na Serra da Mangabeira, no estado do Tocantins, atravessa e cria uma fronteira natu-ral entre os estados do Piauí e do Maranhão, desaguando no Atlântico.

Segundo Gercinair Silvério Gandara (2010), uma cidade-beira é toda aquela que se constitui nas margens, sejam elas de rios, estradas, ferrovias, pistas, construin-do seu projeto de vida nesse “lugar-fronteira”, de encontros, em busca do novo em meio a permanências. A pesquisa com esses ribeirinhos foi iniciada por Áurea Pi-nheiro e Cássia Moura, em 2009, quando elaboraram um relatório para refletirem sobre a possibilidade de criação, com a comunidade local, do Museu Nacional do Mar em Parnaíba – Piauí (PINHEIRO; MOURA, 2012). No documento, encontram--se registros fotográficos e reflexões teórico-metodológicas constituídas a partir

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da observação e de entrevistas com alguns pescadores e construtores de embar-cações tradicionais do delta do Parnaíba, nomeadamente na Ilha das Canárias, sobre as tecnologias/saberes/fazeres relacionados à pesca, ao trabalho artesanal e seus apetrechos, vida privada e coletiva da comunidade.

A Ilha das Canárias, do lado maranhense do rio Parnaíba, pertence a um complexo de cerca de setenta e cinco ilhas no Delta, considerada parte da Área de Preservação Ambiental (APA), que se estende do lado maranhense até o es-tado do Ceará e Reserva Extrativista Marinha (RESEX). Com uma população de aproximadamente 2500 habitantes de cinco povoados - Canárias, Morro do Meio, Passarinho, Torto e Caiçara – em suas margens convivem pescadores, ma-risqueiras, catadores de caranguejo, barqueiros e artesãos, que constroem seu cotidiano numa relação íntima com tudo o que as águas possam lhe fornecer – o transporte de coisas e idéias, o comércio, a pesca, o artesanato, enfim, a cultura material – juntamente com uma série de significações e representações expres-sas em hábitos, valores, linguagem, crenças e cerimônias religiosas, que consti-tuem sua cultura imaterial e sua identidade beira-rio.

A comunidade vive, essencialmente, de atividades desenvolvidas em torno da pesca, o que garante a seus membros não apenas a sobrevivência familiar, mas a realização de pequeno comércio que abastece com peixes boa parte dos mercados e bares nas cidades ao redor, principalmente Ilha Grande, cujo Porto dos Tatus é utilizado para a partida e chegada das embarcações durante o dia; são produzidos os bens materiais – barcos, balanças, instrumentos de pesca de peixe e camarão, além de todo artesanato com palha e produção de doces de caju - e imateriais – seus valores e costumes, suas cerimônias e crenças, seus mitos e festividades.

Ao dar continuidade ao trabalho iniciado por Áurea da Paz Pinheiro, iniciei estudos com um grupo de estudantes e jovens pesquisadores, da Universidade Estadual do Piauí e da Universidade Federal do Piauí, na cidade de Parnaíba, com a finalidade de realizar, igualmente, um inventário do patrimônio imaterial das Canárias. Como a maioria dos participantes é formada por alunos das universi-dades, o núcleo desenvolve estudos e pesquisas cujas discussões têm sido per-meadas por leituras relacionadas à história oral, à memória e à tradição oral, ao patrimônio material e imaterial, cultural e natural, e a conceitos como os de identidade e comunidade.

O intuito dos encontros – entrecortados pelas visitas às Canárias – é a for-mação de um suporte teórico sobre história oral e patrimônio cultural que permita orientar o trabalho das equipes responsáveis pelas entrevistas, pela observação e pelo convívio com homens, mulheres, velhos e crianças, esti-mulando uma interpretação que envolva ouvidos, olhos e alma, como diria Walter Benjamin (BENJAMIN, 1996); a sensibilidade para pensarmos as expe-riências dessa coletividade como constituidora de uma identidade ribeirinha, repleta de elementos ligados à tradição, à permanência de uma série de saberes e práticas que atravessam suas gerações, sendo recriados e reelaborados de for-ma viva e contínua.

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Os primeiros contatos com os moradores, por meio de conversas infor-mais e a observação atenta ao cotidiano vivenciado por eles, nos colocou de ime-diato a necessidade de trabalharmos com a tradição oral, ou seja, o mergulho dentro da comunidade, tendo como um de nossos procedimentos o trabalho com a história oral e a observação participante.

Ao caminhar pelas ruas de areia das Canárias - marcas da referência e da pre-sença constante do rio Parnaíba, da vegetação e das dunas que o margeiam - é possível observar a troca de saberes que se estabelece entre as gerações e os gêne-ros: crianças, jovens, adultos e velhos partilham conhecimentos e significados que não podem ser inventariados quantitativamente. O trabalho coletivo e as conversas entre pescadores, rodeados por seus filhos, na praça central ou na bei-ra do rio, mostram como a tradição é viva e presentificada continuamente.

A feitura da rede, o artesanato com a palha e a madeira, a referência aos mitos e à religiosidade que se misturam em suas narrativas, tudo faz parte de um patrimô-nio cultural que se manifesta pela memória, na permanência de uma tradição ain-da preservada porque carregada de sentidos para a sobrevivência da coletividade.

O trabalho sobre tradição oral, iniciado por Áurea da Paz Pinheiro e Cássia Moura, e desenvolvido por mim com o grupo de pesquisadores, deve contribuir para uma pesquisa em colaboração, participativa, em busca de narrativas que nos revelem modos de vida, sentimentos de pertença, vontades de preservar cer-tos elementos identitários dos ribeirinhos e, por conseguinte, a criação de polí-ticas públicas que possam ir ao encontro de suas necessidades e singularidades. Enfim, entender as permanências em seu cotidiano, não apenas como hábito, e sim como referências culturais que formam indivíduos singulares que se re-criam socialmente e dão sentido ao mundo, constituindo sua identidade.

1. Os Procedimentos de Pesquisa

Em relação à história das Canárias, antes de dar início ao trabalho de campo, o grupo, que coordeno, partiu do levantamento bibliográfico e de fontes escritas, realizando contatos com o Instituto Chico Mendes (ICMBio), órgão ligado ao Ibama e responsável pela Unidade de Conservação na região do Delta, com o grupo Ilha Ativa e com o IPHAN. Pudemos constatar que há ainda muito pouco de produção significativa sobre as ilhas do Delta, com exceção para o levanta-mento de dados preliminares das Canárias, incluída na Caracterização da Uni-dade e Temas Complementares Reserva Extrativista Marinha do Delta do Parnaíba (ICMBio, Brasília, 2009) e o Projeto Manguezais (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento Fundo para o Meio Ambiente Mundial), que apresenta um qua-dro dos manguezais no Brasil e, em especial, aponta para a preocupação com o desequilíbrio ambiental na região das Canárias, promovidas pelo turismo de-senfreado, o desmatamento, a pesca predatória do camarão e a cata do carangue-jo-uçá em demasia, fatores que afetam a vivência e o sustento da comunidade.

Nesse sentido, o Relatório Museu Nacional do Mar (Parnaíba – Piauí, 2012),

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produzido por Áurea da Paz Pinheiro e Cássia Moura, e que deram origem ao projeto Patrimônio Cultural no Nordeste do Brasil, financiado pela Capes/PNPD/Brasil, foi o documento que até o momento mais elaborou pesquisa atenta e de-talhada da comunidade das Canárias, no conjunto do delta do Parnaíba. A reali-zação de visitas em 2009 e missão científica em 2012 aproximaram pesquisado-res e membros da comunidade, num processo de observação participante sobre o cotidiano, os saberes e fazeres de seus moradores. A partir de algumas entre-vistas que Pinheiro e Moura realizaram sobre o dia a dia da pesca, a produção de barcos e instrumentos de trabalho, percebemos a existência de um patrimônio cultural riquíssimo que necessitaria ser levantado em profundidade, além de de-mandas provocadas pelas mudanças trazidas pelo turismo na região.

As dissertações de Meireles (2012) e Mattos (2006), assim como as conversas com membros de associações de pescadores, retrataram a preocupação com a conservação da cultura ribeirinha, inserida no processo de crescimento do tu-rismo local. A atração de turistas, sem que a população tenha acesso e participe do planejamento, tem tornado significativa a presença de representantes de or-ganizações como Ilha Ativa, Tartarugas do Delta, ICMBio, Universidade Federal do Piauí e o Núcleo de Pesquisa da Universidade Estadual do Piauí, no sentido de entender a extensão dos efeitos desse processo sobre as populações locais.

2. O Trabalho com História Oral e Patrimônio Imaterial nas Canárias (MA)

Desde 1992, a Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e Desenvol-vimento defendeu a proteção do patrimônio material e imaterial das chamadas populações tradicionais (DIEGUES, 1999). Esta preocupação entendeu que as comunidades que transmitem seus saberes predominantemente pela oralidade, constituindo sistemas tradicionais de comportamento e de valores, deveriam ser reconhecidas pela forma como se autorreconhecem, numa associação entre a cultura e a natureza, processo contínuo de construção de identidade, viva fren-te aos impactos sociais e ambientais sobre sua organização material e imaterial.

Essa concepção rompeu com a visão simplista de divisão entre o ambiente e o homem, atribuindo à natureza um caráter histórico, social e um problema ético. Nesse sentido, a UNESCO já havia formulado o documento Recomendação sobre a Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular (1989), reconhecendo a im-portância de se compreender a cultura tradicional e popular como parte do pa-trimônio cultural. Isso significaria reconhecê-la como processo dinâmico e vivo que, se por um lado dificulta a proteção direta de seu patrimônio, exige também reflexões e ações que levem em conta a fragilidade da tradição oral e da garantia de acesso das comunidades aos usos do ambiente, da cultura e dos produtos de seu trabalho e conhecimentos cumulados pela experiência, assim como a parti-cipação democrática na condução do que deve ser preservado.

Nesse contexto, foi criada a Área de Proteção Ambiental (APA) pelo Governo Fe-deral brasileiro em 1996, que inclui os Estados do Maranhão, Piauí e Ceará. A Ilha

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das Canárias passou integrar a Reserva Extrativista (RESEX), sob os cuidados de instituições como o IBAMA e o ICMBio, este último responsável direto pela implementação das Unidades de Conservação (UC) e das políticas ambientais, principalmente ligadas a projetos que permitam pensar, com as comunidades, projetos de manejo de forma sustentável dos manguezais, assim como a gestão comunitária dos recursos e do turismo de base comunitária.

Nesse sentido, o projeto supervisionado por Áurea da Paz Pinheiro (Capes/PNPD – Plano Nacional de Pós-Doutorado) e, em parte, coordenado por mim, nas Canárias, pretende criar caminhos que levem em conta tanto a contribuição técnico-científica para usos e manejos dos recursos naturais, bem como os sabe-res, valores, fazeres marcados pela experiência da comunidade, para entender o que pensam os moradores sobre o ecoturismo, a presença de instituições de fora da região, a sua própria identidade, suas necessidades e vontades, no sentido do que querem conservar e transformar.

Mais que a reflexão racional dos usos, os pesquisadores possuem como preocupação compreender a explicação prática dos moradores da região, suas relações com o rio, o mangue, os igarapés, as dunas, os animais, as gentes, as instituições que os “protegem”, em todas as manifestações culturais relaciona-das a essa forma de entender o mundo, a fim de expressarem o que consideram fundamental para perpetuar a própria comunidade.

Assim, a presença do grupo de pesquisadores tem como orientação mapear os usos, as funções e as significações simbólicas, estéticas e sociais do trabalho com a pesca e o variado artesanato com palha, o bordado, a madeira e a renda (os modos de fazer, de se organizar e de repassar os ofícios), suas manifestações mu-sicais, danças, festas e celebrações religiosas (que acontecem algumas vezes por ano, em homenagem a São José, a São João, em junho, e 18 de dezembro, quando os festejos se voltam em homenagem a Nossa Senhora das Dores) e seus lugares de memória, seus espaços sociais e culturais.

Segundo José Carlos S.B.Meihy (2005) e Diegues (1999), a tradição oral deve ser entendida como produto de mensagens orais e de práticas, resultados do es-quecimento, da memória e da vivência transmitidas entre as gerações e transfor-madas continuamente pelas apropriações individuais e coletivas. Dessa forma, mais do que um inventário de caráter quantitativo, ela deve salientar uma preo-cupação qualitativa, levando em conta as subjetividades, as relações emocionais com a história, com a produção de bens materiais, os elementos continuamente recriados e fortalecedores da identidade das Canárias.

Conclusão

Zygmunt Bauman (2005) afirmou que habitar um lugar não é o suficiente para que as pessoas se sintam pertencentes a uma comunidade e a um território cultural, e que as definições acadêmicas ou do senso comum, exteriores à vivência cotidiana, podem se mostrar estranhas aos próprios membros de um determinado grupo. Ao

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narrarem suas experiências é que a identidade se forja, muitas vezes pelo rompi-mento ou rejeição a definições exógenas e deterministas com relação aos sujeitos que contam. Assim, vital o trabalho com a escuta, os olhos e a sensibilidade atenta, o mergulho no cotidiano, para perceber a relevância apontada pela vivência.

Fig. 1 - Pescador tece sua rede. Autoria: Cássia Moura, 2009, delta do Parnaíba, Piauí, Brasil

Esse tipo de investigação qualitativa sobre a cultura fluvial e marítima da Ilha das Canárias exige longos períodos de observação, além de entrevistas abertas, temáticas, com estímulos aos narradores. Mais do que fatos, é preciso uma aná-lise sobre os discursos dos narradores, com suas marcas: silêncios, reticências, distorções, mentiras, esquecimentos, valorizações, negociações e resistências. Os procedimentos utilizados supõem ainda um conhecimento prévio do campo e dos seus embates, uma familiaridade com os interlocutores a serem solicitados para participar da coleta de dados. No entanto, a aplicação dos mesmos instru-mentos numa grande escala possibilita uma visão geral do potencial cultural de uma região que se afirma em relação a itens definidores de uma identidade local.O diálogo que iniciamos com os moradores das Canárias buscou alcançar uma postura menos excludente e exclusiva no tratamento heranças culturais, abar-cando principalmente os significados e representações presentificados pela me-mória coletiva e pelas práticas do dia a dia, entendendo o patrimônio cultural como herança, posse e recriação constante. Tudo o que tem significado e dá sen-tido à sua vida individual e à identidade coletiva.

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Referências

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· DIEGUES, A.C. et al. (Org.). Biodiversidade e comunidades tradicionais no Brasil. Brasília: Ministério do Meio

Ambiente; São Paulo: USP, 1999.

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· MATTOS, Flávia. Reservas Morais: estudo do modo de vida de uma comunidade na Reserva Extrativista

Marinha do Delta do Parnaíba. Mestrado. Rio de Janeiro: CPDA/UFRRJ, 2006.

· MEIHY, José Carlos S. B. Manual de História Oral. São Paulo: Loyola, 2005.

· MEIRELES, Victor de Jesus Silva. Etnobotância e caracterização da pesca na comunidade Canárias, reserva

extrativista marinha do Delta do Parnaíba, Teresina: UFPI, 2012.

· PINHEIRO, Áurea da Paz, GONÇALVES, Luís Jorge Rodrigues; CALADO, Manuel. Patrimônio Arque-

ológico e Cultura Indígena. Lisboa: Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, 2011.

· PINHEIRO, Áurea da Paz e MOURA, Cássia. Relatório Museu Nacional do Mar (Parnaíba – Piauí). Pesquisa

histórico-etnográfica. Teresina: UFPI/ Educar: artes e ofícios, 2010.

· RECOMENDAÇÃO sobre a salvaguarda da cultura tradicional e popular (1989). Paris: Conferência

Geral da UNESCO. Disponível em <http://portal.iphan.gov.br/portal/baixaFcdAnexo.do?id=261>

Acesso em 20 set. de 2013.

Contactar a autora: [email protected]

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Área de Proteção Ambiental Delta do Rio Parnaíba, Brasil: importância biológica e socioeconômica para as comunidades ribeirinhasEnvironmental Protection Area of Parnaíba River Delta, Brazil: biological and socio-economic importance for riverside communities

Silmara ErthalOceanógrafa, Universidade Federal do Rio Grande, Rio Grande/RS

Analista Ambiental, Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade/ICMBio

APA e RESEX Marinha Delta do Parnaíba

Piauí/Brasil

Resumo: O Delta do Parnaíba, constituído por um dos ambientes mais ricos do pla-neta, os manguezais, que garantem a sustentabilidade de milhares de famílias da região, além de função de proteção da costa. Devido a essa importância, o Governo Brasileiro decretou a criação de duas Unidades de Conservação, a Área de Proteção Ambiental Delta do Parnaíba e a Reserva Extrativista Marinha Delta do Parnaíba, das quais tem como um de seus objetivos melhorar a qualidade de vida das famílias residentes e usuárias da região deltaica.

Palavras-chave: Delta do Parnaíba. Comunidades Ribeirinhas. Manguezais.

Abstract: The Parnaíba Delta, consists of one of the richest environments on the planet, the mangroves, that unsure the sustainability of thousands of families in the region, in addition to protection of coast. Because of this importance, the Brazilian Government decreed the creation of two units of conservation, Environmental Pro-tection Area Delta Parnaíba and the Marine Extractive Reserve of the Parnaíba Delta, which has as one of its objectives to improve the quality of life of families, residents and users of the delta.

Keywords: Parnaíba River Delta. Riverside Community. Mangroves.

A Área de Proteção Ambiental (APA) Delta do Parnaíba é uma unidade de con-servação de uso sustentável, criada através de Decreto Federal em 1996. Está localizada na região costeira Meio Norte do Brasil, nos estados do Maranhão, Piauí e Ceará, marcada por grande beleza cênica e que recebe anualmente visi-tantes de várias partes do planeta. Além de conservar os atrativos turísticos, a área protegida tem por objetivo melhorar a qualidade de vida das populações residentes, mediante orientação e disciplina das atividades econômicas locais, principalmente no que se refere à atividade pesqueira.

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Introdução

Devido as suas características de transição entre diversos biomas, como o cer-rado, caatinga e marinho-costeiro, na APA são encontrados diversos sistemas ambientais como os bosques de mangues, salgados, restingas, carnaubais, cam-pos de dunas, praias e lagoas costeiras, que fazem com que a região possua uma alta biodiversidade, inclusive com presença de espécies ameaçadas de extinção, como tartarugas marinhas, aves costeiras e migratórias e o peixe boi marinho.

O principal objetivo de criação da APA é proteger os deltas dos rios Parnaíba, Timonha e Ubatuba, sendo que o Delta do Rio Parnaíba, considerado o terceiro maior delta do mundo e o único do continente americano que desagua direta-mente no oceano. Localizado na porção oeste da unidade, entre os estados do Maranhão e do Piauí, formado por aproximadamente 80 ilhas, com extensas áre-as de manguezais que garantem um ambiente de alta produtividade em termos de recursos pesqueiros, como peixes, caranguejos, ostras, mariscos e camarões, que propiciam para as famílias ribeirinhas que residem nessa região o sustento a partir da pesca artesanal ou de subsistência, além de outras atividades que são realizadas nas ilhas e no seu entorno, como extrativismo vegetal, produção agrí-cola, criação de animais e, mais recentemente, o turismo.

Já na porção leste, o estuário dos rios Timonha e Ubatuba e a faixa litorâ-nea, abriga uma das regiões mais importantes do Brasil para a reprodução da espécie mais ameaçada de mamífero marinho no país, o peixe boi marinho (Trichechus manatus).

Neste artigo enfatizaremos um dos projetos em desenvolvimento nesta unidade de conservação, denominado Projeto Manguezais do Brasil, devido à importância desse ecossistema como berçário de espécies estuarino-marinhos e exportador de biomassa e matéria orgânica para as áreas adjacentes e, princi-palmente, pela sua importância como forma de garantir a sustentabilidade de milhares de famílias que dependem exclusivamente desse ecossistema para a sua subsistência.

1. As Unidades de Conservação do Delta do Parnaíba

Além da APA Delta do Parnaíba, foi criada em 2000 a Reserva Extrativista (RE-SEX) Marinha do Delta do Parnaíba por demanda das comunidades ribeirinhas principalmente voltadas a pesca e a cata do caranguejo. Tanto a APA quanto a RESEX são categorias de Unidades de Conservação (UC) de uso sustentável e que possuem características próprias conforme estabelece o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC):

– As Reservas Extrativistas (RESEX) são estabelecidas em terras públicas e a pedido das populações tradicionais residentes. Essas populações dependem

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principalmente da extração dos recursos naturais disponíveis para ativida-des agrícolas de subsistência, da criação de animais de pequeno porte e, em menor proporção, do comércio. O direito de uso dos recursos nas RESEX é regulamentado por contrato assinado com o órgão competente. Acordos es-pecíficos permitem que as comunidades continuem a desempenhar suas ati-vidades tradicionais e lhes garantem participação na gestão da UC, através do conselho deliberativo. O fato de serem ao mesmo tempo áreas de produção e de conservação torna as RESEX sítios-piloto ideais para as novas abordagens de aproveitamento e manejo racional e sustentável de seus recursos.

– As Áreas de Proteção Ambiental (APA) são geralmente grandes extensões de terra pública e privada dotadas de atributos bióticos especialmente impor-tantes para o bem-estar ou qualidade de vida das populações humanas que as ocupam. Os objetivos básicos das APA são proteger a diversidade bioló-gica, disciplinar o processo de ocupação humana e assegurar o uso susten-tável dos recursos naturais dentro de seus limites. A categoria de APA está intrinsecamente vinculada ao ordenamento territorial, devendo restringir o desenvolvimento de atividades potencialmente prejudiciais ao meio am-biente por meio do zoneamento de seu território. O zoneamento, que é de-terminado pelo plano de manejo da APA, estabelece diretrizes de uso e deve incluir zonas destinadas à conservação e preservação de vida silvestre com uso restrito ou proibido de recursos naturais. Como costumam ser áreas ex-tensas e exigem um processo de zoneamento, constituem um território par-ticularmente propício para lidar com a conservação de ambientes tanto no contexto mais amplo de planejamento, quanto no controle das atividades realizadas a montante.

2. Os Manguezais e sua importância socioeconômica e cultural para as Comunidades Extrativistas

Estima-se que 25% dos manguezais brasileiros tenham sido destruídos desde o começo do século XX. Além disso, muito dos que ainda existem são classificados como vulneráveis ou ameaçados de extinção. A situação é particularmente séria nas regiões Nordeste e no Sudeste, que apresentam um grande nível de fragmen-tação; estimativas recentes sugerem que cerca de 40% do que foi um dia uma extensão contínua de manguezais foi suprimido. A transformação do habitat acontece por meio da perda e da fragmentação da cobertura vegetal e da dete-rioração da qualidade dos habitats aquáticos, isto devido, sobretudo, à poluição e às mudanças na hidrodinâmica. Ambas as situações dão lugar a um ambiente inóspito para as espécies de manguezais, com a consequente redução de espé-cies e à perda dos serviços ecossistêmicos que oferecem. Por exemplo, no Brasil, 80% das espécies marinhas de valor comercial (peixes, crustáceos e moluscos) dependem dos ecossistemas manguezais em uma ou mais etapas dos seus ciclos

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Fig. 2 - Localização das áreas protegidas inseridas na região do Delta do Parnaíba.

de vida, sobretudo nas fases larval e juvenil. A nível global, o déficit de nutrientes em ecossistemas marinhos causado pela degradação dos manguezais resulta em prejuízos anuais de aproximadamente 4,7 milhões de toneladas de peixe e 1,5 milhão de toneladas de camarão para a indústria pesqueira.

Além das espécies perdidas devido ao esgotamento dos habitats, no Brasil, algumas das espécies mais importantes, quer pelos serviços ecossistêmicos que fornecem, quer por seu papel na economia local, estão dando sinais de sobreeexploração. Uma dessas espécies é o caranguejo-uçá, que desempenha uma importante função na aeração do solo e na ciclagem de nutrientes, além de ser o principal recurso econômico de muitas comunidades inseridas em áreas de manguezal.

No contexto da importância das áreas de manguezal, o Governo Brasilei-ro, através do Ministério do Meio Ambiente, elaborou uma proposta junto ao Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), denominado Projeto Manguezais do Brasil, com recursos doados do Fundo Mundial para o Meio Ambiente (GEF) e contrapartida brasileira, que tem por objetivo promo-ver a conservação e utilização sustentável da biodiversidade dos manguezais no Brasil e fortalecer o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC), através do desenvolvimento em um campo de abordagem de gestão de áreas protegidas (APs) para a conservação efetiva de uma amostra representati-va dos manguezais do Brasil.

As comunidades que vivem nos manguezais frequentemente dependem de uma única espécie como principal fonte de renda e aplicam níveis de coleta e/ou métodos de captura insustentáveis, minando, assim, a contribuição das UCs Er

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para a conservação dos manguezais e ameaçando o sustento de longo prazo das comunidades que moram nessas unidades.

No agrupamento Maranhão, Piauí e Ceará, concentrado em torno do Delta do Parnaíba, as comunidades são formadas por pescadores artesanais, catadores de caranguejo e marisqueiras (mulheres que catam mariscos). O caranguejo-uçá é um dos principais recursos coletados pelas comunidades que vivem perto dos manguezais e, atualmente, vem sendo sobreexplorado, representa a principal atividade econômica para mais de 2000 famílias da região deltaica, sendo que os catadores de caranguejo estão entre as populações mais pobres do país, inse-ridas numa das regiões de menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Outras atividades econômicas que vêm se expandindo na região são o turismo e a carcinicultura. Além de ser responsável por sérios impactos sócio-econômicos e ambientais na região, a carcinicultura vai de encontro à perspectiva de desen-volvimento do turismo ecológico almejada por algumas comunidades.

O resultado esperado pelo projeto para a área piloto do Delta do Parnaíba se refere ao desenvolvimento de plano de manejo integrado de recursos e alterna-tivas de geração de renda para catadores de caranguejo-uçá, visando assegurar a existência dessa espécie, tão importante para a manutenção dos manguezais, em níveis suficientes e estáveis de forma a gerar conhecimentos para o manejo sustentável do caranguejo em todo o Brasil. Além disso, trata de questões am-bientais e de combate à pobreza e trabalha com as comunidades a sustentabili-dade de seus meios de vida.

O projeto contempla três níveis de ação ao mesmo tempo paralelos e com-plementares. O primeiro nível concentra-se no desenvolvimento do plano de manejo do recurso, que orientará as comunidades locais na exploração do ca-ranguejo e fornecerá uma estrutura de fiscalização e controle para seu cumpri-mento. O plano prevê, ainda, que as áreas de importância crítica, como as usadas para reprodução, serão identificadas através de levantamentos empíricos, con-sultas e comprovação in situ e estudos técnicos, que orientarão o zoneamento das áreas de exclusão de pesca dentro da APA e da RESEX.

O Projeto Manguezais do Brasil nos apoia no sentido de viabilizarmos reu-niões e workshops a fim de que se chegue a um acordo sobre as áreas de exclu-são de pesca e sobre a revisão dos períodos de defeso. Uma série de abordagens voltadas ao cumprimento das normas irá compor o plano de manejo, entre as quais a implantação do monitoramento comunitário e o aperfeiçoamento do planejamento e da colaboração entre as instituições relevantes que trabalhem nessa área de intervenção.

No segundo nível trata-se da questão das taxas de mortalidade de carangue-jos por meio de um programa de capacitação destinado aos catadores, dividido em módulos específicos sobre melhores métodos de captura, limpeza e embalagem, conforme a nova Instrução Normativa, n� 09/13, instituída pelo Ministério da Pesca e Aquicultura que regulamenta o transporte ao longo da cadeia produtiva, transporte tanto aquático quanto terrestre, responsável atualmente por cerca de

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Fig. 3 - Catador de Caranguejo (Crédito Fernando Gomes).

Fig. 4 - Catador de Caranguejo (Crédito Egberto Nogueira).Erth

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Fig. 5 - Forma de transporte terrestre de caranguejo-uçá (Crédito Fernando Gomes).

50% da mortalidade da espécie, e que entrará em vigor em janeiro de 2014, redu-zindo de forma considerável o desperdício do recurso natural. A norma teve por base a metodologia desenvolvida pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuá-ria (EMBRAPA) Meio Norte, na qual prevê o transporte de caranguejo utilizando caixas vazadas, reduzindo para até 5% a mortalidade do recurso.

3. Alternativas de Renda para Redução da Pressão sobre o Recurso Caranguejo

Outra abordagem do projeto diz respeito à busca de alternativas de geração de renda para contrabalançar a tendência natural das comunidades de aumentar os níveis de captura ao constatar a melhora no retorno financeiro da atividade pro-duzida pela redução das taxas de mortalidade. Essa estratégia contribuirá para as-segurar uma maior estabilidade para a renda das famílias locais que atualmente dependem da exploração do caranguejo-uçá como principal fonte de renda.

A opção mais promissora observada na região é o turismo de base comunitária, uma vez que a região do Delta se localiza entre outras duas áreas protegidas, reco-nhecidas internacionalmente no roteiro denominado Rota das Emoções, que inclui os Parques Nacionais dos Lençóis Maranhenses e de Jericoacoara, cuja visitação está crescendo anualmente de forma expressiva e que contribui para um incremento de renda ao longo de toda a cadeia do turismo, como hospedagem, gastronomia e o ser-viço de condução que, em sua maioria, são compostos por ex-pescadores ou filhos de pescadores e que, agora, se dedicam à atividade de conduzir o visitante.

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Diante da necessidade de reduzir a pressão sobre o recurso caranguejo, algu-mas alternativas de geração de renda foram identificadas e estão sendo executadas de forma inicial através de parceiros, como a EMBRAPA, Universidade Federal do Piauí (UFPI), e pelo ICMBio, através de projetos próprios tendo como apoio o Projeto Manguezais do Brasil, e que são considerados como viáveis e promisso-res, entre eles citamos o ecoturismo de base comunitária, centrado nas atrações locais, que apresentam um enorme potencial para uma iniciativa de turismo graças a sua flora, fauna, dunas, praias, cidades coloniais, tradições culturais, ar-tesanatos e a meliponicultura (produção de mel com espécies de abelhas nativas sem ferrão). Tais alternativas estão respaldadas por estudos de viabilidade e de mercado e por uma análise mais aprofundada das demandas, aptidões e recursos disponíveis da comunidade.

Além da possibilidade de fortalecer os empreendimentos comunitários ba-seados em recursos dos manguezais da área de intervenção do Delta do Parna-íba, o Projeto continuará a investigar oportunidades nas áreas de artesanato e de produtos confeccionados com matéria-prima extraída dos manguezais, que já são comercializados, em pequeno volume, nas comunidades costeiras. Es-ses produtos, vendidos em estabelecimentos turísticos, poderiam receber um certificado de origem da área protegida com manguezais como mecanismo de agregação de valor, de informação e de conscientização quanto à importância dos manguezais. A certificação origem de produtos e serviços dos manguezais, segundo os princípios do comércio justo e ético, asseguraria uma distribuição mais equitativa dos benefícios da biodiversidade dos manguezais, assim como um fornecimento sustentável desses produtos.

Outra forma de trabalho que realizamos é no sentido de fortalecer os es-paços de discussão através da capacitação dos atores comunitários, governa-mentais e setoriais para sua efetiva participação nos conselhos gestores das unidades de conservação, cuja sociedade pode participar de forma mais ativa da gestão das áreas protegidas através da capacitação com ênfase nos aspectos legais, políticos e institucionais das respectivas categorias de UC, treinamen-to em resolução de conflitos, participação das prefeituras no gerenciamento de UCs; ligação com outras instituições, inclusive daquelas fora dos limites da UC; importância socioeconômica e ambiental dos manguezais, papel das atividades tradicionais e alternativas sustentáveis para a conservação e o apro-veitamento das áreas com manguezais.

Ao considerarmos a importância da execução do Projeto Manguezais do Bra-sil para as comunidades ribeirinhas e para a sustentabilidade do principal recur-so pesqueiro do Delta do Parnaíba, objetivos de criação tanto da APA quanto da RESEX Marinha Delta do Parnaíba, pretendemos a partir dos avanços já alcança-dos com a articulação de parceiros e das comunidades extrativistas a construção de forma participativa de normas para garantir que a atividade se perpetue de forma a propiciar a melhoria da qualidade de vida das famílias que depen-dem dos recursos naturais da região deltaica e reduzir a pressão sob o recurso Er

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pesqueiro com a geração de renda a partir do desenvolvimento de alternativas de renda, como o ecoturismo de base comunitária e outros produtos oriundos do ecossistema manguezal.

Referências e Netgrafia

· CONSERVAÇÃO E USO SUSTENTÁVEL EFETIVOS DE ECOSSISTEMAS MANGUEZAIS NO BRASIL.

ICMBio/MMA, Brasil. 217p, 2008.

· DINERSTEIN, E.; Olson, D.; Graham, D.; Webster, A.; Primm, S.; Bookbinder, M.; Ledec, G. “A Conserva-

tion Assessment of the Terrestrial Eco-regions of Latin America and the Caribbean. The World Bank &

World Wildlife Fund”. Washington, DC, 1995.

· JUMA, C. “The role of information in the operation of the Convention on Biological Diversity”. In: D.L.

Hawksworth, P.M. Kirk & S. D. Clarke (eds.), Biodiversity Information: Needs and Options. Proceedin-

gs of the 1996 International Workshop on Biodiversity Information. CAB International, Wallingford,

UK, 1997, p. 125-128.

· LEGAT & PUCHNICK. Sustentabilidade da pesca do caranguejo-uçá, Ucides cosdatus cosdatus, nos Estados

do Piauí e Maranhão: Uma visão da cadeia produtiva do caranguejo a partir de Fóruns Participativos de

discussão. Embrapa/Ministério da Agricultura. 25p, 2003.

· LEGAT et al. Current fishery status of Ucides cordatus (Linnaeus, 1763) (Brachyura, Ocypodidae) in the

Parnaiba Delta region, Brazil. Nauplius: 13(1): 65 -70, 2005.

· http://www.icmbio.gov.br/portal/o-que-fazemos/programas-e-projetos/projeto-manguezais-do-brasil.html

· http://www.icmbio.gov.br/portal/biodiversidade/centros-de-pesquisa/mamiferos-aquaticos.html

· http://www.icmbio.gov.br/portal/biodiversidade/unidades-de-conservacao/biomas-brasileiros/mari-

nho/unidades-de-conservacao-marinho/2246-apa-delta-do-parnaiba.html

· http://www.icmbio.gov.br/portal/biodiversidade/unidades-de-conservacao/biomas-brasileiros/ma-

rinho/unidades-de-conservacao-marinho/2289-resex-delta-do-parnaiba.html

Contactar a autora: [email protected]

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Arquivos de Memória Memory Archives

Ana DuarteMuseóloga. Licenciada em História pela Faculdade de Letras da UL. Mestre em Museologia

e Património pela FCSH da Universidade Nova de Lisboa. Doutoranda em Belas-Artes,

Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa.

Resumo: Realizámos um pequeno projeto a partir das memórias dos utentes de um Lar de 3ª Idade em Setúbal. Todos eles, professores de vários graus de ensino e diver-sas disciplinas, assim como a sua direção, composta por professores aposentados que de forma voluntária gerem uma casa com todo o conforto e respondem de uma for-ma eficaz às necessidades dos residentes. Trabalhando nós como voluntária há já um ano nesta casa dando um curso de História de Portugal e conhecendo a direção e mui-tos dos utentes há três dezenas de anos, pois trabalhámos com eles e os seus alunos, quando os docentes estavam no ativo e se deslocavam ao museu, onde exercíamos funções, foi fácil o contato e a recolha de memórias. As memórias dos habitantes des-te lar são centradas nos ciclos de vida da sua família, da sua vida profissional e com o sagrado. O motor da vida das pessoas é constituído pelas relações que estabelecem e pelas estruturas relacionais que sobrevivem às próprias pessoas.

Palavras-chave: Memória. Educação Patrimonial. Seniores.

Abstract: I executed a small project based on the memories of the residentes of a retire-ment home, in Setúbal. The participants were all retired teachers from several teach-ing levels and áreas. The Board of Directors participated as well. The Board of Directors are retired teachers who voluntarily manage a home with all the comforts necessary and respond effectively to the needs of the residentes. Having worked as a volunteer in the home since almost a year ago (teaching History of Portugal) and being acquainted with the Board and many of the residentes (since I worked with them and their stu-dents when they were active teachers and came to the Museum where I worked), the contact and the gathering of memories was easy. The memories of the inhabitants of this home focus on their families life cycles, their professional lives and their relation-ship with sacred themes. The residentes of the home were driven by the relationships they established and the relationships that will eventually survive them.

Keywords: Memory. Heritage Education. Senior citizens.

O conceito clássico de património cultural foi-nos legado pelo século XIX e in-clui o património construído e o artístico, o natural e o geológico, o arqueológi-co e o etnográfico e ainda o científico e tecnológico.

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Hoje, considera-se também o património intangível, assim como as diversidades culturais. A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cul-tura, Unesco, define como Património Cultural Imaterial “as práticas, represen-tações, expressões, conhecimentos e técnicas – como os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados - que as comunidades, os grupos e, em alguns casos os indivíduos, reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural1”.

Nos últimos anos, procedeu-se à revisão dos conceitos de patrimonialização e de emblematização, a propósito não apenas de monumentos e sítios históri-cos, mas também para certos bens alimentares, que podem constituir-se num emblema para o turismo, não apenas num apelo ao consumo, mas também numa componente da história e do desenvolvimento local «sustentável».

Ao serviço educativo dos museus compete o cumprimento da função museológica de educa-

ção, uma das indispensáveis funções inerentes ao conceito de museu, que se articula com as

restantes funções museológicas de estudo e de investigação, de incorporação, de inventário e

de documentação, de interpretação e de exposição. (CAMACHO, 2005)

A ação de um museu não se deve confinar ao local ou locais onde se expõem os objetos, mas também ao território, “[...] conjunto de relações mantidas pelos homens, enquanto membros de uma sociedade, com a extensividade e alterida-de mediante a ajuda dos mediadores” (RAFESTIN, 1987: 263-269). As visitas guia-das no espaço territorial onde o museu se encontra inserido são encontros que visam problematizar na comunidade escolar ou outra, a fruição, a compreensão e a interpretação da memória coletiva.

Durante uma visita ao museu, e na leitura de uma qualquer peça de arte, deverá o educador interagir com os públicos, para que eles possam colocar o que pensam sobre a peça que estão a ver pois cada um dos públicos percebe, vê e sente de acordo com a sua história de vida, com o que já sabe e conhece sobre arte.

O valor etnográfico (etnológico ou antropológico) expressa a relevância de um bem cultural na hora de representar modos de vida passados e presentes, também expressa os significados simbólicos das identidades culturais dos gru-pos humanos (PEREIRO, 2006). Os serviços educativos devem produzir memó-rias reflexivas sobre os saberes de ofícios “tradicionais”, as aprendizagens e a transmissão de saberes em meio fabril/rural, os jogos tradicionais e outras ati-vidades, com o apoio de pessoas da própria comunidade, de forma continuada.

Nas várias atividades que o museu desenvolve para promover uma verdadeira aprendizagem é necessário que os participantes se envolvam nas tarefas: “devem aprender- fazendo (hands-on), fazer-pensando (minds-on), pensar-envolvendo-se (hearts–on); “[…] Os públicos juvenis devem ser motivados para a interpretação e fruição dos objetos, conceitos/ideias, espaços ou história da instituição,

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proporcionando uma experiência singular da qual resultem aprendizagens significativas e memórias duradouras que ampliem, reestruturem e se articu-lem com os conhecimentos e vivências prévias dos visitantes (GOMES DA SILVA, 2005).

As parcerias com artistas, sejam eles das artes performativas ou das Belas–Artes, são sempre desejáveis, pois a arte é um despoletador de sentidos. A partilha de conhecimentos e a produção de conhecimento em novos projetos são fulcrais no trabalho de equipa.

História ao Vivo é uma técnica de recriação do passado. Esta técnica faz principalmente apelo a três entidades fundamentais para o sucesso de qualquer ação: a escola, o museu e a comunidade. Esta atividade requer um espaço patri-monial comum a todos e portador de identidade, memória coletiva e consequen-tes memórias locais e pessoais, uma investigação do lugar escolhido, quer seja de um passado longínquo ou de uma realidade mais próxima, com recurso às fontes, aos documentos e à história oral que se coloca à parte dos outros ramos da história, pois assenta na memória e não em textos.

As categorias de não-público em museus têm a ver com o baixo nível de frequência em eventos culturais, a falta de conhecimento acerca das insti-tuições culturais e o fraco poder económico, cabe aos museus desenvolver atividades dotadas de sentido para esse nicho de públicos com identidades e interesses específicos.

Qualquer trabalho educativo depende da investigação, das memórias indi-viduais e de grupo, do potencial informativo que os objetos, os gestos, os ritos, a iconografia, as reservas dos museus e o inventário participativo contêm.

Verifiquei no meu trabalho no terreno, nos Açores, que as comunidades rurais revelam que nem sempre são plenamente autónomas e adotam por vezes valores das classes dominantes, enquanto que nas classes operárias e camponesas de Setúbal e Alentejo, os interesses dos trabalhadores são na maioria opostos aos dos patrões, as comunidades operárias vivem normal-mente em cidades ou em periferias densamente povoadas e as rurais em pe-quenos lugares e de grande relação com os vizinhos (FENTRESS;WICKHAM, 1992: 142- 143).

Os projetos com os públicos seniores vêm ao encontro das diretivas con-tidas no Relatório Global sobre Aprendizagem e Educação de Adultos, de 2009, que refere à importância da educação ao longo da vida como um estímulo à autonomia dos indivíduos.

A ideia de que os museus de todos os géneros contribuem de uma forma variada para a

criação de uma sociedade menos afetada pelo preconceito está a ser cada vez mais refletida

na retórica de agências museológicas internacionais, associações profissionais e governos.

(SANDELL 2007: 2)

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- O horror daquele momento - continuou o Rei - Nunca, nunca esquecerei!

- Mas hás – de esquecer – disse a Rainha - se não fizeres disso uma lembrança.

(CARROLL, 2010)

O que é uma lembrança, uma recordação? Como podemos trabalhar essas memórias tão ricas de imagens e representações? Ao olhar a foto destas duas meninas, cedida pela mais nova que hoje tem oitenta anos e ao ouvir a narrativa de uma memória que lhe está sedimentada no corpo:

[…] a Gininha mais velha do que eu e que no meu entender era muito bonita, eu admira-

va-a profundamente porque ela ia sempre a qualquer lado muito bem vestida! Naquele

piquenique ela ia com um vestido, com meias até ao joelho e de sapatos brancos! Uma

beleza, comparados com o meu bibe branco com folhos e as minhas sandálias. Castanhas

ainda por cima […] aquele dia marcou-me profundamente e creio que ao longo dos anos

da minha vida, senti sempre em reuniões várias, de não estar bem, comparada com as

outras mulheres […]

Fig.1 - Testemunho e cedência de foto de uma informante

de 81 anos de idade, farmacêutica reformada.

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Lembramos, mais uma vez, James Fentress e Chris Wickham (1992: 20):

Quando recordamos, elaboramos uma representação de nós próprios para nós próprios

e para aqueles que nos rodeiam. Na medida em que a nossa ‘natureza’ - o que realmente

somos – se pode revelar de um modo articulado, somos aquilo que nos lembramos […] a

maneira como ordenamos e estruturamos as nossas ideias nas nossas memórias e a ma-

neira como transmitimos essas memórias a outros – é o estudo da maneira como somos.

E foi com a narrativa dessa memória e imagem que partimos para este últi-mo projeto realizado num Lar de 3ª Idade, em que todos os utentes foram profes-sores de vários graus de ensino e diversas disciplinas, assim como a sua direção, composta por professores aposentados que de forma voluntária gerem uma casa com todo o conforto e respondem de uma forma eficaz às necessidades dos re-sidentes. Trabalhando como voluntária há já um ano nesta casa dando um cur-so de História de Portugal e conhecendo a direção e muitos dos utentes há três dezenas de anos, pois trabalhei com eles e os seus alunos, quando os docentes estavam no ativo e se deslocavam ao museu, onde eu exercia funções, foi fácil o contato e a recolha de memórias.

A memória nem sempre é rigorosa, mas distorcida e seletiva; e em Paul Con-nerton, nos seus estudos sobre a maneira como as sociedades recordam, confir-mei esta minha afirmação“ […] o ato de recordar não é uma questão de reprodu-ção mas de construção […]” (993: 32).

As memórias dos habitantes deste lar são centradas nos ciclos de vida da sua família, da sua vida profissional e com o sagrado. O motor da vida das pessoas é constituído pelas relações que estabelecem e pelas estruturas relacionais que so-brevivem às próprias pessoas. Este projeto com os seniores em Setúbal evoluiu e a determinada altura foi-lhes lançado um convite para escolherem:

– um objeto dos que selecionaram para trazerem para o quarto onde habitam no Lar, de primordial importância e memória de um momento marcante nas suas vidas;

– memórias associadas ao objeto escritas ou verbalizadas;– palavras associadas ao objeto;– imagens associadas ao objeto;– Emoções provocadas pelas memórias trazidas pelo objeto passadas para um

suporte cerâmico.

E foi através do diálogo, uma ferramenta para a descoberta e para a interpre-tação, através do levantamento de questões e da procura conjunta de respostas que recolhi memórias a partir dos objetos, da sua interpretação e das sensações que provocam, que são a chave para a construção de aprendizagens duradouras.

Convidei Andreas Stöcklein, artista plástico, para este projeto, o qual aderiu

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voluntariamente. Licenciado em Belas-Artes pela Kunst Akademie Dusseldorf, residente há longos anos em Portugal, onde tem realizado a sua obra plástica em espaço público, através da Galeria Ratton: os azulejos da estação de Campolide, o altar-mor da nova igreja de Alfragide ou o painel de azulejos para a Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.

Os 60 utentes da Casa dos Professores em Setúbal têm uma média de oitenta anos e 60% já não têm capacidade motora ou cognitiva para desenvolver ativi-dades. Os restantes praticamente aderiram todos, apesar de sentirem o medo de não fazer perfeito.

Fig. 2 - Visão de conjunto do painel realizado pelos utentes

da Casa dos Professores em Setúbal.

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Fig. 3 - Azulejo representando um terço, pintado por uma professora reformada do

1º ciclo do Ensino Básico, 80 anos.

Fig. 4 - Imagem de um Bambi, memória do início da sua relação. Professora

reformada de Literatura Portuguesa e Latim do Ensino Secundário, 86 anos.

Fig. 5 - Azulejo representando a memória que descreveu.

O resultado foi um painel que vai ser colocado numa parede do pátio onde repousam ao fim da tarde e onde realizam as suas festas, local escolhido pela comunidade da Associação de Professores.

A título de exemplo, uma das utentes participantes, ex-professora do ensino básico, de 80 anos, escolheu o terço, porque está ligado à memória do marido que o trazia sempre com ele, herdado de uma avó, pendura-o no candeeiro de mesi-nha de cabeceira todas as noites e despede-se dele à hora de dormir. A memória foi verbalizada e mais tarde representada num azulejo. Aprendeu as várias téc-nicas e pintou-o de uma forma bastante conseguida.

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Outra utente, ex-professora do ensino secundário, de 86 anos, escolheu um Bambi, que guarda com grande afeto, vive com um residente de 92 anos, jun-taram-se há vinte anos, depois de terem enviuvado. A história do Bambi, filme visto por ambos os liga em conversas e recordações de juventude, tornou-se um símbolo da sua união ao recordar a ternura desse animal. O azulejo retrata a re-lação e o seu início.

Um membro da direção, ex-inspetora do ensino básico, de 81 anos, que também quis participar, deu-nos a imagem de uma bicicleta, que já não é a sua, mas ao trazer uma cópia desse meio de transporte, foi porque ele faz parte inte-grante da sua memória, ligou o objeto a uma palavra, liberdade, e a uma memó-ria que a marcou, porque filha de uma família muito conservadora e autoritária, ela encontrava nos passeios que dava com ela pelos milheirais uma liberdade infinda durante toda a sua juventude.

Por fim a avaliação que deve estar sempre presente em qualquer projeto mu-seológico. A de um ex-professor de Português e Francês, de 89 anos que colabo-rou nesta atividade

Aquele objeto e aquele azulejo estão completamente ligados à minha vida passada. É o prin-

cípio da minha vida profissional, escolhi a palavra êxito e o objeto é o pesa-papéis que os

alunos me deram, as classificações dos alunos foram muito boas e foi muito importante,

porque eu também estava a ser avaliado, eu era novo e os mais velhos estavam de olho

em mim. No azulejo pintei o nascer do sol, entre duas montanhas, porque aquele início de

vida profissional foi a minha alvorada. (Professor Reformado de Português e Francês,

utente da Casa de Professores em Setúbal, 89 anos)

Fig. 6 - Azulejo representando a memória da sua bicicleta, símbolo de liberdade.

Professora, Inspetora do 1º Ciclo do Ensino Básico. 81 anos.

Fig. 7 - Azulejo resultante de uma memória ligada a um objeto (pisa-papéis) ofertado

pelos alunos. Professor de Português e Francês, do Ensino Secundário, 89 anos.

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Referências e Notas

· CAMACHO, Clara Frayão. “Serviços educativos na Rede Portuguesa de Museus: panorâmica e perspec-

tivas”. In: Serviços Educativos na Cultura. Coordenação Susana Gomes da Silva e Sara Barriga, Porto:

Sete-Pés, 2005.

· CARROLL, LEWIS. Alice do Outro Lado do Espelho. Lisboa: Editora Nelson de Matos. (Coleção Biblioteca

Juvenil), 2010.

· CONNERTON, Paul. Como as sociedades recordam. Oeiras: Celta, 1993.

· GOMES DA SILVA, Susana. “Enquadramento Teórico para uma Prática Educativa nos Museus”. In: Ser-

viços Educativos na Cultura, Coordenação Susana Gomes da Silva e Sara Barriga, Porto: Sete-Pés, 2005.

· FENTRESS, J; WICKAM, C. Memória Social. Tradução portuguesa de Telma Costa. Lisboa: Teorema, 1992.

· PEREIRO, X. “Património cultural: o casamento entre património e cultura”. In: ADRA n. 2. Revista

dos sócios do Museu do Povo Galego, 2006.

· RAFFESTIN, C. Raffestin. “Repères pour une théorie de la territorialité humaine”. Cahier du Groupe

Réseaux, n. 07, 1987.

· SANDELL, Richard. Museums Prejudice and the Reframing of Difference. Oxford: Routledge, 2007.

· 1 Cf.: http://www.cultura-alentejo.pt/pagina,6,15.aspx.

Contactar a autora: [email protected]

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Patrimônio Ambiental da Ilha Grande, Piauí, BrasilEnvironmental Heritage the Ilha Grande, Piauí, Brasil

Francinalda Rodrigues RochaMestre, Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento e Meio Ambiente –

PRODEMA, Universidade Federal do Piauí UFPI; membro do Núcleo Vivências

Integradas com o Meio Ambiente, atuando na coordenação das ações nas áreas

de educação ambiental e ecoturismo da Universidade Estadual do Piauí

(UESPI); e membro da ONG Comissão Ilha Ativa (CIA | Brasil).

Resumo: Este artigo tem como objetivo apresentar pesquisa, cujo objetivo foi apre-ender às concepções de patrimônio ambiental de estudantes da Ilha Grande de San-ta Isabel, Piauí, Delta do Parnaíba, Brasil. Como método de captura de informações utilizou-se questionário e mapas mentais sobre a vida na comunidade. Os relatos revelaram que há uma estreita relação entre os bens naturais e a comunidade local, o que revela cuidados com o meio ambiente.

Palavras-chave: Brasil. Patrimônio Ambiental e Cultural. Comunidades. Delta do Parnaíba.

Abstract: This article aims to present research whose objective was to understand the concepts of environmental patrimony of students from Ilha Grande de Santa Isabel, Piauí, “Delta do Parnaíba” Brazil. As a method of capture of informations were used a questionary and mental maps about life in the community. The reports revealed that there is a close relationship between natural resources and the local community, which shows care for the environment.

Keywords: Brazil. Environmental patrimony and cultural. community. Delta do Parnaíba.

Introdução

A relação estabelecida entre pessoa/meio ambiente natural foi determinante para a escolha do tema objeto desta investigação, tendo em vista que os proble-mas ambientais são vistos sem contemplar as interrelações do meio natural com o social e das ligações ambiente e desenvolvimento.

Diante dessa conjuntura, apreender as concepções dos estudantes na com-preensão do patrimônio ambiental e interligar esse mesmo patrimônio em es-tratégias de sustentabilidade é desafiador na busca de novos caminhos que con-duzam à valorização do patrimônio natural da comunidade. Nesse sentido, este estudo nos orientou nas reflexões sobre as relações entre patrimônio ambiental e sustentabilidade no cotidiano da Ilha Grande, Piauí, distante 340 km da capital do estado - Teresina, sítio que faz parte da Microrregião do Litoral Piauiense.

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O município faz parte do Delta do Parnaíba, um dos trechos turísticos que está incluído na Rota das Emoções (Projeto de Integração Turística que insere os estados do Ceará, Piauí e Maranhão (BRASIL, 2004); além do turismo, outros bens naturais estão presentes na economia local: cata do caranguejo, marisco, camarão e pesca; coleta do caju (Anacardium occidentale L.) e do murici (Byrsonima crassifolia L. Rich).

A ferramenta de análise utilizada na pesquisa foi o estudo da percepção am-biental dos agentes produtores do espaço de Ilha Grande, partindo-se do pressu-posto de que ao se apreender a forma com que cada um percebe seu meio, pode--se interpretar com mais segurança as causas e consequências de todo o processo de apropriação e produção do espaço vivido.

Fez-se uso do estudo da percepção ambiental, apresentada pelos autores: Davidoff (1983); Del Rio e Oliveira (1999); Ferrara (1999); Macedo (2000); Tuan (1980); o objetivo era compreender os processos de utilizações e sensibilidades na percepção do ambiente; daí a importância do conceito de percepção ambiental, entendida como a experiência sensorial direta do ambiente em um dado momen-to, que implica em estruturação e interpretação da estimulação ambiental pelas pessoas (BASSANI, 2001).

Dessa forma, importante perceber a questão ambiental, que se tomou base fun-damental dos estudos de Yi-Fu Tuan (1980), que desenvolveu trabalhos na pers-pectiva da percepção, atitudes e valores do meio ambiente direcionada à topofilia1.

Esta pesquisa/ação consistiu em aplicar, em sala de aula, um questionário aberto com os aluno/as. Foi entregue um formulário para cada estudante, fazia--se a leitura por questão, e toda a turma respondia ao mesmo tempo em folha de papel entregue anteriormente. O questionário foi dirigido para se obter dos estudantes um relato por escrito de suas experiências próprias, de seus conheci-mentos e simpatias de uma maneira mais fechada do que a entrevista.

No final da atividade, foi pedido que “desenhassem a vida em Ilha Grande”, solicitação verbal para que cada aluno/a desenhasse o lugar onde vivia, com o objetivo de documentar suas percepções do ambiente, como também contribuir para elaboração de um inventário visual da cultura e identidade das pessoas do município; a atividade durou o tempo médio de 35 min.

A fonte dos dados de campo foi proveniente de pesquisa de campo realiza-da em maio de 2009, com 79 alunos do 7� ano do Ensino Fundamental; foi uti-lizada a ferramenta questionário com duas questões: “o que lhe vêm à mente quando se fala em Ilha Grande? Desenhe a vida em Ilha Grande”. Os estudante estavam na faixa etária entre 9 e 20 anos, sendo recolhida um tipo de amostra-gem não probabilística, que segundo Gil (2000), é definida como amostragem por acessibilidade.

Dos estudantes, 82,00% eram naturais da cidade de Parnaíba, o que se justifica pela recente emancipação do município; 2,00%, de Luís Correia, no estado do Piauí; e 16,00%, dos estados do Maranhão, Bahia, Pará, Rio de Janeiro, Distrito Federal e São Paulo. O tempo de residência em Ilha Grande variou entre 1 mês e 16 anos.

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Essa metodologia dos mapas mentais, com o usos de desenhos, permite classificar as repostas dos questionários em categorias (BEZERRA, 2008). Enquanto que as perguntas dos questionários tiveram como base o estudo de Diegues (2005).

1. Resultados e discussão1.1 Percepção ambiental

Um aspecto apresentado nos relatos, 45,00%, diz respeito a categoria natureza, principalmente, à paisagem existente no município, com destaque para dunas, praias e riqueza hídrica. Segundo Tuan (1983), o aspecto topofílico é caracteriza-do por um sentimento de afeto que o indivíduo tem com o lugar em que mora. Esse aspecto apareceu em 23,33% das citações dos alunos/as, demonstrado por um laço afetivo com o lugar, que pôde ser evidenciado, nos depoimentos, por fra-ses como: “um bom lugar para se viver e curtir”, “cidade maravilhosa”, “cidade tranquila.” Situações que se apresentam contraditórias, pois, embora os morado-res tenham afeto pelo município de Ilha Grande, ainda se observa a falta de cui-dado com o lugar, citemos o lixo jogado a céu aberto, espalhado por toda a região.

Na percepção dos entrevistados, quanto às causas de satisfação no municí-pio, 37,23% das citações dos alunos se referem à categoria natureza. Mais uma vez, os bens naturais foram assinalados no imaginário, como simbologia do que há de melhor no lugar, causando nas pessoas o orgulho de serem daquele lugar.

Vale ressaltar que a maneira de se expressar dos estudantes demonstra a grande valorização que fazem do lugar em que vivem, com todos os seus atrati-vos naturais e culturais, e que prevalece a satisfação de morar em Ilha Grande.

Quando se trata do município de Ilha Grande, imagina-se o que poderia existir para ser visitado; nesse aspecto, 78,32% das referências dos alunos/as são em rela-ção às potencialidades da categoria natureza, destacam as dunas, o Delta do Rio Parnaíba, o Morro Branco e as praias. Observa-se, pelas citações, que na percepção dos entrevistados a natureza é exaltada. Nessa categoria, a Praia da Pedra do Sal e a Ilha das Canárias, pertencentes aos municípios de Parnaíba-PI e Araióses-MA, res-pectivamente, foram citadas como se fizessem parte da Ilha Grande; o que revela que a população não faz a mesma delimitação territorial quanto ao uso do espaço físico, são outras táticas, representações e formas de uso e trato do lugar.

Diegues (2005: 164) reafirma que “[...] na maioria dos ecossistemas, chama-dos naturais, a ação humana é crucial, seja para manter os processos naturais es-senciais, seja para perturbá-los, muitas vezes de forma desastrosa e irreversível”.

O município de Ilha Grande não foge a essa lógica, pois, embora se observe que os moradores estejam sensibilizados para os problemas socioambientais, trata-se de criar condições no campo da educação formal e informal, ações concretas que levem em consideração a mudança de valores e de comportamento cotidianos dos habitantes. É imperativo destacar que as ações educativas precisam ser sistemáti-cas para a transformação de uma realidade, mas é preciso estarmos atentos, para que haja a participação da comunidade.

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1.2 Mapa cognitivo sobre a vida cotidiana na Ilha Grande

A percepção é o processo mental mediante o qual, a partir do interesse e da ne-cessidade, é estruturada e organizada a interface com a realidade e o mundo, selecionando as informações percebidas, armazenando-as e conferindo-lhes sig-nificado (DEL RIO, OLIVEIRA, 1999).

Para ilustrar o pensamento dos alunos/as, daquilo que foi expresso em pala-vras, foi solicitado que desenhassem “a vida em Ilha Grande”, pois o desenho é uma forma de expressão de como as pessoas veem o mundo e suas particularidades.

De posse dos desenhos, realizados pelos estudantes das quatro escolas2 sele-cionadas para a investigação, foi feita a distribuição por categorias, que consis-tiu em escolher dentres as ilustrações informações das relações homem/mulher e natureza, baseadas em três aspectos: visão antropocêntrica, visão naturalista e visão globalizante.

Di Leo (1985) afirma que as crianças consideram pessoas, casas e árvores in-fluências significativas em suas vidas, o que pode ser observado nos 67,10% dos desenhos que representam a visão globalizante “[...] em que a figura humana é apresentada como pertencente à natureza e é percebida as suas inter-relações” (RIBEIRO, 2007:168), o que reforça as nossas reflexões sobre a Ilha Grande como “um bom lugar para se viver e curtir”, “das maravilhas que tem em meu lugar”, “da maravilha que tenho orgulho”.

Nas ilustrações, os sinais humanos são marcados pela presença do homem/mulher e de objetos construídos como casas, ponte, bar, escola, quadra de espor-te, posto de saúde, igrejas católica e evangélica, praça, livro e meios de transporte (canoa, bicicleta, ônibus); e as inter-relações assinaladas em destaque pela loca-lização das residências entre a paisagem natural e a utilização dos bens naturais para a sobrevivência como a pesca, coleta do caju, criação de animais, cata do caranguejo e, para o lazer (Imagem 1).

Vale ressaltar que são ilustrados nos desenhos dessa categoria aspectos que apontam para o laço afetivo com o lugar, o que pode ser evidenciado por frases que os acompanham como: “A vida em Ilha Grande é um paraíso e poderia ser muito mais”.

O município é apresentado com orgulho de pertencer aquele lugar. Também as atividades cotidianas destacadas pela frase: “Em nossa terra pescamos, ajun-tamos caju, lavamos roupa nas lagoas, fazemos caera (queima da madeira para fazer carvão) e trabalhamos”, alguns desenhos ilustram o corte de árvores, ma-deira sendo queimada para fazer carvão, rios com um peixe e o arame farpado próximo a uma casa, ilustrando a sua demarcação.

A visão naturalista aparece em 20,25% dos desenhos; foi verificado que “[...] o ser humano não é visto como parte integrante da natureza, em que a natureza é tratada como algo externo e longe da pessoa humana” (RIBEIRO, 2007: 168). Nesse aspecto, têm-se dois fatores que chamam a atenção e levam a reflexão: como apresentar por meio de ilustração a vida do lugar em que se mora sem

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Fig. 1 - Representação da visão globalizante da vida em Ilha

Grande, da estudante A, de 12 anos do bairro Labino.

Fig. 2 - Representação da visão naturalista, da vida em Ilha

Grande, da estudante B, 16 anos, bairro Centro.

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Fig. 3 - Representação da visão antropocêntrica, da vida em

Ilha Grande, do estudante C, 12 anos, bairro Tatus.

inserir a figura humana? Por que o homem está excluído? Segundo TUAN (1963), pode ser justificado pelo aspecto topofílico, marcado por um senti-mento de afeto que o indivíduo tem com o lugar em que vive, apresentado nas ilustrações como demonstração do orgulho dos bens naturais existentes em Ilha Grande, traduzido na presença de dunas, praias, rios, lagoas (Ima-gem 2); patrimônio que as pessoas encontram em uma região com potencia-lidades, biodiversidade rica e ambientes naturais diversos, sendo impossível não marcar as memórias coletivas.

Em estudos realizados por Dorst (1973), Singer (1994) e Ribeiro (2007) há re-latos da concepção utilitarista e antropocêntrica do homem, nos quais a figura humana é destacada como centro, por onde e para onde tudo é gerado, em que a natureza se encontra à disposição, a serviço do ser humano, vista apenas como fonte de recursos.

A pesquisa nos revela que 12,65% dos alunos/as expressaram essa visão, pois em seus desenhos destacaram, em tamanho maior, a figura humana ou es-trutura de residência, santuário ou meios de transporte, que o homem/mulher utilizam para a sua sobrevivência, com o mínimo ou nenhuma relação com os outros bens naturais (Imagem 3). Esse dado não foi confirmado nas respostas ao questionário aberto, pois a exaltação e preocupação/cuidado com a natureza eram sempre referidas como centro e maior expressão.

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Conclusão

Neste artigo tratamos de apresentar parte de uma investigação sobre a percep-ção dos moradores de Ilha Grande em relação ao ambiente natural onde vivem, avaliação da sustentabilidade a partir do pensamento social. Estudo que nos possibilitou entender as reais demandas e anseios da comunidade local no que tange à proteção do ambiente.

O estudo revelou que o município de Ilha Grande é dotado de significado para seus habitantes, na medida em que compartilham, além do espaço, as experiências e as vivências associadas a uma mesma paisagem, o que pode se justificar pela prática diária de viver nos e dos ecossistemas. Com isso, verificamos que a relação que os habitantes estabelecem com o lugar onde vivem é marcada por orgulho e prazer.

Em relação ao meio ambiente, é possível afirmar que o imaginário dos entre-vistados aproxima-se dos ideais norteadores da proteção e cuidado com o lugar em que se vive, visto que, nas suas respostas, prevaleceu a categoria natureza como objeto de contemplação, atrativo, orgulho e satisfação, o que pode ser jus-tificado pelos aspectos que representam a sua dependência aos bens naturais relacionados à sobrevivência.

Os desenhos sugerem aproveitar as potencialidades naturais e culturais, sem que haja destruição dos bens naturais que garantem a sobrevivência; a proteção da natureza para a população é antes de tudo uma necessidade moral essencial, parte de sua identidade.

Os resultados apresentados contribuirão para gerar subsídios teórico-meto-dológicos para pesquisas e referenciais de planejamento de ações de turismo e gestão ambiental no lugar; o que demanda novos estudos e trabalhos na região pesquisada, que visem à ampliação dos conhecimentos nesta área no Piauí.

Referências e Notas

· BASSANI, M. A. “Fatores psicológicos da percepção da qualidade ambiental”. In: BOLLMANN, H.

A.; MAIA, N. B. MARTOS, H. L.; BARRELA, W. (Org.). Indicadores ambientais: conceitos e aplicações.

São Paulo: EDUC/COPED/INEP, 2001.

· BEZERRA, T. M. de O.; FELICIANO, A. L. P.; ALVES, A. G. C. (2008). “Percepção ambiental de alunos

e professores do entorno da Estação Ecológica de Caetés – região metropolitana do Recife-PE. Santa

Catarina”: Revista Biotemas, v. 21, n. 1, mar.

· BRASIL. MINISTÉRIO DO TURISMO. Plano de desenvolvimento integrado de turismo sustentável PRODETUR/NE

II e os municípios – caminhos do desenvolvimento pelo turismo. Parnaíba: MTUR. CD-ROM, 2004.

· DAVIDOFF, L. F. Introdução à psicologia. São Paulo: McGraw - Hill do Brasil, 1993.

· DEL RIO, V.; OLIVEIRA, L. de . Percepção Ambiental – a experiência brasileira. São Paulo. Studio Nobel, 1999.

· DIEGUES. A. C. S. O nosso lugar virou parque: estudos sociambiental do Saco do Mamanguá. 3. ed. São Paulo:

Núcleo de Apoio à Pesquisa sobre População Humanas e Áreas Úmidas Brasileiras, USP, 2005.

· DI LEO, J. H. A interpretação do desenho infantil. Porto Alegre: Artes Médicas, 1985.

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· DORST, J. Antes que a natureza morra. São Paulo: Melhoramentos, 1973.

· FERRARA, L. D. A. “As Cidades Ilegíveis – Percepção Ambiental e Cidadania”. In: DEL RIO, Vicente &

OLIVEIRA, Lívia de (Org.). Percepção Ambiental – a experiência brasileira. São Paulo: Studio Nobel, 1999.

· GIL, A.C. Técnicas de pesquisa em economia e elaboração de monografias. São Paulo:: Atlas, 2000.

· MACEDO, R. L. G. Percepção e conscientização ambiental. Lavras/MG: Editora UFLA/FAEPE, 2000.

· RIBEIRO, I. de C. “Educação ambiental no ambiente empresarial: um caminho para a responsabilidade

social”. IN: PEDRINE, A. G. (Org.). Metodologia em educação ambiental. Petropolis-RJ: Vozes, 2007.

· SINGER, P. Ética prática. São Paulo: Martins Fontes, 1994.

· TUAN, Y. Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente. São Paulo: DIFEL, 1980.

· 1 Elo afetivo entre a pessoa e o lugar ou ambiente físico (TUAN,1980: 5).

· 2 As escolas pesquisadas no primeiro semestre de 2009 foram uma da rede estadual e três da rede municipal:

Unidade Escolar Marocas Lima; Escola Municipal Zila Almeida, Escola Municipal Profª Maria

de Lourdes Pinheiro Machado e Escola Municipal D. Paulo Hipólito de Souza Libório.

Contactar a autora: [email protected]

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APA Delta do Parnaíba e o Peixe-BoiAPA Delta of Panaíba and the manatee

Patrícia dos Passos Claro Área de Proteção Ambiental Delta do Parnaíba

Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade – ICMBio

Resumo: A criação da Área de Proteção Ambiental Delta do Parnaíba em 1996 tem em sua trajetória, uma relação íntima com os mais de 30 anos de história do Projeto Peixe-boi. As pesquisas iniciadas pelo projeto desde a década de 1980 assinalaram entre outros resultados, a importância do Delta do Parnaíba e particularmente de um estuário menor, o do Timonha e Ubatuba, para a alimentação e reprodução da espécie Trichechus manatus no litoral norte brasileiro. A criação do povoado Cajueiro da Praia, hoje município emancipado e sede da Base Peixe-boi, se entrelaça com esta história de luta pela conservação ambiental e coloca em cena um relacionamento singular entre estes simpáticos mamíferos aquáticos, as comunidades pescadoras da região e o território abraçado pela APA.

Palavras-chave: Projeto Peixe-boi. Delta do Parnaíba. Cajueiro da Praia. Piauí. Brasil.

Abstract: The creation of the Environmental Protection Area of Delta of Parnaíba in 1996 is on its way, an intimate relationship with more than 30 year history of the Manatee Project. The research initiated by the project since the 1980s noted among other results, the importance of the Parnaíba Delta and particularly a minor estuary, the Timonha and Ubatuba, for the feeding and reproduction of the species Trichechus manatus on the northern coast of Brazil. The creation of the village Cashew Beach to-day emancipated municipality and headquarters of Base Manatee, is entangled with this story of struggle for environmental conservation and puts on the scene a unique relationship between these friendly marine mammals, the fishing communities of the region and the territory embraced by APA.

Keywords: Manatee Project. Delta of Parnaíba. Cashew Beach. Piauí. Brazil.

Introdução

A Área de Proteção Ambiental Delta do Parnaíba é uma unidade de conservação, localizada no litoral dos estados do Maranhão, Piauí e Ceará. Foi criada em 1996 para proteger uma rica e complexa riqueza biológica e genética, caracterizada por manguezais, restingas, caatinga litorânea, carnaubais, dunas, praias e lago-as, que abrigam uma fauna rica e diversificada.

Na APA, há o reconhecimento da importância que ocupa o rio Parnaíba,

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que banha os estados do Maranhão e do Piauí, único delta em mar aberto das Américas e que, ao se aproximar do mar, abraça mais de 80 ilhas e serve como santuário de reprodução e alimentação de diversas espécies de aves, tartarugas marinhas, peixes, caranguejos, lagostas e camarões.

A leste, próximo do Ceará, a APA Delta do Parnaíba também inclui uma das maiores áreas de ecossistemas manguezais remanescente da região Nordeste, no estuário do rio Timonha e mais cinco rios que correm do Piauí e Ceará ao seu en-contro: Arraia, Carpina, Camelo, Ubatuba e da Chapada. São quase 11.000 (onze mil) hectares de ecossistemas manguezais, ainda razoavelmente bem preserva-dos, além de outros ecossistemas costeiros também presentes na porção oeste da APA, a exemplo de dunas, restingas e lagoas costeiras.

O estuário do Timonha é uma importante área de berçário para a espécie trichechus manatus (peixe-boi marinho), bem como para outras espécies mari-nhas que completam seu ciclo de vida nos ecossistemas manguezais. Esta região estuarina e parte significativa da costa litorânea do Piauí, entre as praias do Co-queiro, no município de Luís Correia e Itã, em Cajueiro da Praia, constituem-se habitat de uma população de peixes-bois marinhos que não têm sofrido graves ameaças até o momento.

1. Cajueiro da Praia

Último município da Planície Litorânea piauiense, localizado na divisa com o estado do Ceará, Cajueiro da Praia tem seus limites geopolíticos desenhados a oeste e a leste por rios. Na fronteira oeste, o rio Camurupim, que se encontra com o rio Cardoso para constituir um estuário menor que o seu vizinho pró-ximo, marca o limite com o município piauiense de Luís Correia. Na fronteira leste, o rio Ubatuba, que forma com os demais rios citados anteriormente, o es-tuário do Timonha, é o que delimita o território piauiense e o cearense.

Em todo litoral de Cajueiro da Praia e em algumas praias de Luís Correia são frequentes as avistagens de peixes-bois, seja no mar à vista das praias, seja no interior dos estuários. Não existem registros de encalhes de filhotes e são raríssi-mos os de encalhes de carcaças, pelo menos nos últimos 20 anos.

Desde a fundação da Base Peixe-boi, em 1994, apenas uma morte foi registrada, no ano de 2008, talvez como resultado de um tipo de pesca predatória que persis-te no interior do estuário do rio Timonha, próximo à cidade cearense de Chaval.

As comunidades humanas locais, constituídas por populações tradicionais ligadas à pesca artesanal e à agricultura familiar, mantêm uma relação de convi-vência pacífica com o peixe-boi, com pouquíssimos registros históricos de con-flito. Ao contrário, o peixe-boi é um ícone da região, votado na Câmara Munici-pal de Cajueiro da Praia como patrimônio natural do município.

A ocupação desse território ocorreu, como na história do Piauí, do interior para o litoral, a partir de comunidades que existiam na Serra da Ibiapaba, aflora-mento rochoso que desenha quase uma linha perpendicular à linha do Equador,

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na qual se estabeleceu uma parte significativa da divisão geopolítica entre o Piauí e o Ceará.

Os primeiros habitantes da região chegaram no final do século XIX, segundo depoimentos da professora de Geografia do município Júlia Freitas de Souza; no início, eventualmente, vinham apenas pescar, já que índios Tremembés, re-sidentes na região, reagiam às visitas eventuais com uma “chuva de flechas”. O depoimento da professora foi baseado em trabalho de pesquisa realizado por ela ainda quando estava no curso pedagógico, a Escola Normal.

Em seu depoimento, a professora Júlia conta que Zé de Barros e Profírio Queiroz, em um dos passeios ocasionais, destinados à atividade de pesca, perce-beram que os índios não mais os recebiam com “flechas”, e investigando, cons-tataram que a tribo havia abandonado o local, deixando apenas alguns vestígios, como gamelas e cerâmicas. Resolveram então fixar residência no litoral.

Embora suas famílias tivessem tradições voltadas para a agricultura e a criação de animais, atividade típica do interior piauiense, a abundância de peixes, crustá-ceos e moluscos, deve ter influenciado fortemente na decisão de mudança. Segun-do entrevistas realizadas pela professora com os moradores mais velhos da cidade, inclusive de sua família, eles foram os fundadores do povoado de Cajueiro da Praia.

Ainda segundo Júlia, o nome dado ao povoado, Cajueiro da Praia, refere-se a um pequeno pé de Cajueiro, fruta característica da região nordeste do Brasil, que existia próximo à Base Peixe-boi, e que foi mantido vivo quando dividiram entre si as glebas para o preparo da roça através da atividade de broca (limpa do terre-no) e queima; Zé de Barros teria ficado com Cajueiro de Baixo, pedaço de terra de frente da praia de mesmo nome; Profírio Queiroz, por sua vez, teria ficado com a gleba do Cajueiro de Cima, em frente à Praia da Itã. E o pé de Cajueiro a dividir as duas glebas, postava-se em frente ao barreiro, próximo ao local onde hoje é a Base Peixe-boi, sendo visto de longe pelas canoas que por ali passavam.

Nesse contexto, a pesca e as tradições ligadas à cultura marítima e estuarina fo-ram se desenvolvendo, mas nunca deixaram de assumir a característica artesanal e não comercial. A pesca, segundo a professora Júlia, e confirmado por pescadores da região ainda hoje, colocava a “mistura” na mesa, acrescida do feijão e da farinha. À tradição de agricultores, sobrepôs-se um modo de ser relacionado ao vai e vem das marés, do ciclo das chuvas e estiagens tão característicos do semi-árido brasileiro, mas bordado por praias encantadoras e manguezais cheios de lama, cheios de vida.

Entre tantas formas de vida, peixes, camarões, caranguejos, ostras, mariscos, aves costeiras, cavalos marinhos, tartarugas, entre tantos e diversos ecossiste-mas, manguezais, dunas, restingas, lagunas, praias, uma população significati-va de peixes-bois se alimentava e reproduzia por entre rios, camboas e praias.

Não sabemos ao certo quando os moradores mais antigos de Cajueiro da Praia souberam que os peixes-bois com os quais conviviam na atividade de pes-ca eram peixes-bois. Os índios chamavam-nos “Igarakuê”, que significa em tupi--guarani, canoa virada. É a imagem que vemos ao avistar um peixe-boi no mar ou no estuário. Animais que podem alcançar até 5 metros quando adulto e pesar

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Fig. 1 - Cortejo Ecológico Bumba Peixe-boi

Fig. 2 - Recepção de alunos do ensino fundamental Cajueiro

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Fig. 3 - Visita da escola Ensino médio na Base

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mais de 600 kg, mas extremamente tímidos e dóceis, dos quais podemos avistar sua cabeça ou o dorso, a tal da canoa virada.

Ainda hoje, os pescadores de Cajueiro da Praia e de algumas praias de Luís Correia, no Piauí, e de Chaval e Bitupitá, no Ceará, quando pescam, podem ver bem perto de suas canoas, um ou mais peixes-bois colocarem de forma sutil ou até barulhenta, suas cabeças pequenas para fora da água a fim de respirarem, tal qual seus antepassados possivelmente também puderam observar.

2. Projeto Peixe-boi

Na década de 1980, quando dois estudantes da Faculdade de Oceanografia do Rio Grande, a pedido do então Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal – IBDF, fizeram o primeiro levantamento da vida marinha pelo litoral brasileiro, desde o Chuí até o Oiapoque, em algum momento seus participantes passaram no povoado de Cajueiro da Praia e constataram que naquele local ainda existiam indivíduos da espécie trichechus manatus – o peixe-boi marinho, ao contrário de outras regiões, como na Bahia e no Espírito Santo, onde já estavam extintos.

Durante a jornada, os dois oceanólogos José Catuetê de Albuquerque e Guy Marcovaldi reuniram os primeiros indícios de que a espécie Trichechus manatus estava desaparecendo do litoral Nordeste, ao visitar centenas de vilarejos esque-cidos em belas praias. Talvez a partir desse momento os pescadores e moradores de Cajueiro da Praia tenham conhecido o “peixe” gigante que os acompanhava nas pescarias, como um peixe-boi. De qualquer forma, isso não modificou muito o comportamento dos moradores dessas comunidades. Não existem indícios histó-ricos de caça intencional, a exemplo de outros locais na costa brasileira, como o li-toral paraibano, que teve uma tradição fortíssima na pesca de baleias e peixes-bois.

Os relatos mais antigos contam sobre pescas mais oportunistas, casos em que o animal ficou preso em currais de pesca e foi abatido, histórias em que o bicho estava encalhado na praia e foi morto com arpões, ou até que foi emalha-do em redes de arrasto. Mas foram poucos casos e localizados num tempo bem anterior à expedição realizada.

A partir desse levantamento, outro se seguiu na década de 1990, a “Expedi-ção Igarakuê” dessa vez já organizada pelo Projeto Peixe-boi, que nasceu ainda no IBDF e depois se transferiu para o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis - IBAMA, órgão ambiental federal que em trinta anos criou uma forte presença institucional entre a população brasileira.

Esta expedição levava fotografias, levantava entrevistas com o objetivo de coletar informações que pudessem complementar os estudos realizados por Ca-tuetê e Marcovaldi e indicar o status de conservação desse simpático mamífero aquático, único herbívoro entre os mamíferos que, na roda da evolução, volta-ram para o meio aquático, depois de passarem um bom tempo em terra firme. Não por acaso, peixes-bois e elefantes tem um longínquo ancestral comum.

Nesta segunda expedição, o estuário dos rios Timonha e Ubatuba e a costa

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piauiense foram identificados, junto com outros locais da costa brasileira, como região prioritária na luta pela conservação da espécie, uma das justificativas para a criação da APA Delta do Parnaíba. Em 1994, foi fundada a Base Executora do Projeto Peixe-boi em Cajueiro da Praia. Logo depois, em 1996, a APA Delta do Parnaíba foi criada através de Decreto-Lei. Hoje, muitas mudanças na política ambiental brasileira vieram, um novo instituto foi criado, principalmente para gerir as unidades de conservação brasileiras, áreas protegidas por lei.

O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade – ICMBio, ab-sorveu parte de funções que antes eram do IBAMA, entre elas a gestão das áreas protegidas. A Base Executora do Projeto Peixe-boi atualmente é a Base Peixe-boi, sede da APA Delta do Parnaíba em Cajueiro da Praia, mas o trabalho desenvol-vido ainda segue a mesma estratégia desde que a base foi fundada: educação ambiental e pesquisa, ao lado de ações socioambientais que possam melhorar a renda e a qualidade de vida dessas comunidades. Afinal, os moradores das comu-nidades foram parceiros na conservação ambiental desses ecossistemas, ainda que muitos problemas ambientais existam.

Em qualquer dessas atividades, a percepção de uma história a ser contada entrelaça os caminhos a serem trilhados na continuidade onde o trabalho se realiza. A história de comunidades que nasceram agricultoras e se tornaram gradativamente também pescadoras; a história da ocupação deste território que certamente criou uma identidade... Qual será então: a história do relacionamen-to amistoso entre o peixe-boi e comunidades de pesca?; a história dos primeiros pesquisadores das expedições que estiveram na região e dos seus contatos com os nativos da região?; a história dos primeiros moradores da terra, dos índios conhecidos como Tremembés?; e, talvez, de outros povos ancestrais aos índios, já que estão cadastrados diversos sítios arqueológicos no litoral do Piauí?

O contexto atual, no entanto, apresenta o aumento das pressões sobre a re-gião em função da chegada de médios e grandes empreendimentos, notadamen-te os ligados ao turismo, às usinas eólicas e à carcinicultura, ameaçando destruir ecossistemas dos quais dependem a população de peixes-boi marinhos e outros seres vivos caso essas atividades não forem ordenadas com vistas à sua sustenta-bilidade socioambiental e colocando em risco o levantamento e conhecimento dessas histórias, se não forem valorizadas as tradições culturais criadas ao longo da ocupação do território, que se traduziram em identidades culturais.

A chegada de novos empreendimentos econômicos tende a potencializar os conflitos socioambientais e o uso dos recursos naturais sem maiores cuidados ou de forma predatória; ou seja, sem a percepção da importância de preservação desses ecossistemas para a sustentabilidade socioambiental das próximas gera-ções, dessas comunidades e/ou do planeta.

Essa percepção poderá ser desenvolvida e refinada se a história da relação des-sas comunidades com os recursos naturais disponíveis for coletada, registrada e fortalecida; é mais um caminho a ser percorrido na atuação da Base Peixe-boi.

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Referências

· ASSOCIAÇÃO DE PESQUISA E CONSERVAÇÃO DE ECOSSISTEMAS AQUÁTICOS – AQUASIS; INSTI-

TUTO CHICO MENDES DE CONSERVAÇÃO DA BIODIVERSIDADE – ICMBIO, APA Delta do Parnaíba,

Centro Mamíferos Aquáticos, Direp; UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ, Departamento de Geogra-

fia. Refúgio de Vida Silvestre Peixe-boi – Estudos Socioambientais Complementares – Consolidação da Proposta de

Unidade de Conservação. Caucaia, CE. Dezembro, 2008.

· BRANCO, Anfrísio Neto Lobão Castelo. “Mandu Ladino”. Teresina, 2006.

· CANDISANI, Luciano; CALDAS, Sérgio Túlio; LIMA, Régis Pinto de. Peixe-boi: a história da conservação de um

mamífero brasileiro. DBA Artes Gráficas, 2001.

· CLARO, Patrícia dos Passos; ROCHA, Francinalda Maria Rodrigues da. A pesca no estuário do Timonha e

Ubatuba(PI/CE): uso dos recursos naturais na APA Delta do Parnaíba. 2012. Trabalho apresentado ao VII

Congresso Brasileiro de Unidades de Conservação, Natal, 2012.

· KALIKOSKI, D.; DIAS NETO, J.; THÉ, A. P. G.; RUFINO, M. L.; MARRUL FILHO, S. Gestão Compartilhada

do Uso Sustentável de Recursos Pesqueiros: refletir para agir. Brasília. Ibama. 2009.

· LIMA, Regis Pinto de. Peixe-boi Marinho (trichechus manatus): Distribuição, Status de Conservação e Aspectos

Tradicionais ao Longo do Litoral Nordeste do Brasil. Brasília, Ed. IBAMA, 1999 (Série Meio Ambiente em

Debate, 30)

Contactar a autora: [email protected]

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O Brasil em defesa do patrimônio histórico, artístico, arqueológico e naturalBrazil in defense of the historical, artistic, archaeological and natural heritage

Valério Rosa de NegreirosUniversidade Federal do Piauí

PIBIC | CNPq

Áurea da Paz PinheiroUniversidade Federal do Piauí

Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa

Pós-doutoramento Sênior | Capes | Brasil

Resumo: Neste artigo, buscamos apresentar uma trajetória possível das discussões sobre o patrimônio histórico, artístico, arqueológico e natural do Brasil a partir das políticas públicas adotadas para o estudo, a preservação e a divulgação de bens cultu-rais de valor nacional. O estudo se refere principalmente aos anos da ditadura civil--militar (1964-1985), nos quais o estado desenvolvimentista buscou integrar o país em torno de uma identidade nacional, a partir do que se considerava patrimônio. Ainda nos limites deste texto discorreremos sobre as novas concepções de patrimô-nio presentes na Constituição Brasileira de 1988.

Palavras-chave: Patrimônio Cultural e Natural. Estado e Políticas Públicas. Brasil.

Abstract: In this article, we intend to present a possible timeline for the discussions about Brazil’s historical, artistic, archaeological and natural heritage through public policies adopted to the study, preservation and dissemination of the national valuable cultural goods. The study refers especially to the years of the civil-military dictatorship (1964-1985), in which the developmental state aimed to integrate the country into a national identity, from what was considered heritage. Still, we are going to discuss about the new conceptions of heritage present in the Brazilian Constitution of 1988.

Keywords: Cultural and Natural Heritage. State and Public Policies.Brazil.

Introdução

Em relação às políticas públicas para a cultura no Brasil durante o século XX po-demos afirmar que o Estado foi o principal agente financiador, organizador e de divulgação em âmbito nacional. Como exemplo, citemos o desenvolvimento de uma política cultural na ditadura civil-militar que ocorreu, sobretudo no final da década de 1960 e início dos anos 1970. Centramos nossas discussões na gestão do ministro da Educação e Cultura, Jarbas Passarinho (1969-1974), responsável

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pela organização de duas convenções realizadas uma em Brasília (1971) e outra na cidade de Salvador – Bahia (1972) tendo como foco central das discussões, as políticas públicas de proteção e divulgação do patrimônio cultural brasileiro. A preocupação dos militares em relação à cultura, principalmente em momentos de consolidação do regime no país, foram reflexos da integração nacional, forja-da pela doutrina da Segurança Nacional. Renato Ortiz afirma que:

Reconhece-se, portanto, que a cultura envolve uma relação de poder, que pode ser maléfica

quando nas mãos de dissidentes, mas benéfico quando circunscrito ao poder autoritário.

Percebe-se, pois, a importância de se atuar junto às esferas culturais. Será por isso incenti-

vada a criação de novas instituições assim como iniciará todo um processo de gestação de

uma política de cultura (ORTIZ, 1987, p. 115-116).

Naquele período, aliados ao Ministério da Educação e Cultura, surgiram insti-tuições que organizaram os segmentos da cultura em todo o país, como o Conse-lho Federal de Cultura (CFC) criado em 1966, o Departamento de Assuntos Cultu-rais (DAC) em 1970 e a Fundação Nacional das Artes (FUNARTE) em 1975. Para Maia (2012), essas instituições tinham como objetivo a divulgação da cultura e a definição de padrões culturais adequadas ao direcionamento político impresso pelo Estado. Essas instituições tinham como objetivos aturarem junto aos estados e regiões, disciplinando e forjando uma identidade e memória nacionais.

O compromisso de Brasília (1970) e Salvador-BA (1971)

Os problemas relacionados à defesa e à preservação dos bens de valor cultural tiveram em 1970, em Brasília, por iniciativa de Jarbas Passarinho, ministro da Educação e Cultura, a oportunidade de serem debatidos no primeiro Encontro de Governadores, reunindo governadores, prefeitos, presidentes e representan-tes de instituições culturais de todo o país.

Os resultados daquela reunião foram agrupados em documento conhecido como “Compromisso de Brasília”, um acordo de cooperação assinado pelos re-presentantes dos estados participantes do evento. Nele, os Estados se dispuse-ram a agir na defesa de valores culturais, colaborando para uma inadiável ação supletiva de Estados e Municípios à atuação federal ao que se refere à proteção de bens culturais que consideravam de valor nacional.

No compromisso de Brasília, foram firmados acordos que exigiam uma maior interligação entre o governo federal, estados e municípios. Para isso, o compromisso assumido deveria girar em torno de ações definidas nos tópicos apresentados pelo documento: complementar a ação federal na proteção dos bens culturais e naturais nacionais e regionais por meio da criação de órgãos específicos sob orientação do Departamento de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (DPHAN); elaborar uma legislatura estadual e municipal para o setor;

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ampliar os recursos orçamentários; investir na formação de mão-de-obra espe-cializada sob orientação de órgãos federais; proteção da documentação por meio da criação de arquivos; preservação de cemitérios e túmulos de valor histórico; criação de museus regionais com função de documentar a “formação histórica, tendo em vista a educação cívica e o respeito à tradição”. 1

No ano seguinte em Salvador, o segundo Encontro de Governadores, ratifi-cou o compromisso assinado em Brasília; centrando as discussões nas questões mais precisas no que se refere à preservação, à defesa, à conservação e à reva-lorização do patrimônio histórico, artístico, arqueológico e natural; os debates foram amplos e intensos, realizados com base no levantamento de questões, de-poimentos e conclusões a respeito do patrimônio cultural do Brasil.

Na sessão de abertura dos trabalhos daquele encontro, o ministro da educa-ção e cultura, Jarbas Passarinho, assumiu diante de todos que era progressivo as ações voltadas à defesa do patrimônio. “Os homens de estado” ali reunidos, aos poucos compreenderiam a necessidade de se defender os patrimônios sobretudo da agressão humana, preservar os testemunhos do desenvolvimento acelerado da civilização brasileira.

Com efeito, o ministro elencou as principais mudanças ocorridas no encon-tro de Brasília, onde chefes e representantes de governos assumiram o compro-misso de “conscientizar administradores, públicos ou particulares, para evitar que obras de arte, que são a forma de comunicação intemporal dos homens de talento, se percam pela falta de zelo, ou sejam destruídas deliberadamente”:

Doravante, com certeza, estaremos em ação conjugada, dispostos a neutralizar-lhe a ação

nefasta e, mais que tudo, determinados nós mesmos, a salvar da sanha agressora dos ‘pro-

gressistas’ e dos ‘restauradores’ chinfrins, as criações artísticas que só a aliança do tempo e

do homem, no desdobramento histórico, foi capaz de erguer. 2

As temáticas elaboradas para discussão do segundo encontro abordaram questões

analisadas no encontro de Brasília. Elegeram-se principalmente ações para a proteção de acervos naturais e de valor cultural, sendo estes interligados à economia desenvol-vimentista implantada na época pelo governo dos militares, abordando a indústria do Turismo como fonte de desenvolvimento cultural e econômico; como também de-mandas de pesquisas, estudos, análises e divulgação de bens de valor cultural.

Segundo Alves, naquele período, considerado como o milagre econômico brasi-leiro (1968-1973), “[...] obedecia a uma tendência definida como ‘produtiva’, ou seja, o país precisava criar condições possíveis para o investimento” (ALVES, 1985:177), daí aproveitar-se do turismo como fonte de investimento. Para a cientista política, o modelo econômico adotado pelos militares, tendo como base as doutrinas da Escola Superior de Guerra, foi baseado em forte interferência do Estado no planejamento econômico nacional, na produção direta e no investimento de infraestrutura, com eventual apropriação dos recursos naturais por este mesmo estado.

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A associação “preservação-turismo” proposta desde o encontro de Brasília seria uma saída dos órgãos de defesa do patrimônio nacional, Instituto do Pa-trimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e Conselho Federal de Cultura (CFC) contra o discurso dos setores que defendiam o crescimento econômico do país, que pressionavam o governo federal, que acabara por ceder às pressões e autorizara intervenções drásticas nos conjuntos arquitetônicos e reservas na-turais preservados em todo território nacional. De acordo com Tatyana Maya, que investigou a importância do civismo na elaboração das políticas culturais entre os anos de 1967 e 1975, a política de proteção que aliasse a preservação ao desenvolvimento econômico do país não apareceria como obstáculo ao proces-so de desenvolvimento econômico, ao contrário, movimentaria positivamente a economia do país pelos recursos gerados com o turismo (MAIA, 2012:168).

Chegado o encontro em Salvador, era hora de prestar contas dos acordos assi-nados e daquilo que havia sido efetivamente realizado em cada estado. Tomar co-nhecimento e a análise do que fora feito em todo o Brasil para o estudo, a divulga-ção, a defesa e a preservação de acervos de valor histórico, artístico, arqueológico e natural do país, e ao mesmo tempo, programar, sistematizar e ampliar a ação con-junta de órgãos específicos, pertencentes às áreas federal, estadual e municipal.

As palestras daquele encontro foram dirigidas por técnicos de órgãos do governo federal ou estadual; foram abordadas temáticas variadas; os debates ti-veram como foco a preservação do patrimônio cultural. Sobre a proteção dos acervos naturais e os de valor cultural, o responsável foi o arquiteto Maurício Nogueira Batista, do Ministério de Planejamento; no que se refere à criação de museus, arquivos e bibliotecas regionais, a palestra ficou a cargo do arquiteto Luís Saia, chefe do 4� Distrito do IPHAN/São Paulo; com relação ao acervo de valor cultural e a indústria de turismo, a temática foi apresentada pela arqui-teta Ana Maria Fontenelle Brasileiro, da Secretaria de Planejamento do Estado da Bahia; os trabalhos foram encerrados com a fala do professor Américo Simas Filho, diretor do Centro de Estudos da Arquitetura na Bahia (CEAB) da Facul-dade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia, que apresentou temas relacionados às pesquisas, estudos e divulgação de bens culturais.

Renato Soeiro, diretor do IPHAN à época do encontro, convocou todos os presentes a somarem esforços na luta pela preservação da cultura brasileira. Em seu discurso, na sessão de abertura dos trabalhos, expôs algumas das iniciativas que o IPHAN havia realizado nos últimos anos, desde a preparação de técnicos até a catalogação de sítios arqueológicos em todo o Brasil. Mas também não ces-sou em fazer críticas aos modelos de gestão propostos pelo governo federal, da economia desenvolvimentista que via na cultura um dos meios de se fazer au-mentarem os lucros, na maioria das vezes, sem um plano de medidas que asse-gurasse as riquezas culturais, cabendo ao IPHAN essa missão:

Houvesse de parte de todas as autoridades públicas estaduais e municipais o sentido exato

de responsabilidade na preservação desse legado, não teria sido o Instituto do Patrimônio

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Histórico e Artístico Nacional forçado muitas vezes a exorbitar de suas obrigações e a es-

tender desmesuradamente sua proteção, a fim de defender bens de interesse nitidamente

regional, ameaçados pelas próprias autoridades dos 2º e 3º escalões do Governo do país.

O mesmo se deu com relação a paisagem, as belezas naturais e aos sítios arqueológicos. A

participação dos Estados e Municípios, que tanto auferem do turismo graças à existência

desses valores, não será computada apenas pelo aumento de receita para esse fim, mas

ainda pelo aumento considerável do número de responsáveis, cujo poder de atuação deverá

ser mais eficaz, por mais próximo 3.

Ao adotar essas medidas, estariam os gestores públicos se responsabilizando pelos efeitos contrários que tal política poderia gerar, como também os sucessos advindos do investimento na área da cultura. Porém, o diretor ressaltou que a po-lítica praticada pelos menos informados naquele processo de defesa do patrimô-nio cultural brasileiro acabaria por gerar consequências negativas nas formas de administrar os recursos a partir das estratégias adotadas no encontro de Brasília.

Naquele contexto, o Estado seria então o único agente capaz de criar uma infraestrutura que assegurasse as condições necessárias das diversas formas de proteção. No entanto, o impacto deveria ser amenizado ao se criar espaços fa-voráveis a toda sociedade, como forma de lazer e simultaneamente geradora de riqueza. Como afirma Maya, a relação entre “preservação e desenvolvimento” identificada por meio do turismo, obrigou a redefinição do uso dos espaços pre-servados, necessariamente ressignificados ao adquirir uma nova função social, tornando-os novamente úteis à sociedade moderna, sem com isso deixar de re-gistrar sua memória (MAIA, 2012:168).

O patrimônio cultural brasileiro, naqueles encontros definido como histó-rico, artístico, arqueológico e natural, tomou como base os conceitos já cons-tituídos ainda nos anos de 1930, quando da criação do Serviço de Patrimônio Histórico Artístico e Nacional (SPHAN) em 1937, quando o ministro da Educa-ção e Saúde, Gustavo Capanema, no Estado Novo (1937-1945), mostrou-se pre-ocupado com a preservação daqueles patrimônios enquanto elementos consti-tutivos da identidade, no singular, da nação. Naquela época, foi nomeado Mário de Andrade (1893-1945) para a elaboração de um anteprojeto para o patrimônio brasileiro e Rodrigo Mello Franco de Andrade (1898-1969) para dirigir o órgão a ser criado para gestão daquele patrimônio.

O papel dos intelectuais do movimento modernista (1922), na fase de im-plantação do SPHAN, foi de fundamental importância, pois constituiram-se as bases para uma consolidação, em caráter de urgência, dos rumos da preservação das riquezas culturais que ao longo dos anos vinham se perdendo por conta do desconhecimento da importância social que representavam. Absorvidos pela política do Estado Novo, a partir de 1937, foram aqueles intelectuais que deram sentidos ao que consideravam ser preservado como patrimônio da nação.

Ao estudar o patrimônio em seu processo de constituição enquanto política

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pública federal, Maria Cecília Londres Fonseca, ressalta a grande importância naquele processo, em que a preservação do patrimônio deu-se pelo valor cul-tural que representava. Segundo a autora, as noções modernas de monumen-to histórico, de patrimônio e de preservação só começaram a ser elaboradas a partir do momento em que, enquanto símbolos da nação, os bens passaram a serem merecedores de proteção, visando à sua transmissão para a posterioridade (FONSECA, 2005:21).

Os discursos produzidos no âmbito do estado brasileiro para justificar a constituição do patrimônio cultural e sua análise, enquanto desenvolvimentos de política pública de representação, atuaram com objetivos de reforçar uma identidade coletiva, a educação e a formação de cidadãos. Para Fonseca:

A noção de patrimônio é, portanto, datada, produzida, assim como a ideia de nação, no

final do século XVIII, durante a Revolução Francesa, e foi precedida, na civilização ociden-

tal pela autonomização das noções de arte e de história. O Histórico e o artístico assumem,

nesse caso, uma dimensão instrumental e, passam a ser utilizados na construção de uma

representação de nação (FONSECA, 2005: 37).

As iniciativas precursoras de proteção do patrimônio deram-se a partir de escritos, artigos, publicações de intelectuais como Rodrigo Melo Franco de An-drade, Carlos e Mario de Andrade, por exemplo, que ainda na segunda década do século XX, chamariam à atenção para o que em tempo próximo se tornaria um movimento em âmbito nacional em defesa da identidade brasileira.

Em seu anteprojeto para criação do SPHAN, Mario de Andrade contemplou uma vasta noção de patrimônio muito à frente do seu tempo, as noções que envol-viam principalmente os conceitos de patrimônio da atualidade. Andrade entendia que “[...] arte é uma palavra geral, que nesse seu sentido geral significa a habilidade com que o engenho humano se utiliza das ciências, das coisas e dos fatos” (AN-DRADE, 1981: 44); concepção de arte, que Fonseca caracteriza como “autêntica”, que engloba ao mesmo tempo o particular e o nacional de manifestações eruditas e populares; valoriza o popular enquanto objeto e o povo enquanto alvo. A con-cepção Andradiana, segundo a autora, acabaria se tornando conceito unificador da ideia de Patrimônio Artístico Nacional, prestigiada ao longo do século XX.

Embora a concepção de arte nacional de Mario de Andrade expressa em seu anteprojeto fosse bastante inovadora, somente alguns aspectos foram adotados pela SPHAN e pelo governo Getúlio Vargas, que assinou o decreto lei n� 25 de novembro de 1937, referente à proteção do patrimônio histórico e artístico nacional; o patrimônio seria compreendido como “[...] conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja de in-teresse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, biblio-gráfico ou artístico” (BRASIL, 1937).

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A constituição oficial do patrimônio no âmbito daquele Decreto regulou o patrimônio no Brasil, indicado a partir do seu tombamento, presente nos livros do Tombo do SPHAN. Portanto, só seria considerado bem cultural e receberia proteção os bens registrados:

1) no Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico, as coisas pertencentes às

categorias de arte arqueológica, etnográfica, ameríndia e popular, e bem assim as mencio-

nadas no § 2º do citado art. 1º.

2) no Livro do Tombo Histórico, as coisas de interesse histórico e as obras de arte histórica;

3) no Livro do Tombo das Belas Artes, as coisas de arte erudita, nacional ou estrangeira;

4) no Livro do Tombo das Artes Aplicadas, as obras que se incluírem na categoria das artes

aplicadas, nacionais ou estrangeiras. (BRASIL, 1937)

Essa normatização influenciou as ações adotadas nos compromissos de Bra-sília e Salvador, delimitando o que merecia a proteção devida por parte da união, estados e municípios. Cabiam aos representantes de todos os estados, municí-pios e Distrito Federal relatarem suas ações, projetos desenvolvidos ou em de-senvolvimento sobre os progressos alcançados mesmo que, em curto espaço de tempo de um encontro para o outro.

Um salto significativo no que tange à concepção de Patrimônio Cultural Bra-sileiro ocorreu com a promulgação da Constituição Federal do Brasil em 1988. A atuação do CFC ampliou, em exercício, a noção de patrimônio, incorpo rando ao conceito, os hábitos, os costumes, as danças, os modos de agir e pensar, inven-ções nas áreas científicas e artísticas etc. Concepções já apontadas no anteproje-to de Mario de Andrade em 1937.

A ampliação da concepção de patrimônio foi apresentada nas Diretrizes para uma Política Nacional de Cultura do Conselho Federal de Cultura, em 1973, do-cumento responsável por ordenar o papel do Estado na cultura. Outra manifes-tação do Estado com relação às mudanças na concepção e institucionalização do conceito de patrimônio se deu a partir do artigo 216 da Constituição de 1988 que concebe o patrimônio cultural brasileiro de uma maneira mais ampla, se considerada àquela proposta pelas Diretrizes para uma Política Nacional de Cul-tura. Na carta constituinte, os patrimônios culturais brasileiros são “[...] os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”.

Esse patrimônio, segundo a lei federal, abrange as formas de expressão, os modos de criar, fazer e viver; as criações científicas, artísticas e tecnológicas, as obras, os objetos, os documentos, as edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; os conjuntos urbanos e sítios de valor históri-co, paisagístico, artístico.

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Considerações finais

Ao longo das discussões para a defesa, divulgação e preservação do Patrimô-nio, constituído nas concepções histórica, artística, arqueológica e natural, percebemos uma constante participação do Estado brasileiro, adotando medi-das que pudessem constituir uma nova consciência nacional de pertencimen-to e reconhecimento através dos bens, compreendidos como “valor” em todo o país. Para isso, foram essenciais discussões, debates e a regulamentação de instrumentos políticos e econômicos adotados como forma de configurar o Patrimônio Cultural do Brasil.

Referências e Notas

· ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e oposição no Brasil: 1964-1984. 3 ed. Petrópolis: Vozes, 1985.

· ANAIS DO II ENCONTRO DE GOVERNADORES para preservação do patrimônio histórico, artístico,

arqueológico e natural do Brasil realizado em Salvador, Bahia de 25 a 29 de outubro de 1971. Rio de

Janeiro: Departamentos de Assuntos Culturais – MEC/IPHAN, n� 26, 1973.

· ANDRADE, Mário de. Anteprojeto de Criação do Serviço de Patrimônio Histórico Artístico e Nacional

In: Cartas de Trabalho: correspondência com Rodrigo Melo Franco de Andrade. Brasília, 1981.

· BRASIL. Decreto n� 25, 30 de novembro de 1937. Organiza a proteção do Patrimônio Histórico e Artístico

Nacional. Diário Oficial [da] Republica Federativa do Brasil.

· BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988.

· CONSELHO FEDERAL DE CULTURA. Cultura. Rio de Janeiro: MEC, ano IV, n. 34, p. 111-115, abr. 1970.

· FONSECA, Maria Cecília Londres. O Patrimônio em processo: trajetória da política federal de preservação no

Brasil. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora UERJ; MINC – Iphan, 2005.

· MAIA, Tatyana de Amaral. Os cardeais da cultura nacional: o Conselho Federal de Cultura na ditadura

civil-militar (1967-1975). São Paulo: Itaú Cultural: Iluminuras, 2012.

· 1 Artigo n.° 12, do Documento de Brasília, assinado por todos os participantes do I Encontro de Governa-

dores em Defesa do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. In: CONSELHO FEDERAL DE CULTU-

RA. Cultura. Rio de Janeiro: MEC, ano IV, n. 34, p. 111-115, abr. 1970.

· 2 ANAIS DO II ENCONTRO DE GOVERNADORES para preservação do patrimônio histórico, artístico,

arqueológico e natural do Brasil realizado em Salvador, Bahia de 25 a 29 de outubro de 1971. Rio de

Janeiro: Departamentos de Assuntos Culturais – MEC/IPHAN, n� 26, p. 18, 1973.

· 3 Discurso do diretor do IPHAN, Renato Soeiro In ANAIS DO II ENCONTRO DE GOVERNADORES para preser-

vação do patrimônio histórico, artístico, arqueológico e natural do Brasil realizado em Salvador, Bahia de 25 a

29 de outubro de 1971. Rio de Janeiro: Departamentos de Assuntos Culturais – MEC/IPHAN, n� 26, 1973, p. 48.

Contactar os autores: [email protected] · [email protected]

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Protecção e salvaguarda do património cultural subaquáticoProtection and safety of underwater cultural heritage

Iolanda Cristina Barreira PereiraPós-Graduação em Artes, Património e Restauro pela Faculdade de Letras

da Universidade de Lisboa; Mestranda em Museologia e Museografia na Faculdade

de Belas-Artes da Universidade de Lisboa.

Resumo: Devido ao crescente interesse pelo património cultural subaquático, mui-tos sítios arqueológicos têm sido sistematicamente destruídos e pilhados. Como uma forma de prevenção a estas situações, em 2001, entra em vigor a Convenção da UNESCO para a Protecção do Património Cultural e Subaquático. Portugal ratifica--a em 2006, mas carece urgentemente de um plano preventivo para a exploração e comercialização do património cultural.

Palavras-chave: Património Cultural Subaquático. Protecção. Legislação.

Abstract: Due to the growing interest in underwater cultural heritage many ar-chaeological sites have been sistematically destroyed and looted. As a way to pre-vent these situations, comes into force in 2001 UNESCO Convention on the Protec-tion of the Underwater Cultural Heritage. Portugal ratified it in 2006 but urgently needs a plan to prevent the exploitation and commercialization of cultural heritage.

Keywords: Underwater Cultural Heritage. Protection. Legislation.

Introdução

O mar tem sido ao longo dos tempos um local associado ao mistério, ao fantás-tico, ao perigo e à aventura. Mas, sobretudo, tem sido um local que, tal como o canto de uma sereia leva os Homens a aventurarem-se nele e a deixarem-se enle-ar pelos seus encantos, pelo seu fascínio e pelos perigos que a estes se associam. Mas o mar foi também o meio privilegiado que ao longo destes milhares de anos tem permitido a deslocação do ser humano pelo mundo. É por isso um universo riquíssimo em vestígios do passado, por vezes dourado, por vezes nebuloso, mas sempre importante para a nossa História enquanto seres humanos geradores e receptores de cultura. É neste enlace que surge uma disciplina que conjuga o prazer da diversão com o entusiasmo de uma descoberta. Esta disciplina é a Ar-queologia Subaquática.

Portugal é um país intrinsecamente ligado ao mar e às tradições marítimas. É detentor de uma História magnifica de glória, prestígio e riqueza que teve a sua origem exactamente no mar. Mas, apesar de todo o orgulho na sua História, este

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povo e os seus dirigentes não tomaram ainda consciência de que é preciso um cuidado eficaz e rigoroso no que toca à protecção do património cultural suba-quático que, o passado generosamente deixou que resistisse até aos dias de hoje.

É neste contexto, de países ainda pouco alerta ao seu património subaquá-tico e com pouca legislação que o proteja e salvaguarde, que a UNESCO a 2 de Novembro de 2001, prepara uma Conferência Geral que originará a Convenção da UNESCO de 2001 sobre a Protecção do Património Cultural Subaquático. Por-tugal, em 2006 é um dos países que ratifica a Convenção porém, desde 2006 até agora, a ratificação da mesma não fez com que o ramo da Arqueologia Subaquá-tica passasse a ser mais valorizado ou que mais acções, no que respeita à salva-guarda, protecção e conservação deste património, tivessem sido realizadas.

1. A Arca do Tesouro

Citando o Dr. Filipe Vieira de Castro: “É difícil pensar na História da humanida-de sem pensar em barcos, viagens e marinheiros.” (CASTRO, 2005). Portugal é, por excelência, um país ligado ao mar. Da costa à contra-costa estamos ligados a ele e dele advieram muitas benesses, mas também muitas tragédias. Somos um país riquíssimo no que toca ao campo da arqueologia subaquática, não existindo um milímetro de costa em que não haja vestígios de alguma história que esteja ainda por contar.

Quando se fala em arqueologia subaquática e descobertas submersas, a imagem instantânea que se aflora é a de destroços de navios, mas a realidade é bem mais vasta que isso. A verdade é que no que respeita a património cultural submerso podemos encontrar desde o navio intacto, ao pequeno vestígio de ma-deira proveniente do mesmo, uma moeda, uma estatueta... Todavia, tal e qual o mito da Atlântida, podemos encontrar submersas cidades inteiras.

Portugal não é excepção e temos de tudo um pouco. Temos os vestígios das naus que serviram nas carreiras da Índia, temos os vestígios das cargas que estas transportavam dos quais se podem enumerar imensos e diversos bens materiais e, temos também povoações submersas que mais dia menos dia (se é que tal já não aconteceu) começam a ser invadidas por mergulhadores de recreio. Mergulhos es-tes que poderão conter boas ou más intenções para com aquele local. Disto é exem-plo a antiga aldeia da Luz que ficou submersa nas águas da barragem do Alqueva.

Somos uma área rica e cheia destes tesouros, muitos deles estão mesmo ali à mão e qualquer um lhes pode chegar. Mais ou menos afastados da costa, a ver-dade é que muitas das estações arqueológicas foram encontradas por mergulha-dores de recreio que por acaso ou, seguindo as indicações de histórias e relatos das gentes das terras, se deparam com verdadeiras arcas do tesouro. Segundo estimativas muito superficiais, consta-se que entre Portugal Continental e os Arquipélagos dos Açores e da Madeira, existam mais de três mil registos de em-barcações afundadas. Muitas foram já estudadas outras não, e muitas poderão estar ainda por descobrir.

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A busca efectuada a estes destroços é feita, mais comumente de duas formas: por mergulhadores de recreio, cuja imaginação é povoada de lendas e fascínio pela busca e consequente descoberta de um verdadeiro tesouro, que os vais dei-xar ricos e famosos; ou então são consumadas por empresas especializadas nesta actividade que contam nas suas equipas com pessoas formadas nas mais diver-sas áreas mas que, o objectivo final é o do lucro.

Tanto num caso como noutro estas prospecções e consequentes escavações não passam de uma destruição desenfreada das estações arqueológicas, do des-respeito pela tragédia que a mesma encerra, pela falta de moral, de ética e, por vezes, de formação especializada ou de informação básica sobre o que fazer em caso de descoberta de uma estação arqueológica.

2. A Protecção e Salvaguarda2.1 Legislação Portuguesa

Como verdadeiros tesouros que são, o património cultural que se encontra em con-texto subaquático deverá ser protegido e salvaguardado destes corsários contempo-râneos que envergam vestes de neoprene1 mas, esta não é ainda a mentalidade ge-neralizada dos governantes e de muitos curiosos. Alguns países, principalmente os países subdesenvolvidos e os países em vias de desenvolvimento, ainda não foram capazes de fazer valer a sua legislação, alguns não têm ainda qualquer tipo de legis-lação e, outros têm pouca legislação e não conferem muita importância a esta área.

Portugal é um dos casos que até à pouco tempo não se importou com o que acontecia ao seu património cultural em contexto subaquático. A disciplina da arqueologia subaquática é recente em terras lusas, a primeira prospecção deu--se apenas nos anos 70 do século XX, pelo que a primeira legislação referente ao património jazente em contexto subaquático data precisamente dessa década. A 1 de Setembro de 1970 é publicado em Diário da República o primeiro decreto-lei que reconhece valor a este património.

Neste decreto-lei são lançadas as bases para a restante legislação que viria a ser publicada relativamente à protecção, salvaguarda e descoberta de bens que se encontrem neste contexto especifico. Assim, o decreto supracitado indica que anteriormente a este esta tipologia de achados era disciplinada por outros dois Regulamentos Gerais afectos, o primeiro, às Capitanias, e, o segundo, às Alfân-degas. O primeiro Regulamento Geral afecto à Capitania2 e o Decreto-Lei N.� 5703 de 10 de Maio de 1919 defendem que o material achado de natureza naval e militar, sem proprietário conhecido, é propriedade do Estado que deste tomará conta. Já o Regulamento Geral das Alfândegas3 obriga a venda em hasta pública dos bens achados, impera por isso aqui o valor mercantil do achado.

Este Decreto-Lei n.� 416/70 vem então unificar estes dois pontos de vista an-teriores, sustentando que, ao contrário do que o explícito no Regulamento Ge-ral das Alfândegas, há que evitar a venda do achado em hasta pública sem que isso venha, no entanto, prejudicar os direitos do achador em termos monetários.

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Estabelece-se por isso que o achador terá direito a uma recompensa baseada no valor atribuído ao achado. Determina ainda que qualquer objecto achado no mar, sem proprietário conhecido, mas que do ponto de vista científico, artístico ou outro tenham interesse para o Estado, passam a ser propriedade do mesmo.

Pela primeira vez a lei vem definir quais são os procedimentos a seguir aquan-do de um achado arqueológico em contexto subaquático. Assim sendo é determi-nado que toda a pessoa que achar qualquer objecto dentro deste contexto tem por obrigação comunicá-lo às autoridades com jurisdição na área do achado. Nesta comunicação devem constar as características do objecto achado, a data em que foi encontrado, o local onde foi encontrado e, caso já o tenha entregue, terá de dizer a que identidade aduaneira o fez. Tudo isto tem obrigação de ser comuni-cado no prazo máximo de 48 horas após o achado. São indicadas as punições e as sanções que advirão do incumprimento destes pressupostos, assim como aquelas aplicáveis a quem danificar o achado no decorrer da sua recuperação.

Ainda aqui é determinado que o valor, cientifico ou artístico do objecto, para o Estado será definido por uma comissão composta por várias entidades e espe-cialmente designada para essa ocorrência. Esta mesma comissão definirá qual o valor mercantil do objecto achado e de acordo com o mesmo estipulará a percen-tagem da recompensa que será entregue ao achador.

Finalmente são especificados os requisitos necessários para se proceder à prospecção de áreas que possam abarcar estações arqueológicas nomeadamen-te, a requisição de uma licença para o fazer. Esta licença seria valida pelo prazo de um ano, indica ainda que quando a prospecção marítima visar fins lucrativos não se poderão utilizar mergulhadores amadores pois constituiria um risco para a protecção dos artefactos. Tudo isto tendo sempre o Estado o direito de prefe-rência sobre os achados que, deverão sempre ser comunicados às autoridades.

Este Decreto-Lei lançaria as bases para os seguintes nomeadamente do De-creto-Lei 289/93, de 21 de Agosto, que, pela primeira vez desde a década de 1970 viria a actualizar o regime jurídico que rege o património cultural subaquático. Aqui especifica-se que a recuperação dos mesmos deverá ser efectuada seguindo uma metodologia arqueológica especifica direccionada ao meio subaquático. É feita a separação da disciplina da arqueologia terrestre e a arqueologia subaquá-tica particularizando-se assim que cada uma terá a sua metodologia própria. Este decreto será actualizado pelo Decreto-Lei n.� 85/94, de 30 de Março de 1994, que por sua vez vem criar a Comissão do Património Cultural Subaquático com a finalidade de acompanhar e fiscalizar os trabalhos arqueológicos subaquáticos. Posteriormente, a 27 de Junho de 1997, é publicado do Decreto-Lei n.� 164/97 que pretende harmonizar a legislação regente desta actividade. Aqui pretende--se não a separação das duas disciplinas arqueológicas, a vertente terrestre e a vertente subaquática, mas sim a associação das duas visto que se complemen-tam em termos metodológicos. Pretende-se também com este decreto a abolição da exploração comercial da actividade arqueológica, assim vêem-se eliminadas as concessões para exploração comercial do património cultural subaquático.

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Toda a escavação arqueológica passa a ser considerada um empreendimento estritamente cientifico, onde não são aceites técnicas e práticas destrutivas ou intrusivas que coloquem em risco os artefactos e vestígios ali existentes.

O direito dos achadores mantinha-se inalterado sendo que estes teriam di-reito à recompensa cuja percentagem será calculada pelo organismo cujo bem ficaria à guarda, neste caso o IPA (Instituto do Português de Arqueologia). Esta prática pretendia alertar os demais cidadãos para a importância da preservação da Memória e da História colectiva bem como, proceder à divulgação de infor-mação sobre as temáticas de protecção de património, achados fortuitos, caças ao tesouro ilícitas, exploração comercial do património cultural...

Este é por excelência o Decreto-Lei que rege, ainda na actualidade, o cam-po do património cultural subaquático. Relembre-se contudo que este decreto foi alterado consecutivamente após um período negro, compreendido entre os anos de 1993 e 1995, em que a lei portuguesa em vigor descaradamente permitia que a costa portuguesa fosse completamente estropiada para fins puramente comerciais. Pelo menos seis empresas internacionais instalaram-se confortavelmente em águas portuguesas enquanto destruíam as estações ar-queológicas em que trabalhavam e posteriormente vendiam os achados em mercados internacionais sem que o Estado português sequer se preocupasse com o que estava a acontecer.

No ano de 1995 a lei que permitia a devastação profunda do leito marinho português foi congelada e esta foi então ratificada no ano de 1997 dando então origem ao Decreto-Lei já enumerado. Contudo na viragem do século, entre os anos de 1998 e 2001, aproximadamente, os corsários de neoprene do século XXI voltam a atacar em águas portuguesas.

2.2 Convenção da UNESCO de 2001

No ano 2000, num leilão realizado pela empresa Sotheby’s, são colocados à venda, em diversos lotes, variadíssimos artefactos portugueses provenientes das águas sob jurisdição do Estado. Isto prova que as autoridades vigilantes e de fiscalização não estariam a fazer o seu trabalho ou simplesmente fecharam os olhos ao que se passava e de certa forma até colaboraram nas actividades.

Em consequência a mais esta catástrofe no ano de 2006, Portugal ratifica a Convenção da UNESCO de 2001 sobre a Protecção do Património Cultural Subaquático, publicada em Diário da Republica a 18 de Julho de 2006 e é consig-nada pelo Decreto do Presidente da Republica n.� 65/2006.

A convenção da UNESCO toma por base três premissas simples:

– Estabelece os princípios básicos para a protecção do património cultural em contexto subaquático;

– Fomenta a cooperação internacional entre os estados ratificantes de forma a que os princípios básicos sejam aplicados e cumpridos;

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– E, fi nalmente, a Convenção providência, sob a forma de um manual, um conjun-E, finalmente, a Convenção providência, sob a forma de um manual, um conjun-to de indicações práticas sobre como lidar com este tipo especifico de património.

Por sua vez estas três premissas iniciais dão origem aos princípios básicos anotados ao longo de todo o texto da mesma. Estes princípios podem ser suma-riados dividindo-se em cinco motes essenciais:

– Obrigação de preservar o património cultural subaquático;– A preservação in situ desta tipologia patrimonial deve ser sempre a conjec-

tura preferencial;– Não à exploração comercial;– Trocas e partilhas de informação e de formação especializada;– No entanto, esta Convenção não tem como finalidade arbitrar conflitos sobre

o domínio de posse nem, regulamentar a pose de determinado património.

Apesar dos princípios básicos e das indicações que nos dizem como efec-tuar correctamente uma escavação arqueológica, visando sempre o risco mínimo para os artefactos e vestígios, esta tem sempre de andar interligada com a legislação nacional e internacional que a complementarão. Como é o caso da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (UNCLOS), as-sinada em 10 de Dezembro de 1982, já com a participação de Portugal. Entra em vigor em 1994 e é ratificada em 1997, ano em que entra em vigência em Portugal. Nesta convenção são importantes os artigos 149 e 303 que ditam a obrigação dos estados participantes em proteger e salvaguardar o patrimó-nio cultural subaquático.

Conclusão

Quando se fala de património cultural em Portugal é sinónimo de ostracização, a cultura é sempre o elemento mais pobre e mais esquecido, não apenas pelos governantes, mas também pela população geral. Sofre-se uma tremenda crise de valores em que se considera que a arte e o património é para ricos. O património cultural é de todos, e como tal temos sobre ele uma responsabilidade para que chegue às futuras gerações.

Algumas áreas patrimoniais são consideradas mais distintas que outras e, no caso da arqueologia subaquática e do património cultural submerso este é, infeliz-mente, ainda um nicho ao qual só é dada a devida importância quando certas e de-terminadas calamidades acontecem e o executivo em funções é chamado à atenção.

O património é a memória colectiva, captada em pequenos vestígios e ar-tefactos, parte da identidade das pessoas, das comunidades e de cada um indi-vidualmente. Há que chamar a atenção da população para a questão da preser-vação e da conservação das memórias. A informação e a sua difusão através dos mais variados métodos e abrangendo os mais diversos espaços de actuação

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para divulgação da mesma, serão as ferramentas mais importantes para o des-pertar das consciências.

Sem este alerta geral, sem este despertar de consciências e mentalidades para o património, para a sua importância, salvaguarda e conservação, todos os de-cretos-lei criados para o efeito, e a ratificação da convenção A, B ou C, não serão válidos, mas apenas meros papeis escritos aos quais, como hoje acontece, pou-cos são aqueles que sabem da sua existência, que lhe dão a importância devida e, mais importante, poucos são aqueles que os fazem vigorar e cumprir.

Apesar da legislação em vigor é necessário fazê-la cumprir para que episódios de venda de património cultural português furtado, literalmente à vista de todos nós, não tornem a acontecer.

Referências e Notas

· BELLO, Mónica. Enigmas: A Costa dos Tesouros. Circulo de Leitores, 2005.

· CABRAL, Clara Bertrand. Património Cultural Imaterial. Convenção da UNESCO e seus Contextos. Edições 70, 2011.

· CASANOVAS, Luís Efrem Elias. Conservação Preventiva e Preservação das Obras deArte. Ed. INAPA, 2008.

· Convenção da UNESCO 2001, sobre a Protecção do Património Cultural Subaquático (2 Novembro 2001)

· Decreto-Lei n.� 416/70, de 1 de Setembro.

· Decreto n� 289/93, de 21 de Agosto.

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· 1 Neoprene é o material com o qual os fatos de mergulho são confeccionados.

· 2 Aprovado pelo Decreto N.� 8, de 1 de Dezembro de 1892 – Publicado em Diário do Governo, N.� 276 de 5

de Dezembro de 1892.

· 3 Aprovado pelo Decreto N.� 31 730 de 15 de Dezembro 1941.

Contactar a autora: [email protected]

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O restauro da Fortaleza de Sagres no Estado NovoThe restoration of the fortress of Sagres during Salazar’s New State

Pedro Figueiredo Tavares da SilvaLicenciando em Conservação e Restauro na FRESS (Fundação Ricardo do Espírito Santo

Silva). Em 2011, concluiu o 1º ciclo de estudos do curso de Mestrado Integrado em

Arquitetura pelo Departamento de Arquitetura da Universidade de Coimbra,

e, em 2012, concluído a pós-graduação em Arquitetura dos Territórios Metropolitanos

Contemporâneos, pelo ISCTE-IUL.

Resumo: O presente trabalho reporta-se ao estudo da intervenção de restauro da Di-reção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais no conjunto arquitetónico exis-tente na Fortaleza de Sagres, bem como ao modo como este se insere no panorama geral das campanhas do restauro cultural e ideológico protagonizado pelo Estado Novo sobre o património português.

Palavras-chave: Restauro. Estado Novo. Direção Geral dos Edifícios e Monumentos

Nacionais. Fortaleza de Sagres. Monumento ao Infante.

Abstract: The aim of this paper is to study the process of restoration, made by Direc-torate-General for National Buildings and Monuments, on the Fortress of Sagres, and the way it fits into the widespread cultural and ideological restoration campaigns of Salazar’s New State upon Portuguese heritage.

Keywords: Restoration. Salazar’s New State. Directorate-General for National Buildings

and Monuments. Fortress of Sagres. Monument to Prince Henry of Sagres.

Introdução

Sagres, local intimamente ligado à figura do Infante D. Henrique, desempenha um inegável papel no âmbito do património espiritual português, importância grandemente recuperada através do discurso de construção ideológica e propa-gandista do Estado Novo. A acrescentar a este facto, a existência de concursos para a construção de uma peça escultórica monumental, ao longo do séc. XX, em honra do Infante D. Henrique, para o cabo de Sagres, atestam igualmente a adaptação da dimensão simbólica do local a uma ideologia que se queria voltada para a Nação e para os seus heróis históricos.

Embora o historial dos concursos durante o Estado Novo tenha conhecido su-cessivos desfechos sem êxito, ele demonstra bem o semblante espiritual e monu-mental que cobrira a figura do Infante D. Henrique, desde a fundação da ideologia nacionalista e de monumentalidade patriótica do regime e, sobretudo, a partir

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dos projetos das Exposições e Comemorações Centenárias dos finais de 30 do séc. XX. Na impossibilidade de execução das propostas, acabou por se materia-lizar mais uma intervenção de restauro por parte da Direção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais (DGEMN), merecedora de uma publicação especial, por ocasião do V Centenário da morte do Infante (1960), no âmbito da afama-da coleção de Boletins da DGEMN, representando o registo documental de base para este estudo.

O último concurso para o sítio da Fortaleza, concretizado em período demo-crático (1988), foi mais pautado por premissas de ajustamento turístico do sítio. Esta iniciativa veio não só recuperar os objetivos de valorização da importância de Sagres no contexto da história nacional, como também, na senda da polémica do projeto de arquitetura resultante, o reacendimento da discussão que, de forma mais ou menos contestatória, sempre pairou sobre as intervenções da DGEMN. Essa contestação junta dúvidas e críticas acerca da autenticidade das ações do Es-tado Novo sobre o património arquitetónico português e das respetivas metodo-logias de restauro estilístico aplicadas, onde se enquadra a realizada em Sagres.

1. O Estado Novo e a DGEMN

O Estado Novo reclamava para si um sentido de missão nacional, ecoado por todo o discurso do chefe de Estado e ampliado pelos sopros heróicos da recupe-ração do património português, tida como uma vitória sobre a desunião nacio-nal e sobre o esquecimento e enfraquecimento do espírito da nação portuguesa. Essa vitória desdobra-se no afamado tríptico, inserido na campanha de propa-ganda, que sempre encabeçava o discurso do chefe – Deus, Pátria e Família. Nesse âmbito, é exemplo a série de sete cartazes ilustrados lançados pelo Secretariado Nacional de Propaganda (SPN) com a Lição de Salazar, fortemente incutidos no universo educativo da infância portuguesa, distribuídos por todas as escolas primárias do país. Estes elementos apoiam-se num embate dialético, traduzido graficamente, entre um Portugal passado, “monocromático” e subdesenvolvido, mergulhado em esquecimento e abandono, e um Portugal sob o comando do Estado Novo, onde vigora um progresso convivente com a recuperação do valor cultural das artes tradicionais e dos monumentos.

A Lição de Salazar, no que toca ao âmbito dos monumentos nacionais e do seu restauro, ensinava o papel do Estado na recuperação da glória histórica da nação, espelhada no seu património. A dimensão religiosa do trabalho do res-tauro do património atesta bem a dimensão mítica na conjugação de Deus e Pátria, binómio pintado com um semblante ruralista e comunitário. Sobre esta conjugação apoiava-se a “Família”, acompanhada pelos sóbrios valores e virtu-des de apelo telúrico do povo português, compatíveis com o charme da modéstia (ACCIAIUOLI, 1998) que pintava a estética da propaganda.

Deste modo, não se estranha que estes valores ideológicos, fortemente enraiza-dos no solo português, tenham, mesmo indiretamente, imperado sobre a própria

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metodologia de intervenção da DGEMN no restauro patrimonial. De facto, numa primeira fase, a DGEMN atesta a “suma importância conferida à ancestra-lidade da Nação e a luta desencadeada pela sua independência, pela reconquista do território e pela manutenção das linhas de fronteira” (NETO, 2010: 159).

De um modo abrangente, o Estado Novo contava com a ação da DGMEN para legitimar a ideologia que acompanhava o fulgurante espetáculo comemorativo de exaltação histórica e patriótica do país. No seu primeiro decénio, a ideologia de restauro da DGEMN coincidia com uma forte consolidação da portugalidade, en-raizada no solo conquistado e nas heróicas campanhas que a haviam conseguido. Nesta apologia de uma época histórica concreta, e no próprio restauro que a valo-rizava acima de quaisquer acrescentos arquitetónicos a ela posteriores, reinavam “critérios de seleção, de acordo com os valores históricos enunciados e estranhos, por vezes, à dimensão artística [e histórica] dos imóveis” (NETO, 2010: 159).

O mote das Comemorações Centenárias de 1940 e 1960 ativou uma lógica de encenação histórica, cujo palco seriam os próprios edifícios, dos quais se arrancava e aproveitava o seu valor simbólico e representativo, dentro do contexto histórico português, e o seu porte cénico, condicente com o espírito festivo. Nestas operações de restauro, a autenticidade do monumento a recuperar, a sua verdade e valor his-tórico, “deduzia-se não tanto da proximidade ao modelo ideal, mas da sua vocação simbólica, ou seja, da capacidade de denotar a mensagem primitiva” (NETO, 2010: 159). Segundo Miguel Tomé, o conjunto das ações de restauro que pautaram este pe-ríodo celebrativo “pretendiam encenar no território da nação uma narrativa alegó-rica desvelada em cinco lugares-mito, articulados por um programa total.” (TOMÉ, 2010: 171). Esses cinco lugares ligavam-se intimamente a 5 pontos chave da história de Portugal, e cada um deles, a um edifício específico: “Guimarães, o berço da Nação; o Porto, núcleo de formação; Braga, centro religioso; Lisboa, capital do Império; Vila Viçosa, Restauração da Independência” (TOMÉ, 2010: 171), refletindo os seguintes tópicos: Nacionalidade, Reconquista, Repovoação, Religião, e Restauração.

Pode ainda ser adido a esta lógica um sexto momento e, com ele, o respetivo lugar simbólico que lhe dá o corpo para assentar – o lugar-mito. Esse momento é o da Expansão e o seu lugar é Sagres.

2. Sagres, Lugar-Mito

A figura de D. Henrique surgia “particularmente adequada à estrutura mítica que o Estado Novo procurava construir” (ALMEIDA, 2002: 14), apoiada, tam-bém, numa lógica de personificação da figura do Infante com a do chefe de Es-tado - uma transfiguração da sua imagem e conduta, numa lógica de salvação nacional, por ele protagonizada. Para concretizar essa ideologia baseada na ima-gem de salvador, mesclou-se, em tom propagandista, a figura do ditador com a das personagens escolhidas, para que figurasse, igualmente, no panteão de he-róis da Nação, à custa de paralelismos com o carácter de cada um, seus feitos e missões históricas.

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Foi por intermédio de António Ferro que nasceram estas campanhas de per-sonificação, principalmente visíveis a partir das Exposições Internacionais de Paris (1937), Nova Iorque e S. Francisco (1939) e, por fim Lisboa (1940). Para o caso particular do Infante de Sagres, foi notório o protagonismo dado na exposi-ção norte-americana, na qual Ferro “insistira no papel que os Portugueses desem-penharam na preparação do Descobrimento da América” (ALMEIDA, 2002: 91).

A sublimação do espírito do povo português em património espiritual da humanidade, teria, portanto, de começar como se iniciara, quinhentos anos antes a sua expansão, a partir da ponta de Sagres, lugar do espírito do Infante. Essa partida simbólica deveria ser condensada numa peça monumental no pro-montório da Fortaleza, cujo projeto surgira no eco de uma exposição descritiva e comemorativa do Estado Novo no Parque Eduardo VII em Lisboa, em 1934. Começa aí a longa história dos Concursos para a Construção de uma peça mo-numental em honra ao Infante D. Henrique em Sagres:

O primeiro concurso data de 1935, tendo sido, no ano seguinte, aprovado o projeto do arquiteto Rebelo de Andrade com o escultor Ruy Gameiro, “uma cruz de Cristo erguida sobre imensa coluna piramidal”, conforme aparece descrito num artigo da revista Cartaz do jornal Expresso, publicado a 8 de Setembro de 1990, recentemente disponibilizado on-line (POMAR, 2009). Pela mesma fonte somos informados do facto de, em 1938, novo concurso escolher “o projeto do arquiteto Carlos Ramos, com Leopoldo de Almeida e Almada Negreiros [...] uma espécie de barco de pedra, com mastro-padrão, vela enfunada e o infante hirto à proa.” (POMAR, 2009). O último concurso do regime “foi aberto em 54, na prepa-ração das comemorações henriquinas [atribuído em 56] a João Andresen [...], um conjunto ambicioso [...] [de] gesto circular e ascensional” (POMAR, 2009).

A execução dos projetos foi sucessivamente abandonada - de uma maneira resumida, à causa de motivos e discordâncias de ordem estética, técnica e orça-mental (ALMEIDA, 2002). Na aproximação ao ano do V Centenário Henriquino, privilegiou-se o restauro, com inspiração nos métodos usados pela DGEMN du-rante os seus anos áureos, inseridos na metodologia, já referenciada, de depura-ção arquitetónica, presente nos restauros cénicos ligados a momentos chave da história portuguesa.

3. DGEMN – Contexto histórico e Restauro da Fortaleza de Sagres

A publicação do Boletim n.� 100 da DGEMN, afeto aos “Monumentos de Sagres”, incluiu as fortalezas do cabo de Sagres e de Santo António do Belixe e ainda o Convento do cabo de S. Vicente, todos eles alvos de intervenções de restauro.

Na resenha histórica que aí se apresenta sobre o cabo de Sagres, expõe-se um historial, através de fontes documentais e cartas históricas, da discussão à volta da localização real da Vila do Infante, onde este teria residência própria, e onde terá falecido. O desfecho da discussão, resultante, maioritariamente, de infor-mação contraditória exposta em descrições, relatos de viagem e cartas, recaiu,

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no entanto, a favor da tese de Fontoura da Costa, apoiada em fontes considera-das mais sólidas. O trabalho deste último, útil, ainda, na dissipação de dúvidas criadas em confusões de ordem toponímica, fazia coincidir a vila do Infante com o lugar da Fortaleza, opinião, que, de alguma forma, legitimava o protagonis-mo da fortaleza de Sagres no âmbito da campanha de restauro da DGEMN e no mais abrangente projeto de revalorização da figura do Infante. Assim, o Cabo de Trasfalmenar era o atual cabo de Sagres e a vila de Terça Nabal, a vila de Sagres, e a afamada Vila do Infante são uma e a mesma vila, com diferentes nomes, toma-dos ao longo do tempo.

Após a morte do Infante, a vila entrou em decadência, ficando atribuída a diferentes senhorios até ao fim do reinado de D. João II (1495). A DGMEN acre-ditou serem desse século (XV) os vestígios arquitetónicos mais antigos da Vila do Infante, compostos pelo pano de muralha interior, entretanto parcialmente encoberto pelas casas da chamada “correnteza”, e pela Rosa dos Ventos, desco-berta em 1921, que se acredita estar ligada à existência de uma ermida circular de Santa Maria, edificada pelo Infante no lugar da Vila.

Em 1511 D. Manuel manda erguer a Igreja Matriz, “de uma só nave, aboba-dada, portal do renascimento, uma torre sineira, cúpula a fechar a capela mor”, com “três sepulturas razas, epigrafadas” (Direção Geral dos Edifícios e Monu-mentos Nacionais, 1960: 24-25). Na mesma ocasião ordena celebração de missa periódica em honra à memória do Infante, ditando a independência da freguesia da Vila, entretanto em agravado declínio e despovoamento, assumindo cada vez mais um carácter militar. A Igreja, a correnteza e os demais edifícios dentro da muralha datam todas desta altura (1536-1575). Os edifícios da correnteza, aco-plados à muralha, compreendiam a Casa do Cosmógrafo, a casa do Governador e a Casa do Infante, e outra edificação, mais afastada a Sul, então creditada como tendo sido usada como paiol e, mais tarde, como cavalariças.

Apoiada em fontes gráficas e documentais, foi esta a Fortaleza destruída em quase toda a sua extensão durante a incursão do corsário inglês Francis Drake na costa do Algarve em 1587. A figura de Drake está grandemente ligada aos embates entre as Armadas Navais de Espanha e Inglaterra; nas viagens e incursões por ele comandadas, era normal o saque e a destruição dos territórios costeiros. O levan-tamento gráfico do local por parte das forças britânicas, antes do saque, constitui o levantamento mais antigo do sítio, tendo representado um elemento fundamen-tal para o restauro do séc. XX. Aparentemente, o restauro da DGEMN recupera a configuração do conjunto arquitetónico interior da fortaleza neste ponto his-tórico, restituindo-o “à traça que o desenho de Francis Drake parecia revelar” (MESQUITA, 2009). Ainda que esta afirmação esteja por fundamentar com fontes mais sólidas, uma vez que no Boletim da DGMEN não consta quaisquer informa-ção sobre as premissas de intervenção, ela é corroborada pelo IGESPAR e apresen-tada, igualmente, nos atuais equipamentos de interpretação turística da Fortaleza.

Na ressaca do mesmo ato destruidor, foram, na primeira metade de XVII, por Filipe III (1621-1640) reparados os abatidos lanços da muralha exterior. Em

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tempos de D. João IV foram reforçados com meios baluartes ainda hoje presen-tes. Essas reparações incluíram as que foram feitas aos edifícios da correnteza, à muralha associada, e aos edifícios de apoio militar. O terramoto de 1755 repre-sentou outro acontecimento de consequências destruidoras, justificando outra campanha de reconstrução, em 1793, recuperando-se os quartéis, a casa do Go-vernador, os armazéns militares, a igreja e alguns setores da muralha exterior, em cuja porta principal figura uma inscrição comemorativa da intervenção. Foi ainda reconstruído e melhorado o edifício afeto à cisterna.

Foi assim que a DGMEN encontrou o conjunto do promontório de Sagres, “abandonada e entregue à ruína do tempo e dos homens (…) De pé ficou só, pode dizer-se, uma tradição viva da figura gigantesca do Infante D. Henrique, O IN-FANTE DE SAGRES!” (Direção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, 1960: 30). Era, de facto, a figura do Infante que o próprio regime almejava recu-perar, e fê-lo através da DGEMN, cujos trabalhos se orientaram, sobretudo, no sentido de devolver a dignidade condigna ao lugar da sua Vila e do local.

Simultaneamente às demolições depuradoras e às reconstruções em Sagres, as comemorações Henriquinas representavam, em Portugal, uma cambaleante tentativa de apologia de Estado e vanglória patriótica, num regime cuja ideolo-gia se via fragilizada e sua conduta cercada por uma crescente contestação. Esta última incluía o eclodir de ideais anticolonialistas, acompanhados, igualmen-te, pelo florescer de movimentos de independência nas regiões Ultramarinas. Consequentemente, as comemorações relativas ao V Centenário da Morte do Infante, cujo ponto alto se programava para o ano de 1960, e nas quais se incluía a ação da DGEMN sobre o local, não conseguiram o empenho e o envolvimento institucional e público que rodeara as Comemorações Centenárias e respetiva Exposição do Mundo Português de 1940.

Deste modo, nesse clima de descrédito e contestação, a intervenção da Direção Geral em Sagres revestia-se com contornos ainda mais particulares, uma vez que “o Infante D. Henrique simbolizava o arranque dos Descobrimentos Marítimos e a origem da legitimidade das possessões portuguesas de várias colónias” (NETO, 2010: 165). Nesta ocasião, a DGEMN operou, segundo algumas perspetivas, ao sa-bor dos últimos estertores de uma sôfrega ideologia de restauro e recuperação pa-trimonial. Como no seu período áureo, a operação da DGEMN na Fortaleza de Sa-gres foi, essencialmente, de carácter depurador, não desprezando o peso do valor paisagístico do local, carregado simbólica e misticamente o suficiente para poder prescindir de qualquer destaque arquitetónico supérfluo ou mais evidente. Essa postura era, naturalmente, diametralmente oposta à construção de esculturas monumentais como as propostas pelos concursos de 1935, 1938 e 1954.

Assim, no contexto concreto do Restauro, a ação mais destacável foi a “de-molição dos edifícios da correnteza que entaipavam elementos da primitiva muralha” (Direção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, 1960: 39-40), levando ao aumento do protagonismo no conjunto geral do interior da For-taleza, ela própria alvo de restauro parcial em alguns dos seus sectores. Nas

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casas sobrantes da chamada correnteza (o conjunto de edifícios acoplados ao pano Norte da muralha interior) foram feitas obras de conservação – a Casa do Governador foi adaptada a um dormitório da Mocidade Portuguesa, e a casa cen-tral reservada e adaptada para apoio (casa do guarda, posto turístico e piquete de faroleiros). O edifício mais comprido da correnteza, a Nascente, foi adaptado a Centro de Estudos Ultramarinos. Todos estes sofreram notórios restauros de al-çado, condicentes com os levantamentos de Drake. Existiram, igualmente, mo-dificações nascidas através de alterações programáticas/funcionais nos interio-res, embora não tão significativas do ponto de vista arquitetónico. As operações na correnteza terão sido igualmente regidas por motivos de força prática (como o caso da casa central, reservada para apoio logístico) ou, ainda, estéticas, sendo as demolições realizadas para o enquadramento dos edifícios remanescentes.

Alvo de especial destaque foi também o restauro pontual da muralha abalu-artada, sua consolidação geral e obras de alargamento da entrada principal da Fortaleza. Os trabalhos na muralha datada de XVII foram complementados pela consolidação das fundações. A intervenção incluiu ainda a obra de restauro no exterior e interior da Igreja Matriz, o aproveitamento e adaptação do edifício abobado a Sul da muralha interior (armazém de material militar) para a cons-trução de um auditório, e um adequado processo de arruamento (calcetado) em todo o promontório. Por entre outras demolições e consolidações de ruína em edifícios mais secundários, é, ainda, relevante a limpeza da Rosa dos ventos e a respetiva guarnição do seu perímetro, e obras em equipamento militar, com a reparação das baterias e colocação pontual de “canhões antigos” (originários do local?). Foram ainda executadas obras de infraestruturação elétrica e sanitária.

4. O Último Concurso

Já em época democrática, no desenrolar de um concurso público para a Fortaleza de Sagres iniciado em 1988, com o apoio de verbas europeias e objetivos claros de adaptação turística, o projeto vencedor do arquiteto João Carreira, finalizado em 1997, não aconteceu sem duras críticas. Para muitos, a intervenção foi intrusiva e carregada de justificações alegóricas inexplicavelmente redundantes, evidencia-das numa curta memória descritiva do projeto apresentada (CARREIRA, 1994), justificando a redação de um parecer da Comissão Científica de História da Arte da Universidade Nova (Universidade Nova de Lisboa, Dep. História de Arte, 1994), que apelava ao cancelamento do projeto. Este incluía, ainda, um “túnel de vento”, a ser construído no planalto do promontório, de orientação enviesada em direção a Sul. Seria este túnel o “monumento final” em Sagres – 2 muros de betão aparente de vários metros de altura, cujos panos interiores estariam decorados com relevos alusivos a temas “poéticos” e “misteriosos”, elaborados por artistas que nunca ha-viam concordado em participar, aumentado a polémica do projeto em grau sufi-ciente para o monumento não ter sido, mais uma vez, executado.

No meio da discussão, gerou-se um vivo embate, extensível à questão da

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colaboração interdisciplinar, no âmbito do Património, entre o exercício da Arquitetura, necessária para a contínua valorização e adaptação dos edifícios históricos, e a História da Arte, cuja metodologia preza pela autenticidade e dig-nidade históricas. Do lado do elogio da Arquitetura, e da validade do seu papel na ressignificação do património, surgiram, em tom de defesa, duras e afiadas críticas às intervenções da DGEMN e do Estado Novo, não só em Sagres, mas no contexto português geral. Em relação às de Sagres, foram interpretadas como “uma mistificação, uma mentira inventada por Salazar e construída pela [Di-reção] dos Monumentos Nacionais nos anos 50 para, fazendo crer que havia ali muralhas, escola de Sagres, rosa dos ventos, e igreja onde teria rezado o Infante, alimentar o mito da fé e do Império” (BRANDÃO, 1994: 27).

Conclusões

Não foi de estranhar o facto de a máquina de propaganda do Estado Novo se tenha apropriado da figura do Infante de Sagres para legitimar o semblante heróico com que se queria pintar a figura do chefe do regime. Se para os outros heróis da Nação e para as outras épocas de suma importância para a História de Portugal, o Estado Novo e a DGEMN tenham, desde o início da sua estreita e fundida colaboração, or-questrado e executado planos de restauro e revalorização patrimonial, o tardio res-tauro da Fortaleza e da vila do Infante só se explica porque o Estado Novo tinha pla-nos bem diferentes para o Promontório Sacrum. Esses planos justificam-se através dos concursos, contraditórios sopros de uma utopia arquitetónica e monumental, plantada no seio de uma ideologia fortemente ancorada no Portugal rural, modesto e caseiro, do discursos sibilante do chefe do regime. Foi, neste âmbito, porventura, o espírito do Infante que, por quaisquer ventos mágicos, conseguiu resistir a qual-quer monumento devorador daquele gosto a solidão de pesado e remoto misticismo.

O que urge saber, hoje, é até que ponto esta resistência “henriquina” não terá sucumbido, rasgado num balanço entre um restauro preenchido com uma visão de apologia nacionalista de Estado, não imune a acusações de falsificação histó-rica, e outra intervenção, democrática, carregada com os requisitos de um regi-me turístico e suas pistas de tartan, adaptadas às sandálias do turismo de massas.

Talvez tenha, este último, um plano secreto para a Fortaleza – o de a reduzir a “atração” turística de intervalo de praia, através de sucessivas adaptações que, conti-nuadamente, a vão desfigurando. Por outro lado, talvez tivesse Salazar, secretamente, outro plano reservado para Sagres, latente sob a pompa das Comemorações e Exposi-ções Mundiais - a de eternizar a figura do Infante na memória da Nação Portuguesa.

O que hoje se assiste em Sagres é uma muda mistura destes dois desejos para lá reservados: um Infante que incorpora o sonho que Salazar tivera para todos os portugueses, fitando eternamente um horizonte infinito, e para sem-pre, também ele, agora por detrás de um colorido cartaz de gelados Nestlé, “or-gulhosamente só”.

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Contactar a autora: [email protected]

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Patrimônio, cultura e sustentabilidade: construção identitária e social através dos festejos no litoral sul do Rio Grande do Sul, BrasilHeritage, culture and sustainability: identity construction and social celebrations across the south coast of Rio Grande do Sul, Brazil

Rosemar Gomes LemosArquiteta e docente da Universidade Federal de Pelotas. Doutora em Engenharia Civil

pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2006) e PhD na área de novos materiais

pela Universidade de Aveiro, Portugal.

Resumo: O presente trabalho tem por interesse discutir a temática: patrimônio cul-tural e sustentabilidade como construção identitária e social. A investigação destaca a importância da diversidade religiosa e das ações políticas no âmbito federal. Com base nos resultados obtidos percebeu-se que ações políticas podem interferir na cons-tituição do patrimônio histórico imaterial de um povo e contribuir para um desen-volvimento sustentável com base no aproveitamento de recursos naturais e culturais.

Palavras-chave: patrimônio cultural imaterial. Práticas religiosas. Polo naval. Sustentabilidade.

Abstract: The present work have the interest to discuss the theme: cultural heritage and sustainability as identitary and social. The research highlights the importance of religious diversity and political actions at the federal level. Based on the results obtained it was realized that political actions can interfere in the formation of the historical heritage of a peoplee to contributing to sustainable development based on the use of natural and cultural resources.

Keywords: Religious practices. Intangible cultural heritage. Ship polo. Sustainability.

Introdução

O presente trabalho é resultante de um estudo de caso sobre o Patrimônio Cultural Imaterial do Sul do Rio Grande do Sul, relacionado as mudanças nas celebrações reli-giosas que ocorrem nas águas lacustres e oceânicas do sul do Brasil a partir da migra-ção do norte e centro para o sul do país. Utilizou-se como base de dados reportagens, artigos científicos e fontes estatísticos de órgãos de pesquisa oficiais.

Pelotas e Rio Grande foram as cidades investigadas, locais onde nos últimos anos aconteceram grande mudanças em termos de densidade e constituição po-pulacional interferindo diretamente nos saberes locais. O foco da investigação são os Bens Materiais de Natureza Imaterial, especificamente as manifestações

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religiosas em celebração as divindades das águas – Nossa Senhora dos Navegan-tes, na Igreja Católica e Iemanjá, na Umbanda e demais religiões afrobrasileiras. Segundo o IPHAN:

Os Bens Culturais de Natureza Imaterial dizem respeito àquelas práticas e domínios da

vida social que se manifestam em saberes, ofícios e modos de fazer; celebrações; formas de

expressão cênicas, plásticas, musicais ou lúdicas; e nos lugares (como mercados, feiras e

santuários que abrigam práticas culturais coletivas) (IPHAN, 2013).

O objetivo da investigação é relatar e analisar as alterações que ocorreram nas ma-nifestações culturais religiosas nestas cidades após a chegada deste contingente de pessoas. Como reagiu e reage a população local? Que saberes são permutados? Quais as contribuições que esta mescla populacional trouxe à comunidade? Quais as altera-ções que ocorreram na paisagem local.

As duas cidades, Pelotas e Rio Grande foram alvo de grande migração inter-na a partir de ações políticas federais, especificamente, a mudança da forma de seleção para acesso a Universidade, para o sistema SISU e o estabelecimento de uma Base de montagem de Plataformas petrolíferas para uma empresa estatal federal, a Petrobrás, a contar de 2006. Tal fato pode ser exemplificado pelo que apresenta Silva et. al.:

Com mais de 10 bilhões de reais em investimentos o Pólo Naval do Rio Grande vem, a

partir de 2006, atraindo um grande número de trabalhadores de outras regiões do Brasil.

Esse fluxo migratório ocasionou um aumento na demanda por imóveis que associado a bai-

xa oferta disponível causou um impacto nos preços, tanto para locação como para venda.

(SILVA et. al., 2013)

Grande número de pessoas vindas de várias regiões brasileiras passaram a residir nestes locais. Consigo trouxeram a sua cultura que se mesclou com as tradições locais dando origem a uma nova forma de atuação social e a construção de uma nova história.

1. Características Geográficas, Econômicas e Culturais de Pelotas e Rio Grande – RS, Brasil

O município de Pelotas-RS (Figura 1), ocupa uma área de 1.610,084 Km2, está situado às margens do Canal São Gonçalo, que liga as Lagoas dos Patos e Mi-rim, as maiores do Brasil, a 250 Km da Capital do Estado, Porto Alegre, a 135 Km da fronteira do Uruguai, por Jaguarão, a 220 km, pelo Chuí, e a 600 km da fronteira da Argentina (PREFEITURA MUNICIPAL DE PELOTAS, 2013). As ba-cias contribuintes de ambas recebem 70% do volume de águas fluviais do Rio Grande do Sul. Esta localização tem importantes reflexos sobre aspectos físicos

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e econômicos do município. Sua população atual é de 328.275 habitantes, tendo por densidade demográfica 203,89 habitantes/Km2 (PREFEITURA MUNICIPAL DE PELOTAS, 2013) (BRASIL, 2013b). Já Rio Grande-RS localiza-se a 47 Km de Pelotas-RS (Figura 1), no extremo sul do estado do Rio Grande do Sul. Em 2010 sua população era de 197.228 habitantes, ocupando uma área territorial igual a 2.709,522 Km2 alcançando uma densidade demográfica igual a 72,79 hab/Km2. É a cidade mais antiga do estado, conta com uma economia diversificada possuin-do um Distrito Industrial composto por empresas que atuam no setor agrícola, alimentício, madeireiro, de energia, químico e metalúrgico e com a possibilida-de de instalações na área de energia eólica e de gás natural liquefeito.

Há dez anos atrás, a população de Pelotas era de 323.158 habitantes e de Rio Grande 186.544 (BRASIL, 2013b). Verificando o crescimento populacional ao lon-go de dez anos nas duas cidades verificou-se nas cidades citadas obteve-se 1,58% e 5,72%.

2. Desenvolvimento Sustentável

Pode-se conceituar Desenvolvimento Sustentável como um modelo econômico, político, social, cultural e ambiental equilibrado, que satisfaz as necessidades das gerações atuais, sem comprometer a capacidade das gerações futuras de sa-tisfazer suas próprias necessidades (SACHS, 2000). O conceito de sustentabili-dade comporta sete aspectos ou dimensões principais, são elas (SACHS, 2000): Sustentabilidade Cultural, Espacial, Política, Ambiental, Social, Econômica e Ecológica. Salienta-se nesta abordagem, a sustentabilidade cultural e ambiental que referem-se, sucessivamente, ao respeito aos diferentes valores entre os po-vos e incentivo a processos de mudança que acolham as especificidades locais, a conservação geográfica, equilíbrio de ecossistemas, erradicação da pobreza e da exclusão, respeito aos direitos humanos e integração social.

Fig. 1 - Localização de Pelotas e Rio Grande-RS

Fonte: Google Maps, 2013

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Verifica-se ainda no fenõmeno estudado a sustentabilidade social. Apesar da grande diversidade de indústrias instaladas na cidade do Rio Grande-RS, são os investimentos em seu Pólo Naval, iniciados em 2006, que tem ocasionado na região grandes mudanças em seu dinamismo e economia.

Segundo dados da Petrobrás, a companhia deve investir até 2017 cerca de U$ 13 bilhões

e até 2024, Rio Grande, a través do seu pólo naval, deve gerar 26 bilhões de dólares em

bens e serviços e criar mais de 600 mil empregos diretos e indiretos no estado do Rio

Grande do Sul (SILVA, et. al. 2013).

Em relação à cidade de Pelotas, na última década esta sofreu grandes alterações no que se refere a sua conformação territorial e constituição populacional do meio urbano. É uma cidade tipicamente universitária, com 13 universidades (incluin-do ensino presencial e a distância), entre elas uma pública. Tal fato se deu devido à ações políticas federais, no âmbito educacional, no início do século XXI onde o acesso ao terceiro grau passou a ser via Enem (Exame Nacional do Ensino Médio).

[...] Criado em 1998, o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) se consolidou como

uma das maiores avaliações do gênero no mundo. Embora a participação seja volun-

tária, o Enem atraiu, em quinze anos, um número crescente de concluintes e egressos

do Ensino Médio. Se na 1ª edição contou com 157,2 mil inscritos, na 4ª, em 2001, al-

cançou a marca expressiva de 1,6 milhão de inscritos. Sua popularização definitiva

veio em 2004, quando o Ministério da Educação instituiu o Programa Universidade

para Todos (ProUni) e vinculou a concessão de bolsas em instituições de ensino su-

perior privadas à nota obtida no Exame. No ano seguinte, o Enem superou a marca

de 3 milhões de inscritos e em 2006 estabeleceu novo recorde, alcançando 3,7 milhões

(CONEXÃO PROFESSOR, 2013).

Ainda no início do século XXI o Governo Federal instituiu o Programa Reuni (Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais) que proporcionou aos jovens de todo país disputarem vagas em todas universidades públicas brasileiras. Segundo REUNI/MEC (2014):

Com o Reuni, o governo federal adotou uma série de medidas para retomar o crescimento

do ensino superior público, criando condições para que as universidades federais promo-

vam a expansão física, acadêmica e pedagógica da rede federal de educação superior. Os

efeitos da iniciativa podem ser percebidos pelos expressivos números da expansão, inicia-

da em 2003 e com previsão de conclusão até 2012. As ações do programa contemplam o

aumento de vagas nos cursos de graduação, a ampliação da oferta de cursos noturnos, a

promoção de inovações pedagógicas e o combate à evasão, entre outras metas que têm o

propósito de diminuir as desigualdades sociais no país. (REUNI/MEC, 2013)

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Tal fato atraiu um grande contigente de jovens das mais diversas regiões do país, cabe salientar que a Universidade Federal de Pelotas (UFPel) foi a pri-meira instituição de ensino superior gaúcha a anunciar que aceitou a proposta do Ministério da Educação (MEC) de substituir o vestibular pelo novo Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) passando a realizar a seleção através deste sistema a partir de 2010 (BERTINETTI, 2009). A Furg – Universidade Federal do Rio Grande, procedeu de forma semelhante e, a contar de 2010 também passou a realizar seleção para acesso via Enem.

3. Patrimônio Cultural Imaterial e Respeito as Diferenças – A Festa de Navegantes

O Patrimônio Cultural Imaterial é transmitido de geração a geração, constante-mente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de identida-de e continuidade, contribuindo para promover o respeito à diversidade cultu-ral e à criatividade humana. É apropriado por indivíduos e grupos sociais como importantes elementos de sua identidade (IPHAN, 2013).

A recriação deste patrimônio estabeleceu-se nos últimos anos nas cidades de Rio Grande e Pelotas. Silva et. al. (2014) relata o fenômeno de aumento da densidade populacional: “[...] Com mais de 10 bilhões de reais em investi-mentos o Pólo Naval do Rio Grande vem, a partir de 2006, atraindo um gran-de número de trabalhadores de outras regiões do Brasil [...]”.

A consequência deste acontecimento pode também ser verificada em Da Sil-va et. Al. (DA SILVA et. Al, 2013): A partir de 2006, coincidindo com o início dos investimentos no Pólo Naval, os preços dispararam, crescendo de forma muito mais acentuada do que o IGP-M do período, devido ao grande fluxo de pessoas, que visavam preencher um dos postos de trabalho criados pela implantação do Pólo Naval. A proximidade entre as duas cidades transformou Pelotas numa ci-dade dormitório o que permitiu o enriquecimento cultural visto as novas rela-ções sociais que se estabeleceram.

A Festa de Nossa Senhora dos Navegantes ou de Iemanjá (celebridade reli-giosa conforme a religião praticada) nestas cidades, tomou vulto diferenciado se comparada com décadas atrás (Figura 2). Tal fato pode ser comprovado pela notícia extraída do Jornal Zero Hora (2011):

[...] A 31ª Festa de Iemanjá, que aconteceu na noite de 1º para 2 de fevereiro na praia do

Cassino, recebeu um dos maiores públicos de sua história. A expectativa era de 100 mil

pessoas mas, de acordo com os organizadores, esse número foi superado, atingindo 120 mil

pessoas (Zero Hora, 2011).

[...] O prefeito Janir Branco destacou que a Festa de Iemanjá, ao chegar em sua 31ª edição,

não apenas é tradicional, mas transformou-se na maior festividade da Umbanda e dos cul-

tos afro-brasileiros no Rio Grande do Sul. “Trata-se de uma das mais lindas manifestações

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de fé que se tem conhecimento no estado”,disse ele, que também referiu-se à organização da

Urumi, à participação dos centros espíritas e principalmente das milhares de pessoas “que

tornam esta festa ainda mais significativa. (Witter, 2011)

Em um outro site encontrou-se a notícia, publicada no dia 2 de fevereiro de 2013:

As comemorações pelo dia de Iemanjá e Nossa Senhora dos Navegantes mobilizaram mi-

lhares de fiéis em Pelotas na sexta e no sábado (dias 1º e 2). As homenagens às protetoras

dos navegantes ocorreram na Colônia de Pescadores Z- 3 e balneários do Laranjal e dos

Prazeres (MARRONI, 2013).

Em Porto Alegre, capital do Estado, o mesmo fenômeno é verificado no dia 2 de fevereiro. Encontrou-se o relato e imagens (Figura 3) abaixo apresentados:

Esta é festa religiosa mais importante do Rio Grande do Sul. Realiza-se em Porto Alegre no

dia 2 de fevereiro, quando a imagem de Nossa Senhora dos Navegantes é transportada do

Santuário Nossa Senhora do Rosário, no centro da cidade, para o Santuário Nossa Senhora

dos Navegantes. Mais de 100 mil pessoas participam todos os anos da procissão, por terra e

água (em dezenas de barcos que fazem o percurso através do lago Guaíba). A festa realiza-se

há mais de 100 anos. (RS VIRTUAL, 2013)

Iemanjá a grande mãe africana do Brasil, deusa dos oceanos, deusa da foz dos rios e quebra-mares, na África ela é associada aos rios, na religião de matriz européia ela é conhecida como Nossa Senhora dos Navegantes que é a protetora dos navegantes. Por ser rainha das águas e protetora dos pescadores Iemenja é homenageada uma vez no ano no dia 2 de fevereiro, vê-se esta como a festa reli-giosa mais importante da cidade. Uma característica do festejo é ter o encontro das duas imagens durante o percurso maritmo o qual mobiliza milhares de fiéis na cidade de Pelotas.

Segundo Farinha et al.(2014) no Estado do Rio Grande do Sul, a celebração mais antiga de Nossa Senhora dos Navegantes é, possivelmente, a realizada em São José do Norte, cuja Matriz possui uma imagem barroca dessa invocação. A Festa em ou-tras cidades do país tem proveniência a partir do ofício do Pescador. Já antiga Festa de Navegantes de Pelotas foge deste contexto, sendo elaborada não sob o contexto do trabalho do pescador, mas pela proximidade do bairro ao Porto de Pelotas, onde ocorria intensa atividade comercial na cidade.

A prática das religiões é um direito humano, embora haja um enorme ra-cismo instituído quando se trata das religiões de matriz africana, as injustiças enfrentadas pelo povo de terreiro são causadas por um racismo definido por cor da pele, por uma herança de mistificação e desvalorização da história e

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cultura negra, isso se dá por um caráter social, político, econômico e simbólico constituído por fatos históricos.

É fundamental que haja socialização na vida dos sujeitos quando se trata de religiões, onde diferentes temas envolvem esta dimensão e a importância de ser tratado com importância na sua abordagem. Embora não se saiba, o estado do Rio Grande do Sul é um dos estados brasileiros onde as religiões de matriz afri-cana se mantém há mais tempo, principalmente nas cidades de Pelotas e Rio Grande onde se encontram, em maior número, casas de matriz africana, um estado afro gaúcho no qual se encontra um expressivo número da população afro-brasileira formado por diferentes manifestações religiosas principalmente o batuque, a linha cruzada e a umbanda.

O batuque tem seu culto voltado para doze orixás e se divide em nações, com a fundação dos primeiros terreiros nas cidades de Pelotas e Rio Grande no início do século segundo o autor Marco de Mello. A linha cruzada ou quimbamda ini-ciada na década de 1960 se caracteriza pelo culto de entidades típicas como exus e pombagiras, já a umbanda surgiu no Rio Grande do Sul por volta de 1930, é uma misturas de rituais e crenças africanos e europeus e acredita que o universo seja povoado por entidades espirituais. Podemos entender isso como uma diversidade religiosa e cultural de forma que diversidade se constitui como patrimônio comum da humanidade e deve ser reconhecida “[...] Constituem patrimônio cultural bra-sileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”. (BRASIL, 1988, art. 216). Isso signifi-ca que a religiões de matriz africana devem ser tratadas e reconhecidas como um bem cultural no seu aspecto imaterial. Estes segmentos das religiões de matriz africana influenciam diretamente na vida de seus praticantes, pois cada orixá representa uma força da natureza, e cada um deles é responsável por manter uma determinada ordem e isso influencia na busca pela identidade de forma geral e social de cada indivíduo.

Considerações Finais

A migração estabelecida no início do século XXI, no sul do Rio Grande do Sul foi capaz de produzir mudanças e transformações na realidade econômica, política e cultural regional.

Ao analisar o fenômeno estudado pode-se concluir que ações políticas a ní-vel federal com base no aproveitamento dos recursos naturais (Bacias Fluviais e Marítimas de Rio Grande-RS e Pelotas-RS) e culturais, podem interferir direta-mente na constituição do patrimônio histórico imaterial de uma região, além de contribuir para o desenvolvimento sustentável do espaço urbano.

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Contactar a autora: [email protected]

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Ecoturismo, patrimônio natural e cultural na cidade de Parnaíba, Piauí, BrasilEcotourism, natural and cultural heritage in the city of Parnaiba, Piauí, Brazil

Edvania Gomes de AssisGeógrafa. Dra. em Geografia, Universidade Federal do Piauí. Tutora PET

Turismo/UFPI. Coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisa Interdisciplinar

em Turismo – EITUR/UFPI.

Francisco Pereira da Silva FilhoTurismólogo. Especialista em Assessoramento e Análise de Projetos. Colaborador

do Núcleo de Estudos e Pesquisa Interdisciplinar em Turismo - EITUR/UFPI.

Resumo: Este artigo mostra a importância de conhecer as atividades humanas que estão diretamente relacionadas ao uso do patrimônio cultural e natural, no bairro Ilha Grande de Santa Isabel na cidade de Parnaíba-PI. Os resultados da pesquisa escla-receram que ocorre um processo complexo de adaptação na relação sociedade/natu-reza e seus impactos. Portanto, manter uma boa relação entre sociedade/natureza é de vital importância para a manutenção da vida humana nos seus diversos aspectos sociais na continuidade e no resguardo da identidade local.

Palavras-chave: Ecoturismo. Sociedade. Identidade. Sustentabilidade.

Abstract: This article shows the importance of knowing human activities that are di-rectly related to the use of cultural and natural heritage in the neighborhood of Ilha Grande de Santa Isabel in the city of Parnaíba-PI. The results of the research explained that a complex process of adaptation occurs in the relationship society/nature and their impacts. Therefore, keeping a good relationship between society and nature is extremely important to the maintenance of the human life in its several social aspects for the continuity and the safeguard of the local identity.

Keywords: Ecotourism. Society. Identity. Sustainability.

Introdução

O turismo em uma concepção contemporânea e estratégica deve ser entendido como um conjunto de bens e serviços que promovam o progresso socialmen-te justo e economicamente equilibrado em nível local e regional, integrado ao desenvolvimento urbano e rural de forma a criar um crescimento responsável do turismo, de forma a contribuir para a sua manutenção a longo prazo. Dessa

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forma, o turismo responsável, no contexto de uma estratégia para a sustentabi-lidade, amplia os destinos turísticos, que mantém e valorizam as características dos recursos naturais e culturais, consideradas patrimônios das comunidades locais, sustentando-os para as futuras gerações de comunidades, visitantes e em-presários. Dentro desta perspectiva Dias afirma que:

O patrimônio cultural é a essência do turismo cultural, a grande motivação para deslo-

camento dos turistas e capital cultural valioso para as comunidades, pois representa um

produto turístico que, se bem administrado, pode perdurar indefinidamente. Nesse início

do século XXI, há um incremento da discussão sobre a relação entre patrimônio cultural e

turismo, motivado pelo aumento tanto da atividade turística em si como pela diversificação

de interesses da população em geral, o que implica riscos para o patrimônio em função do

crescimento, muitas vezes incontrolável, da atividade turística. (2006:46).

Assim, o turismo pode contribuir para o desenvolvimento econômico e so-cial de uma cidade, mas necessita de planejamento e gestão constante das ações aplicadas, para que a atividade consiga manter a conservação do patrimônio cul-tural, natural e histórico e a sua sustentabilidade social, ambiental e econômica de forma que venha a minimizar os impactos negativos nas comunidades.

A área objeto de estudo foi o bairro de Ilha Grande de Santa Isabel, em Parnaí-ba, Piauí, localizado a 345 km da cidade de Teresina, capital do Estado; o municí-pio está geograficamente inserido na Microrregião do Litoral Piauiense; a popu-lação corresponde aproximadamente a 15 mil habitantes e a economia está base-ada nas atividades primárias (PREFEITURA MUNICIPAL DE PARNAÍBA, 2012).

A escolha do tema e o objeto de estudo se justificaram pela busca do conheci-mento e da importância das atitudes e condutas da população referentes ao meio ambiente, bem como, para verificar como esses recursos favorecem o crescimento da região por meio da conservação das suas potencialidades naturais e culturais. Este estudo apontou as principais atividades naturais e culturais no contexto eco-turístico local e a transformação de sua identidade através dessas atividades.

A investigação aprofundou a descrição das atividades naturais e culturais como indutores principais de geração de renda para o desenvolvimento local; evidenciou os bens naturais e culturais e, por fim, buscou compreender a rela-ção da comunidade com a natureza, quanto à percepção da identidade local, no desenvolvimento do ecoturismo.

A atividade turística, aliada aos diversos tipos de patrimônios, está numa constante crescente nos últimos anos no Brasil, principalmente devido ao seg-mento do ecoturismo, diretamente ligado às comunidades, que apresentam características patrimoniais, principalmente naturais e culturais relevantes; assim, associa-se um tipo de turismo que oportuniza o desenvolvimento das comunidades locais pertencentes às unidades de conservação, facilitando o seu desenvolvimento interno. Nessa perspectiva, “Define-se ecoturismo como

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viagem responsável às áreas naturais, com o fim de conservar o meio ambiente e promover o bem-estar da comunidade local” (LINDBERG; HAWKINS, 2002:59).

1. Resultados e discussão1.1 Caracterização das principais atividades naturais e culturais

O bairro de Ilha Grande de Santa Isabel, localizado no interior da maior ilha da APA (Área de Proteção Ambiental) Delta do Parnaíba, possui várias atividade desenvolvidas na comunidade, as quais envolvem elementos relacionados tanto aos meios naturais, quanto aos meios culturais, que são de extrema importância para a vitalidade socioeconômica.

1.2 A atividade da carnaúba

Na Ilha, existe uma associação de trançados, que surgiu em novembro de 2000, por meio do Programa Artesanato Solidário. Segundo Dona Serrate Maria Sou-sa Gonçalves - presidente da associação – esta é composta por 25 artesãs, que produzem inúmeras peças diariamente, o que comprova a riqueza natural e cul-tural da carnaúba como valor significativo para a comunidade; são confecciona-dos inúmeros artefatos artesanais que propiciam renda às famílias.

Da palha produzem-se: vassouras, trançados e cestarias, dando formato a ta-petes, fruteiras, mandalas, bandejas, cestos, jarros, abanos, esteiras, tigelas, bol-sas, carteiras, entre outros; do linho, mais conhecido pelas artesãs como olho da pindoba, são produzidas redes, espanadores e vasculhadores; do talo fabricam-se casas, revestimentos, armários, poltronas, cadeiras, porteiras, abajures, placas e etc.; da cera fazem-se velas, batons, chips e outros; no que se refere à cera, a comunidade apenas colhe a matéria-prima, o artigo final é produzido pelas fá-bricas, que, igualmente, comercializam os artigos.

Assim, fica evidente a potencialidade da região, lugar no qual se “respira” artesanato, presença obrigatória na comunidade, parte integrante da cadeia produtiva, em que matéria-prima transforma-se em arte, possibilitando o desen-volvimento da comunidade. A prática do ecoturismo na região possibilitará às artesãs um maior reconhecimento, para que isso ocorra, as artesãs devem valo-rizar mais as suas produções artísticas, a fim de obterem maiores rentabilidades.

1.3 Os igarapés e o barro: riquezas naturais

Na comunidade, a presença de igarapés é recorrente, espalham-se pelo local como veias humanas; esses igarapés recebem um nome popular, devido a uma singela característica ou simplesmente pelo fato de uma família bastante conhe-cida viver próxima ao lugar, como por exemplo, o Igarapé dos Silvas, que recebe esse nome em virtude de uma família residir há muito tempo no local. O surgi-mento dos igarapés no bairro é percebido pela proximidade da localidade ao Rio

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Igaraçú, parte dos recursos hídricos na APA Delta do Parnaíba, uma importante área de preservação, que possui grande importância não só para a preservação ambiental, mas também para as pessoas quem vivem no local, servindo como mais uma alternativa na fonte de renda dos moradores. Os igarapés servem à pesca, navegação de pequeno porte, etc.

A comunidade ainda tem um lago conhecido como a lagoa do finado Iran, que se formou no decorrer dos anos com a retirada de barro para a fabrica-ção artesanal de tijolos, atividade ainda presente; à sua esquerda mora um senhor de 82 anos, Eliseu da Costa Lima, casado há 64 anos e tem 12 filhos; é cearense e mora no município há 17 anos, veio para o Piauí para trabalhar na fábrica Queiros Galvão; trabalhava também no ramo de tijolos; ao térmi-no dos trabalhos da fábrica, o senhor permaneceu no lugar e ainda hoje faz tijolos - vende 1000 tijolos a 180,00 reais; mesmo já sendo aposentado, mas que devido às dificuldades financeiras e à baixa aposentadoria continua exe-cutando a atividade.

1.4 Boi da Fazendinha — história e vivência local

No bairro, há uma diversidade cultural e natural significativa; caso se considere as ideias do ecoturismo, expressões culturais tradicionais a exemplo o Boi da Fa-zendinha, a dança folclórica, valorizada na comunidade, pode atrair os turistas. Essa manifestação folclórica foi criada em meados da década de 40 e 50; o Boi da Fazendinha surgiu a partir da iniciativa do primo Idoca, que idealizou a brinca-deira com o objetivo de integrar os membros da comunidade local, entretanto, o boi ficou bastante tempo parado por motivos não revelados, reiniciando suas atividades em 2003, coincidindo com a construção do clube onde ocorrem os ensaios; “o Bumba-meu-boi talvez seja a mais difundida e aquela em que o ima-ginário popular mais tenha atuado em termos de uma reelaboração simbólica.” (ALCOFORADO, 2006). Essa declaração aponta para a ênfase de recriação da co-munidade a partir dessa manifestação cultural, inesgotável em sua importância no contexto social.

Percebeu-se também que a participação familiar é intensa nessa atividade, conforme ressalta o senhor José João, uns dos organizadores do Boi da Fazen-dinha; “O Boi é importante para família pelo entretenimento, porque todos participam”. Atualmente, o Boi da Fazendinha é organizado por cinco irmãos, Acrisio João dos Santos presidente, Francisco Paulo dos Santos proprietário do boi; os outros três irmãos tratam da organização no que envolve ensaios e decoração.

Para Pollak (1992) “[...] a memória é um elemento constituinte do senti-mento de identidade, tanto individual como coletiva [...]”, em outras palavras, cada membro do grupo se sente alegre de pertencer e contribuir para uma cul-tura que é arraigada à comunidade, dessa forma criando sua identidade.

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1.5 Escultura (madeira): atividade e tradição na comunidade

O artesanato envolve a percepção, tradição e costume, marca uma identidade lo-cal. Segundo Grunewald (2001), “[...] as tradições são autênticas, pois são criadas [...], fazendo parte integrante de sua cultura”. Assim, não é só o atrativo natural que é considerado ecoturismo, mas também a atratividade cultural que por con-sequência depende da natureza para o seu sustento, mesmo que seja um impac-to muito nocivo para os princípios do ecoturismo.

Percebe-se no Estado do Piauí que a arte santeira é uma produção cultural arraigada à sociedade, pois a religiosidade do piauiense é muito forte. Por isso, o homem demonstra os seus costumes, anseios, satisfação e, principalmente, a criatividade para a produção artística. Além disso, é simbolizada por situações cotidianas do homem simples como, por exemplo, a pesca e a caça.

O artesão Guilherme, esposo de Dona Maria Antônia, presidente da Asso-ciação dos moradores da “Vazantinha”, também localizada no bairro de Ilha Grande de Santa Isabel, trabalha nesse segmento e utiliza também a arte san-teira como expressão cultural que caracteriza a identidade piauiense e princi-palmente da região estudada. As obras produzidas pelo artesão são rústicas e modestas e ao mesmo tempo de um valor inigualável por caracterizar a iden-tidade da região.

1.6 Festejos — importante expressão cultural Outra manifestação cultural existente é representada pelos festejos de Santa Isa-bel e Santa Luzia realizados na igreja Santa Isabel e atraem vários fiéis. Depois da missa, as pessoas se encontram para apreciar e participar das manifestações culturais que acontecem. O ecoturismo, neste contexto, pode abrigar oportuni-dades, trazer turistas para a observação e experiência; assim a religiosidade é um fator importante para a integração da identidade local e da cultura. O turismo religioso, enquanto manifestação cultural, pode favorecer o envolvimento do turista com a vivência cotidiana da comunidade, permitindo-lhe conhecer a conjuntura sociocultural.

Nesse sentido, a religião surge como um segmento importante para o turis-mo na comunidade, retratando e valorizando a cultura e respeito entre a comu-nidade das manifestações culturais existentes; pode originar a integração do ecoturista na vivências religiosas. Portanto, a religião está inserida num con-junto de expressões de ordens sociais, que organiza a vida dos indivíduos e da comunidades na busca pelo caminho da regeneração, da renovação e da revi-talização, do mesmo modo, que as demais manifestações culturais, de alguma forma, organiza a comunidade e suas vivências, as quais permitem desenvolver atividades que auxiliem economicamente suas vidas e ao mesmo tempo propor-cione a afirmação de um identidade local.

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Conclusão

Durante a pesquisa de campo, verificou-se muitos fatores que implicam na incipiente organização na integração entre a comunidade e a associação. Nos depoimentos dos moradores é notória a insatisfação por parte da distribuição desigual dos recursos entre os artesões autônomos se comparados com a asso-ciação dos trançados, que também utilizam a carnaúba como matéria-prima, de-corrente de uma divergência cultural, pelo fato da diversidade das elaborações de produtos e sua distribuição em vendas. Por sua vez, não há uma iniciativa por parte dos moradores em dialogar sobre esta questão, com o objetivo de haver uma consonância entre as partes, dessa forma, fica impossibilitada a promoção e a valorização de cada atividade, não havendo uma maior possibilidade de fo-mentar a autenticidade própria de cada artesão.

A diversidade natural e cultural é visível no bairro, o que demonstra a gran-de potencialidade, como por exemplo, a questão dos igarapés, do barro, o Boi da Fazendinha, as esculturas em madeira, os festejos, entre outros que existem no local; caso sejam explorados e usados de maneira correta, podem trazer vários benefícios, não somente para os segmentos básicos, mas também em setores essenciais, como saneamento, saúde, educação, etc. Ademais, consolidaria uma identidade do lugar, por meio da valorização patrimonial, direcionada ao turis-mo e seus segmentos.

Esse argumento incide na visão de como o turismo nas comunidades pode envolver diversos setores, fortalecendo a agricultura, a pesca, o artesanato, entre outras atividades tornando-as instrumentos de desenvolvimento sustentáveis. Na Ilha Grande de Santa Isabel, verificam-se as potencialidades dos recursos na-turais e culturais, entretanto, ainda não devidamente valorizados e muias vezes desprovidos de ações de apoio e incentivos por parte dos órgãos públicos respon-sáveis e da própria comunidade, que muitas vezes não reconhecem as atividades como forma de desenvolvimento.

Nota-se portanto que uma política socioeconômica que desenvolva o turis-mo de forma sustentável, valorizando as atividades que surgem da matéria-pri-ma do lugar, permitirá um incremento considerável nas atividades econômicas da comunidade.

Logo, os espaços das atividades naturais e culturais turísticas podem ter con-sequências positivas ou negativas, que foram levadas em consideração analisar-mos a área de estudo. Os impactos positivos podem contribuir para a valorização do artesanato produzido pela comunidade local, tendo como efeito, o aumento do interesse dos turistas em conhecer e adquirir o artesanato confeccionado, a obtenção de uma melhor renda, a motivação de permanecer com a técnica de produção e consequentemente a reafirmação da identidade comunitária; porém se essas atividades não forem implantadas de maneira adequada pode deteriorar suas potencialidades, principalmente no que diz respeito ao patrimônio natural.

O bairro de Ilha Grande de Santa Isabel tem atrativos naturais e culturais,

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que se conservados devidamente, coligados com o incentivo dos órgãos públi-cos, certamente, poderão ocasionar um desenvolvimento social e econômico. Do mesmo modo, a comunidade deve tomar parte das decisões, unir-se para usar de forma responsável e sustentável a heterogeneidade de recursos, para que a cultura e identidade locais sejam reconhecidas, valorizadas e preservadas tanto pelos turistas que visitam o lugar, quanto pelas populações vindouras.

Referências

· ALCOFORADO, D. F. X. “A representação do ciclo do boi nos romance tradicionais. Boitatá” - Revista do

GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL, p. 2, 27 nov. 2006. Disponível em http://www.anpu.uep.br/

xxiiisimposio/anais/textos/DORALICE%FERNANDES%20XAVIER%20ALCOFORADO.pdf . Acesso

em: 31 de mar. 2009.

· DIAS, R. Turismo e Patrimônio Cultural: recursos que acompanham o crescimento das cidades. São Paulo:

Saraiva. 2006

· GRUNEWALD, Rodrigo de Azeredo. “ Turismo e o “resgate” da cultura “Pataxó”. In: BANDUCCI Jr.

Álvaro, BARRETO, Margarita (orgs.) – Turismo e Identidade local: Uma visão Antropológica. Campinas,

S.P., Papirus, 2001.

· LINDBERG, K. ; HAWKINS, D. E. Ecoturismo: Um guia para planejamento e gestão. Tradução de Leila

Cristina de M. Darim; revisão técnica de Oliver Hillel; 4.ed- São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2002.

· POLLAK, Michael (1992). “Memória e identidade social”. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10,

p. 200-212.

· PREFEITURA MUNICIPAL DE PARNAÍBA. Disponível em: http://www.parnaiba.pi.gov.br/. Acesso em:

20 maio 2013.

· PÚBLIO, M. A. Como Planejar e Executar uma campanha de propaganda. São Paulo: Atlas. 2008

Contactar os autores: [email protected] · [email protected]

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Museus e Instituições de Arte e Cultura

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Museus Marítimos. A urgência de projectos culturaisMaritime Museums. The urgency for cultural projects

José Augusto da Costa Picas do Vale Exerceu actividade profissional durante cerca de 20 anos no Museu de Marinha, ini-

cialmente como Oficial da Armada e, posteriormente, como consultor. É Licenciado em

História pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Pós-Graduado em Direito

e direitos dos cidadãos com deficiência pela Faculdade de Direito da Universidade de

Lisboa, e Mestre em Museologia pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da

Universidade Nova de Lisboa. Presentemente, é investigador associado do Instituto de

História da Arte e investigador integrado do Instituto de História Contemporânea, ambos

da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, onde se

encontra a realizar o seu Doutoramento em História Contemporânea, com um projeto de

investigação que tem por objeto de estudo o Museu do Mar Rei D. Carlos, em Cascais. É

bolseiro da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, na linha de investigação científica

Museologia, Conservação e Restauro.

Resumo: O posicionamento conceptual deste texto defende a premissa de que a ela-boração de um projecto cultural constitui condição fundamental para o ulterior de-senvolvimento da programação museológica. A abordagem ao tema é feita utilizando como objecto de investigação epistemológica o Museu de Marinha, em Lisboa, par-tindo do conhecimento prévio que o autor detém sobre a história da instituição e, fi-nalmente, apresentando propostas concretas de trabalho relativas a esta problemática.

Palavras-chave: Museus Marítimos. Projectos Culturais. Programação Museológica.

Abstract: The conceptual positioning of this text argues the premise that the develop-ment of a cultural project is a vital prerequisite for the further development of mu-seum programming. The approach to the subject is made using as epistemological research object, the Museu de Marinha, in Lisbon, building on the prior knowledge that the author has on the history of the institution, and finally presenting concrete work proposals related to this issue.

Keywords: Maritime Museums. Cultural Projects. Museum Programming.

Introdução

Se temos como adquirido que a programação museológica, ou planeamento mu-seológico, lato sensu, consiste no desenvolvimento de um conjunto de reflexões que, posteriormente, vêm a resultar em programas sectoriais específicos, acredi-tamos igualmente que essas reflexões carecem, a montante, de ancoragem num

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determinado conjunto de pressupostos matriciais. É a este conjunto que chamamos Projecto Cultural – filiando tal concepção nas teorizações de Jacques Sallois (1992: 2-5), Hélène Lassale (1992), Marie-Hélène Joly (2006: 41-56) e, sobretudo, Paul Ras-se e Éric Necker (1997: 159-178) - e dele faz parte a definição da vocação do museu.

A determinação deste conjunto de parâmetros constitui, em nosso entender, a matéria estruturante de qualquer museu. O plano museológico, embora constitua a parte orgânica do projecto cultural que o enforma, mais não é do que uma múl-tipla abordagem práctica a todas as vertentes de carácter funcional da instituição.

1. Um projecto cultural para o Museu de Marinha1.1 Fixação e enquadramento conceptual

O conceito de projecto cultural em contexto museológico surgiu em França, no início da década de 90 do século passado, em resultado de uma reflexão desen-volvida no seio da Direction des Musées de France. Este trabalho resultou na publi-cação de várias obras, de entre as quais nos importa referir Un Projet Culturel Pour Chaque Musée (LASSALE, 1992) que marca o ponto de partida para a utilização formal e sistemática do termo.

Anne Raffin desenvolverá posteriormente este conceito :

Le projet culturel c’est la base du concept muséologique; le résultat de la réflexion collective

de l’équipe administrative et scientifique du musée. En anglais, l’équivalent serait le “Mis-

sion Statement”. Il permet de mener une réflexion essentielle sur les priorités à définir, le

projet de développement et l’insertion du musée dans la vie culturelle et sociale. […] c’est un

document de perspective et d’anticipation. […] il est une démarche fondatrice pour le musée.

(2001: 14-16).

O projecto cultural é, pois, uma ferramenta de desenvolvimento que procura o apuramento de um conceito matriz que defina a vocação do museu, a sua missão, os seus objectivos, o seu papel cultural, social e económico, constituindo a estrutura de referência para a programação museológica, considerada em todas as suas vertentes.

O projecto cultural persegue múltiplos objectivos complementares: reflectir sobre a missão do museu; ponderar a evolução das colecções e dos públicos; ava-liar o seu posicionamento local, nacional e internacional; formar um sólido co-lectivo de trabalho no seio da instituição; e historiar de modo consistente a sua identidade, dando-lhe um carácter de distinção e exclusividade relativamente a outros equipamentos culturais.

Todas estas potencialidades, quando aplicadas a uma entidade pré-exis-tente, apresentam a virtude acrescida de proporcionar a discussão crítica sobre a actualidade e a pertinência da sua missão, assim como sobre as suas dificuldades e disfunções.

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1.2 Propostas de trabalho

A definição de uma proposta concreta de trabalho visando a concepção de um pro-jecto cultural para o Museu de Marinha, alicerça-se no conjunto de quesitos elen-cados por Paul Rasse (RASSE, NECKER, 1997 : 195-216), Élisabeth Caillet (1995: 204-214), e na documentação produzida pela Direction des Musées de France (DMF, 2007) e coligida pelo Institut National du Patrimoine (INP, 2006), de França.

O esquema de trabalho que se propõe assenta numa reflexão sobre os quatro elementos fundamentais do museu: história e enquadramento; colecções; pú-blicos e edifícios.

Ressalve-se antecipadamente o constrangimento que decorre do facto de irmos abordar individualmente uma questão que, em rigor, deveria ser traba-lhada de forma bastante mais exaustiva por uma equipa multidisciplinar. Não obstante, procuraremos apresentar um conjunto de parâmetros necessários à elaboração de um projecto cultural para o Museu de Marinha, acrescentando algumas sugestões de rumo a tomar.

1.2.1 Equipa de projecto

Le projet culturel est un outil d’ingénierie, c’est-à-dire de coordination d’équipes réunissant

des compétences, des expériences et des points de vue différents, aussi bien pour créer un

musée que pour le faire vivre au quotidien. (RASSE, GIRAULT, 1998).

A importância do cariz multidisciplinar da equipa é de realçar. Hugues de Varine, por exemplo, defende que:

[...] as instituições patrimoniais que, efectivamente e eficazmente, mais contribuem

para o desenvolvimento do território e da comunidade onde estão implantadas, são

aquelas em que a equipa funciona como uma cooperativa de especialistas de disciplinas

e profissões diversas, partilhando saberes e experiência, regulando linguagens e acções

de difusão […]. (2002: 169).

Preconizamos, pois, a constituição de um grupo de trabalho que possa abranger as múltiplas vertentes da gestão institucional e da abordagem ao patri-mónio marítimo. Deve englobar gestores, arqueólogos, biólogos, antropólogos, historiadores, arquitectos, construtores navais e representantes das profissões ligadas ao mar, quer do ponto de vista científico, quer numa perspectiva de ex-ploração comercial, turística e patrimonial.

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1.2.2 Análise do existente

Do que acima ficou exposto decorre que a elaboração do projecto cultural pode ser desenvolvida em dois tempos: uma primeira fase subordinada ao levanta-mento e análise da história do museu, a um diagnóstico de todas as suas áreas funcionais, recursos e serviços e à definição das grandes linhas de orientação; e uma segunda, complementar, assente nas conclusões obtidas anteriormente e num conjunto de estudos sobre as questões fulcrais dos públicos e do marke-ting, a partir dos quais se avançará para a definição dos objectivos a atingir no período de tempo previamente estabelecido para a vigência do documento.

1.2.3 Vocação e Missão do Museu

Esta fase do trabalho deverá atentar às seguintes questões:- Qual o percurso histórico da instituição?; quais as razões que motivam e

legitimam a necessidade de elaborar o projecto cultural do Museu?; qual o his-tórico das missões do Museu ao longo da sua existência; qual o domínio de exce-lência do Museu e quais as suas pertinências científica e social?; qual a actual re-levância do Museu no âmbito do seu domínio de excelência?; quais são as caracte-rísticas matriciais da identidade territorial e humana que o Museu pretende docu-mentar; quais, de entre estes domínios, carecem de maior atenção em matéria de estudo e investigação; e que interpretação específica pode o Museu proporcionar a esse respeito?; quais os problemas operacionais decorrentes do actual modelo de gestão?; quais as suas especificidades, quais as diferenças que lhe conferem uma mais-valia quer em relação a outros museus e a outros equipamentos culturais?

Aujourd’hui, la capacité d’attraction des musées dépend directement de leur capacité à se

distinguer des autres, à offrir un ensemble cohérent et fort qui soit au plan national et inter-

national remarquable, exceptionnel, justifiant par là le déplacement des habitants et des

touristes par ailleurs déjà extrêmement sollicités. Car la concurrence ne se joue plus au

niveau local, mais met en compétition des établissements engoncés dans des bâtiments sécu-

laires peau opérationnels, encombrés par l’ampleur des collections accumulées au cours des

années, avec des réalisations plus récents et mieux adaptées à l’accueil et au gout du public,

offrant tous les artifices et les artefacts de la modernité. Cependant, les musées peuvent rele-

ver le défis, retourner une situation à priori défavorable en valorisant leur dimension his-

torique et patrimoniale qui les rend souvent exceptionnels. [...] en devenant la vitrine d’un

territoire qu’ils habitant depuis si longtemps déjà et dont ils sont un éminent gardien de la

mémoire. (RASSE e GIRAULT, 1998: 193).

[…] a new accountability in which organizations will be required to demonstrate not only

(a) that they can account for the resources entrusted to them and (b) that they used those

resources efficiently but, above all, (c) that they also used those resources “effectively” – that

they used them to produce a positive outcome in the community intended to be served. […] a

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museum may only be considered essential so long as its impact is perceived to be both valuable

and incomparable. (WEIL, 2004: 344-345).

Uma necessidade fulcral que se coloca relativamente a este campo de refle-xão é a de que o Museu de Marinha assuma formalmente a sua vocação de mu-seu nacional. Através da análise da evolução da sua missão e da consolidação das suas colecções, é possível afirmar que, excepto no período compreendido entre 1959 e 1976, o Museu de Marinha teve permanentemente uma vocação de abrangência nacional.

[…] There is a great abundance of enclosure of the type of collections designated with na-

tional importance. I suggest that the basic varieties can be separated into four groups: art

(aesthetic objects), cultural/historical (us), ethnographic (them) and natural (facts of the

natural world). A fifth group is comprised of all the museums that are recognized as nation-

ally specific according to national historiography and self-understanding: [the] maritime

museum in Lisbon might be one case. (ARONSSON, 2008:7).

Outro assunto a equacionar nesta reflexão prende-se com o empenha-mento que o Museu de Marinha deverá colocar na promoção e desenvol-vimento de projectos de constituição de comunidades de museus e outras entidades direccionadas para a temática marítima. Trata-se de interiorizar institucionalmente que o futuro é de multidisciplinaridade e que o sucesso na preservação do património marítimo reside na criação de sinergias nacio-nais e internacionais.

Focusing this present and future effort on museums, in conjunction with other entities close-

ly linked to research, conservation and promotion of Portuguese maritime heritage and the

environmental protection of coastlines, inherently requires participation in the dynamics

generated by international organizations and transnational networks. This opens up ac-

cess to best practices ant the exchange of experiences across Europe, ensuring that its people

enjoy the civic benefits of a common maritime heritage deployed as an additional tool for

regional and social development . (FILIPE, 2006).

1.2.4 Colecções

Relativamente a esta área de trabalho, propomos a realização das seguintes acções:

– Avaliação dos pontos fortes e fracos do acervo em múltiplas perspectivas: identificação das peças mais singulares ou representativas; selecção dos con-juntos mais coerentes, susceptíveis de constituírem um factor de notoriedade

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de carácter exclusivo do Museu; identificação de conjuntos temáticos alusivos a áreas da memória colectiva em risco;

– Identificação de núcleos a necessitar de conservação preventiva e/ou restauro;– Avaliação das potencialidades das colecções em termos de política de investigação;– Registo de objectos/colecções sem relevância para a área de excelência do Museu;– Identificação das lacunas do acervo em relação à área de excelência do Museu;– Avaliação da actual gestão das colecções quanto ao seu inventário, à integridade das

reservas em matéria de conservação preventiva e de condições de armazenamento;– Criação de um Plano de Conservação Preventiva ou avaliação do existente;– Criação de um Plano de Segurança particularmente direccionado às colecções

ou articulação com o Plano de Segurança Geral do Museu;– Avaliação dos recursos existentes quanto a meios técnicos e a meios humanos.

Esta definição possibilitará a fixação de prioridades relativamente ao trata-mento faseado das colecções, com efeitos em matéria de estudo e investigação, conservação e incorporação.

1.2.5 Públicos e Comunicação

Deverão ser avaliados os estudos de públicos existentes (QUEROL, 2005) e/ou realizados novos trabalhos, a fim de obter resposta para as seguintes questões:

– Qual o grau de apetência dos públicos pelo domínio de excelência do Mu-seu?; como é processada a visita ao Museu?; quais os momentos fortes e fracos experimentados durante a visita ao Museu?; qual a sua opinião sobre a circula-ção em espaço expositivo?; qual a sua opinião relativamente à estrutura muse-ográfica da exposição e, sobretudo, em relação à efectividade da comunicação?; os públicos foram ou não capazes de apreender as mensagens a que o Museu se propôs?; qual a visão que têm do Museu antes e depois da visita?; quantificar e qualificar não-públicos e não-visitantes.

A compilação e análise destes elementos é fundamental para um maior co-nhecimento do enquadramento sócio-cultural do Museu, dos seus públicos, reais e potenciais, de modo a poder determinar as estratégias de fidelização, me-diação e comunicação a adoptar, isto é, a ancorar cientificamente a sua progra-mação museológica.

Estimulando de forma contínua a participação da sua comunidade de re-ferência, entendida como o conjunto dos seus públicos e da sua envolvente sócio-espacial, chamando-a ao processo de decisão e valorizando as suas con-tribuições; partilhando os processos e os resultados; e desenvolvendo um ras-treio atento das suas preocupações, o Museu proporcionará - e dela beneficiará - a existência de um terreno de partilha de visões criativas (STAPLETON, s.d) (KERTZNER, 2006: 135-160) (COXALL, 2006: 139-149).

Peter Aronsson refere-nos que:

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[…] The ability to transform and negotiate cultural capital from “bonding” to “bridging”

forms is crucial for the capacity to open communities for lasting and dynamic integration.

Here the category of “linking” social capital is crucial for understanding the role of institu-

tions in the process. (ARONSSON, 2008: 12).

1.2.6 Edifícios

O papel museal é indissociável da sua arquitectura. A importância das condi-cionantes arquitectónicas a que o museu se encontra sujeito apresenta uma ar-ticulação por vezes decisiva com a circulação de acervos, de funcionários e de públicos. Existe a necessidade de tentar minimizar o conflito entre o edifício, na sua preservação como bem patrimonial com identidade própria, e a sua adequa-ção à realização das funções museológicas.

A questão do acervo patrimonial arquitectónico que o museu gere não é fac-tor de menor importância. O facto de as suas instalações se situarem num es-paço de poder e de memória constitui um importante factor de distribuição de públicos e de destaque da própria instituição.

Parece-nos igualmente determinante estabelecer um levantamento da en-volvente do museu em todas as suas dimensões, mas sobretudo dos equipamen-tos culturais, particularmente concentrados na área urbana em que se situa, de modo a permitir, na segunda fase de execução do projecto, propor sinergias de articulação institucional.

Uma componente de valorização do Museu igualmente a repensar é a da inter-pretação do conjunto edificado e do seu reposicionamento em termos de leitura e inteligibilidade do espaço urbano após a construção do Centro Cultural de Belém.

1.2.7 Definição de Objectivos

Nesta fase da elaboração do projecto passamos para um planeamento orientado para o futuro. O projecto cultural deve ser pensado para um período não inferior a cinco anos. Deverá verificar-se uma reflexão assente na análise prévia e no diag-nóstico do existente, procedendo-se à definição selectiva de alterações a empreen-der nas áreas em que tenham sido detectados problemas, integrando-a nos gran-des eixos e prioridades da política geral da tutela.

O que acima se propõe reitera a ideia de que o projecto cultural é uma ferramenta ancorada em objectivos de natureza estratégica, deixando os ob-jectivos de natureza mais prática para a fase de programação que decorre do projecto cultural.

1.2.8 Meios

A exiguidade de recursos financeiros que caracteriza o funcionamento dos

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museus portugueses ditaria que a preocupação a ter com os meios humanos, técnicos e financeiros viesse à cabeça da lista de requisitos que temos vindo a propor. Não nos parece que tal argumento possa prevalecer. Mesmo que, no fi-nal do processo, se venha a verificar não existirem os meios necessários à con-cretização do projecto cultural, o Museu terá ficado com uma imprescindível ferramenta de trabalho em termos de diagnóstico e orientação. De qualquer modo, esta derradeira fase de trabalho deverá consignar os requisitos de cons-tituição da equipa de concepção e acompanhamento do projecto; estabelecer o calendário de execução; estimar custos; e, finalmente, identificar a existência de potenciais mecenas.

Uma ferramente de apoio à decisão a considerar nesta última fase do pro-jecto é o Estudo de Marketing. Um documento que apura todas as correlações concorrenciais existentes nas áreas de implantação do museu, em termos de oferta cultural e oferta turística; propõe métodos de maximização financeira e comunicacional dos produtos e serviços oferecidos; e define uma estratégia de promoção junto dos operadores de turismo e de transportes.

Conclusão

O Museu de Marinha é uma instituição sui generis no panorama museológico português. Desde a sua criação, o museu cresceu à margem de todos os contextos museológicos vigentes, qualquer que seja a periodização escolhida, de entre as que pretendem historiar a evolução dos museus portugueses.

Numa época em que se assiste à generalizada renovação e/ou criação de um im-portante conjunto de museus marítimos, como são exemplo os casos de novos mu-seus nacionais na Bélgica, na Dinamarca e na China, e as remodelações do Nederlands Sheepvaartmuseum, em Amesterdão e do Museu Marítim de Barcelona, fará todo o sen-tido reflectir sobre a possibilidade de conferir ao Museu de Marinha um novo rumo.

Não somos alheios à clássica dicotomia entre projectos ideais e projectos exequíveis. Podemos gerir e funcionar com menos meios. Os objectivos é que não podem ser os mesmos.

Os problemas que se prendem com a mudança e com a gestão da mudança são, pela sua própria natureza, de difícil resolução. Não devem, no entanto, deixar de ser abordados. É necessário compreender não só os factores externos de promoção da mudança, que no caso dos museus são, por exemplo, a competitividade, as altera-ções nos perfis demográficos e a fragmentação dos públicos, a evolução da tecnolo-gia digital e a disseminação do financiamento da cultura, mas também as barreiras internas à mudança, como a resistência ao risco, a resignação face à suficiência e a segmentação em detrimento da articulação funcional (PHILLIPS, 2004: 367-374).

O Museu de Marinha deverá repensar-se, perceber e decidir se quer permane-cer tal como se encontra, ou se, pelo contrário, pretende saltar na contempora-neidade. Uma contemporaneidade que, paradoxalmente, não é de hoje. Como há quase oito décadas escreveu Arthur C. Parker,

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The museum of history […] should not be a tomb wherein the bones of antiquity silently

rest. Your Museum of History, rather, must be a power station sending out a current

that illuminates the community and gives a clearer vision of social values (1935: 19).

Julgamos ser fundamental recolocar a tónica nas particularidades que os mu-seus encerram em matéria de educação e de pedagogia (HOOPER-GREENHILL, 2006: 235-245) - uma questão central das sociedades contemporâneas - na promoção da relação entre espaço público e educação como uma exigência de cidadania, dan-do substância à sua função social, uma função ao serviço da memória e da História.

Ao Museu de Marinha, pela especificidade do seu campo temático e pela abrangência do seu âmbito, exige-se um particular desempenho na salvaguarda do património representativo da cultura e da identidade marítima nacionais.

O Museu deverá fortalecer-se cientifica e estruturalmente, de modo a dar res-posta à permanente aptência das classes políticas pela obra nova, numa espécie de patologia da celebração de si próprios, sem olhar a eventuais replicações de conteúdos e desaproveitando o tecido museológico existente.

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Contactar o autor: [email protected]

Contactar a Instituição:

Museu de Marinha

Praça do Império, 1400-206 Lisboa

E-mail: [email protected], tel. 21 362 00 19

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Embarcações Tradicionais do Brasil: patrimônio e memóriano museu Nacional do MarTraditional Ships from Brazil: heritage and memory in the National Museun of the Sea

Andrea Oliveira Mestre em Patrimônio Cultural e Sociedade, UNIVILLE, Brasil. Acadêmica de História,

UNIASSELVI, Brasil. Diretora do Museu Nacional do Mar – Embarcações Brasileiras.

Resumo: O presente artigo discute a história da construção naval no Brasil conside-rando as diferentes influências culturais e condições aquáticas e sócio-geográficas, além de apresentar algumas iniciativas que estão contribuindo para a preservação do patrimônio naval brasileiro, entre elas as experiências inseridas no contexto do Museu Nacional do Mar – embarcações brasileiras.

Palavras-chave: Patrimônio. Preservação. Memória.

Abstract: In this article the history of shipbuilding in Brazil is in discussion, taking in consideration the different cultural influences and the water navigation and social geographical conditions, presenting in addition some initiatives that contribute to preserve the Brazilian shipbuilding heritage, among them the experiences within the context of “Museu Nacional do Mar – Embarcações Brasileiras” or National Museum of the Sea – Brazilian Ships.

Keywords: Heritage. Preservation. Memory.

A primeira experiência do homem com a navegação ocorreu supostamente pela utilização de um tronco que, devido à flutuação, tenha permitido a travessia de curtas distâncias. Depois ao amarrar dois troncos ou mais, foi possível formar uma plataforma flutuante; então, ao escavar um tronco, foi o salto tecnológico, que possibilitou formas mais apuradas de navegação.

Em linhas gerais, a história da construção naval liga-se primeiramente ao campo da necessidade. Segundo Santos (2006:29), “[...] a principal forma de rela-ção entre o homem e a natureza, ou melhor, entre o homem e o meio, é dada pela técnica. As técnicas são um conjunto de meios instrumentais e sociais, com os quais o homem realiza sua vida, produz e, ao mesmo tempo, cria espaço”.

A técnica, muitas vezes, pode ser confundida com arte, já que a palavra arte vem do latim ars e corresponde ao termo grego techne, técnica, significando como afirma Chauí “[...] o que é ordenado ou toda espécie de atividade humana subme-tida a regras [...]. Em sentido estrito, instrumento, ofício, ciência”. (1999:317)

Percebe-se, neste sentido, que a evolução naval está condicionada à busca por

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soluções para questões do cotidiano como transporte, comércio e defesa ou ain-da ataque de territórios.

Para uma análise mais apurada da historiografia da construção naval no Bra-sil, deve-se considerar os ensinamentos dos diferentes povos indígenas na nave-gação fluvial e a colonização portuguesa com toda a experiência adquirida com a Escola de Sagres, que foi fundada no século XV, pelo infante Dom Henrique (1394-1460) e que reuniu os melhores pilotos, astrônomos, cartógrafos e construtores navais da época, o que possibilitou conhecimentos essenciais para a navegação transcontinental e deu a Portugal destaque mundial no ramo da construção naval.

Para os portugueses, como afirma Ferreira, o mar foi também inquietação: “Da minha língua vê-se o mar. Da minha língua ouve-se o seu rumor, como a de outros se ouvirá o da floresta ou o silêncio do deserto. Por isso a voz do mar foi a nossa inquietação.” (1998:80). Tal inquietação colocou Portugal em vantagem e o manteve em evidência por conta do poderio naval como descreve Almeida:

[...] os Lusitanos conheciam, como ninguém, a aerodinâmica das velas [...], e em razão

disso, no decorrer do século XV ao século XVI, a caravela, a nau da Índia e o Galeão

foram os três modelos náuticos que dominaram a construção naval europeia, todos

construídos pelos portugueses. (2008:22).

Logo após 1530, a coroa portuguesa iniciou no Brasil o processo de coloniza-ção com a intenção de proteger o novo território. Com o passar do tempo foram chegando mestres de construção naval, carpinteiros, artesãos que iniciaram os primeiros estaleiros encontrando aqui abundância de matéria-prima.

No decorrer da caminhada, técnicas foram apreendidas e aprimoradas. Hoje, a diversidade dos barcos tradicionais do Brasil não é vista em nenhum outro país do mundo. Há uma grande variedade presente nas diferentes regiões do territó-rio, com expressividade plástica e funcionalidade ligadas aos mais extraordiná-rios contextos do patrimônio cultural brasileiro.

É preciso considerar também iniciativas de preservação de conhecimentos específicos da tradição naval portuguesa, firmada no convívio com outros povos no contexto das Grandes Navegações e mesmo a configuração do povo brasilei-ro, formado por culturas como indígena, africana e européia. Existe, assim, um conjunto de fatores que contribuíram para que no Brasil tenhamos um contexto único, marcado por condições aquáticas ou socio-geográficas; além, dos muitos saberes e técnicas antigos utilizadas nas barrancas dos rios e beiras de praias. Muitas gerações se sucederam nas atividades de navegação de carpintaria na-val, da pesca e do transporte. Temos alguns núcleos onde podemos encontrar embarcações tradicionais e mestres carpinteiros que ainda transmitem seus co-nhecimentos. Mas como contribuir para preservar tal patrimônio ligado tanto ao material como ao imaterial?

A primeira providência é mapear e contextualizar a tipologia das embarcações tradicionais, unido aos atos de catalogar, conhecer e registrar as especificidades das

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embarcações para expandir a base de conhecimento, o que já vem acontecendo.Em projetos propostos pelo IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e

Artístico Nacional, como o das Edições Técnicas Sobre o Patrimônio Material que trata do patrimônio naval brasileiro (2009), pode-se perceber os contextos locais onde as principais embarcações tradicionais estão inseridas nas diferen-tes regiões do Brasil; outro projeto denomina-se Barcos do Brasil, lançado em 2008, que tem como objetivo central a preservação e valorização do patrimônio naval por meio de ações de identificação, proteção e conservação de embarca-ções, essas ações projetadas de forma articulada em uma rede cooperativa inter-governamental, envolvem diversos ministérios considerando as manifestações correlatas, que incorporam os saberes e fazeres como pesca, culinária, festejos e artesanato, tendo como intenção ainda possibilitar a melhoria da qualidade de vida dos usuários como pescadores, construtores e auxiliares.

Fig. 1- Fachada do Museu Nacional do Mar – Embarcações Brasileiras

(Fonte: Arquivo do Museu Nacional do Mar).

Fig. 2 - Sala das Jangadas

(Fonte: Arquivo Museu Nacional do Mar).

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Outro projeto interessante é o Liceu de Artes e Modelismo Naval do Museu Nacional do Mar, que já ultrapassou a 4ª edição e atua também na pesquisa e salvaguarda do patrimônio naval brasileiro; patrimônio compreendido como de elevada importância no processo de educação e agregação de valores identi-tários, contribuindo também para a geração de trabalho e renda, por meio dos ensinamentos da área do modelismo naval, onde as embarcações presentes no acervo do Museu Nacional do Mar são reproduzidas.

A transmissão do conhecimento se dá com base nos estudos dos barcos tra-dicionais de cada região do país, partindo do ponto de vista tipológico, por meio da divisão de três tipos principais de embarcações que são: as canoas, as janga-das e os barcos encavernados; o modelista/artesão/aprendiz pode confeccionar modelos regionais, aprimorando, assim, a produção de artesanato e do próprio modelismo naval, lhe permitindo um ganho, uma renda financeira, além de contribuir para a continuidade de técnicas tradicionais de construção naval pre-sentes no território nacional.

O próprio Museu Nacional do Mar é um território para a salvaguarda do pa-trimônio naval brasileiro. Criado pelo decreto estadual N� 615 em 1991, abriu ofi-cialmente as suas portas no ano de 1993, com o objetivo de reunir em seu acervo embarcações que representem a diversidade do patrimônio em questão; está insta-lado nos antigos armazéns da extinta Empresa de Navegação Cia Hoepcke, onde é possível ainda visualizar os antigos trilhos para vagonetes, que ligavam os amplos galpões aos trapiches, onde atracavam os navios.

A construção está ainda hoje em sintonia com o mar na beira da Baia Babitonga na cidade de São Francisco do Sul. No passado, os armazéns guardavam erva-mate, sacos de sal e outros produtos, além de presenciar a circulação de inúmeros traba-lhadores, passageiros e comerciantes, interessados no transporte marítimo.

O prédio foi restaurado e hoje serve de porto seguro para canoas de um pau só, canoas bordadas do litoral catarinense, canoas do baixo São Francisco, ca-noas de tolda ou Sergipana, a canoa Biondina do Rio Grande do Sul e ainda as baleeiras de casco liso ou trincado pintadas de cores vivas, que são do ponto de vista da carpintaria, verdadeiras obras-primas; há ainda as traineiras, botes, jan-gadas de cinco paus, jangadas de tábuas, saveiros que são os descendentes dos caravelões da costa e o cúter do Maranhão.

Na sala dedicada ao navegador Amyr Klink, o famoso navegador brasileiro, temos a canoa que ele ganhou quando criança.

No museu pode-se ainda conhecer a coleção Alves Câmara do século XXI, que é a reprodução da coleção original que se encontra no espaço cultural da Marinha com sede no Rio de Janeiro. A coleção original leva o nome do en-tão ministro da marinha, que em comemoração ao centenário da abertura dos portos, solicitou aos diversos estados brasileiros a doação de modelos de suas embarcações típicas. Na época, vários estados aderiram ao projeto, formando o início da coleção.

Em 2005, surgiu a ideia, estimulada pelo navegador Amyr Klink de reproduzi-la

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em escala (1:25) e foi desta forma que nasceu a Coleção Alves Câmara do século XXI, que já possui 88 modelos de embarcações tradicionais de todo o Brasil.

A Coleção do século XXI também foi tombada em 2010 e contou com a cola-boração, para sua formação, dos modelistas – Carlos Heitor Chaves, Luiz Lauro Pereira Junior e Conny Baumgart, este, o modelista de barcos e de pássaros. Tal coleção, por seu apuro técnico só é comparável, no mundo, à coleção do Almi-rante Pâris, que está sob a tutela do museu da Marinha em Paris.

A Coleção Alves Câmara do século XXI constitui-se num dos principais ele-mentos do acervo do Museu Nacional do Mar, que é composto ainda por 91 em-barcações em tamanho natural e cerca de 150 miniaturas, que estão expostas na sala do modelismo, e ainda o acervo bibliográfico da Biblioteca Kelvin Duarte, formada por mais de mil e quinhentos volumes de temática naval incluindo obras raras, fotografias, desenhos e cartas náuticas.

O acervo integral do Museu Nacional do Mar é protegido por Lei Federal de-vido a sua importância e significado no contexto da preservação da memória do patrimônio naval brasileiro e das culturas ribeirinhas e litorâneas.

A memória é um direito de todos e nos possibilita pistas para compreender-mos nossas raízes e percebermos o mapa onde estamos alicerçados como indiví-duos, como brasileiros, como seres humanos.

É no sentido da salvaguarda e da preservação que o Museu Nacional do Mar vem projetando suas ações, contribuindo desta forma para a difusão de conhe-cimento e para a preservação da memória e o entendimento de quem somos.

Referências

· ALMEIDA, Rodrigo de. Diário de Bordo: a história da indústria naval brasileira. São Paulo: Zingara, 2008.

· CHAUI, Marilena. Convite à Filosofia. 12. ed. Ática: São Paulo, 1999.

· EDIÇÕES TÉCNICAS SOBRE O PATRIMÔNIO MATERIAL - Patrimônio Naval Brasileiro – IPHAN (org).

Maria Regina Weissheimer, Brasília: 2009.

· FERREIRA, Virgílio. Espaço do Invisível. Ed. Bertrandt, Lisboa: 1998. V 5.

· GEHLEN, Joel. Museu Nacional do Mar – embarcações brasileiras. Ed. Letra Dágua: Joinville, 2004.

· PATRIMÔNIO CULTURAL NAVAL BRASILEIRO – comissão de arqueologia, história e etnografia naval

– Ministério da Cultura, SPHAN / Pró-memória, Brasília, 1990

· SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. EDUSP.São Paulo, 2006.

Contacta a autora: [email protected]

Contactar a Instituição:

Museu Nacional do Mar – Embarcações Brasileiras

Rua Manoel Lourenço de Andrade, nº 133 – Centro Histórico

São Francisco do Sul, SC, Brasil

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Museu Etnográfico da Praia de Mira — Trabalho desenvolvido na comunidadeEthnographic Museum of Praia de Mira — Community based-work

Serviços de Cultura da Câmara Municipal de Mira

Resumo: Trata-se, neste artigo, da descrição da criação do Museu Etnográfico da Praia de Mira e implementação das dinâmicas Museu/Comunidade; Comunidade/Museu, quando a essência da comunidade e do próprio museu são as rotinas e as características de uma comunidade marítima, onde a pesca, o mar e a cultura são indissociáveis do passado e do presente.

Palavras-chave: Arte de Pesca. Praia de Mira. Museu Etnográfico. Comunidade.

Abstract: This article describes the creation of the Ethnographic Museum of Praia de Mira and the implementation of an active Museum/Community interaction; Com-munity/Museum, when the essence of both Museum and Community are conveyed through routines and characteristics of a seaside community, where fishing, sea, and culture are interwoven with past and present.

Keywords: Traditional Fishing. Praia de Mira. Ethnographic Museum. Community.

1. Praia de Mira

Conforme relatos vários, a antiga Costa do Mar, local de pesca habitado apenas em época de bom tempo para a prática da pesca no mar, foi, posteriormente, designada por Palheiros de Mira, quando foi constituída uma povoação que se foi estabilizando e passou a habitar durante todo o ano à beira do mar, em habita-ções construídas totalmente em madeira e adaptadas a uma forma de vida divi-dida entre a faina da pesca e uma exploração agrícola de subsistência. O nome de Palheiros de Mira consagrou a vitória do homem sobre o areal e o isolamento de outros centros populacionais, estando documentado a partir de 1835, ano em que aí começaram a nascer crianças no verão.

Segundo Orlando Ribeiro,

‘Palheiros de Mira’, no seu aspecto tradicional e genético, era uma povoação singularmente

‘ajustada’ ao ambiente: com casas levantadas sobre estacaria, por baixo das quais corria a

areia impelida pelos ventos mareiros, aninhada à sombra do medo grande, para se proteger

um pouco do seu ímpeto, segregada do interior por um vazio humano apenas atravessado

por uma pista de carros de bois, cingida por uma cortina de pinhais, sem pedra e sem barro,

soube utilizar ao máximo os recursos locais, compensando assim a insulação do areal. As

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pranchas e barrotes de pinho e as gramíneas das dunas, ministraram o material de cons-

trução e deram ao aglomerado um cunho local que fez a sua originalidade. E quando uma

pesca rendosa ou a emigração introduziram nele as desigualdades sociais próprias das

aldeias que se desenvolvem, utilizando os mesmos processos, levantaram casas espaçosas,

a que não falta o conforto e até uma discreta nota de elegância. (RIBEIRO 1981:11 e 12)

Fruto da evolução e da introdução de novos materiais e economias suple-mentares, o cariz da povoação foi modificado ao longo dos tempos. Palheiros de Mira passou a ser designado por Praia de Mira e a pouco e pouco os antigos palheiros foram desaparecendo, restando ainda hoje pequenos e teimosos exem-plares que ficaram no meio de uma povoação quase igual a qualquer outra praia e que, por influências mais cosmopolitas, passou a ser conhecida mais por vera-neantes e como destino de banhos no Verão.

A vida da população também sofreu muitas alterações, contudo, nos seus are-ais, e ao largo da costa, encontramos ainda vários pescadores que se dedicam à tradicional pesca das artes, ou tecnicamente designada arte xávega. No início, as redes terão sido de menor dimensão, pois dependiam apenas da força humana, trabalho duro e de parcos rendimentos; mais tarde, usaram animais (bois) nas lides da pesca. Habituados a tarefas agrícolas igualmente árduas, as possantes juntas de bois auxiliavam os pescadores a puxar barcos e redes, possibilitando desta forma o aumento do tamanho das redes aumentando de igual forma os ren-dimentos. Nos barcos, iam normalmente 42 homens, 10 homens para cada remo, o arrais (lançador da corda e redes) e o revezeiro (actual mestre da embarcação).

Esta antiga actividade piscatória foi também ela sofrendo alterações ao longo dos anos, mas continua ainda hoje em dia a representar uma forma de vida e a constituir um foco de atracção para os visitantes. Organizados por “companhas”, os pescadores fazem-se ao mar nas tradicionais embarcações em forma de meia--lua, lançando as redes para cercar e arrastar os cardumes. As redes são posterior-mente puxadas para a praia e o peixe escolhido no próprio areal e vendido na Lota.

Actualmente, a pesca é mais “facilitada” uma vez que os bois foram substi-tuídos por tratores, os barcos são de menor dimensão e construídos já em fibra de vidro, apenas com dois remos apoiados por um motor, juntam-se apenas 15 homens por cada “companha” para ir ao mar. Alguns aventuram-se no mar, nor-malmente oito, enquanto outros ficam em terra a estender e consertar as redes para o próximo lanço, escolher o peixe do lanço anterior, entre outras tarefas. Esta faina, origem da povoação e hoje modo de vida de muitas famílias, está profundamente vincada na comunidade, exigindo um tratamento e valorização cultural muito própria, sempre numa perspectiva de preservação da identidade, trabalho que o aparecimento e desenvolvimento do Museu Etnográfico Posto de Turismo veio iniciar e apoiar.

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2. Museu Etnográfico da Praia de Mira

No ano letivo de 1989/90 realizou-se o concurso – “Educar Inovando…Inovar Educando”, lançado pelo Instituto de Inovação Educacional, no qual foram ven-cedores os alunos e a professora de uma classe da Escola Primária da Praia de Mira, com um trabalho de defesa do património local, mais concretamente so-bre os palheiros da Praia de Mira. Esta foi a semente para que a comunidade e as autarquias locais reconhecessem a necessidade de valorizar publicamente um marco identitário quase desaparecido – o palheiro, lutando com a ideia de que o palheiro representava apenas a imagem de uns tempos de pobreza e desgraça. Rapidamente, a Câmara Municipal elaborou o projecto e procurou um espaço para a construção, de raiz, de um palheiro idêntico aos de outrora.

Assim, numa sinergia de esforços, e com os objectivos de recolha e salvaguar-da de materiais e testemunhos, relacionados com as vivências e cultura local da Praia de Mira, foi construída uma habitação típica desta zona litoral, com dois pisos e toda ela construída em madeira e assente em estacaria.

Localizado num local de excelência, nas margens da barrinha de Mira, sobre uma paisagem aberta da lagoa, todo o acervo com que se reconstituiu o ambien-te de um palheiro foi integralmente doado ou emprestado pela população local, que no novo museu passou a rever e reconhecer as suas origens e o qual vai visitando e zelando pela salvaguarda das peças que doou/emprestou.

Abriu ao público a 5 de Outubro de 1997, sem qualquer tratamento museo-gráfico, apenas como local de exposição de objectos ligados à cultura local, e, já em 2003, sofreu um tratamento museográfico, passando também nessa altura a contar com funcionários do quadro da Câmara Municipal.

O Museu é, carinhosamente, conhecido na localidade como “O palheiro” e tem como principal objetivo “desenvolver a cultura através da pesquisa, recolha e arquivo de materiais relacionados com a vivência local”. É, hoje, uma parte viva da comunidade local e representa uma homenagem ao povo de Mira e às suas origens.

O seu acervo, proveniente da recolha de peças na própria localidade e da or-ganização de exposições temáticas, proporciona, às novas gerações e aos visitan-tes, o conhecimento dos usos, costumes, tradições que identificam períodos idos da história local.

No primeiro piso, encontramos o Posto de Turismo e uma sala de exposições temporárias, que comunica com espaços de exposições permanentes que retra-tam as origens, os costumes e tradições da Praia de Mira, passando pelo patri-mónio arquitectónico da mesma exemplificado através de maquetas a evolução técnica arquitectónica dos palheiros, por último aborda as artes da pesca no mar e lagoas assim como a vida dos pescadores.

Já no segundo piso, aborda-se o comportamento das populações locais, as várias divisões da casa, palheiro. Apresenta desde o traje regional às manifes-tações mais salientes de como exerciam a profissão, na agricultura e na pesca,

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como viviam e como se relacionavam. É possível conhecer o modo de trabalho, vivências familiares e comunitárias, momentos de lazer, educação e sentir o fer-vor religioso, todos os aspectos que constituíram o “modus vivendi” e o “modus faciendi” da localidade.

Nesse espaço, deparamo-nos com o interior de uma casa de habitação, mais propriamente uma cozinha típica das décadas de 40/70 do século passado, o borralho característico com a senhora idosa sentada no mocho à lareira a rezar enquanto o neto / filho contava as suas peripécias do dia a dia brincando com o seu pião. No interior do borralho, a bexiga do porco a “curar” para os meninos brincarem, no mesmo espaço encontramos ainda várias medidas anteriores ao sistema métrico decimal, a quarta, o alqueire, o meio-alqueire ou o litro com que as peixeiras mediam as camarinhas e as vendiam aos veraneantes ao fim-de--semana na Praia de Mira de modo a completar os seus parcos recursos, num dos cantos da sala está ainda uma parede toda ela dedicada aos trabalhos agrícolas e outros ofícios.

Na divisão ao lado, deparamo-nos com duas salas de estar / cozinhas distin-tas, uma da década de 10/30 onde não existia ainda electricidade na aldeia e ou-tra mais “moderna” da década de 60/70. Na mesma sala, encontramos alguns utensílios para o fabrico do pão e/ou broa, e outros elementos utilizados na ma-tança do porco.

As restantes divisões dizem respeito à evolução dos quartos dos pescadores. Nos finais do século XIX, aquando da formação da aldeia Palheiros de Mira, os quartos seriam a casa do pescador, as habitações pobres eram usadas apenas nos meses de abril a outubro, quando o mar permitia a ida ao mar. Aí guardavam to-dos os utensílios para as lides, dormiam assentes numa cama de palha, chamada esteira com uma manta de retalhos a servir de agasalho.

O quarto da década de 20/60 (séc. XX) é o que se segue, já na presença de mo-biliário rústico de madeira, assim se apresenta esta divisão, onde salta à vista o berçário que serviria para todos os filhos do casal e inclusive para mais do que uma geração. A um canto a arca, guardando a melhor roupa para ocasiões espe-ciais, como um casamento, batizado ou funeral.

Relativamente aos quartos, o último retrata a década de 10/50 do século XX, este seria provavelmente um quarto de pessoas mais abastadas, donos de com-panhas de pesca, pois a cama é de ferro trabalhado, havia já o cuidado com a higiene pessoal através da existência de um bacio e lavatório. A própria indu-mentária apresenta-se-nos como sendo trajes ricos, de festa ou romaria.

3. Museu e a Comunidade

Localizado numa estância balnear, que no verão recebe muitos turistas e verane-antes, e o facto deste Museu Etnográfico ser simultaneamente Posto de Turismo e possuir a única sala de exposições existente no Município de Mira, torna o “Palheiro” um local e serviço privilegiado em número de visitantes. Tendo ao

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serviço um Técnico Superior de Turismo e um Técnico Superior em Relações Públicas, para além de um assistente operacional, recebeu no mês de Agosto 4.790 visitantes.

O trabalho realizado pela equipa técnica que aqui trabalha e a sua própria inserção nas dinâmicas e cultura locais é basilar para que o Museu/Palheiro seja reconhecido e procurado pela própria comunidade.

Quase poderemos afirmar que há uma relação de afecto Museu/Comunida-de. A comunidade “gosta” do seu Palheiro, da sua casa de madeira, onde estão guardados e expostos muitos dos seus objectos antigos e ligados à sua própria história familiar. Gosta de lá levar quem visita ou passa férias na “sua” praia, para mostrar como eram as habitações dos seus avôs, que um dia foram conside-radas pobres e humildes e hoje são reconhecidas como património.

Mas a comunidade também procura o Museu/Palheiro para, na sala de ex-posições temporárias, expor os seus próprios trabalhos (por exemplo, os antigos pescadores trabalham as redes e as madeiras com mestria, e se durante muitos anos dependeram da pesca e dos artesanatos utilitários, hoje transformam as suas vivências em miniaturas de madeira que organizam em colecções e gostam de expor ou mesmo vender no museu).

Fruto de um outro trabalho de valorização da cultura local, as Jornadas Cul-turais da Gândara, promovidas pela Câmara Municipal de Mira e com o subtí-tulo “Encontros da Terra e do Mar”, tem vindo a aumentar esta interacção do Museu com a comunidade local. Tanto na realização de actividades e cedência de espaços para as próprias jornadas, mas sobretudo nas dinâmicas criadas. Foi assim que nasceram já mais 2 espaços museológicos na Praia de Mira, distintos fisicamente do Museu Etnográfico, mas em plena articulação e colaboração e cuja responsabilidade de abertura ao público, realização e posse das peças ex-postas são de antigos pescadores, hoje reformados.

1. Com a ajuda da equipa técnica do Museu e do CEMAR - Centro de Estudos do Mar, esses antigos pescadores realizaram, em madeira, uma maquete à escala 1/32 do que foi Palheiros de Mira nos anos 30. Esta maquete está em exposição numa sala situada no edifício da Lota, e são os próprios artesãos que a cons-truíram que garantem a sua abertura ao público. Revezam-se alternadamente entre eles e as marcações de visitas para grupos é realizada pelos serviços do Museu Etnográfico. Este espaço por cima da Lota chama-se CENTRARTE.

2. Um outro espaço, também da responsabilidade de antigos pescadores, que andaram na pesca do bacalhau, foi criado num antigo palheiro existente no Parque de Campismo Municipal, chamado pelos pescadores de Museu do Barco, este espaço constituído por uma única sala tem expostas as fotos das cédulas marítimas de antigos pescadores na pesca à linha do bacalhau, vários objectos utilizados por esses mesmos pescadores nos mares da Gro-nelândia e ainda recriações tridimensionais de cenas dessa pesca à linha. Este espaço também é aberto ao público por esses mesmos pescadores, que

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contam as suas histórias e vivências nessa difícil pesca de mar alto e em ma-res gelados. Nasceu como salvaguarda da memória da tradição marítima do concelho, numa pequena alusão à pesca do bacalhau à linha nos mares do Norte em homenagem a todos os homens que outrora partiram em busca de melhores condições de vida. No seu interior pode mesmo ver-se um Dóri (barco que fora utilizado na pesca do Bacalhau nos anos 30 e que era utiliza-do por um único pescador que, saindo em alto mar do navio, tentava, sozi-nho, pescar à linha o máximo de bacalhau no menor tempo possível, após o que regressava ao navio para tratar e salgar o seu pescado. Já no exterior pode admirar-se a grandeza do tradicional Barco da Arte utilizado na pesca costeira de arrasto e duas barcas típicas usadas na lagoa e barrinha, ambas lagoas de água doce.

Durante todo o ano é um facto evidente a permanente interacção deste Mu-seu na Comunidade em que se insere. Tendo “nascido” de um projecto educativo e dando especial atenção a projectos e articulações com a comunidade educati-va, há ainda uma permanente relação com toda a comunidade local, sobretudo a comunidade piscatória, a comunidade que se dedica ao alojamento e actividades turísticas e à terceira idade.

A colaboração entre diversas entidades é fulcral para o desenrolar das acti-vidades. IPSS´s do concelho, Associações, Escolas (desde o básico ao secundário), artesãos locais, artistas plásticos entre outros são convidados a colaborar com o museu nas diversas actividades que podem ser tão díspares como a sua natureza.

Além da exposição dos diversos trabalhos, os artesãos locais podem deixar os seus trabalhos na lojinha do museu, que se responsabiliza por indicar onde podem ser adquiridos.

Desde 2009 que o Museu Etnográfico Posto de Turismo vem a realizar as chamadas “Noites no Museu”, sempre à quinta-feira e durante o mês de agosto, inseridas na animação da época balnear da Praia de Mira. A actividade visa apro-ximar a comunidade local aos turistas que pernoitam na Praia de Mira. Estas actividades são, por norma, de carácter cultural, científico ou apenas lúdico e visam alargar a oferta de actividades a mirenses e turistas em época de férias, dinamizando o espaço do Museu ao contacto com a cultura.

A interacção de gerações promovida pelo museu em actividades como “brin-car com os avós” construindo brinquedos e jogos de antigamente também ga-rante a apreensão do espaço museológico como um espaço vivo de aprendiza-gem e satisfação, o que muito tem enriquecido as experiências proporcionadas à população local.

Um outro motivo de interacção com a comunidade é a existência de um fun-do documental local que pode ser consultado no local e é bastante procurado, sobretudo para a realização de trabalhos académicos. Ainda a promoção da Bi-blioteca de Verão, fruto de parceria com a Biblioteca Municipal de Mira, que per-mite a oferta de serviços diferenciados ao turista e ao habitante local, tal como

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a requisição de uma obra literária sem ter que se deslocar ao Centro da Vila de Mira que dista cerca de 7 Km.

Para terminar, poderemos deixar a conclusão que o Museu Etnográfico da Praia de Mira nasceu da vontade e necessidade da comunidade local, apoiado pelas entidades locais, e continua plenamente enraizado e vivo nessa mesma localidade e nos seus habitantes, que o reconhecem como seu e o utilizam como um bem comum e um espaço que dignifica as suas raízes, memórias e alicerça identidades nas faixas etárias mais novas.

Referências

· 1 RIBEIRO , Orlando. Palheiros de Mira – Formação e declínio de um aglomerado de pescadores, 2. ed, Lisboa, 1981,

Contactar a Instituição:

À Direção do Museu Etnográfico da Praia de Mira

Câmara Municipal de Mira — Praça da República

3070-304 Mira

E-mail: [email protected], tel. 23 148 05 50

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A Rede de Museus do Mar de Esposende — um projeto de agregação da cultura costeira1

Network of Museums of Esposende – a project to the aggregation of seaside culture

Ivone MagalhãesLicenciada em História Variante de Arqueologia (FLUP). Pós-graduada em Museologia

(FLUP). Aluna de Pós-graduação e Mestrado Arqueologia da Paisagem (UM). Registo NAS

International (Nautical Archeology Society -international training and qualification record,

London/Lisbon). Investigadora nas áreas da Museologia, Arqueologia Subaquática e Naval,

e Etnografia Marítima. É técnica superior coordenadora do Museu Municipal de Esposende.

Elsa TeixeiraLicenciada em Conservação de Restauro, área de cerâmica e pedra pelo Instituto

Politécnico de Tomar em 2006, em 2008 concluiu a pós-graduação em Técnicas e

Conservação de Pintura pela Universidade Católica do Porto. Trabalhou em conservação

e restauro. Actualmente trabalha com Museu Marítimo de Esposende.

Resumo: A criação de uma Rede local de Museus do Mar para possibilitar a coope-ração profissional assumindo o Mar como motor económico e cultural do concelho de Esposende em todas as suas vertentes. A concepção de um centro de investigação que permita o estudo da cultura e das colecções existentes no concelho de Esposende pela comunidade científica.

Palavras-chave: Rede de Museus. Rede Temática. Centro de Investigação.

Colaboração Profissional. Pólo de Investigação do Património da Cultura Costeira.

Abstract: The creation of the Local Network for Museums of the Sea, which provides professional cooperation taking Sea as economic engine and cultural in the municipali-ty of Esposende in all its aspects. The design of a research center that will allow the study of culture and collections in the municipality of Esposende by the scientific community.

Keywords: Network of Museums. Thematic Network. Research Centre. Professional

collaboration. Research Center to the Cultural Heritage Coastal.

Introdução

O concelho de Esposende foi fundado por Carta Régia do Rei D. Sebastião em 19 de Agosto de 1572 e pertence ao distrito de Braga. Situa-se na fachada atlântica do NW peninsular e faz fronteira a norte com o município de Viana do Castelo, a sul com o da Póvoa de Varzim, a nascente com o de Barcelos e a poente com o oceano

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Atlântico. Com uma área de 95,41Km2, tem 34,254 habitantes (2011), sede adminis-trativa na cidade de Esposende e 9 freguesias (15 até à recente reorganização admi-nistrativa), das quais 5 freguesias estão na zona costeira servida por praia atlântica.

Banhado por 2 rios (Neiva e Cávado) tem forma de rectângulo orientado norte-sul, e organiza-se em anfiteatro, descendo para o mar do planalto monta-nhoso outrora a arriba fóssil, para a linha de costa que é muito baixa, formada por um cordão dunar e praia, com uma extensão de 16 Km, apenas interrompido pela foz do Rio Cávado e pontilhada por alguns afloramentos rochosos que mal fazem a protecção deste cordão, actualmente sob forte erosão marinha.

É neste território atlântico que actua o Museu Municipal de Esposende des-de 1993, instalado no antigo edifício do Teatro Club de Esposende (1911, Miguel Ventura Terra) cujas colecções de Arqueologia e de Etnografia reflectem essa condição atlântica, bem como os muitos trabalhos que desenvolveu ao longo dos últimos 20 anos de investigação, das exposições e, principalmente, da par-ticipação no meio académico e institucional (jornadas, conferências, seminá-rios, encontros) dos quais resultam muitas publicações de especialidade que permitem salvaguardar, divulgar e interpretar o património da cultura costeira do concelho, afinal, o principal elemento comum e eixo director da cultura e identidade local.

Neste território actua também a associação local Fórum Esposendense, mui-to vocacionada para a cultura marítima do concelho, colaboradora do Museu Municipal, mas principalmente impulsionadora e responsável por projectos pioneiros de recuperação de património marítimo e naval que a distinguem no panorama local, nacional e internacional das colectividades e associativis-mo. E não por acaso esta Associação tem sede no emblemático edifício da Casa do Salva Vidas, a Estação ISN, do então Instituto de Socorros a Náufragos, da-tada de 1906, ex-libris das comunidades marítima, piscatória e agro-piscatória do concelho.

Nos projectos inéditos desta associação destacam-se a construção, manuten-ção e animação (com projectos de etnografia e história viva) de uma réplica na-vegante à escala real da embarcação de pesca da sardinha do século XVIII, usada pela comunidade piscatória primitiva de Esposende até 1958, uma catraia de tipologia “poveiro”, ou a recuperação e valorização (com um projecto náutico--turistico) de duas embarcações históricas da comunidade marítima local, as bal-sas salva-vidas de 1940 e 1950, que operaram em Esposende.

Em 2012, inaugura numa parte privilegiada do seu edifício sede, na “Casa do Salva Vidas”, o Museu Marítimo de Esposende, materializando um projecto antigo, onde num mesmo espaço se reúne uma valiosíssima colecção marítima, cujo acervo provém de empréstimos e doações, permitindo o acesso a espólio de privados, constituído por variada tipologia (artes de pesca, aprestos, alfaias e instrumentos, fotografias, documentos, trajes de época, miniaturas navais), e onde pontuam armadores da construção naval, armadores da pesca do baca-lhau, capitães e pilotos da marinha mercante que operaram nas rotas da África,

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Brasil e Europa do Norte, para além dos pescadores locais e dos lavradores do sargaço e do pilado.

Como ponto alto da colaboração nas comemorações dos primeiros 20 anos do Museu Municipal e do primeiro aniversário do Museu Marítimo, surgiu a possibilidade de criar um projecto de agregação da cultura costeira, pioneiro, através destes dois museus, que passariam a operar como uma única entidade museu, tendo lugar a assinatura de protocolo entre a autarquia de Esposende e a associação Fórum Esposendense, a 18 de Maio, o simbólico Dia Internacional dos Museus, com a criação da Rede de Museus do Mar de Esposende, MUMAR-E.

1 A Rede MUMAR-E1.1 O que é, a missão e a visão

A Rede de Museus do Mar de Esposende é um organismo que integra o Museu Municipal de Esposende e o Museu Marítimo da Associação Fórum Esposendense, coordenado pela Câmara Municipal de Esposende através da Divisão de Acção Cultural. O MUMAR-E tem como missão desenvolver uma rede temática local dirigida ao património da cultura costeira em todas as suas vertentes (exploração marítima, pesca, lazer e tradição).

Tem como visão Esposende Terra de Mar, considerando o mar como motor económico e cultural do território, o MUMAR-E tem como estratégia assumir, não apenas a faixa litoral, mas todo o território do concelho como palco da acti-vidade e do interesse MUMAR-E.

1.2 Os objectivos

Como objectivo principal, o MUMAR-E pretende desenvolver os 4 objectivos museológicos clássicos: recolher, conservar, estudar e divulgar o património da cultura costeira do concelho de Esposende.

Tem como objectivo secundário contribuir para as seguintes disposições:

– Promover as colecções marítimas e os Museus envolvidos;– Fomentar a colaboração entre o MUMAR-E e as diversas pessoas, colectivas e

individuais, com interesses no património da cultura costeira;– Promover as diferentes formas do Património da cultura costeira, incluindo o

naval, o etnográfico e o arqueológico, incrementando uma rede local de par-cerias em torno deste património;

– Desenvolver e racionalizar meios técnicos, humanos e financeiros;– Contribuir para o incentivo e aplicação de boas práticas museológicas e

museográficas;– Democratizar o acesso à informação, à cultura em geral e em particular ao

património da cultura costeira concelhia;– Promover a missão do MUMAR-E junto de todas as instituições do concelho

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que alberguem museus, núcleos museológicos, centros interpretativos ou colecções visitáveis, incrementando o alargamento do MUMAR-E a estes novos parceiros;

– Promover a missão do MUMAR-E junto dos concelhos vizinhos e da comuni-dade científica.

– Para concretizar aquilo a que se propõe, têm previsto a criação dos seguintes equipamentos de apoio e consolidação do projecto:

– Centro de Investigação e Documentação do Mar — CIDOCMar (Laboratório de investigação, Laboratório de Conservação e Restauro, Centro de Documentação e Biblioteca especializada, Loja e livraria, espaço de eventos e promoção da cultura costeira concelhia);

– Reservas Museológicas (espaço privilegiado de entesouramento e conserva-ção de espécimes da cultura costeira do concelho).

1.3 O alargamento da Rede MUMAR-E

Deve ser reconhecida institucionalmente a possibilidade do alargamento da rede a outras entidades museológicas concelhias na qualidade de parceiros, sendo que os núcleos–sede do MUMAR-E serão apenas o Museu Municipal (valências da gestão administrativa, reservas e serviço educativo) e o Museu Marítimo (valência da conservação preventiva e curativa). Todos os outros serão considerados como parceiros de projecto. Este alargamento permitirá o

Fig. 1 - A Estrutura do MUMAR-E.

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desenvolvimento de novos projectos no futuro e o apoio à constituição de novas colecções privadas ou públicas.

1.3.1. Quem pode ser parceiro

Os Museus são instrumentos privilegiados da dinamização cultural, com valio-síssimas colecções de interesse local, e enormes potencialidades pedagógicas cul-turais e turísticas. No entanto, há mais de uma vintena de espaços no concelho de Esposende com estas características (colecções visitáveis, núcleos museológicos e centros interpretativos), que sozinhos não têm visibilidade, nem recursos hu-manos, técnicos ou financeiros, sendo desconhecidos de quem visita o concelho mas também desconhecidos da maioria dos residentes no próprio concelho.

O MUMAR-E pretende potenciar a parceria em rede com estes diferentes agentes culturais. Não obstante, e apesar das múltiplas tutelas responsáveis por essas estruturas, pretende congregar em rede e dinamizar todos eles, através da celebração de protocolos individuais.

Podem ser parceiros todos os que de alguma forma representam ou desen-volvem actividade na área da cultura costeira e que manifestem essa intenção.

1.4 O CIDOCMar

A Rede dos Museus do Mar de Esposende, MUMAR-E, assenta em dois equipa-mentos já existentes, o Museu Municipal de Esposende (MME, instalado no edi-fício Teatro Club) e o Museu Marítimo (MM, instalado no edifício da Estação ISN) e prevê afectar um terceiro equipamento, para nele albergar o Centro de Investigação e Documentação do Mar (CIDOCMar).

Assim, com o propósito de promover a preservação e valorização do patri-mónio da cultura costeira do Concelho de Esposende, é necessária uma com-plementaridade metodológica entre diversos organismos e disciplinas que se preocupem com a sua investigação, documentação, conservação, exposição, di-vulgação e publicação. Só assim será possível trabalhar para a boa promoção do concelho de Esposende e torná-lo atractivo culturalmente, no qual o MUMAR-E se assume como uma Rede Local de Investigação do Património da Cultura Costeira e uma necessidade irredutível.

Movidos pelo espírito de serviço público e pela exigência de qualidade que o CIDOCMar deve proporcionar à comunidade local em que se insere, aos Museus e parceiros do MUMUAR-E, à comunidade científica e à comunidade educativa, este será um equipamento cultural aberto ao público de forma permanente.

O CIDOCMar disponibiliza o acesso aos fundos documentais, a uma bi-blioteca temática especializada, a serviços especializados e consultadoria de conservação e restauro e o acesso a bens móveis patrimoniais das reservas do MUMAR-E.

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1.4.1 A missão

O CIDOCMar tem como missão proporcionar à comunidade local, regional e nacional o acesso integral às fontes de conhecimento da cultura costeira do con-celho e ao seu património.

1.4.2 Organização física do CIDOCMAR

Para cumprir a missão a que se propõe, o CIDOCMAR terá um Laboratório de inves-tigação, um Laboratório de Conservação e Restauro, um Centro de Documentação e Biblioteca especializada, uma Loja e livraria, um espaço de convívio na forma de Bar e cafetaria, e um espaço de eventos e promoção da cultura costeira concelhia.

1.4.3 O Centro de Documentação e Investigação do Mar

O CIDOCMar disponibiliza apoio técnico e científico aos Museus fundadores e aos parceiros do MUMAR-E (utilizadores internos), bem como a estudantes, do-centes e investigadores (utilizadores externos), pela disponibilização de fontes e recursos de informação especializados nas áreas de intervenção do MUMAR-E.

Podem usufruir dois tipos de utilizadores. Os utilizadores internos (técnicos e colaboradores dos museus fundadores e parceiros) e os utilizadores externos, nomeadamente outros profissionais de outros museus, docentes, estudantes e investigadores nos domínios da especialidade do CIDOCMar.

O CIDOCMar vai integrar um fundo documental de nível especializado, constituído por documentos impressos e por tipologias documentais diversifi-cadas (plantas, desenhos, mapas, fotografias, diários de bordo, monografias, re-vistas especializadas, trabalhos científicos e outros).

1.4.4 Laboratório de Conservação e Restauro

A conservação preventiva e curativa é uma das mais-valias do MUMAR-E e deve ser assegurada por um técnico superior de Conservação e Restauro envolvido a tempo inteiro (assegurado pelo Museu Marítimo), condição imprescindível nes-te equipamento para a intervenção no património móvel que será enquadrado, valorizado e salvaguardado pelo MUMAR-E.

Todo o espólio/acervo do MUMAR-E, parceiros ou em circulação (emprésti-mo para exposições ou estudo) tem de passar previamente por este serviço para se verificar o estado de conservação, inventário e outros, para finalmente ser co-locado em reserva ou em exposição.

1.4.5 Reservas da Cultura Costeira

As Reservas da Cultura Costeira são o local de armazenamento cuidadoso e em

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segurança máxima dos bens móveis que constituem o acervo do MUMAR-E de grande dimensão e peso, o que considerando-se a fragilidade das matérias-pri-mas deste acervo, proveniente do universo piscatório e marinho, entende-se que estas serão um espaço exclusivo a profissionais e num contexto de metodologia de trabalho de equipa.

São as principais reservas museológicas para os grandes objectos museoló-gicos e devem ser orientadas de forma a constituírem-se como um único acervo de várias proveniências (particulares e públicas, doações ou depósitos), sendo no futuro uma mais-valia para o MUMAR-E, pois vai permitir ultrapassar debi-lidades dos recursos e do espaço dedicado às reservas nos museus fundadores e nos parceiros.

A gestão deste espaço é da exclusiva responsabilidade da equipa técnica dos museus fundadores.

Estará dotado de máxima segurança: acesso restrito, condições ambientais controladas, vídeo vigilância e mobiliário adequado a estas funções.

Conclusão

No acervo das colecções dos dois museus que integram o MUMAR-E surge um Esposende quase desconhecido, feito de histórias trazidas pelos objectos oriun-dos da primitiva comunidade marítima e piscatória, de rio e de mar, onde ho-mens, mulheres e crianças se dedicavam quase em exclusivo à pesca e à venda do pescado, ao fazer e reparar as artes de pesca, à construção e reparação na-val, à apanha do sargaço, à pesca do bacalhau no mar do Norte e ao embarque como marinheiros nos grandes veleiros das rotas atlânticas, materializando a Tradição, nos seus usos e costumes, principalmente nas suas devoções e actos de religiosidade e Fé cristalizada nos santos e santas padroeiros dos lugares piscató-rios do concelho, que a custo sobrevivem ao cosmopolitismo actual.

Resulta do interesse e do valor patrimonial destas colecções um projecto pio-neiro de trabalho em rede museológica, onde ambas possam ser conservadas, estudadas, interpretadas e valorizadas como uma só: a Rede dos Museus do Mar de Esposende.

Esta complementaridade metodológica entre diversos organismos e discipli-nas que se preocupam com a investigação, documentação, conservação, exposi-ção, interpretação e divulgação do património da cultura costeira concelhia são a forma mais viável de trabalhar para a promoção do concelho de Esposende e torná-lo mais atractivo culturalmente.

A criação de um terceiro equipamento cultural afecto a estes museus, o CIDOCMar, materializará a missão do MUMAR-E, tornando este projecto num instrumento cultural que reunirá toda a memória e o acervo das instituição fun-dadoras em geral, e em particular, promovendo o acesso e a partilha da informa-ção do património da cultura costeira do município, facultando os seus serviços ao público em geral, à comunidade escolar, universitária e aos investigadores.

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Os primeiros projectos de parceria do MUMAR-E no concelho estão já ini-ciados através da APPCE, Associação Profissional de Pescadores do Concelho de Esposende, que representa as quatro comunidades piscatórias do concelho (enunciadas por ordem de grandeza, Apúlia, Esposende, Fão e Fonteboa) com as quais se desenvolve presentemente o projecto “Tradição Viva – as comunidades piscatórias do Concelho” (levantamento e estudo, exposição itinerante e publi-cação de catálogo), e através do Rancho dos Sargaceiros da Casa do Povo de Apúlia que representa a Candidatura Unesco Património Imaterial com o programa “Actividades Agro-marítimas da Apúlia: saberes e expressões artísticas” (cria-ção de Núcleo Museológico do Sargaceiro de Apúlia e publicação de catálogo).

Notas

· 1 Colaboram neste projeto Fernando Ferreira, Associação Fórum Esposendense; José Felgueiras, Associação

Fórum Esposendense e Rui Cavalheiro, Divisão de Acção Cultural do Município de Esposende.

Contactar as autoras: [email protected]

Contactar a Instituição:

À Direção do Museu Municipal de Esposende

Rua Barão de Esposende, 4740-Esposende

[email protected]

E-mail: [email protected]

tel. 25 397 00 002

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Fluviário de Mora – O Património Natural Dulciaquícola como promotor de Patrimónios Culturais e de Desenvolvimento RegionalFluviário de Mora – The Natural Freshwater heritage as a mean to promote Cultural Patrimony, and Regional Development

José Manuel Ribeiro Pinto Presidente do Conselho de Gestão. Formou-se em Grenoble, França, onde concluiu

as Licenciaturas de Língua e Literatura Portuguesa e de Francês, Lingua Estrangeira.

Em 1993, ruma a Mora onde Coordena a Divisão o de Acção Sociocultural da Câmara

Municipal. Em 2005 assume o cargo autárquico de Vereador, que ocupa até hoje,

e em 2007 o de Presidente do Conselho de Gestão do Fluviário.

João Pimenta LopesBiólogo Coordenador. Formou-se em Biologia Marinha, na FCUL em 2004. Foi bolseiro

de Investigação no Instituto de Oceanografia da FCUL até 2007. Em 2007 integrou

a equipa técnica do Fluviário de Mora onde assumiu as funções de Biólogo Coordenador

e Director Técnico.

Resumo: O Município de Mora, com pouco mais de 5000 habitantes, está dividido em 4 freguesias: Mora, sede de concelho, Brotas, Cabeção e Pavia. Apesar de per-tencer ao Alentejo Central, região a que tem uma ligação histórica, é um concelho charneira com os distritos de Santarém e Portalegre, possuindo características geo-gráficas e climáticas únicas, que o fazem destacar dos concelhos limítrofes.

Palavras-chave: Museu. Património Natural. Mora. Portugal.

Abstract: The Mora Municipality, with little over 5000 inhabitants, is divided in four parishes, Mora, Brotas, Cabeção and Pavia. Although within the Central Alentejo re-gion, to which it holds its historic and cultural roots, it’s a boundary municipality with two other districts, Santarém and Portalegre, and holds unic geographic and cli-matic characteristics, which makes it distinct from the bordering municipalities.

Keywords: Museum. Natural Heritage. Mora. Portugal.

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Introdução

Mora, com uma área de 444 km2, possui uma rede hidrográfica complexa de que se destacam as quatro principais ribeiras que o atravessam: Raia, Divor, Têra e Seda, ribeiras onde corre água todo o ano, sobretudo na primeira, que serve a complexa rede de canais de rega do vale do Raia. Estas características contri-buem para e justificam que Mora seja dos concelhos mais florestados do país.

A ligação aos rios neste concelho é centenária. O património arqueológico assim o afirma com diversos moinhos e azenhas no curso das diversas ribeiras. Actualmente, a relação da comunidade com os rios espelha-se bem no usufruto intenso que é dado quer pela população local, quer por pessoas de fora, às pistas de pesca do Concelho, onde são promovidos diversos concursos, de carácter lo-cal, regional, nacional e mesmo internacional!

O Fluviário de Mora nasceu de um sonho!

A ideia, que surgiu ao redor de uma mesa de restaurante no dia 11 de Fevereiro de 2001, entre o então presidente da Câmara e um amigo do concelho, o Arqui-tecto Nuno Lecoq, “pai” da ideia, é hoje uma realidade consumada e inequívoca.

O executivo camarário ambicionava a criação de uma infra-estrutura dis-tinta, inovadora, capaz de atrair visitantes ao concelho, que contribuísse para a dinamização da economia local, que fosse geradora de emprego, fixadora de jovens do município, contribuindo para combater a desertificação do interior e para a diminuição das assimetrias regionais.

O desafio lançado, a construção de um Fluviário, como dizia Lecoq “é um oceanário mas de água doce!”, foi prontamente aceite, suportada pela estreita, tradicional e secular ligação do povo de Mora aos rios.

Nascia, assim, a ideia de um Projecto! A construção de um aquário público de água doce, iniciativa municipal, estrutura, à data, única na Europa, tendo como objecto o património natural de água doce do país. Foi, desde o início, uma aposta de risco.

A infra-estrutura foi concebida por equipas de reconhecida qualidade em di-versas vertentes. O edifício, construído pela empresa Teixeira Duarte, sem atra-sos nem derrapagens financeiras. O projecto, desenvolvido pelo Promontório em colaboração com a empresa Cosestudi, de Boston, especializada em arquitectura e biologia marinha e ligada também à concepção do Oceanário de Lisboa. A Y--Dreams produziu os conteúdos multimédia, Pedro Salgado (reconhecido ilustra-dor científico) e Henrique Cayatte (designer com vários prémios) encarregaram-se das ilustrações, do logótipo, da exposição temporária e dos painéis informativos.

Integrado no Parque Ecológico do Gameiro, em plena Rede Natura 2000, no “Sítio de Cabeção”, o Fluviário de Mora ergue-se na margem direita da Ribeira Raia, apelando esteticamente ao imaginário dos montes alentejanos.

Evocando os celeiros rurais do distrito de Évora, no Alentejo, este edifício foi

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pensado como um volume compacto e monolítico, protegido do sol por um con-junto de finos pórticos equidistantes em pré-fabricados de betão branco com vãos de 33 metros. No interior, este pequeno hangar alberga um complexo santuário de água em constante movimento através de diferentes habitats de água doce.

A 21 de Março de 2007, volvidos seis anos e apenas três após o início do pro-jecto, o Fluviário de Mora, primeiro grande aquário da Europa, dedicado à fauna e flora dos rios e lagos, é inaugurado.

O Fluviário de Mora é hoje uma evidente realidade, cumprindo os desígnios para os quais foi projectado.

Foi o primeiro grande aquário de água doce da Europa, colocou Mora no mapa e criou 30 postos de trabalho directos além de outros tantos indirectos. A equipa é predominantemente jovem, estando a média de idades situada nos 30 anos.

Está prestes a atingir a marca dos 700 mil visitantes, cidadãos oriundos dos quatro cantos do país, destacando-se as muitas crianças e jovens de centenas de estabelecimentos de ensino, que constituem hoje cerca de um terço do número de visitantes.

Esta expressiva afluência torna o Fluviário uma das infra-estruturas mais visitadas em todo o Alentejo, constituindo-se num significativo motor da eco-nomia local.

Enquanto Empresa Municipal, goza de autonomia financeira e gera riqueza que é investida no concelho, resultado das avultadas transferências financeiras efectuadas para o município.

O equipamento Fluviário de Mora, preparado para ser visitado por pessoas com deficiência, tem merecido amplo reconhecimento público, mas também institucional em variadas áreas e por entidades distintas de que merecem des-taque a Menção Honrosa na VI Bienal Ibero-Americana de Arquitectura e Ur-banismo (BIAU), obra do ano, atribuído pelo Chicago Atheneum International Architecture Awards, a Menção Honrosa na Categoria Natureza na 3ª edição do Prémios Turismo de Portugal e, possivelmente, o seu mais importante galardão, o Prémio Melhor Museu Português de 2007, atribuído pela APOM.

É na sequência, aliás, deste prémio, que passamos a valorizar o Fluviário de Mora como um verdadeiro Museu Vivo, numa acepção mais popular, uma ver-dadeira Casa dos Rios.

Aquário público de âmbito nacional, vocacionado para a divulgação e pre-servação do património natural dulciaquícola português, o Fluviário de Mora encontra-se numa posição privilegiada para se afirmar um centro ambiental ca-paz de desenvolver um papel relevante em matéria de conservação e valorização do património natural.

Entendemos que o conhecimento que o público tem sobre os sistemas aquáticos continentais, que integram unidades tão distintas como os rios, os riachos, as ribeiras, os pegos, as albufeiras, as lezírias ou os estuários, é ainda reduzido e limitado.

E porque, como diz Phelps, “Um rio é algo mais que um acidente geográfico,

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uma linha no mapa, uma parte de terreno imutável. […] Um rio é um ser vivo, dotado de energia, de movimento e transformação”, entendemos que é imperio-so dar a conhecer este mundo desconhecido, já que temos a profunda convicção que não é possível preservar aquilo que não se conhece.

O património natural dulciaquícola nacional é o ponto de partida de quem visita o Fluviário. Através do percurso de um rio, o visitante é convidado a co-nhecer as singularidades dos rios ibéricos, desde a nascente até à foz, integrando informação relativa aos habitats, ecossistemas, espécies da fauna e flora.

O maior enfoque recai com naturalidade no grupo taxonómico dos peixes e aqui ganha maior evidência o facto de, sendo um projecto de risco, o Fluviário ser hoje uma aposta ganha. Como frequentemente referimos, estas espécies são cinzentas, castanhas, verduscas, mas são nossas. É o nosso património natural. É esse que valorizamos e damos a conhecer.

Neste diálogo com o visitante, o interface de comunicação é extremamen-te importante. É no sentido de facilitar esse diálogo que o Fluviário tem vindo, desde a abertura, e apesar de ser uma infra-estrutura muito recente, a investir na melhoria desses meios.

Na galeria principal foram renovadas as pranchas informativas das espécies, facilitando a identificação e aumentando a quantidade de informação disponí-vel que seja interessante para o visitante. Dando resposta aos visitantes estran-geiros, foram ainda produzidas pranchas informativas com a nomenclatura dos habitats e das espécies em 3 línguas: Espanhol, Inglês e Francês.

Em colaboração com a EDP, foram melhorados, graficamente, os espaços da galeria principal e da sala de aula, com a cobertura integral das paredes livres da primeira com um corte longitudinal de um rio, estilizado, onde se justapôs um conjunto de informação relevante sobre a temática rios, a acrescentar à já exis-tente. Na sala de aula, transformou-se um espaço frio num espaço mais quente, colorido e apelativo ao público mais jovem.

Ainda com esta entidade, o município tem promovido o Festival Músicas no Rio, os outros sons do Fluviário, que se afirma já hoje como um festival distinto, apresentando grandes nomes da música popular portuguesa em dois fins de se-mana consecutivos, ao rés da ribeira Raia, no Parque Ecológico do Gameiro.

Até 2011, aquando das comemorações do aniversário do Fluviário, foi estre-ada uma nova Exposição Temporária, por norma direccionada para o universo dos ecossistemas de água doce e sempre em estreita colaboração com o meio académico, nomeadamente com a Universidade de Évora, dando sequência ao protocolo firmado entre as duas entidades.

Em 2012, renovou-se o espaço das exposições temporárias com uma exposi-ção permanente, que, homenageando o Saramugo, espécie emblemática do Rio Guadiana, em vias de extinção, apresentou diversos aquários com fauna autóc-tone por grupo taxonómico: peixes, anfíbios, répteis e macroinvertebrados.

Também neste ano se consagrou a construção do Parque Aventura onde pe-quenos e graúdos se deleitam em emoções radicais nas copas das árvores. No

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Parque Ecológico do Gameiro, por iniciativa da Câmara Municipal, foi instalado um passadiço em madeira com 1,5km, que acompanha a ribeira Raia num cená-rio único, que integra um percurso circular com uma extensão total de pouco mais de 5km.

Em 2013, o Fluviário consumou a sua ampliação física com a inauguração do novo lontrário, um espectacular empreendimento que oferece dois habitats dis-tintos para as espécies de lontra que aí estarão em exibição. Uma obra que resul-ta de um investimento comparticipado de mais de 600 mil euros, e que oferece todas as condições para as espécies albergadas. São mais de 110m2 de área seca e 90 mil litros de água. Para alimentar energeticamente a nova infraestrutura, construiu-se uma emblemática árvore fotovoltaica, um disco com mais de 12m de diâmetro, composto por 32 paineis vidro-vidro, que produzirá até 13MWh/ano, poupando 4,5 ton de CO2 a cada ano, além do ensombramento que propor-ciona ao habitat.

Ainda na área da comunicação, o Fluviário tem procurado manter passo com as novas abordagens que o mundo da internet possibilita. Desde a sua abertura, privilegia a disponibilização de informação através do seu sítio da internet, que já foi renovado duas vezes, com vista a uma melhor interacção e resposta àque-les que ali a procuram. Outras ferramentas importantes são o envio regular da Newsletter do Fluviário para uma mailing list que continua a crescer, ou a actuali-zação frequente da página no Facebook que conta com quase 6000 fãs, e tem um alcance diário superior a duas mil pessoas.

Das cinco valências que podem ser usufruídas e exploradas no Fluviário – Ambiental, Científica, Cultural, Educativa e Lúdica – têm assumido particular relevo as componentes educativa e ambiental, sempre imbuídas de um contexto cultural regional.

Num mundo onde é cada vez mais premente a necessidade de combinar am-biente e tecnologia com vista a um futuro sustentável e à conservação da vida como a conhecemos, e onde o papel individual é essencial como suporte às ac-ções colectivas necessárias a empreender, o Fluviário enquanto Aquário Público, assume um importante papel de charneira, entre a aquisição de conhecimentos científicos e técnicos, no âmbito dos ecossistemas dulciaquícolas e a divulgação daquele conhecimento, potenciando a mudança de mentalidades necessária.

Neste contexto, a abordagem ambiental pode prestar um contributo muito importante à formação das crianças e jovens que nos visitam, desenvolvendo nelas uma consciência ambiental de grande utilidade num mundo em cons-tante mudança.

É neste enquadramento que desenvolvemos o Programa Pedagógico do Flu-viário, que para o ano lectivo 2013/14 alinha pelo mote A Água que nos Une, as-sente nas seguintes premissas: recordar a todos que este elemento é um bem co-mum da humanidade enquanto elo de vida que a todos os seres une. Muito mais do que um recurso, a água é um bem essencial e precioso que a todos diz respei-to. A água, um dos quatro elementos, é responsável pela existência de Vida no

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planeta Terra. Não existe um ser vivo, por mais pequeno ou original que seja, que não possua água no seu organismo.

O Aquário pode ser um grande Mestre, na relação entre as diferentes formas de vida; o enquadramento ecológico e social das tradições locais, nomeadamen-te a ancestral ligação de Mora aos rios.

Este programa, fruto da experiência acumulada dos técnicos e educadores ambientais do Fluviário, é hoje mais consistente e coerente, dando cabal respos-ta às necessidades dos diversos níveis escolares. A oferta é diversificada, indo desde a simples visita guiada com uma abordagem pedagógica adequada ao ní-vel etário dos visitantes, a outra mais complexa, com oficinas ambientais onde os alunos aprofundam conhecimentos e conceitos. Além disso, existe ainda uma ampla escolha de actividades que são de usufruto independente.

O Fluviário de Mora assume também as suas responsabilidades na vertente científica, consagradas no Programa Científico Rios de Saber, consolidando os princípios éticos de gestão da colecção animal, lançando as sementes para o con-tributo à conservação de espécies autóctones que possa prestar.

Estão assim garantidas as condições de adequação dos habitats às necessida-des das espécies que integram a exposição e à sua manutenção em cativeiro, o cumprimento rigoroso de rotinas de manutenção dos habitats e dos sistemas de suporte de vida e assegurados o controlo da qualidade da água e monitorização do bem-estar animal.

Na vertente da conservação, o Fluviário de Mora tem assumido um papel pró-activo, associando-se a diversas iniciativas do meio académico ou com o ICNF, integrando diversos projectos de investigação. O mais relevante será o Plano Nacional de Conservação da Lampreia-de-rio e da Lampreia-de-riacho, projecto vencedor do Fundo EDP para a Biodiversidade em 2008, em que participaram a Universidade de Évora, o Centro de Oceanografia da FCUL, o CIIMAR da FCUP, a Autoridade Florestal Nacional, a empresa Planeta Vivo, o Aquamuseu e o Flu-viário de Mora.

Em articulação com o ICNF, iniciámos uma colaboração com o Museu Na-cional de História Natural para o estudo e conservação da chamada Boga-de--Lisboa e integramos hoje Plano de Acção do Saramugo, um pequeno ciprinídeo do Guadiana em risco de extinção. Este Plano, promovido pelo ICNF, procura encontrar as soluções para a manutenção e reprodução da espécie em cativeiro, ao mesmo tempo que pretende tomar acções que garantam a conservação do seu habitat natural.

Novos sonhos, novos projectos, inovação e melhoria contínua são objecti-vos que prosseguimos todos os dias para manter o sucesso de um equipamento como o Fluviário.

Consagrado o processo de ampliação do Fluviário de Mora com a constru-ção do novo lontrário, está já em curso o projecto de transformação do antigo tanque das lontras, num tanque para peixes de grandes dimensões dos nossos rios. Por outro lado pretende-se construir um grande aquário, com 9m de largura

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na zona das espécies tropicais, onde hoje está presente a exposição interactiva. Também o aquário da anaconda será reformulado e aumentado, e contará com a instalação de uma redoma de vidro que possibilitará aos mais pequenos, ver a anaconda bem de perto!

Julgamos, deste modo, ir ao encontro das expectativas dos visitantes, para que a sua apreciação e observações continuem a ter o mesmo grau de elevada satisfação com que nos têm reconhecido desde a abertura.

De igual modo, julgamos que só com esta postura e dinamismo, poderemos continuar a ter orgulho de termos, em Portugal, um Fluviário que, sendo o pri-meiro da Europa, é de todos nós.

Contactar os autores: [email protected] · [email protected]

Contactar a Instituição:

Fluviário de Mora, Parque Ecológico do Gameiro, Apartado 35

7490-909 Mora.

[email protected]

Tlf.:.+351 266 448 130

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Núcleo Museológico da Pesca do AtumMuseum of the Tuna Fishing

César Emanuel Alvito GasparLicenciado em Gestão Hoteleira. Pós-Graduado em International Hotel Management

Desde 2003 no Grupo Vila Galé. Director Geral desde Abril 2013 no Hotel Vila Galé Albacora.

Resumo: Trata-se, neste artigo, do Núcleo Museológico da Pesca do Atum, implan-tado no Hotel Vila Galé; representa a herança deixada pelas gentes que outrora tra-balharam na faina do atum. Actualmente, o Núcleo pode ser visitado por todos os interessados durante o período de abertura da unidade hoteleira. O acesso é gratuito, no entanto, existe uma opção paga de visita guiada onde se abordam os aspectos re-lativos ao edifício e à época de sua construção. Para se entender de foma mais clara, importante é conhecer a história de sua edificação.

Palavras-chave: Atum. Pesca. Museu. Arraial. Ferreira Neto.

Abstract: It is, in this article, the Museum of the Tuna Fishing, implanted at the Hotel Vila Gale; represents the legacy left by the people who once worked in the task tuna. Currently, the Museum can be visited by all stakeholders during the opening of the hotel unit. Access is free, however, there is an option pays a guided tour where is talk-ed the aspects of the building and the time of its construction. To understand clearly, it is important to know the history of its construction.

Keywords: Tuna. Fishing. Museum. Village. Ferreira Neto.

O Arraial Ferreira Neto está implantado no lado nascente da foz do rio Gilão, perto de Tavira, numa zona denominada Quatro Águas (confluência do Rio Gi-lão, do Canal de Cabanas, do Canal de Tavira e da barra de acesso ao mar através da ilha de Tavira), perto do imóvel de interesse Público Fortaleza do Rato (con-forme Decreto N�8/83, de 24 de Janeiro), mas fora da sua área de protecção.

A zona onde se localiza o Arraial Ferreira Neto é de características dunares. Como conjunto edificado, o Arraial Ferreira Neto constitui um vestígio de gran-de importância das actividades económicas da Ria Formosa e da Região e um dos poucos testemunhos arquitectónicos das instalações de apoio à pesca do atum de toda a costa algarvia, constituindo um exemplo perfeito da organização so-cial, urbanística e arquitectónica do Estado Novo.

O actual conjunto veio substituir as instalações anteriores, demolidas pelo mar no ano de 1943, existentes na praia do Medo das Cascas, na Ilha de Tavi-ra, mesmo em frente ao local onde se localiza agora o Arraial Ferreira Neto. O

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Arraial foi projectado pelo Eng� Sena Lino em 1943, tendo por base o conceito de uma unidade urbana autónoma, onde pudessem viver cerca de 150 famílias, com a sua zona industrial, as suas oficinas e a sua zona habitacional e de lazer.

O Arraial era o local onde se concentravam os pescadores e família, que duran-te a campanha aí viviam e cuidavam nas oficinas dos materiais e apetrechos neces-sários à faina da pesca do atum. “O Arraial é pois o acampamento da tribo que vai arrancar aquela riqueza ao mar. Todas as famílias interessadas na aventura vivem juntas e acompanham os riscos, as alegrias e os desapontamentos.” Assim descre-via Urbano Rodrigues, no Diário de Notícias, a vida dos pescadores do atum na época.

O Arraial, que é todo murado, apenas com duas portas externas de serviço, foi construído de forma a separar inteiramente a parte industrial da reservada às ha-bitações, que é constituída por dois largos e cinco ruas. O arraial no seu conjunto é um autêntico bairro social piscatório, com o aspecto de “uma aldeia de linhas rústico-portuguesas”, onde habitariam confortavelmente 400 a 500 pessoas, pois oferecia as comodidades e higiene com as instalações adequadas ao exercício da actividade industrial, assim como o conforto necessário ao descanso dos pescado-res e das suas famílias. O Arraial possui edifício escolar, balneário, forno, capela, posto médico, sanitários públicos e clube, além de uma rede completa de esgotos e cinco cisternas com a capacidade de 150.000 litros de água cada uma. Possui ainda um cais de embarque apetrechado com um guindaste manual na foz do rio Gilão.

Os projectos de arquitectura, desenvolvidos no auge do governo do Estado Novo, são um exemplo típico dos racionalistas, de conceitos formais da época, com o seu aprumo volumétrico e a sua métrica “moderna”, o uso de “materiais portu-gueses” (pedra bujardada, telha de canudo, ladrilhos de barro, painéis de azulejo e portas de madeira pintada com aldraba ou postigo de reixa), e as técnicas mais actuais da altura - fundações directas em alvenaria ordinária, escadas em betão, paredes de tijolo cheio rebocado e estruturas da cobertura em asnas de madeira.

Com o declínio das capturas de atum, que se iniciou no ano de 1961, a sua im-portância foi diminuindo até 1970 e 1971, data das últimas campanhas, só se ten-do apanhado um exemplar em cada um desses anos. O Arraial deixou de cumprir a finalidade a que fora destinado e data de então a sua desafectação definitiva.

Todo esse conjunto tem um importante valor patrimonial, não só pela sua unidade e funcionalidade em termos de arquitectura, individualidade marcante na paisagem da Ria Formosa e sua pertença indubitável, mas também por re-presentar talvez o único testemunho de um espaço construído objectivamente para uma actividade económica importantíssima para o país e para a Região, constituindo-se, por isso, em elemento da história e património regional.

O atum é um peixe de migração sazonal. Nos meses de maio e junho, vindo do Atlântico Norte passa pelo Golfo de Cádiz em direcção ao Mediterrâneo para realizar a sua postura anual. É o chamado atum de direito, porque dá a sen-sação de se dirigir direito à costa. Regressa novamente ao Atlântico em julho e agosto, pela mesma rota, com o nome de atum de revés, porque retorna ao mesmo local.

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Fig. 1 - Representação esquemática de uma almadrava1. A zona de formato

trapezoidal, denominada corpo encerrava os cardumes de atum que ao

contornarem as redes exteriores dirigiam-se para dentro do corpo da almadrava,

onde ficavam presos, sem qualquer possibilidade de fuga, até ao momento

do levantamento das redes. (SANTOS,1989:56).

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No território nacional, o Algarve é a região com melhores condições hidro-gráficas para a sua captura, pois fica na rota de ida para o Mediterrâneo e de volta ao Atlântico. Ao longo do litoral algarvio, as almadravas eram colocadas a pouca distância da costa em sentido longitudinal ao rumo do atum, de forma a interrom-per a sua marcha. Este, ao tentar contorná-las, dirigia-se para um compartimento totalmente fechado denominado corpo e aí ficava encurralado sem qualquer pos-sibilidade de fuga. Estando o corpo suficientemente cheio de atuns, os pescado-res içavam-no para a superfície e com uns ganchos metálicos encabados em paus, chamados bicheiros, «fisgavam» os ditos peixes para dentro das embarcações.

A referência documental mais antiga sobre as almadravas em Portugal data de 1305, quando D. Dinis autoriza o seu lançamento a João Momedes e Bonanati e lhe concede um empréstimo de 1500 dobras, mediante o pagamento da dízima e sétima parte dos atuns, espadartes e golfinhos capturados.

Com efeito, a pesca ao atum por meio de armadilhas de rede era conhecida desde da Antiguidade Clássica. No século III a. C. o grego Appianus descrevia na sua obra Haliêutica um método de pesca aparentemente semelhante ao das almadravas. Ele menciona “armadilhas de rede que seguiam pelo mar adentro e em certa altura se fixavam, formando como que casas, com vestíbulos, portas e câmaras interiores onde o peixe era colhido em quantidades apreciáveis”. A des-crição de Appianus não é suficientemente pormenorizada para se poder identi-ficar o aparelho de pesca, no entanto, a introdução das almadravas em Portugal provavelmente remonta ao periodo islâmico.

O próprio termo almadrava, que significa lugar de matança, parece apontar

Fig. 2 - A localização das almadravas na costa algarvia. Nem todas as almadravas

coexistiram em simultâneo. As setas indicam o movimento do atum ao longo do

litoral. (SANTOS, 1989: 48).

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nesse sentido, pois é de origem árabe. Além disso, trata-se de um método de pes-ca há muito conhecido nas comunidades piscatórias de Marrocos. A sua intro-dução no litoral do sul de Portugal poderá eventualmente ser atribuída a grupos populacionais oriundos da costa marroquina que entraram na península aquan-do da presença islâmica no Al-Andaluz.

Essa pesca estava incluída na categoria das Pescarias Reais, tal como a pesca da baleia, golfinho, corvina e espadarte. Eram actividades piscatórias de direi-to real, somente exercidas mediante autorização régia. Os interessados na sua exploração comercial tinham de pagar ao tesouro real 60% sobre o peixe cap-turado. A pesca do atum no Algarve interessou particularmente aos catalães e italianos, sobretudo sicilianos.

Em 1368, armadores sicilianos estabelecidos em Lagos levam a cabo experi-ências visando uma maior eficácia das almadravas; em 1440, D. Duarte arren-dou-as a uma sociedade de sicilianos. Sabe-se, também, que em 1485, catalães e italianos exportavam milhares de arrobas de atum salgado para os seus países a partir do porto de Lagos. Aliás, o atum salgado sempre foi um produto de expor-tação, principalmente para o mercado italiano e catalão.

Motivado pelo seu elevado preço, o mercado nacional nunca foi um grande consumidor de atum. Já em 1505, registra-se um contrato de arrendamento das almadravas entre o rei D. Manuel e um armador italiano, um tal de Bartolomeu “froletim”, na importância de 1.310.504 reis. Em alguns casos, constituíram-se sociedades comerciais com avultadas somas de capital para investirem na pesca do atum. No arquivo municipal de Messina (Sicilia), existem pelo menos três registos da formação de sociedades comerciais, cujo fim era a pesca e comércio do atum algarvio. A participação dos mercadores sicilianos foi bastante incenti-vada, particularmente no reinado manuelino, através de isenções aduaneiras e medidas de protecção económica.

A cada almadrava correspondia um arraial, que era um conjunto de cabanas, onde os pescadores residiam com as suas familias durante a temporada da pesca. Frei João de S. José, na sua obra Corografia do Reino do Algarve, de 1577, descre-ve um arraial de pescadores:

A pescaria deste peixe não só é proveitosa, [...] mas também de muito gosto e desenfado,

porque [...] acode a ela grande soma de pescadores de todo Algarve, com suas mulheres,

filhos e outra chusma e fazem suas cabanas por toda a costa onde estão as armações e con-

tinuadamente acode a eles toda a gente comarcã a lhe trazer todo o mantimento e refresco

necessário e levar peixe, assi deste como d’outro que também ali morre. De maneira que

cada armação parece uma feira. Cada armação não traz menos de 70, 80 homens de servi-

ço, com suas barcas e caravelões pera recolher e levar o peixe onde se há-de dizimar e pagar

os mais direitos, afora os mercadores do reino e d’outros muitos estrangeiros que tratam

nele e o levam a suas terras.

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À medida que as receitas aumentavam com os arrendamentos das almadra-vas, a autoridade real preocupava-se mais com a sua fiscalização. Para melhor ad-ministrar os direitos reais, foi criado o cargo de Feitor das Almadravas em 1498. Os 60% de direitos reais contribuíam com importâncias cada vez maiores para o tesouro da coroa. Os tempos áureos da pesca atuneira perduram sensivelmente até 1619, com rendimentos anuais na ordem dos 10.500.000 a 20.000,000 reis.

Todavia, os valores decrescem drasticamente. Nos três anos seguintes, as receitas reais cifram-se em apenas 8 120 000 reis e daí em diante até 1721, a média dos rendimen-tos andará na ordem dos 800 reis, só havendo notícias de alguma recuperação em 1739.

O Marquês de Pombal pretendendo revitalizar o sector, funda a Companhia Geral das Reaes Pescarias do Reino do Algarve em 1773. Para retirar a pesca do atum da crise foram revistos os tradicionais processos de exploração da actividade, de modo a satisfazer todas as partes envolvidas no trato; rei e armadores. Procedeu--se a uma “revolução” na gestão do negócio pela mão do Marquês de Pombal. Os direitos reais sobre o pescado diminuiu para 20% e o preço do sal das marinhas de Castro Marim e Tavira barateou (900 réis o moio) para a pesca. A Companhia Geral das Reais Pescarias do Reino do Algarve tinha por concessão real a pesca e o comércio em regime de exclusividade de todo o atum na costa do Algarve, sempre renovada até 1836, ano da extinção da empresa.

Com o início do liberalismo económico, após a guerra civil de 1832-34, sur-giram várias empresas de pesca no Algarve, que exploravam uma ou mais al-madravas. O número de almadravas subiu continuadamente ao longo do século XIX, atingindo o número máximo de 19 entre 1898 e 1903. A pesca do atum co-nheceu um período de prosperidade económica até ao fim da I Guerra Mundial. Depois, com a desvalorização dos preços, a concorrência de outras artes de pesca e o decréscimo da afluência do atum, as almadravas foram-se extinguindo gra-dualmente, até que em 1971 desapareceram definitivamente.

Fig. 3 - Vista parcial de um antigo arraial. As cabanas, feitas de junco, apenas

são habitadas nos meses de Abril a Agosto. (SANTOS,1989: 61).

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A captura do atum caracteriza-se pelos profusos movimentos energéticos do peixe, que tenta desesperadamente fugir à morte certa, e pela azáfama dos pescadores que parecem “dançar” na esforço de arpoarem a presa. A água tor-na-se rubra e branca do sangue e da espuma, dando tons vivos ao jogo de mo-vimentos. O “copejo’, espectáculo de cor e acção caótica, conhecido também como a “tourada do mar” despertou a atenção de alguns escritores consagrados da nossa literatura. Raul Brandão foi um deles e descreveu-o do seguinte modo:

Uns homens têm na mão direita a ganchorra curta e afiada, presa ao pulso pela alça, e

outros, armados de um bicheiro mais comprido, só esperam que o atum comece a saltar

para o chegarem aos barcos. Agita-se a água...Vêem-se os grandes dorsos reluzentes e os

rabos que chapinham....Espetam o peixe. Para não caírem à água, deitam a mão esquerda

à corda amarrada ao pau de entrevela, curvam-se e fisgam-nos pela cabeça. O peixe resis-

te e quer fugir: sentido-se preso, ergue-se, apoiado na cauda e é esse movimento de recuo

que ajuda o homem a metê-lo para dentro da caverna, largando logo da mão o bicheiro,

que lhe fica suspenso do pulso pela alça. Baixa-se o homem, ergue-se logo...Os barcos es-

tão cheios de peles luzidias e de manchas gordurosas de sangue. São bichos enormes e es-

corregadios, de grossa de pele azulada, que batem pancadas sobre pancadas com o rabo.

A gritaria aumenta — Eh! Eh!... — É uma mixórdia que me cansa. Só vejo manchas sobre

manchas, sobrepostas, a cor e o movimento, a cor dos homens, a cor dos grandes peixes que se

debatem e morrem e a agitação que se precipita e acelera os gestos confundidos. E sobre tudo

isto um grito, um grito de triunfo, o grito de matança que explode numa alegria feroz, a ale-

gria primitiva: — Eh! Eh!... — num quadro imutável, todo vermelho e negro.... Cheira a açou-

gue. A água tinge-se de sangue, a água pegajosa encharca os barcos. Misturam-se as cores e

as peles escorregadias.... A carnificina enfarta e enjoa.... há laivos nódoas de sangue na tinta

azul do mar.... Imensa tela a tons violentos, com uma agitação frenética no primeiro plano.

Fig. 4 - Os pescadores preparam as âncoras para serem lançadas ao mar.

As âncoras tinham por função prender a grossa rede ao fundo do mar, de modo

a evitar que a almadrava fosse arrastada pelas correntes marítimas. (GALVÃO, 1948:25).

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Fig. 5 - Inicio da levantada, ou seja, do levantamento da rede do fundo do mar.

Como se pode ver na imagem, a rede forma um cerco que encerra dentro de si

os cardumes de atum, não visíveis na imagem porque ainda estão perto

do fundo marinho. (GALVÃO, 1948:120).

Fig. 6 - Fase final da levantada. O levantamento da rede obriga o atum a subir

até à superficie. O cerco fica cada vez mais apertado, a àgua espumosa e o

atum, nervoso, tenta escapar. (GALVÃO, 1948:120).

Fig. 7 - O copejo, isto é, a operação que consiste em colocar o atum dentro

das embarcações. Os pescadores, munidos de ganchos metálicos, denominados

bicheiros, tentam golpear os atuns que passam por perto. (GALVÃO, 1948: 121).

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Fig. 8 - Mais um aspecto do copejo. Os pescadores esforçadamente puxam

o atum para dentro da lancha. (GALVÃO,1948:121)

Fig. 9 - Outro aspecto do copejo. Nesta foto vê-se que são necessários dois

homens para colocarem o atum dentro da embarcação. (GALVÃO, 1948:121).

Fig. 10 - Nesta imagem é bem visível o golpe que o pescador disfere

no atum. (GALVÃO, 1948:122)

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Referências e Notas

· GALVÃO, António Miguel. Um século de História da Companhia de Pescarias do Algarve. Faro: Edição de

Companhia de Pescarias do Algarve, 1948.

· SANTOS, Luís Filipe Rosa. A pesca do atum no Algarve. Loulé: s.n., 1989.

· 1 Almadrava: conjunto de redes de grande dimensão, articuladas entre si, fixas ao fundo do mar e sus-

pensas até à superfície, para a pesca do atum. O vocábulo coexistiu durante alguns séculos com o ter-

moarmação de pesca, ou simplesmante armação, termos do mesmo significado. Caiu em desuso a partir

dos finais do século XVIII e inícios do século XIX, passando somente a vigorar o termo armação de pesca,

actualmente em uso.

Contactar o autor: [email protected]

Contactar a Instituição:

Museu da Pesca do Atum, Hotel Vila Galé Albacora

Arraial Ferreira Neto / 4 Águas, 8800-901 Tavira

E-mail: [email protected]

tel. 28 138 08 00

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O Museu Municipal da Póvoa de Varzim e a preservação da memória da comunidade marítimaThe Municipal Museum of Póvoa de Varzim and the preservation of the memory of the maritime community

Deolinda Maria Veloso Carneiro Directora do Museu Municipal da Póvoa de Varzim. Licenciaturas em História e na Varian-

te de História de Arte (FLUP). Doutoranda em História da Arte (FLUP); Mestre em Estudos

Locais e Regionais (FLUP) “As Procissões na Póvoa de Varzim” (2007); Frequência do

Mestrado em História de Arte (FLUP), (concluindo parte escolar em 1994). Delegada para

o Inventário do Património Artístico da Igreja. Concepção e montagem de Exposições.

José Manuel Flores Gomes Arqueólogo Municipal. Técnico Superior de Arqueologia e Património do Município da

Póvoa de Varzim. Licenciado em História, Mestre em Arqueologia (FLUP). Pós-Graduado

em Gestão Estratégica do Património na Administração Pública e Autárquica. Respon-

sável pelos trabalhos arqueológicos da Cividade de Terroso e pela realização de escava-

ções em Beiriz, Estela, Póvoa de Varzim, Rates (entre 1980 e 2013).

Resumo: O Museu Municipal de Etnografia e História da Póvoa de Varzim foi criado em 1937 sob a tutela do Município da Póvoa de Varzim. A sua génese resultou, em grande parte, do impulso produzido pela 1ª Exposição Regional de Pesca Marítima (Costa de Entre Douro e Minho), realizada no Casino da Póvoa de Varzim em 1936, por António Santos Graça, entre outros. O Museu foi integrado na Rede Portuguesa de Museus - Ministério da Cultura -, na 1ª fase de adesão, em 19 de novembro de 2001.

Palavras-chave: Museu Municipal. Etnografia. Póvoa de Varzim. Pesca e Cultura

Marítima. Portugal.

Abstract: The Municipal Museum of History and Ethnography of Póvoa de Varzim was created in 1937 under the auspices of the municipality of Póvoa de Varzim. Its genesis resulted, in large part, the thrust produced by the 1st Regional Exhibition of Marine Fish-eries (Coast Between Douro and Minho), held at the Casino of Póvoa de Varzim in 1936, by Anthony Santos Grace, among others. The Museum was built in the Portuguese Mu-seum Network - Ministry of Culture - the 1st phase of accession on 19 November 2001.

Keywords: Municipal Museum. Ethnography. Póvoa de Varzim. Fisheries and Maritime

Culture. Portugal.

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1. Missão e Objectivos do Museu

No Museu da Póvoa, desde a sua criação, destacam-se a pesca e a cultura marítima, refletindo também a ascendência de seu 1� diretor, Santos Graça, – proveniente da “classe piscatória” - e autor de O Poveiro (livro de Etnografia marítima, que esteve na base do programa delineado para a exposição no Casino e para o Museu). Concreti-zava-se, assim uma ânsia da maioria dos homens de cultura da região, acolhendo as coleções pré-existentes na Câmara Municipal, Clube Naval, entre outros.

Ao longo dos mais de 75 anos da sua existência, o Museu cumpre a função de guardião da memória da comunidade, ao realizar trabalhos de investigação, exposições, visitas guiadas, apoiar cortejos, representações teatrais, trabalhos arqueológicos, recriações históricas e outras ações.

O Preâmbulo do Regulamento Geral do Museu, publicado no n.� 99 da II Sé-rie do Diário da República, de 23 de Maio de 2006, ao tratar os seus objectivos e “Missão”, apresenta não só a visão museológica do início do século XXI, mas também os propósitos que a direcção do Museu - através do seus diversos diri-gentes - sempre acalentou.

O Museu Municipal de Etnografia e História da Póvoa de Varzim tem como objectivo

o estudo, a conservação e divulgação dos elementos essenciais da cultura material da

região. Este objectivo vem sendo levado a cabo desde 1937 (data da fundação do Mu-

seu) através de exposições permanentes e temporárias; colaboração com a comunidade

(associações culturais e recreativas, instituições de carácter pedagógico, social e cultu-

ral); apoio à investigação e aos organismos de ensino; serviços de informação relativos

ao Património do concelho; serviços educativos, promoção de visitas ao património ar-

tístico, arquitectónico e religioso da cidade e concelho. Todavia, o Museu Municipal de

Etnografia e História da Póvoa de Varzim pretende expandir a actuação museológica

no concelho (através da criação de novos pólos) e sensibilizar ainda mais a comunidade

para o património histórico, etnográfico, artístico, imaterial e natural.

2. História do Museu

O Museu Municipal de Etnografia e História da Póvoa de Varzim foi fundado em 1937, por acção de António dos Santos Graça, insigne poveiro originário da classe piscatória, o qual, observando que as práticas e tradições próprias desse grupo se iam perdendo sem nenhum registo ou recolha, publicara, em 1932: O Poveiro, livro no qual,

[...] apresentava, de forma clara, minuciosa e atraente, a fisionomia cultural da comunida-

de poveira, redescoberta nos seus aspectos mais importantes e originais: a organização so-

cial, o parentesco, a transformação e a mudança, encarando já a Antropologia como ciência

total do homem. (LOPES, 2001).

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Paralelamente,

[...] pode dizer-se que este livro e o seu autor ajudaram a tornar a Póvoa ‘poveira’, criando

referências míticas – no heroísmo dos velhos mestres, ou na identificação de usos e costumes,

tomados por imemoriais, do seu núcleo piscatório – para a identificação bairrista de uma

localidade importante em termos económicos e populacionais que nunca dispusera de relevo

político-administrativo, nem sediara elites tradicionais. (MEDEIROS,1992)

Acrescente-se que o projeto museológico de Santos Graça reforçou ainda a afirmação dessa identidade. Após a edição desse estudo antropológico e etno-gráfico, em Outubro de 1936, realizou-se a: 1.ª Exposição Regional de Pesca Maríti-ma - Costa de Entre Douro e Minho, no Monumental Casino da Póvoa de Varzim, organizada por Santos Graça, pelo Conde de Villas-Boas e o Tenente da Armada José Joaquim da Costa.

Na organização temática da exposição, sente-se a influência de Rocha Pei-xoto, particularmente no destaque dado à cultura material (Etnografia), à Foto-grafia (documento fundamental para o estudo e exposição) e a importância, até aí raramente atribuída, às tábuas votivas1 ou ex-votos marítimos, pintados ou esculpidos (que constituem registos raros da tipologia das embarcações, ilustra-das de forma realista, embora simples).

O Poveiro de Santos Graça funcionou como “roteiro”, usado para ilustrar o II� sector: “A gente da Pescaria”, onde se descrimina os seguintes temas: “A - Antro-pologia e História; B - Etnografia; C - Folclores”, subdivididos em: “Bibliografia (Nacional e estrangeira); Representação; O lar; O trajo; Os Costumes; Cantares; Música e dança; Jogos e diversões”. Por sua vez esses temas são ilustrados, segun-do o Guia Oficial, por: “Monografias; Pinturas e desenhos; Esculturas; Fotogra-fias; Estudos; Ex-votos”2.

A mostra constituiu-se de notável êxito, e o “brilho do cortejo da classe ma-rítima da costa”, motivou um voto de louvor da Câmara à Comissão Executiva3. Finalmente, na sequência daquela exposição – aproveitou-se muito do material recolhido e preparado para a mesma - a Câmara decidiu instalar o Museu Re-gional num local destinado exclusivamente à função de Museu Municipal, com dimensão condigna para acolher todas as peças de valor que pertenciam ao mu-nicípio e abranger todas as temáticas aventadas pelos vários intelectuais e forças vivas locais.

Foi escolhida a única casa “nobre” existente na vila, o “Solar” ou “Casa dos Carneiros”, alugada aos Condes de Ameal, por decisão camarária de 18 de No-vembro de 1936.4 A partir de Dezembro, iniciam-se os trabalhos de montagem do Museu. Procurou-se reunir os mais importantes elementos de interesse his-tórico e artístico, que se encontravam dispersos em diferentes dependências da Câmara e outros serviços públicos5.

Paralelamente, quer o executivo camarário, quer os responsáveis do Museu,

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incentivaram a população em geral e instituições diversas (como a Igreja, Mise-ricórdia, empresas, associações, etc.) a oferecer os objetos considerados de impor-tância histórica, etnográfica e pedagógica, para o enriquecer e melhorar, conju-gando as aspirações de todos6 e refletindo os esforços anteriores para se criar um Museu da Póvoa de Varzim. A Câmara solicitou diretamente a oferta ou depósito a instituições, como fez ao Diretor dos Faróis, em Caxias, que entregou os Mapas e miniaturas que estiveram expostas na 1.ª Exposição Regional de Pesca Marítima. Ao longo do primeiro semestre de 1937, sob a direção de Santos Graça, foram-se reunindo e organizando as coleções e recolhendo os depósitos, como os da Miseri-córdia para a Sala das Crenças (LOPES, 2001:2).

A ação do Club Naval foi exemplar, por solicitação da Câmara, aceitou “depo-sitar no Museu as medalhas do Cego do Maio e vários quadros deste Club, com a condição, porém, de esses objetos voltarem ao Club, se o Museu deixar de estar aberto ao público”7 Também a Comissão Executiva da Primeira Exposição Regional de Pesca Marítima, ao dar por encerrados os seus trabalhos, entregou à Câmara “a importância de dois mil seiscentos e quatro escudos vinte e nove centavos – cinquenta por cento do saldo líquido da Exposição, destinada ao Catálogo em elaboração, e ainda todos os objetos que a mesma Comissão adquiriu e que são destinados ao Museu Regional”8.

O museu foi inaugurado em 25 de Julho de 1937, sendo “apresentado ao públi-co como um repositório de usos, costumes e tradições dos pescadores poveiros e de toda a costa norte do País” (LOPES, 2001:2). Santos Graça foi nomeado oficial-mente Diretor do Museu Etnográfico Municipal em 23 de Fevereiro de 19399. Devido ao respeito e amizade que Santos Graça granjeara junto à comunidade piscatória e parte da elite cultural da terra, bem como dos veraneantes, o museu estabele-ceu fortes ligações com todos e colaborou em atividades de índole cultural por todo o norte, participando em exposições – como a Exposição Marítima do Norte de Portugal, no Palácio de Cristal do Porto, em 193910, cortejos etnográficos, etc.

Apesar da falta de verbas (que justificam que o Diretor não recebesse qual-quer remuneração), o museu não ficou estagnado e a Câmara foi aprovando a aquisição de peças consideradas fundamentais, como é o caso das portas da Capela de Nossa Senhora da Bonança, de Fão, que se encontravam no Instituto de Antropologia do Porto11; foi-se tentando recuperar alguns objetos do “Museu Regional” que tinham sido entregues ao Liceu12 e fazendo algumas obras consi-deradas indispensáveis13.

Desde o início, era patente a inadequação do edifício à nova função. Santos Graça, no entanto, conseguiu criar um Museu que durante anos foi considera-do modelar em termos da Etnografia Marítima e milhares de visitantes percor-reram esse Museu e guardaram uma agradável lembrança da forma como este mostrava as tradições e as artes dos pescadores e agricultores poveiros.

As cenas do quotidiano da vida poveira - desde o nascimento até à morte, a faina, os modelos de barcos de pesca e salva-vidas, as tradições, religiosida-de e crendices - tornaram-se num dos principais focos de interesse, a par das

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medalhas do Cego de Maio, dos retratos deste e outros heróis, simples, mas orgulhosos, pescadores.

A vocação etnográfica marítima do Museu era evidente, mas também nele se encontravam peças arqueológicas e artísticas, exemplares de escultura, pintura, desenho e gravura (a maioria de cariz religioso), cerâmica (azulejo, faianças de uso doméstico populares e eruditas), mobiliário, fotografia, mapas e projetos, mobiliário, traje, meios de transporte, letras de músicas tradicionais ou os obje-tos mais diversos do bric-a-brac.

Na exposição polifacética do museu de região, conservou-se, até final do século XX, um espaço onde se encontravam as amostras de “geologia”, “zoologia”, e “fau-na”, peças que se pretendiam embrionárias de um “Museu de História Natural” (marcado pela vertente naturalista, destacando as espécies da fauna da região, em particular da ictiologia), que Rocha Peixoto considerava ser o mais útil para a formação da população poveira.

No Museu encontrávamos a “tartaruga-de-couro”, focas, aves marinhas e ou-tros animais embalsamados; mas nunca foram essas peças as mais marcantes, nem as recordadas pelos saudosistas ou articulistas. A “tartaruga Alaúd” consti-tuía um inquestionável sucesso, mas era-o devido ao aspecto exótico de “Mons-tro”, assim como algumas fotografias expostas de outros espécimes raros, ou de grandes dimensões, que constituíam um registo de “fenómenos”, ou “gabinete de curiosidades”. No entanto o gosto pela Fotografia de Rocha Peixoto e a cons-ciência da importância do registo fotográfico para o estudo da arte e etnografia (e, consequentemente a sua utilização no discurso museológico), foi uma das suas mais perduráveis “heranças” .

As doações sucediam-se incentivadas por frequentes notícias nos jornais lo-cais, escritas pela mão de Santos Graça. No Museu, o Mestre entalhador Quilores e família desdobravam-se na montagem e manutenção das salas, acarinhando o Museu e os visitantes. Às suas mãos hábeis se devem as dezenas de miniaturas que ilustravam os jogos tradicionais e outros costumes da vida poveira.

A morte de Santos Graça acarretou uma lenta agonia para o Museu. As con-dições do edifício degradavam-se rapidamente, as colecções estavam em risco. Em Janeiro de 1974, a Câmara adquiriu o edifício do Solar dos Carneiros. As co-lecções do Museu foram guardadas e iniciou-se o processo de renovação e alar-gamento do edifício. Mas, mesmo enquanto esteve encerrado manteve-se activo e foram montadas várias mostras.

O Museu, reaberto em 7 de Setembro de 1985, não dispunha de exposição permanente, foi sendo ocupado por exposições temporárias, que abordaram os mais diversos aspectos da História e Etnografia da comunidade poveira ao longo dos tempos. No entanto, reconstituíram-se algumas salas com os anti-gos modelos das cenas da vida poveira e a “cozinha tradicional” devido aos insistentes pedidos dos visitantes, que queriam rever e mostrar às novas ge-rações as tradições e modo de viver de outros tempos, conservando um sector como: o “Museu do Museu”.

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A última “lancha poveira” - embarcação emblemática da comunidade de pes-cadores da Póvoa - tinha apodrecido ingloriamente à beira-mar. Esse triste fim fez surgir entre a comunidade poveira - encabeçada pelo Diretor do Museu, o Sr. Manuel Lopes - o desejo de construir não uma réplica, mas uma “autêntica” nova lancha, aproveitando a arte e os saberes de velhos carpinteiros navais, que haviam construído, na sua juventude, as últimas lanchas. Num esforço comum do município e de associações locais, o projeto da lancha iniciou-se e, num es-taleiro aberto a todos, foi sendo erguida segundo todos os procedimentos tradi-cionais e registado em fotografia as diferentes fases do processo. Abençoada e lançada à água num autêntico arraial - com velhos mestres, pescadores e “pesca-deiras”, bem como milhares de curiosos - a nova lancha foi “botada ao mar” em 1991. Desde então a Fé em Deus tornou-se num ícone da Póvoa e navegou a terras da Galiza, esteve na Expo 98, em Lisboa, percorreu quase toda a costa portuguesa e participou em diversos encontros de embarcações tradicionais, nomeadamen-te em Brest.

Atualmente realiza saídas de mar – quando existem condições adequadas - com públicos de todas as idades e realiza diversas atividades de divulgação no porto de pesca da Póvoa e outros vizinhos.

A abertura do Núcleo de Arqueologia, em 1997, numa sala do Museu Mu-nicipal veio revelar os resultados dos trabalhos arqueológicos realizados em estações arqueológicas concelhias de que se destacam os achados em Beiriz, na Cividade de Terroso, Vila Mendo Estela e Rates.

Uma candidatura apresentada ao Plano Operacional de Cultura (POC) em 2003, originou a construção de um Núcleo Museológico da Igreja Românica de S. Pedro de Rates (centro de interpretação e estudo), inaugurado em 10 de Julho de 2004, o qual contribuiu para a valorização turística e cultural do espaço em que se insere o monumento, a medieval vila de Rates.

No seguimento dessa estratégia de criação de uma rede de pólos museológi-cos, que apresentam ao visitante os aspectos mais importantes e paradigmáticos deste concelho, em Julho de 2004 abriu-se ao público um Centro Interpretativo na Cividade de Terroso. Essa estação arqueológica da Cultura Castreja do Noroeste Peninsular (com vestígios da Idade do Bronze, Idade do Ferro, Romanização e Alta Idade Média) foi objecto de uma intervenção de conservação e consolidação de estruturas, continuando a realizar-se trabalhos, que, todos os anos, permitem a largas dezenas de jovens o contato com a arqueologia.

A partir de 2007, em colaboração com outras entidades públicas e privadas, produziram-se, além das normais exposições, ações marcadas por um cariz lúdi-co-cultural, abrindo mais ao exterior a atividade do Museu:

– Efetuaram-se percursos a pé e sessões de esclarecimento alusivos aos “Cami-nhos de Santiago” - particularmente relacionados com Rates, onde funciona um albergue de peregrinos;

— Realizaram-se sessões de História ao Vivo nos Centros Históricos do Concelho;

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— Colaborou-se, com a paróquia da Matriz, na reconstituição de uma procissão de 1757, integradas nas comemorações dos 250 anos da “nova” Igreja Matriz da vila da Póvoa de Varzim;

— Recordou-se a passagem de D. Manuel I por S. Pedro de Rates a caminho de Santiago de Compostela em 1502, com a realização de uma feira e os folgue-dos associados à passagem do cortejo real. Reproduziram-se trajes inspirados nas pinturas, iluminuras e gravuras da época e procurou-se recordar as per-sonagens que seguiriam numa viagem real e as que existiam em Rates neste período, nomeadamente o abade João de Sousa. Em 2008, foi Tomé de Sousa, 1.� Governador Geral do Brasil, que serviu de mote para o cortejo, jantar e feira realizados;

— Na Cividade de Terroso pretendeu-se apresentar o modo como os seus habi-tantes castrejos na Idade do Ferro (c. 140 a.C.) viviam, trabalhavam e aprovei-tavam os recursos do meio, nomeadamente através da pesca, recolha de ma-risco, agricultura e pecuária, bem como as influências e contactos externos (nomeadamente comerciantes púnicos e romanos). As atividades encenadas e os trajes confeccionados foram inspirados num texto retirado do livro III da Geografia do grego Estrabão, do século I d.C. e nos vestígios descobertos nos trabalhos de escavação. Em 2009 recordou-se o período da romanização;

— Criou-se um teatro de marionetas e uma peça inspirada no viver da comuni-dade piscatória - realizado pelos “Mandrágora” – “O Homem que falou com os Peixes”. Ainda no âmbito da dramatização têm sido apresentadas recriações do Serão Poveiro, exibição de trajes históricos / tradicionais e sessões com contadores de histórias.

A intensa atividade promovida pelo Museu / Pelouro da Cultura do Muni-cípio da Póvoa de Varzim revelou a insuficiência do espaço disponível para as exposições, reservas, zonas de trabalho e serviços educativos.

No final do ano 2006, decidiu a Câmara Municipal da Póvoa de Varzim apre-sentar candidatura ao POC, com o projeto denominado: “Valorização e Amplia-ção do Museu Municipal da Póvoa de Varzim”, destinada a obra e equipamento. O projeto foi aprovado e executado durante o ano de 2008, sendo da responsabi-lidade do Departamento de Obras Municipais a elaboração e acompanhamento técnico do projeto de arquitetura. Esses trabalhos permitiram ampliar e renovar as áreas de exposições permanentes e temporárias, assim como outras zonas pú-blicas de serviços (Auditório, Serviços Educativos, Biblioteca e cafetaria), pos-sibilitando melhorar a sequência temática apresentada no espaço expositivo. Novas vitrinas – resistentes e versáteis - foram criadas especificamente para este museu, permitindo melhorar e atualizar as condições de apresentação das cole-ções, diversificando as temáticas em exposição.

Ampliaram-se as áreas de acesso reservado, novos espaços de trabalho (ofi-cinas de restauro e gabinetes de investigação) e reservas - criando um sector de reservas visitáveis. A ampla cobertura do pátio interior, permitiu criar um

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espaço aprazível para os serviços educativos e realização de eventos de carácter cultural. A melhoria das acessibilidades ao Museu, facilitou a fruição do espaço a públicos com limitações físicas, que antes não dispunham das condições ade-quadas para realizar as visitas.

Com a implementação deste projeto, pretendeu-se resolver a maior parte dos problemas, melhorando quer os meios de conservação preventiva e tratamento do acervo do Museu, quer as condições de acolhimento e recepção dos visitan-tes. O novo percurso de exposição segue, ao contrário do anterior, um percurso cronológico coerente, começando pela geologia e definição do território, decor-rendo, de seguida, pela mais remota antiguidade, com especial relevo no povo-amento proto-histórico e romanização, proporcionando-lhes a possibilidade de conhecer o património, a história e a etnografia das comunidades que ocuparam o território onde hoje se encontra implantado o concelho da Póvoa de Varzim.

Uma anforeta do século XVI (?) recolhida no mar e uma imagem em pedra de Ançâ de S. Pedro Gonçalves Telmo (patrono os mareantes, do mesmo sécu-lo), fazem a transição da “sala da Arqueologia”, para a “sala do Mar”, onde são apresentados objetos ligados à arte da pesca. Encontram-se duas embarcações tradicionais, conhecidas por “catraias” - uma das quais com vela erguida e total-mente equipada para a pesca -; um “salva-vidas” de final do século XIX, um dóri (da pesca do bacalhau) e uma “chata” do século XX.

O tema das “Siglas Poveiras” está didaticamente apresentado, para facilitar a sua compreensão. Conservaram-se os antigos “modelos” que recriam ambientes da comunidade piscatória, em “quadros” com a “Casa Poveira” (onde se realizava o “Serão”), o “Casamento”, “Romaria”, “Saída da Barra” ou o “Luto”. Exemplares de traje local, religiosidade popular, pintura naif e fotografias, ilustram e com-plementam a exposição. Gravuras e textos de O Poveiro e outras publicações, pinturas, esculturas, e um diversificado espólio encontrado nas escavações da “Casa dos Carneiros” vão ilustrando a história do lugar.

Na sala da “Capela” está exposto um numeroso conjunto de ex-votos pintados e escultura (em prata, ou cera), a que se segue uma sala ao gosto neoclássico, com mobiliário do séc. XVII a XIX, sob um belo tecto de estuque bem conservado.

Na sequência dessas, o percurso segue por salas de exposição temporária, onde se vão realizando diferentes mostras visando ilustrar o devir histórico da região, mediante a apresentação de uma grande diversidade de peças da arte ci-vil e religiosa, erudita ou popular, dos séculos XVI ao XX.

No final do percurso, com acesso ao pátio - para facilitar as atividades do serviço educativo - encontra-se as salas com: os jogos tradicionais, brinquedos e modelos de casas: uma castreja, com o seu espaço envolvente; uma casa da co-munidade piscatória e uma antiga “Casa da Lavoura”.

3. Exposições e atividades: problemáticas e tipologia

A vertente da investigação constituiu sempre a base do nosso trabalho. Assim se

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compreende que um livro – O Poveiro (1932) - fosse a base do programa inicial, mas outros estudos motivaram a realização de novas e originais exposições temporárias, bem como o paulatino enriquecimento da exposição permanen-te, a par da implementação de outras atividades de investigação e divulgação do património da região. Assim, há mais de 75 anos que o museu tem vindo a renovar e a produzir o seu próprio mundo de objetos, situações e ideias, atra-vés de uma pesquisa dinâmica dos aspectos mais salientes da História, arqueo-logia, Arte e Etnologia da região, sendo divulgados em dezenas de exposições, como As Siglas Poveiras (1980); “O Traje Poveiro – o modo como se vestiu uma comunidade marítima nos dois últimos séculos” (1981- 1983); - A Lancha povei-ra e as suas relações com a técnica tradicional de construção Mediterrânica (1991); - S. Pedro de Rates: Lenda, Arte e Arqueologia (2000); - Opera Fidei. Obras de Fé num Museu de História (2002); Obras de Misericórdia (2005); - Subtus Montis Ter-roso. Cem anos de arqueologia na Cividade de Terroso. 1906 - 2006 (2006); - Rocha Peixoto, Museólogo, Arqueólogo e Colecionador (2009); Recriações Históricas (2011); INTERIORES. Por cima da pele e por baixo do vestido (2012), que deram origem à edição de livros, ou tiveram os seus catálogos publicados no Boletim Cultural Póvoa de Varzim (1955 - 2013).

A colaboração dos técnicos superiores do Museu no Inventário do Patrimó-nio Artístico Religioso do Arciprestado de Vila do Conde / Póvoa de Varzim (Ar-quidiocese de Braga), refletiu-se em exposições, publicações e cursos realizados a partir de 2002.

Outro vector básico e orientador encontra-se na abertura, ligação, colabo-ração e interação, com a comunidade local - uma constante desde a fundação – que motivou a colaboração do museu em cortejos, festas, teatros, cinema e ou-tros projetos dos “fregueses” - estabelecendo-se como um local a que se recorre quando se precisa de informação sobre qualquer aspecto relativo ao património local, quando se precisa de réplicas de trajes antigos, ou acessórios. Essa relação de confiança motivou que fossem oferecendo e depositando no museu os mais diversos materiais e registos que sobreviveram a esta era de rápidas mudanças, mantendo, naturalmente, a vocação de guarda da memória da comunidade e estabelecendo-se como local de referência, de visita e lazer, de uma comunidade.

A colaboração com estudantes dos diversos graus de ensino tem sido cons-tante, acolhendo estagiários e apoiando trabalhos de investigação de estudantes e professores, tendo estabelecido protocolos de colaboração com várias escolas e universidades [Universidade do Porto, Instituto Fernando Pessoa, Universida-de Portucalense], cooperando em sessões de História ao Vivo, orientando visitas guiadas. Também instituições de solidariedade social como: Misericórdia; MA-PADI; Beneficente, entre outras, têm contado com apoio nas suas atividades de carácter lúdico-cultural.

A realização de visitas de estudo ao Museu, à Cividade de Terroso, Igreja de Rates e ao património do concelho, trabalhos de inventariação e estudo do património da região, os projetos educativos, bem como os apoios prestados a estudantes e

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investigadores, reflete uma vontade clara de colaboração no estudo e defesa do Património Cultural e Natural.

O Museu conta, ainda, com a colaboração ativa e prestimosa do GAM - Gru-po de Amigos do Museu - fundado em 1982, que tem vindo a prestar apoio nome-adamente no financiamento de trabalhos de restauro especializado de obras de arte, na produção de réplicas exatas de trajes tradicionais e peças de artesanato – como a camisola poveira - para venda no Museu. Colabora também, com apoios diversos e voluntários, nas iniciativas realizadas no Museu. Incentiva, ainda, a realização de visitas de estudo a outros museus e exposições.

4. O Futuro

Foi recentemente noticiada a possibilidade de o Município adquirir uma antiga fábrica de conservas localizada junto ao porto de pesca da Póvoa, para aí se insta-lar uma extensão do Museu Municipal. Este projeto - que se encontra em análise e estudo nas vertentes económica, da arquitetura, e da museologia - permitiria dotar o concelho de um novo espaço museológico esplendidamente situado. O pré-programa museológico pretende preservar a memória da atividade conser-veira, com origens comprovadas na região desde ao período romano, mas tam-bém dar a conhecer ao público, de modo interativo e vivo, todo o ciclo de vida da comunidade “pescadeira” da Póvoa: as suas gentes, os seus hábitos e tradições, os seus objetos do quotidiano, as artes as “conhecenças” e os aprestos da pesca bem como os peixes e mariscos que a sustentavam, e toda a cultura imaterial que os rodeava. Será ainda focada a relação com a outra Póvoa, a dos “peixes de coiro”, comerciantes, artesãos, clero, e administração bem como dos banhistas que todos os verões acorriam à Póvoa para curar suas maleitas.

Pretende-se que o vasto espaço acolha as coleções marítimas e etnográficas ligadas ao mar e que aqui se perpetue, em condições mais adequadas e de maior dignidade, os usos e modo de viver de uma comunidade de características úni-cas, sabiamente estudada por Santos Graça e muitos outros etnógrafos. O espaço permitirá uma mais fácil abertura ao público em geral, com a criação de ateliers de artesanato, espaços de convívio e troca de informações e experiências com a comunidade piscatória e outras. Será dado especial destaque à diáspora poveira que levou pescadores, e não só, às mais remotas partes do mundo, mantendo sempre uma especial atenção e saudade pela sua terra.

As novas instalações permitirão, ainda, aprofundar algumas atividade como a recolha de registos do imaterial e de vida em áudio e vídeo, com poveiros (de origem, ou adopção) que assistiram à evolução da cidade e que, através das suas vidas pessoais, compõem a história e da região.

Em suma deseja-se que este “Museu do Mar da Póvoa” seja um espaço de me-mória e reflexão sobre o passado, o presente e o futuro dos “poveiros pela Graça de Deus”, em harmonia com o Mar. C

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Referências e Notas

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gestor e difusor de Património”, In: Actas do Seminário: “Conhecer o Património de Vila Franca de Xira”.

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· CARNEIRO, Deolinda Maria Veloso. “Património Artístico e Arquitectónico da Póvoa de Varzim - do

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Arciprestado de Vila do Conde / Póvoa de Varzim. Catálogo da Exposição. Póvoa de Varzim: Câmara Muni-

cipal da Póvoa de Varzim / Museu Municipal, p. 71 - 108. 2002 - 2003.

· CARNEIRO, Deolinda Maria Veloso - Rocha Peixoto e o(s) Museus(s) na Póvoa de Varzim. Póvoa de Varzim

- Boletim Cultural. Póvoa de Varzim: Câmara Municipal da Póvoa de Varzim. Vol. 44, p. 64 - 117. (2010)

· GRAÇA, António dos Santos - O Poveiro. Usos, costumes, tradições e lendas. 3. ed. (1. ed.: 1932). Lisboa:

Dom Quixote, 1992.

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mónio arquitectónico e Arqueológico Classificado. Lisboa: Instituto Português do Património Arquitectóni-

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· LOPES, Manuel José Ferreira - Museu Municipal de Etnografia e História. Síntese cronológica. 1979 - 2001.

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· LOPES, Manuel - “Novos textos sobre o Museu Municipal de Etnografia e História da Póvoa de Varzim”.

- Boletim Cultural. Póvoa de Varzim: Câmara Municipal da Póvoa de Varzim. Vol. 25 (1987), p. 479 – 505.

· MOTA, Maria João Fontes de Sousa de Abreu [Organizadores: J A Dias & N Dias] - Roteiro de Museus (Co-

lecções Etnográficas). Região Norte. Lisboa: Olhapim, 2001. Vol. 4. p. 137 - 145.

· MUNICÍPIO DA PÓVOA DE VARZIM - Regulamento Geral do Museu Municipal de Etnografia e História da

Póvoa de Varzim”, in Diário da República. II Série, n� 99 (23 de Maio 2006) (apêndice n.� 46).

· PEIXOTO, António Rocha - “Ethnographia Portugueza. Tabulae Votivae (excerpto)”. Portugalia. Porto.

Vol. II, fac. 1 a 4 (1905), p. 187- 212. s/a - 1.ª Exposição Regional de Pesca Marítima (Costa de entre Douro e

Minho). Guia Oficial, Póvoa de Varzim, 1936.

· SILVA, Manuel Gonçalves da - A Velha Póvoa de Varzim (Subsídios para a História local), I - A Casa dos

Carneiros; II - Resenha Genealógica dos Carneiros. Póvoa de Varzim: Livraria Povoense, Ed., 1935.

· VIANA, Maria Teresa Pereira - Um Programa «Ambicioso» para o Museu da Póvoa, in Actas do Colóquio

«Santos Graça» de Etnografia Marítima (realizado de 22 a 24 de Outubro de 1982 na Póvoa de Varzim).

Póvoa de Varzim: Câmara Municipal da Póvoa de Varzim, vol. 1, p. 217 - 229. 1984.

· 1 Naquela época foi ainda devido à influência de Rocha Peixoto que se deu tal destaque a essas peças de

arte (normalmente) popular. Aliás dos fundamentais trabalhos de Rocha Peixoto, citado e apreciado

por todos os que analisaram este tema, é: PEIXOTO, António Rocha - “Ethnographia Portugueza. Tabu-

lae Votivae (excerpto)”. In: Portugalia, vol. II, fasc. 1 a 4, Porto, 1905, p. 187- 188.

· 2 Primeira Exposição Regional de Pesca Marítima (Costa de entre Douro e Minho). Guia Oficial, Póvoa

de Varzim, 1936

· 3 Ap. Doc. Arquivo Municipal da Póvoa de Varzim (AMPV), Doc. n.� 18.

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· 4 Ap. Doc. AMPV, Doc. n.� 19.

· 5 A coleção de faianças (dos séculos XVI a- XIX) e mobília adquirida às herdeiras de Rocha Peixoto (et-5 A coleção de faianças (dos séculos XVI a- XIX) e mobília adquirida às herdeiras de Rocha Peixoto (et-A coleção de faianças (dos séculos XVI a- XIX) e mobília adquirida às herdeiras de Rocha Peixoto (et-

nógrafo, arqueólogo e fundador da Revista Portugália) em 1910 e as peças recolhidas aquando da de-

molição da primitiva igreja Matriz [1916 – 1918] e outras, cedidas pela Santa Casa da Misericórdia, etc.

· 6 Entre outras recolhem-se as coleções de Arqueologia e História do Museu do Padre Brenha (catalogadas e

divulgadas por Cândido Landolt, em 1893).

· 7 Ap. Doc. AMPV, Doc. N.� 20. O acervo do “Museu do “Club Naval Povoense” - inaugurado em 1907 -

denominado “Museu Regional” fora oferecido à Câmara Municipal em 1909, com a condição de ser

designado como “Museu Rocha Peixoto”;

· 8 Ap. Doc. AMPV, Doc. n.� 21.

· 9 Ap. Doc. AMPV, Doc. n.� 23. “sem direito a qualquer remuneração pelo exercício do cargo para que

agora é nomeado.”

· 10 Ap. Doc. AMPV, Doc. n.� 24.

· 11 As portas eram importantes para a exposição das siglas “por estarem cobertas de siglas poveiras e que

foram oferecidas pelo ilustre Director daquele Instituto Senhor Doutor Mendes Correia. O seu custo é

de oitenta escudos. ” Ap. Doc. AMPV, Doc.n.� 22.

· 12 Ap. Doc. AMPV, Doc. n.� 25.

· 13 Ap. Doc. AMPV, Doc. n.� 26.

Contactar os autores: [email protected] · [email protected]

Contactar a Instituição:

Museu Municipal de Etnografia e História da Póvoa de Varzim / Casa dos Carneiros

Endereço: Rua Visconde de Azevedo, n.º 17. 4490 – 589 Póvoa de Varzim.

E-mail: [email protected]

Telef. : 252 090002. Telem. 915089970

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Museu do Trabalho Michel Giacometti: entre o edifício e a comunidade – projectos que estreitam relaçõesMuseum of Work Michel Giacometti; the museum and its communities – projects that reinforce relationships

Maria Miguel CardosoAntropóloga. Museu do Trabalho Michel Giacometti. Universidade Nova de

Lisboa - Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. Instituto de Estudos e Literatura

Tradicional (IELT)

Resumo: Este artigo procura reflectir sobre o património imaterial, e a noção de cons-trução que lhe está implícita, através da apresentação de dois projectos que desenvol-ve, com a comunidade envolvente. Estes dois projectos, Tardes Interculturais e Centro de Memórias, direccionam-se, respectivamente, para comunidades especificas, de emi-grantes e marítimos, recorrendo a metodologias que evocam o trabalho em parceria.

Palavras-chave: Imaterialidade. Comunidades. Memoria e Museu.

Abstract: This article aims to do some reflections on the concept of intangible heri-tage, and the implicit notion of construction, throughout the presentation of two Projects that are developed with the surrounding community. Both projects, the In-tercultural Afternoons and the Memories Centre, are directed to specific and distinct communities. The first one concerns the emigrant communities and the second one is directed to the local Fishermans and to the canning industry. These projects demand the use of different methodologies that call for work in partnership.

Keywords: Intangible. Communities. Memory and Museum

1. O Museu do Trabalho Michel Giacometti. 1.1 Caracterização e acção. Considerações

Tutelado pela Câmara Municipal de Setúbal, o museu foi inaugurado a 18 de Maio de 1995, nas antigas instalações da Fábrica de Conservas Alimentares de M. Perienes Lda. É constituído por três exposições de carácter permanente; a colec-ção Michel Giacometti, um conjunto notável de alfaias agrícolas e objectos do quotidiano rural representativos da cultura material de Portugal, recolhidos durante o Serviço Cívico estudantil no Verão quente de 1975, acção orquestra-da por Michel Giacometti; a exposição “Da Lota à Lata”, uma representação da cadeia operatória do fabrico da conserva e ofícios relacionados com a mesma, como a Litografia, a Latoaria e a Fundição; e, por último, a Mercearia Liberdade,

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estabelecimento centenário doado pela família Coluna Gonçalves e reconstruí-do no interior do museu.

Essas três exposições permanentes representam os três sectores do mundo do trabalho e constituem o lastro identitário do museu. Partindo dessas, o mu-seu elabora e renova permanentemente a sua missão, tendo como principais objectivos o estudo, a preservação e a divulgação de técnicas, relacionadas com o mundo do trabalho, assim como a valorização e divulgação dos códigos da his-tória local, dos patrimónios, das memórias e das identidades.

Esta enunciação não é vã. Estamos cientes de que os conceitos que tendem a reunir o todo são na realidade altamente diferenciados e hierarquizados no seio dos grupos que nos envolvem. As identidades e memórias não são unas, nem os patrimónios e as formas de identificação com os mesmos. Atender à especificidade de cada um é absolutamente necessária na compreensão do todo de que se reveste a imaterialidade.

Os objectivos de salvaguarda do Património Cultural, apreendido de forma holística nas suas múltiplas vertentes (materiais e imateriais), evidenciam a ne-cessidade de promover acções especificas por parte dos museus, contemplando os seus níveis funcionais, desde a investigação científica, documentação, registo, comunicação, educação e difusão, consagrando-se como agentes privilegiados na constituição de inventários, arquivos, acções de divulgação e planos de salvaguarda, num quadro de actuação qualificada e na articulação próxima das comunidades em que se inserem. Importa ter presente que o caminho mais importante tem sido, em nosso entender, a tomada de consciência e sensibilização de um património cultural imaterial, bem como a (re)adequação dos sentidos do museu para darem resposta às questões ambíguas de que se reveste a nomeação do Património Ima-terial. Depende largamente dos museus, de cariz local, a aplicação da convenção e o consequente empowerment das comunidades envolventes.

A Convenção impulsionada pela UNESCO atribui um lugar central aos detento-res do património, numa perspectiva de bottom-up nos processos de representação e transmissão do conhecimento, apelando à descentralização e à participação das comunidades. Se por um lado implica repensar, efectivamente, em quem possui o poder e os recursos sociais para controlar os processos de objectificação cultural (HANDLER, 1988, 2003), por outro, o impacto que o reconhecimento do Património Imaterial tem no seio das comunidades pode conduzir à adopção de novos significados culturais, numa perspectiva de património enquanto processo metacultural (KIRSHENBLATT-GIMBLETT, 2004).

Toda e qualquer intervenção sobre o património modifica a relação das pessoas com o mesmo património, a maneira como concebem a cultura e a si próprios, bem como as condições básicas de produção e reprodução cultural. A mudança é inerente à cultura, bem como o tempo que se assume como um factor essencial à natureza metacultural do património, no sentido em que qualquer acção de protecção pode parar, de uma forma ou de outra, esse mesmo ritmo de mudança se não forem tidos em conta a natureza dos processos intrínsecos à cultura.

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A mobilização da participação das comunidades pode evidenciar uma nova reestruturação desses mesmos grupos, dado que os esforços para associar as comu-nidades reconhecendo o seu protagonismo local poderão exigir a formalização de relações sociais contrárias à sua própria tradição de constituição informal. Decidir quem fala em nome de quem não será portanto uma tarefa que não incorra num certo enviesamento das próprias relações pré-estabelecidas (KURIN, 2004).

Num nível de observação mais lato, os desafios que se colocam à actuação desse domínio patrimonial incidem, de igual modo, nas abordagens de produção, representação e consumo cultural (para a própria comunidade ou para o exterior), intrinsecamente relacionadas com os processos de objectificação, turistificação e mercadorização cultural. Este trabalho de cooperação entre comunidades e os seus patrimónios, que terá que ser empreendido entre os próprios e os agentes locais, (re)afirma e (re)significa o papel dos museus e do próprio património na contemporaneidade, colocando desafios que vão, possivelmente, além das suas capacidades1. Esta forma de produção cultural, com recurso a um passado remis-turado no presente (LOWENTHAL, 1989), deverá ser sempre perspectivada tendo em conta a construção que lhe está implícita.

O Património terá, na contemporaneidade, que ser entendido como um modo de produção cultural que recorre ao passado e produz algo de novo, sendo cria-do a partir de operações metaculturais que se estendem dos valores e práticas museológicas às pessoas (KIRSHEMBLATT-GIMBLET, 2004) . Profissionais e técnicos usam conceitos, parâmetros e regulamentos para trazerem os fenómenos culturais e seus praticantes à esfera do património, onde estes se tornam arte-factos metaculturais através da aquisição de novos sentidos. Os seus performers, especialistas dos rituais, e artesãos, assistem ao processo de transformação dos seus bens culturais em património, experienciando também nova relação com os seus bens, uma relação também ela metacultural, com aquilo que foi outrora o seu habitus (BOURDIEU, 1992, KIRSHENBLATT-GIMBLET, 2004). Estas acepções acarretam ainda um outro paradoxo. Estes processos de patrimonialização, pelo que já foi referido, recorrem a signos e significados do passado, que atrasam, em certa medida, a mudança cultural inerente a qualquer sistema, no entanto, são na contemporaneidade, são encarados como sinónimos de modernidade.

Esta utilização reveste-se da duplicidade problematizada por Augusto Santos Silva (1994): o uso da tradição, enquanto instrumento cultural básico, serve quer os movimentos que contrariam a mudança, quer aqueles que pretendem incorporá--la, controlá-la e agarrá-la. As implicações destes fenómenos nos locais desenham, para Elsa Peralta (2006) e em consonância com o proposto anteriormente, uma necessidade recente de inscrição das comunidades num espaço e tempo latos, a uma escala maior. Esta necessidade tem vindo a activar a procura de repertórios patrimoniais que remetem para uma visão cada vez mais difusa do passado, que se afirma cada vez mais como contemporâneo e democrático.

A diversidade cultural e (des)diferenciação, centrou-se no quotidiano dos comuns mortais, proliferando e desdobrando a História nas múltiplas estórias que

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relacionam o presente com o passado. Esta viragem tem amplificado o leque de objectos e práticas dignos de preservação, caminhando para um progressivo in-vestimento nos patrimónios de base local, focalizados e facilmente inteligíveis. Importa, a nosso ver, estarmos conscientes destes processos que operam e nor-teiam as acções que promovemos, os projectos que temos sedimentado ao longo dos anos com quem nos envolve e abraça, numa contínua mediação de confiança e reconhecimento mutuo.

1.2 Da teoria à prática: apresentação de dois projectos com a comunidade.Tardes Interculturais (2004-2013)

No contexto anteriormente desenhado, e cientes das ambiguidades que os processos de valorização patrimonial acarretam, o museu tem desenvolvidos projectos que fomentam e promovem a aproximação entre o nosso edifício e a comunidade que nos envolve.

As tardes interculturais são uma das actividades fulcrais na prossecução do trabalho realizado em parceria. Estes eventos têm como principal objectivo o estreitamento das relações de confiança entre o museu e as pessoas. Ocorrem no último sábado de cada mês, das 15 às 18, as temáticas são diversificadas sendo que têm maior incidência as tardes com e sobre grupos de emigrantes, de diferentes etnias e nacionalidades, centradas sobre as problemáticas e celebrações por estes sugeridas. Metodologicamente as tardes interculturais contam, regra geral, com o envolvimento da equipa do museu e dos representantes chave das associações que falam em nome do todo.

O planeamento e discussão do programa são realizados em conjunto para que se perceba quais são, especificamente, os anseios de cada grupo; o que gostariam de ver retratado, esclarecido e, inclusivamente, celebrado. Sempre que possível participam especialistas nas diferentes matérias e tecidos sociais com curtos do-cumentos visuais de suporte que são realizados com a participação das pessoas envolvidas, implicando-as desta forma na reflexão. Instigam-se debates, estimula--se a critica e ilustram-se as diversas leituras sobre uma determinada realidade. As tardes terminam, desejadamente, em festa, à volta da mesa.

As ementas são produzidas pelo grupo/associação visado, em colaboração com as pessoas do museu, um ritual gastronómico que envolve uma completa cadeia que vai da discussão da receita à compra dos ingredientes até à confecção dos pratos, ao ritmo de música tradicional do país/região através da performance de artistas convidados.

O museu reivindica-se pela sua acção como parte integrante e estruturante da vida em Setúbal, assumindo a responsabilidade social que lhe é inerente, para, e com, os seus habitantes. As tardes interculturais, têm como principais objectivos despertar o interesse e o conhecimento pela diversidade cultural, implicar as pessoas na identificação e valorização dos seus patrimónios, fomentar parcerias e criar dinâmicas de inter-ajuda. O tempo e curso têm permitido a sua inscrição no quotidiano. Estas tardes no museu, ricas em saberes diferentes e distantes,

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propiciam encontros, discussões e soluções a quem por lá se conhece, afirmam novos grupos emergentes em Setúbal, abrem portas e/ou janelas, minimizam as desconfianças que o desconhecimento propicia. O espaço museal é procurado para estas afirmações, estando ao dispor as ferramentas com que nos habituá-mos a trabalhar, democratizando assim o conhecimento e a própria instituição.

O museu torna-se acessível a quem o quiser usar. Importa apenas ter presente que este uso não se assemelha ao reflexo de um espelho, os actos tidos no espaço são enfatizados e devolvidos à audiência de forma amplificada, com um outro cunho, que a própria instituição lhes imprime, ainda que involuntariamente. No entanto, e em nosso entender, basta-nos a consciência deste processo, o seu desdobramento e questionamento, para uma maior e mais fidedigna compre-ensão da realidade que se apresenta à nossa frente.

1.3 Centro de Memórias (2006/1987 - 2013)

O Centro de Memórias do Museu do Trabalho Michel Giacometti, que adquiriu actividade sistemática a partir de 2006, tem como principal recurso as pessoas. Pessoas estas que, por diversas razões, pessoais, de percurso, ou profissionais, se articulam com as colecções e missão do museu, testemunhando realidades válidas que completam discursos expositivos ou reavivam temáticas incontornáveis na contemporaneidade. São, na sua grande maioria, seniores, pela sua história de vida que os acompanha, pela trama da existência que os define. Temos recorrido a quem experienciou o que não é possível reconstituir, procurando avidamente resgatar o saber geracional e usufruir de imaginários para nós distantes. Sentimo-nos, pela instituição de que fazemos parte, na obrigação de comunicar e tornar acessível aos variados públicos que nos visitam, através de exposições, p.e, entre outras formas de comunicação, a memória social que as sustenta, não esquecendo que para esta contribuem memorias individuais, pessoais e subjectivas (HALBWACHS, 2004).

É sobre estas que estamos particularmente interessados, sobre as milésimas partes do todo, que merecem reconhecimento e acolhimento, com a certeza de que para tal basta dar tempo, e fita, ao dito e ao não dito. Ouvir os silêncios e celebrar as falas, reconhecer a dádiva da partilha das histórias de vida e das memórias, construídas e reconstruídas, e ainda assim, tão significativas.

O centro de memorias conta já com praticamente meia centena de teste-munhos, sejam eles em formato de relatos de memórias ou historias de vida completas, oscilando entre 1h a 3h, dependendo o tempo da densidade e vonta-de de cada um. Estamos, presentemente, a tratar estes registos audiovisuais, a transcrevê-los para que a par da imagem haja, obviamente, o suporte em papel de tudo o que foi dito.

A adição desta perspectiva de escuta silenciosa de memórias aos museus, so-bretudo àqueles cujas colecções indubitavelmente se relacionem com as vidas das pessoas que o rodeiam e que dele fazem parte; engrandece colecções e corações, conhecimento e auto-estima, e permite, acima de tudo, criar relações de grande

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proximidade entre instituição e população, preservando-as activamente para memória futura.

Contamos com três eixos de acção definidos pela instituição museal, tendo esta definição o propósito único de sistematizar temáticas para uma melhor com-preensão a quem nos visite ou consulte, sendo estas:

1. Utilização das Fotografias de Américo Ribeiro, Arquivo Fotográfico Munici-pal. Este arquivo encarcera a sistematização, em suporte fotográfico, de acon-tecimentos, pessoas e mutações na paisagem urbana, num período de cerca de sessenta anos. Constituiu-se um grupo de voluntários que têm uma dupla função, revisitam as fotografias, alargando as suas legendas através do reco-nhecimento dos objectos fotografados, pessoas ou lugares, e, também, rela-tam-nos as suas memórias associadas a determinadas fotografias, enquanto partes das suas histórias de vida.

2. Captação, na integra, de histórias de vida de pessoas da comunidade, associa-das ou ao trabalho na Indústria de Conservas (Conserveiras) e Actividade Pis-catória (Marítimos), lastros da identidade socioprofissional de Setúbal, ou, ainda, com a resistência e clandestinidade no antigo regime.

3. Recolha de testemunhos e acompanhamento dos rituais no terreno, celebra-ções características da sociedade em que nos inserimos. Referimos neste pon-to, e como exemplo, a Festa de Nossa Senhora do Rosário de Tróia, manifesta-ção evidente de um património imaterial, súmula da devoção dos pescadores oriundos dos bairros piscatórios da parte norte da cidade, Fontainhas e Bairro Santos Nicolau, que pelas artes com que pescavam e pela proveniência migra-tória se distinguiam dos pescadores da zona Sul, Bairro do Troino.

Importa apenas, para terminar, referir que esses dois projectos-mãe têm, ao longo dos anos, se desmultiplicado em inúmeras acções que reforçam continua-mente as relações entre a instituição e as pessoas. As histórias de vida cruzam-se com as visitas às casas, aos locais de trabalho, ao sítios dos tempos livres. As tar-des interculturais providenciam, na grande maioria das vezes, futuras recolhas e temáticas. Encetam-se exposições, desenvolvem-se projectos pontuais comuns que nos aproximam num determinado período. Os contactos multiplicam-se e entramos, de forma naturalizada, nas prioridades de quem connosco passa a lidar e a trabalhar. Estamos certos apenas disto, que importa dar voz e des-mistificar o papel do museu, democratizar o seu acesso, inseri-lo numa rota de prioridades e amizades, de reconhecimento e valorização, das pessoas, dos seus saberes, da sua existência. Saímos, constantemente, das nossas portas. Regressa-mos, na grande maioria das vezes, acompanhados.

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suring, and inventoring such intangible traditions is no easy task and is fraught with metodological

difficulties. Museum workers are not really trained for such an effort, and to be clear, scholars in fields

such as anthropology, floklore, and ethnomusicology would have grave misgivings about how to do

this in an intellectually satisfactory way.” (Kurin, 2004: 56)

Contactar a autora: [email protected]

Contactar a Instituição:

Museu do Trabalho Michel Giacometti

Largo Defensores da República

2910 470 Setúbal

E-mail: [email protected]

Tel. 26 553 78 80

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Círios dos marítimos de AlcocheteAlcochete boatman festivity

Marto da Cunha Alves1

Licenciatura em História e Pós-graduado em Relações Interculturais, pela Universidade

Aberta. Técnico Superior da Câmara Municipal de Alcochete, na Divisão de Intervenção

Social. Está agregado Museu Municipal de Alcochete, onde desenvolve trabalho na área

de comunicação e mediação.

Resumo: Este artigo procura abordar a celebração da Festa do Círio dos Marítimos de Alcochete. Procuramos focar a relevância desta festividade para o Município de Alcochete e para a sua comunidade, onde a motivação religiosa acaba por ser prepon-derante para a preservação da identidade cultural e da tradição local.

Palavras-chave: Círio. Marítimo. Culto Mariano. Páscoa. Tradição.

Abstract: This article wants to show the celebration of the Alcochete boatman festivity. We try to focus on the relevance of this festivity to Alcochete and its community, were the religion motivation is important to preserve the cultural identity and local traditions.

Keywords: Círio. Boatman. Marian cult. Easter. Tradition.

1. Nota de Introdução

Ao longo deste artigo, serão abordadas diversas áreas de enorme importância para uma melhor compreensão deste fenómeno religioso popular. Há que con-siderar, numa primeira parte, a questão da caracterização histórica, cultural, económica e política do território e as redes sociais estabelecidas. Numa segun-da parte, aborda-se a questão das festividades religiosas, associadas ao culto ma-riano e ao fenómeno das romarias. Na terceira parte, faz-se a caracterização da Festa do Círio dos Marítimos, a lenda, a sua relevância histórica, as formas de organização, os rituais, os percursos. Para finalizar, e numa quarta parte deste texto, foca-se a importância da realização deste ritual religioso e do seu cres-cimento, como forma de preservação do Património Cultural Imaterial (PCI), para esta comunidade.

2. Marítimo de Alcochete – o Tempo e o Espaço

[…] aberta ao rio que é mar, mas com fortes raízes na terra, Alcochete manuelina era essen-

cialmente um porto, uma vila onde soavam os búzios. (BEIRANTE, 2004)

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Alcochete, vila ribeirinha, encontra-se intimamente ligada à atratividade do rio Tejo. Nas mais variadas vertentes, o “alcochetano”2 sempre procurou o rio como forma de sobrevivência, na exploração dos seus recursos naturais, como a pesca e produção de sal3, ou no transporte de pessoas e produtos para a margem norte do Tejo4.

As inúmeras embarcações de Alcochete que cruzavam o Tejo, “ […] num vai--vem constante entre as margens de um rio, que muitos tratam por Mar da Pa-lha”5, confirmam a dependência da sua população nesta atividade, estimulando o crescimento da classe profissional dos Marítimos. No final do século XIX, exis-tiam duzentos e seis marítimos de Alcochete registados e em meados do século XX existiam cerca de cinquenta profissionais a exercer a atividade marítima6, sendo preponderante para tal a passagem dos saberes da arte de pais para filhos. A classe profissional dos marítimos contribuiu para o desenvolvimento da co-munidade. Atualmente, e apesar de se encontrar em vias de desaparecimento, a sua perpetuação ideológica mantêm-se associada, em parte, ao ritual religioso promovido pelo Círio dos Marítimos de Alcochete.

A proximidade a Lisboa transforma Alcochete num ponto estratégico de pas-sagem entre as duas margens do rio e, segundo Beirante (2004:72), esta Vila,

[...] no limiar de Quinhentos, […] [define como seus] grandes imperativos económicos […]

a circulação e a passagem. A afluência de gentes e mercadorias ao porto, com as esperas

que essas deslocações impunham, tornava insuficiente a estalagem do concelho […].

A partir da segunda metade do século XV, segundo Fernandes (2003:13)6, Al-cochete começou a ganhar relativa importância nacional, com o estabelecimen-to da linhagem ducal de Beja, onde o Infante D. Fernando (1433-1470), Mestre das Ordens de Santiago e de Cristo, pai do futuro rei de Portugal, D. Manuel I, se assumiu como figura primordial para engrandecimento de uma pequena lo-calidade, ainda integrada na antiga Comarca do Ribatejo (BEIRANTE, 2004:62).

Destacou-se, neste vasto território, “[…] o concelho medieval de Sabo-nha […] que integrava os lugares de Alcochete, Aldeia Galega [atual Monti-jo], Sarilhos e Samouco” (VARGAS, 2005:11). No início do século XVI, as vi-las de Alcochete e Aldeia Galega demonstram a sua autonomia e relevância territorial, impulsionadas pelo seu crescimento e, posteriormente com a atribuição do foral manuelino de 1515, acabaram por ter autonomia admi-nistrativa do seu território, extinguindo-se o antigo concelho de Sabonha.

Uma das consequências deste processo administrativo foi a divisão de bens patrimoniais, entre os concelhos de Alcochete e Aldeia Galega. Assim,

[...] depois de longa prática, os delegados de ambos os concelhos concordaram em apartar

as vilas por esta maneira: a Vila de Alcochete ficava com a igreja de Santa Maria da Sa-

bonha e a administração dela, com todos os ornamentos e cousas que a ela pertenciam; e os

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moradores de Alcochete largavam e trespassavam todo o direito, posse e propriedade,

que sempre tiveram, da ermida de Nossa Senhora da Atalaia e a administração dela.

A casa da Confraria de Alcochete, pertença dos círios daquela Vila, ficaria na admi-

nistração de Aldeia Galega, com a condição dos alcochetanos servirem-se dela duran-

te as romarias. (ESTEVAM, 1956:43).

Depreendemos que, no caso da ermida de Nossa Senhora da Atalaia, existia a condição da sua utilização pelos alcochetanos durante o período das suas roma-rias8, demonstrando a importância do local em questão para a sua comunidade. Termina a ligação territorial à ermida mas manteve-se, e ainda se mantém, uma forte ligação emocional ao local.

3. O Culto e a Romaria

[A devoção mariana] é a característica mais vincada da religiosidade popular. Manifesta-

-se especialmente no apego a Nossa Senhora sob variadas invocações, ou aos mistérios ma-

riais e outras qualidades da Mãe de Deus. (CLEMENTE, 2002:29-30)

A ligação da comunidade de Alcochete a Nossa Senhora da Atalaia acaba por ser, também, um ato reflexivo associado ao culto e à devoção do povo português a Nossa Senhora9. Em toda a nossa história, existiram fenómenos de devoção a Maria10, sen-do esta celebrada, quer em pequenas capelas, quer em jubilosos templos de fé cristã.

São muitas as festas em honra de Maria, Mãe de Deus (Theotokos)11, procla-madas pela Igreja, onde o culto popular se caracteriza, em muitos casos, pela peregrinação e pela romaria aos santuários.

À semelhança de outros rituais religiosos, a romaria a Nossa Senhora da Atalaia também se caracteriza pela sua essência popular, alicerçada em rituais e costumes antigos, onde o facto de caminhar até à imagem venerada, que se encontra num local de elevada altitude, implica “ […] a penitência de subir os degraus, sacrificando o corpo, mas também purificando-o …”.

3.1 O Círio

O Círio […] pressupõe a existência de uma irmandade ou associação, uma comissão de fes-

teiros ou juízes que, de um ano para outro […] se responsabilizam pela continuidade do culto

[…]. Na sua deslocação transportam um estandarte ou bandeira. (MARQUES, 1996:69)

Segundo Duarte (1997), na região da Estremadura, o termo “Romaria” é equi-valente a “Círio”. Este é constituído por grupos de devotos, organizados em con-frarias12 ou irmandades, crentes em determinado Santo ou Santa.

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A palavra “Círio”, na sua vertente etimológica, está associada a “[…] velas [de cera] de grandes dimensões, que a aldeia em deslocação levaria à frente ou colo-caria acesa junto ao altar como distintivo” (MARQUES, 1996:70). Refere Costa (2007:9-10), na sua narrativa histórica que,

[…] accordou-se em favor da regularidade, que, cada romaria, durante a respectiva fes-

tividade, collocasse junto ao altar, onde se festejava a Virgem, como distinctivo, um círio

[vella] accêso, o que é confirmado pelo uso, que ainda voga em muita parte. Este círio sig-

nificativo da romaria que festejava, deu occasião de se denominar, cirio, a romaria […].

Concretamente e no caso de Alcochete, as referências às confrarias associa-das à devoção a Nossa Senhora da Atalaia remontam ao século XVI, aquando as visitações da Ordem de Santiago à Igreja de S. João da Vila de Alcochete. Segundo os relatos registados nas visitações de 1553, referidos por Fernandes (2003:262) foram visitadas as confrarias “[…] ordenada por os moços da vila dall-couchete […]” e “[…] dos barqueiros de que tem hum cirio na Irmida”13, mas du-rante as visitações de 1564, só é referenciada a “[...] comfraria de nossa Senhora da atalaia dos barqueiros” (Ibidem:276).

Este fenómeno poderá estar associado ao agrupamento de ambas as confra-rias em um único círio, já que, de acordo com Costa (2007:28), este é identificado, no ano de 1823, como “ Cirio dos marítimos cazados, e solteiros d’Alcochete” e, atualmente, por Círio dos Marítimos de Alcochete.

3.2 A Lenda

A constituição ancestral deste Círio remonta a uma justificação lendária, ligada a uma promessa feita pela tripulação de uma embarcação que, surpreendida por uma forte tempestade, prometera a Nossa Senhora da Atalaia, se os salvasse, ruma-riam anualmente ao santuário da Atalaia para a venerarem. Nisto, a tempestade desapareceu e em reconhecimento da graça atribuída, a promessa foi cumprida.

Assim se manteve durante séculos até aos dias de hoje.

3.3 A Festa

O Círio dos Marítimos de Alcochete14 tem a particularidade de ser o primeiro a ser celebrado na Atalaia15, durante quatro dias, de Sábado a Terça-feira de Páscoa16.

Outro fenómeno interessante passa pela natureza espontânea e voluntária da organização pela classe marítima. O Círio dos Marítimos de Alcochete não está vinculado a qualquer Associação ou Coletividade, não possui estatutos ou órgãos sociais eleitos, nem sede social e as normas de realização das festividades são transmitidas de forma oral, de geração em geração, sujeitas a diferentes in-terpretações, ou mesmo alterações, por parte dos organizadores.

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A responsabilidade da realização do Círio cabe a um indivíduo do sexo mas-culino, escolhido entre a classe marítima ou piscatória. É um cargo prestigiante entre a comunidade, atribuído com um ano de antecedência, para que seja possí-vel desenvolver os preparativos necessários para acolher todos os participantes.

O organizador do evento festivo tem de demonstrar competência e honesti-dade, ser natural de Alcochete, batizado e casado pela Igreja Católica, com filhos legítimos, do sexo masculino, menores de idade e batizados, aos quais chama-mos de “Festeiros”. A mulher é também uma figura preponderante nos festejos. É denominada de “Festeira” e esta pode ser a mulher do organizador ou mãe do jovem “Festeiro”17.

Os rituais iniciam-se no Sábado de Aleluia. Todos aguardam o som do “Chi-niná” 18 que, chegado ao cais de Alcochete e depois de lançados os foguetes, per-correm as ruas da Vila, entrando nas tabernas e cafés convivendo, bebendo e informando a comunidade que começou a festa.

As festividades estavam, na sua forma inicial, reservadas à participação da co-munidade marítima mas atualmente, e segundo Dias (2002:24), “o número de parti-cipantes (…) subiu de forma acelerada. Se, em 1991, andava pelas duzentas/trezentas pessoas, em 1999 esta cifra elevou-se para uns oitocentos indivíduos.” Presume-se que, atualmente, sejam mais de mil e duzentos o número de participantes.

A meio do dia de Sábado, os participantes juntam-se num espaço, nas proxi-midades do centro da vila de Alcochete, a que chamam “Casa do Círio” 19, onde servem o almoço e o jantar aos romeiros e onde estes confraternizam.

As refeições servidas durante os quatro dias, também obedecem à tradição, passam pelo bacalhau, peixe-espada, pela carne de vaca, não esquecendo o tra-dicional arroz doce branco e fogaça de Alcochete20 envolvendo, desta forma, um elevado número de pessoas que se disponibilizam, na sua maioria, de forma vo-luntária, garantindo toda a logística da preparação e confeção de alimentos, pre-paração do espaço, serviço de mesa, limpeza, entre muitas outras tarefas.

No Domingo de Páscoa, o “Chininá” sai à rua, reunindo as jovens raparigas que vão participar no desfile, durante a tarde. Serve-se o almoço aos participan-tes e fazem-se os últimos preparativos para o cortejo.

Ao final da tarde e junto à “Casa do Círio” o cortejo, composto por várias fi-guras e com um protocolo específico, prepara-se para sair e percorrer as ruas do centro da vila de Alcochete. Na frente e a cavalo, surge o jovem festeiro erguendo uma cruz em prata21, e ao seu lado esquerdo o juiz, um jovem que pode ser ou não filho de marítimo. Logo atrás, montadas em burros, a juíza do ano corren-te, seguindo-se a juíza do ano seguinte. A figura de juiz e juíza22, segundo Dias (2002:31) “… cumprem promessas das mães (…) [ou] são nomeados pela festeira”.

A sua participação não se remete unicamente à questão figurativa no corte-jo, mas também colaboram, através da comparticipação financeira e logística, em determinadas tarefas, durante os festejos. Seguidamente, seguem as jovens solteiras e depois as mulheres casadas23. No final, e montada no penúltimo bur-ro, segue a festeira do ano seguinte e no último burro, a festeira do ano corrente.

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A fechar o cortejo temos duas carretas puxadas por duas vacas mirandesas, uma transportando o “Chininá” e outra a imagem de Nossa Senhora da Atalaia.

Toda a preparação do cortejo é levada ao ínfimo pormenor. Os burros, devi-damente albardados, são adornados com lençóis brancos e bordados, que repre-sentam as velas das embarcações, com as mulheres montadas de lado e viradas para Norte, em direção ao rio Tejo24. Todos os participantes procuram apresen-tar as suas melhores vestimentas já que o desfile público implica, também, o seu julgamento, por parte dos observantes.

No final do cortejo, os participantes rumam à Atalaia, atualmente em viatu-ras automóveis, onde é servido o jantar. Outrora, esta era uma noite de convívio onde, depois de servida a refeição, havia música, dança e se pregavam partidas25 noite dentro. Hoje em dia, devido à facilidade de transporte, os participantes re-gressam a casa ao final da noite.

Na Segunda-feira de Páscoa, logo pela manhã, existe a tradição de, ao som do “Chininá”, os romeiros encaminharem-se para a Fonte da Senhora, onde existe uma fonte de água que, segundo Costa (2007:19) “… a antiga tradição conta a apparição da veneranda imagem de Nossa Senhora …”. Neste espaço lavavam a cara, dançavam, cantavam e praxavam26 as jovens que participavam pela primeira vez no Círio.

Nessa mesma manhã, os romeiros dirigirem-se a pé de Alcochete para a Ata-laia com as suas bandeiras, em sinal de promessa ou tradição. As bandeiras que transportam são feitas em cetim, estampadas ou pintadas com a imagem de Nos-sa Senhora da Atalaia e com vários motivos bordados. No seu anverso levam a inscrição “Nossa Senhora da Atalaia rogai por nós” e no verso a identificação do ofertante, o local e a data da oferta. A bandeira mais significativa é a denominada de “Guião”. Este é composto por várias peças e diversos materiais, que torna evi-dente a sua distinção de todas as outras bandeiras presentes no Círio.

O “Guião” é composto por uma peça em seda com quase dois metros de altu-ra, no centro encontra-se pintada a imagem de Nossa Senhora da Atalaia e é arre-matado, nas margens, com uma franja em tons dourados. Esta peça é suportada por dois varões em madeira, em forma de cruz, sustentada por um cordão com duas borlas de passamanaria, em cada ponta. Por cima, e encaixado no varão ver-tical com o apoio de uma haste, colocam-se duas peças em prata e uma cruz pro-cessional que, segundo Dias (2002:25), devem remontar aos séculos XVII e XVIII. Devidamente montado, o “Guião”, ultrapassa os dois metros e meio de altura.

A meio da manhã, realiza-se uma cerimónia religiosa onde são benzidas as novas bandeiras27 e as medalhas a ser usadas pelos romeiros durante esse mes-mo ano. As novas bandeiras são oferecidas pelos participantes a Nossa Senhora da Atalaia com o objetivo de, em conjunto com as fogaças de Alcochete28, serem leiloadas para ajudar à perpetuação da festa. As medalhas simbolizam a hierar-quia dentro da festa e são feitas em cartão, forradas em papel de prata, com lan-tejoulas, missangas e cetim, diferenciadas pela cor: azul - sexo masculino; rosa - sexo feminino, e pela forma: festeiro, juiz e juíza – estrela com imagem ao centro de Nossa Senhora da Atalaia, com motivos florais, encimada por uma almofada;

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romeiros - em forma de embarcação ou outros símbolos associados à atividade marítima, como leme ou âncora.

Durante a manhã, as bandeiras são entregues ao organizador e pagos os valo-res pelos quais foram leiloadas no ano anterior e em troca é entregue ao romeiro uma medalha, que este coloca ao peito.

Após o almoço, oferecido pelo Círio, realiza-se uma procissão em honra de Nossa Senhora da Atalaia, na zona circundante à Igreja.

Terminada a procissão, juntam-se os romeiros no adro da Igreja para se anunciar o nome do organizador do Círio do ano seguinte e, posteriormente, inicia-se o leilão das bandeiras e das fogaças.

A primeira bandeira a ser leiloada é o “Guião” que, por norma, tem licitações de maior valor. Seguidamente, são leiloadas as restantes bandeiras, começando pelas mais recentes, simultaneamente mais caras e por fim as fogaças.

No final do leilão, os romeiros levam as bandeiras para suas casas, pelo pe-ríodo de um ano. As fogaças leiloadas são consumidas pelos romeiros e no ano seguinte são repostas em igual número à organização da festa do Círio, para se-rem leiloadas.

Os valores conseguidos em leilão, pelas bandeiras e pelas fogaças, são pagos na Segunda-feira de Páscoa, no ano seguinte, com o propósito de arranjar fundos para garantir a continuidade da festa.

Nessa tarde, os romeiros dirigem-se a Alcochete para participar em mais um cortejo, que sai do Largo Barão de Samora Correia, com vista a percorrer o centro da vila de Alcochete. Todos os participantes trazem as suas medalhas ao peito, de acordo com a tradição. O festeiro, o juiz e a juíza ostentam duas medalhas ao peito: a medalha representativa da sua posição dentro do Círio e a de romeiro, enquanto todos os outros participantes, quer quem desfila em cima dos burros, quer quem arrematou uma bandeira ou fogaças, apresentam uma medalha de romeiro29. No fim do cortejo, além das carretas puxadas pelas vacas, surgem os romeiros com as bandeiras leiloadas.

Terminado o cortejo, realiza-se um beberete, reservado a convidados, organi-zado pelo festeiro, juiz e juíza do ano seguinte.

Terça-feira de Páscoa e último dia da festa. Durante a manhã o “Chininá” sai à rua, convidando os romeiros para o almoço, em Alcochete. A meio da tarde, o cortejo volta a sair, desta vez a pé, dirigindo-se para o centro da vila, encabeçado pelo festeiro, juiz e juíza, seguem-se as jovens solteiras e as mulheres casadas, com os seus acompanhantes e por fim o “Chininá.” A festa termina com um jan-tar e baile popular oferecido pelo Círio.

4. A Identidade Cultural de um povo

Pela primeira vez, um alcochetano passa o Cabo da Boa Esperança, com vagalhões tão

altos, que dava a impressão de os navios, com terra à vista, se terem submergido.

— Por que se ri? — exclamou um dos passageiros tão assustadiço como os companheiros.

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— E não me hei-de rir? — obtemperou o alcochetano. — O mar tem destas coisas: zanga-se

e por fim amansa, tal qual a mulher ciumenta. Se os senhores o vissem à borda da minha

terra, não faziam caso das suas birras. Olhem que o mar é tão atrevido, que uma ocasião,

para assustar a gente galgou por cima da capela de Nossa Senhora da Vida!

— E depois? — clamaram.

— E depois! Depois foi-se embora, por ninguém lhe haver encomendado aquele refresco.

(ESTEVAM, 1950:107)

O Tejo demonstra muitas vezes a sua agressividade, nesta zona mais aberta do rio exposta a ventos fortes. O marítimo “alcochetano”, por tal facto, torna-se num ho-mem corajoso e destemido que enfrenta os desafios que o Tejo lhe apresenta, com ir-reverência, confiando, muitas vezes, na proteção divina de Nossa Senhora da Atalaia.

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· 1 Técnico Superior do Museu Municipal de Alcochete

· 2 Denomina-se alcochetano, quem é natural da zona definida, atualmente, como núcleo antigo de Alco-

chete. Curiosamente, os residentes das zonas limítrofes não são reconhecidos, nem se reconhecem

como alcochetanos.

· 3 Segundo Lepierre (1936), Alcochete “[…] era o centro salineiro mais importante de Portugal.”

· 4 Nas profissões associadas a Alcochete e à sua população, podemos destacar os mareantes e os barquei-

ros, (ESTEVAM, 1950:57).

· 5 CÂMARA MUNICIPAL DE ALCOCHETE. Os Marítimos - vivências de um povo. Alcochete. 2003

· 6 Idem, Ibidem.

· 7 FERNANDES, Paulo Almeida (2003). “A arquitectura e a escultura aplicada”, in FERNANDES, Isabel Cristi-

na Ferreira (coord.). A Igreja de S. João Baptista de Alcochete. Câmara Municipal de Alcochete: Alcochete, p. 13.

· 8 Refere Costa (1887:135) que “[…] existiu na Atalaya uma caza pertencente ao círio d’Alcochete, que pela

escriptura de composição de 17 de Novembro de 1533 entre as camaras d’Alcochete e Aldêagallega, ficou

a administração da mesma, com a condição de servir-se d’ella o círio d’Alcochete, durante a sua romaria.”

· 9 “[…] as vertentes católica e ortodoxa (…) exaltam e glorificam o seu papel como mãe dos cristãos, a que

chamam, gostosamente, Nossa Senhora. Daí o culto de «hiper-doulia» que lhe é prestado, sem que, por

isso, tenhamos de suspeitar qualquer laivo de «mariolatria».” (DIAS, 1987:228)

· 10 Segundo Ribeiro (2004:98), no ano de 1646, D. João IV fez a seguinte declaração: “Assentamos por to-

mar por Padroeira dos nossos Reinos e Senhorios a Santíssima Virgem da Conceição”.

· 11 “A maternidade divina, «Theotokos», foi proclamada pelo Concílio de Éfeso, em 431.” (DUARTE, 1997:13)

· 12 “A confraria é uma associação de pessoas piedosas, reunidas sob a protecção de um Santo ou Santa e

que se comprometem a realizar obras de caridade e a organizar práticas religiosas, como o culto à sua

protectora.” (Idem, Ibidem: 27)

· 13 De acordo com as visitações, as duas confrarias eram devotas de Nossa Senhora da Atalaia.

· 14 Também conhecido na gíria popular como “Festa dos Burros”, por estar associada ao desfile de burros

pela Vila de Alcochete, ou por “Festa do Círio”.

· 15 “… os primeiros que abrem as portas da Capella …” (COSTA, 2007:28)

· 16 Não existe uma explicação concreta para a realização do Círio no período da Páscoa, mas segundo

Marques (1996:81) esta festividade poderá estar associado ao “… espírito da Primavera [em que tudo]

renasce, [onde se] exalta a abundância e a partilha …”.

· 17 Atualmente, e devido à escassez de marítimos, existem casos onde o festeiro organizador escolhe,

como jovem festeiro, um neto e a festeira passa a ser a mãe deste último.

· 18 “Chininá” ou “Xininá” (DUARTE, 1997:59) é a forma popular de identificar a música interpretada por

um tocador de gaita-de-foles e de caixa.

· 19 A organização do Círio aluga ou solicita a cedência de espaços, no centro de Alcochete e nas

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proximidades da Igreja da Atalaia, para a implantação da “Casa do Círio”, facto este que pode contribuir

para a alternância anual do espaço de refeições e confraternização.

· 20 Bolo tradicional de Alcochete

· 21 Segundo Dias (2002:25), “…é uma cruz processional (…) do século XIX, com uma estrutura em aço.”

· 22 Segundo a tradição, a nomeação de juiz ou juíza só deve ocorrer por uma única vez. Podem existir

exceções, caso existam novas promessas a Nossa Senhora da Atalaia.

· 23 Marques (1996:95) refere que as mulheres casadas simbolizam a autoridade e as jovens solteiras repre-

sentam a continuidade.

· 24 De acordo com Dias (2002:43-44), “em sinal de respeito, as mulheres montavam os asnos viradas para o

Norte, na direcção do Rio Tejo, cenário da lenda da fundação da Confraria dos Marítimos de Alcochete.”

· 25 Aos menos resistentes e que se deixavam levar pelo sono, sujava-se a cara com o pó do carvão que ficava

no fundo das panelas.

· 26 A praxe consistia em agarrar as jovens pelos pés e pelas mãos e bater com o traseiro, três vezes num

pinheiro, que se encontrava junto da fonte de água.

· 27 O número de bandeiras tem aumentado nos últimos anos. Dias (2002:25) refere que existiam “…cerca

de uma centena de bandeiras”. Atualmente, e segundo algumas fontes orais, devem existir perto de

duzentas bandeiras para leiloar.

· 28 Segundo Marques (1996:89), “… são sempre sete as (…) que cada ofertante leva para o leilão.”

· 29 Segundo informações recolhidas, através de fontes orais, documentais e fotográficas, a colocação das

medalhas pode obedecer a um protocolo específico. O festeiro, juiz e juíza “… trazem as suas medalhas

próprias no lado esquerdo [do peito] e as da presença das festividades no direito” (DIAS, 2002:33). No

caso das participantes que desfilam em cima dos burros, as mulheres casadas colocam a medalha do

lado esquerdo e as jovens solteiras no lado direito. Também encontramos algumas fotografias, onde a

colocação das medalhas do festeiro, juiz e juíza se faz de forma inversa (Idem, Ibidem:59).

Contactar a Instituição:

Museu Municipal de Alcochete

Rua Doutor Ciprião de Figueiredo, 2890-071 Alcochete

E-mail: [email protected]

Tel. 21 234 86 52

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O Museu da Nazaré nas representações do mar. Participação e revisão identitária da comunidadeThe Museum of Nazaré in the representations of the sea. Engaging the community and reviewing identity

Dóris SantosDóris Simões dos Santos (n. 1975). Coordenadora do Museu Dr. Joaquim Manso, Nazaré.

Técnica Superior no Museu José Malhoa (2000-2009). Doutoranda em História da Arte

– Esp. Museologia do Património Artístico (FCSH / UNL), com o projecto de tese “Arte,

museus e memórias marítimas. Contributos para o estudo da cultura visual das comuni-

dades piscatórias”. Mestre em Museologia e Património (FCSH-UNL, 2006) e Licenciada

em História, var. História da Arte (FLUC, 1997).

Resumo: Enquanto entidade com responsabilidades na patrimonialização do mar, o Museu Dr. Joaquim Manso inscreve-se no debate actual sobre a redefinição da identidade nazarena. Esta vive de uma herança marítima que se detém num registo nostálgico e datado, mas, por outro lado, é confrontada com a intenção de abertura à modernidade.

Palavras-chave: Nazaré. Mar. Museu. Identidade. Comunidade.

Abstract: As an institution with responsibility in rendering the sea into heritage, the Museum Dr. Joaquim Manso, placed in the traditional fishing town of Nazaré, takes part in the current debate on the redefinition of Nazarene identity. This one is based on a maritime inheritance that holds a nostalgic register but, on the other hand, is now confronted with the intention of opening to the modern times.

Keywords: Nazaré. Sea. Museum. Identity. Community.

O Museu Dr. Joaquim Manso (MDJM), localizado na Nazaré, foi criado em 1970, sob tutela da Direcção-Geral do Ensino Superior e das Belas-Artes do Ministério da Educação Nacional, e inaugurado em 1976, na moradia de férias que perten-ceu a Joaquim Manso (1878-1956), escritor lisboeta fundador do Diário de Lisboa.

Na Nazaré, as vivências associadas ao mar motivaram experiências colectivas de trabalho, de ocupação e adaptação dos espaços e ritmos sazonais, festividades e crenças que configuraram traços identitários, carismáticos e duradouros, dos quais a comunidade tomou consciência e deles continua a viver / depender, com pretensões de singularidade. O que diferencia o Museu da Nazaré de outro museu de temática marítima é, em larga medida, a sua plena articulação comunitária, pelo que são ele-mentares os projectos com a comunidade, no seu conceito grupal ou nas pequenas dimensões biográficas. A sua missão avalia-se, por conseguinte, no balanço entre

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as condicionantes da sua criação e a sua presente encruzilhada, repensada à luz de uma temática marítima, quando o mar volta a estar na agenda nacional.

É detentor de um acervo heterogéneo, reunido em torno da relação do ho-mem com o mar, numa vontade de testemunhar como este último tem sido ele-mento delineador da história e da evolução sócio-económica da região, desde a ocupação pré-histórica nos limites da desaparecida lagoa da Pederneira, à cons-trução naval na “era das descobertas”, até à actividade piscatória, balnear e turís-tica dos séculos XIX e XX, que lhe vincou a sua feição mais recente e carismática.

A Memória surge como conceito-chave de qualquer projecto museológico, pelo que, antes de mais, importa perceber como ela emana de uma construção (HOBSBAWM & RANGER, 2005), que pode ser activada em prol da (re)definição iden-titária de uma comunidade, com intuitos de desenvolvimento social e económico.

Embora seja de considerar quem alerta para a relatividade da extensão da presença do marítimo no concelho da Nazaré (nas freguesias de Valado dos Frades e Famalicão, ou no alto da Pederneira, é a ruralidade agrícola que dita o compasso dos dias), certo é que, aqui, uma economia baseada na pesca e na ex-ploração dos recursos fornecidos pelo mar gerou uma “cultura de vocação marí-tima”, por todos intuída e assimilada, motivadora de reconhecimento nacional e divulgação além-fronteiras, pela sua permanência quase idílica numa Europa pós-Guerra e industrializada, de meados do século XX.

“A Nazaré é o mar. O mar gigantesco, eterno, que todos os portugueses tra-zem no coração”, proclamava o fotógrafo Artur Pastor (1958). Se as tradições marítimas se tornaram no arquétipo identitário da Nazaré, é pertinente reflectir sobre como as mesmas condicionam a vocação do MDJM, sabendo que a iden-tidade procede de uma construção contínua e que os desafios contemporâneos são seguramente diversos dos subjacentes ao momento da criação do Museu nos anos 1970.

Em 1955, já o artista Abílio Leal de Mattos e Silva (1908-1985), pressentindo a rápida mudança da Nazaré perante as novas realidades económicas e a in-fluência estrangeira, ajuizava que “primeiro passo – passo para salvar a Nossa Nazaré – será a criação de um Museu – um Museu de costumes da Nazaré em que todos procuremos uma lição”, conforme palestra de 4 de Dezembro par-cialmente publicada em Outubro de 1956, no 1� número do boletim1 da Liga dos Amigos da Nazaré.

Para o Portugal-Nação, a relação com o mar assenta num qualitativo de pa-trimónio nacional, que a antropóloga Elsa Peralta (2008) examina com profun-didade, desde o seu entendimento como “passado-memória” a “futuro-projecto”. Esta afinidade entronca em processos de patrimonialização do mar, onde os mu-seus têm responsabilidade, não obstante raramente serem convocados para o crescente debate que se tem vindo a tecer na esfera pública sobre os caminhos que o mar pode abrir novamente a Portugal enquanto Estado europeu, à luz do reaparecimento de discursos neo-maritimistas (GARRIDO, 2009: 5).

Se o “Mar, como discurso identitário nacional […] é puro memorial” (PERALTA,

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2008: 82), para a memória das vivências da pesca, os processos de patrimoniali-zação decorrem sobretudo ao nível local. É nesta escala que os respectivos mu-seus logram actuar numa dimensão mais participativa e social, quando a repre-sentação das “grandes memórias” das elites são preteridas em favor da reabilita-ção dos “pequenos objectos” e da “pequena narrativa”, dos próprios autores ou anteriores utilizadores dos objectos.

Tanto na esfera regional, como na representação da sempiterna relação de Portugal com o mar, podemos indagar sobre qual o contributo das colecções do MDJM, das suas exposições e edições e, sobretudo, das suas actividades sócio--educativas. Pela inerência com processos identitários, as suas colecções devem ser entendidas como referenciais na preservação da memória das comunidades costeiras em geral, e da Nazaré em particular, o que se salienta de particular va-lor nestes contextos, sujeitos a rápidas mudanças nas últimas décadas.

Os objectos que suportam as colecções do MDJM já perderam a sua utilidade, pressagiam ou confirmam a morte de uma época, remetem para actos e práticas sociais agora transformadas em memórias. Terminando um ciclo funcional, ini-ciaram uma fase simbólica, em que as suas histórias individuais se tornaram na memória de toda a comunidade. E essa conversão pressupõe uma patrimoniali-zação dos mesmos, ou seja, “um processo de reconhecimento e apropriação de bens culturais pela comunidade, de carácter cognitivo e de carácter afectivo”, que, segundo Lameiras-Campagnolo (1998: 178), requer várias fases: conheci-mento e interpretação do bem a musealizar (investigação e inventário); inter-venção no bem (conservação); e sua divulgação para ser fruído pela população (comunicação, exposição, educação). As configurações da relação que formos capazes de assumir com esse mesmo património justificam que ele vá sendo portador de novos significados através do tempo.

Ora, se um projecto para o Museu da Nazaré entronca numa activação da “memória do mar” (PERALTA, 2008), impõe-se também o desafio de pensar “outras verdades” sobre os objectos aí patrimonializados. Perante o “luto” (GUILLAUME, 2003) e a consciência introspectiva da perda, da irreversibilida-de de um tempo onde a pesca tradicional justificava a organização económica, social e urbanística, à semelhança de outros meios piscatórios tradicionais, a Nazaré (ou melhor, a acção concertada das entidades institucionais, de sectores intelectuais e agentes económicos) trilha a reinvenção do seu relacionamento com o mar e a forma dele retirar outras e novas oportunidades, cada vez mais numa óptica ecológica e de investigação científica (ex.: projecto dos recifes arti-ficiais), do desporto (ex.: a grande aposta no surf das grandes ondas com o projec-to “North Canyon”), turismo e lazer.

Podemos ainda falar dos “usos da memória” (GODINHO, 2012), quando um museu detém o poder de votar para o futuro a representação da comunidade. Que memória o MDJM ainda está a produzir e como o seu programa “usou” e “usa” essa memória, num momento de reavaliação do discurso identitário tra-dicional, que lhe aponta indícios de uma elaboração artificial cristalizada no

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passado mítico de meados do século XX e com origem numa selecção de conte-údos populares levada a cabo pelas elites locais, mas de que toda a comunidade acabou por beneficiar, e até reforçar.

A identidade nazarena continua a viver dessa herança marítima. Mas, nas pa-lavras do antropólogo José Maria Trindade (2009: 14), “actualmente, procede-se a uma redefinição do que é ser nazareno”. Será ainda a “Nazaré dos pescadores”?

Hoje, para as antigas comunidades piscatórias como a da Nazaré, o turismo representa a principal actividade económica e a maior fonte de riqueza, tendên-cia já notada nos anos 1980 (MENDONSA, 1982: 312). A memória social redun-dou numa “esterilização folclórica” (CAREPA, 2002) defendida pela comunida-de, muito arreigada a esta visão fabulosa, que constitui, por um lado, o seu anco-radouro perante a mudança e, por outro, o alimento de “mercadorias turísticas” que facilitam o seu presente desenvolvimento económico.

Sem imputar ao turismo a exclusiva responsabilidade de cristalização dos estereótipos memoriais, impõe-se inquirir igualmente o papel dos museus nesse processo, sobretudo na exigente demanda dos circuitos do turismo de massa e da concorrência entre os equipamentos culturais e de lazer. Ao admi-timos que a memória recai mais sobre o que esquecemos do que sobre o que recordamos, estamos conscientes do perigo das construções míticas escamote-arem as fragilidades da época nostálgica, as quais devem igualmente ter lugar no discurso museológico.

Finalmente, lembra Jacques Hainard (2007: 15), “le fait que la plupart des musées sont prisonniers du passé imaginaire ou réel de leur collection les con-duit à s’enfermer dans une célébration mémorielle qui les déconnecte du pré-sent. L’enjeu devient vite politique, puisque cette attitude les exonère d’avoir à penser leur présent”. Abrindo-se ao presente, as tradicionais perspectivas etno-gráficas, históricas ou técnicas, poderão dialogar com entendimentos mais cria-tivos e “discursos plurais” (GARRIDO, 2009), onde, através de uma “museologia participativa”, o MDJM satisfaça uma dupla função: conservação (documenta-ção e gestão do património) e interpelação da memória (representação, reflexão, revisão crítica e produção contemporânea).

Nos últimos anos, a “história e a lenda”, o “mar com as embarcações tradicio-nais” e o “traje” têm continuado a ser os três núcleos principais do seu programa museológico; mas, perante estas considerações, e no intuito de não ceder ao fa-cilitismo da cenografia e da folclorização descontextualizada, enquanto “agen-te de patrimonialização, projectando conhecimento mais ou menos próximo e comprometido com a cultura e a sociedade estudada” (RUBIO-ARDANAZ , 2009: 74), importa que o MDJM dê voz aos seus protagonistas, envolva a comunidade nesse processo. Afinal, é sempre dela que estamos a falar, quer se trate ainda das suas vivências, quer sejam já das suas memórias.

Neste sentido, o MDJM tem diligenciado práticas de sistematização de me-mórias / registo da contemporaneidade, que não se querem esgotar em acções pontuais e que radicam essencialmente em duas vertentes:

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1) Na documentação / inventário, atenta ao registo exaustivo, no acto da reco-lha dos objectos ou no complemento informativo de áreas lacunares, através de entrevistas, tertúlias ou de iniciativas diversas, como o “Objecto do Mês”. Por se entender que, não obstante a evolução tendencial da museologia, é ainda nos objectos que reside o vector diferenciador do museu, por compara-ção com outras entidades com responsabilidade na área do património e na construção da memória colectiva, este alicerce nas colecções é fundamental no reconhecimento da comunidade sobre o papel de salvaguarda do MDJM, sobretudo num conjunto essencialmente resultante de doações.

2) Na acção educativa e sócio-cultural, através de projectos mobilizadores da comunidade, nas suas várias gerações, numa perspectiva quer interna, voca-cionada para o estreitamento social, quer exógena ou comparativa com a fei-ção nacional e internacional.

Promovendo o contacto inter-geracional, para além de visitas orientadas por antigos pescadores ou protagonistas das práticas em desaparecimento, estrutu-ram-se anualmente projectos de longa duração com a comunidade escolar, de que é exemplo recente o projecto “Do Foquim à mochila”, em parceria com o Agrupamento de Escolas da Nazaré, a associação de comerciantes, a associação de artes plásticas e a colaboração de um antigo pescador. Actualmente, os jovens nazarenos desconhecem o que é o foquim, recipiente de madeira outrora utili-zado pelos pescadores para transporte do farnel para a faina do mar; já não vão ao mar (nem querem), vivendo realidades diferentes. Este projecto promoveu o conhecimento de outros tempos, como meio substancial da memória colectiva e continuidade do “saber-fazer”, e sensibilizou os jovens para uma postura crítica em relação à realidade patrimonial da Nazaré, de que são herdeiros e responsá-veis para o futuro.

O projecto incluiu a visita ao MDJM, a recolha de memórias junto de fami-liares e, sob orientação do professor de Educação Visual e Tecnológica, a criação de novas interpretações artísticas e funcionais do foquim. Posteriormente, estes estiveram em exposição e à votação nos estabelecimentos comerciais da Nazaré, durante a Páscoa. A iniciativa mobilizou os jovens para a pesquisa de informa-ção sobre a sua comunidade, ao mesmo tempo que procurou fomentar a criativi-dade e a educação estética, conciliando a tradição e a modernidade.

Na esteira deste intuito de integração da comunidade local enquanto agente activo na produção de conhecimentos e “saberes”, o MDJM alarga igualmente os projectos de parceria ao público sénior, certificando o seu papel na aprendi-zagem informal ao longo da vida e, por outro lado, retirando a mais-valia infor-mativa e experimental dos participantes, daqui derivando enriquecimento para o conhecimento sobre as colecções e sobre a realidade que representam.

“À volta da algibeira” ou “Memórias da minha rua” são projectos paradigmá-ticos desta parceria entre o MDJM e a Universidade Sénior da Nazaré, alicerçados nas histórias de vida e nas memórias individuais dos participantes. O primeiro

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convidou à realização de trabalhos inspirados na tradicional algibeira do traje feminino nazareno, pretexto para um debate sobre o papel da mulher nesta co-munidade tida como matriarcal, ou melhor, matrifocal.

Para os nazarenos, associada à exiguidade das casas dos pescadores, a vida de-corria sobretudo ao ar livre; sabendo da peculiaridade do traçado das ruas nazare-nas e da importância dos seus “pátios” enquanto espaços de sociabilização, as ruas da Praia da Nazaré constituem, assim, um vector de identidade na vida de cada um e na história da comunidade; por isso, o segundo projecto motivou os partici-pantes a representar a “sua rua”, através da oralidade, da escrita, da fotografia e das artes plásticas, resultando num arquivo memorial à guarda do MDJM.

De igual modo, entende-se que as exposições temporárias, enquanto meio de comunicação por excelência com o público, podem aportar pistas de investi-gação que, simultaneamente, alertem para a realidade pluridimensional das re-presentações do mar e derivem do activo envolvimento dos seus protagonistas, como sucedeu na exposição “Nazaré: memórias de uma praia de banhos” (2010) ou “Como se veste a Nazaré? Hoje” (produção em curso).

Esta relação extra-muros do Museu é determinante na sua vocação de iden-tificar as “marcas do mar” no seu espaço de implementação e em áreas inter--concelhias. Fundamentando a sua dimensão educativa e em complemento à materialidade das colecções, para além do inventário actualizado e da sua di-vulgação, ambiciona-se o registo das manifestações do património imaterial, de que são exemplo as duas fichas de inventário já realizadas em 2011 (“Seca do Peixe” e “Círio de Nossa Senhora da Vitória”). Estas foram elaboradas através do contributo exaustivo dos seus protagonistas e encontram-se disponíveis para consulta na base de dados on-line MatrizNet, em articulação com os objectos à (salva)guarda do Museu.

Concluindo

Actualmente, de museu etnográfico e arqueológico, centrado no objecto e pre-ocupado com a salvaguarda dos vestígios do passado e das existências piscató-rias locais, importa repensar o MDJM como o Museu da Nazaré, instituição de memória da Cultura do Mar, que, a saber: (1) a investigue e divulgue nas suas múltiplas valências (arqueológica, etnográfica, tecnológica, científica, religiosa, artística, literária, desportiva, turística, … material e imaterial); (2) inventarie, conserve, estude, interprete e divulgue a herança nazarena enquanto uma he-rança necessariamente marítima (não obstante a realidade agrícola da maioria do concelho); (3) favoreça mecanismos de reflexão sobre a contemporaneidade e como os seus reptos futuros dialogam com um passado-memória sobre o qual se continua a (re)viver. Estes desafios necessariamente ganham alento quando se tornam num projecto memorial e participativo de um “museu de e com a comunidade”, nas suas diferentes gerações e interesses.

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Referências e Notas

· CAREPA, J. Identidade e Memória. A construção simbólica da Nazaré. [policopiado]. Nazaré, 2002.

· GARRIDO, A. “Culturas marítimas e conservação memorial. A experiência do Museu Marítimo de

Ílhavo”. Museologia.pt, n. 3: 3-11, 2009.

· GODINHO, P. Os usos da memória e práticas do património. N.º 40, A Ieltsar se vai ao longe. Lisboa,

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· GUILLAUME, M. A política do património. Porto, Campo das Letras, 2003.

· HAINARD, J., em DEBARY, O.; TURGEON, L. Objets et mémoires. Paris / Québec, Maison des Sciences de

L’Homme & Presses de l’Université de Laval. cit. em BATTESTI, J. (coord.) (2012). Que reste-t-il du pré-

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· MENDONSA, E. “Turismo e estratificação na Nazaré”. Revista Análise Social, Vol. XVIII (71): 311-329, 1982.

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· PERALTA, E. “O Mar como Património: considerações acerca da identidade nacional”. Em F. O., NU-

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· TRINDADE, J. A Nazaré dos pescadores. Identidade e transformação de uma comunidade marítima. Lisboa,

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· 1 “Museu”. Nazaré. Boletim da Liga dos Amigos da Nazaré, n.� 1, Outubro 1956: 1.

Contactar os autores: [email protected] (pessoal) · [email protected] (institucional)

Contactar a Instituição:

Museu Dr. Joaquim Manso / Direcção Regional de Cultura do Centro

Rua D. Fuas Roupinho

2450-065 Nazaré

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Trabalhar com e para as comunidades: reflexão sobre a experiência do Ecomuseu Municipal do Seixal no âmbito da temática marítima Work with and for the communities: thinking about maritime heritage in the Ecomuseu Municipal do Seixal

João MartinsCoordenador do Gabinete de Gestão de Embarcações Tradicionais. Ecomuseu Municipal do

Seixal – Câmara Municipal do Seixal. Integra a equipa do Ecomuseu Municipal do Seixal

desde 1995 como coordenador do Gabinete de Gestão de Embarcações Tradicionais, com

funções de coordenação e gestão de procedimentos técnico-administrativos e operacionais,

projetos/ações nas áreas de navegação, manutenção e conservação das embarcações, das

quais é membro efetivo das tripulações, como mestre. Participa na gestão dos programas de

utilização das embarcações tradicionais, no âmbito do Serviço Educativo do Ecomuseu

e desenvolve pesquisa e documentação sobre património marítimo.

Resumo: Refletindo sobre a atividade do Ecomuseu Municipal do Seixal no âmbito da área temática da cultura e do património marítimos e fluviais, com a presente comunicação pretendemos destacar alguns dos projetos que têm sido desenvolvidos junto das diversidades comunidades presentes no seu território de atuação, nomea-damente ações de natureza educativa e formativa; iniciativas de estudo, divulgação e valorização do património flúvio-marítimo do estuário do Tejo e, por fim, a integra-ção, na equipa técnica, de pessoas cuja atividade profissional anterior estava profun-damente ligada com a natureza dos sítios musealizados.

Palavras-chave: Ecomuseu Municipal do Seixal. Cultura e património marítimos. Comunidades.

Abstract: Considering the activity of Ecomuseu Municipal do Seixal in the scope of the thematic area related to fluvial and maritime culture and heritage, with this paper we would like to highlight some of the projects carried away with several communi-ties within its territory, namely training and educational activities; projects of study, dissemination and improvement of the fluvial and maritime heritage of Tagus estuary and, finally, the inclusion, in its team, of people which former professional activity was deeply related with the museological resources.

Keywords: Ecomuseu Municipal do Seixal. Maritime culture and heritage. Communities.

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Apresentação do Ecomuseu Municipal do Seixal

Criado em 1982, pela Câmara Municipal do Seixal e integrando a sua estrutura, o Ecomuseu Municipal do Seixal tem por missão investigar, conservar, docu-mentar, interpretar, valorizar e difundir testemunhos do Homem e do meio, reportados ao território e à população do concelho do Seixal, com vista a contri-buir para a construção e a transmissão das memórias coletivas e para um desen-volvimento sustentado.

Possuindo uma estrutura territorialmente descentralizada, o Ecomuseu Municipal do Seixal integra cinco núcleos museológicos, três extensões e duas embarcações tradicionais, com passeios no Tejo. Deste modo, os núcle-os são os seguintes:

1) Núcleo da Mundet: aberto ao público desde 1998, encontra-se instalado na antiga fábrica corticeira Mundet, no Seixal, uma das maiores e mais im-portantes unidades industriais corticeiras do século XX em Portugal. Para além de dois espaços expositivos, neste núcleo localizam-se os serviços centrais do Ecomuseu;

2) Núcleo do Moinho de Maré de Corroios: aberto ao público em 1986, encontra--se classificado como Imóvel de Interesse Público e conserva todos os equipa-mentos de trabalho relacionados com a moagem tradicional;

3) Núcleo Naval: aberto ao público em 1984, ocupa o sítio de um antigo estaleiro naval, em Arrentela. Integra um espaço de exposição e uma oficina de cons-trução de modelos de embarcações tradicionais do estuário do Tejo;

4) Núcleo da Trindade: localizada na freguesia do Seixal, esta Quinta do sécu-lo XV integra o projeto museológico municipal desde 1982. Trata-se de um imóvel classificado de Interesse Público onde estão instalados os serviços de conservação e arqueologia, assim como parte das reservas do Ecomuseu.

5) Núcleo da Olaria Romana da Quinta do Rouxinol: classificado como Monu-mento Nacional, neste sítio preserva-se parte de alguns fornos de uma olaria romana que funcionou entre os séculos II e V.

Extensões que integram a estrutura museológica:

1) Extensão na Fábrica de Pólvora de Vale de Milhaços: instalada no espaço des-ta unidade fabril datada de 1898. Integra caldeiras e uma máquina a vapor centenárias e ainda em funcionamento assim como o conjunto de oficinas que constituíam o circuito de produção da pólvora negra;

2) Extensão na Quinta de São Pedro: antiga quinta senhorial onde foi identifi-cada e escavada uma necrópole associada à respetiva capela, reportada aos séculos XIII a XVIII;

3) Extensão no Espaço Memória – Tipografia Popular do Seixal: ocupa o espaço

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de uma antiga tipografia e onde atualmente ainda se utilizam as técnicas tra-dicionais da composição manual e da impressão.

O Ecomuseu integra ainda como acervo flutuante três antigas embarcações utilizadas no tráfego fluvial no estuário do Tejo sendo que atualmente duas de-las realizam passeios no Tejo com fins educativos e de lazer, utilizando as téc-nicas tradicionais da navegação à vela. São elas o bote de fragata Baía do Seixal (recuperado em 1989) e o varino Amoroso (recuperado em 1994).

Cultura e património flúvio-marítimos no Ecomuseu Municipal do Seixal

O município do Seixal, localizado na margem Sul do estuário do rio Tejo, abran-ge uma área de 94 Km2, num total de 160.000 habitantes, um território geografi-camente privilegiado onde, desde tempos longínquos, a terra e o rio se constitu-íram como recursos valiosos para as populações locais.

A importância histórica do estuário do rio Tejo é inegável e deve-se, entre ou-tros fatores, à sua localização geográfica, às suas condições naturais e à proximi-dade a Lisboa e a outros importantes centros urbanos que proporcionaram o de-senvolvimento de uma diversidade significativa de atividades económicas, como a moagem (moinhos de maré), a exploração de sal, a pesca, a seca de bacalhau, a construção e reparação naval, a instalação de diversos estabelecimentos fabris ligados à cortiça, ao vidro, aos lanifícios, aos explosivos, entre outros.

A cultura e o património marítimos e fluviais assumem um papel relevante na missão e atividade do Ecomuseu Municipal, apresentando-se ao público quer através das embarcações tradicionais do estuário do rio Tejo, quer por meio do Núcleo Naval do Ecomuseu, em Arrentela, instalado no sítio de um antigo esta-leiro de construção e reparação naval.

No Ecomuseu, esta área de investigação e de atividade tem como território de referência não apenas o concelho do Seixal mas todo o estuário uma vez que o Seixal partilha aspetos culturais, naturais e paisagísticos comuns à região, ser-vindo o rio Tejo como elo de ligação das diversas localidades.

A cultura e o património flúvio-marítimos no Ecomuseu Municipal do Seixal: experiências de cooperação, intercâmbio e parcerias

O Ecomuseu Municipal tem uma presença muito significativa no terreno, junto das comunidades, não apenas no território concelhio mas em toda a região do es-tuário do Tejo. Esta forte presença deriva, por um lado, da atividade propriamente dita das embarcações e, por outro lado, do trabalho de terreno desenvolvido nos últimos anos e, no âmbito do qual, tem sido desenvolvida uma recolha sistemáti-ca de testemunhos orais junto de marítimos, pescadores, construtores navais, pin-tores de embarcações, mestres do fabrico de velas, entre outros. Os registos obtidos a partir, quer das suas memórias, quer das suas competências técnicas e saberes-

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-fazer têm sido utilizados como importantes recursos nos projetos de documenta-ção e de investigação e consequentes iniciativas de divulgação, nas exposições e nas edições realizadas sobre esta temática.

Para além da recolha dos testemunhos, a atividade do Ecomuseu nesta área temática tem-se traduzido na incorporação de uma grande diversidade de obje-tos pessoais e de trabalho no acervo do Ecomuseu, fruto de doações quer indivi-duais, quer por parte de empresas. A título de exemplo e para citar apenas um dos casos mais recentes, foi confiada ao Ecomuseu parte da coleção de modelos de embarcações de Estêvão Carrasco, reconhecido desenhador e modelista na-val. Para além de se constituírem como objetos de estudo no âmbito dos proces-sos de investigação, os objetos que integram o acervo do Ecomuseu são, após a devida seleção, sempre que possível integrados nos projetos expositivos.

De entre os vários projetos de temática marítima que o Ecomuseu tem desen-volvido junto das diversas comunidades presentes no seu território de atuação, pretendemos destacar:

1. A integração, na equipa técnica do Ecomuseu Municipal, de pessoas cuja atividade profissional anterior estava profundamente ligada com a natureza dos sítios musealizados, viabilizando e potencializando, deste modo, a trans-missão ativa das técnicas e saberes-fazer.

Aquando da criação do museu municipal em 1982, uma das vertentes integran-tes da missão então definida era a de evitar o desaparecimento das profissões tradicionais. Este propósito, aliado a uma intenção de conservação dinâmica do património, privilegiando a conservação in situ e, sempre que possível, em funcionamento, dos recursos patrimoniais, fez com que o Ecomuseu integras-se na sua equipa técnica pessoas cuja atividade profissional anterior estava profundamente ligada com a natureza dos sítios musealizados, viabilizando e potencializando, deste modo, a transmissão ativa das técnicas e saberes-fazer. Uma das áreas temáticas onde esta integração ocorreu foi a do património marí-timo nomeadamente através da atividade das embarcações do estuário do Tejo. Deste modo, desde o início do projeto, em 1982, integrou a equipa do museu o mestre de tráfego local José Pires, natural do concelho, com uma experiência profissional de cerca de 40 anos. Detentor de um relevante saber-fazer relativo à navegação à vela no estuário do Tejo, José Pires colaborou com o Ecomuseu de 1982 a 2005 desempenhando um papel fundamental na recolha de acervo na fase inicial de constituição do museu, tendo sido ainda um dos principais inter-locutores (e mediador entre a direção técnica do museu e os estaleiros navais) nos processos de recuperação e reconversão das embarcações para a atividade de recreio. Finalmente, e é este o aspeto que gostaríamos de realçar no âmbito da presente comunicação, foi o responsável pela formação de todos os tripulantes que ainda exercem a sua atividade a bordo das embarcações geridas pelo Ecomuseu. Dois desses formandos são atualmente mestres das duas embarcações com

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atividade regular e, por sua vez, contribuem para a formação contínua dos res-tantes tripulantes. Esta formação incide sobre uma grande diversidade de fato-res: desde as técnicas tradicionais de navegação à vela, passando pela manuten-ção e conservação das embarcações e pela dinamização de atividades educativas a bordo, até à aprendizagem sobre o meio social e cultural marítimo de que estas embarcações fazem parte.

Para além da integração destes trabalhadores na sua equipa técnica, ao lon-go dos anos desenvolveram-se parcerias pontuais com outros profissionais que colaboraram com o Ecomuseu em diversas atividades. Referimos, por exemplo, a colaboração de um antigo pescador do Seixal que aparelhou e construiu uma rede de pesca à escala para um modelo de bote da tartaranha que atualmente se encontra em exposição no Núcleo Naval. A sua presença na Oficina deste nú-cleo museológico permitiu ainda a recolha de testemunhos e memórias sobre a atividade piscatória local. De igual modo, a coleção de modelos de embarcações beneficiou ainda da colaboração de Henrique Rodrigues, antigo marítimo que se dedicou também à pintura tradicional de embarcações. Por fim, o mestre cons-trutor naval e pintor de embarcações José Lopes, proprietário do estaleiro naval do Gaio (concelho da Moita) colaborou igualmente com o Ecomuseu, sobretudo na dinamização de iniciativas de natureza educativa.

Mais recentemente, aquando de uma intervenção significativa de recupera-ção do varino Amoroso em 2010, os tripulantes da embarcação tiveram a colabo-ração de dois antigos pescadores do Seixal, António Hernandez e Manuel Boga, que participaram na preparação de toda a palamenta e aparelho da embarcação.

2. Estudo, divulgação e valorização do património flúvio-marítimo do estuário do Tejo.

Desde o início do processo de recuperação das embarcações que integram o acer-vo do Ecomuseu, na década de 1980, que as mesmas participam em diversos en-contros de barcos e festividades ribeirinhas com tradição entre as comunidades marítimas do Estuário do Tejo. Através de uma participação ativa das embarca-ções e dos seus tripulantes nestas festividades, que consideramos ambientes de formação cultural, os técnicos do Ecomuseu têm participado sobretudo enquanto atores sociais e não enquanto observadores. A participação ao longo dos anos per-mitiu a recolha de uma vasta documentação fotográfica, essencial para estudar estas manifestações festivas e ainda o estabelecimento de contactos com outros proprietários de embarcações e com antigos marítimos, pescadores, construtores navais, entre outros detentores de memórias e de saberes-fazer.

A Câmara Municipal do Seixal, através do Ecomuseu Municipal e por ocasião da comemoração do seu 25� aniversário, em 2007, organizou o 1� En-contro de embarcações tradicionais do estuário do Tejo realizado na baía do Seixal. Tratou-se de uma iniciativa surgida em resultado do intercâmbio em torno do património marítimo, envolvendo as comunidades transmissoras, os

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proprietários de embarcações e as suas tripulações assim como um número crescente de entidades e organizações nacionais e estrangeiras. Entre 18 e 20 de maio, a baía do Seixal acolheu 30 embarcações tradicionais oriundas maio-ritariamente do estuário do Tejo mas também de Setúbal, do Norte do país e da Galiza (Espanha). Entre particulares, instituições e associações, participaram também, embarcações das Câmaras Municipais dos concelhos ribeirinhos. Para além dos 135 tripulantes presentes, o evento contou com a participação dos habitantes das comunidades ribeirinhas que, ora assistiram às várias ini-ciativas a partir das margens da baía, ora tiveram a oportunidade de navegar a bordo das embarcações durante um desfile e uma regata que se realizaram nos dias 18 e 19, respetivamente.

No dia 19 realizou-se, no Auditório do Fórum Cultural do Seixal, uma sessão pública sobre Proteção e valorização do património marítimo do estuário do Tejo – Museus e Comunidades, que reuniu uma assistência de cerca de 50 pessoas entre membros das associações náuticas do estuário do Tejo, proprietários de embarcações tradicionais, autoridades marítimas, técnicos das autarquias locais e profissionais de museus. Este encontro de embarcações teve ainda mais duas edições, em 2008 e 2009.

Decorrente dos projetos de investigação, o Ecomuseu Municipal tem partici-pado em inúmeros encontros científicos nacionais e internacionais e também a este nível tem procurado rentabilizar o trabalho que desenvolve junto dos seus interlocutores, parceiros na divulgação e valorização do património flúvio-ma-rítimo do estuário do Tejo. Referimos, por exemplo, a participação do Ecomuseu Municipal no evento Klassieke Schepen, uma feira dedicada às embarcações tra-dicionais realizada em Enkhuizen (arredores de Amesterdão, Holanda). Nesse ano, em 2007, o Ecomuseu esteve presente, como convidado de honra, num stand onde para além de painéis informativos sobre a pintura tradicional das embarca-ções do estuário do Tejo, contou com a participação do pintor Diogo Gomes que rea-lizou ao vivo a pintura de uma antepara e de uma proa de uma embarcação do Tejo.

Ainda assente na linha de atuação da Câmara Municipal e do seu Ecomu-seu, na discussão da temática do património marítimo, foi organizado o 7� Con-gresso European Maritime Heritage, intitulado: “Somos capazes de transmitir o património marítimo às gerações futuras?”, acolhido no Seixal, nos dias 23 e 24 de Setembro de 2010. Deste congresso, onde se partilharam práticas e reflexões de outros museus e instituições, nacionais e estrangeiras, ligadas a esta temáti-ca, em painéis intitulados “Os jovens e o património marítimo” e ”Património imaterial marítimo”, entre outros, resultou um documento de recomendações, das quais destacamos: “Encorajar todas as iniciativas que permitam aos jovens embarcar, aprender a história, os saberes e as técnicas relacionadas com o nosso património marítimo”.

3. O museu enquanto lugar de aprendizagem.

No âmbito da sua missão educativa e integrando o Plano Educativo Municipal, o

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Ecomuseu Municipal do Seixal elabora anualmente um programa de iniciativas de Serviço Educativo destinado a públicos escolares de vários níveis de ensino e ainda a públicos individuais e famílias. No âmbito do presente texto, preten-demos destacar duas experiências distintas que nos parecem ilustrar o trabalho que o Ecomuseu desenvolve junto de algumas comunidades ao nível essencial-mente educativo.

O primeiro exemplo, referente à comunidade escolar, diz respeito a uma es-treita colaboração, estabelecida desde 2001, entre a Câmara Municipal do Seixal e um grupo de professores de escolas do concelho que deu origem, à programa-ção de iniciativas como as Descobertas no Ecomuseu. Mais concretamente no âmbito da temática marítima, são desenvolvidas as descobertas no bote de fra-gata, onde é feita uma abordagem de conceitos e resolução de desafios da ma-temática, da física, da educação visual e tecnológica e da geografia, a partir da exploração dos recursos existentes numa embarcação tradicional, no decorrer de um passeio no Tejo. Norteada pelo princípio de adoção de uma metodologia de programação partilhada, desenvolveram-se estes projetos procurando renta-bilizar os recursos patrimoniais de que o Ecomuseu dispõe assim como aplicar o conhecimento dos docentes de várias áreas disciplinares tendo em vista a inter-pretação e a transmissão daqueles recursos patrimoniais.

A segunda experiência, no âmbito da aprendizagem ao longo da vida, são os cursos de iniciação e desenvolvimento em modelismo naval que se realizaram no Ecomuseu entre 2009 e 2011, tendo-se realizado 4 sessões. Realizados na Ofi-cina do Núcleo Naval e envolvendo 27 participantes, estes cursos tinham como objetivo dotar os participantes de conhecimentos teóricos e práticos na inicia-ção ou no desenvolvimento de competências na área do modelismo naval assim como na aquisição de conhecimentos sobre a cultura marítima do estuário do Tejo. Deste modo, os vários formandos construíram ao longo das diferentes ses-sões modelos de embarcações oriundas do Estuário.

Conclusão

O património e a cultura flúvio-marítimos constituem, uma temática funda-mental no seio da atividade da Câmara Municipal do Seixal, quer no que se re-fere à natureza dos seus projetos de investigação e de atuação, quer no que se refere ao seu acervo, no âmbito da Divisão de Património Histórico e Museus/Ecomuseu Municipal. Na base do projeto museológico do EMS, encontram-se três pressupostos essenciais: em primeiro lugar a existência de uma programa-ção orientada para o território; em segundo lugar, a conservação do património in situ e, em terceiro lugar, a participação da comunidade.

Com um projeto alicerçado nos princípios da nova museologia e à semelhan-ça de outros museus locais, a intervenção patrimonial do Ecomuseu Municipal do Seixal não se restringe aos bens móveis. Trabalhando com uma noção alarga-da de património, a sua atividade incide sobre outros patrimónios relacionados

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com o seu território de referência e com as comunidades nele existentes, tais como o imaterial, o edificado, o industrial, o flutuante/navegante e o natural. Cada uma destas dimensões coloca exigências distintas à prossecução da missão do Ecomuseu de conservar, interpretar, valorizar e divulgar, de forma integrada, alguns dos mais importantes testemunhos materiais e imateriais existentes no seu território. Estes testemunhos constituem-se como valiosas fontes de conhe-cimento sobre as comunidades locais e, o que será porventura mais importante e que se constitui como o principal desafio, esse conhecimento deverá ser produ-zido com e para essas comunidades, ou seja, deverá ser partilhado com aqueles que são, afinal, não apenas os atuais visitantes do museu mas, desejavelmente, os futuros depositários dos testemunhos patrimoniais.

Contactar a Instituição:

Ecomuseu Municipal do Seixal

Praça 1º de Maio, Nº1

2840-485 Seixal

E-mail: [email protected]

Tel. 210 976 112

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Terra Tecida: o cinema documental como registro de experiências culturais

José Luís de Oliveira e SilvaHistoriador e professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Piauí (IFPI), Brasil

Apresentamos impressões do filme documental Terra Tecida, documentário que retrata o cotidiano de mulheres rendeiras da comunidade Morros da Mariana, localizada no município de Ilha Grande de Santa Isabel, pequena cidade do ex-tremo Norte do estado do Piauí, Brasil.

O documentário representa uma interessante e fértil realidade cultural e acadêmica em curso no Piauí, materializada em uma série de filmes documen-tais produzidos na última década, a maioria com forte viés etnográfico e de re-gistro de memórias: Passos de Oeiras (2008)1, Congos: ritmo e devoção (2009)2, As escravas da Mãe de Deus (2011)3, Na estrada com Zé Limeira (2011)4 e Cidade Des-carnada (2012)5, só para nos determos entre aqueles que apreciamos. São filmes que abordam o cotidiano, as histórias e as memórias de personagens que, embo-ra desconhecidos do grande público ou habitando regiões distantes dos centros econômico-culturais do país, possuem uma vivência bem particular e intensa de suas arraigadas às práticas culturais.

Destacamos que, sem esse trabalho de recolha e registo cinematográfico, per-sonagens como a Tia Zezé ou a cativante Dona Ozita, permaneceriam fadadas a sobreviver, após o fluxo natural de suas existências, apenas nas memórias da-queles com quem conviveram. Nesse sentido, Terra Tecida, cumpre com parte significativa do que se espera do ofício do historiador: dar uma segunda vida, esta mais pública e carregada de significados que os próprios sujeitos objetos das operações historiográficas parecem não ter a dimensão. Ainda com rela-ção às aproximações que o documentário em questão parece estabelecer com o ofício de historiador – mesmo que não tenha deliberadamente esse fim – é interessante traçarmos uma metáfora entre o conhecimento historiográfico e os desenhos encontrados nas rendas tão minuciosamente registradas em Terra Te-cida marcas de sentidos construídos pela narrativa historiográfica, assim como os desenhos de uma renda não são formados pelos fios tecidos, mas pelos vazios deixados entre eles. A riqueza de Terra Tecida não está apenas nas suas imagens e sons, mas nas possibilidades de trabalho que ele instiga.

As histórias e os sujeitos apresentados em Terra Tecida são pessoas comuns, anônimas, para além do universo que habitam: o pequeno povoado de Morros da Mariana, no litoral piauiense. O documentário segue o cotidiano de um gru-po de mulheres rendeiras, mas não quaisquer mulheres rendeiras e sim rendei-ras de bilros, que ainda praticam a arte trazida ao Brasil pelos portugueses du-rante os primeiros séculos de colonização.

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Do ofício com bilros no Piauí, pelo menos duas características podemos afirmar, ainda permanecem as mesmas da época dos primeiros contatos com a cultura lusa: ser uma atividade marcadamente dominada pelo sexo feminino e estar fortemente ligada às populações que habitam regiões litorâneas.

O filme tem início com um longo plano e a câmera permanece fixa, uma opção cinematográfica que se mostra dominante ao longo de Terra Tecida. Com a câmera posicionada dentro de casa e tendo à frente uma rendeira sentada ao lado da porta aberta, que dá acesso à rua, cria-se a sensação de que, envoltas em seu ofício, essas mulheres constroem um universo que lhes é bem particular: a pouca luminosidade do interior da casa, em contrataste com o excesso de luz provocado pelos raios solares no seu exterior, faz com que se destaquem os tran-seuntes, ciclistas e veículos, em detrimento da própria rendeira da qual só se identifica a silueta e a voz.

Essa cena inicial, embora possa incomodar um número significativo de es-pectadores, faz parte de um convite para que saiamos de uma experiência extre-mamente fluida frente ao tempo contemporâneo e entremos, apenas possamos sentir, uma outra experiência, fruto de um tempo que parece mais lento, de um tempo que não é pontuado pelo relógio ou pelos horários marcados ao ritmo frenético de uma cidade.

Esse tempo ao qual somos convidados a vivenciar ao longo de Terra Tecida é o tempo do pequeno povoado Morros da Mariana, onde o silêncio da tarde só é quebrado pelo barulho solitário do vendedor de sorvetes, é o tempo das próprias rendeiras, cujo único compromisso é com o trançar dos seus bilros. Não seria exagero afirmar que o tempo através do qual somos convidados a vi-venciar uma nova experiência (ou será antiga?) é o tempo pré-industrial. Essa experiência do tempo também não é a experiência de um tempo puro, enclau-surado num passado distante, mas a experiência de um tempo entrecortado de várias temporalidades: é o tempo das representantes de três gerações de mulheres, que se juntam num mesmo espaço para realizar seu ofício e trocar experiências, é o tempo que mantém o costume de sentar-se à “porta da rua” para, enquanto tecem rendas, conversar com as vizinhas. É, ao mesmo tempo, o tempo do telefone, da televisão via satélite, dos pequenos mimos modernos, que podem ser vistos nos interiores das casas, ainda que nas mais humildes. Nesse aspecto, ainda que mereça uma revisão, o pensamento de Marc Ferro7 permanece atual: o filme, mesmo que involuntariamente, pode ser uma ferra-menta para uma contra-análise da sociedade.

Mas se engana quem cria a diminuta expectativa de que só visualizará nesse registro cinematográfico as marcas da tradição da renda de bilros, pois encon-trará, sobretudo, uma rica tradição oral presente nos “causos” contados – quase sempre em tom bem humorado – pelas rendeiras; uma rica tradição oral nos ensinamentos passados entre avós, tias, sobrinhas, mães e filhas; e, por fim, en-contramos uma rica tradição religiosa na festividade do grupo conhecido como “As Pastorinhas” e nos símbolos de devoção entre as rendeiras.

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Ficha Técnica Título Original: Terra Tecida

País: Brasil.

Ano de lançamento: 2009.

Duração: 52 minutos.

Roteiro: Carlos Fadon /Juliana Campos.

Direção: Juliana Campos.

Edição: Luiz Duva.

Produção: Gardênia Cury / Art Vídeo.

Notas

· 1 PINHEIRO, Áurea da Paz; MOURA, Cássia. Passos de Oeiras. Documentário Etnográfico. Rio de Janeiro:

Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular/Associação Cultural de Amigos do Museu de Folclore

Edison Carneiro/Minc/IPHAN/Petrobras, 2008.

· 2 PINHEIRO, Áurea da Paz; MOURA, Cássia. As escravas da mãe de deus. Documentário Etnográfico. Rio

de Janeiro: Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular/Associação Cultural de Amigos do Museu de

Folclore Edison Carneiro/Minc/IPHAN/Petrobras, 2010.

· 3 PINHEIRO, Áurea da Paz; MOURA, Cássia. Congos: ritmo e devoção. Documentário Etnográfico. Teresina:

Educar artes e ofícios, 2009. Produzido via edital do Programa Monumenta/Iphan, do Ministério da Cul-

tura, com financiamento do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e apoio técnico da Unesco.

· 4 MACHADO, Douglas. Na estrada com Zé Limeira. Documentário. Teresina: Trinca Filmes, 2011.

· 5 ARRAES, Ricardo. Cidade Descarnada: memória e resistência dos antigos moradores do centro de Teresina.

Documentário. Teresina, 2012.

· 6 ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. História: a arte de inventar o passado. Bauru, SP: Edusc, 2007.

· 7 FERRO, Marc. Cinema e História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

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MARTINS, Luís (org.). Mares de Sesimbra – História, Memória e Gestão de uma Frente Marítima em torno de “A Indústria da Pesca em Sesimbra” de Baldaque da Silva (1897). Lisboa: Editorial Âncora, 2013.

Carlos Alberto Salsugem Engenheiro de Minas, Sonangol, USA. Angola

Este livro, Mares de Sesimbra: história, memória e gestão de uma frente marítima, evolui a partir de três factos: a greve dos pescadores das armações, iniciada em novembro de 1896, e que se terá prolongada por vários meses; o relatório A In-dústria da Pesca em Sesimbra (Março de 1897), da autoria de Baldaque da Silva, engenheiro hidrógrafo e oficial da marinha, membro da Comissão Central de Pescarias, que era então o órgão consultivo para a gestão das pescas em Portugal; o desejo antigo da população de Sesimbra, não só a piscatória, mas também no-táveis locais e de fora, com a particularidade de alguns estarem ligados à cultura e ao mundo académico, que entre os anos 1960 e 1970 deram os primeiros pas-sos para o estabelecimento de medidas de proteção das espécies piscícolas nos mares da Costa da Arrábida, movimento que culminaria na implementação do Parque Marinho Luís Saldanha nos inícios dos anos 1980.

Em complemento, há uma ideia base que acompanha a nossa leitura da obra: a incógnita, a incerteza, que fazem parte do ciclo vital das comunidades da bei-ra-água, seja dos profissionais da pesca, seja de cientistas e gestores, que vivem o dia a dia, muitas vezes com os pés assentes em suposições, em hipóteses de trabalho, em conjecturas, apesar de fundadas em longas empirias. Muitas vezes tendemos a dar à possibilidade o estatuto de uma certeza, de uma teoria, porque este é o modo de nos mantermos onde estamos.

São circunstâncias felizes aquelas em que nos propõem pesquisas que atra-vessam e sondam em extratos da realidade e do pensamento que estão por des-bravar. Creio que a escolha do método “cadáver esquisito”, embora mestiçado por os doze coautores terem partilhado e editado os argumentos uns dos outros, terá tido a intenção de implicar todos, de corpo e alma, numa lucidez que evitas-se a distração, o devaneio irrefletido, o que facilmente ocorre em estudos sobre as vicissitudes materiais e ideológicas da vida em sociedade, e onde é grande o risco dos seus investigadores se acomodarem aos aspectos formais da investiga-ção e à envolvência dos discursos.

As narrativas dos pescadores, que intercalam o corpo texto, Chochinha, Folques, Marinheiro, trazem a invenção da pesca, a nostalgia individual e colectiva da comu-nidade piscatória e, em simultâneo, como se reconhece quando estes profissionais analisam os tempos actuais, inúmeros sentimentos desencontrados e, sobretudo, o desencontro individual e da classe com a profissão. Mas, paradoxalmente, quando

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a vida se distancia da aiola, do bote, do peixe e dos mares em que tradicional-mente lançavam as artes, estes narradores exprimem um esvaziamento da iden-tidade, dramatizado, trágico para o coletivo.

Algumas notas finais acerca do livro enquanto paisagem, ambas associadas à minha formação e trânsito profissional pela engenharia de petróleos. Em pri-meiro lugar os mapas e fotos, a reprodução dos documentos (contratos de com-panhas, além do manuscrito original de Baldaque da Silva), bem como a organi-zação de um extenso e pormenorizado Glossário, parecem-me opções bastante informativas e muito úteis num contexto em que há vocábulos e frases de difícil tradução. A estruturação algo sedimentar, estratificada, da obra -– a sua comple-xidade e carácter experimental tem virtualidades e defeitos que os autores te-rão já diagnosticado, ou fá-lo-ão com o tempo – levantará questões de fundo aos leitores. Eu gosto de pensar que, tanto nas ciências, quanto no quotidiano mais comum, a “verdade” é algo que alcançamos nas profundidades: da natureza, dos movimentos sociais, das estruturas psíquicas e anímicas. É por isso notável a ideia da sobreposição de dois territórios – o da localização das armações valen-cianas e o perímetro do Parque Marinho Luís Saldanha –, identificando, com rigor, o lugar e a ordem cronológica dos eventos, mas sugerindo também que estes têm um novo sentido numa escala temporal dilatada.

Contactar o autor: [email protected]

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CRITICA

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Ana Rita AntunesLicenciatura em Design de Equipamento (2007) e Mestrado em Museologia e Museografia

(2012) pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. Atualmente colabora

com o coletivo cultural VOX MUSEI arte e património, na comissão executiva e curadoria.

Trato neste texto da Exposição Mediação entre dois mundos - Delta do Parnaíba, Brasil; e Sesimbra, Arrábida, Portugal, a decorrer no átrio da biblioteca muni-cipal de Sesimbra entre outubro e novembro de 2013. As fotografias da região brasileira são de Cássia Moura, as fotografias de Sesimbra das décadas de 50 a 70 do século XX são do acervo do Arquivo Municipal de Sesimbra e os apetrechos de pesca são da reserva técnica do futuro Museu do Mar de Sesimbra.

Mediação acontece quando existem dois polos em confronto e um mediador que estabelece a sua relação. Observo dois mundos, estabeleço a ponte de liga-ção, a passagem, o olhar crítico entre duas realidades localizadas em diferentes locais do mundo que ao mesmo tempo se cruzam, se interligam e estabelecem níveis de afinidade.

A mediação baseia-se na arte da linguagem para permitir a criação ou recriação da

relação. Implica a intervenção de um terceiro interveniente neutro, imparcial e in-

dependente, o mediador que desempenha uma função de intermediário nas relações.

Operacionaliza a qualidade da relação e da comunicação. (LASCOUX, 2001:7)

Uma das realidades que presenciei em alguns momentos do meu percurso, um mundo que geograficamente me é mais próximo e com o qual, tenho vindo a criar alguma ligação.

Sesimbra, 4h da manhã. Ainda estamos no Verão, mas a temperatura da madrugada é baixa, o som do mar, bem próximo de nós, é quase tudo o que se ouve no silêncio da noite. As ondas enrolam e batem forte no areal vazio e escuro. Esperamos. Os pescadores, serenos, observam o mar e os sinais que este lhes retribuiu; a barca preparada para sair para a pesca, as redes prontas a serem lançadas ao mar. O olhar mantém-se sereno, obser-vador, como se o pescador estabelecesse um diálogo silencioso com o mar.

Apenas os observo, sabem que ali estamos, mas tudo é feito como se nem existíssemos. Na atmosfera noturna, com o mar como testemunho da nossa presença, ouvimos o respirar mais intenso de cada corpo. O frio da noite começa a tornar-se desconfortável. Falamos com os pescadores e nos seus rostos, percebo tristeza. A serenidade e envolvimento com o

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mar, passadas umas horas, transformam-se em solidão e sentimento de perda, pois nesse dia o mar não os quis receber nas suas águas.

Em conversa com os pecadores, contam sobre a sua arte, de xávega assim é chamada, do étimo árabe «xabaca», que significa rede.

Por arte de xávega entende-se uma rede envolvente de alar para a praia […] A arte é larga-

da por uma embarcação que se afasta da praia deixando em terra um cabo de

alagem (cala), descreve um percurso envolvente calando a rede e regressa à praia condu-

zindo um segundo cabo de alagem. O esforço de tração necessário à alagem

da arte para a terra pode ter origem mecânica ou animal (incluindo, esta, a força braçal

humana). (PORTARIA n� 488/96. “D.R. I série B”, nº 213)

Percebo, após algumas horas, a árdua tarefa destes homens nos dias de pesca, a sua luta e coragem para enfrentarem a noite, lançarem-se ao mar com as redes e algumas horas depois, com um trabalho duro e pela força do corpo, puxam as redes do mar e recolhem o peixe que apanha-ram naquele dia. Hoje o mar, não me permitiu registar na memória tais momentos. Os pescadores seguem para suas casas, e ainda de madrugada, as suas sombras desaparecem pela noite escura.

O outro mundo, desconheço e não me é próximo, nem tão pouco algum dia o explorei. Contudo observo-o através do olhar da fotógrafa Cássia Moura, ima-har da fotógrafa Cássia Moura, ima-gino-o e consigo, quase, senti-lo.

Rio Delta do Parnaíba, as canoas coloridas, amarradas entre si, numa esta-ca próxima da areia, flutuam lado a lado, conversam com quem as observa e transmitem a memória dos dias em que saem rio abaixo, para a pesca. Os tons destas estruturas em madeira, distinguem-se do neutro das águas e do areal. A pesca nas águas do rio ou em alto mar utiliza diferentes tamanhos de canoa.

Famílias inteiras remam, manuseiam com delicadeza os lemes, e ru-mam rio adentro para lançarem as suas redes, apanharem peixe e cata-rem caranguejo. O dia a dia destas comunidades ribeirinhas segue um ciclo constante, onde a transmissão oral é o manual de sobrevivência dos mais novos, que desde cedo, aprendem os processos de pesca, da re-paração da canoa até à preparação das redes. Ainda crianças usam estas embarcações tradicionais para as suas brincadeiras, enquanto as mesmas repousam numa das margens das águas do rio. Consigo imaginar a feli-cidade, os mergulhos e o riso que se propaga bem próximo de quem os fotografa. Estas crianças são os futuros homens do mar.

Ainda na areia com minúcia e precisão reparam a “caçoeira”, um trabalho de longas horas, que se repete com regularidade depois de vol-tarem da pesca. A rede transportada para a canoa é arrastada pela areia

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como um véu. A forma como ela se lança e desenrola é uma dança sincro-nizada de movimentos precisos e ritmados, balanceando o corpo como se a rede fosse uma extensão do mesmo, naquele emaranhado de fios. Tudo flui e se desembaraça com facilidade e delicadeza.

Do outro lado da praia, os construtores das embarcações tradicionais talham a madeira. O cheiro do seu pesado trabalho é quase respirável e no movimento do corpo, consegue sentir-se o som emitido por todas as fer-ramentas. Os que pintam as embarcações, já mais tranquilos de espírito, transmitem uma leveza no pincel que desliza pelo casco de madeira. Ver-dadeiros artesãos que se dedicam diariamente à construção destas barcas alongadas, que deslizam pela corrente do rio e fluem por entre os mangues.

As técnicas de construção naval são remanescentes das populações indígenas que habitavam

a região do rio e delta, os tremembés, e dos primeiros colonizadores. Lembramos que a região

recebe influência de populações do Ceará, Maranhão, Bahia e Pernambuco, o que provavel-

mente tenha influenciado as técnicas de construção naval. (PINHEIRO, MOURA, 2009:37)

A canoa pronta e apetrechada está de saída para o mar. Uma vez mais o trabalho de equipa é exigido e os pescadores transportam e empurram a embarcação com toda a sua força colocam-na mar adentro, rumo a mais umas horas de pesca.

A afinidade entre estes dois mundos é extraordinária, pois podemos interli-gá-los e estabelecer uma mediação através de infinitos conceitos, experiências, materiais, sentimentos, propósitos e dedicações. O que os une é imenso e com-plexo. A arte da pesca, o ritual que está associado a toda esta prática, o respei-to pelo mar, pelo rio e pelos seres que nele habitam. O trabalho do pescador, a sua devoção e o diálogo, em surdina, que cada homem da pesca mantém com as águas por onde desliza. O mar e o rio, como extensões do homem.

Mediar, presenciando um dos mundos, deixando-me envolver por completo. O acesso ao outro mundo, pelas vivências do outro, do seu olhar atento, observa-dor e com a sensibilidade para o registo fotográfico. Uma mediação pura e genuí-na, que tenta retratar o sentido de vida dos pescadores, a sua luta, coragem e persis-tência em manter viva uma tradição, que hoje em dia, no mundo que me é próxi-mo, ultrapassa questões de sobrevivência, mas que é a vida destes homens do mar.

A pesca sesimbrense retratada pela arte de xávega com registros fotográficos das décadas de 50 a 70 do século XX, apresentados e confrontados com fotografias da Ilha das Canárias, Delta do Parnaíba de Cássia Moura, 2009 a 2012. Retratos fiéis de realida-des distintas a nível geográfico e temporal, que se misturam, convergem e traduzem de forma plena e transparente o que vive o pescador e toda a adoração pela sua arte.

A exposição retrata duas realidades distantes e tão próximas. Uma aiola que já não vai ao mar, como o coração que bombeia o som do mar e contextualiza

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a arte de pesca que ocupa o espaço expositivo. Como pano de fundo as redes cobrem as paredes e os diferentes registos fotográficos estão seguros por anzóis como se de iscos se tratassem.

Umas horas mais tarde da conversa com os pescadores… registamos o mar, o som das águas a rebentarem na areia, as gaivotas a sobrevoar a praia ao nascer do dia, ainda com uma brisa fresca que envolve a nossa presença e é atravessada pelos primeiros raios de luz. A praia continua deserta e os primeiros seres vindos em bando, sobrevoam e pisam o areal.

No espaço expositivo colocamos estas duas realidades frente a frente, a olha-rem para as especificidades de cada uma, a criarem sinergias e a permitirem que os visitantes se deixem envolver, que se sintam abraçados pelo som do mar que ecoa pela sala. O ambiente criado, transporta-nos para os mundos retratados.

Ouve-se o mar, o rebentar das ondas e espreita-se a dança constante dos por-menores da pesca, da azáfama da lota, da minúcia da reparação das redes, da pas-sagem de saberes entre gerações. Estes dois mundos, abraçados pelo Atlântico, convergem nesta exposição que nos leva a senti-los, cheirá-los e observá-los.

Ficha TécnicaExposição: “Mediação entre dois Mundos”

Fotografias, Brasil: Cássia Moura

Fotografias, Portugal: Acervo do Arquivo Municipal Sesimbra

Curadoria: Ana Rita Antunes, Áurea da Paz Pinheiro e Cássia Moura

Produção: VOX MUSEI arte e património

Apoio: Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, Universidade Federal

do Piauí/Brasil e Câmara Municipal de Sesimbra/Portugal

Agradecimentos: Aos homens e mulheres do mar

Referências e Notas

· LASCOUX, Jean-L ouis Pratique de la Médiation, une méthode alternative à la résolution des conflits, ESF

éditeur, p.7. 2001.

· MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, DO DESENVOLVIMENTO RURAL E DAS PESCAS, PORTARIA n�

488/96. “D.R. I série B”, 213 (96-09-13) 3167-3170.

· PINHEIRO, Áurea; MOURA, Cássia – Relatório do Museu Nacional do Mar [Parnaíba – Piauí]; pesquisa

histórico-etnográfica. Teresina (PI): 2010.

· 1 Expressão latina “Do mar para o mar”

Contactar a autora: [email protected]

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Convidamos para a seção entrevistas da Revista VOX MUSEI o Prof. Luís Jorge Rodrigues

Gonçalves - Historiador da Arte, Arqueólogo e Museólogo; doutor em Belas-Artes pela

Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. Atualmente, é diretor da Faculdade

de Belas-Artes da Universidade de Lisboa; pesquisador do Centro de Investigação

e Estudos em Belas-Artes, docente dos Programas de Pós-Graduação – Mestrado em

Museologia e Museografia e doutorado em Belas-Artes, especialidade Museologia.

Entrevista de Áurea da Paz PinheiroDuração: 1h

Áurea Pinheiro – Professor fale-nos de seu encontro com a História da Arte, Arqueologia, Património e MuseologiaLuís Jorge R. Gonçalves - Começou cedo, devido ao local onde morei até cerca dos 25 anos, na área de Belém; com o Mosteiro dos Jerónimos, a Torre de Belém, o Palácio da Ajuda, a Igreja da Memória, o Museu Nacional de Arqueologia, O Museu de Marinha, o Museu dos Coches, o Museu de Arte Popular, entre outros monumentos e museus. Também todos os anos ia em férias para a região de Bra-ga, mais concretamente para a zona do Vale do Cávado, Póvoa de Lanhoso, onde era forte a presença de igrejas românicas e barrocas, de castelos, de santuários, do Parque Nacional da Peneda Gerês, pontes romanas e medievais, palácios e todo um património rural, como espigueiros, casas rurais. Por exemplo, a casa onde viviam os meus avós, do lado do meu pai, era de 1643.

Toda esta presença quotidiana de monumentos, ruínas e museus, cedo me aguçaram a curiosidade para saber as origens daqueles edifícios. Recordo com muita ternura os anos, deveria ter 7 ou 8 anos, em que o meu avô, ao lado minha mãe, passava pela minha casa e me levavam à missa no Mosteiro dos Jerônimos, depois seguíamos para o Museu Nacional de Arqueologia e para o Museu de Ma-rinha, onde o meu avô me explicava as peças, então dispostas de forma muito pouco didática.

Este dia a dia com o património levava-me a ler, sobretudo a partir dos meus 12 anos, quando estava no ensino médio. Também o interesse pela história ad-vém dum momento histórico que vivi, que foi o 25 de Abril de 1974 e todo o processo que se seguiu, embora com os meus 11, 12 e 13 anos, porque foi uma

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época em que havia uma constante referência à história, ao passado recente, que se queria apagar e fazer “avançar” a história.

Durante o ensino médio a minha disciplina favorita foi História, mas tam-bém todas aquelas que ajudassem a explicar as nossas origens, quer no campo da biologia ou da geologia. Acabei por fazer o curso de História, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde me dediquei mais à Arqueologia, muito importante para entrar num discurso que até tinha sido hermético. Durante es-ses anos não tive contato com o mundo da Museologia, uma falta muito grave no curso de História da Faculdade de Letras.

No entanto, foram anos intensos de trabalho no domínio da Arqueologia, mas também da História da Arte, sendo para mim inexplicável o corte entre a investigação em História da Arte e a Arqueologia. Nos anos da licenciatura trabalhei em escavações arqueológicas, no estudo de materiais, de diferentes períodos, desde o Mesolítico até épocas contemporâneas, um pouco por todo o país. Publiquei os meus primeiros textos sobre arqueologia. Foram anos muito produtivos e onde fiz muitas relações de amizade, conheci muitas pessoas, que ainda hoje continuam nas minhas relações.

Quando terminei o curso de história fiz um curso de Turismo Cultural, no Centro Nacional de Cultura, onde tive disciplinas estruturantes no domínio do património cultural e natural; foram abordados temas como o património histórico-artístico, industrial, urbano, etnográfico, museológico e natural, em toda a sua dimensão; as aulas eram ministradas por um conjunto de docentes, entre outros, Agostinho da Silva, Rio de Carvalho e Viegas Guerreiro, para citar os que já faleceram. Nesse contexto, uma pessoa central na minha formação foi o Professor Fernando António Baptista Pereira, quer nos anos da Faculdade de Letras, quer no curso referido.

No meu percurso a seguir surgiu a possibilidade de construir um museu li-gado à indústria corticeira, numa antiga fabrica transformadora desde material, num município perto de Lisboa. Foi uma formação na prática muito produtiva permitiu-me adquirir um dos aspetos mais importantes da Museologia que é capacidade de contato com os diferentes intervenientes no processo museoló-gico, desde o decisor político ao motorista, que transporta as peças para o mu-seu, passando pelos arquitetos, design, especialistas da componente científica, professores, alunos, eletricistas, etc. Por outro lado esta experiência colocou na minha responsabilidade a gestão dos barcos tradicionais do Rio Tejo, o que tam-bém constituiu outra grande experiência, porque fiquei em contato com toda a cadeia operativa para que os barcos funcionassem, desde os marítimos, os construtores navais, as autoridades marítimas, as solidariedades que existiam no estuário do Tejo, em resumo, os problemas reais da gestão museológica, num projeto que não era canónico em termos museológicos, que era a gestão de duas embarcações com valor museológico, importante para aquela comunidade, sím-bolo da sua identidade.

Também permitiu a realização de inúmeras exposições temporárias sobre

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as mais variadas temáticas, desde a origem do universo e da vida, sobre o ciclo do sobreiro e da cortiça, a origem do homem, as embarcações tradicionais, etc.

O museu ligado à antiga indústria conserveira não se realizou por dificulda-des, mais que financeiras, de visão estratégicas dos políticos de então, dado que hoje passamos por essa antiga fábrica, em ruínas, que podia ser um polo cultural e mesmo económico dada a beleza que o espaço representava.

O momento seguinte levou-me a enveredar pelo mestrado porque sentia a necessidade de um trabalho de investigação mais puro e optei por estudar castelos, uma tipologia patrimonial que estava no meu imaginário desde a in-fância. Escolhi uma região muito concreta, a Beira Interior, na fronteira com Castela/Espanha, desde o século XII e em que os castelos funcionaram como defesas do território português, mas também como centro fixação de comuni-dades naquele território. Para lá dos aspetos inerentes a cada castelo impor-tava também entender a sua implantação estratégica, a construção de uma fronteira que até hoje existe e que delimitou tão claramente dois países e duas culturas e que marcas deixou naquela região.

Por outras palavras, a tese de mestrado teve por objetivo estudar um con-junto patrimonial em toda a sua dimensão histórica e antropológica, por o pa-trimónio em primeiro lugar, vez que tem de ser compreendido em toda a sua dimensão humana e natural.

O museu é isso mesmo. Somente uma parte do museu é que são os objetos, a outra é o conhecimento e a divulgação desse conhecimento sobre os objetos.

Quando realizei a tese de doutoramento, parti dessa ideia para o estudo da escultura romano em Portugal, por reunir uma coleção a partir de trabalhos arqueológicos (em descobertas ocasionais e trabalhos programados), de grande importância artística e patrimonial e que permitia construir narrativa sobre a época romana no território português. Dada a importância da imagem do mun-do romano do qual nós somos herdeiros diretos.

Portanto, o encontro com a História da Arte, a Arqueologia, o Património e a Museologia ocorre todos os dias, num olhar transversal para a sociedade de hoje e olhar para o passado na sua globalidade e não estudar de forma fragmen-tada; o trabalho com essas áreas é um misto entre uma retaguarda teórica e uma vivência diária que nasce duma observação constante de tudo o que nos rodeia. O binómio entre a atualização teórica e vivência é muito importante para traba-lharmos com o património.

Áurea Pinheiro: Que trabalhos realizou?Luís Jorge R. Gonçalves - Ao longo de muitos anos de trabalho adquire-se, essen-cialmente, uma experiência que nasce em cada minuto da nossa vida e no con-tato diário com a realidade quotidiana, a par de um acompanhamento teórico. Os trabalhos que tenho realizado no campo do património, e quando me referi a este conceito já considero a História da Arte, a Arqueologia e a Museologia, dado que se os dois primeiros constroem um discurso científico a Museologia é

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a democratização desse discurso; a minha prática profissional tem se realizado na academia e nas comunidades, entre investigação e docência, atividade peda-gógica, sendo que nesta última tendo realizado muitos trabalhos com os alunos da Faculdade de Belas-Artes.

Quando olho para trás, penso que já perdi a conta, mas alguns trabalhos fi-cam na nossa memória pelo envolvimento pessoal e pelo que significam para quem participa no projeto e a quem se destina o projeto. Selecionando alguns projetos diria que aqueles que realizei com alunos me deram particular gosto de realizar, porque implica uma descoberta mútua e uma maturação por parte dos alunos. Dou como primeiro exemplo um projeto realizado em Évora sobre a Évora Megalítica e a Évora Romana, intitulado Megalithica Ebora, envolvendo cerca de cem alunos e que constitui hoje uma exposição permanente no Con-vento dos Remédios em Évora.

Outro projeto nos mesmos moldes foi em Idanha-a-Nova, também com um conjunto fora de série e muito dedicado de alunos, construiu-se a exposição ComTemplários, dedicado aos castelos templários do território de Idanha-a-Nova. Foram projetos que pelo envolvimento dos alunos, das comunidades locais, atra-vés das autarquias, possibilitaram uma grande experiência a todos os envolvidos.

As duas teses realizadas, mestrado e doutoramento, também foram projetos muito positivos por permitirem um trabalho de investigação pura que obriga a uma capacidade de organização e estruturação pessoal que é muito importante para a nossa vida.

Também houve um projeto no qual me envolvi que me deu grande agrado em trabalhar, trata-se de um levantamento patrimonial na Serra da Estrela, ao qual dediquei cerca de três anos. Tratava-se de um trabalho com aquela comu-nidade serrana envolvendo o património imaterial e o património material, ou seja, as comunidades de pastores, mas também um levantamento de património edificado num vasto território, que naquela altura coincidiu com a realização da tese de mestrado, sendo um trabalho que se refletiu muito na tese final, por ter permitido entrar na essência daquela região do interior de Portugal.

Outro projeto de alcance diferente foi a criação do Museu do Douro. Em 1997, foi-me solicitado apoio, pelo deputado António Martinho, no sentido de se poder conceber um modelo teórico, com aplicação prática, de um museu para a região do Rio Douro. Partindo da ideia de que a região do Douro pode ser um grande museu, tendo em conta o enquadramento natural e agrícola, o vasto património cultural, material e imaterial da região, foi proposto por mim um modelo de museu com estrutura polinuclear distribuído por toda a Região do Douro. A concessão que escrevi pode ler-se na lei da Assembleia da Repúbli-ca n.� 127/97 de 2 de Dezembro de 1997. Hoje, passados todos esses anos fico muito contente por ver o museu instalado e a desenvolver as suas atividades, a partir de uma conceção de museu que tinha e que se reflete na lei de criação do Museu do Douro.

Atualmente, considero como muito envolvente os projetos com o Brasil, que

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estão a permitir-me novas descobertas, novas formas de observar o património cultural, ao nível imaterial e material. Por exemplo, em Portugal o património é encarado na sua maioria como um assunto dos especialistas, muito ligado aos âmbitos académicos, sem preocupação com o retorno social, porque é a comuni-dade no seu conjunto financia a investigação na área patrimonial. Ora, no Brasil, há essa preocupação muito acentuada, ao mesmo tempo que há um forte envol-vimento das comunidades no património cultural, porque esse património fun-damenta a sua existência. No projeto do delta do Parnaíba, no Norte do estado Piauí e Maranhão, no qual estou envolvido, observa-se essa necessidade, ou seja, a comunidade necessita de consciência da sua história. Considero ser um grande desafio, porque envolve o património natural e cultural, este na sua dimensão material e imaterial. É possível realizar um projeto desde as origens da ocupação do território até às dinâmicas atuais, sendo muito importante o envolvimento da comunidade e ainda a participação ativa da universidade, porque vai permi-tir também aos alunos conhecerem melhor o seu território.

Áurea Pinheiro – E o Projeto do Museu do Mar de Sesimbra?Luís Jorge R. Gonçalves - Comecei a colaborar com a Câmara Municipal de Se-simbra em 1998 e desde logo o primeiro desafio foi a construção de um progra-ma museológico, dado que em Sesimbra havia três coleções sem espaço digno e um conjunto de edifícios notáveis sem programa. As coleções eram de artes do mar, de arqueologia e de arte sacra. Entre os edifícios notáveis estava o castelo medieval, a fortaleza de Santiago, a Casa do Bispo, o Santuário do Cabo Espichel, a Capela do Espírito Santo dos Mareantes, a vila de Sesimbra e todo um territó-rio enquadrado no Parque Natural da Arrábida.

O programa museológico consistiu em criar uma narrativa que passava pelas dinâmicas naturais, a geologia e a biologia, e pelas dinâmicas humanas, a histó-ria de ocupação do território, desde a pré-história aos nossos dias, passando pelo que mais define a identidade local, a arte sacra, as atividades marítimas e de pes-ca, o mundo rural. Ao longo dos anos foi-se implementando paulatinamente o programa. Em primeiro, o museu de arte sacra, na capela do Espírito Santo, onde associou uma excelente coleção de arte sacra, que tem entre outros artistas o pin-tor Gregório Lopes, pertença de diversas instituições de Sesimbra, entre as quais a Santa Casa da Misericórdia (foi realizado um trabalho de colaboração entre as ins-tituições, o que foi muito importante), a um espaço singular em Portugal, porque se tratava da antiga Capela e Hospital do Mareantes, datado na sua origem do últi-mo quarto do século XV. Nesse projeto, exibe-se a coleção de arte sacra, num espa-ço histórico. Depois, o Castelo de Sesimbra, com o programa que procurava fazer o castelo “falar”, dado ser uma estrutura militar desde o século XIII, onde nasceu a vila de Sesimbra e onde esteve até ao século XVI. O programa criou um circuito pelo castelo e foram musealizadas as duas torres com uma linguagem acessível e com maquetas que reconstruiam o castelo antes de ser “abandonado”. Foram criados circuitos pedestres pelo concelho para permitir uma leitura da paisagem

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e ainda, onde para além dos aspetos geológicos e biológicos gerais, há ainda as pegadas de dinossauros em três núcleos bem diferentes.

Na sequência deste trabalho do programa museológico, iniciou-se em 2007 o pro-jeto da Nova Carta Arqueológica de Sesimbra. Era objetivo responder a duas questões: Quais foram as estratégias de ocupação do território e como o homem aproveitou os recursos naturais. Foi um projeto de dois anos com um trabalho sistemático de des-coberta de inúmeros sítios arqueológicos que nos permitiu responder às questões co-locadas e pensar noutra fase do projeto museológico, com a criação de um Parque da Pré-história da Arrábida. Trata-se de implementar um projeto que pretende ser uma outra fase da Museologia, com a construção de aldeias do período do Neolítico e da Idade do Bronze (os dois períodos mais representados) e onde os públicos sejam convi-dados a participar e a integrar as vivências quotidianas dos períodos referidos, em toda a sua dimensão, mas sobretudo a tecnológica. Penso tratar-se de uma Museologia do fazer, não da exposição. Claro que deve ser acompanhado de toda uma componente científica e é isso que o distingue dum parque de diversões.

No presente, o programa passou pela recuperação de uma moagem do início do século XX, sendo uma referência ao mundo rural e pelo desenvolvimento do projeto do Museu do Mar a instalar na Fortaleza de Santiago.

Sesimbra tem constituído o centro da minha atividade museológica, porque entendo que a Museologia é envolvimento prolongado com uma comunidade. Eu próprio faço parte dessa comunidade local, porque vivo, os meus filhos frequen-taram as escolas de Sesimbra e portanto esse envolvimento diário é muito impor-tante. Quero referir um dos aspetos desse envolvimento que passa, por exemplo, quando vou comprar pão todas as manhãs, peço o pão pelo nome do padeiro que o fabrica, porque cada padeiro tem o seu tipo de pão e gosta-se mais de um que de outro. Isto é estar envolvido, fazer parte de uma comunidade, com quem se traba-lha e é muito importante para os projetos patrimoniais e museológicos.

Ainda um aspeto em Sesimbra, que é a necessidade de constituir boas equipas interdisciplinares e desse ponto de vista foi possível em Sesimbra. Falo aqui do Rui Francisco (Loia), um excelente espeleólogo, que descobriu numa gruta a placa islâmica datada do século X, do Manuel Calado, na arqueologia, do Ricardo Men-des e da Carla Pereira, na espeleologia e na biologia, e muitos outros desta equipa no terreno. Mas ainda o Paulo Caetano na componente de geologia. E na Câmara Municipal de Sesimbra o João Ventura, a Andreia Conceição, o Rui Marques e a Raquel Santana, entre outros. Como disse, é uma equipa interdisciplinar, que con-ta com geólogos, artistas plásticos, design, arqueólogos, biólogos, antropólogos, museólogos, historiadores de arte, espeleólogos, essencial para uma leitura ampla do mundo que nos rodeia.

Áurea Pinheiro – Como avalia a presença do Mestrado em Museologia e Museogra-fia na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa? Luís Jorge R. Gonçalves - A Faculdade de Belas-Artes foi a primeira instituição do ensino superior a criar a disciplina curricular de Museologia através do

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Professor Carlos Amado. Tratava-se de uma disciplina de opção aberta a todos os cur-sos, com uma componente teórica e outra prática. A avaliação tinha as duas compo-nentes, uma teórica/prática de análise de um museu e um projeto de intervenção.

No início da década de 2000, pretendeu-se evoluir na oferta formativa tendo--se construído o Mestrado de Museologia e Museografia, que reflete já essa dupla componente teórica e prática no campo da Museologia. Pelo facto de funcionar numa Escola de Belas-Artes tem que ter necessariamente essa dupla caracterís-tica, porque os alunos formados nesta Faculdade são necessários profissionais de intervenção, que dominam as componentes teóricas, mas são criadores de imagens, de obras, de espaços, além de uma forte componente de restauro.

Neste sentido, o mestrado no primeiro ano, primeiro semestre tem disci-plinas que incidem sobre a Teoria e História da Museologia, sobre a educação do olhar (Shadow Curating), sobre a intervenção no espaço museológico (Praxis Museológica), e sobre a organização do espaço museológico (Design de Apresen-tação I). No segundo semestre, intensifica-se a componente prática, com Progra-mação, Design de Apresentação II se Projeto, além de entrada nas questões da Conservação e dos Restauro.

Trata-se de um plano de curso equilibrado, onde a grande preocupação está na intervenção. A Faculdade tem ainda mais mestrados na área da intervenção patrimonial, como em Curadoria, Ciências da Conservação, Restauro e Produ-ção de Arte Contemporânea e o Mestrado Património Publico, Arte e Museo-logia, este que irá ceder ao Mestrado Artes, Património e Museologia, a realizar com a Universidade Federal do Piaui, Brasil.

A Faculdade de Belas-Artes foi pioneira nos estudos do património cultural em Portugal e esteve sempre nessa vanguarda desses estudos; a realização do Vox Musei, na Faculdade, é a continuação de um contributo. O mais importante é ser uma organização partilhada com a Universidade Federal do Piauí abrindo uma nova etapa na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa.

Contactar o entrevistado: [email protected]

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Memórias de investigação em uma Comunidade de Pescadores Tradicionais no Litoral do Piauí, Brasil

Fábio José Lustosa da Costa FerreiraMestre em Educação, Especialista em Arqueologia e Docente do Departamento

de Ciências Sociais da Universidade Federal do Piauí

Ao Moacir Ferreira [in memoriam], meu pai e um marujo de boas viagens! [...] Aos

Pescadores das pequenas comunidades do Piauí e do Maranhão, com os quais convivi

e aprendi muito.

Apresentamos algumas memórias de investigação realizada na comunidade de Pescadores da Praia do Macapá, litoral leste do Estado do Piauí, Brasil; os estudos centraram-se em uma abordagem etnográfica; observamos saberes, fazeres, tá-ticas e estratégias de subsistência que caracterizam o modo de vida tradicional daquela comunidade; evidenciamos alguns elementos da cultura material ribei-rinha relacionados à habitação e à pesca, cujo objetivo foi registrar a interação homem-meio ambiente-sustentabilidade.

Essas memórias fazem parte de um tempo de nossas vidas dedicado a obser-var a estreita faixa costeira do litoral do Piauí, uma das mais belas e preservadas do Nordeste do Brasil, com águas próprias para o banho e prática de esportes; lugar tranquilo, com um rico e complexo patrimônio cultural e natural; regis-tramos saberes e fazeres tradicionais vivenciados por Pescadores e suas famílias na Praia do Macapá; o nosso desejo foi realçar as mudanças sócio-ambientais, consequências de um conjunto de fatores de ordem natural e antrópica, dentre eles a acentuada dinâmica costeira, a remodelação da paisagem ou empreendi-mentos imobiliários e turísticos.

Ao interagirmos com a natureza, produzimos uma série de conhecimentos e transformamos o ambiente que nos circunda, elaboramos um complexo siste-ma de formas ambientais e culturais.

Algumas comunidades desenvolvem formas de exploração dos recursos natu-rais, que lhes permitem viver sem comprometer o equilíbrio do meio ambiente; são comunidades tradicionais formadas por grupos quantitativamente restritos, que utilizam tecnologias simples nas táticas de subsistência, estabelecem uma relação de respeito para com a natureza, integrando-se aos seus ciclos orgânicos.

No Brasil, as comunidades tradicionais de Pescadores litorâneos encontram--se disseminadas em pequenos grupos dispersos ao longo das praias; mantém--se relativamente isolados dos centros urbano-industriais e de suas influências culturais. Essas comunidades formaram-se a partir de certas condições naturais favoráveis aos seres humanos:

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[...] apresentam na sua forma de ocupação do solo e utilização dos recursos naturais, toda

uma tradição relativa à pequena pesca costeira, tradição que se perpetuaria até nossos dias

conservadíssima, em seus ingredientes portugueses e indígenas” (MUSSOLINI,1980: 298).

A grande maioria dessas comunidades vivenciou o processo de ocupação urbano-turístico ou industrial em suas áreas, resultando uma desarticulação dos elementos culturais e, consequentemente, na perda de saberes tradicionais, que guardam importantes informações sobre o aproveitamento dos recursos naturais.

Sobre a importância dos saberes e fazeres tradicionais lembramos o docu-mento elaborado por especialistas de diversos países durante a Conferência da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação realizada em Roma entre 1983/1984, sobre desenvolvimento pesqueiro:

Os últimos dados disponíveis de muitos países do Terceiro Mundo, indicam que as

pescas artesanais são as mais viáveis do ponto de vista econômico, e as mais dese-

jadas do ponto de vista social, sobretudo quando exploram ecossistemas costeiros.

Alguns fatores importantes, como a natureza dos recursos naturais disponíveis nas

águas tropicais, a dispersão espacial das comunidades de Pescadores, a ampla utili-

zação de materiais disponíveis localmente, o direcionamento do pescado a mercados

locais, e o uso reduzido de combustíveis fósseis justificam a prioridade a ser dada a

esse sistema de produção. (Curso Nacional de Capacitação em Gerenciamento

Costeiro, 1987: 26).

Igualmente, lembramos que a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro em 1992, aprovou na Declaração do Rio-Principio 22 “[...] o reconhecimento do papel funda-mental das populações tradicionais na ordenação do meio ambiente e do desenvolvimento sustentável, devido a seus conhecimentos e práticas tra-dicionais”. (Coordenadoria de Educação Ambiental, Meio ambiente e Desen-volvimento - SP, 1993:11).

Na pesquisa que realizamos no povoado Praia do Macapá, formado por uma comunidade tradicional de Pescadores litorâneos, no município de Luis Correia, Estado do Piauí, região Nordeste do Brasil, registramos em textos e imagens determinados aspectos que caracterizam seus modos de vida, eviden-ciamos àqueles relacionados às atividades de subsistência baseados na pesca e coleta dos recursos marinhos, como também os que se referem ao processo de construção de suas casas. Nesse sentido, procuramos focalizar a relação de aproveitamento e uso sustentável dos recursos da natureza.

Foram igualmente abordadas questões relacionadas ao processo de mu-danças sócio-ambientais que atingem a área e a comunidade, mudanças pro-vocadas por fatores naturais (dinâmica costeira, erosão fluvio-marinha), e por

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fatores antrópicos (construção da estrada asfaltada, introdução da eletricidade e atividade turística).

Escolhemos a comunidade pelos seguintes motivos:

a) São detentores de um saber tradicional, que se formou nas experiências e práticas seculares;

b) Sua localização em ecossistema estuário, um ecossistema considerado por sua relevância ecológica, por constituir berçários e viveiros naturais para mui-tas espécies (crustáceos, moluscos e peixes), onde se reproduzem e passam parte do seu ciclo de vida retornando depois ao oceano. Além disto, trata-se também de um ecossistema bastante susceptível as pressões antrópicas;

c) E por último, as rápidas transformações sócio-ambientais citadas anteriormente.

Para realizar a pesquisa, procuramos orientação na literatura etnográfica, que apresenta elementos comuns e representativos à nossa proposta de traba-lho. Assim, utilizamos os clássicos B. Malinowski (1992) e M. Mauss (1947), para compreendermos os procedimentos básicos da etnografia, do trabalho de campo, da postura do observador, enfim, da metodologia da pesquisa. Quanto aos elementos mais específicos das comunidades tradicionais litorâneas exis-tentes no Brasil, consultamos trabalhos de A. C. Diegues (1983) e de M. Peirano (1975), que realizaram estudos etnográficos junto aquelas comunidades; sobre a utilização da linguagem fotográfica no trabalho, recorremos a E. Edwards (1996), que enfatizou o uso da fotografia como documento para transmitir in-formações antropológicas.

Malinowski investigou as populações costeiras das ilhas do sul do Oceano Pacifico, seu estudo representou uma inovação no método de investigação an-tropológica, quando estabeleceu o significado e a importância das informações obtidas por meio da observação participante durante os trabalho de campo. Para ele, se fazia necessária a convivência diária do pesquisador com a comunidade que pretendesse estudar. Relata:

[...] no meu passeio matinal pela aldeia, podia observar detalhes íntimos da vida familiar -

os nativos fazendo sua toalete, cozinhando, comendo; podia observar os preparativos para

os trabalhos do dia, as pessoas saindo para realizarem suas tarefas; grupos de homens e

mulheres ocupados em trabalhos de manufatura. Brigas, brincadeiras, cenas de família,

incidentes geralmente triviais, às vezes dramáticos, mas sempre significativos, formavam

a atmosfera da minha vida diária [...]”. (1922:21).

Ou mesmo recomendando ao etnografo “[...] que de vez em quando deixe de lado máquina fotográfica, lápis e caderno, e participe pessoalmente do que esta acontecendo” (Ibidem: 31).

Em Malinoswki encontramos a definição das fases de elaboração do trabalho

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etnográfico, desde o levantamento da bibliografia existente sobre a cultura a ser in-vestigada, da descrição dos métodos e técnicas utilizados à coleta do material etno-gráfico; destaca o uso de registro fotográfico e a análise dos dados. Para ele,

[...] um trabalho etnográfico só terá valor cientifico irrefutável se nos permitir distin-

guir claramente, de um lado, os resultados da observação direta e das declarações

nativas e, de outro, as influências do autor, baseadas em seu próprio bom senso e

intuição psicológica. (Ibidem: 18).

Outro aspecto que se sobressai em Malinowski é a riqueza de detalhes de sua descrição etnográfica: “[...] posso dizer que cada fenômeno deve ser estudado a partir do maior número possível de suas manifestações concretas; cada um deve ser es-tudado através de um levantamento exaustivo de exemplos detalhados”.(1922: 27).

Suas observações sobre as canoas dos nativos que pesquisou procuram des-crever as principais características tecnológicas, suas formas de uso e sua impor-tância social.

Posteriormente ao trabalho de Malinowski, Mauss (1947), em seu Ma-nual de Etnografia, estabeleceu sistematicamente os procedimentos da prá-tica da pesquisa etnográfica; apresentou os princípios de observação e suas dificuldades. Para Mauss, os métodos de observação podem ser extensivo e intensivo. O método extensivo é superficial e consiste em registrar quantita-tivamente informações sobre uma área, o mais rápido possível; o intensivo, próprio da etnografia profissional é uma observação aprofundada sobre de-terminada comunidade. O objetivo de Mauss era orientar aqueles que fos-sem desenvolver um trabalho de pesquisa intermediário entre um estudo intensivo e outro extensivo.

Segundo Mauss (Ibidem), existe uma distinção entre a observação e o registro daquilo que é material e daquilo que é moral. O “registro material” se refere aos dados físicos, que para serem registrados recomendou o uso da fotografia como um dos métodos adequados, juntamente com a cartografia; o “registro moral” trata dos aspectos espirituais, dos fenômenos religiosos, do direito, que devem ser registrados na entrevista. Ele observa também “[...] que não se deve esque-cer o registro moral quando estudamos os fenômenos materiais e vice-versa” (MAUSS, 1947: 28). O trabalho de Mauss descreve pormenorizadamente todas as categorias de análise que fundamentam o estudo etnográfico, considerando desde a tecnologia até o fenômeno religioso.

Peirano (1975), por sua vez, ao realizar pesquisa de campo junto a uma co-munidade litorânea na costa nordeste do Brasil, com o objetivo de conhecer seu sistema alimentar, descreve vários aspectos representativos daquela cultura. Para ele, a

[...] ’identidade praiana’ desenvolvida pela comunidade é fruto do processo de adaptação ao

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meio, que se realiza tanto através das suas redes positivas - o mar como fonte de elemen-

tos - como através das suas relações negativas - as proibições [...] e marca os habitantes,

levando-os a se identificarem sem ambiguidades, como praianos. (1975).

Outro aspecto tratado por Peirano (Ibidem) se refere à atividade da pesca como subsistência; descreve as modalidades de captura do peixe praticadas pela comunidade, dentre elas encontra-se a pesca de curral, sobre a qual registra: “[...] segundo informações locais, a origem do curral remonta aos índios tremembés, dizem os antigos moradores da região” (1975: 3).

Encontramos também em Peirano (Ibidem) observações sobre as habitações, a matéria-prima utilizada, a forma de construção da casa e suas denominações espaciais. A contribuição do trabalho desse autor é significativa, na medida em que registra um corpo substancial de informações sobre as relações de uma so-ciedade tradicional litorânea com o meio ambiente.

Para Diegues, podemos conferir o trabalho Pescadores, Camponeses e Tra-balhadores do Mar, destacam-se as informações sobre as pequenas comunidades de Pescadores litorâneos, “[...] uma forma de vida muito rica sobre os aspectos culturais e sociais” (1983:2). Em sua abordagem, reconhece a necessidade de ini-cialmente estabelecermos uma tipologia das formas de organização e produção na pesca; identificamos categorias e sub-categorias de Pescadores. No caso de pequenas comunidades, que exploram os ecossistemas litorâneos e costeiros, considera duas sub-categorias: a sub-categoria de pescadores-agricultores (não vivem exclusivamente da pesca, realizando outras atividades de subsistência, como plantio de roça e coleta de mariscos, integrada aos ecossistemas litorâne-os; e a sub-categoria de Pescadores artesanais, cuja dependência é exclusiva da pesca, exploram particularmente o ecossistema costeiro.

Segundo Diegues, nas pequenas comunidades litorâneas: “[..] o homem vive quase ao sabor dos ciclos de produção e reprodução natural”(Ibidem: 7), o que representa um nível de interação do homem com a natureza, chamando atenção para suas técnicas de pesca respeitadoras do meio ambiente e da ecologia das es-pécies; porque dependem disto para sua própria sobrevivência”(Ibidem:267). Ou-tro aspecto tratado por Diegues é sobre o conhecimento tradicional, que descre-ve como: “[...] o conhecimento das variáveis naturais, normalmente acumulado de maneira empírica pelos Pescadores e passado de geração em geração”(Ibidem: 98) ou “[...] possuem o controle do conhecer tradicional pelo qual se apropriam materialmente da natureza”(Ibidem: 216). A análise que Diegues desenvolve sobre os Pescadores, “[...] que utilizam uma tecnologia caracterizada pelo baixo poder de predação, e que o nicho ecológico explorado é relativamente restrito” (Ibidem: 149), serviu de base à nossa abordagem no decorrer dos estudos. Diegues observa também que a cultura praiana está marcada por uma grande influência indígena, incorporada e que forma um expressivo patrimônio tecnológico e de conhecimentos da fauna e da flora.

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Para Edwards, [...] a imagem visual e, possivelmente, o modo dominante de comunicação no final do século XX, e sua posição, estabelecimento e integração entre textos tradicionais, ocupa devidamente o pensamento de acadêmicos inte-ressados e praticantes”. (1996: 11). Edwards também considera que:

[...] o significado das fotografias pode ser, naturalmente, guiado ou sugerido por textos,

envolvendo-as assim em um contexto particular. Isso é extremamente pertinente no con-

texto antropológico, pois, muitas vezes, e através do texto que uma imagem é finalmente

legitimada no domínio cientifico e disciplinar. (1996:22).

Antes de descrever as etapas e os prosseguimentos do trabalho de campo, decidimos apresentar a nossa trajetória pessoal, o papel na condição de inves-tigador frente ao seu objeto de estudo, para mostrar os caminhos percorridos e as “artimanhas do acaso” (PEIRANO, 1975), que favoreceram a realização de sua pesquisa sobre o modo de vida tradicional de uma comunidade de Pescadores no litoral do Piauí.

A nossa relação com a comunidade do Macapá pode ser considerada a par-tir de duas perspectivas diferentes, mas que mantém entre si uma relação de complementaridade. A primeira delas remete aos tempos de uma convivência espontânea, de contatos informais, de situações ocasionais; outra diz respeito ao olhar com o interesse de observar para aprender, para registrar, para sistemati-zar um conhecimento.

Desde 1966, quando então menino de 8 anos, passamos a frequentar o lito-ral do Piauí. Nascido e criado em Teresina, capital do estado, distante 350 km do litoral, na época as estradas eram precárias), uma vez por ano viajava com a fa-mília para as férias na Amarração (como era conhecida a cidade de Luís Correia naquela época, uma pequena cidade à beira-mar, formada por algumas casas de veraneio e muitas de Pescadores. Eram períodos de verdadeiro deslumbramento. A imensidão do mar, o vento forte, as ondas rebentando na areia da paria, as velas das canoas navegando distante, cruzando a linha do horizonte, causavam tama-nha impressão em nosso universo infantil. Nos dias que antecipavam nosso re-torno para Teresina, nos “despedíamos do mar”, mergulhando demoradamente para alimentar a esperança de retornar no ano seguinte. Tempos depois, em uma daquelas viagens, tivemos a oportunidade de navegar com os Pescadores da Praia do Coqueiro, quando os acompanhamos em uma pescaria em alto-mar.

Aquela saída para o alto-mar, como “marinheiro de primeira viagem”, foi uma experiência singular. Embarcamos na madrugada, quando a lua minguan-te apontava no céu e o “vento terral” enfunava as velas da canoa, que avançavam contra as ondas. Éramos quatro tripulantes: o Dedé (mestre e dono da canoa), o Teixeira, o Quirino e eu. Quando amanheceu, estavamos no alto-mar, “com a terra sumida”, como diziam. A vela foi enrolada ao mastro, desmontada para em seguida iniciarem a operação de lançar a “caçoeira” (rede de pesca) ao mar;

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em seguida, jogaram a “fateixa” (uma ancora rústica feita de pedra e madeira) n’agua, mantendo, assim, a canoa próxima às boias da rede de pesca; ficamos ba-lançando ao sabor das ondas, que faziam a canoa subir e descer, vendo apenas o céu e o mar, contando estórias, assando no fogareiro e comendo com farinha um ou outro peixe pescado com linha de mão, até o final do dia, quando a “caçoeira foi despescada”, recolhida para o interior da canoa. A viagem de volta à praia foi mais rápida, pois naquela época a nossa canoa era impulsionada pelo vento do mar e deslizava ao favor das ondas. Chegamos em terra à noite. Alguns anos depois, quando já havíamos navegado por toda a costa do Piauí, grande parte do litoral cearense e também da costa norte do Brasil, percebemos claramente que aquela “primeira viagem” representara uma fase de iniciação na cultura praiana.

Com a Praia de Macapá, o primeiro contato ocorreu no início dos anos 1980. Naquela altura, morávamos no Rio de Janeiro, como estudante de Pós-Gradua-ção em Arqueologia do Museu Nacional, e passávamos férias em Luís Correia, quando decidimos fazer uma viagem de bicicleta pela beira-mar até a Praia do Macapá. Depois de pedalar e empurrar a bicicleta durante várias horas foi pos-sível percorrer os 27 Km. Mesmo exaustos ao chegar, ficamos impressionados com a paisagem formada pelo rio ao desaguar no mar; as pequenas ilhas ali exis-tentes, os vestígios de manguezais encontrados ao longo da praia, e as casas dos Pescadores com suas coberturas de palha, que se mostravam totalmente inte-gradas ao cenário com extensos coqueirais e carnaubais. Naquele dia, conhece-mos o Chico Boi, um pescador que morava bem próximo à praia. Iniciamos uma conversa, depois ele nos ofereceu coco-d’agua do seu quintal, comentou que na única quitanda existente no lugar encontraria apenas cachaça.

Em seguida, morando em São Paulo, continuamos a estudar Arqueologia no Programa de Mestrado da Universidade de Sao Paulo, ficávamos a pensar naquele lugar distante no espaço e no tempo. Em 1987, seguimos novo rumo. Afastamo-nos das investigações arqueológicas, que desenvolvíamos no Parque Nacional da Serra da Capivara - Sudeste do Piauí, como pesquisador e professor da Universidade Federal do Piauí, e solicitamos transferência para o Campus de Parnaíba, cidade litorânea e segunda mais importante do Estado.

Ficamos a residir na cidade de Luís Correia, próxima ao Campus, e também uma das praias que passamos a visitar com frequência. Sempre que possível ía-mos a Praia do Macapá, mesmo enfrentando as dificuldades de acesso, a estrada de terra batida, “a rodagem”, era apenas uma trilha no meio dos campos e dunas. Éramos atraídos por aquela condição de isolamento e simplicidade do lugar; pela conversa com os Pescadores, fartura do peixe, do caranguejo, da ostra, que eram consumidos no momento em que chegavam as canoas. Nas atividades do dia a dia dos Pescadores percebíamos a relação de equilíbrio entre a comunidade e a natureza, que lhe fornecia alimento e abrigo.

Ao longo do tempo que passávamos com os Pescadores, começamos a estar atentos às conversas, comentários sobre “o mar comendo as terras onde era o si-tio de coqueiro”, ou “a maré acabou com tudo que tinha lá pra cima”. Realmente,

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tratava-se de uma situação curiosa, mas o interessante era a maneira como se refe-riam e encaravam o fato, não manifestando quaisquer preocupação. Nas diversas vezes que estivemos no lugar foi possível notar o quanto o mar estava avançando sobre as terras junto à barra do rio, onde construíam suas “casas de morada”. O nosso retorno para Teresina em 1990, após três anos morando no litoral, encerrou a fase de convivência espontânea com o ambiente e a população litorânea.

Em 1991, estabelecidos em Teresina e trabalhando como assessor da área do meio ambiente, na Secretaria de Planejamento do Governo do Piauí, passamos a coordenar o Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro no âmbito estadual, cujo objetivo era o planejamento e o gerenciamento das atividades sócio-econômicas, que integravam conservação e preservação dos recursos naturais, na pequena faixa costeira do estado, com 66 km de extensão. Foram realizados diversos estu-dos sobre a região litorânea, para obtermos um diagnóstico sócio-ambiental, que pudesse subsidiar as ações para o futuro; participamos de Encontros Nacionais, e como pesquisadores de outros estados, apresentamos e discutimos vivências, experiências observadas nas comunidades; igualmente, estávamos presentes nos seminários e workshops relacionados ao meio ambiente e ecossistemas costeiros.

Ao longo da coordenação das atividades do Programa de Gerenciamento Costeiro, compreendemos a importância das Comunidades Tradicionais de Pes-cadores Litorâneos frente às questões ambientais, do uso sustentável dos recur-sos naturais. A Praia do Macapá foi escolhida como área piloto do Programa, pois apresentava características favoráveis à implantação de ações preventivas relacionadas ao uso e conservação dos recursos naturais.

A sua localização em ecossistema estuarino de grande relevância ecológi-ca, a existência de uma comunidade de Pescadores artesanais, que detinha um conjunto de conhecimentos sobre a utilização do habitat e que experimentava as transformações culturais com o início das atividades turísticas e as rápidas mudanças na paisagem causadas pela erosão fluvio-marinho, estavam entre os principais fatores que determinaram aquela decisão.

Para a realização da pesquisa, adotamos as seguintes técnicas de trabalho de campo da etnografia: a observação participante, que permite uma relação face a face com a comunidade, ao compartilhar com as pessoas momentos da vida coti-diana e aprender as técnicas relacionadas às atividades de morar e de pescar; as en-trevistas dirigidas, ao escolhermos entre os membros da comunidade aqueles que detinham informações e conhecimentos sobre os saberes e fazeres; um questioná-rio que foi aplicado em 35 residências e a fotografia, utilizada como dados visuais.

As nossas visitas e permanência na Praia do Macapá tiveram início em outubro de 1993 e terminaram em outubro de 1996. Ao longo daquele período, fizemos nove viagens para levantamento de dados etnográficos, das quais em três ocasiões perma-necemos ininterruptamente convivendo com a comunidade por períodos de duas semanas. As outras foram visitas de um ou dois dias para apresentar a área da pes-quisa ou para coletar algum dado sobre as mudanças que ocorriam na comunidade.

Dessa maneira foi possível observar situações do dia-a-dia na comunidade e

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ao mesmo tempo dispor de um espaço para organizarmos e analisar o material colhido. Durante aquelas semanas, contratávamos os serviços da senhora Gerar-da, mãe de um conhecido do lugar, para levar-nos as refeições. Normalmente, ela mandava nos levar um prato de peixe com arroz, farinha e feijão por seus fa-miliares, que aproveitavam para espreitar meus afazeres. Dispúnhamos de far-nel de mantimentos e fogareiro portátil. Algumas vezes, também éramos con-vidados para almoçar na casa do Leonel, um vizinho e informante, com quem ficávamos a conversar sobre a vida local.

Naquela convivência, procurávamos nos integrar àquelas atividades que es-távamos a observar, explicávamos o trabalho que estávamos a realizar. Assim, fazia parte da tripulação na canoa do Zé Augusto para pescar em alto-mar; fomos despescar curral de peixe na barra com o senhor Antonio Grosso; estivemos na Ilha do Camaleão e nas “croas” a capturar siri e a catar mariscos com o Erisvaldo; acompanhamos algumas fases de construção da casa do Manoel Veras, fomos ao carnaubal do Camurupim com o Chico Pulga derrubar as palhas de carnau-ba utilizadas na cobertura das casas, enfim, tentávamos participar e ao mesmo tempo observar os procedimentos e os comentários naquelas situações que ca-racterizavam o modo de vida da comunidade.

Muitas vezes, à noite estivemos na quitanda do Dedé, a mais antiga do lugar, para conversar. Aguçávamos a sua memória e ele nos falava sobre história do Macapa, onde seus pais, avos e bisavos viveram; e como a quitanda era o centro de convergên-cia das pessoas do lugar, ficava sabendo de muitos outros aspectos da vida cotidiana.

Referências

· CIRM – FEEMA. Curso Nacional de Gerenciamento Costeiro. Rio de Janeiro, 1987.

· COORDENADORIA DE EDUCAÇÃO AMBIENTAL MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO DO

ESTADO DE SÃO PAULO. Documentos oficiais, organizacao das nações unidas, organizações não

governamentais. São Paulo: Secretaria do Meio Ambiente, 1993.

· DIEGUES, Antonio Carlos (Org.) Pesca artesanal: tradição e modernidade. Coletânea de Trabalhos Apre-

sentados no III Encontro de Ciencias Sociais e o Mar. São Paulo: Programa de Pesquisa e Conservação

de Áreas Úmidas no Brasil, 1989.

· ______. Pescadores, camponeses e trabalhadores do mar. São Paulo: Ática, 1983

· EDWARDS, E. “Antropologia e fotografia”. In: Cadernos de Antropologia e Imagem. Rio de Janeiro: Núcleo de

Antropologia e Imagem Departamento de Ciências Sociais / Universidade do Estado do Rio de Janeiro,1996

· MALINOWSKI, B. Os argonautas do pacífico ocidental. São Paulo: Abril Cultural, 1992.

· MAUSS, M. Manual de Etnografia. Lisboa: Ed.Portico (1947), 1972.

· MUSSOLINI, Gioconda. “Aspectos da cultura e da vida social no litoral brasileiro”. In: Homem, cultura

e sociedade no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1972.

· PEIRANO, Marisa. Proibições alimentares numa comunidade de pescadores. Brasília: UnB, 1975. (Dissertação

de Mestrado)

Contactar o autor: [email protected]

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NOTAS DE DISSERTAÇÃO E TESE

Notas de dissertação e tese

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Notas de Dissertação e Tese

AutorJosé Luís de Oliveira e Silva

Título da Tese (Doutorado | 2013)Discursos de Memória, Expectativa e Identidade: o fazer cinematográfico de Cipriano e o agenciamento das imagens do sertão na cultura piauiense (1997-2003)

Universidade Federal de Goiás (UFG) | Brasil

Faculdade de História

Programa de Pós-graduação em História

Área de Concentração: Culturas, Fronteiras e Identidades.

Linha de Pesquisa: Identidades, Fronteiras e Culturas de Migração.

OrientaçãoProfa. Dra. Libertad Borges Bittencourt (UFG)

Membros do JúriProf. Dr. Eduardo José Reinato | Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO)Prof. Dr. Paulo Knauss Mendonça | Universidade Federal Fluminense (UFF)Profa. Dra. Maria Amélia Garcia de Alencar (UFG)Prof. Dr. Roberto Abdala Júnior (UFG)

Resumo: Esta pesquisa que agora apresento trata das relações entre História e Cinema, tem como objeto o filme Cipriano (Douglas Machado, 2001) – conside-rado o primeiro longa-metragem piauiense – e como problemática o desafio de entender as formas como o filme em análise, e os discursos que são construídos ao seu redor, traduz o universo sertanejo piauiense e como esses significados se relacionam com as estereotipias que historicamente foram tomadas como referências para pensar esse universo. Mais do que simplesmente descrever o processo de criação de Cipriano, a preocupação esteve localizada na possibilida-de de verticalizar as análises de um conjunto amplo e diversificado de fontes (matérias publicadas em jornais e revistas, programas de rádio e TV, material de divulgação, encartes de festivais de Cinema e, claro, o próprio filme objeto desta pesquisa). Essas análises foram embasadas sobre chaves conceituais elaboradas a partir de um arcabouço teórico-metodológico igualmente amplo e diverso de onde se sobressaem as chaves imagem, sertão, identidade e memória. A partir desse exercício historiográfico se (re)construiu o que chamo de evento Cipriano, ou seja, o universo discursivo formado pelo filme, pelos discursos carregados de ex-pectativas em relação à memória e à identidade do ser sertanejo e piauiense, que deveriam ser visíveis no filme, e pelas diversas formas de se apropriar da obra,

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motivadas por interesses pessoais ou de determinados grupos. Ante a problemá-tica e a diversidade de fontes e chaves conceituais, fiz a opção por organizar o texto final em três capítulos. Como se verá durante a leitura, cada um deles, em-bora não se feche exclusivamente em uma única chave-conceitual, privilegiará um tipo de conceito que ajudará a mapear e desenvolver, a partir de Cipriano, a problemática geral da pesquisa.

Palavras-chave: História. Cinema. Cipriano. Sertão. Piauí. Identidade. Memória.

Abstract: This survey that is now shown is about the relations between History and Cinema and it has the movie Cipriano (Douglas Machado, 2001) –considered as the first feature film from Piaui - as the subject. Also it has the problematic and the chal-lenge of understanding the ways the movie in question, and the speeches used in it, translate the northeastern universe of Piaui; and how these meanings relate with the stereotypies that were historically used as reference to think about this universe. More than just describing the process of creation of Cipriano, the concern was focused on the possibility of verticalize the analyses of a broad and diverse sources (issues published in newspapers and magazines, radio and TV programs, promotional mate-rial, inserts of film festivals, and, of course, the film itself which is the subject of this research). These analyses were based on conceptual keys drawn from a theoretical-methodological outline equally broad and diverse where the keys of image, interior, identity and memory excel. From this historiographical exercise the called Cipriano event was (re)built, in other words, the discursive universe drawn by the movie, by the speeches full of expectations regarding memories and the identity of the northeast-ern and “piauiense” being, which should be seen in the movie, and by several ways to appropriate of the work, motivated by personal ou group interests. Faced with the problem and diversity of sources and conceptual keys, the option to organize the final text using three chapters was done. As will be seen when reading, each of the chapters, althought it is not clesed exclusively on a single-key concept, will focus a kind of con-cept which will help to map and develop, from Cipriano, a general issue of research.

Keywords: History. Cinema. Northeast. Piaui. Memory.

Contactar o autor: [email protected]. br

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