VOZES DO SILÊNCIO cap 1

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    VOZES DO SILNCIOAdriana Vargas

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    PRLOGO

    Movido por uma fora invisvel, Dom Diego procurou a magia

    cigana para conquistar o poder e implantar a ditadura na Espanha.Houve um pacto, uma troca de favores - deveria encontrar a famliadeste homem e puni-la em troca do poder, porm no o fez; pensouapenas em seus prprios interesses, utilizando-se de um dos gitanosque fora incumbido de acompanh-lo e trazer de volta a meninacigana, que nasceu preparada para ser sacrificada, libertando estepovo, pois toda criana nascia morta, estavam fadados extino daraa. Alguns eram levados a fora para a dizimao. Somente a vidadesta menina poderia trazer esperana e futuro aos ciganos, que teveseus costumes e leis espirituais violadas.

    Com a quebra do pacto, a Espanha estava assolada pela guerrafria entre a populao estudantil e a ditadura. Motivo asconsequncias da maldio, que tomava conta do poder. Casaspegavam fogo, mesmo sem nenhuma causa. Pessoas acordavammortas em suas camas sem algum diagnstico que explicasse talfato. Jovens se suicidavam, aumentando a estatstica a cada ms quese passava. Outros pases ameaavam eclodir a terceira guerramundial, desde que a Espanha fechou suas fronteiras e aliou-se aAlemanha Nazista e Itlia Fascista.

    Ano de 1975

    Sanatrio San Francisco de Assis, Madrid

    Um vento bom tocou seu rosto a ponto de faz-la esquecer dospedaos de vida que a atormentava. Sentia-se devoradainternamente por um animal feroz insacivel. Havia perdido a noode quanto tempo estava presa naquele lugar, talvez a cerca de trintadias, seis meses ou um ano... O tempo no importava mais. Ela sabiao que precisava ser feito, apenas esperava pelo momento certo.

    Respirou profundamente a vida como algo necessrio quetrouxesse esperana, mesmo sabendo que o sonho uma longaestrada sem garantias de se chegar a algum lugar. Sonhar o maiorlenitivo alma sedenta de sentimentos e sensaes pensou,enquanto segurava vida, a caixa velha de papelo cheia deenvelopes endereados a Vidal de Lucca. Assim eram seus dias -escrevia cartas e cartas, na esperana de um dia reencontr-lo. Emcada envelope, havia sempre a mesma frase: Estou lhe esperando!Esta era a forma que encontrou para anestesiar sua dor.

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    Tirou de dentro da caixa, uma estrela de seis pontas feita demetal e a segurou firmemente rente ao peito, lembrando da noite emque foi entregue a ela, por mos que sonhava em voltar a tocar.

    As juras de amor tragadas por uma nsia impetuosa, noresistiram aos vendavais constantes. Hoje so apenas lembranasque perduraram; longos abraos na Praa de Cibele - pensou - entreas dunas de um olhar morto, perdido. Sentia-se viva apenas quandolia e relia as cartas antigas que no entregou ao seu destinatrio.

    Ele estava por perto, ela podia ouvir sua respirao quando ovento, trazido do lado de fora da janela, batia em seu rosto marcadopelas lgrimas que escapuliam.

    Ele jamais a abandonara! Sim, o vento dizia isso... Os pssarosdiziam... As batidas de seu corao gritavam. No havia dvidas elao sentia em todos os lugares!

    Abriu um pouco mais a janela do sanatrio e viu a menina quecorria entre as rvores. Sentia-se livre, brincando com o vento. Ria,enquanto pulava com o capim enroscando em suas pernas queestavam mais roxas ou judiadas. Nada podia impedi-la de ser feliz.Poderiam dizer que se tratava de delrio ou loucura, mas tinha certezade que a menina lhe fazia companhia em momentos infinitamentesolitrios e dolorosos.

    Observou-a atentamente. Queria cham-la pelo seu nome e lheoferecer seu colo ou um chocolate, mas ela s queria brincar. Estavaentretida conversando baixinho com uma espiga de milho quesegurava por entre as mos fragilizadas. Passava a mo nos fiosclaros da espiga como se fosse o cabelo loiro de uma boneca - seubrinquedo era tudo que importava naquele momento.

    De repente, olhou para ela e veio correndo at a janela. Miroufirmemente nos olhos de quem a observava, sorriu e disse:

    Por que voc est chorando? seus olhos eram grandes everdes.

    Eu no sei... respondeu a moa com uma vontade de gritar. Seu pai brigou com voc? No.

    Voc sente saudades dele? Muitas... Ele cuidava de voc? Sim. Do jeito que conseguiu. Voc ainda tem medo da chuva? Tenho! E voc, ainda gosta de maria-mole? Sim, gosto... sorriu. No tenha medo da chuva, os

    passarinhos ficam felizes quando chove. As plantinhas crescemcantando... ela sorriu novamente. Voc quer perder o medo dechuva? disse olhando para o cu que se fechava e relampeava.

    No consigo! disse quase chorando.

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    Sim, voc consegue!Voc conseguiu crescer! Agora venha ataqui...

    No posso, estou doente! Voc morrer? Um dia irei... Todos iro... assim como voc! Ento aproveite agora... Venha fazer tudo que sempre quis! Ah, se pudesse... disse Analy, olhando a chuva chegar e os

    relmpagos estralarem frente dos seus olhos. Seu coraodisparava e ela respirava de modo descompassado.

    O vendaval invadiu tudo to repentinamente. Olhou apreensivapela janela tentando no perder a menina de vista. Tornou-seobcecada por sua alegria, queria proteg-la a qualquer custo.

    Raios e troves traziam um forte vendaval, deixando sombria apaisagem pela janela. Ainda tinha medo de ventanias que uivavampelo ar em uma linguagem de difcil compreenso, e mesmo assim, amenina do lado de fora no parava de rir. Cantava e brincava deciranda embaixo da tempestade. Por mais que tentasse avis-lasobre o perigo que estava correndo, ela no ouvia. Sua felicidade eraincompreensvel.

    Tentou se arriscar colocando a cabea para fora da janela, numgrito sbito e corajoso como nunca havia feito antes: Vina! soltouum eco longo e cheio de vida.

    Assutou-se! - Vina era minha irm! Estava morta! Como poderiaestar ali? Como poderia voltar aparncia de quando era criana?Devo estar realmente louca! pensou.

    O tempo passou, mas no levou o seu aspecto juvenil. Analyainda pensava como se tivesse dezesseis anos e, em muitas vezes,como se ainda fosse como esta mesma menina que v, atravs dajanela, sentada no balano da rvore do stio que morava, cantandocanes de tantos anos atrs.

    Fechou os olhos, suspirou profundamente e voltou aos seusescritos, cheia de esperana. Hoje conseguiu fazer o tempo voltar emfrao de segundos. Faltou coragem para se lembrar de algunsassuntos que a magoaram irremediavelmente.

    Nunca mais tinha abraado algum, por este motivo, aenfermeira da instituio a presenteou com um boneco grande depano. Ela dorme abraada a ele, como se isso fosse a nica coisa quetivesse restado alm da caixa de sapato cheia de cartas.

    O amor a mantm viva, mudando o sentido da morte e o nomede todas as coisas. Sente-se recebendo o amor de quem no estpresente fisicamente, mas se preciso fosse, viveria tudo de novo,apenas para estar ao lado de algum inesquecvel e indelegvel - ofaria atravs das migalhas de foras que tinham restado.

    As letras eram desenhadas no papel com vontade de serrealidade.

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    A cigana surgiu a sua frente com o mesmo ar misterioso deoutrora, depositando a mo em sua cabea com uma pele coberta poruma renda preta.

    Quem voc? perguntou curiosa.A mulher ficou indecisa quanto a responder esta questo. Mas

    no fugiria da verdade. Uma mentora espiritual. Mas como tudo que fora dito e visto

    aqui, voc se esquecer do que sou e do que ouviu, at o pontocrucial que necessitar de uma escolha. Guarde em seu corao - asescolhas so donas de nosso destino.

    Analy fechou os olhos quando ela voltou a tocar em sua cabea edeixou-se levar pelo toque que a atormentava, mas no conseguia selivrar, pois nada pior poderia lhe acontecer, desde que fora pararnaquele lugar frio. As imagens foram surgindo em sua mente comoum filme que ela jamais havia visto, mas estava pronta para saberat onde conseguiria chegar.

    Viu as botas de modelo militar pisando firme na terraavermelhada de um local cheio de tendas coloridas. Era dia, e o soliluminava os galhos secos das rvores que ali estavam. O homemfora recebido por dois ciganos que o levaram em silncio para dentroda tenda central do acampamento.

    Dentro da barraca havia uma mulher robusta, sentada em umamesa coberta por cartas. Seus olhos, exageradamente pintados,fitaram o militar como se quisessem ver sua alma. O homem sesentou de frente para a cigana e no fugiu de seu olhar.

    O que devo fazer? perguntou com a voz embaraada. Se sua pretenso tomar o Pas, deve seguir a risca tudo que

    for proposto. As cartas no mentem, o homem, sim. O que as cartas dizem? ele perguntou em tom seco, mas

    preocupado. Muito sangue ser derramado. A extenso de seu poder no

    governo ser vinda de foras sobrenaturais que atuaro desde o

    princpio. As fronteiras do pas sero fechadas, gerando dio,ganncia e cobia. Se caso no cumprir o prometido, a terceiraguerra ser eclodida, e a Espanha ser invadida por seus futurosinimigos polticos, inspirados pela fora maligna espiritual. Estamospreparando seu brao direito que seguir contigo. um gitano1 deinteligncia incomparvel que tem uma misso a ser cumprida, evoc dever ajud-lo a desempenhar, caso contrrio...

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    Nota da autora:N

    Cigano espanhol

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    Caso contrrio? ele perguntou, olhando fixamente nos olhosda cigana.

    A fora sobrenatural que reger toda a Espanha, cair contravoc, como uma maldio que destruir no somente seu futurogoverno, mas toda sua famlia; matando-o aos poucos e mngua pordoenas sem explicaes. Voc alcanar o poder, mas precisarcumprir o que prometeu ao nosso povo e aos nossos deuses.

    Ao ouvir todos os conselhos espirituais que precisaria cumprir,inexplicavelmente, uma jorrada de sangue sara debaixo das cartas ecorria para o lado em que estava o militar. Assustado, ele se levantoue saiu da tenda, olhando para a gitana que expressava nos olhos, aseriedade das palavras que disse a ele, o militar saiu desamparado,trombando um p. Seguiu rumo ao destino desconhecido, com suasbotas grosseiras deixando marcas de sangue por onde pisava.

    Analy abriu os olhos assustada. As imagens desapareceram. Noconseguira entender o motivo de ter que assistir tais fatos. A ciganaagora, se afastou e apenas a observava. Analy ainda no descobriusua origem, e a razo de sempre estar ao seu lado em momentosinesperados.

    Precisava escrever a ltima carta a Vidal, enquanto reunia asremanescentes esperanas em foras. Sente-se a um passo de abrir aporta do passado. O corao dispara insistentemente. Fechou osolhos buscando coragem e, antes de adentrar a porta imaginria,olhou pela vidraa embaada. A menina desta vez olha em seus olhossegurando a boneca imaginria, rente ao peito. Com um sorrisotmido, ela permanece esttica esperando pelo reencontro dopresente com o passado, e neste instante marcante, Analy hesita ematravessar a porta.

    Atravesse! gritou a menina ao lado da cigana que um diaencontrou na praa. Ela tinha o mesmo olhar insano, que tentavaenxergar os pensamentos, enquanto acompanhava os movimentos deAnaly at a porta.

    Coragem! pediu a cigana, escondendo o olhar por entre as

    mangas vermelhas de seu vestido de cetim que brilhava com a luz dodia. Voc voltar ao passado. Reviver e far tudo novamente, atchegar o momento da escolha. Mas desta vez, escolher a verdade.Perder absolutamente a lembrana que h, desta porta para c,quando daqui sair, como se jamais tivesse vivido todos os fatos queencontrar. Seja forte! Assim que cumprir a profecia cigana,desfazendo a maldio e libertando a Espanha, eu lhe trarei de voltapara o presente. Volte, e conserte seu passado! Somente o amor alibertar, lembre-se desta frase no momento propcio.

    Analy pde ouvir o corao da menina que batia com a mesma

    fora que bate o seu, dividindo o sentimento. Levantou da cadeirasem desviar seus olhos dos da pequena. Sem acreditar na coragem

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    adquirida de Analy, a menina desprende a mo da espiga de milhoque cai ao cho enquanto caminha em passos lentos rumo portametafsica, recm materializada. Com medo do tudo e da vida, elacolocou a mo na fechadura, este era o momento que a separava dopassado.

    Estava prestes a mergulhar nesta viagem que ia sem bagagem;ia apenas com o desejo do reencontro consigo mesma e com ascoisas que ficaram sem soluo no passado.

    Timidamente, a menina levantou sua mo mida e acenou,denotando em seus olhos o mesmo medo que expressavam os deAnaly que leu em seus lbios a frase que gostaria de ouvi-la dizer: Voc conseguir!

    Dos olhos brilhantes e grandes, caiu uma lgrima infantil e, emseguida, o esboo de um novo sorriso. Diante disso, Analy encorajou-se e abriu a porta. Tudo ficou em silncio. Ainda sentia a estrela demetal parecendo pulsar em suas mos.

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    Captulo I

    Ano de 1952

    Era quase anoitecer no stio Alvorada na cidade de Coslada,municpio de Madrid, Espanha.

    De longe podia ouvir o choro de uma criana que ecoava no meiodo mato. O som misturava-se ao zunir matreiro dos bichos silvestresque por ali faziam morada. O choro vinha de uma casinha feita demadeira no meio do mato. Este lar recebia uma menina numa famliasimples que ganhava o po vindo do campo.

    A famlia camponesa deu a ela o nome de Analy. Choravainsistentemente. Pedia o seio da me para amamentar; no se sabe omotivo, mas jamais fora amamentada e, para poder dormir, o paimolhava a ponta de um tecido que dava a forma de uma chupeta,passava no acar e colocava na boca da criana. Aos poucos, ia seacalmando, deixando apenas o zunido dos insetos imperar na noiteperdida no meio do breu.

    Era uma famlia pequena. A desgraa havia recado sobre esta,quando o patriarca caiu em tentao ao buscar um gado ao lado doacampamento dos ciganos de Madrid. Uma bela gitana tratava dosanimais pertencentes ao bando, quando se abaixou para pegar ogalo, e pela fresta da blusa, o campons avistou seus seios.Percebendo a presena dele, ela sorriu, deixando a mostra suas belaspernas bem torneadas, que guardavam a barra do vestido, deixandoa cor da pele morena descoberta. O campons ficou esttico dianteda cena e aproximou-se do cercado.

    Boa tarde! Teria um copo dgua para me oferecer? perguntou ele.

    Aproxima-se! disse ela sorrindo com os lbios pintados devermelho.

    Ela passou o copo para as mos dele e o tocou. Era s isso moo?O campons a tomou nos braos, hipnotizado por uma fora que

    no pde deter! Deu-se o incio de uma tragdia que afetar atmesmo quem ainda estar para nascer.

    Analy, desde que voltou ao passado em busca de respostas, nopoderia sequer imaginar o que encontraria ali, em sua antiga casa,onde fora criada. Rondou por todo o casebre atrs de lembranas.

    Absorvia o cheiro do local, como se este fizesse parte de si, a ponto

    http://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_munic%C3%ADpios_da_Espanhahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Espanhahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_munic%C3%ADpios_da_Espanhahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Espanha
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    de se materializar aos pedaos soltos e quando voltavam a se juntar,formavam o que ela .

    Em sua mente, a mesma imagem vinha e desaparecia: umacriana muito pequena nasceu com um sinal no ombro esquerdo, aimagem de uma estrela de seis pontas, estava recebendo um patuassinalado com uma cruz bordada contendo incenso. Um batismosendo feito por uma pessoa que a benzia com gua, sal e um galhoverde. Logo ao amanhecer, aos primeiros raios de sol, seriasacrificada. Fora planejada para tanto. Mas algum roubara acriana... algum retirou a esperana de libertao da maldio querecara no bando dos ciganos e em toda a Espanha, a cada vez quenascesse uma nova vida.

    Fechou os olhos e se lembrou do barulho de panela batendo umana outra durante a madrugada. Seu pai colocava quase todos osobjetos da cozinha em seu bero, e assim, ela brincava at se cansare dormir.

    O que aconteceu aqui? Como o pr do sol de Cosladadesapareceu sem que a famlia toda pudesse se despedir das coisasque conseguiram formar em uma vida toda?

    Ela encontrou um jardim vazio entre a alameda que consumia asfibras da madeira que constitua a casa construda pelas moscalejadas de seu pai.

    Quem viveu ali - eram personagens ou sonhadores?Ela eliminou as lgrimas, lembrando-se do cultivo de uma boa

    colheita esperada durante o ano todo, porm, tudo fora destrudopelo fogo. Em poucos segundo, ouviu a ltima frase proferida por seuvelho pai: Meu Deus!

    E agora tudo parece estranho. Ainda se lembrava do que tinhaacontecido, mas sabia que logo tudo desapareceria de sua mentecomo a cigana lhe prometera.

    engraado como um inseto consegue danificar tanto umasemente. Assim imaginou sua vida consumida por algo desconhecido,aos poucos e continuamente...

    A constituio mental de todo o cenrio antes do incndio, no

    era to idntica hoje, depois de todos os fatos que a levou ser quem, modificou o gosto da felicidade de estar em sua velha casa demadeira sem as chamas, mas sabendo que um dia, as alamedaschegariam.

    Poucos segundos aps as lembranas, um fenmenosobrenatural tomou posse de sua conscincia. E tudo girava ao seuredor como se estivesse caindo num poo muito fundo e escuro.Parou. O silncio imperou. Estava de dia e tinha 15 anos de idade.

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    Poucas coisas haviam mudado com o tempo. Ela ainda sentiamedo de troves e chorava quando estava sozinha.

    Quando ficava triste pelas surras dadas pelo pai, ela oimaginava dentro de um caixo coberto por flores e o sentimentomudava. Sentia medo de que Deus a castigasse por ser uma filhaingrata. Passaria a vida toda apanhando do pai, mas preferia assim aperd-lo.

    Enxugou a lgrima e terminou de varrer a frente de sua casa.Galeno, um rude peo que trabalhava com Fernandes na lavoura, aobservava de longe, e poderia t-la visto chorando. As pessoas daroa eram curiosas e mexeriqueiras.

    Ao terminar de varrer a frente de sua casa, foi abordada porGaleno.

    Voc pode ir at minha casa buscar o prato de sua me? eleperguntou, deixando a enxada de lado.

    Posso sim, senhor. S vou lavar o rosto e j deso.Galeno a olhava enquanto andava de um jeito nojento e mal

    intencionado.Ela lavou o rosto e foi atender ao pedido de Galeno. A casa dele

    era de frente a sua casa, jamais poderia imaginar o que lhe esperava.Bateu na porta que estava fechada, esta se abriu sem que

    pudesse ver o rosto de Galeno. De repente um brao sai do interiorda casa e a puxa com fora. A porta se fechou, silenciosamente. Elaarregalou os olhos, tendo em seus lbios, as mos sujas do lavradorque a preveniu: No grite menina! com um gesto de silncio, elelevou o dedo sujo em seus lbios e seus olhos faiscavam coisasimundas. Com medo, sentia-se acuada sem saber o que aconteceria.Permaneceu quieta, enquanto o demnio sujo retirava sua cala coma ponta de uma faca, ostentando um leve sorriso nos lbios,enquanto observava o corpo da menina que acabava de formar osseios e alguns pelos pubianos. Dentro de si, guardava um grito desocorro.

    Com a mesma mo suja que pedia silncio, o manaco passou atoc-la em suas partes intimas e ela apenas permitia que as lgrimas

    derramassem pelo rosto sem poder ter alguma reao. As mos deleainda estavam sujas, cheias de terra nas unhas. Sua boca emitiabalbucios que ecoavam pelo velho barraco. Por que estava fazendoaquilo? pensava Ele sempre fora to bem tratado por minhafamlia que o abrigou no stio, dando-o um lugar para morar e umtrabalho para seu sustento.

    Pegou um dinheiro e colocou dentro de sua calinha, e emseguida, numa voz que soava ao ouvido da menina com um misto deasco e terror, sussurrou ele: Esse dinheiro para voc no contarnada...

    Ela fechou seus olhos fortemente. Ouviu ecoar uma voz que aencorajava, em meio s tantas lgrimas que rolavam amargamente

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    por sua pele alva. De fundo, ouvia-se uma msica tocar,acompanhada por batidas de palmas, em seguida, a viso mostravaalgumas pessoas danando com movimentos que envolviam lenos,facas e at mesmo garrafas de bebidas nas mos. Droboy tumeRomale2 diziam as vozes juntas, como num coro que enlouquecia evibrava os tmpanos. Sem compreender a linguagem, ela apenassentia que se tratava de um cumprimento, pela forma como aquelegrupo de pessoas se curvavam diante da chama do fogo que refletiaem toda parte, feixes de luz, formando nuances diversas pelo ar. Umanuvem escura invadiu tudo novamente, e as imagens foram seesvaindo uma a uma, at desaparecerem de vez.

    No conseguiu mais suportar quela situao, e decidiu searriscar, sabendo que poderia ser ferida gravemente, mas queria aproteo de quem confiava. Juntando todas as suas foras, deu umtapa no rosto de Galeno, e em seguida, conseguiu gritar o nome dame. Ele a soltou e ela saiu correndo, enquanto Adelita vinha ao seusocorro.

    Sem precisar pedir, ele arrumou sua mala velha e deixou a casarapidamente, retirou-se do stio, antes de Fernandes chegar e saberda notcia ruim. Nunca mais se ouviu falar nele. Porm, quando seusolhos acompanhavam o vulto escuro de Galeno, no muito longe dali,viu a imagem de algum, escondido atrs de uma rvore,observando-a, sem que ela soubesse de quem se tratava. Ergueu osombros e entrou para sua casa, mas voltou, assim que percebeu airm indo correndo em direo ao estranho atrs da rvore. Elesconversaram. Vina tentava pegar nas mos dele, e este recusava otoque. Ela insistiu e o rapaz foi embora. Analy viu seu vulto, mas noconseguiu reconhec-lo.

    Vina entrou chorando para dentro da casa. A irm foi atrs. O que houve? perguntou querendo entender a situao. No de sua conta. V escutar seu radio e me deixe em paz!

    saiu de perto, enfurecida e visivelmente magoada.

    No dia seguinte, uma catstrofe para a vida que se apresentava

    como uma faceta juvenil. Sentada no vaso sanitrio, sentiu que algohavia acontecido. Analy ficou sem saber se contava irm. Sentia-seestranha por dentro, mas olhou-se no espelho por vrias vezes e novira nada anormal, apenas uma sensao de que precisava crescer.

    Ningum jamais disse em como proceder quando chegasse a suavez. Como encarar a mudana do corpo? Sexo? Este assunto erasomente imaginvel. Passava horas pensando sobre o motivo quelevava os meninos a olharem de modo diferente depois que seu corpose transformou. Vina j havia passado por esta fase e no a tinha

    2Nota da autora:N Cumprimento tradicional, como um ol.

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    precavido das coisas que poderiam lhe acontecer quando se tornasseadolescente.

    Uma coisa a incomodava - sentia vergonha das mudanas queaconteciam em seus seios que se despontavam fora do controle,marcando todas as blusas que usava.

    Sentia medo de viver. Por mais que isso parecesse fascinante,causava certa ansiedade que era disfarada na negao. Estavaentrando na vida real; na vida de pessoas que precisavam cuidar desi mesmas. Queria se esconder com o grito de liberdade por dentro,por medo de saber como viver o que foi banida de conhecer.

    Ela deixou de acreditar que algum poderia am-laverdadeiramente, por mais que quisesse viver um momento especial.Sentia repulsa dentro do corao ao imaginar se entregando a umhomem. Temia que se apaixonasse e depois sofresse to facilmentecomo criana que tem seu doce roubado. A impresso era de quehavia colocado uma pedra no lugar do corao, sufocando qualquersentimento que a fragilizasse diante das circunstncias. Tinha medode se doar para pessoas e perd-las no final.

    Os homens do campo estavam fora de seus planos. Queriaencontrar algum, e quando pensava nisso, apenas se lembrava deVidal de Lucca, o radialista da capital que apresentava seu programafavorito Borboletas na Primavera. Ele era o dolo dos seus sonhos, eem suas fantasias de menina, ela o venerava e o imaginava sendo oalgum que pudesse retir-la daquele confim e lev-la para conhecero mundo. Apaixonara-se pela voz de Vidal, pelas frases que ele dizia,pelos sonhos que ele cultivava em sua vida sem prazeres,estremeciam seu corpo. Queria sonhar e acreditar no que sonhava;esperava que algo acontecesse em sua vida. Sem querer, abrincadeira alcanava grandes escaladas da realidade - Vidal deLucca, mesmo sem saber, e atravs das ondas de um rdio, salvavauma vida condenada ao marasmo.

    Esta uma poca dos sonhos e da nostalgia. As meninasapaixonavam-se por seus dolos. Fariam qualquer coisa para estaremperto deles, mesmo daqueles que jamais tinham visto pessoalmente.

    A imaginao dava asas para a felicidade. Analy precisava seentregar aos seus devaneios para se sentir viva entre os sapos,pernilongos e o gado.

    Levantou-se e olhou novamente para dentro do vaso sanitrio,soltando um pequeno som de exclamao ao perceber sanguemisturado gua. Fixou seus olhos no lquido avermelhado que aospoucos tomaram forma de chamas de fogo. Nas alamedas, viuformando-se um par de olhos amendoados cobertos por uma rendapreta. Os olhos a fitavam como se quisessem lhe dizer algo. Escutou

    um sussurro em seu ouvido: O sangue os unir! O medo tomouposse de todo seu corpo, a ponto de faz-la tropear na porta,

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    tromando nas paredes at chegar sala. O corao pulsava forte elgrimas caiam. Sentiu o gosto salgado em seus lbios. Fora apenasimaginao! falava para si mesma, ao tempo que suas pernastremiam. Essas coisas no existem; no acontecem e no estoulouca!

    Vina ao v-la, to plida, apressou-se: O que houve? Eu... eu... ela pensou antes de dizer; talvez a irm no

    acreditaria em suas palavras e a ridicularizaria pelo resto de sua vida.Sim. Ela o faria. No tinha ningum a quem pudesse confiar seuspequenos segredos.

    Diga menina? O que aconteceu, viu algum fantasma?No tinha o que dizer, a no ser, o outro motivo de uma chacota,

    talvez menor. Vina, aconteceu a pior coisa do mundo! seu rosto continuava

    com uma palidez mrbida distribuda entre seus olhos arregalados.Ela no iria contar a verdade... Jamais contaria! Seria um segredoguardado a sete chaves.

    Fale logo de uma vez... - Vina j estava aflita. Isso! falou mostrando a saia manchada pelo sangue.Vina ria at se curvar em cima da cama. Larga de ser tonta! Isso normal, voc j tem quinze anos, j

    era para ter menstruado. Normal para voc... seus olhos estavam marejados de

    lgrimas, se ela soubesse realmente o que havia acontecido, no iriaacreditar.

    Ah, que tola! Vina continuava rindo. Tudo continuar amesma coisa.

    No minta para mim! Voc no se importa com o que sinto! disse ela revoltada.

    Por que mentiria, est louca? a irm j estava se irritandocom o jeito de Analy, mas foi inevitvel deixar de rir. At pareceque no gosta dessa ideia de agora ter que crescer, namorar, fazersexo e ter filhos. soltou novas gargalhadas e Analy saiu correndo em

    busca de um lugar onde pudesse se esconder do mundo.Sentia-se atormentada pelas vises constantes. Talvez estivesseficando maluca e isso seja um segredo que no deveria revelar nemmesmo a av. Aqueles olhos cor de azul anil a perseguia em seuspesadelos e eram vistos quando acordava no meio da madrugada,sem esperar por isso. No sabia de quem se tratava e nem o quequeriam, apenas expressavam dor e solido, de algum que achamava para perto de si. Poderia ser uma iluso de tica; umtormento emocional causado pelo medo e excesso deresponsabilidade cobrada pelo pai. Poderia estar impressionada com

    os pesadelos contnuos que tinha com o fogo e sangue.

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    Fernandes tinha o hbito de deixar, logo ao amanhecer do dia,um lato de alumnio prximo venda para o caminho de leiteabastecer, e mais tarde, buscava o vasilhame na estrada.

    V buscar o lato e v se no demora, estou precisando devoc na roa pediu a Analy.

    Ela olhou para a irm de imediato. Vamos comigo, maninha? De jeito nenhum! Por qu? Se voc for, te compro uma maria-mole. Voc acha que me engana? Estou garantindo que compro... Com qual dinheiro? Est guardado mentiu. At parece que voc tem algum dinheiro. Est bem, eu no tenho, mas vou ter um dia. Ento tenha primeiro. Credo, Vina, deixe de ser ruim, vamos comigo?Depois de muito insistir, a irm cedeu e seguiram a p em

    direo a vendinha que ficava no meio da estrada. Fora conversandoassuntos juvenis, hora ou outra, riam por alguma bobagem. Analysempre fora a mais afoita.

    Bom dia senhor, vim buscar o lato de meu pai. Ah sim, pode pegar l.Percebendo o movimento na venda, ela ficou olhando para o

    interior do recinto sabendo que algo acontecia de novidade por ali. Odono da venda j conhecendo a curiosidade da menina, foi logo lhedizendo: Matamos um porco, daqui a pouco sai o torresminho...

    Analy olhou para Vina, que em olhar de desaprovao, jimaginou o que a irm poderia aprontar.

    Vocs querem esperar para comer? Mas vai demorar umasduas horas.

    Novamente olhou para Vina que continuou com cara dedesaprovao e antes que ela dissesse algo, a menina tratou de seadiantar: Claro que queremos, vamos esperar!

    Vina puxou o seu brao, quase beliscando, e saram da vendapara esperarem o torresmo ficar pronto.

    Analy voc est doida? O pai ir nos matar! disse com medo. Vai nada! Pensaremos em alguma desculpa. Menina, voc conhece muito bem o pai! disse Vina pondo a

    mo na cintura. Conheo sim, a pergunta - voc quer comer torresmo?

    ironizou. Ah, querer eu quero, mas e depois...

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    Ento, depois a gente v como faz.E neste impasse ficaram na frente da vendinha por quase duas

    horas esperando o torresmo. Analy, vamos voltar para casa? No! Vamos esperar mais um pouco! Sinta o cheirinho... Hum!

    J deve estar quase pronto. Voc completamente maluca, se eu apanhar, a culpa sua. No vamos apanhar, pare com isso! Como pode ter tanta certeza? J faz um tempo que estamos

    aqui, a me deve estar preocupada.Sossegue! Como voc vai fugir de casa um dia, medrosa do

    jeito que ? Quem disse que vou fugir? Meu sonho me casar na igreja,

    ter minha casa e um monte de filhos. Eu j tenho um pretendente...Ele lindo. mais velho, mas lindo. Vive rondando nosso stio. Jnos falamos algumas vezes, mas... eu no o entendo...

    Credo! Vira essa boca para l! Casar?Nunca irei me casar. Ser uma mulher perdida ou uma solteirona? Vina soltou

    uma gargalhada, achando sua irm mais nova um tanto boba. Que perdida nada, menina! Eu vou conhecer o mundo em

    companhia de Vidal de Luca! Sair desse mato e viver a vida l fora. Ahm ? Voc nem o conhece, e se ele for um velho gag,

    barrigudo e careca? Como voc pode ser to ingnua minhairmzinha... E outra coisa... como acredita que fugir? Com o paijunto?

    At parece! Como voc boba Vina! Eu tenho certeza de queVidal lindo, jovem e interessante! ela ria alto. O pai jamais irsaber. Quando ele perceber, estarei muito longe.

    De repente, Analy, ouve uma voz muito baixa em seu ouvido,como se algum quisesse dizer algo apenas para ela: No volte parasua casa agora! Corra!

    Ouviu isso? ela perguntou para Vina, assustada. Isso o qu? Uma voz... pedindo para no voltar para casa...

    Vina deu uma risada alta. Era s o que me faltava... agora ouve vozes tambm? No estou brincando... verdade! Eu ouvi! disse com raiva;

    sentiu um arrepio do couro cabeludo descendo at seus braos. Voc est maluca! Aquele moo da rdio est fritando seus

    miolos. Se bem que... eu no queria ter demorado tanto na venda, edesde que chegamos aqui, estou te chamando para voltarmos paracasa.

    Comeram muito. Saborearam o que puderam do petisco

    oferecido pelo dono da venda, e na volta para a casa, iam pensando

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    no que inventar para o pai, porm no caminho, avistaram Fernandesparado com o aoite nas mos.

    Analy, meu Deus do cu, olhe l! O pai... com um cinto... Eu tefalei! a irm disse chorando.

    As duas caminhavam devagar, e o pai gritou: Vamos logo! dorosto dele, descia suor de to furioso que estava.

    Nunca mais vou lhe perdoar por esta surra! disse Vinaolhando com raiva para a irm.

    Corra! a voz vinha de algum lugar, atormentando seuspensamentos.

    Chegando perto do pai, sentiram o aoite nas pernas.Apanharam como animais no meio da estrada. Adelita, ouvindo agritaria, veio correndo ao encontro das filhas e acabou sendo surradatambm.

    Sem suportar ouvir os gritos, um vizinho tentou socorr-las. Se eu ouvir mais uma vez essas meninas gritarem, irei

    intervir do meu jeito! disse seriamente.Fernandes olhou para ele com muita raiva e disse: No faa

    isso vizinho, porque te mato! As filhas so minhas e eu educo comoquero.

    Enquanto era surrada, Analy olhava para o ar, com a visoembaada, sem conseguir identificar o que tinha a sua frente, pois omedo e desespero tomavam conta de si.

    Um vendaval se formou repentinamente, abaixo de trovoadas echuva forte. O terror que sentia por temporais, parecia doer mais doque os aoites no corpo. Buscou a me com os olhos e se agarrou aela, tentando se proteger. No muito longe de onde estava, viu umamulher estranha, com roupas de cigana, olhando-a fixamente. Elaparecia no se incomodar com a chuva, e ningum parecia enxerg-la. Com avidez nas mos, acenou seu leno de renda, einexplicavelmente, desapareceu, assim como havia surgido, enquantoo cheiro de terra molhada invadia todo o ar, numa tarde que acabaratriste, mas no a ponto de faz-la desistir. O que seria aquela mulher?

    Seu corpo ia tomando forma. Uma moa bonita que carregavauma cabeleira brilhante e ruiva at o meio das costa.

    Ela tentava reprimir sua beleza que era perceptvel mesmoquando acabava de acordar ou de apanhar.

    Esperou que as marcas da surra desaparecessem para ir buscarlivros na casa de um vizinho de sua mesma faixa etria. Descobriu-seapaixonada por romances e imaginava-se dentro das pginas que lias pressas com medo de o pai flagr-la.

    Os romances lhe traziam os sonhos e desejos. Cresceu com as

    figuras dos prncipes em seus sonhos ou o homem quase perfeito.Tudo passava a ser possvel quando abria um livro e passava a l-lo.

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    Em instantes devorava o que lia, ficando sem outros exemplares paracontinuar a sua aventura num mundo que era somente dela, vivendosensaes que o pai no poderia entender.

    Deste modo se tornaria a protagonista da histria, tendo o maisamvel dos personagens como seu par; um homem bonito, delicado esincero. Diferente do marido que sua me havia escolhido para secasar, sem surras e sem ningum para lhe castrar a liberdade.

    Cansada do tdio e com as marcas menos visveis, decidiubuscar os livros que tanto sonhava ler. Logo que chegou, j sefamiliarizou com todos na casa do vizinho. A conversa tornara-se toagradvel que nem percebeu o tempo que ficou por l. Eram todosmuito amveis e o clima da famlia era muito diferente do lar que foracriada. No foi difcil conseguir se entrosar. Os meninos eram jovens efalavam a mesma linguagem, sem dizer que nutriam um sentimentomuito afetuoso pela leitura, o que fez com que Analy se encantassepelos assuntos colocados em questo. Por ser sonhadora, facilmenteviajava dentro das palavras que ouvia, criando as imagens dasdescries em sua mente e se transportando para um mundo cheiode possibilidades.

    Analy, estamos pensando em uma tarde de leitura na prximasemana, o que acha? perguntou um dos rapazes.

    Nossa! Nunca participei de algo assim! Como funciona? seusolhos brilhavam.

    Faremos uma ciranda e iniciaremos a leitura de um livroescolhido. Depois de lermos juntos alguns captulos do dia,debateremos o que lemos.

    Ela bateu palmas e at saltou de alegria.Ao despertar para a realidade, pegou os livros que emprestou e

    seguiu feliz da vida para a sua casa. No meio do caminho, colocou oslivros enrolados em um jornal dentro de uma sacola, encheu de capimcidreira para poder dar uma desculpa que foi apanh-los na vizinha. Afelicidade era tamanha que nem quis pensar no perigo que corria delevar uma surra. Queria apenas ser feliz naquele dia durante o tempoem que esteve longe de sua casa.

    Ao chegar, completamente radiante de alegria, foi recebida peloo pai que j a esperava com famoso cinto na mo.Ela olhou para os seus olhos de modo diferente. Pela primeira

    vez no sentiu medo ou molhou suas roupas. Sentia-se digna pelaalegria que conseguiu naquele dia to especial. Seria capaz de tudo,para que seu bem estar permanecesse sem ser atingido pela rudezde Fernandes.

    Onde estava at essas horas? perguntou o pai gritando.Ele ficou mais furioso quando percebeu que Analy estava

    ausente do medo sem temer o seu olhar, pelo contrrio, olhou-o

    diretamente nos olhos e lhe transmitiu o que estava sentindo segurana!

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    Fui casa de Pablo buscar uns livros. resolveu contar averdade, tirando os livros do meio da sacola que estava forrada pelocapim cidreira.

    Ele olhava com desprezo para o motivo da alegria que a filhasentia, sem tirar os olhos dos dele.

    Num mpeto de raiva, sentindo-se afrontado, deu um murro norosto dela que caiu no cho sobre os livros e continuou olhando paraele sem chorar, afrontando-o ainda mais.

    Levante! ele disse com raiva.Ela levantou-se com o lbio sangrando e levou um murro do

    outro lado do rosto.Vendo a filha sangrando, Adelita entrou mais uma vez na surra,

    gritando: Voc faz isso com ela, porque... - e foi bruscamenteempurrada, caindo ao cho impotente e em sofrimento.

    No se atreva a dizer uma palavra, mulher! Alm de ter me trado e envergonhado a famlia toda... disse

    Adelita inconsolada.Analy olhou para a me em estado de choque, jamais poderia

    imaginar que o pai havia trado sua me um dia. Vendo-a chorandocom a mo no rosto, um filme passou em sua mente. Fernandesapossou-se do cinto e olhou para o lado que ficava a fivela. Assim quelevantou o cinto para acert-la, ela segurou a fivela no ar.

    Nunca mais empurre minha me! ela disse enfrentando opai. Nunca mais apanharemos de voc! seu rosto era de revolta etranstorno.

    Quem voc pensa que para falar comigo desta maneira? passou a surr-la com o lado do cinto que ficava a fivela.

    O sangue corria e sujava o piso da casa. Analy manteve-sevalente. Atrs das costas do pai, novamente viu a cigana, segurandoum objeto metlico nas mos. A dor passara instantaneamente,enquanto seus olhos fixos na imagem tentavam adivinhar o que elaqueria e por que estava ali. A cigana a olhava destemidamente comoa algum que tivesse ali para proteg-la, mesmo que ningumconseguisse v-la ou sentir a sua presena. No sentiu medo, mas

    sentiu uma fora descomunal sendo lhe passada de formainexplicvel e ainda podia ouvir o barulho que o cinto fazia emcontato com o seu corpo, que ardia.

    O sangue a salvar... a mulher dizia insistentemente, emmeio aos gemidos que saiam dos lbios da menina, escapulidos nador emocional e revolta, num corpo pequeno e faminto pela raiva.

    Aproveite bem! Bata bastante! Infiel! ela soltou um berroensurdecedor, sabendo que este assunto era proibido de se tocardentro de sua casa. Se me bater mais uma vez, eu vou emboradaqui e nunca mais olho para a sua cara! Nunca mais! empurrou o

    pai e saiu para o seu quarto, passando pela cigana que aacompanhava com os olhos insanos. Seu corao estava em

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    disparada; enxugou as lgrimas e esfregou a pele marcada pelo cinto.Entrou em seu quarto e sentou-se no cho atrs da porta, colocandoa cabea entre as pernas flexionadas. sua frente havia apenas aescurido. A mulher no voltar, logo agora que estava destemida efalaria com ela se fosse preciso. Gostaria de saber as respostas sobreo comportamento de Fernandes. No conseguia entend-lo, por maisque digam sobre a rigidez na educao de um bero espanhol.

    Tentando fugir do plano de morte que faria ao pai, em lamria emgoa, preferiu se lembrar do carinho que ele tinha ao lev-la para aroa, quando tinha apenas trs anos de idade. Ele a colocava nobalaio usado para a colheita do algodo, desta forma, ela nomachucava seus pezinhos frgeis nos espinhos e pedras que haviaantes de chegar lavoura.

    Pensou vrias vezes vai passar! Desejava esquecer o que haviaacontecido. Ligou seu rdio a pilha em um volume muito baixo; aslgrimas pingavam em suas mos. A voz do locutor era reconhecidapor ela, entre seus soluos abafados.

    Ningum afasta as pessoas de seu prprio destino...