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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC/SP Estefânia Portomeo Cançado Lemos O corpo “antes e depois”: uma análise dos processos de subjetivação através das narrativas testemunhais nas Redes de Comunicação Digital MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA São Paulo 2017

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC/SP

Estefânia Portomeo Cançado Lemos

O corpo “antes e depois”: uma análise dos processos de

subjetivação através das narrativas testemunhais nas Redes de

Comunicação Digital

MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

São Paulo

2017

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Estefânia Portomeo Cançado Lemos

O corpo “antes e depois”: uma análise dos processos de

subjetivação através das narrativas testemunhais nas Redes de

Comunicação Digital

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Comunicação e Semiótica, sob a orientação do Prof. Doutor Rogério da Costa.

São Paulo

2017

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Estefânia Portomeo Cançado Lemos

O corpo “antes e depois”: uma análise dos processos de

subjetivação através das narrativas testemunhais nas Redes de

Comunicação Digital

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Comunicação e Semiótica, sob a orientação do Prof. Doutor Rogério da Costa.

Aprovada em: _____________________

Banca Examinadora:

Prof. Dr. ________________________________________________________

Instituição: __________________ Assinatura: __________________________

Prof. Dr. ________________________________________________________

Instituição: __________________ Assinatura: __________________________

Prof. Dr. ________________________________________________________

Instituição: __________________ Assinatura: __________________________

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Autorizo exclusivamente para fins acadêmicos e científicos a reprodução total ou parcial desta Dissertação de Mestrado por processos de fotocopiadoras ou eletrônicos. Assinatura: ______________________________________________________ Data: 30/06/2017 E-mail: [email protected]

L48

Lemos, Estefânia Portomeo Cançado

O corpo “antes e depois”: uma análise dos processos de subjetivação através das narrativas testemunhais nas Redes de Comunicação Digital / Estefânia Portomeo Cançado Lemos. – São Paulo: [s.n.], 2017.

119 p. ; 30 cm.

Orientador: Prof. Dr. Rogério da Costa

Dissertação (Mestrado em Comunicação e Semiótica) -- Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica, 2017.

1. Biopolítica. 2. Subjetividade. 3. Corpo. I. Lemos, Estefânia Portomeo Cançado. II. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica. III. Título.

CDD 302.2

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À memória de meu avô Manoel Beraldo Lemos.

Que partiu sem poder ver este trabalho concluído, e que uma de suas últimas ações

foi ler meu projeto de ingresso nesse programa.

Dedico não somente essa pesquisa, mas também as mais belas lembranças e

ensinamentos que tenho seus, meu avô, que sempre se orgulhava de cada passo meu, que

incentivava a busca pelo conhecimento e o gosto pela ciência.

A pessoa que mais celebrava a vida, o amor e a união da família.

A emoção e a saudade tomam-me diante das fotografias que ficaram.

Saudades eternas.

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A imagem arde: inflama-se, consome-nos em retorno. O fogo com que arde a imagem abre sem dúvida buracos persistentes, mas é ele próprio passageiro, tão frágil e discreto como o fogo que queima a falena que se aproxima demasiado da sua vela. A imagem é muito mais do que um simples recorte praticado no mundo dos aspectos possíveis. É uma marca, um sulco, um rasto visual do tempo que ela quis tocar [...]. É cinza misturada, mais ou menos quente, de vários braseiros. Assim arde a imagem. Arde por causa do real de que ela, a um dado momento, se aproximou [...]. Arde por causa da dor de onde provém, e que transmite a quem quer que tome o tempo de ela se apagar. Enfim, a imagem arde por causa da memória, o que significa que ela arde ainda, mesmo quando já não é senão cinza (DIDI-HUBERMAN, 2004).

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AGRADECIMENTOS

A Deus por me dar forças.

Agradeço aos meus pais, Eberth e Bianca, que acreditaram em mim e me

apoiaram sem medir esforços para a realização deste projeto.

Ao meu irmão Augusto e familiares pela compreensão e carinho de sempre

nessa fase.

Ao meu tio Dener pelo apoio durante esse período.

Aos professores doutores José Luiz Aidar Prado, Oscar Angel, Lúcia

Santaella, Ivo Ibri e Cristiane Greiner, pelos ensinamentos, reflexões e dedicação

nas aulas. Certamente foram grandes inspirações, e seus ensinamentos levarei para

o resto da vida.

À professora doutora Lúcia Leão, pela dedicação e ensinamentos em aula,

que foram de grande importância no desenvolvimento e evolução da minha

pesquisa.

Ao meu orientador Rogério da Costa, pelas orientações e grandes reflexões

em aula, por ter me ensinado que o mestrado é um momento de liberdade e que

devemos fazer aquilo que acreditamos.

Aos amigos da PUC, pela troca de experiências e aprendizados nos trabalhos

em grupo, que fizeram dessa jornada menos solitária. Obrigada pela amizade e

companhia: Sharine Machado, André Fogliano, Ana Catarina Holtz, Francisco

Trento, Jessica Oliveira, Viviana Coletty, Darlan Santos, Eliane Washington, Aline

Antunes, Rogério Murback, Marcia Fusaro, Alberto Cabral, Monica Allan, Pedro

Taam Caio D’Carvalho, Edu Fontes, Paula Guimarães, Valéria Aprobato, Mirian

Meliani, Patricia Assuf Nechar, Erika Almeida, Heron Ledon, Vanessa Lopes,

Vanessa Rozan, Alessandra Barros, Victor Sancassani, Janaina Oliveira, Rafael

Augusto, Victor Marques, Fabrício Franco, Osmar Guerra.

Para Gabriel Deggerone, pela grande amizade que ganhei durante essa

jornada, uma das pessoas mais incríveis que conheci. Muitas de nossas conversas e

reflexões se tornaram ideias nesse trabalho.

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Para Fabrício Augusto, meu estagiário, pela paciência de ouvir e ler meu

projeto. Obrigada pela amizade e por me ajudar nos momentos que precisei de

você.

Para Thiago Silva, por todas as noites de conversa e apoio principalmente

nas últimas etapas dessa jornada, desde a indicação de playlists inspiradoras e por

tantas vezes ser consultor, revisor e conselheiro. Muitas das palavras neste trabalho

foram frutos de nossas conversas. Certamente, um dos melhores amigos que

ganhei, palavras não são suficientes para agradecer.

A todos os funcionários da PUC-SP, por toda atenção e atendimento nessa

jornada. Especialmente a Cida Bueno, secretária da Pós-graduação em

Comunicação e Semiótica pela paciência, que me auxiliou e direcionou com muito

carinho em todos os processos do mestrado.

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Lemos, Estefânia Portomeo Cançado. O corpo “antes e depois”: uma análise dos processos de subjetivação através das narrativas testemunhais nas Redes de Comunicação Digital. 2017. 119 p. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Semiótica). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017.

RESUMO

O foco da nossa pesquisa é a análise crítica das dimensões que permeiam os processos de subjetivação e o mapeamento da produção de imagens do corpo, autenticadas através da narrativa testemunhal nas redes de comunicação digital. Partimos da ideia de que a produção de fotografias do corpo na condição de um “antes e depois”, vista nas redes de comunicação digital, sobretudo, representam a confissão pública de uma circunstância que envolve superação e conquista. Observa-se que o corpo, atualmente, tem sido objeto de discussão frequente no universo das mídias e que essas narrativas são baseadas em uma cultura de valores e discursos que assumem um caráter imperativo e pregam a conquista e o medo de perder a felicidade e a autoestima. Entretanto, nas mídias digitais, é possível identificar outras formas de subjetivação, um contradiscurso, que foge às normatizações que regem o corpo idealizado e defende a valoração do próprio corpo e sua subjetividade. Diante disso, buscamos compreender como se desenvolveram essas narrativas testemunhais na publicidade e seu impacto na cultura contemporânea, os imperativos e valores atuais que intimam a exibição das subjetividades e que podem levar a novos processos de subjetivação, como a transformação em produto midiático. Para tal, o material utilizado se constitui de imagens referentes a usuários comuns e de pessoas consideradas influencers digitais e também publicações em comunidades virtuais que tratam dos temas de saúde e fitness. A pesquisa tem como referencial teórico: a análise dos modos de subjetivação e as estratégias de controle na sociedade (Foucault e Deleuze); fases do consumo (Lipovetsky); dispositivos comunicacionais (Prado); redes sociais (Costa); política das imagens (Debord e Rancière), construção da subjetividade (Pelbart); imperativos contemporâneos e exibição midiática (Freire Filho e Sibilia). A metodologia é composta por revisão bibliográfica; coleta, seleção e análise de documentos das redes sociais. Fundamentada na ideia da imagem do corpo nos espaços de comunicação, a pesquisa demonstra a importância da construção de novas políticas de subjetivação. Concluímos nossa investigação constatando a criação de um imaginário heroico nas narrativas testemunhais como resultado dos processos que levam a um novo modelo antropológico social decorrente das forças contemporâneas do biopoder e dos imperativos do capitalismo atual, e que a subjetividade, mesmo transformada e desenraizada pelo capital, resiste às suas capturas, exibindo as mais diversas formas de ser e em direções mais inesperadas: em aspectos até inéditos de socialidade, de resistência e de implicação com o presente.

Palavras-chave: biopolítica; subjetividades; corpo.

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Lemos, Estefânia Portomeo Cançado. O corpo “antes e depois”: uma análise dos processos de subjetivação através das narrativas testemunhais nas Redes de Comunicação Digital. 2017. 119 p. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Semiótica). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017.

ABSTRACT

The focus of our research is the critical analysis of the dimensions that permeate the processes of subjectivation and the mapping of the production of authenticated body images through the testimonial narrative in digital communication networks. We start from the idea that the production of photographs of the body in the condition of a "before and after", seen in the networks of digital communication, above all, represent the public confession of a circumstance that involves overcoming and conquest. It is observed that the body today has been the subject of frequent discussion in the universe of the media and that these narratives are based on a culture of values and discourses that assume an imperative character and preach conquest and fear of losing happiness and self-esteem . However, in digital media, it is possible to identify other forms of subjectivation, a counter-discourse, that evades the norms that govern the idealized body and defends the valuation of the body itself and its subjectivity. In the light of this, we seek to understand how these narrative witnesses in advertising and its impact on contemporary culture have developed, the imperatives and current values that intimate the exhibition of subjectivities and that can lead to new processes of subjectivation, such as the transformation into media product. To do this, the material used consists of images referring to ordinary users and people considered digital influencers and also publications in virtual communities dealing with health and fitness themes. The research has as theoretical reference: the analysis of modes of subjectivation o and control strategies in society (Foucault and Deleuze), consumption phases (Lipovetsky), communication devices (Prado); Social networks (Coast); Politics of images (Debord and Rancière), construction of subjectivity (Pelbart), contemporary imperatives and mediatic display (Freire Filho and Sibilia). The methodology is composed by bibliographic review; Collection, selection and analysis of social media documents. Based on the idea of the image of the body in the spaces of communication, research demonstrates the importance of the construction of new policies of subjectivation. We conclude our investigation by establishing a heroic imaginary in the witness narratives as a result of the processes that lead to a new social anthropological model resulting from the Contemporary forces of biopower and the imperatives of present-day capitalism and that subjectivity, even transformed and uprooted by capital, resists its captures by exhibiting the most diverse forms of being and in more unexpected directions: in unpublished aspects of sociality, resistance and implication as a gift. Keywords: biopolitics; subjectivities; body.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1: Mestres de Cerimonias (2016) de Bárbara Wagner ................................... 18

Figura 2: TRUE TO SIZE - Fiel ao Tamanho (2015-2016), de Heather Phillipson .... 19

Figura 3: Foto de Gilbert Seehausen (1934), para a marca Lady Esther - pó facial

Face Powder. ............................................................................................................ 24

Figura 4: “Shering de Urotropina” o maior desinfectante das vias urinárias..............29 Figura 5: Super Depurativo Luetyl para “reumatismo” ............................................... 30

Figura 6: “Antes: fraco e desanimado, um imprestável. Hoje: cheio de saúde e vigor

graças ao Biotônico Fontoura” (1931) ....................................................................... 32

Figura 7: Cena primeiro episódio Mad Man - “Smoke Gets In Your Eyes”, fala 1 ..... 34

Figura 8: Cena primeiro episódio Mad Man - “Smoke Gets In Your Eyes”, fala 2 ..... 35

Figura 9: Cena Black Mirror: Episódio “Queda livre” – 1º episódio, 3º temporada .... 46

Figura 10: Exemplos de anúncios que circulam no facebook sobre saúde e beleza.

.................................................................................................................................. 55

Figura 11: Exemplos de anúncios que circulam no facebook sobre estilo de vida e

emagrecimento .......................................................................................................... 56

Figura 12: Resultado da busca pelas hashtags #minhamelhorversão e #bestself

realizada no dia 08 de maio de 2017, na rede social Instagram. .............................. 60

Figura 13: Resultado da busca pelas hashtags #minhamelhorversão e #bestself

realizada no dia 20 de maio de 2017, na rede social Instagram ............................... 61

Figura 14: Página do site Dicas de saúde ................................................................. 63

Figura 15: Pop-up Super Slim X .............................................................................. 64

Figura 16: Testemunho e história de emagrecimento com o uso do Super Slim X . 65

Figura 17: Vídeo atriz Monique Alfradique indicando Super Slim X ........................ 65

Figura 18: Mídias tradicionais que falam sobre o Super Slim X ................................ 66

Figura 19: Video youtube – Antes e depois da anorexia ........................................... 67

Figura 20: Publicações de Ronni Coleman em seu Instagram .................................. 68

Figura 21: Alerta do Instagram ao buscar pelo tema “anorexia”................................ 69

Figura 22: Blog Gabriela Pugliesi – “Tudo sobre mim” .............................................. 72

Figura 23: Página Inicial Facebook ........................................................................... 90

Figura 24: Página inicial Twitter ................................................................................ 91

Figura 25: Perfil e foto “antes e depois” Gabriela Pugliesi em seu Instagram ........... 93

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Figura 26: Perfil e fotos Beatriz Romano em seu Instagram ..................................... 94

Figura 27: Perfil e Foto “antes e depois” Lorena D’Aguila em seu Instagram ........... 95

Figura 28: Perfil comunitário no Instagram de fotos de “antes e depois” .................. 97

Figura 29: Perfil e fotos Morgan Mikenas em seu Instagram .................................... 99

Figura 30: Perfil Instagram Priscila Sanches ........................................................... 100

Figura 31: Fotos “antes e depois” Priscila Sanches no Instagram .......................... 101

Figura 32: Busca pela tag #nopainnogain no Instagram.........................................102

Figura 33: Fotos Priscila Sanches mostrando “truque” ........................................... 103

Figura 34: Perfil e foto “antes e depois” Miriam Bottan ........................................... 104

Figura 35: Foto Mirian Bottan mostrando “truque” ................................................... 105

Figura 36: Foto “antes e depois” Miriam Bottam ..................................................... 106

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...........................................................................................................14

CAPITULO 1 – O VÍNCULO DA COMUNICAÇÃO E BIOPOLÍTICA........................17

1.1 - A biopolítica e os meios de comunicação.........................................................17

1.2 - Sociedade de consumo em massa...................................................................23

1.3 - Sociedade do desejo.........................................................................................28

1.4 - Sociedade do hiperconsumo.............................................................................38

CAPITULO 2 – A CONSTRUÇÃO DO MODELO ANTROPOLÓGICO DA

SUBJETIVIDADE CONTEMPORÂNEA....................................................................51

2.1 – A construção da subjetividade...........................................................................51

2.2 - Subjetividade e capitalismo................................................................................58

2.3 - Imperativos da contemporaneidade...................................................................61

CAPITULO 3 – O CORPO “ANTES E DEPOIS”: A SUBJETIVAÇÃO NOS MEIOS

DE COMUNICAÇÃO DIGITAIS.................................................................................74

3.1 – A construção do “eu” virtual...............................................................................74

3.2 – Da confissão ao testemunho nos processos de subjetivação...........................86

3.3 – A narrativa heroica nas mídias digitais............................................................108

Discussão e considerações finais........................................................................112

Referências bibliográficas.....................................................................................115

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INTRODUÇÃO

Nossa sociedade é marcada pelo consumo de marcas que envolvem

experiências emocionais, sobretudo relacionadas ao maior bem-estar, qualidade de

vida e de saúde. Vivemos em um contexto bem distinto da sociedade industrial. As

normas e valores que percorrem nossa sociedade contemporânea, assim como a

produção de sentidos, ideias e afetos são marcadas pela ideia da construção de

felicidade de vida, autoestima e autonomia.

O projeto de construção de felicidade começou a se caracterizar pelo culto do

indivíduo, no qual o sujeito é concebido segundo os eixos do corpo, despontando na

chamada sociedade do espetáculo. De fato, esse cenário é inseparável das

orientações do capitalismo, e o ciberespaço constitui um fator crucial no incremento

do capital social e cultural disponível (COSTA, 2004).

Acreditamos que as tecnologias são inventadas para desempenhar funções

que a sociedade de algum modo solicita, sendo assim, a causalidade é revertida e

os dispositivos são frutos de certas mudanças e não mais compreendidos como

causa: são criados e transformados pela população (SIBILIA, 2010, p. 25).

O presente trabalho apresenta nosso projeto de dissertação de mestrado, que

faz parte da linha de pesquisa: Dimensões Políticas na Comunicação. Procuramos

desenvolver reflexões críticas sobre a ordem comunicacional vigente, mediante as

apropriações sociais nos dispositivos midiáticos.

Sobre a proposta de uma análise das subjetividades e a narrativa

confessional com a construção da imagem do corpo em um “antes e depois”, é

apenas uma parte de um todo que se representa. Esse recorte de interesse implica

na investigação de tendências ligadas a diferentes dimensões de poderes e afetos

nas relações com os meios de comunicação digitais.

A questão tratada nesse trabalho tem como escopo indagar de que maneira a

narrativa confessional da subjetividade construída com produção de fotografias do

corpo, na condição de um antes e de um depois, nos espaços de comunicação

digital, se transforma em uma história autêntica e se torna um produto midiático.

Nossos objetivos buscam, em primeiro lugar, analisar como se

desenvolveram essas narrativas confessionais na publicidade e seu impacto na

cultura até chegarem aos espaços de comunicação digital; identificar os imperativos

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e valores contemporâneos que produzem a exibição de subjetividades, que podem

levar a transformação em produto midiático e investigar alguns símbolos que

exemplificam os elementos das narrativas da confissão pública nas redes sociais.

Para isso, apresentaremos, no nosso primeiro capítulo, os conceitos que

fundamentam a pesquisa, assim como se desenvolveram os modos de subjetivação

e as estratégias de controle nas sociedades, nos apoiando nos conceitos de Michel

Foucault e Gilles Deleuze. A partir da leitura que fizemos do ensaio “A felicidade

paradoxal”, de Lipovestsky e da pesquisa de José Luiz Prado, faremos um resgate

histórico das fases da sociedade de consumo e o desenvolvimento dos meios de

comunicação, da imagem na publicidade, e traçaremos um paralelo entre as

discussões sobre a Sociedade do espetáculo de Guy Debord e a Política da imagem

de Jacques Ranciére.

No segundo capítulo, embasados nas teorias de Deleuze e nas análises de

Peter Pelbart, iremos discorrer como as transformações desse contexto afetam os

processos pelos quais o indivíduo se torna o que é e como se constitui a concepção

de subjetividade contemporânea. Para a elucidação dos valores que permeiam a

construção dessas subjetividades e sua relação com capitalismo contemporâneo, a

qual inclui a modulação dos corpos, iremos nos apoiar nos estudos de Paula Sibilia

e João Freire Filho.

No terceiro e último capítulo, nos propomos a examinar como se dá a

conexão entre visibilidade e os espaços de comunicação digital – os cenários em

que nosso objeto, as publicações de fotos de “antes e depois”, se manifestam. Para

tanto, iremos percorrer os estudos de Paula Sibilia sobre o desenvolvimento da

Internet até as redes sociais. Consideramos que a produção de imagens de uma

condição de um antes e de um depois é um mecanismo de autenticação através do

recurso de confissão pública. Para a análise desse quadro, utilizaremos a

genealogia de Foucault sobre como se desenvolveu o ritual da confissão e seus

significados.

A partir das reflexões de Paula Sibilia iremos investigar quais seriam os

desdobramentos e os dispositivos de poder atual, em que a prática do testemunho

se manifesta. Para analisar como a lógica da complexidade das tecnologias de

produção nas redes se relaciona com os aspectos da realidade do nosso fenômeno,

tomaremos como base os conceitos de Edgar Morin.

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E, por fim, iremos refletir sobre a relação da construção do imaginário do

indivíduo na propagação da prática da confissão pública com a antropologia

estrutural do imaginário do mito e a jornada do herói de Joseph Campbell.

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17

CAPITULO 1 – O VÍNCULO DA COMUNICAÇÃO E BIOPOLÍTICA

1.1 A biopolítica e os meios de comunicação

Quando nos propomos a estudar a narrativa confessional e/ou testemunhal

em suas diversas formas de subjetividades nos espaços de comunicação digital, por

meio da exibição de imagens de “antes e depois”, coube nos indagar como esse

modo de visibilidade, essa forma de “ser” e “estar” no mundo, foi constituído ao

longo da história contemporânea e qual o papel da autenticidade nesse quadro, uma

propriedade também questionável, que nos faz refletir sobre as contradições desse

fenômeno, a espetacularização do “Eu” e sua absorção pelo mercado.

Assim, o primeiro passo para examinar essas práticas midiáticas e como

iremos defini-las no contexto deste trabalho consiste em realizar um resgate

histórico e analisar como nasceu essa manifestação social nos meios de

comunicação digital.

A biopolítica e o biopoder são conceitos que abrem um campo fértil de ideias

e questionamentos para pensarmos o que somos e por que o somos, em quem

estamos nos tornando e sobre quem gostaríamos de nos tornar. Essas reflexões são

alimentadas por todas as áreas de pensamento, da filosofia às ciências, em geral,

inclusive na arte. Nesse ponto, gostaríamos de abrir um parêntese para comentar

sobre o tema da 32º Bienal de São Paulo, realizada em 2016, cuja missão primordial

foi apresentar e debater a arte contemporânea como elucidação aos ritmos do

presente.

Sob o título Incerteza viva, a 32a Bienal de São Paulo teve como eixo central a

noção de incerteza a fim de refletir sobre as atuais condições da vida em tempos de

mudança contínua e sobre as estratégias oferecidas pela arte contemporânea para

acolher ou habitar incertezas. A exposição se propôs a traçar pensamentos

cosmológicos, inteligência ambiental e coletiva, bem como ecologias naturais e

sistêmicas.

Na exposição, nos chamaram atenção as obras dos artistas Bárbara Wagner

e Heather Phillipson, posto que suas instalações revelaram uma investigação sobre

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como é habitado o imaginário da sociedade de consumo contemporânea, ou seja,

como se dá a propagação imagética de subjetividades atuais.

Na instalação Mestres de Cerimônias (2016), de Bárbara Wagner, pode-se

observar a exposição de fotografias com um caráter documental, sobre a cena

cultural e a economia criativa das indústrias musicais do ‘Brega Funk’, em Recife, e

do ‘Funk Ostentação’ em São Paulo. A fim de documentar os gestos e as cenas que

constroem a cultura do MC nas duas capitais brasileiras, a artista registrou, por meio

da realização de videoclipes e fotografias, signos de uma economia de desejos por

visibilidade, consumo e celebridade nunca antes experimentada no país. Pode-se

observar que o brega se apropriou de símbolos de status e poder historicamente

pertencentes às classes dominantes, tornando-se voz e autoestima diante da

dominação dos parâmetros de identidade e de gosto, através do papel de

intermediado que propaga uma produção imagética no limiar entre o precário e a

ostentação.

Figura 1: Mestres de Cerimonias (2016) de Bárbara Wagner

Fonte: <http://www.bienal.org.br/>.

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A instalação da obra TRUE TO SIZE - Fiel ao Tamanho (2015-2016), de

Heather Phillipson, consiste na composição de vídeos, áudios e esculturas em

escala humana. E uma mescla de cenas que tem como tema a devastação – clima

extremo, higiene extrema, sexo virtual, comunicação excessiva, guerras, extinção

iminente, sobrevida, enchentes e, em um sentido mais amplo, consumo e desejo. A

escala dos objetos e imagens representados faz com que eles momentaneamente

percam a banalidade com que são consumidos no cotidiano.

Suas instalações revelam uma investigação sobre como emoções, afetos e

desejos são construídos e manipulados no interior do conjunto heterogêneo de

referências culturais. Por meio de colagens, colisões, sobreposições e associações

inesperadas, o artista utilizou como matéria-prima objetos físicos e digitais que

habitam o imaginário da sociedade de consumo contemporânea, como imagens de

publicidade on-line, brinquedos de pelúcia e “emojis” de aplicativos de conversa

virtual.

Figura 2: TRUE TO SIZE - Fiel ao Tamanho (2015-2016), de Heather Phillipson

Fonte: <http://www.bienal.org.br/>.

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A respeito do que observamos sobre as atuais condições de vida,

reconhecemos que nossa realidade tem sido transformada pelos avanços das

ciências, em especial pela tecnologia da informática e a inserção da internet no

nosso cotidiano, que não só transforma, mas cria novas realidades, não só no

âmbito da comunicação, mas na interação sobre o que entendemos por comunidade

e forja, além disso, novas políticas de vida e subjetividades.

Foi na década de 1970, que Michel Foucault denominou no campo do

pensamento político um dos fenômenos fundamentais do século XIX, a assunção da

vida pelo poder, apontando para um “fazer viver” em vez de “fazer morrer”, como

tinha sido o caso até o século XVI, no qual vigorou o poder soberano, que tinha

direito sobre a vida e a morte dos súditos. A partir dos séculos XVII e XVIII, surge

um novo tipo de poder, centrado no corpo individual, com técnicas cada vez mais

especificas, que Foucault chamou de poder disciplinar, cuja função não é mais a de

matar, mas de investir na vida:

Eram todos aqueles procedimentos pelos quais se asseguravam a distribuição espacial dos corpos individuais (sua separação, seu alinhamento, sua colocação em série e em vigilância) e a organização, em torno desses corpos individuais, de todo um campo de visibilidade. Eram também as técnicas pelas quais se incumbiam desses corpos, tentavam aumentar-lhes a força útil através do exercício, do treinamento etc. Eram igualmente técnicas de racionalização e de economia estrita de um poder que devia se exercer, da maneira menos onerosa possível, mediante um sistema de vigilância, de hierarquias, de inspeções, de escriturações, de relatórios: toda essa tecnologia, que podemos chamar de tecnologia disciplinar do trabalho. (FOUCAULT, 1999, p. 203)

A partir da segunda metade do século XVIII, surge um outro tipo de poder,

agora não disciplinar, mas um poder que integra, embute e modifica as tecnologias

disciplinares, que se dirige agora não mais ao corpo individual, ao homem-corpo,

mas ao homem vivo em sua multiplicidade, em sua massa na medida em que esta

se vê “afetada por processos de conjunto que são da própria vida, que são

processos como o nascimento, a produção, a doença. Etc.” (FOUCAULT, 1999, p.

204). Hoje, o poder se dirige ao homem vivo, ao homem ser vivo.

Depois da anátomo-política do corpo humano, instaurada no decorrer do século XVIII, vemos aparecer, no fim desse mesmo século, algo que já não é uma anátomo-política do corpo humano, mas que eu

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chamaria de uma biopolítica da espécie humana. (FOUCAULT, 1999, p.204)

Mas, do que se trata essa nova estratégia de poder? Trata-se de uma rede de

processos que envolvem tanto as instituições médicas e sanitárias, abarcando

problemas de controle da reprodução, natalidade e de morbidade, como também as

instituições de educação, justiça e de moralidade vinculadas não mais somente à

Igreja. Por meio desse conjunto, o indivíduo e seu corpo não são mais tratados

como indivíduo-corpo, mas, como corpo-populacional. Com o aparecimento desse

elemento, que é a população, são implantados mecanismos a fim de potencializar a

vida dos sujeitos, maximizar suas forças e extraí-las no que tange à produtividade

necessária para o funcionamento da sociedade industrial e assegurar um estágio de

equilíbrio, de regulamentação sobre eles (FOUCAULT, 1999, p. 204-207).

Com a era dos biopoderes, portanto, dá-se uma passagem do poder

soberano sobre a vida e a morte, para o investimento na vida, havendo um conjunto

de políticas de gestão da vida a partir das regulações sobre o corpo individual e,

posteriormente, do corpo populacional. Há, nesse sentido, a construção de corpos

“dóceis e úteis” para o que em breve veríamos nos séculos XIX e XX – a concepção

do capitalismo – graças ao desdobramento desse projeto em que:

A velha potência da morte em que simbolizava o poder soberano é agora, cuidadosamente, recoberta pela administração dos corpos e pela gestão calculista da vida. Desenvolvimento rápido, no decorrer da época clássica, das disciplinas diversas – escolas, colégios, casernas, ateliês, aparecimento, também, no terreno das práticas políticas e observações econômicas, dos problemas de natalidade, longevidade, saúde pública, habitação e migração; explosão, portanto, de técnicas diversas e numerosas para obterem a sujeição dos corpos e o controle das populações. Abre-se, assim, a era de um biopoder. (FOUCAULT, 2003, p.131)

Devido às contínuas alterações desse quadro estratégico, ao longo das

décadas, percebe-se que as transformações econômicas, políticas e socioculturais

ocorridas nos últimos anos acabaram intensificando as ramificações biopolíticas.

Gilles Deleuze foi um dos primeiros exploradores dessa corrente com sua teoria

sobre as “sociedades de controle”. Após a Segunda Guerra Mundial, ocorre, como

afirma Deleuze, “a crise generalizada de todos os meios de confinamento”, da prisão

e da fábrica à escola e à família.

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Trata-se apenas de gerir sua agonia e ocupar as pessoas, até a instalação de novas forças que se anunciam. São as sociedades de controle que estão substituindo as sociedades disciplinares. ” São novas formas de controle ‘ao ar livre’, que substituem as antigas disciplinas que operavam na duração de um sistema fechado” (DELEUZE, 1992, p.224)

Segundo Deleuze, os confinamentos das sociedades disciplinares são

moldes, enquanto “os controles são uma modulação, como uma moldagem

autodeformante que mudasse continuamente, a cada instante, ou como uma peneira

cujas malhas mudassem de um ponto a outro” (DELEUZE, 1992, p. 224). O trabalho

muda de sentido na alteração da fábrica, cujo princípio era disciplinar, para a

empresa, a qual estabelecia o controle contínuo. Agora, cria-se um jogo de

rivalidade entre os indivíduos na empresa que atravessa cada um por meio de

excelente motivação para sua autoconstrução, ao mesmo tempo em que aumentam

a produtividade para a empresa crescer.

Por outro lado, a educação também passa por esse princípio modulador,

sendo substituída pela formação permanente, para um controle contínuo de

automelhoria e desenvolvimento de indivíduos, de empresas e da família. Os

espaços de relativo confinamento coexistem em um sistema de mesma modulação.

Os signos do dinheiro talvez sejam o que melhor exprime a distinção entre as duas

sociedades, visto que as moedas cunhadas em ouro serviam de medida padrão,

passando para um material flexível: “a velha toupeira monetária é o animal dos

meios de confinamento, mas a serpente o é das sociedades de controle” (DELEUZE,

1992, p. 227) e, assim, passamos a mudar nossa maneira de viver e as relações

com outrem. O surf, sugere Deleuze, é o que melhor substitui a figura dos corpos

rígidos disciplinares, posto que o homem do controle tem de ser ondulatório, plástico

e flexível. Da mesma forma, em cada regime, as máquinas fazem correspondência à

sociedade, uma vez que são determinadas pelas formas sociais capazes de criar e

utilizá-las, todavia, uma evolução tecnológica não é concebida sem antes haver,

mais profundamente, uma mutação do capitalismo (DELEUZE, 1992, p. 227).

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1.2 Sociedade de consumo em massa

Gilles Lipovetsky elucida três eras do capitalismo de consumo. O primeiro

ciclo começa por volta de 1800 e termina com a Segunda Guerra Mundial, é a

chamada “era de consumo de massa”. Constituída pela transformação do mercado e

expansão da produção em grande escala graças ao desenvolvimento das

infraestruturas de transporte e de comunicação e reestruturação das fábricas em

função dos princípios da “organização científica do trabalho”. A elevação da

velocidade e da quantidade dos fluxos ocasionou o aumento da produtividade em

baixo custo. (LIPOVETSKY, 2007, p. 27)

Entretanto, não se pode dizer que esse fenômeno nasceu “mecanicamente de

técnicas industriais capazes de produzir em grandes séries mercadorias

padronizadas. Ele também é uma construção cultural e social que requisitou a

“educação” dos consumidores”, que ocorreu com o desenvolvimento da produção de

massa, surgindo um consumo de massa predominantemente burguês

(LIPOVETSKY, 2007, p. 28). Foi nessa fase que se inventou o marketing de massa,

fazendo-se publicidade em escala nacional, transformando o cliente tradicional em

um consumidor moderno, um consumidor de marcas a ser educado e seduzido

especialmente pela publicidade (LIPOVETSKY, 2007, p. 29-30).

Ao final de 1800, depois do aperfeiçoamento do processo de impressão que

permitiu que imagens fossem impressas junto ao lado do texto, foi que a fotografia

se estabeleceu na publicidade. Imagens de produtos de consumo encheram as

páginas traseiras das revistas. Todavia, a fotografia de estúdio era um

empreendimento caro e, antes da Primeira Guerra Mundial, editores de jornais e

revistas tendiam a favorecer ilustrações desenhadas sobre fotografias. Na década

de 1920, conforme observa Elspeth Brown em The Corporate Eye: Photography and

the Rationalization of American Commercial Culture 1884-1929, o enorme aumento

da produção industrial e a crescente demanda de consumo levaram os executivos a

procurar maneiras de destacar os produtos de suas empresas entre a vasta gama

de produtos manufaturados. A influência da psicologia aplicada reorientou os

gestores no sentido de uma atenção maior da mente como elemento crítico

fundamental para consumo racional. (HARVARD BAKER LIBRARY, 2010. Tradução

nossa).

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De acordo com a Photographers Association of Americ (1985 apud

HARVARD, 2010. Tradução nossa), os consumidores acreditam que nada diz a

verdade tão bem quanto a câmera. E que o uso das fotografias de “antes-e-depois”

comprovam os benefícios do produto oferecido de forma mais persuasiva e realista,

devido ao apelo em nível emocional. Assim, a partir da década de 1930, a fotografia

se tornou a escolha para a maioria dos anúncios impressos. Como a fotografia de

Gilbert Seehausen, de 1934, para a marca Lady Esther, que tinha como finalidade

atestar os benefícios do pó facial Face Powder (HARVARD BAKER LIBRARY,

2010).

Figura 3: Foto de Gilbert Seehausen (1934), para a marca Lady Esther - pó facial Face Powder

Fonte: Art and Industry Exhibition Photograph Collection, Baker Library Historical Collections

Disponível em: <https://goo.gl/5tySD>. Acesso em: 31 mar. 2017

O primeiro gênero fotográfico a ser incorporado de maneira mais sistemática

à propaganda foi o retrato. A princípio, era utilizada a imagem de uma personalidade

famosa para recomendar o uso do produto, fazendo com que a imagem fotográfica

cumprisse o papel de um mero registro “realista” da aparência mais genérica de

produtos e estabelecimentos comerciais, a chamada publicidade testemunhal. As

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imagens, para a publicidade testemunhal, seguiam os padrões dos retratos

praticados desde o século XIX, feitos nos ateliês dos centros urbanos por retratistas

desde os primeiros portraits na pintura a óleo. Os retratos não eram pensados para

uma linguagem publicitaria, eram realizados por retratistas experientes, com grande

qualidade técnica, em estúdios modernos, e seguiam a lógica dos retratos

particulares (PALMA, 2007, p. 5).

Conforme as definições vigentes no Código Brasileiro de Auto-

Regulamentação Publicitária, instituídas pelo Conselho Nacional de Auto-

Regulamentação Publicitária (CONAR) no Capítulo II – Seção 5 – Artigo 27 - §9º e

no Anexo Q: “Testemunhal é o depoimento, endosso ou atestado através do qual

pessoa ou entidade diferente do Anunciante exprime opinião, ou reflete observação

e experiência própria a respeito de um produto”. De acordo com esta definição, o

testemunhal pode ser classificado como:

1. Testemunhal de especialista/perito: é o prestado por depoente

que domina conhecimento específico ou possui formação profissional

ou experiência superior ao da média das pessoas. 2. Testemunhal

de pessoa famosa: é o prestado por pessoa cuja imagem, voz ou

qualquer outra peculiaridade a torne facilmente reconhecida pelo

público. 3. Testemunhal de pessoa comum ou Consumidor: é o

prestado por quem não possua conhecimentos especiais ou técnicos

a respeito do produto anunciado.

Conforme as regulamentações do CONAR: “o anúncio deve conter uma

apresentação verdadeira do produto oferecido” e reforça a necessidade do anúncio

testemunhal que deve conter “depoimentos personalizados e genuínos, ligados à

experiência passada ou presente de quem presta o depoimento, ou daquele a quem

o depoente personificar”. Além disso, o testemunho deve ser comprovável e não

deve induzir o consumidor ao erro. Caso o anúncio use modelos sem personificação

(onde o depoente não represente uma testemunha real), este deve ser considerado

como licença publicitária e não propaganda testemunhal. De qualquer maneira,

ambos os casos não devem promover confusões no consumidor, inclusive evitando

usar a mesma testemunha em anúncios de produtos similares (CONAR, 1980).

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No início século XX, começam a chegar ao mercado equipamentos e

materiais voltados à prática amadora da fotografia. A Eastman Kodak Companym foi

pioneira com suas câmeras portáteis que trabalhavam com filme em rolo e

prometiam em sua campanha de divulgação rapidez e facilidade de operação,

fotografar era um simples apertar de botão. Assim, desenvolveu-se a chamada

fotografia instantânea, as imagens eram obtidas através de câmeras de fácil

manuseio e com a preocupação central de registrar o momento efêmero,

principalmente da vida familiar, desobrigada de cumprir as questões de composição,

arranjo e nitidez. A imprensa passou a explorar também os anúncios publicitários.

Um anúncio pode apresentar várias estratégias de persuasão, dentre as quais se

enquadra o testemunhal. Entende-se testemunhal a propaganda que usa uma

pessoa para testemunhar em favor de um produto e mostra sua eficiência. “Ao

público interessa muito mais a satisfação que pode obter com o produto do que o

próprio produto” (SANT'ANNA, ROCHA JÚNIOR e DABUL GARCIA, 2009), sendo

possível que os retratos fossem realizados por qualquer ajudante da redação dos

jornais e revistas e não mais por um fotógrafo profissional.

Dessa maneira, “o que podemos observar nesse primeiro período de

assimilação da fotografia pela publicidade é a inserção do retrato, objeto de uso

particular, num contexto de circulação de massa” (PALMA, 2007, p. 5).

Com a difusão das fotografias acentuou-se a importância da aparência física,

apurando-se o apreço e também o desgosto pela própria silhueta. “A imprensa

divulgava artigos sobre “a belleza”, contribuindo para que as pessoas pensassem a

respeito de seus dotes físicos e aprendessem a valorizá-los” (SANT’ANNA, 2014,

p.19-20).

O fim da Primeira Guerra Mundial contribuiu para aumentar o poder político,

econômico e, principalmente, cultural dos Estados Unidos, país em que os meios de

comunicação alcançaram maior desenvolvimento (MARTIN-BARBERO, 2003).

Nesse período de grande avanço econômico, combinado com o progresso

tecnológico, aumentou-se a produção massiva de utensílios e fortaleceu-se o

“consumo de massa” devido ao barateamento do custo (MARTIN-BARBERO, 2003,

p. 198). No entanto, em função dos hábitos de uma população recentemente

urbanizada e para a qual a tendência era poupar, ainda seria necessário educar as

pessoas para uma cultura de consumo.

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Considerando que a lógica do consumo vai além da troca monetária por uma

mercadoria, pois engloba uma relação de signos de valor intangível de necessidades

e desejos, que são motivados por todos os instrumentos moduladores que se

ocupam do controle dos indivíduos, concordamos com Martin Barbero, que é

também uma forma de cultura, tomando esse termo em seu sentido mais amplo,

como “algo que escapa a toda compartimentalização, irrigando a vida social por

inteiro” (MARTIN-BARBERO, 2003, p. 14).

A expressão "sociedade de consumo" aparece pela primeira vez nos anos

1920, mas só se populariza nos anos 1950-60, e seu êxito permanece absoluto em

nossos dias (LIPOVETSKY, 2007, p.23). A economia de consumo se tornou

inseparável do marketing: a busca do lucro pelo volume e pela prática dos preços

baixos criou uma infinidade de marcas célebres democratizando o acesso aos bens

materiais, colocando os produtos ao alcance das massas. (LIPOVETSKY, 2007, p.

28). Esse processo de transformação do povo em consumidores ganha força

principalmente a partir do desenvolvimento dos meios de comunicação de massa

(MARTIN-BARBERO, 2003, p. 13), que passaram a ser vistos como “instrumentos

indispensáveis para a gestão governamental das opiniões”; e a propaganda,

entendida como mero instrumento, constituiu-se em meio de suscitar a adesão das

massas, pois é democrática e mais econômica que a violência, a corrupção e outros

controles do governo. A audiência é visada como um alvo disforme apto a obedecer

cegamente ao esquema estímulo-resposta. “Supõe-se que a mídia aja segundo o

modelo da agulha hipodérmica [...] para designar o efeito ou impacto direto e

indiferenciado sobre indivíduos atomizados”. (MATTELART; MATTELART, 2001, p.

37). O que mais tarde, Deleuze, ao analisar os instrumentos de controle e poder,

prognosticou:

As conquistas de mercado se fazem por tomada de controle e não mais por formação de disciplina [...]. A corrupção ganha aí uma nova potência. O serviço de vendas tornou-se o centro ou a “alma”, o que é efetivamente a notícia mais terrificante do mundo. O marketing é agora o instrumento de controle social, e forma a raça impudente de nossos senhores. (DELEUZE, 1991, p. 228)

Dessa maneira, as invenções tecnológicas comunicacionais acharam sua

forma como mediadores, ou como assegura Martin Barbero, ocorreu “a mutação da

materialidade técnica em potencialidade socialmente comunicativa”, sendo assim, foi

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nesse contexto que a imagem do indivíduo se consolidou como a de consumidor

(MARTIN-BARBERO, 2003, p. 198).

1.3 - Sociedade do desejo

O “consumo-sedução/consumo-distração”, do qual somos herdeiros e fiéis,

discorre Lipovetsky, nasceu através dos grandes magazines. Baseados em políticas

de venda agressivas e sedutoras, esses locais de venda constituíram a primeira

revolução comercial moderna, inaugurando a era da distribuição de massa. Por

intermédio de suas publicidades, alavancaram um processo de “democratização do

desejo”, estimulando a necessidade de consumir, excitando o gosto pelas novidades

e pela moda por meio de estratégias de sedução e técnicas de marketing. Além de

se ocuparam em preparar todo um cenário propício à sedução e ao desejo de

comprar, serviram ao mesmo tempo para desculpabilizar o ato da compra

(LIPOVETSKY, 2007, p. 30-31).

Contudo, foi por volta de 1950 que o mundo ocidental viu florescer uma nova

fase da sociedade de consumo de massa ou sua real edificação. Ela se constrói ao

longo das três décadas do pós-guerra. Nessa segunda fase, o consumo se espalha

pelas diferentes camadas da sociedade, produtos tidos como emblemáticos

(automóvel, televisão, aparelhos eletrodomésticos, entre outros) “entram nas

possibilidades financeiras de cada vez mais pessoas, permitindo que muitos

pudessem se libertar da urgência da necessidade estrita”. (LIPOVETSKY, 2007, p.

32-33). O consumo consolidou-se como “ingrediente-chave do estilo de vida e da

cultura de massa norte-americanos” (MARTIN-BARBERO, 2003, p. 205). A

publicidade deixou de informar somente sobre os benefícios dos produtos,

transformando, definitivamente, a comunicação em persuasão (MARTIN-BARBERO,

2003, p. 205).

Esse ciclo se caracteriza pela combinação da lógica de produção fordista e a

“lógica-moda” que ganha terreno através da possibilidade de resolver os problemas

da alta produtividade. Ao mesmo tempo em que muitos produtos são ofertados pelo

mercado, outros muitos saem de uso, há uma redução do “tempo de vida” das

mercadorias. Ao longo dessa fase edifica-se o projeto de uma nova sociedade

ocidental, na qual o crescimento, a melhoria das condições de vida, os objetos-guias

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do consumo têm a obrigação de tornar o cotidiano mais fácil e confortável, sinônimo

de felicidade. Todo ambiente gera uma estimulação dos desejos, e a excitação

publicitária é fomentada por imagens luxuosas de férias, elevando-se a sexualização

dos signos e dos corpos.

Eis um tipo de sociedade que substitui a coerção pela sedução, o dever pelo

hedonismo, a poupança pelo dispêndio, a solenidade pelo humor, o recalque pela

liberação. Ocorre uma oscilação do tempo, fazendo passar da orientação futurista

para a 'vida no presente' e suas satisfações imediatas: delivery de comida, a

abundância de entretenimento, vídeo games, TV, bebida, tudo o que quisermos a

hora que quisermos. Essa fase se mostra como "sociedade do desejo", banhada

pelo imaginário de felicidade em forma de consumo (LIPOVETSKY, 2007, p. 34-35).

Figura 4: “Shering de Urotropina” o maior desinfectante das vias urinarias

Fonte: <https://goo.gl/LoU9My>. Acesso em: 31 mar. 2017

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Figura 5: Super Depurativo Luetyl para “reumatismo”

Fonte: <https://goo.gl/sqCd2h>. Acesso em: 31 mar. 2017

Porém, as mudanças em prol da felicidade e bem-estar foram lentas e

descontínuas, e até a década de 1920, a maior parte dos anúncios de remédios

costumava ter a forma de desenhos em preto e branco, acompanhados por

discursos imperativos e dramáticos (FILHO, 2010, p. 182). Era comum e útil à

propaganda a figura da caveira e outras alusões à morte. Faziam parte do cotidiano

impresso desenhos de feridas horripilantes, semblantes transtornados por dores e

padecimentos insuportáveis. “Preferiam listar os males do que a apresentação de

seus supostos resultados positivos, exibir a sensação de alívio ou uma simples

alegria” (FILHO, 2010, p. 183).

Diferentemente da tendência da publicidade atual, naqueles anos, as imagens

sobre morte e doença é que chamavam atenção. A concorrência entre os

fabricantes de remédios fez com que surgisse a necessidade de se recorrer a

testemunhas ilustres e exibir o nome do médico. Numerosos remédios para saúde e

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beleza possuíam uma vocação universal e serviam tanto para a higiene da pele

quanto para a do cabelo. “Quanto mais os anúncios revelassem os males a serem

tratados, mais eficientes pareciam os remédios divulgados” (SANTA’NNA, 2014, p.

36).

Foi a partir da década de 1930 que os anúncios ganharam um otimismo,

substituindo os semblantes tristonhos por rostos sorridentes, reforçando as

vantagens dos produtos. Com o avanço da medicina, o sofrimento dos doentes

durante as cirurgias foi modificado com a invenção da anestesia no século

XIX, sendo assim, a dor dos pacientes deixou de ser um obstáculo no espaço

cirúrgico. Logo, a presença das figuras que retratavam a dor e o sofrimento nas

propagandas se transformou em “algo que vende mal”. A direção do olhar do leitor

saiu do passado e inclinou-se definitivamente para o futuro (SANTA’NNA, 2014,

p.82-83). Foi nessa época que a alegria e o bem-estar iniciaram uma carreira de

sucesso na propaganda. Os anunciantes passaram a trabalhar diretamente com os

desejos humanos e a psicologia do consumidor. Ao divulgarem o valor da satisfação

de viver, criavam uma aura de felicidade em tono do consumo bem maior do que no

passado (SANT’ANNA, 2014, p. 87). Vários anúncios foram bastante didáticos nesse

aspecto, na medida em que apareciam divididos em duas partes: ‘antes’ e ‘depois’

da ingestão do produto anunciado. “‘Antes’ havia apenas tristeza, e ‘depois’ a alegria

reinava” (FILHO, 2010, p.187)

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Figura 6: “Antes: fraco e desanimado, um imprestável. Hoje: cheio de saúde e vigor graças ao Biotônico Fontoura” (1931)

Fonte: <https://goo.gl/jF9NT7>. Acesso em: 07 jun. 2017

Pelo enfoque dos aparelhos de comunicação, Marcondes Filho alude que o

jornalismo pode ser dividido em quatro fases: a primeira ocorreu a partir da

Revolução Francesa até meados do século XIX, denominando-se aquele tempo de

época da “iluminação”. Nesse tempo, os jornalistas colaboram com a atividade de

fazer circular os saberes que antes eram fechados e restritos à igreja e à

universidade. Após essa época, ocorre o desenvolvimento nos processos de

produção de jornal, acarretando o nascimento de uma imprensa de massa,

configurando a segunda fase. O terceiro jornalismo é o dos monopólios, efetivado a

partir da metade do século XIX, com a criação da indústria da publicidade e das

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relações públicas, como outras formas de comunicação, paralelas ao jornalismo.

Esse ciclo prepara os indivíduos para uma nova fase, que será descrita mais

detalhadamente abaixo (FILHO, 2010, p.11).

Os enunciadores das máquinas comunicacionais, teóricos e atores do

marketing se engajam nos processos que permitem fazer com que os consumidores

vivam experiências afetivas, imaginárias e sensoriais. A publicidade passou de uma

comunicação construída em torno de um produto e de sua funcionalidade para

campanhas ligadas à emoção, de sentido não literal, de todo modo, significantes e

que ultrapassam a realidade objetiva, assim, instaura-se uma visão que enfatiza o

espetacular (FILHO, 2010, p. 46). Nessa fase, o imperativo de imagem se desloca

do campo social para a oferta de marketing:

Nome, logotipo, design, slogan, patrocínio, loja, tudo deve ser mobilizado, redefinido, receber novo visual a fim de rejuvenescer o perfil de imagem, dar uma alma ou um estilo à marca. Não se vende mais um produto, mas uma visão, um "conceito", um estilo de vida associado à marca: daí em diante, a construção da identidade de marca encontra-se no centro do trabalho da comunicação das empresas. Não são mais tanto a imagem social e sua visibilidade que importam, é o imaginário da marca; quanto menos há valor de status no consumo, mais cresce o poder de orientação, paixão pelas marcas e consumo democrático do valor imaterial das marcas. (FILHO, 2010, p. 47)

Desse modo, podemos ver tal contexto retratado na antologia televisiva Mad

Man. A série mostra partes da cultura e da sociedade americana nos anos 1960,

cuja fidelidade de reconstituição de fatos históricos ganhou quase um valor

documental. Mad Man passa-se na década de 1960, inicialmente na agência de

publicidade fictícia Sterling Cooper, localizada na Madison Avenue, em Nova York. O

foco da série é o personagem Don Draper, diretor de criação da Sterling Cooper,

bem como as pessoas que fazem parte de seu círculo social. A trama tem como foco

a parte profissional das agências de publicidade e as vidas pessoais das

personagens que trabalham nelas, à luz das mudanças sociais ocorridas nos

Estados Unidos da época.

No primeiro episódio da primeira temporada, representantes da empresa

tabagista Lucky Strike vão a Sterling Cooper procurando por uma nova campanha de

publicidade às vésperas de um artigo da Reader's Digest dizendo que Ministério da

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saúde alega que o consumo de cigarro é prejudicial à saúde, podendo causar vários

problemas de saúde, incluindo câncer de pulmão.

Diante o desafio, o diretor da agência publicitária compreende que o caminho

não é pensar sobre o motivo pelo qual as pessoas fumam, mas sim pensar sobre o

porquê as pessoas fumariam Lucky Strike. Desse modo, conclui-se que a

propaganda tem a ver com a felicidade. Felicidade de se ter um carro novo, de se

sentir bem fumando um cigarro Luck Strike, de deter algo que outros não têm

condições de comprar. Desse modo, o diretor convence o cliente vendendo-lhe o

sonho americano, um negócio rentável que poderia lhe dar a satisfação que todos

procuram na vida. Como podemos verificar nas cenas selecionadas a seguir:

Figura 7: Cena primeiro episódio Mad Man - “Smoke Gets In Your Eyes”, fala 1

Fonte: <www.netflix.com.br>.

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Figura 8: Cena primeiro episódio Mad Man - “Smoke Gets In Your Eyes”, fala 2

Fonte: <www.netflix.com.br>.

Sendo assim, esse novo período, Debord chamou de a “sociedade do

espetáculo”. Em sua concepção, o espetáculo é uma “relação social entre pessoas,

mediada por imagens” (DEBORD, 1997, p.14), isto é, a teatralidade e a

representação tomaram completamente a sociedade e as relações sociais não são

autênticas, mas de aparência. O que foi descrito pelo cineasta e ativista francês, em

1967, vislumbrava a configuração do que vive atualmente as sociedades conectadas

pelos mercados globais.

As redes sociais da internet com seus dispositivos comunicacionais -

Facebook, Twitter, Instagram, Youtube e Snapchat - estimulam cada vez mais a

construção de si sob os olhares alheios, com novas atualizações que permitem

postagens online e ao vivo, para contar uma “história real” e diária do seu “eu”.

Essas novas práticas geram mudanças na sociabilidade e nas formas de

subjetividades, assim, cabe indagar: qual é o papel da autenticidade nesse quadro?

Embora essa seja uma característica questionável e que também pareça

contraditória às ações espetaculares.

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O pensamento do autor se concentra na crítica radical ao fetichismo da

mercadoria, na presença da imagem na sociedade e como ela se apresenta no seu

modo de produção. Do seu ponto de vista, as imagens podem induzir à passividade

e à aceitação do capitalismo. Na tese 6, Debord expõe essa crítica e deixa claro que

o espetáculo é um meio de dominação:

Considerado em sua totalidade, o espetáculo é ao mesmo tempo o resultado e o projeto do modo de produção existente. Não é um suplemento do mundo real, uma decoração que lhe é acrescentada. É o âmago do irrealismo da sociedade real. Sob todas as suas formas particulares – informação ou propaganda, publicidade ou consumo direto de divertimentos -, o espetáculo constitui o modelo atual da vida dominante na sociedade. É a afirmação onipresente da escolha feita na produção, e o consumo que decorre dessa escolha (DEBORD, 1997, p.15).

Os emissores dos instrumentos de comunicação estipulam uma

especialização estética da mercadoria, visto que todos os enunciadores, do jornal ao

rádio e à televisão, convocam o receptor a ter experiências multissensoriais e uma

vida desejável. Segundo José Luiz Prado, os emissores midiáticos, do marketing da

publicidade, para que funcionem de modo performativo, ocupam o papel de

“sujeitos-supostos-sabedores”; convocam o receptor a construir uma vida desejável

e ter uma experiência voltada ao gozo. Respaldadas por especialistas, criam mapas

e receitas moduladoras para as ações, semelhantes aos livros de autoajuda.

“Modalizar significa motivar o destinatário da comunicação a ser alguém ou a fazer

algo a partir de um querer, fornecendo a ele um saber e indicando o dever fazer”

(PRADO, 2013, p. 30). Como disse Lipovetsky:

Enquanto se acelera "a obsolescência dirigida" dos produtos, a publicidade e as mídias exaltam os gozos instantâneos, exibindo um pouco por toda parte os sonhos do Eros, do conforto e dos lazeres. Sob um dilúvio de signos leves, frívolos, hedonistas, a fase II se empenhou em deslegitimar as normas vitorianas, os ideais sacrificiais, os imperativos rigoristas em benefício dos gozos privados. Ela pode ser considerada como o primeiro momento do desvanecimento da antiga modernidade disciplinar e autoritária, dominada pelas confrontações e ideologias de classe. (LIPOVETSKY, 2007, p. 36)

O sistema “media-marketing-publicidade” constrói seus textos

audioverbovisuais a partir de uma racionalidade “semiótica-estratégica”, bombeando

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as formas semânticas e pragmáticas da cultura. Construindo regimes discursivos de

visibilidade, fortemente sensorializados, trazendo receitas de vida boa. Sucesso, na

sociedade de controle, não é apenas aquisição de muito dinheiro, mas conquista de

espaço simbólico, de visibilidade e prestígio (PRADO, 2013, p. 30). Conforme

Eagleton:

Cultura e capitalismo dificilmente fazem uma dupla tão familiar quanto Corneille e Racine ou o Gordo e o Magro. Na verdade, cultura tinha tradicionalmente significado quase que o oposto de capitalismo. O conceito de cultura cresceu como uma crítica à sociedade de classe média, não como um aliado seu. Cultura tinha a ver com valores, em vez de preços: com o moral, ao invés de material; com o elevado, em vez do filisteu. Tais poderes formavam uma totalidade harmônica: não eram apenas um amontoado de ferramentas especializadas, e “cultura” significava essa esplêndida síntese. Era o abrigo precário onde podiam se refugiar os valores e as energias para os quais o capitalismo não tinha nenhum uso. Era o lugar onde o erótico e o simbólico, o ético e o mitológico, o sensorial e o emocional podiam fazer sua morada dentro de uma ordem social que dispunha de cada vez menos tempo para qualquer um deles (EAGLETON, 2003, p. 24-25, tradução nossa).

As discussões de Santaella sobre os meios de comunicação, o mercado e a

cultura, do ponto de vista produtivo, são complementares ao pensamento de Prado e

Egland. A autora saliente que até o século XIX ficava claro a diferença dos códigos,

das formas e dos gêneros que estruturavam a cultura, porém, a partir da revolução

industrial, com o aparecimento dos meios de reprodução técnico-industriais–jornal,

fotografia e cinema, seguida dos meios eletrônicos – rádio e especialmente a

televisão, que é capaz de captar qualquer forma e gênero de cultura e romper

qualquer limite geográfico e histórico, “unindo milhares de telespectadores sob um

único olhar, somado à crise dos sistemas artísticos – a dança, a pintura, a música e

o teatro - na arte moderna, foram se dissolvendo os limites que definiam o que era

arte” (SANTAELLA, 2004, p. 56).

Isso, em razão de que a dinâmica midiática é inseparável do mercado e que

esses meios de produção se submetem apenas à captura de leitores e ao índice de

audiência, ou seja, daquilo que o consumo dita e exige. Como consequência,

também foi dissolvida a polaridade entre a cultura erudita das elites e a cultura

popular produzida pelas classes menos favorecidas, que provocaram recomposições

nos papéis, cenários sociais e maneiras de produção das culturas tradicionais, por

meio da diluição de distinções geográficas e históricas e da adaptação dos

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conteúdos aos padrões médios de compreensão e absorção. (SANTAELLA, 2004, p.

56)

Isso mudou principalmente a partir dos anos 1960-70, e a cultura passa agora

para o lado da dissidência. “A ideia de revolução cultural migrou do chamado

Terceiro Mundo para o próspero Ocidente, em uma estonteante mélange de Faron,

Marcuse, Reich, Beauvoir, Gramsci e Godard” (EAGLETON, 2003, p. 24-25.

Tradução nossa).

As resistências culturais entregam-se às banalidades da vida material

mercantil dos desejos, e a sociedade se volta para um imaginário de felicidade

depositado no ato do consumo. Esse ciclo “provocou uma oscilação do tempo,

fazendo passar da orientação futurista para a 'vida no presente' e suas satisfações

imediatas” (LIPOVETSKY, 2007, p. 36). Desse modo, “espalha-se toda uma cultura

que convida a apreciar os prazeres do instante, a gozar a felicidade aqui e agora, a

viver para si mesmo” (LIPOVETSKY, 2007, p. 102). Portanto, esse ciclo prepara os

indivíduos para uma nova fase que entra em vigor em fins dos anos 1970. Nesse

contexto, segundo Marcondes Filho, é que se configura a quarta fase do jornalismo

que, com a tecnologia da cibercultura e da época pós-moderna, “se amplia para

além do noticiar, transformando-se em dos tipos de convocação, em pacotes

identitários, de autoajuda, baseados em novos programas criados pela psicologia

positiva e pela administração neoliberal das consciências” (FILHO, 2010, p.30).

1.4 - Sociedade do hiperconsumo

O acesso aos bens de mercado banalizou-se, as regulações de classe se

desagregaram, novos comportamentos surgiram. O processo de redução das

despesas tomou tal amplitude que podemos afirmar a “emergência de uma nova

fase histórica do consumo”. Os consumidores desprenderam-se dos habitus de

classe e, por isso mesmo, tornaram-se imprevisíveis. “O consumo ordena-se cada

dia um pouco mais em função de fins, de gostos e de critérios individuais”.

(LIPOVETSKY, 2007, p. 41). Eis chegada a época do hiperconsumo, a chamada

fase III, segundo Lipovetsky, que traz consigo o consumo experiencial, alterando os

gêneros de vida e os costumes, sobre a lógica de diferenciação social.

(LIPOVETSKY, 2007). “O consumo 'para si' suplantou o consumo 'para o outro'”, ou

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seja, cresce a demanda de objetos “para viver” mais do que para exibir

(LIPOVETSKY, 2007, p. 42). A obtenção unicamente de bens materiais deixa de ser

satisfatória para que se busquem motivos sensoriais e estéticos de satisfação,

centrados em uma lógica de maior bem-estar subjetivo, emocional e corporal.

De outro ponto de vista, corroboramos a proposição de José Luiz Prado de

chamar esse novo período de a “era das convocações”, posto que observamos que

esse curioso poder que “faz viver”, fez despertar padrões de comportamento e

“modos de ser” vistos principalmente nos meios de comunicação digital que

seduzem e mobilizam toda e qualquer ação pública ou privada dos indivíduos

interconectados, desde a mais triviais às mais extravagantes. Tais comportamentos

estão associados a novos valores do biopoder contemporâneo. Esse

comportamento em rede será detalhado no segundo capítulo desta dissertação.

Surge um novo imaginário associado ao poder sobre si, enquanto o ato de

consumir tende a libertar-se dos enfrentamentos simbólicos, eleva-se o desejo de

controle individual das condições de vida. Os gozos ligados à aquisição das coisas

se relacionam a um "mais-poder" sobre a organização da própria vida, a um domínio

maior sobre o tempo, o espaço e o corpo, a fim de aumentar as capacidades de

estabelecer relações, alongar a duração da vida e corrigir as imperfeições do corpo.

Uma "vontade de poder" individualista e seu gozo de exercer uma dominação sobre

o mundo e sobre si alojam-se na fase de hiperconsumo. (LIPOVETSKY, 2007, p. 51-

52).

A sociedade de controle do capitalismo globalizado fornece programas

midiáticos, regados pelo imaginário da publicidade e do marketing, como aponta

Prado (2013), para guiar os indivíduos aos objetos de gozo. Sucesso não é apenas

o ganho de muito dinheiro, é a conquista de espaço simbólico, de visibilidade,

prestígio e poder relacionados ao saberes do cultivo do corpo e da mente (PRADO,

2013, p. 31).

Além disso, não há nada mais sedutor nos novos objetos de consumo-

comunicação, como os aparelhos individuais móveis (notbooks, tablets e celulares)

do que sua capacidade de abrir novos espaços de independência pessoal, de

diminuir o espaço-tempo. Na fase III, o consumo funciona como alavanca de

"potência máxima” das condutas individuais e de apropriação pessoal do cotidiano.

O indivíduo se vê livre em relação às obrigações de grupo e aos múltiplos

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constrangimentos naturais, podendo exercer uma soberania individual

(LIPOVETSKY, 2007, p. 52).

E, notoriamente, nada concretiza melhor o declínio do comportamento do

consumo pelo prestígio do que o crescimento das demandas e dos comportamentos

relacionados à saúde. Não se consomem mais apenas medicamentos, todo

consumo está vinculado às transmissões, artigos de imprensa para o grande

público, páginas da Web, obras de divulgação, guias e enciclopédias médicas. “A

sociedade de hiperconsumo é aquela na qual as despesas de saúde se

desenvolvem por todos os meios, progredindo mais que o conjunto do consumo”

(LIPOVETSKY, 2007, p. 53).

Com as novas funções subjetivas do consumo exaltam-se a busca das

felicidades privadas, a otimização de nossos recursos corporais, relacionadas à

saúde ilimitada; a conquista de espaços-tempos personalizados é que servem de

base à dinâmica consumista, “eleva-se a obsessão com a saúde [...], o corpo é

considerado como uma matéria a ser corrigida ou transformada soberanamente,

como um objeto entregue à livre disposição do sujeito” (LIPOVETSKY, 2007, p. 55-

56).

O neoconsumidor já não procura tanto a visibilidade social quanto o controle e

o cuidado sobre seu próprio corpo; multiplica-se a busca por tecnologias médicas na

luta contra o destino da natureza e na corrida contra os sinais da idade, banalizam-

se as cirurgias plásticas estéticas e fomentam-se as práticas de manutenção da boa

forma, tornando o consumo um antidestino. As novas preocupações relativas à

saúde, ao corpo e à aparência são as aspirações do hiperconsumidor. Dos modelos

arquétipos, nada se enquadra melhor que a emblemática figura mitológica de

Narciso para descrever a cultura da cena contemporânea.

Houve também uma libertação “espaço-temporal” (LIPOVETSKY, 2007, p.

107), decorrente principalmente com os serviços de compra da internet. Tendo em

vista essas transformações dos indivíduos em relação à aquisição de bens, fez-se

necessário um novo tipo de publicidade (com estratégias de segmentação, ou

melhor, hipersegmentação), ou seja, atualmente toda a construção do marketing não

se liga mais à funcionalidade dos produtos, mas preocupa-se em criar uma alma, um

“estilo de vida” associado àqueles nomes, muitas vezes falando de tudo, menos do

produto que está sendo vendido. O Marketing passa a estabelecer cada vez mais

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uma relação emocional com o consumidor, já que o que se busca hoje são emoções

intangíveis, mas que produzam reações sensoriais. “O que se pretende [...] é a

permanente desconstrução e reconstrução de um “mundo real” que não consegue

ter uma forma permanente, à maneira de seus habitantes “proteus”” (FONTENELLE,

2004, p. 196 apud PRADO, 2010, p. 39).

Segundo as discussões debordianas, é através do espetáculo que se dá a

construção das necessidades de consumo na sociedade. A necessidade de

consumo é criada pela publicidade, na concepção de Debord, o público é passivo e

acrítico – é assim que se dá a alienação. A Tese 21 demonstra a concepção do

autor sobre o poder de alienação do espetáculo: “À medida que a necessidade se

encontra socialmente sonhada, o sonho se torna necessário. O espetáculo é o

sonho mau da sociedade moderna aprisionada, que só expressa afinal o seu desejo

de dormir. O espetáculo é o guarda desse sono” (DEBORD, 1997, p. 19). E ele

reforça a perspectivas de seu pensamento de que o espetáculo tem completas

vinculações com o capitalismo, ressaltando na Tese 34, que “o espetáculo é o

capital em tal grau de acumulação a ponto de se tornar imagem” (DEBORD, 1997, p.

25).

Em outro momento, Debord (1997) destaca o fetichismo da mercadoria e sua

alienação como dominação sobre a vida social. Para o autor, o mundo que o

espetáculo mostra aos homens é o mundo da mercadoria que domina tudo o que é

vivido. Assim, salienta na Tese 36:

O princípio do fetichismo da mercadoria, a dominação da sociedade por “coisas supra-sensíveis embora sensíveis”, se realiza completamente no espetáculo, no qual o mundo sensível é substituído por uma seleção de imagens que existe acima dele, e que ao mesmo tempo se faz reconhecer como o sensível por excelência. (DEBORD,1997, p. 28)

A alienação do espectador é um ponto consistentemente reforçado na obra de

Debord. Sua crítica se baseia no fato de que o espectador é alienado e passivo

frente às investidas do espetáculo e que só lhe resta consumir as imagens e os

produtos que lhe são oferecidos. Como na Tese 30:

A alienação do espectador em favor do objeto contemplado (o que resulta da sua própria atividade inconsciente) se expressa assim: quanto mais ele contempla, menos vive; quanto aceita reconhecer-se nas imagens dominantes da necessidade, menos compreende sua própria existência e seu próprio desejo. Em relação ao homem que

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age, a exterioridade do espetáculo aparece no fato de seus próprios gestos já não serem seus, mas de um outro que os representa por ele. É por isso que o espectador não se sente em casa em lugar algum, pois o espetáculo está em toda parte. (DEBORD, 1997, p. 24)

A biopolítica, nessa fase midiática, orienta os indivíduos a construir sua vida a

partir dessas convocações discursivas e visuais. Há uma convocação, que busca

totalizar uma comunicação que se assemelha a um contrato, buscando capturar a

atenção, motivar a felicidade, a resposta ativa do consumidor, seguindo os valores

de consumo. Ao ser interpelada, a pessoa tem de sentir o chamado no corpo, tem

de responder com o corpo. Por isso, “o enunciador, para se fazer ouvir, trabalha o

texto em sua força de apelo, de interpelação, de narrativa carregada de sentidos

ligados ao mundo cotidiano a partir de sua autoridade de sabedor”. (PADRO, 2010,

p. 58).

Sobre a crítica de Debord e sua preocupação com a alienação que as

imagens espetaculares inserem na sociedade, levantamos uma reflexão: de que

maneira as imagens e os enunciados midiáticos são absorvidos pelo consumidor, e

por que os indivíduos são afetados por essas convocações midiáticas com seus

enunciadores visuais a ponto de influenciar suas ações e suas escolhas?

Spinoza esclarece esse tipo de afeto em que “o homem é afetado pela

imagem de uma coisa passada ou de uma coisa futura do mesmo afeto de alegria

ou de tristeza de que é afetado pela imagem de uma coisa presente” (ÉTICA, III,

proposição 18). Pois demonstra que:

Durante todo o tempo em que o homem é afetado pela imagem de uma coisa, ele a considerará como presente, mesmo que ela não exista, e não a imagina como passada ou como futura a não ser à medida que sua imagem está ligada à imagem de um tempo passado ou de um tempo futuro (Ética, III, proposição 18, demonstração).

[...] o corpo é afetado pela imagem dessa coisa da mesma maneira que se ela estivesse presente. Como, entretanto, ocorre, geralmente, que aqueles que experimentaram muitas coisas, ao considerarem uma coisa como futura ou como passada, ficam indecisos e têm, muitas vezes, dúvidas sobre sua realização [...] (Ética, III, proposição 18, escólio 1).

Olliver Pourriol (2008), em Cinefilô, esclarece que “basta ver uma coisa

‘semelhante a nós’, desejar alguma coisa para desejarmos a mesma coisa. Esse é o

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princípio da vitrine”. Sobre a imitação dos sentimentos, Spinoza quando se refere ao

Desejo, “chama-se emulação a qual não é, assim, nada mais do que o desejo de

alguma coisa, o qual se produz em nós por imaginarmos que outros, semelhantes a

nós, têm esse mesmo desejo” (Ética, III, preposição 27, escólio, o desejo). Portanto,

é assim que nasce o desejo de seguir as convocações midiáticas espetaculares.

Do ponto vista de Debord, devido à presença das imagens que transformam

tudo em espetáculo, as sociedades modernas são caracterizadas pela alienação

generalizada. O público é passivo e acrítico perante o fetichismo da mercadoria em

seu cotidiano. E as pessoas perderam a autenticidade nas suas formas de viver – a

vida tornou-se representação e pura ilusão; as relações sociais passaram a ser

mediadas por imagens. No entanto, por outro viés teórico, temos as colocações de

Jacques Racière, cujo fundamento consiste em mostrar a relação entre estética e

política. Em a Partilha do sensível propõe definir um regime de identificação e

pensamento das artes sobre seus modos de transformação e de articulação entre as

maneiras de fazer, as formas de visibilidade dessas maneiras de fazer e os modos

de pensabilidade de suas relações. Nessa direção, a estética encontra uma

dimensão política à medida que define novos modos de ver e sentir, orientada em

torno das imagens. O autor renuncia à tendência de um determinismo apocalíptico e

levanta uma reflexão sobre o que são as imagens da arte e suas transformações

contemporâneas no terreno estético e critica o que se considera a imagem como

idolatria e faz do espectador alguém passivo.

Em seu texto, O destino das imagens, Ranciére evidencia “que se trata de

uma tautologia do discurso dizer que não há mais realidade, apenas imagens, e que

é o mesmo que dizer que não há imagens, mas apenas a realidade” (RANCIÈRE,

2009, p. 9). Isso nos leva a refletir sobre imagens midiáticas que circulam nos

dispositivos de comunicação social, como Facebook, Instagram, Snapchat entre

outros que disponibilizam recursos para publicar fotos e vídeos em tempo real –

online. O que se pode observar da natureza dessas imagens é uma repetição de

padrão sobre seu conteúdo: imagens sobre a vida cotidiana, atividades sociais, “a

vida sendo postada enquanto vivida”, cada ação banal transformada em

“espetáculo”. Será que ela realmente está sendo vivida? De que forma? Ou só

postada, mediada por imagens? Seria esta uma forma política de resistência? Nessa

perspectiva, é possível estabelecer uma oposição com a teoria debordiana, uma vez

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que, a proposta político-estética de Debord tende a considerar a própria imagem

como alienante a toda ação humana, produzindo uma passividade à medida que se

configura como inversão da vida. Assim, sua crítica não estaria relacionada ao

problema de conteúdo ideológico presente nas imagens, mas na própria imagem

espetacular.

Já Ranciére, não consente com a ideia de que toda imagem seria alienante e

que deveria ser substituída pela “ação”. Tal raciocínio conduz a um paradoxo, a

montagem de imagens do filme A sociedade do espetáculo contrasta com as teses

do narrador em seu livro, pois são colocadas imagens de diferentes temas lado a

lado, mostrando que no fundo todas se equivalem. Dessa forma, pretende-se

mostrar a passividade do espectador como um eterno consumidor sem poder de

ação. Porém, nesse ponto, “se o consumidor não olhasse a imagem ele não seria

culpado de sua passividade?” (RAMOS, 2012, p. 100).

Para compreender essas considerações, Rancière propõe olhar a natureza

intrínseca das imagens e seu caráter de alteridade. “Pois ela não se reduz à sua

visualidade, ela opera em relações entre o todo e as partes, entre o não visível, o

dizível e o não-dizível. Exerce uma potência de significação e afeto no expectador”

(RANCIÈRE, 2009, p. 11-12).

Em A partilha do sensível, são definidos três regimes das artes: o regime

ético, o regime representativo e o regime estético (RANCIÈRE, 2009, p. 27).

Interessa-nos, para o objetivo desse trabalho, entender a passagem do regime

representativo para o regime estético. O regime representativo das artes aparece

com o restabelecimento da mímeses aristotélica contra o ataque platônico. Ele se

desenvolve e se define pela separação do que pode ser representável ou ir-

representável, como maneiras de fazer, ver e julgar. “Estabelecendo uma hierarquia

de gêneros artísticos em analogia a uma visão de hierarquia da comunidade”

(RANCIÈRE, 2009, p. 30-32).

A passagem para o regime estético das artes contrapõe-se ao representativo

principalmente em relação às hierarquias de temas, produzindo uma nova ideia de

revolução política. Se em um momento a pintura cumpriu um papel ideológico

definindo “grandes temas” a serem representados, relacionados e direcionados à

burguesia, pintar pessoas, objetos e situações comuns no século XIX,

horizontalizaram-se esses temas colocando em questão a hierarquia dos próprios

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elementos internos de uma obra. “Assim, qualquer tema passou a ser merecedor de

representação” (RAMOS, 2012, p. 103).

O regime estético das artes desfaz a correlação entre o tema e o modo de

representação, “tratando da ruína do sistema de representação comandado por uma

hierarquia dos gêneros de representação e que traz visibilidade às massas”.

(RANCIÈRE, 2009, p. 47)

O conhecimento histórico e os modos de reprodução mecânica também se

inseriam nessa lógica da revolução estética.

O conhecimento histórico integrou a oposição quando contrapôs à velha história dos príncipes, batalhas e tratados, fundada na crônica das cortes e relatórios diplomáticos, a história dos modos de vida das massas e dos ciclos da vida material, fundada na leitura e interpretação das “testemunhas mudas”. O surgimento das massas na cena da história ou nas “novas” imagens não significa o vínculo entre a era das massas e a era da ciência e da técnica. Mas sim a lógica estética de um modo de visibilidade que, por outro lado, revoga as escalas de grandeza da tradição representativa e, por outro, revoga o modelo oratório da palavra em proveito da leitura dos signos sobre os corpos das coisas, dos homens e das sociedades (RANCIÈRE, 2009, p. 49).

“O banal torna-se belo como rastro do verdadeiro” (RANCIÈRE, 2009, p. 50).

Na cultura midiática entre a gama de produção de montagem de imagens e a

palavra narrativa de testemunho dos dispositivos comunicacionais, devemos duvidar

do que seja verdadeiro, porém, há o que se questionar: o que estaria por trás e até

mesmo qual seria o papel da banalização dessas subjetividades imagéticas?

Por meio dessas “banalidades”, podemos constatar como as múltiplas formas

de convocações, por meio dos dispositivos midiáticos digitais, estimulam

comportamentos, trazem à tona novos agenciamentos e modulam de distintas

formas a produção de desejos, afetos e modos de ser nos indivíduos. Tal cenário

tem sido tema de discutição no campo audiovisual (cinema e televisão), nas artes

cênicas, performance e literatura. Através da antologia televisiva Black Mirror

(NETFLIX, 2016), podemos identificar essa construção de subjetividades em prol do

olhar alheio, e a exposição do banal e cotidiano que Rancière aponta em sua crítica,

explicitamente em uma cena do episódio nº1, da terceira temporada, que retrata a

protagonista desesperada em ser notada nas mídias sociais para aumentar sua

nota, postando uma foto em que estava tomado café com biscoito com a legenda

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“Café camurça com biscoito. Maravilhoso!”. Mas o que vemos na cena, é a

expressão de dissabor da garota em contrariedade com o comentário da foto

publicada em sua rede.

Figura 9: Cena Black Mirror: Episódio “Queda livre” – 1º episódio, 3º temporada

Fonte: <www.netflix.com.br>.

Em um sentido deleuziano, os controles são uma modulação que oferecem

infinitas formas de automelhoria nos indivíduos, nas famílias e nas empresas. Hoje,

a relação entre capital e trabalho mudou, pois, consumimos mais do que bens,

consumimos formas de vida (PERLBART, 2011). A conexão com o “mundo-rede” do

capital-cultural é resultante da superprodução semiótica originária dos discursos

midiáticos que criam cada vez mais valor-signo e como sequela, há décadas, a

cultura deixou de ser refúgio de revolta contra o capitalismo (PRADO, 2013, p. 163)

Nessa lógica, as convocações biopolíticas do sistema midiático chamam os

espectadores para ensiná-los como viver, como ter sucesso, juventude eterna,

inclusive, consumir imagens e programas de realidade de vida, ou seja, como ler

signos. Essas figuras das imagens são, em geral, sem voz, “sem história” (PRADO,

2013, p. 169). Contra esse emprego, Rancière propõe transformar a lógica

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dominante, “que faz do visual o quinhão das multidões e do verbal o privilégio de

alguns” (RANCIÈRE, 2010, p. 143). Em suas palavras:

Não estão em vez das imagens. São imagens, ou seja, são formas de redistribuição dos elementos de representação. São figuras que substituem uma imagem por outra, formas visuais por palavras ou palavras por formas visuais. Estas figuras redistribuem simultaneamente as relações entre o único e o múltiplo, entre o pequeno número e o grande número. É nisto que elas são políticas, supondo que política consiste antes de mais em mudar os lugares e o cálculo dos corpos. (RANCIÈRE, 2010, p. 143)

É imprescindível encarar a política da imagem e da palavra, sem os

dispositivos de visibilidade, as posições, a relação entre a palavra e imagem, entre

arquivo e testemunho. Nesse sentido, Rancière adverte que:

Aquilo a que se chama imagem é um elemento dentro de um dispositivo que cria um certo sentido de realidade, um certo senso comum. Um “senso comum” é antes de mais uma comunidade de dados sensíveis: coisas cuja visibilidade supostamente é partilhada por todos, modos de percepção dessas coisas e significações igualmente partilháveis que lhes são conferidas. É depois a forma de estar em comum que liga entre si indivíduos ou grupos na base dessa comunidade primeira entre as palavras e as coisas. O sistema de informação é um “senso comum” desse gênero: um dispositivo espaço-temporal no seio do qual palavras e formas visíveis estão reunidas em dados comuns, em maneiras comuns de perceber, de ser afetado e de atribuir sentido. O problema não é opor a realidade a suas aparências. É, sim, construir outras realidades, outras formas de senso comum, ou seja, outros dispositivos espaço-temporais, outras comunidades das palavras e das coisas, das formas e das significações (RANCIÈRE, 2010, p. 149-150)

Não é possível alterar a política e estabelecer uma crítica às imagens sem

alterar as percepções, a divisão ou a partilha do sensível, mudar o senso comum

estabelecido que nos torna insensíveis aos modos de ver, de dizer e fazer. “A busca

pela imagem crítica visa transformar o modo pelo qual nos engajamos no mundo do

senso comum e, em especial, no do consumo” (PRADO, 2013, p. 171).

Prado (2013) nos incita a pensar não só sobre as convocações midiáticas,

mas sobre as resistências a elas e o lugar que tais resistências podem e devem

ocupar no espaço-temporal nos contratos de comunicação e seus regimes de

visibilidade dos media, voltados às formas de ser e de fazer o corpo e com o corpo,

sustentando-se em valores simbólicos conectados ao mundo do consumo. E nos faz

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lembrar a imagem dialética de Benjamin que fala Didi-Huberman (1998): em busca

de uma imagem crítica, “o que vemos só vale pelo que nos olha”, porém, o ato de

ver não é “o ato de uma máquina de perceber o real enquanto composto de

evidências tautológicas” (DIDI-HUBERMAN 2010, p. 77). Os enunciadores

predominantes buscam no princípio da objetividade serem detentores da verdade

unívoca evidenciada no mundo, mostrando a evidência visível do que se vê. A

imagem dialética, ao contrário, visa provocar a inquietude e mostrar que não há

evidências a não ser no movimento que cimenta o real com a objetivação dessa

tautologia, através dos regimes de visibilidade.

Dar a ver é sempre inquietar o ver, em seu ato, em seu sujeito. Ver é sempre uma operação de sujeito, portanto, uma operação fendida, inquieta, aberta. Todo olho traz consigo sua névoa, além das informações de que poderia num certo momento julgar-se detentor. Essa cisão, a crença quer ignorá-la, ela que se inventa o mito de um olho perfeito (perfeito na transcendência e no “retardamento” teleológico); a tautologia a ignora também, ela que se inventa um mito equivalente de perfeição (uma perfeição inversa, imanente e imediata em seu fechamento). (DIDI-HUBERMAN 2010, p. 77)

Portanto, o que fazer? Para evitar o pensamento binário, de dilema, “não há

que escolher entre o que vemos”, uma vez que na rede os algoritmos detêm o

controle sobre o que vemos sobre aquilo que eles supõem que desejamos ver, como

consequência exclusiva do discurso que o fixa segundo nossa quantidade de

curtidas e buscas de pesquisas, convertendo-se em uma tautologia, e o que nos

olha, aqueles que nos seguem, que nos examinam através das lentes dos

dispositivos de comunicação social, tendo como crença o mito da perfeição, suposto

pela crença que aquelas imagens representam o todo de uma vida, e não somente

uma faceta. É preciso dialética, diz Huberman (2010), sem se opor nos extremos

desse dilema, de um lado a tautologia, de outro, a crença. Nesse momento dialético,

o que vemos é atingido e transformado pelo que nos olha, evitando um excesso de

sentido, que estaria dado na crença, que impõe a leitura da imagem desde a

transcendência. E de outro lado, evitando a ausência cínica de sentido, glorificada

na tautologia.

Nesse sentido, para nós, pensar a política da imagem que os dispositivos

comunicacionais oferecem, é pensar em uma crítica à superficialidade que o sistema

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de marketing e publicidade apela com a montagem de imagens e discursos em

forma de testemunhos ao consumo de modos de viver. Uma política que enfrente a

multiplicidade de convocações biopolíticas na cultura-rede através de “fenômenos”

midiáticos, as chamadas blogueiras, que tomam como capital as potências da vida e

a promoção dos “eus” das massas, que o regime estético tornou possível. E, além

disso, refletir sobre as imagens como sintomas da cultura.

As imagens da publicidade, sobretudo as imagens de antes e depois do

corpo, fazem parte do processo pelo qual a sociedade do espetáculo cria valores e,

convoca o enunciatário a participar desse discurso, trazendo uma realidade mais

próxima de sua vida e, portanto, um encontro de identificação, ou seja:

[...] as biopolíticas contemporâneas foram absorvidas pelo “espírito empresarial” e pelas doutrinas mercadológicas que o insuflam: um modo de funcionamento que permeia todas as instituições e recobre todos os âmbitos, é apenas uma das sutis amarras que orquestram a sujeição pós-disciplinar. (SIBILIA, 2010, p.7)

Do ponto de vista de Paula Sibilia, as aparências acompanham a

espetacularização do mundo e o deslocamento dos eixos “em torno dos quais os

sujeitos contemporâneos constroem o que são — de “dentro” para “fora”, do âmago

interiorizado para a visibilidade da pele, das telas e dos olhares alheios” (SIBILA,

2010, p. 7).

Cada vez mais, todos nós conhecemos tanto o prazer como a asfixia de

estarmos sempre conectados e disponíveis, sendo levados a nos manter sempre

atualizados quanto a tudo o que ocorre na virtualidade das redes, “respondendo e

alimentando os suaves mandatos da interação permanente com uma infinidade de

contatos, o tempo todo e em todo lugar” (SIBILIA, 2010, p. 7). Conforme disse

Deleuze, todas as formas de confinamento perderam preeminência com o

mecanismo fundamental de poder. Assim, observamos que a conexão se instaura

como o dispositivo de poder mais eficaz do momento. Em cada época da história se

estabeleceu um regime de poder e saber que modulava certos tipos de corpos e

“modos de ser”, “estimulando o desenvolvimento de determinadas disposições

corporais e subjetivas, tanto no plano individual como no coletivo, enquanto inibe

outras características e habilidades” (SIBILIA, 2010, p. 7).

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Portanto, é por tais motivos que procuramos analisar os vínculos das

biopolíticas na sociedade de controle com a comunicação, e com base na questão

que Deleuze levanta sobre as formas de resistência “capazes de combater as

alegrias do marketing”, indagar a que “estamos sendo levados a servir”.

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CAPITULO 2 – A CONSTRUÇÃO DO MODELO ANTROPOLÓGICO DA

SUBJETIVIDADE CONTEMPORÂNEA

2.1 A construção da subjetividade

É evidente que a sociedade ocidental vem passando por um grande conjunto

de mudanças, um processo que atinge todos os âmbitos, desde as estruturas

político, sociocultural e econômico até as áreas que permeiam a vida individual e em

sociedade, potencializadas pelo advento da internet e suas plataformas virtuais

destinadas à interação social. São inúmeros os sintomas dessa transição, como foi

apresentado no primeiro capítulo, a passagem de um certo “regime de poder”

ancorado no capitalismo industrial, que vigorou até a passagem do século XVIII e

meados do XX - e que foi analisada por Michel Foucault sob o domínio de

“sociedade disciplinar” para designar uma das formas de exercício do poder sobre a

vida, centradas nos mecanismos do ser vivo e nos processos biológicos. Foucault

situa a biopolítica em uma estratégia mais ampla, que denomina biopoder, a qual

historicamente ele sucede, com a diferenciação do biopoder e do poder de

soberania na relação de vida e morte: enquanto o poder soberano faz morrer e deixa

viver, o biopoder faz viver e deixa morrer.

A essa transferência de lógica nos regimes disciplinares, Deleuze nominou as

novas forças de “sociedade de controle”, que agem como uma modulação do corpo

e da vida, fazendo do poder-saber agentes de transformação da vida humana. E

explica que o poder sobre a vida (biopoder) deveria responder o poder da vida

(biopotência). Peter Pelbart (2011), em seu livro “Vida Capital: ensaios de

biopolítica”, percorre essas duas vias do exercício de poder sobre vida e nos relata a

proposta de um grupo de teóricos majoritariamente italianos tais como Negri e

Lazaratto que discorrem sobre o contexto do capitalismo contemporâneo. Os

autores propõem uma inversão semântica, conceitual e também política. Com ela, a

biopolítica deixa de ser vista por uma perspectiva do poder e da sua racionalidade

sobre o corpo como objeto passivo, e suas condições de reprodução, sua vida.

Assim, conforme Lazzarato, “a vida deixa de ser reduzida em sua definição biológica

e aos seus processos que afetam a população”. No conceito do autor, a vida inclui a

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sinergia coletiva, a cooperação social e subjetiva no contexto material e imaterial da

contemporaneidade, ou seja, o intelecto em geral – inteligência, afeto, cooperação e

desejo (PELBART, 2011, p.24).

Ao deslocar-se de seu sentido predominantemente biológico, o bios se

redefine constantemente em um núcleo semiótico e maquínico, molecular e coletivo,

afetivo e econômico, aquém da dicotomia corpo/mente, individual/coletivo,

humano/inumano, a vida ao mesmo tempo se pulveriza e se hibridiza, sendo

disseminada em sua totalidade. De modo a ganhar uma amplitude inusitada, em um

sentido espinozano, passa a ser redefinida como poder de afetar e ser afetado. “Eis

a inversão, em parte inspirada em Deleuze, do sentido do termo forjado por

Foucault: biopolítica não mais como poder sobre a vida, mas como a potência da

vida” (PELBART, 2011, p. 25).

Para ir além desse diagnóstico, concordamos com as reflexões de Paula

Sibilia em questionar: como todas essas mutações influenciam na criação dos

modos de ser? De que maneira elas acabam nutrindo a construção de si? Ou

melhor, como as transformações desse contexto afetam os processos pelos quais o

indivíduo se torna o que é? Sem dúvida, tais forças históricas conferem uma

influência na conformação dos corpos e das subjetividades: “todos esses vetores

socioculturais, econômicos e políticos exercem uma pressão sobre os sujeitos dos

diversos tempos e espaços, estimulando a coagulação de certos modos de ser e

inibindo as demais alternativas” (SIBILIA, 2010, p. 26).

Mas afinal, o que são exatamente as subjetividades? Como e por que alguém

se torna o que é, aqui e agora? O que nos constitui como sujeitos singulares, com

uma história única, ao mesmo tempo, inevitavelmente, representantes de nossa

época, que compartilham importantes traços com nossos contemporâneos? Do

ponto de vista de Paula Sibilia, as subjetividades são modos de ser e estar no

mundo, que se afasta de toda essência fixa e estável; que se refere ao ser humano

como uma criatura não-histórica, de relevos metafísicos, cuja figura é flexível e muda

conforme as variadas tradições culturais. Portanto, de acordo com a autora,

“subjetividade não é algo vagamente imaterial que reside ‘dentro’ de cada um. Por

um lado, ela só pode existir se for embodied, encarnada num corpo, mas também

está sempre embedded inserida em uma cultura intersubjetiva” (SIBILIA, 2010, p.

26).

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Maurice Blanchot, em seu ensaio “A escritura do desastre” (L’écriture du

désatre) olha o tema através de um prisma contestando o valor da subjetividade e a

descreve como:

[...] uma designação escolhida como que para salvar nossa parte de espiritualidade. Por que subjetividade, senão para descer ao fundo do sujeito sem perder o privilégio que este encarna, essa presença provada que o corpo, meu corpo sensível, me faz viver como minha? Mas se a pretendia “subjetividade” é o outro no lugar de mim, ela não é subjetiva nem objetiva, o outro é interioridade, o anônimo é seu nome. O fora seu pensamento [...]. (BLANCHOT, 2016, p.47)

Sob esse panorama, Gilles Deleuze abordou a questão da subjetividade a

partir do conceito de Dobra do Fora. Constituída a partir das obras dedicadas ao

próprio Foucault, indica a partir da natureza de sua complexidade semântica que a

dobra é uma envergadura, uma flexão do lado de fora (poder) para a constituição de

“uma relação da força consigo, um poder de se afetar a si mesmo, um afeto de si por

si”, (DELEUZE, 2005, p. 108). Baseado nessa perspectiva, Pelbart (1989, p.135)

explica:

A subjetividade pode então ser definida como uma modalidade de inflexão das forças do Fora, através da qual cria-se um interior. Interior que encerra dentro de si nada mais que o Fora, com suas partículas desaceleradas segundo um ritmo próprio e uma velocidade específica. A subjetividade não será uma interioridade fechada sobre si mesma e contraposta à margem que lhe é exterior, feito uma cápsula hermética flutuando num Fora indeterminado. Ela será uma inflexão do próprio Fora, uma Dobra do Fora. (PELBART, 1989, p.135)

Quer dizer que não existe lado de dentro? Contesta Deleuze (2005, p. 103-

104). Fundamentado na análise crítica de Foucault, concebe que o fora "não é um

limite fixo, mas uma matéria móvel animada de movimentos peristálticos, de dobras

e pregas que constituem um dentro, não outra coisa que o fora, mas exatamente o

dentro do fora". Por exemplo, como diz Pelbart (2000, p.16): “um campo de forças e

velocidades infinitas que fluem de informações, signos, imagens, sons, palavras e

coisas, etc. – e uma inflexão subjetiva, tal como uma dobra de um lençol estendido,

a subjetividade como uma ondulação do campo, [...] como uma dobra das forças do

Fora uma invaginação da qual se cria um interior”.

Para entender em que a Dobra se diferencia do Fora, Deleuze recorre à

análise histórica de Foucault sobre como os gregos operaram a “dobra”. Como

constituíram a “relação consigo” e a “constituição de si”, no nível da alimentação, da

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relação com família, com a política, o poder que se exerce em relação aos outros.

Os gregos vergaram as forças do lado de fora, sem que a deixassem de ser força;

eles as relacionaram consigo mesmo, de modo que inventaram o sujeito pela

“subjetivação” e descobriram a “existência estética” e o cuidado de si.

Fundamentalmente, a ideia de Foucault é a dimensão de uma subjetividade que

deriva do poder e do saber, mas que não depende deles. Tudo isso trata da mesma

questão: da relação da força consigo, do poder de se afetar a si mesmo, do afeto de

si para si - no sentido espinozano (DELEUZE, 2005, p.107-108).

A relação consigo entra nas relações de poder e nas relações de saber, diz

Deleuze (2005, p.110). O meio ambiente da tecnologia ciberespacial, os meios de

informação e comunicação, no campo das redes sociais digitais, passaram a operar

como mediadores entre o poder, o saber, a relação consigo e o social. De modo que

“o indivíduo interior acha-se codificado, recodificado num saber "moral" e, acima de

tudo, torna-se o que está em jogo no poder - é diagramatizado” (DELEUZE, 2005,

p.110).

Deluze, quando usou a expressão “sociedade de controle” para designar o

novo regime e as novas formas de poder, descreveu isso como um regime apoiado

nas tecnologias eletrônicas e digitais, capazes de potencializar o capitalismo, que se

caracteriza pela superprodução e pelo consumo exacerbado. Um sistema regido

pelo marketing e pela publicidade como instrumento de controle social. No caso dos

media, a comunicação coloca em relação a instância de produção e de recepção; a

primeira tem “um duplo papel: de fornecedor de informação, pois deve fazer saber, e

de propulsor do desejo de consumir as informações, pois deve captar seu público”,

não se trata apenas de informar, mas de construir um certo saber sobre o mundo

(CHARAUDEAU, 2006, p. 72). Na medida em que o discurso propagandista

compreende parte da atividade informativa, tendo esse uma posição central,

considera-se que:

O discurso informativo não tem uma relação estreita somente com o imaginário do saber, mas igualmente com o imaginário do poder, quanto mais não seja, pela autoridade que o saber lhe confere. Informar é possuir um saber que o outro ignora ("saber"), ter a aptidão que permite transmitir esse outro ("poder dizer"), ser legitimado nessa atividade de transmissão ("poder de dizer"). Além disso, basta que se saiba que alguém ou uma instância qualquer tenha a posse de um saber para que se crie um dever de saber que nos torna dependentes dessa fonte de informação. Toda instância de

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informação, quer queira, quer não, exerce um poder de fato sobre o outro. Considerando a escala coletiva das mídias, isso nos leva a dizer que as mídias constituem uma instância que detém uma parte do poder social. (CHARAUDEAU, 2006, p. 63),

A biopolítica orienta cada um para construir sua vida a partir de convocações

discursivas que encarnam; o dispositivo busca capturar a atenção, motivar a

fidelidade, a resposta ativa do consumidor, para seguir os valores de consumo.

Como diz José Luiz Prado, há uma convocação, uma palavra de ordem, é preciso

que o discurso encarne. Ao ser abordada a pessoa tem de sentir o chamado no

corpo, tem de responder com o corpo. Para ser fazer ouvir, ou melhor, ler, o

enunciador trabalha o texto em sua força de apelo, constrói uma narrativa repleta de

sentidos ligados ao mundo cotidiano. E para ser seguido, constrói enquadramentos

a partir de sua força de “autoridade de sabedor” (PRADO, 2010, p. 58). Como

podemos observar nos anúncios institucionais a seguir, publicados nas páginas do

Facebook:

Figura 10: Exemplos de anúncios que circulam no facebook

sobre saúde e beleza

Fonte: <www.facebook.com>.

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Figura 11: Exemplos de anúncios que circulam no facebook sobre estilo de vida e emagrecimento

Fonte: <www.facebook.com.br>.

Nas palavras de Deleuze, o poder se instaura na vida cotidiana dos sujeitos e

forma um saber por meio de todas as técnicas das ciências morais e do homem, “a

dobra parece então ser desdobrada, a subjetivação do homem livre se transforma

em sujeição”, por um lado o sujeito se submete ao controle por tornar-se dependente

dos procedimentos de modulação e de individualização instaurados, por outro lado é

"o apego (de cada um) à sua própria identidade mediante a consciência e o

conhecimento de si". Então poderia se concluir que não há formas livres de

individualidade? “Evidentemente que não, pois haverá sempre uma relação consigo

que resiste às normas e aos poderes, a relação consigo é inclusive um dos pontos

de resistência e que está sempre se metamorfoseando”. (DELEUZE, 2005, p. 110-

111).

Sendo assim, “a fórmula mais geral da relação consigo é: o afeto de si para

consigo, ou a força dobrada, vergada. A subjetivação se faz por dobra. Mas há

quatro dobras, quatro pregas de subjetivação” (DELEUZE, 2005, p.111). Quais

seriam as nossas quatro dobras, nos nossos próprios modos atuais e biopolíticos, da

moderna relação consigo? De um modo geral, a primeira dobra refere-se à parte

material de nós mesmos, nosso corpo, que para os gregos, era o corpo e seus

prazeres, já para os cristãos, a carne e seus desejos, conforme Deleuze (2005,

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p.111). Em nossos termos atuais, nosso corpo continua sendo a materialidade da

relação de si e a primeira conexão para com os afetos, mas pode-se dizer que nosso

corpo tem recebido padrões estéticos e obrigado a se modular mediante as novas

formas de se alimentar, dietas e regimes e esculpido nas academias, para compor o

tal corpo desejável, corpo magro e malhado. Da mesma forma, o prazer e o desejo

se remetem aos mesmos padrões desse corpo.

A segunda dobra, explica o autor, “é a da relação de forças, no seu sentido

mais exato; pois é sempre segundo uma regra singular que a relação de forças é

vergada para tornar-se relação consigo” (DELEUZE, 2005, p.111). Para nós,

fundamentados na descrição de Foucault, em que toda relação de força é uma

relação de poder, temos a segunda dobra como estratégia de poder, um conjunto de

regras normalizadoras relacionadas ao modo de ser como sujeito e em sociedade,

veiculadas pelos medias como mapas modalizadores, por exemplo, os discursos de

“aprenda em 4 passos como ter alta performance”; “conheça os truques/segredos

das pessoas de sucesso”, que quando entram num plano de composição, são

difundidos, compartilhados instantaneamente nas redes virtuais sociais.

A terceira dobra é a do saber, diz Deleuze (2005, p.111) é “a dobra da

verdade, por constituir uma ligação do que é verdadeiro com o nosso ser [...], que

servirá de condição formal para todo saber, para todo conhecimento”. Assim, como

já comentamos anteriormente, trata-se dos enunciadores informativos, assinados

por especialistas e autoridades do conhecimento, do bombardeio de informações

dos que fazem saber por meio dos dispositivos midiáticos, há também a busca ativa,

em que nunca foi tão fácil o acesso, em um clique se pode “jogar” no Google e ter

em mãos o saber sobre qualquer que seja a dúvida.

A quarta dobra “é a do próprio lado de fora, a última: é ela que constitui o que

Blanchot chamava de uma ‘interioridade de espera’, é dela que o sujeito espera, [...]

a imortalidade, ou a eternidade, a salvação, a liberdade, a morte, o desprendimento”

(DELEUZE, 2005, p.111) que, em nosso contexto, podemos considerar como a

expectativa de como gerir as próprias agonias, à espera do desenvolvimento das

tecnologias e ciência capazes de estender a vida, imortalizar a juventude, e todo

arsenal tecno-cultural, de entretenimento e formas de gozo que o capital pode

produzir. Portanto, “as quatro dobras são como a causa final, a causa formal, a

causa eficiente, a causa material da subjetividade” (DELEUZE, 2005, p.112).

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2.2 Subjetividade e Capitalismo

Então, o que é que sobra para a nossa subjetividade? Se for verdade, que o

poder, principalmente proveniente do capitalismo, investe cada vez mais em nossa

vida cotidiana, determinando nossa interioridade, nossa individualidade, nossos to

be ourselves – modos de ser e estar no mundo e se for verdade que cada vez mais

o próprio saber se faz cada vez mais individualizado ao sujeito desejante: “nunca

"sobra" nada para o sujeito, pois, a cada vez, ele está por se fazer, como um foco de

resistência, segundo a orientação das dobras que subjetivam o saber e recurvam o

poder” (DELEUZE, 2005, p.112-113).

Das inúmeras consequências dessa investida maciça por parte do capitalismo

sobre a subjetividade, Pelbart (2000, p.12) aponta duas que são incontestáveis, a

primeira se trata do fato de que “a subjetividade ganhou visibilidade como um

domínio próprio, relevante, capital.” É a luta contra as formas de sujeição, de

submissão da subjetividade que consiste em nos individualizar e ligar cada indivíduo

a uma identidade determinada (DELEUZE, 2005, p.113). Pertinente a isso, Foucault

(apud DREYFUS; RABINOW, 1995, p. 239) concluiu: “o objetivo principal hoje não é

descobrir o que somos, mas recusá-lo”.

A segunda diz respeito ao fato de que se a violência do capitalismo na sua

gana de moldar estritamente a subjetividade se revelou de modo tão escancarado

nos últimos tempos, ao menos isso tem a vantagem de nos desfazer do “mito de

uma subjetividade dada”. Assim, podemos compreendê-la como globalmente

“fabricada, produzida, moldada, modulada e também, a partir daí, automodulável”.

Talvez, como diz o autor, originem-se daí os discursos modernos que se preocupam

mais em reinventar a subjetividade do que em decifrá-la. O que Foucault (apud

DREYFUS; RABINOW, 1995, p. 239) expressou da seguinte maneira: “Temos que

promover novas formas de subjetividade através da recusa desse tipo de

individualidade que nos foi imposta há vários séculos”.

Mais do que criticar a ideia da construção da subjetividade e da noção de

sujeito a que se remete, cabe-nos examinar quais as forças hoje que estão dando

novos sentidos ao termo subjetividade, que tem novos poderes de afetar e ser

afetado, que novos modos de vida essas forças instauram em nossos territórios,

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existências, onde a tecnologia, a internet, as redes de relacionamento virtuais são o

meio ambiente. Nesses moldes, tomemos como evidência o cenário a seguir:

“Seja sua melhor versão”, eis a nova máxima subjetiva contemporânea da

sociedade narcisista, o mantra das selfies e da exibição dos corpos inseridos na

dicotomia cartesiana das fotografias de “antes e depois”. Seria preciso perguntar a

que esse “melhor” se fundamenta? Que valores constituem tal imperativo? Se a

convocação é para você, nós, referente à versão de mim mesmo, podemos admitir

não mais uma modulação segundo a lógica capitalista e cultural de consumo, do

qual o inconsciente foi absorvido pela ascensão da mídia e da indústria de

propaganda, mas à criação de um imaginário subjetivo a partir de uma

“automodulação” caracterizada pela promoção da autonomia do indivíduo, sua

autoestima e a exaltação do “eu”.

No dia 08 de maio de 2017, fizemos uma busca pelo termo “seja sua melhor

versão” e algumas formas derivadas dessa expressão em seu modo imperativo e

“auto-imperativo”, tanto na escrita em língua portuguesa, quanto em sua tradução na

língua inglesa na rede social Instagram, utilizadas as hashtags1 foram encontradas:

#minhamelhorversao (106.649 citações), #sejasuamelhorversao (26.685 citações),

#minhamelhorversão (22.880 citações), #melhorversao (13.691 citações),

#sejasuamelhorversão (9.845 citações), #sejaoseumelhor (5.180 citações),

#sejaseumelhor (2.379 citações), #bestself (822.671 citações), #beyourbest

(333.838 citações), #beyourbestself (124.052 citações), #beyourbestyou (46.753

citações), #beyourbestversion (13.870 citações), #mybestversion (2.416 citações) e

encontramos cerca de 1.530.909 citações públicas.

Observamos, também, que as expressões estão vinculadas

predominantemente a fotos retratando pessoas exercendo algum tipo de atividade

física ou esporte, fotos de pratos contendo alimentos que compõem uma dieta

saudável e a montagem de fotos mostrando como era o corpo antes de iniciar os

exercícios físicos, a nova dieta e o resultado do corpo depois de mudar os hábitos

1 Hashtag é uma expressão bastante comum entre os usuários das redes sociais, na internet. Consiste de uma palavra-chave antecedida pelo símbolo #, conhecido popularmente no Brasil por "jogo da velha" ou "quadrado". As hashtags são utilizadas para categorizar os conteúdos publicados nas redes sociais, ou seja, cria uma interação dinâmica do conteúdo com os outros integrantes da rede social, que estão ou são interessados no respectivo assunto publicado. A hashtag é transformada em um hiperlink, que também pode se indexado por motores de busca na internet, na própria rede social ou em sites de busca como o Google.

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físicos e de alimentação, ou seja, após aderir a um estilo de vida visto como

saudável. Conforme podemos verificar nos exemplos a seguir das hashtags que

tiveram maior incidência (#minhamelhoversao; #bestself):

Figura 12: Resultado da busca pelas hashtags #minhamelhorversão e #bestself realizada no dia 08 de maio de 2017, na rede social Instagram.

Fonte: <www.instagram.com>.

No dia 20 de maio de 2017, fizemos uma nova busca nas hashtags (#) de

maior publicação (#minhamelhoversao; #bestself) e identificamos um crescimento de

2,30% no número de publicações para a tag #minhamelhorversao, o que representa

2.508 novas publicações. Para a tag #bestself, identificamos um aumento de 1,32%

que representa 11.033 novas publicações num espaço de tempo de 12 dias. Como

podemos averiguar a seguir:

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Figura 13: Resultado da busca pelas hashtags #minhamelhorversão e #bestself realizada no dia 20 de maio de 2017, na rede social Instagram

Fonte: <www.instagram.com>.

2.3 - Imperativos da contemporaneidade

Diante desse prisma, cabe-nos investigar quais os valores que traspõem as

alegrias do marketing e do mercado, a cultura e as novas políticas de vida que

levam essa crescente massa de sujeitos contemporâneos a renderem o culto ao

corpo. O que acreditam todos aqueles que buscam a perfeição do corpo? Ou,

parafraseando Gilles Deleuze, a que estão sendo levados a servir? Ao que parece,

do ponto de vista de Paula Sibilia (em FREIRE FILHO, 2010, p.205), esses sujeitos

acreditam, acima de tudo, no valor da imagem que eles projetam nos espelhos e nos

olhares alheios, uma imagem – que vem afetando progressivamente a subjetividade

ao longo da história – capaz de revelar o que se é. Se a forma dessa imagem se

enquadra dentro das regras da boa forma, então há o privilégio de ostentá-la e será

sinônimo de felicidade em todos os campos da vida, do sucesso profissional, ao

prazer sexual, o amor, a beleza estética e o bem-estar.

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Poderiamos dizer que se trata de uma nova busca pela felicidade? O que

curiosamente é impulsionada por uma indústria poderosa: a da insatisfação – o

mercado também vende o problema. Tudo isso faz parte de uma complexa rede de

valores e crenças, apoiada na imagem de que ser velho, feio e/ou gordo, ou

simplesmente o fato de se ter um corpo considerado imperfeito relacionado a

qualquer sentido, é impróprio. E tais caracteristicas atribuidas ao corpo constituem

uma falha de caráter individual. Pois, não ser fitness implica uma inadequeação

problemática, um erro de programação, que impede de alcançar o ideal de

felicidade. Mas que, apesar de tudo, pode e dever ser resolvido tecnicamente,

comenta Paula Sibilia ( apud FREIRE FILHO, 2010, p. 206).

Podemos observar que o mercado oferece um amplo catálogo de soluções

que prometem adequar o corpo ao modelo ideal propagado em imagens midiáticas.

Estamos rodeados de informações e convocações sobre o desequilíbrio entre a falta

e excessos sobre alimentação, obesidade, riscos e prazeres. Pelas “maravilhas do

marketing costumamos comprar no mesmo pacote tanto o problema quanto a

solução”. Mas nunca é suficiente, é necessário atualizar-se constantemente, seguir o

que falam tanto os médicos e especialistas da tecnociência em geral, quanto dos

profissionais midiáticos, da publicidade e do marketing. É preciso permanecer atento

e alerta a qualquer mudança, por menor e mais insignificante que pareça, viver em

constante autovigilância e autocontrole, a fim de evitar o risco de ficar obsoleto e

perder a alta performance (SIBILIA apud FREIRE FILHO, 2010, p. 206).

Dietas, musculação, treinos dos mais diversos, cirurgias, pílulas, massagens

modeladoras, cosméticos: o mercado de beleza e saúde coloca à disposição uma

infinita gama de produtos e serviços para tratar, emagrecer, enrijecer, alongar,

rejuvenescer, esticar, definir, drenar, sarar, bombar e turbinar os corpos sempre com

um catálogo renovado a fim de aperfeiçoar o aspecto físico. “Em nome dos valores

bem contemporâneos, como autoestima e a felicidade, a carne humana é

obstinadamente submetida a um conjunto de técnicas de modelagem corporal”, que

no caso, demandam grandes esforços, tempo e dinheiro com o intuito de atingir a

meta do momento: possuir um corpo perfeito (SIBILIA apud FREIRE FILHO, 2010,

p.197).

Para demonstrar como funciona esse quadro de teorias até aqui, tomemos

como exemplo o site Dicas de saúde (http://www.saudedica.com.br), um entre

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inúmeros sites e blogs disponíveis na web que oferece diversas dicas voltadas à

saúde, alimentação e cuidados com o corpo. Mas o que nos chama atenção é o

banner no cabeçalho do site que convoca o leitor a experimentar: “como emagrecer

definitivamente de uma forma rápida e saudável, sem sofrimento e sem suar em

academias” inserindo o e-mail ao lado ou clicando no outro banner logo abaixo, que

chama mais atenção por estar atrelado a uma montagem de fotos de um corpo

antes gordo e depois o mesmo corpo magro.

Figura 14: Página do site Dicas de saúde

Fonte: <https://goo.gl/OG0XBH>. Acesso em: 22 mar. 2017

Após clicar no botão “Experimente hoje mesmo” do banner verde, somos

levados para uma outra página, mas que antes que possamos visualizar seu

conteúdo, um pop-up “pula” na frente da página com os dizeres “Emagreça sem

sofrimento & Conquiste o seu PESO IDEAL e RECUPERE a sua autoestima PARA

SEMPRE!”, seguido de que a pessoa não vai precisar “sofrer” e o que vai

“conquistar” tomando o produto SUPER SLIM X.

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Figura 15: Pop-up Super Slim X

Fonte: <https://goo.gl/uHyvV3>. Acesso em: 22 maio 2017

Ao fechar o pop-up, conseguimos visualizar o conteúdo, do qual se trata de

uma história exclusiva de uma esposa que consegue emagrecer 32kg tomando as

capsulas de emagrecimento e surpreende o marido que estava no Haiti. E relata

que, como muitas mulheres, Suzana começou a ter problemas de peso após a

gravidez e que apesar de ter um casamento feliz, Suzana percebia que o marido já

não a olhava com os mesmos olhos, o que diz ela, afetou sua autoestima.

Observamos que além da história de cunho emocional, o qual faz com que muitas

mulheres possam se identificar com a história de vida de Suzana, o site chama o

leitor a “conferir” o resultado de outras pessoas que também fizeram uso do produto,

e coloca abaixo e ao lado da história vários testemunhos vinculados às fotos de

“antes e depois” mostrando seu resultado.

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Figura 16: Testemunho e história de emagrecimento com o uso do SuperSlim X

Fonte: https://goo.gl/uHyvV3. – acesso em 22 de maio de 2017

Após clicar no botão que indica a oferta do produto, somos direcionados para

outra página, em que pode se assistir o vídeo de uma atriz recomendando o uso do

Super Slim X, comprovando sua eficácia.

Figura 17: Vídeo atriz Monique Alfradique indicando Super Slim X

Fonte: <https://goo.gl/VAJEfN>. – acesso em 22 de maio de 2017

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E logo abaixo do vídeo, o site apresenta o que estão dizendo na mídia, nos

veículos tradicionais - os sujeitos-supostos-sabedores que comentamos no primeiro

capítulo - como a revista Boa Forma, Vogue, Corpo a Corpo e o canal de televisão

Record.

Figura 18: Mídias tradicionais que falam sobre o Super Slim X

Fonte: <https://goo.gl/VAJEfN>. – acesso em 22 de maio de 2017

Em vista disso, cabe admitir que a era do “culto ao corpo” penetrou nos

modos de ser da civilização, porém, nem todos os corpos são igualmente

idolatrados. Essa veneração se dá apenas a um tipo de corpo, que tem suas

próprias regras, somente os corpos sarados e malhados são alvo de especulações e

conseguem projetar seu esplendor pelas câmeras e olhares nas mídias e inspiram

um desejo de mimética. Não se trata somente de admirar e consumir com os olhos

as silhuetas esguias e os contornos exemplares dessas figuras, mas também de

produzir em si o próprio corpo que seja merecedor de celebrações e olhares alheios

(SIBILIA apud FREIRE FILHO, 2010, p.198).

Vale comentarmos, que mesmo que pareça paradoxal, o culto ao corpo não

trouxe somente prazeres e sensações ligadas ao gozo e felicidade. Existe também o

lado sombrio dessa tendência, e se trata dos extremos de transformação do próprio

corpo. Não são raros os casos que o corpo sofre e é punido em virtude das

transgressões de sua natureza, algo que pode se manifestar em diversas

modalidades, do aprimoramento atlético à compulsão por cirurgias estéticas.

Podemos citar práticas que ao se tornar um comportamento obsessivo e compulsivo,

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já se tornaram patologias como, por exemplo, o fisiculturismo para além dos limites

abalizados pela estrutura anatômica a fim de obter um corpo musculoso, catalogado

como vigorexia. Até mesmo a fixação pelo consumo estritamente de alimentos

saudáveis para não engordar e adoecer, foi considerado como novo distúrbio

chamado de ortorexia. Todas essas perturbações fazem parte das expressões mais

conhecidas desse tipo de comportamento que levam a transtornos alimentares: a

anorexia e a bulimia, uma perseguição pela magreza e o medo de engordar (SIBILIA

apud FREIRE FILHO, 2010, p.200). Como podemos constatar nas seguintes

imagens vinculadas no Youtube sobre a transformação das pessoas que tiveram

anorexia:

Figura 19: Video youtube – Antes e depois da anorexia

Fonte: https://goo.gl/V0kb1p – acesso em 20 de maio de 2017

E como no caso de Ronnie Coleman, o recordista de títulos de fisiculturismo,

campeão oito vezes Mr. Olympia, considerado o maior bodybuilding da história. Mas

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como consequência dos treinos que ultrapassaram os limites do seu corpo, teve que

fazer duas cirurgias no quadril e cinco cirurgias na coluna. Como ele próprio revela

em sua conta oficial do Instagram. Em 9 de fevereiro de 2016, publicou um vídeo em

que se mostrava na cadeira de rodas e declarou chamando a atenção dos fãs: “Olá

pessoal, vocês querem ser como eu? Eu sou oito vezes campeão Mr. Olympia e eu

não posso andar” (tradução nossa). Como podemos observar a seguir:

Figura 20: Publicações de Ronni Coleman em seu Instagram

Fonte: <https://goo.gl/FHiK4f>.

Fonte: <https://goo.gl/HWrMbw>. Fonte: <https://goo.gl/xu7esC>.

Cabe ainda citar nesse conjunto de mal-estares da nossa época, as

síndromes e fobias sociais desenvolvidas pela temível exposição ao olhar alheio,

pelo medo do julgamento do próprio aspecto corporal, como a síndrome do pânico e

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depressão. Essa breve exposição nos serve de reflexão para as consequências da

“desgraça de ser ter um corpo inadequado numa sociedade – em nome do bem-

estar – que respeita as boas formas, mas como uma devoção inusitada”. A

gravidade desse mal-estar social e no próprio corpo adquiriu uma proporção de

perversidade tão insensata “que já ganhou o estatuto de um mal-estar psiquiátrico

chamado de lipofobia” um tipo de aversão que censura os aspectos físicos e de

comportamento humano e aponta tanto para o próprio organismo quanto para os

corpos alheios (SIBILIA apud FREIRE FILHO, 2010, p.200). É tão grave a esfera

que paira sobre os corpos e subjetividades que, fazendo uma busca livre pela

hashtag (#) anorexia, na rede social Instagram, nos deparamos com um curioso

alerta e oferecimento de ajuda: o dispositivo fazendo o papel social, acolhedor e de

alerta, como resultado do filtro das publicações mais recorrentes e tags de assuntos

mais buscados. Papel esse que nos parece negligente às faces de carne e osso.

Como se pode observar a seguir:

Figura 21: Alerta do Instagram ao buscar pelo tema “anorexia”

Fonte: <www.instagram.com>.

De fato, percebe-se um evidente enaltecimento do corpo e um estímulo aos

gozos corporais aos quais consideramos que são um imperativo de felicidade a todo

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custo, urgente, privada e imediata. Nesse sentido, concordamos com Paula Sibilia

(apud FREIRE FILHO, 2010, p. 202) que na confluência desses dois impulsos, e na

condição que sustenta a ideia para subjetividade contemporânea, o “corpo é objeto

de um design epidérmico que recomenda o cultivo da própria imagem, numa era na

qual a visibilidade e o reconhecimento alheio são essenciais para definir o que se é.”

O que se almeja é atingir uma “virtualidade imagética tão descarnada como

descarnante”. A moral da boa forma submete os indivíduos a todas as pressões do

desencantado e deleitoso mundo contemporâneo.

Além disso, se trata de um “empreendimento que implica uma boa gestão de

si, capaz de envolver o indispensável autocontrole e a cotidiana adesão aos modos

de vida considerados certos e saudáveis”. Interpelados e repreendidos pelos

discursos midiáticos e pela enxurrada de imagens que ensinam como viver, “o que

comer, quanto pesar, o que vestir para delinear um corpo perfeito, ao mesmo tempo

que informa e adverte sobre todos os riscos inerentes que podem afastá-los do

modelo ideal e as consequências de não o alcançar” (SIBILIA eapud FREIRE

FILHO, 2010, p.204).

Não compete ao nosso objetivo discutir os padrões de corpos socialmente

aceitos tampouco criticar os novos modelos estéticos olhando o corpo humano como

matéria. Entretanto, é necessário fazer esse percurso para averiguar quais as linhas

de forças históricas, culturais, econômicas, sociais e os afetos que impulsionam as

configurações das subjetividades atuais. Assim, pretende-se, sob as luzes dos

valores contemporâneos, examinar os modos de ser que se desenvolvem junto a

uma série de novas práticas de expressão e comunicação hoje em alta, a fim de

compreender os sentidos desse curioso fenômeno: a exibição do próprio corpo a

partir das fotos de “antes e depois”.

Nessa perspectiva, Joel Birman (apud FREIRE FILHO, 2010, p. 39) nos diz

que o imperativo de qualidade de vida procura colocar em foco as práticas que

devem ser realizadas por meio das boas condições de saúde, da boa alimentação,

somando a prática regular de atividades físicas, esportes e de lazer como condição

para que o sujeito mantenha sua autoestima e a sua autonomia. Como comentamos

anteriormente, os jornais e revistas colocam sistematicamente pautas sobre temas

que compõem uma agenda da qualidade de vida, ao lado disso, diferentes

programas de televisão promovem receitas de alimentação saudável até os

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benefícios e importância de se praticar atividades físicas. Como exemplo disso,

podemos citar o programa recente da Rede Globo chamado de Bem Estar, que traz

cada a cada manhã uma matéria nova relacionada à saúde e bem-estar. “Dito de

outra maneira, a vida saudável se transformou, então, num estilo de vida”.

Além disso, o autor ainda concebe que a conjunção entre a ideia de saúde e

de beleza passou a ser unida, pois, ter uma boa saúde seria a condição para que o

sujeito se sentisse efetivamente belo e, assim, pudesse manter em alta sua

autoestima. Ou seja, “não existem mais demarcações bem estabelecidas entre os

registros do que se considera saúde com o que está no campo da beleza, mas

apenas bordas, pelas quais os dois ramos podem se sobrepor e frequentemente se

confundir” (BIRMAN em FREIRE FILHO, 2010, p. 41).

Diante desse contexto, também concordamos com Birman, quando considera

que o maior medo da atualidade seria a perda de autoestima, a qual obceca tanto os

sujeitos da pós-modernidade. Isso porque, o incremento, a manutenção, ou melhor,

o gerenciamento da autoestima estaria vinculado diretamente à condição do

indivíduo ser vencedor ou perdedor. Com efeito, “os vencedores são todos aqueles

indivíduos que conseguem manter sua autoestima em alta, assim como os

perdedores se trata daqueles que a mantêm em baixa” (apud FREIRE FILHO, 2010,

p.41).

Entretanto, é importante destacarmos, ainda, que a ideia de performance

estabelece um critério distintivo para a individualidade, e que é evidenciado pelo

imperativo de autonomia. Assim, pela performance, o sujeito poderia colocar em

evidência a sua autonomia ao mesmo tempo que gerencia sua autoestima – “signos

indiscutíveis de felicidade e da condição de vencedor”. Porém, “a dita performance

também implica sempre a administração narcísica do eu ideal, o qual ocupa o centro

da cena psíquica do sujeito” (BIRMAN em FREIRE FILHO, 2010, p. 41).

O que anteriormente Debord (1992) anteviu e antecipou brilhantemente, ou

seja, a transformação do cenário social na contemporaneidade quando anunciou a

constituição da Sociedade do espetáculo, como vimos no primeiro capítulo deste

trabalho. E que para Birman, a performance e a autonomia seriam as condições

perfeitas de possibilidade para que o indivíduo se promovesse e criasse o

espetáculo na cena social. Portanto, consentimos com o autor que “para promover o

espetáculo e estar à altura dele, é necessário, como condição, o sujeito sustentar

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performaticamente a sua autonomia, o que faz parte da constituição da felicidade do

sujeito contemporâneo” (BIRMAN apud FREIRE FILHO, 2010, p. 41).

Para ilustrar esse encadeamento de ideias das teorias apresentadas e

mostrar como esse fenômeno se manifesta, encontramos na primeira página do blog

em “Tudo sobre mim”, de Gabriela Pugliesse, uma das blogueiras fitness mais

famosas em questão de seguidores nas redes sociais (com 3,4 milhões em 20 de

maio de 2017), sua foto de antes quando era criança e gordinha, com uma

expressão de tristeza e sua foto de depois mostrando um corpo esbelto, malhado e

transmitindo um semblante de autoconfiança. Também, julgamos importante

destacar a eloquência dos dizerem que acompanham as fotos: “Oi gente, tudo bem?

Meu nome é Gabriela. Mas poderia ser Fernanda, Janaína ou Pedro. E assim como

muita gente, eu também tive meus problemas com peso e autoestima. Desde

pequena, na verdade”:

Figura 22: Blog Gabriela Pugliesi – “Tudo sobre mim”

Fonte: <https://goo.gl/GqJV92>.

Diante disso, podemos depreender como se constitui a concepção e o novo

modelo antropológico da subjetividade contemporânea, convergente com a

promoção do eu e da felicidade que se dissemina ativamente na atualidade através

dos diversos dispositivos de comunicação, especialmente nas redes sociais digitais.

De acordo com Birman (apud FREIRE FILHO, 2010, p. 43), neste modelo

antropológico, o sujeito é concebido segundo os eixos do corpo, da ação e da

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intensidade, segundo os quais são a performance e a autonomia que sustentam a

autoestima do indivíduo.

Pois, como alerta Souza Couto (apud RIBEIRO; SILVA; GOELLNER, 2009, p.

52) “não adianta preservar quimicamente a felicidade se essa sensação não for

espetacularizada, vista e, sobretudo, admirada – às vezes fortemente invejada –

pelos outros.” Também corroboramos com o autor quando diz que, de fato, não é por

acaso que a publicidade e os meios de comunicação, tradicionais e recentes, não

cessam de promover a superexposição e a hiperprodução de imagens de pessoas

que aparentam ser as mais felizes dentre as mais felizes, já que a felicidade artificial

deve ser sempre fora do comum, excessivamente demais.

Complementar a isso, “o eu alegre” não cessa de publicar e dizer ao mundo

sua felicidade, ao mesmo tempo que também testemunha a felicidade artificial dos

outros. E quando a felicidade do outro parecer superior à nossa, nada de interiorizar

sentimentos negativos e de inferioridade. Basta recorrer imediatamente às soluções

farmacológicas, as pílulas da felicidade e sejamos todos infinitamente melhores

(SOUZA COUTO apud RIBEIRO; SILVA; GOELLNER, 2009, p. 52). Assim, na difícil

construção de si mesmo, o pódio estético atual inclui a doutrina dos corpos

modulados conforme as forças dos biopoderes atuais e a impressão de felicidade

sincronicamente aos valores de autoestima e autonomia.

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CAPÍTULO 3 – O CORPO “ANTES E DEPOIS”: A SUBJETIVAÇÃO

NOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO DIGITAIS

3.1 A construção do “eu” virtual

Ao longo das últimas duas décadas, os computadores interconectados

através das redes digitais de alcance global, os meios de comunicação de massa,

baseados em tecnologias eletrônicas, o surgimento das mídias online e a criação

das redes sociais digitais foram se apresentando como plataformas para a criação

de novas práticas de expressão e comunicação, dando visibilidade às subjetividades

e à construção da imagem em torno de si, através das práticas exercidas no meio

ambiente do ciberespaço que, acordo com Leão (2004), é:

[...] um território em constante ebulição. Camaleônico, elástico, ubíquo e irreversível, o ciberespaço não se reduz a definições rápidas. Partindo de um olhar tríplice, percebemos que o ciberespaço engloba: as redes de computadores, integradas no planeta (incluindo seus documentos, programas e dados); as pessoas, grupos e instituições que participam dessa interconectividade e, finalmente, o espaço (virtual, social, informacional, cultural e comunitário) que emerge das inter-relações homem-documentos-máquinas. (LEÂO, 2004, p. 9)

Paula Sibilia (2016) nos fala do trajeto histórico percorrido desses canais de

interação. A comunicação mediada por computadores no ambiente do ciberespaço

começou pelo e-mail, o correio eletrônico, uma condensação entre o telefone fixo e a

correspondência física em papel e envelope, que rapidamente se espalhou nos

últimos anos do século XX, promovendo um aumento e uma agilidade dos contatos

e da forma de se comunicar. Logo depois, os canais de bate-papo ou chats como do

site da UOL se popularizaram, seguidos pelo emblemático ICQ, que logo evoluíram

para os sistemas de mensagens instantâneas como o famoso MSN e do Hangout e

das redes de comunicação social como Orkut, MySpace, Facebook, Twitter,

Linkedin, Instagram, Pinterest e Snapchat. Acompanhados de sites que facilitariam o

compartilhamento de vídeos caseiros, no qual o Youtube se destacou na categoria.

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Há ainda outra linha de aplicativos móveis, os que acabaram tornando as

chamadas telefônicas e as mensagens de SMS raras e quase obsoletas,

substituindo-as por um diálogo permanente por meio do aparelho celular,

acompanhado da possibilidade de troca de fotos e sons, e a interação por vídeo ao

vivo, como o pioneiro Skype, Viber e Whatsapp, que permitem ligações com áudio e

imagem em movimento entre uma ou mais pessoas, sem custo algum, além do uso

dos dados da internet, algo que até pouco tempo atrás era o sonho de muitas

pessoas que tinham um alto custo para falar com parentes que morassem há longas

distâncias e até mesmo em outro país.

Continuando esta revisão sobre a evolução dos meios de comunicação até

aqui, logo surgiram serviços mais específicos como os aplicativos de relacionamento

Tinder, Grindr, Happn e Kickoff, voltados a contatar possíveis parceiros sexuais, com

busca por localização de proximidade com a possibilidade de visualizar se há

amigos em comuns no Faceboook. Essa sucessão de invenções foi transformando a

tela do computador e, posteriormente, as dos aparelhos móveis como smartphones

e tablets, afirma Sibilia (2016, p. 20), em janelas que driblam quase todos os limites

de tempo e espaço, conectadas a um crescente número de usuários.

Outro elemento importante nesse percurso elucidado por Sibilia (2016, p.20),

foram os blogs, surgidos nos primeiros anos do século XXI, os quais eram

chamados de “diários íntimos que se publicam na internet”, lembra a autora. Eles

também possuem outras modalidades, como os fotologs, ou videlogs ou vlogs.

Ainda hoje, existe uma diversidade gigantesca de blogs dos mais variados assuntos

na internet, apesar de que boa parte da atividade esteja vinculada às redes sociais

como Facebook, Instagram e Twitter, que foram criadas posteriormente. Nessa

categoria, na junção entre blogs e redes sociais há ideias de conteúdo bem

variadas, incluindo novas formas estéticas. Contudo, nota-se, ainda, que quase

todos os blogs costumam seguir o modelo do testemunho confessional pessoal.

Além de todos esses produtos midiáticos citados, as câmeras digitais, que

permitem tirar fotos e fazer vídeos sem necessidade do processo de revelação

analógico, de forma instantânea e ilimitada, têm sido incorporadas por quase todos

os dispositivos de informação e comunicação, de laptops – desde o surgimento das

webcams, as pequenas filmadoras de baixo custo – aos tablets e smartphones. Nos

últimos anos, tornou-se praticamente uma raridade conseguir um telefone móvel ou

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um computador sem uma câmera embutida, o que parece um sintoma das práticas

atuais, comenta Sibilia (2016).

Conforme o dicionário Oxford, em 2013, “a palavra do ano” eleita foi Selfie -

termo usado para descrever fotos que as pessoas tiram delas mesmas - e que até

2012 quase ninguém tinha ouvido falar. Os responsáveis pelo dicionário foram em

busca de traçar as origens do termo, o qual teria sido usado pela primeira vez em

2002, para descrever uma foto que uma pessoa tirou de si mesma e postou nas

redes sociais durante um fórum australiano. Hoje, o termo é usado por pessoas do

mundo inteiro. Judy Pearsall, diretora editorial dos dicionários, declarou que:

Os sites de mídias sociais ajudaram a popularizar o termo com a hashtag #selfie aparecendo no site de compartilhamento de fotos Flickr em 2004, mas o uso não se espalhou até 2012, quando o termo estava sendo usado de forma geral em fontes de mídia mais tradicionais (tradução nossa). (ORFORD DICTIONARY, 2017)

Simultaneamente, com essa expansão do novo modo de se tirar uma

fotografia, foram surgindo aplicativos com recursos de edições de imagens com

diversos filtros para parecer mais bonito e “tirar a selfie perfeita”, como Candy

Camera, YouCam Perfect, FrontBack, Selfie Câmera HD e Selfshot, que dispõem de

vários filtros que podem ser escolhidos antes mesmo de se tirar a foto, o que evita

retoques posteriores, além de funções que ajudam no embelezamento de suas

fotos, como clareamento da pele, remoção de espinhas, maquiagem e

emagrecimento, indica o site de tecnologia TechTudo, da Globo.com (TECHTUDO,

2017).

Percebemos essas funções nos próprios telefones móveis, que têm a

capacidade de sua câmera fotográfica como prioridade em seu desenvolvimento, a

cada versão nova, com tecnologias cada vez mais aprimoradas para tirar uma foto

de si mesmo, como podemos ver nas publicidades dos últimos lançamentos de

smartphones da empresa sul-coreana Samsung: “Repense o que é sair bem na foto.

Com o Spotlight no Beauty Mode você pode destacar seu rosto e realçar algumas

partes”, referente à câmera dos aparelhos Galaxy S7 e S7 Edge, lançados no ano

de 2016 e; “acione a câmera de selfies e tire fotos que todos vão querer

compartilhar”, referente à câmera dos Galaxy S8 e S8+, lançados em 2017

(SAMSUNG, 2017).

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Esse fenômeno, diz Paula Sibilia (2016, p. 21), “é capaz de dar conta do

triunfo da união entre visibilidade e conexão, recursos que compõem, de forma

exemplar, a inteligência artificial desses dispositivos”, e que levaram a fazer tanto

sucesso na atualidade, passando a ser um bem indispensável de quase toda a

população mundial: “eles conseguiram dar vazão às peculiares demandas e

ambições que articulam as subjetividades contemporâneas, bem como ao tipo de

sociabilidade por elas alicerçada” (SIBILIA, 2016, p.21). De acordo com a autora, “a

visibilidade e a conexão constituem os vetores fundamentais para os modos de ser e

estar no mundo, atuando em sintonia com os ritmos, prazeres e desejos da

atualidade, trançando as formas de se relacionar conosco e com os outros, e com o

mundo” (SIBILIA, 2016, p.21).

Um fator importante nesse percurso de atualizações e desenvolvimento

tecnológico, assevera Paula Sibilia (2016, p.23), “são as áreas da internet onde os

usuários não são apenas protagonistas, mas também são os principais produtores

de conteúdo”. A chamada “revolução da Web 2.0”, que converteu os usuários nas

“personalidades do momento”. Apesar de ainda estar em expansão, essa expressão

já se tornou velha: ela foi inventada em 2004, no Silicon Valley por especialistas em

cibercultura, executivos e empresários. O objetivo era batizar a nova etapa de

desenvolvimento da internet, após o estouro das empresas ponto.com no ano 2000.

Ao passo que as empresas da primeira geração da Web tinham o objetivo,

sobretudo, de vender a versão 2.0, diferentemente, propôs confiar na iniciativa de

fazer com que os usuários se tornassem “co-desenvolvedores” das mais diversas

ações comerciais.

Como expressou a revista Time, em 2006, ícone midiático tradicional, ao

escolher a personalidade do ano, como repete há quase um século com o intuito de

apontar “as pessoas que mais afetaram o noticiário e nossas vidas, para o bem ou

para o mal, incorporando o que foi importante no ano”, como recorda Sibilia (2016),

as escolhas de alguns anos anteriores foram: ninguém menos que Adolf Hitler em

1938, Mahatma Gadhi em 1920, o Ayatollah Khomeini em 1979, Mikhail Gorbachev

em 1989, George Bush em 2004, Barack Obama em 2008, Mark Zuckerberg em

2010, e como vimos no ano de 2016, a escolha foi Donald Trump (MICHAEL S.,

2017). No ano de 2006, a personalidade do ano, de acordo com a revista Time, foi:

“Você! Sim, Você - É a Pessoa do Ano do TIME Em 2006”. Na capa, brilhava um

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espelho e convidava seus leitores a se comtemplar nele, como Narcisos satisfeitos

por se verem no mais alto pódio da mídia, suas personalidades cintilando, lembra

Sibilia (2016).

Como justificativa dessa escolha, a revista propôs olhar o ano de 2006

através de uma lente diferente, e perceber uma história não sobre conflitos ou

grandes homens, mas uma história sobre comunidade e colaboração jamais vista.

Em que a World Wide Web tornou-se uma ferramenta para reunir as pequenas

contribuições de milhões de pessoas e torná-las importantes, diferente daquela

internet da década de 1990. Os editores ressaltaram a explosão de conteúdo

produzido pelos milhares de usuários desde os mais estúpidos às criações mais

incríveis, tanto nos blogs e sites, quanto no YouTube e nas redes de relacionamento

tais como MySpace e Facebook, além da criação de avatares do Second Life, e o

ressurgimento de livros na Amazon. Em função disso, a conclusão foi que a Web 2.0

é uma experiência social maciça, que está modificando o entendimento

internacional, não político, mas, social, de pessoa (GROSSMAN; LEV, 2006).

Dessa forma, conforme Sibilia (2016, p. 23), pode-se assumir que novas

táticas de capitalização da criatividade alheia se dão pela meta de “ajudar as

pessoas a criarem e compartilharem ideias de informação”, e que, em outras

palavras, segundo fontes oficiais, “equilibrando a grande demanda com o

autosserviço” que, segundo Lipovetsky (2010, p. 101), “por meio desse processo, se

iniciou a despersonalização da relação comercial”, tornando o contato entre a oferta

e a procura, direto e livre da mediação do vendedor, um meio de autonomização do

consumidor, posto que, pelo autosserviço, ganha-se um imaginário de liberdade

individual, que funcionou não apenas “como um agente de democratização do

consumo, mas também contribuiu, para a individualização das práticas de compra,

dos gostos e das exigências” (LIPOVETSKY, 2010, p. 101).

Diante disso, tem-se uma “junção do velho slogan faça você mesmo com a

nova dinâmica mostre-se como for”. Tal tendência, embora se manifeste mais

ativamente no meio ambiente da internet, tem contagiado também os meios de

comunicação tradicionais, e outras zonas da vida atual. Por toda parte, os

indivíduos, então usuários, clientes, leitores ou espectadores “são convocados a

participar, compartilhar, opinar e se exibir de um modo considerado ‘proativo’”

(SIBILIA, 2016, p. 24).

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Parece-nos evidente que novas formas de expressão e comunicação

comparadas com as antigas formas analógicas de interação são apenas versões

atualizadas que se instalaram. Como por exemplo, os e-mails comparados às trocas

de cartas, aquelas que se escreviam à mão com todo o cuidado caligráfico e

atravessavam distancias geográficas por meio de envelopes lacrados e que

demoraram uma eternidade até seu destino. Os blogs fazem nos remeter aos

antigos diários íntimos. As populares redes sociais, como Facebook e Instagram,

lembram os antigos álbuns de retrato de família, só que ao invés de ficarem nas

gavetas ou nas prateleiras do lar, já podem ser vistos por qualquer um que esteja na

rede online. “Os vídeos caseiros, que eram gravados nas fitas cassetes, guardados

nos armários, passaram a ter um canal próprio e serem veiculados nas redes”

(SIBILIA, 2016, p.24).

De fato, existem muitas afinidades entre as velhas tecnologias e o arsenal de

dispositivos e mídias que fazem parte do nosso cotidiano atualmente. No entanto,

concordamos com Sibilia (2006, p. 25), quando alude que suas diferenças e

especificidades são grandes, e que talvez, sejam significativas para entender

questões em que se desenvolveram as subjetividades e os modos de sociabilidade

no mundo atual. Pois, ao contrário do que se afirma, sem muita reflexão, não são os

aparelhos que geram mudanças nos modos de ser. Ao que parece, os dispositivos

tecnológicos são resultado de um processo histórico bem complexo, que envolve

fatores socioculturais, políticos e econômicos. Em vista disso, “as tecnologias são

inventadas para desempenhar funções que a sociedade de algum modo solicita e

para as quais carece de ferramentas adequadas” (SIBILIA, 2006, p. 25). Podemos

citar como exemplo, a capacidade de administrar múltiplos contatos de forma veloz,

dentro de um único dispositivo, ou como já mencionado, a demanda por visibilidade

e conexão constante, que se tornaram necessidades desenvolvidas nos últimos

tempos, e para que fossem atendidas, foram se desenvolvendo instrumentos

específicos. Portanto, no lugar de “serem compreendidos como a sua causa, os

dispositivos tecnológicos são consequência de certas mudanças históricas”, que

acabam reforçando essas modificações e promovendo outros efeitos no mundo.

Como já analisamos nos capítulos anteriores, esse quadro de transformações

atinge os modos de ser e estar no mundo, mas não se trata apenas da internet e de

suas plataformas de interação, mas de um novo regime que, conforme Deleuze, se

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organiza alicerçado nas tecnologias eletrônicas e digitais e se consagra em um

órgão social capaz de potencializar o capitalismo. É o capitalismo de superprodução

e efetivado pelo consumo exacerbado. Um sistema em que o Marketing e a

publicidade se tornam instrumentos de controle social, e se articulam também, como

diz Sibilia (2016, p.28), “pela criação excitada e, muitas vezes, recompensada

financeiramente, no qual o espirito empresarial suscita todas as instituições e

percorre tanto os corpos como as subjetividades”.

Diante desse exame, cabe ainda detectarmos quais são os movimentos que

constituíram os cenários desse novo regime de poder em que nosso objeto - a

publicação de fotos de “antes e depois” - se manifesta. Vejamos alguns exemplos:

em 2007, no encontro do Fórum Econômico Mundial, estava presente um dos

fundadores do YouTube, pouco depois do lançamento do site, informou que a

empresa pretendia dividir suas receitas com os autores dos vídeos exibidos nele.

Da mesma forma que, aqueles que disponibilizassem com sucesso um filme de sua

autoria, nesse canal, passariam a receber parte das receitas publicitárias que

conseguissem com a exibição, ao mesmo tempo que o serviço do site fosse gratuito

para os espectadores e para os emissores. Ou seja, compensavam monetariamente

seus “colaboradores”, para estimular a produção de conteúdos atraentes com a

finalidade de conquistar mais usuários (SIBILIA, 2016, p. 29). No ano de 2006, conta

Paula Sibilia (2016), o MetaCafe – o primeiro e único site destinado ao

entretenimento, exclusivamente dedicado a exibir os melhores vídeos de curto

formato do mundo dos filmes, jogos de vídeo, TV, música e esportes - programados

para hoje jovens Drivers de entretenimento masculinos (METACAFE, 2017) - foi um

dos pioneiros a oferecer um montante a cada mil visualizaçõesde de videos

postados em seus domínios. Como resultado dessa iniciativa, um dos primeiros

beneficiádos foi um especialista em artes marciais, que faturou milhares de dólares

como o vídeo Matrix For Real, que exibia o protagonista fazendo acrobacias.

Poucos anos mais tarde, relata a autora (SIBILIA, 2016), essa dinâmica se

consagraria em vários campos da internet. O que hoje reconhecemos, e talvez seja

sua manifestão mais óbvia, é o fenômeno dos youtubers, também chamados de

webcelebridades, pois passaram a ganhar muito dinheiro postando vídeos capazes

de atrair inúmeros views e fãs seguidores dos canais. De acordo com uma pesquisa

levantada pela Sanck Intelligence, plataforma de network brasileira, em 2016, o

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youtuber considerado mais influente do mundo era o sueco Feliz Kyellberg, mais

conhecido como PewDiePie com cerca de 46,7 milhões de seguidores. Dentre os

dez mais atuantes, quatro eram brasileiros (BARBOSA, 2016).

Podemos compreender essa lógica de mercado, através do potencial de

relação dos individuos, o chamado “capital social”, seja mensurado de forma

quantitativa (númedo de seguidores) ou qualitiativa (impacto de influência) (COSTA,

2004, p. 66). Conforme Costa (2005, p. 239), “capital social significaria a capacidade

de os indivíduos produzirem suas próprias redes, suas comunidades pessoais”.

De tal forma, que quando o processo de desenvolvimento econômico passa a

ser definido não somente pelos recursos naturais, pela infraestrutura, pelos bens de

consumo e pelo capital financeiro, mas também pela forma como os atores que

pertencem a essa economia se interagem, e se organizam, no caso dentro de uma

rede de usuários dentro da internet, gerando crescimento e desenvolvimento,

passam a ser considerados como riqueza a ser explorada, e tornam-se um capital

(COSTA, 2005, p. 240).

Esse esquema, diz Paula Sibilia (2016, p.31), costuma combinar dois

elementos, que juntos, fazem a alma do negócio. De um lado, é necessária uma

convocação informal e espontânea por parte dos usuários, para compartilhar nos

meios midiáticos suas criações, porém, na maioria dos casos, trata-se de performar

suas subjetividades e criar um cenário de suas vidas na exposição das telas

interconectadas. E, de outro lado, está a remuneração por parte das empresas.

Nessa lógica capitalista, em conjunto com os novos códigos do espetáculo

midiático, em meados de 2008, anunciava-se o lançamento do que conhecemos

hoje como publicidade direcionada. A rede social MySpace, uma das primeiras

empresas nesse campo, revelou que além de usar os dados pessoais que

configuravam os perfis de seus usuários, também recorreria às eventuais

informações encontradas entre as conversas sobre gostos e hábitos de consumo

que cada um manifestasse. Nessa primeira fase, a empresa classificou em dez

categorias os milhões de usuários, classificando-os em assuntos tal como carros,

moda, finanças e música. À época, era uma estratégia bastante inovadora, ou seja,

oferecer aos anunciantes mais do que os simples dados demográficos. Apesar de as

críticas alegarem que se tratava de um projeto invasivo, os idealizadores justificaram

que não era, na medida em que cada usuário poderia optar por tornar-se “amigo”

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das empresas, e a partir daí a publicidade seria ou não direcionada para ele. O

nascente behavioral targeting, isto é, a publicidade baseada no comportamento de

cada um dentro da rede, desenvolveu-se potencialmente nos anos seguintes, devido

às novas formas de comunicação instantânea e à imensa quantidade de dados

compartilhados pelos próprios usuários (SIBILIA, 2016, p. 35).

Devido à visualização do grande potencial dessa nova estratégia de

marketing, três anos depois da sua criação, a rede social Facebook ganhou um

investimento milionário da Microsoft, ao comprar uma parcela do capital da rede

social. O que levou pouco tempo depois à criação de um projeto denominado “o

Santo Graal da publicidade”, descrito como “uma ferramenta capaz de converter

cada membro da rede num eficaz instrumento de marketing para dezenas de

empresas que vendem produtos e serviços na internet”. Esse sistema permitia o

monitoramento das transações comerciais feitas pelos usuários sobre qual produto

compraram ou comentaram. Ou seja, todo movimento como consumidor e

comportamento online, de modo geral, estava em foco. O objetivo era fornecer

novas formas de conexão e compartilhar informações com os amigos, mantendo-os

informados sobre seus próprios interesses, além de servir como referências

confiáveis no momento de comprar algum produto. Pois, como explicou o diretor e

fundador da rede, Mark Zuckerberg: “nada influi mais nossas decisões do que a

recomendação de um amigo confiável”. Ao contrário do que fazem as mídias

tradicionais, como televisão e jornal, que empurram a mensagem para cima das

pessoas, “é preciso conseguir que a mensagem se instale nas conversas”,

acrescentou Mark. De fato, e como admitiu o fundador, o principal ativo da empresa

são os diálogos, as conversas mais ou menos privadas (SIBILIA, 2016, p. 36).

Em vista disso, corroboramos as reflexões de Costa (2008, p. 63), sobre a

importância do uso da noção de rede social que as empresas fazem para alavancar

seu crescimento, pois:

O capital de conhecimento e informação passou a estruturar as iniciativas econômicas nas suas mais diversas instâncias. Portanto, fazer rede, atualmente, é sinônimo de produção de valor econômico pela atividade colaborativa das inteligências dos indivíduos. E essa produção, é preciso assinalar, não está restrita ao universo das organizações econômicas, mas estende-se sobre toda a sociedade, na medida em que toda atividade humana pode ser vista como produtora de alguma forma de riqueza imaterial. (COSTA, 2008, p. 63).

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A mesma tendência acabou sendo incorporada por outros fenômenos que

surgiram nos últimos anos. Como alguns autores de blogs, por exemplo, que devido

a sua notoriedade conquistada na internet foram descobertos e promovidos pelos

meios de comunicação tradicionais (SIBILIA, 2016, p 32). Já no começo dos anos

2000, alguns escritores de blogs foram convidados a participar de campanhas

publicitárias. No Brasil, um dos primeiros casos foi o da linha de sandálias da marca

Melissa, mas que não chamou a ação de publicidade, preferindo nomear de um

projeto de comunicação e branding. Seguindo uma tendência que já estava

acontecendo em âmbito internacional, o projeto consistia em escolher quatro garotas

que cujos fotologs faziam grande sucesso entre as adolescentes brasileiras para

divulgarem a marca em seus respectivos espaços na internet. A empresa as

nomeou de suas “embaixadoras”, além da divulgação, as meninas participaram do

processo de criação do calçado, com suas ideias e opiniões trocadas com as fãs. O

objetivo dessa estratégia era atrair a nova geração de jovens que estava crescendo

no mesmo ritmo da rede da internet. A estratégia foi um sucesso, as quatro jovens

se tornaram celebridades na internet, aumentando potencialmente as visitas em

seus fotologs, e expressaram sua satisfação por participar de um projeto que

valorizou a escolha de pessoas reais ao invés de modelos (SIBILIA, 2016, p.37).

Uma das participantes desse projeto, realizado em 2007, Mariana de Souza Alves

Lima, conhecida pelo nickname MariMoon (nome inspirado no Anime Sailor Moon), é

considerada uma das primeiras blogueiras do Brasil, em uma entrevista recente,

comenta como foi esse começo das redes sociais:

Era mal visto se exibir na internet. Perguntavam se você achava que era famosa, ou uma celebridade. “Essa galera que faz selfie, eles são muito egocêntricos, se acham”. “Não era bem visto se gostar, a sociedade meio que dizia você não deve se amar, não deve ter orgulho de suas conquistas, não deve se achar bonito”, relatou a blogueira. (MEIO&MENSAGEM, 2017)

Em poucos anos, ser blogueira de moda já tinha se convertido em uma

profissão notável e muito cobiçada. Outro termo usado para nomear esse tipo de

ocupação é egoblog, em referência a um canal na internet usado para falar de si,

onde o autor ou autores publicam fotografias com diferentes looks, usando

diferentes roupas. Mas o que procuram as empresas que querem esse tipo de

personalidade? Usar o tipo de comunicação que eles têm para apresentar as novas

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tendências de moda na linguagem comum, que pareça espontâneo e

desinteressado para atingir o público alvo. Atualmente, a palavra influencer ou

“influenciadores” é usada para descrever essas pessoas, que têm tanto valor para o

mercado (SIBILIA, 2016, p. 38). Como apontou a revista Vogue, baseada no número

de seguidores no Instagram, Twitter, Facebook, YouTube e Pinterest, além do

tráfego do site; número de colaborações com marcas; que tipo de marcas a

blogueira se relaciona (das populares às de luxo) e também o volume de procura no

google, a lista de blogueiros mais influentes no universo Fashion e seus respectivos

canais: Chiara Ferragni (The Blond Salad), Aimee Song (Song of Style), Kristina

Bazan (Kayture), Julia Engel (Gal Meets Glam), Wendy Nguyen (Wendy's

Lookbook), Julie Sariñana (Sincerely Jules), Blair Eadie (Atlantic-Pacific), Chriselle

Lim (The Chriselle Factor), Gala Gonzalez (Amlul by Gala Gonzalez), Nicole Warne

(Gary Pepper Girl), Bryan Grey Yambao (Bryanboy), o único homem da lista e da

brasilera Helena Bordon (Helena Bordon) (VOGUE, 2016).

Outra categoria que tem se destacado, inclusive no Brasil, é das blogueiras

fitness, que estão ganhando fortunas mostrando suas dietas, seus treinos e exibindo

seu estilo de vida saudável nas mídias sociais com frases de motivação, o intuito é

servir de inspiração e ajudar as pessoas a mudar de vida, seja perdendo peso, ou

melhorando a saúde por meio de um estilo de vida mais saudável. Como é o caso

da australiana Kayla Itsines, considerada a maior influente no mundo Fitness pela

revista Forbes (FORBES 2017), com cerca de 6,6 milhões de seguidores no

Instagram, que com seu aplicativo com treinos e receitas para ajudar mulheres a

melhorarem suas vidas em relação à saúde e ser fitness, movimentou 17 milhões de

dólares em 2016. No Brasil, Bella Falconi, Gabriela Pugliesi, Carol Buffara, Carol

Magalhães e Michelle Franzoni são algumas das blogueiras com mais seguidores

que dão dicas diárias de exercícios, dietas e vida saudável (CARAS, 2017). No

entanto, como tem se tornado comum esses perfis postarem fotos e vídeos

promovendo produtos, de acordo o Código de Autorregulamentação Publicitária -

CONAR, tais ações devem ser sinalizadas como conteúdo publicitário, mas apesar

das regras, ocorrem vários problemas acerca da publicidade velada. Como foi o

caso, em 2014, em que o CONAR julgou o blog de Gabriela, Tips4Life, por esconder

o teor publicitário na divulgação de alguns produtos (EXAME, 2016).

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Apesar dos riscos implícitos nessas novas estratégias de “publicidade social”,

ainda parece prevalecer as célebres palavras de Mark Zuckerberg a respeito do

valor monetário do “amigo confiável”, e parece valer a pena o investimento nas

mídias sociais, pois envolve a possibilidade de influenciar e impactar um grande

número de pessoas com menos obviedade comercial do que as propagandas de

televisão ou anúncios de revistas. As empresas sabem das limitações dessa

dinâmica, uma vez que como se sabe, ou dever-se-ia saber, toda publicidade é

enganosa por definição. Portanto, trabalhar com influencers como estratégia de

marketing requer um certo cuidado para construir credibilidade com os usuários das

redes e fazer com que a promoção se pareça com uma conversa com uma

personalidade autêntica. “A base está aí, no verbo parecer que apesar de ambíguo,

há a necessidade de dissimular para passar credibilidade, autenticidade e confiança

para vender” (SIBILIA, 2016, p. 44-45).

Os exemplos são inúmeros e diversos, além de terem se multiplicado de

forma rápida e progressiva nos últimos anos. Como resultado desse convite ao

empreendedorismo digital, a criação de blogs ligada às redes sociais se transformou

em atividade econômica tão oportuna que chegou a motivar a abertura de cursos

específicos em instituições renomadas, tanto no exterior quanto no Brasil, como a

faculdade de Belas Artes em São Paulo, que criou o primeiro curso de graduação

para garotas interessadas em escrever sobre beleza e moda. A idealização da

graduação partiu de Alice Ferraz, assessora e empresária que criou a F*Hits,

plataforma digital que administra e agencia mais de vinte blogs. Segundo Alice, a

carreira ainda é vista com preconceito. “Mas, se alguém paga as contas com seus

posts, então ser blogueira é uma profissão de fato”, afirma. E agora, como mostra o

exemplo da Belas Artes, com direito até a diploma. Na prática, o objetivo da

instituição é formar blogueiras de moda e de beleza. “Queremos fazer com que elas

ganhem dinheiro como empreendedoras da internet”, diz a coordenadora Carol

Garcia à Veja. Dentre as disciplinas previstas estão os temas: styling e estética e

felicidade (VEJA, 2016).

Os exemplos até aqui comentados são a expressão das diversas formas com

que as tecnologias digitais de comunicação e informação, conectadas às redes

sociais virtuais, em conjunto com os princípios do espetáculo midiático, viabilizaram

o avanço do novo regime de poder que Deleuze, na década de 1990, antes mesmo

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da criação da Word Wide Web, intitulou como as novas formas de controle e ao que

os “jovens seriam levados a servir”.

Dado que, o neocapitalismo, segundo os conceitos de Costa (2011, p. 6),

significa “a convergência dos conceitos de capital humano e capital social”, em que a

Internet é usada como ferramenta de comunicação e, portanto, se configura como

“meio ideal de investimento, para cada indivíduo, simultaneamente de seu capital

humano e como possibilidade de expansão de suas redes sociais” (COSTA, 2011, p.

6).

Os jovens, inseridos na dinâmica da cibercultura e impulsionados pelos

imperativos desse capitalismo atual, parecem buscar cada vez mais tal esquema. E

anseiam ser descobertos pelas empresas para usufruir de reconhecimento público e

se tornarem famosos. Os mesmos imperativos que “converteu você, eu e todos nós

nas personalidades do momento” (SIBILIA, 2016, p. 47).

3.2 – Confissão e subjetividade

Para responder às demandas socioculturais e mercadológicas, observamos

que os indivíduos usam de práticas comunicacionais que poderíamos denominar

como “testemunhais” com palavras e imagens na qualidade de mecanismo de

autenticação pública. E um dos recursos que tem se sobressaído para reiterar o

discurso testemunhal para autenticar tais personalidades, são as fotos de “antes e

depois”, publicadas nos blogs, nas redes sociais digitas, nas mídias de comunicação

e informação atuais ou tradicionais, o que elegemos como objeto de estudo nesta

dissertação pela sua complexidade e com a intenção de delinear certas tendências

que se formam em nossa sociedade e sua expansão pelos meios de comunicação,

construídos em cima de certos valores, desejos, ideais, afetos e crenças que

penetram nos imaginários dos indivíduos.

Podemos afirmar que a produção de imagem de uma condição de “um antes

e um depois” é resultado da emergência de um novo modelo antropológico social,

decorrente do processo da construção das subjetividades a partir das forças

contemporâneas do biopoder e dos imperativos do capitalismo atual, tal qual o

sujeito é concebido segundo os eixos do corpo e é sustentado pelos valores de

autoestima e autonomia. De acordo com Morin:

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O sujeito emerge ao mesmo tempo que o mundo. Ele emerge desde o ponto de partida sistêmico e cibernético, lá onde certo número de traços próprios aos sujeitos humanos (finalidade, programa, comunicação, etc.) são incluídos no objeto máquina. Ele emerge, sobretudo, a partir da auto-organização, onde autonomia, individualidade, complexidade, incerteza, ambiguidade tornam-se carácteres próprios ao objeto. Onde, sobretudo, o termo “auto” traz em si a raiz da subjetividade. (MORIN, 2005, p. 38)

Diante disso, observamos na complexidade do fenômeno que há uma espécie

de intimação para que a subjetividade se apresente por meio das narrativas

imagéticas do antes e depois. Partindo da premissa de que a autoestima está

vinculada à condição do indivíduo de ser perdedor ou vencedor, para atingir o pódio

estético atual dos corpos modulados, conforme as forças dos biopoderes, o sujeito

precisa superar sua condição atual e autenticá-la publicamente. Ou seja, o sujeito se

vê compelido voluntariamente a se expor midiaticamente como protagonista de uma

história de superação na qual a conquista da autoestima está ao lado do

reconhecimento dele como modelo social de "herói de uma história". Dessa forma,

vemos que os processos lógicos das redes de comunicação na internet atuam na

propagação dessas histórias de um sujeito para outro; de uma intimação pessoal

para uma intimação social em uma espécie de ação retroativa que compõe um

sistema complexo das imagens do antes e depois.

A definição de complexidade está relacionada com os conceitos de Edgar

Morin (2005, p. 35), que nos fala que, à primeira vista, parece tratar de “um

fenômeno quantitativo, a extrema quantidade de interações e de interferências entre

um número muito grande de unidades”. De fato, todo sistema no qual está inserido

nosso objeto de pesquisa, pode-se dizer que tem propriedade de auto-organização,

o ambiente do ciberespaço, mesmo o mais simples, como uma comunidade virtual,

“combina um número muito grande de unidades capaz de chegar à ordem de

bilhões”, dentro do nosso ambiente, abordamos bilhões de perfis nas redes sociais

digitais, inúmeros blogs, aos mais diversos tipos de narrativas e incontáveis

publicações de imagens.

Contudo, diz o autor “a complexidade não compreende apenas quantidades

de unidade e interações” que deixa impossibilitada a tarefa de contagem: “ela

compreende também incertezas, indeterminações, fenômenos aleatórios” (MORIN,

2005, p. 35). Nesses moldes, em acordo com Pelbart (2000, p.14), observamos que

onde a tecnologia é o meio ambiente, podemos admitir a emergência de novos tipos

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de subjetividades, pois o sujeito nesse contexto aparece em um processo de

individuação incessante e inacabado, que realimenta constantemente seu campo de

possíveis, uma subjetividade cuja extensão é igual ao número de indeterminações e

às metamorfoses daí advindas.

Dessa forma, “a complexidade coincide com uma parte de incerteza”, seja

provinda dos limites de nosso entendimento, das novas potências, das novas formas

de afetar, seja pela manifestação dos fenômenos midiáticos. Entretanto, “a

complexidade não se reduz à incerteza, é a incerteza no seio de sistemas ricamente

organizados”. “Ela diz respeito a sistemas semialeatórios cuja ordem é inseparável

dos acasos que os concernem” (MORIN, 2005, p. 35). Portanto, diz Morin (2005), “a

complexidade se encontra em uma mistura profunda de ordem e de desordem,

contrário da ordem/desordem estatística”.

Após a análise reflexiva sobre como a lógica da complexidade se relaciona

com os aspectos da realidade do nosso fenômeno, é possível percebermos um

deslocamento daquela subjetividade “interiorizada” em direção a novas formas de

autoconstrução. Assim, para detectar como a complexidade das tecnologias de

produção de imagem se revela, recorreremos a uma cartografia de como essas

subjetividades se apresentam por meio das narrativas imagéticas do antes e depois.

Para compreender esse mecanismo de expressão, primeiramente partimos da

genealogia traçada por Michel Foucault (2015) em seu livro A História da

sexualidade. No primeiro volume da série A vontade de saber, o autor nega a

“hipótese repressiva” que diferentemente do que se enxerga sobre os últimos

séculos da sociedade ocidental, a sexualidade não foi reprimida com o advento do

capitalismo, o qual se acredita ter se tornado um tabu nesse período.

Paradoxalmente, o sexo foi incitado a se confessar, a se manifestar – processo que

se iniciou em meados do século XVI nas escolas, nos hospitais, na família, no

consultório médico e nos tratados científicos, e que se intensificou a partir do século

XIX com o nascimento das ciências humanas, sobretudo, da psicanálise. Esse

conjunto de instituições supostamente repressivo falava e incitava a falar de sexo, as

confissões, nesse sentido, tornaram-se fundamentais como produção de verdade:

O importante nessa história não está no fato de terem tapado os próprios olhos ou os ouvidos, ou enganado a si mesmos; é, primeiro, que tenha sido construído em torno do sexo e a propósito dele um imenso aparelho para produzir a verdade, mesmo que para mascará-

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la no último momento. O importante é que o sexo não tenha sido somente objeto de sensação e de prazer, de lei ou interdição, mas também de verdade e falsidade, que a verdade do sexo tenha se tornado essencial, útil ou perigosa, preciosa ou temida; em suma, que o sexo tenha sido construído em objeto de verdade”. (FOUCAULT, 2015, p. 63)

Assim, os sujeitos ao invés de calarem-se e silenciar tal assunto, falavam

quando menos queria que se falasse. Foi assim que se constituiu “uma sociedade

singularmente confessada”, dirigida pelos pudores das relações disciplinares de

poder, também chamado por Foucault como “animais confidentes” (FOUCAULT,

2015, p. 66-67).

Outrora, durante muito tempo, o sujeito era autenticado pela referência dos

outros e pelos seus vínculos sociais ou familiares; posteriormente, passou a ser

autenticado pelo discurso obrigatório ou não de verdade sobre si próprio, assim, “a

confissão da verdade se inscreveu no cerne dos procedimentos de individualização

pelo poder”. Além disso, tal prática se incorporou tão profundamente na vida

cotidiana, “que não a percebemos mais como efeito de um poder que nos coage”

(FOUCAULT, 2015. p. 66-67).

Diante disso, seria pertinente a reflexão: quais seriam os desdobramentos

atuais dessa prática da confissão? Como nos dias de hoje se apresenta essa

sujeição ao “confessionário”?

Segundo Foucault (2015, p. 69), a confissão é uma prática onde o sujeito que

fala é o mesmo que o sujeito do enunciado, nesse sentido, se desenvolve também

uma relação de poder, pois para se confessar se faz necessário a presença ao

menos virtual de um outro, que não é simplesmente um interlocutor, mas aquele que

requer a confissão, de modo que a impõe, avalia-a e pode intervir com julgamento,

punição, perdão, consolação ou reconciliação. Trata-se de uma prática onde a

verdade é autenticada pelos obstáculos e resistências que teve de superar para

poder manifestar-se. Em suma, um ritual onde a enunciação de si,

independentemente de suas consequências, produz no enunciador modificações tais

como: trazendo-o a inocência, a remição, a purificação, o perdão de suas faltas, a

libertação e a promessa de salvação.

Desde a Idade Média, a sociedade tem se apropriado do ritual da confissão

para produzir verdades sobre os sujeitos. Na justiça, na medicina, na pedagogia, nas

relações familiares e afetivas, a confissão se difundiu por toda a parte. Do protocolo

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público mais formal a mais íntima relação, conforme constatou Foucault: “tanto a

ternura mais desarmada quanto os mais sangrentos poderes têm necessidade de

confissão” (FOUCAULT, 2015, p. 65-66). Ainda hoje, diz Sibilia (2016, p.107), esses

protocolos se encontram tão enraizados em nossos hábitos e costumes, que nem os

percebemos como manifestações de um dispositivo de poder. Todavia, trata-se de

uma prática endossada como dispositivo de poder e sujeição sobre os indivíduos,

propensos à sua constituição como “sujeitos compatíveis com um determinado

projeto histórico de sociedade”.

A técnica da confissão foi sendo transferida dos âmbitos eclesiásticos e

jurídicos para penetrar também os campos médicos e pedagógicos; e agora, ela se

apresenta em forma digital, nas telas midiáticas, fala Sibilia (2016, p.107). Diante

dessa trajetória histórica, podemos ilustrar como atualmente se apresenta essa

forma de sujeição que leva milhares de indivíduos a despejar diariamente uma

infinidade de testemunhos, ou seja, confissões públicas em primeira pessoa, através

das redes sociais como o Facebook que fomenta o discurso testemunhal

perguntando aos usuários “No que você está pensando?”, oferecendo a escolha de

dar o testemunho entre um sentimento ou atividade; ou o Twitter que incita a relatar

“O que está acontecendo?” naquele momento, como podemos averiguar a seguir

nas imagens das telas de ambas as redes:

Figura 23: Página Inicial Facebook

Fonte: <https://www.facebook.com>.

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Figura 24: Página inicial Twitter

Fonte: <https://twitter.com/>.

Diante disso, vemos que os processos lógicos das redes de comunicação na

internet, sobretudo, as redes sociais, apresentam-se como plataformas para exibição

e confissão pública voluntária, no qual é possível abrir as “dobras” da intimidade.

Portanto, acreditamos que dentro da complexidade das tecnologias, as redes sociais

digitais são os dispositivos de poder que intimam a produção da espetacularização

do indivíduo.

Diante desse contexto, corroboramos com a ideia de Machado (2015), ao

dizer que, através das mídias online, quando damos o testemunho, confessamos

publicamente nossos desejos e tentamos seduzir o público, estamos compondo uma

forma de produção da verdade individual e sua autenticação pública, e que tal

prática se estabelece pelos discursivos verbais e pela produção de imagens do

corpo. Para isso, a confissão se vale da memória e da reconstituição das

experiências, seja ao referir-se ao passado distante ou imediato, o que situa o relato

verbal e visual junto à necessidade de demonstrarmos “o que somos, o que

fazemos, o que recordamos e o que foi esquecido” (FOUCAULT, 2013, p. 69).

Durante nossa pesquisa, percebemos que a produção de imagens de um

antes e um depois manifesta-se principalmente em blogs/vlogs, comunidades e

páginas pessoais nas redes sociais como Facebook, Instagram e Youtube que

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abordam temas, sobretudo relacionados à saúde, a um estilo de vida

saudável/fitness.

Nosso objeto está inserido nas mídias sociais e é referente a usuários

comuns, em comunidades virtuais que tratam dos temas de saúde/fitness ou beleza,

também está relacionado a pessoas consideradas influencers digitais, ou seja, que

conquistaram certa notoriedade na internet pelo número de seguidores. Não

consideramos mídias pertencentes a empresas, celebridades, modelos famosas,

nem a pessoas relacionadas explicitamente a uma marca, ou que trabalham com a

prestação de serviço ou produtos nesses campos, que usam a propaganda

testemunhal como estratégia de comprovação de resultado de seu negócio.

Dentro do contexto das mídias que expõem os discursos e imagens

relacionados a um estilo de vida saudável e fitness, observamos que na qualidade

de mecanismo de autenticação pública, o testemunho do indivíduo manifesta

sentimentos, muitas vezes, de vergonha e de baixa autoestima, revelando as

frustrações e dificuldades que tinham relacionadas aos hábitos alimentares e a

prática de atividades físicas, e prosseguem com o discurso de superação, força de

vontade, de motivação e amor próprio.

Tais relatos são ilustrados com a exposição comparativa de imagens de um

antes e um depois: de um lado, a fotografia do corpo antes considerado gordo, fora

de forma ou doente, do outro lado, uma fotografia que apresenta o mesmo corpo,

porémm com uma nova estética, construído por meio de uma dieta baseada em

alimentos saudáveis e exercícios físicos. Como podemos averiguar nas amostras

selecionadas na rede social Instagram, seguindo as categorias de: webcelebridade,

influencier, comunidade e pessoa normal – do cotidiano.

Abaixom podemos observar o testemunho de Gabriela Pugliesi, considerada

uma webcelebridade, a qual possui 3,5 milhões de seguidores. Na publicação de 13

de abril de 2016, ela dá o testemunho que foi “uma criança gordinha até uns 14

anos. MUITO preguiçosa e só comia besteira”, e que se frustrava pelas dificuldades

de seguir dietas, tendo sofrido com o “efeito sanfona”, pois sempre voltava a comer

“tudo que via pela frente”.

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Figura 25: Perfil e foto “antes e depois” Gabriela Pugliesi em seu Instagram

Fonte: <https://goo.gl/Jd3d57>.

Fonte: <https://goo.gl/DFUIs5>.

A seguir, podemos observar o perfil da jovem a influencer Beatriz Romano,

com 60,7 mil seguidores, “patrocinada” pela marca NIKE, como é possível ver ao

longo de suas publicações. Beatriz dá o testemunho de que em virtude dos valores

de saúde e bem-estar é preciso “deixar algumas coisas para trás”. E que olhando

sua foto de antes como inspiração, promove uma mensagem de motivação dizendo

que “todo mundo pode chegar ao corpo que quiser, basta ter muita dedicação,

comprometimento e foco”.

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Figura 26: Perfil e fotos Beatriz Romano em seu Instagram

Fonte: <https://goo.gl/r2JziM>.

Fonte: <https://goo.gl/4KK89y>. Fonte: <https://goo.gl/U72RwE>.

Seguindo essa linha, nos deparamos com o perfil da jovem Lorena D’Aguila,

de apenas 17 anos, com 36,4mil seguidores. Observamos que no seu perfil ela

declara aceitar fazer parcerias com empresas “Parcerias no direct com site”. Na sua

publicação de “antes e depois”, dá o testemunho de que sempre foi gordinha e que

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sua fraqueza era por doces, e que acabou engordando, mas, devido ao falecimento

de sua mãe, pois na época ela e seu pai saiam muito para comer fora. Também diz

que se sentia feia e com baixa autoestima, mas que resolveu fazer uma mudança de

vida e de seus hábitos para se preparar para sua festa de 15 anos.

Figura 67: Perfil e Foto “antes e depois” Lorena D’Aguila em seu Instagram

Fonte: <https://goo.gl/XVqM1m>.

Fonte: <https://goo.gl/fn09PA>.

Concordamos com Machado (2014), que em tais espaços midiáticos, os

indivíduos revelam ao público o que acreditam constituí-los como autênticos, ou

seja, manifestam peculiaridades de sua persona que, para ser legitimadas na arena

pública, devem confirmar socialmente sua autenticidade, este movimento pode

conduzir à transformação do “eu” virtual em mercadoria e, como vimos

anteriormente, à constituição de web-celebridades, e também como diz Sibilia

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(2015), promover gestos performáticos na tentativa de se tornar visível para poder

ser “alguém”.

Observando os poucos exemplos acima, podemos dizer que o perfil e os

testemunhos dessas garotas ilustram a complexa dinâmica mercadológica das redes

sociais digitais, talvez a configuração que Gilles Deleuze (2010) esboçou que

estranhamente os jovens pediriam para serem “motivados”, sem saber a que seriam

levados a servir. Ou será de fato, que saberiam?

Nesta direção, as práticas destas blogueiras corroboram as observações de

Bauman (2008, p. 9) acerca do “pendor para a confissão pública” que, nas mídias

online, denota que tais espaços de sociabilidade tornaram-se um mercado das

subjetividades, no qual indivíduos são, ao mesmo tempo, os promotores e as

mercadorias que promovem (2008, p. 13). Deste ângulo, visualizamos a

subjetividade como produto midiático que aponta para o processo de “comprar e

vender os símbolos empregados na construção da identidade — a expressão

supostamente pública do self” (2008, p. 23) no cenário contemporâneo.

Adicionalmente, durante nossa investigação, encontramos dentro das redes

sociais inúmeras comunidades voltadas para a troca de experiências, para o

compartilhamento de testemunhos e, sobretudo, para o reconhecimento social de

suas conquistas e superações do corpo. Como podemos observar a seguir nesse

perfil comunitário do Instagram, com 27,2 mil seguidores e 1.352 publicações de

diferentes pessoas:

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Figura 28: Perfil comunitário no Instagram de fotos de “antes e depois”

Fonte: <https://goo.gl/36nj5z>.

Diante desse contexto, vemos que a exibição do “eu” virtual, através da

prática do discurso confessional ou da exibição de imagens, envolve neces-

sariamente a admiração, a avaliação e o julgamento do público, ou seja, o conteúdo

dirige-se a uma audiência, da qual se espera reconhecimento e legitimação. Deseja-

se um vasto angariamento de likes, pois, “os adeptos das mídias sociais costumam

pensar que seu presunçoso eu tem o direito de possuir uma audiência, e a ela se

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dirigem como autores, narradores e protagonistas de todos esses relatos, fotos e

vídeos autobiográficos” (SIBILIA, 2016, p.109).

Por outro lado, foi possível identificarmos outras formas de exibição da

subjetividade a partir de nosso fenômeno. Por exemplo, como pudemos identificar

no perfil da norte-americana Morgan Mikenas, que possui 78,8 mil seguidores no

Instagram e que também publica fotos fazendo exercícios, de comidas saudáveis e

principalmente exibindo um corpo construído aos “padrões” fitness. Porém,

compartilha imagens onde mostra os pelos do corpo, que deixou sem depilar há um

ano. De acordo com Morgan, “os padrões de beleza feminina não

são estigmatizados somente sobre peso e medidas, mas também sobre os pelos do

corpo”.

Em seu canal no YouTube, publicou um vídeo explicando os motivos pelos

quais está há um ano sem se depilar, a garota diz que não quer que todo mundo

deixe de se depilar e que se trata de uma opção. “Só quero inspirar outras para que

façam o que acreditam que é mais cômodo para elas”. Morgan confessa que deixou

de fazê-lo, principalmente, pelo tempo que perdia, mas também pela sensação que

lhe causava. “Quando me depilo tudo espeta, pinica e é incômodo”, afirma. E

acrescenta que “se eu tivesse deixado de me depilar no passado, aposto que teria

me sentido suja e com vergonha”; “Mas, nunca mais: adoro meu cabelo”. Adoro os

pelos do meu corpo. “Adoro ser a versão mais natural e mais humana de mim

mesma” (MIKENAS, 2017).

Podemos dizer que se trata de uma versão aleatória dentro da complexidade

de nosso fenômeno. Porém, em acordo com Pelbart (2000, p. 19), talvez, “não seria

uma maneira, entre muitíssimas outras, de evitar que a subjetividade seja moldada à

imagem e semelhança do capital, [...], de suas estereotipias seriais, de suas

capturas, grudes e lamúrias”? Uma forma de resistência, o que teria a ver com o que

Chaim Katz (apud PELBART, 2000, p.19), chamou de “a solidão positiva”? “A

solidão positiva, afirmativa, consistiria em uma maneira de resistir a um

socialitarismo despótico, de desafiar a tirania das trocas produtivas e da circulação

social”. Como podemos observar:

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Figura 29: Perfil e fotos Morgan Mikenas em seu Instagram

Fonte: <https://goo.gl/BABLga>. Fonte: <https://goo.gl/XhkJqy>. Fonte: <https://goo.gl/36nj5z>.

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A partir desse caso, corroboramos o pensamento de Pelbart (2000), quando

diz que possivelmente:

Ai se esboça, às vezes, uma espécie de comunidade dos desiguais, máquinas celibatárias, subjetividades parciais, onde o excesso e a dispersão inumana não se apagam por uma reinscrição social obrigatória. É algo difuso, ás vezes se encontra os loucos, ás vezes num personagem de Melville, aquele escrevente que incompreensivelmente responde a cada a cada instrução de seu patrão com a fórmula I would prefer no to, eu preferiria não (PELBART, 2000, p.20).

Para dar continuidade a essa questão, destacamos, sobretudo, um outro tipo

de construção de subjetividade e confissão pública nos meios de comunicação

digital, ou como diz Pelbart (2000, p. 20), “um desligamento que reclama, talvez,

outros tipos de ligação, de composição, de solidariedade, [...], outras maneiras de

associar-se, agenciar-se e de subjetivar-se, longe dos assujeitamentos instituídos”.

Selecionamos durante nossa investigação o perfil de Priscila Sanches, com 13,3 mil

seguidores em sua conta no Instagram dedicada a dar dicas para um estilo de vida

saudável e também administradora do grupo no Facebook: “Desafio saúde

#desafiodaPri #DesafioBrasileirasFit” (SANCHES, 2017). Entretanto, Priscila se

considera apenas “uma pessoa normal tentando ser saudável”.

Figura 30: Perfil Instagram Priscila Sanches

Fonte: <https://goo.gl/ZEspVj>.

A autora do perfil também segue a linha de testemunho em sua produção

imagética de fotos de antes e depois, expondo sentimentos de frustração que teve

durante o processo de mudança, quais são suas fraquezas e quais erros cometeu, e

confessa como sua autoestima e autoconfiança melhoraram com a construção de

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um novo corpo e a mudança de hábitos. Ao mesmo tempo que usa a página para se

auto motivar, direciona o discurso para seus seguidores para motivá-los.

Figura 31: Fotos “antes e depois” Priscila Sanches no Instagram

Fonte: <https://goo.gl/8fVGu0>.

Fonte: <https://goo.gl/L7Otda>.

Além disso, em seu discurso também conta seus aprendizados, que ao

contrário da máxima “no pain no gain”, ser dor sem ganhos, o qual foi possível

encontrar em uma busca livre no Instagram, no dia 04 de junho de 2017, pela

hashtag #nopainnogain, cerca de 12.397.492 publicações públicas, informando “que

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não há nada de errado em ser gordinha se não afetar a minha saúde e que a nossa

aparência deveria ser o fator menos importante nessa jornada, porque se a gente

respeitar a própria saúde FÍSICA E MENTAL o resultado vem sem sofrimento!”

Figura 32: Busca pela tag #nopainnogain no Instagram

Fonte: <www.instagram.com>.

Também achamos importante destacar que Sanches costuma revelar em sua

página pessoal os “truques” mais usuais para aparecer mais magra, mais atraente

na internet. Com o intuito de ajudar outras pessoas, usuários das redes sociais a

não se enganarem com a hiperexposição de imagens de “corpos perfeitos” e

amarem seus próprios corpos, denuncia as estratégias midiáticas dando o

testemunho que “ambas as fotos foram tiradas no mesmo dia e na mesma hora. A

diferença é que em uma delas eu murchei e forcei a minha barriga e na outra deixei

aparecer aquela barriguinha saliente e NORMAL de quando a gnt senta e que eu

vejo 99.9% do tempo. Não se deixe enganar, ngm tem um corpo perfeito, mas todo

mundo pode amar a perfeição do próprio corpo e a diversidade que existe entre uma

pessoa e outra”, como é possível vermos a seguir:

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Figura 33: Fotos Priscila Sanches mostrando “truque”

Fonte: <https://goo.gl/6XPzok>.

Ainda nesses moldes, para elucidar outra faceta desse fenômeno,

selecionamos o perfil de Mirian Bottan, que com 96,8mil seguidores apresenta um

outro tipo de “antes e depois”, e se intitula como “Uma mina dando um pau na

bulimia “ pois, através de sua página pessoal no Instagram e em seu canal no

YouTube, exibe suas fotografias de “antes e depois” e dá o testemunho sobre os

transtornos alimentares que sofreu durante quase 15 anos, e quais foram as

consequências em seu corpo pela bulimia e pela anorexia a fim de ajudar outras

pessoas.

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Figura 74: Perfil e foto “antes e depois” Miriam Bottan

Fonte: <https://goo.gl/5vzwv6>.

Fonte: <https://goo.gl/ryZXXv>.

Mirian, ao longo de suas postagens, dá seu testemunho público dizendo que

para conquistar seu objetivo de emagrecer, vomitava, tomava laxantes e diuréticos e

ficava sem comer pelo maior tempo que conseguisse, relata que chegou a pesar por

volta de 41 quilos, mas como consequência, também tinha perdido quase metade do

cabelo, o rosto vivia inchado pelas glândulas de saliva inflamadas, unhas e pele

destruídas, sua menstruação parou, e na época o corpo regrediu seu

desenvolvimento, ficando infantilizado, além de ter perdido um ano na escola, pois

não conseguia ter foco pela falta de alimento e que não tinha vontade de viajar,

passear ou sair com os meus amigos, só queria ficar em casa sozinha comendo e

vomitando. Com esse testemunho e a exibição de fotos antes na condição de

pessoa doente, que sofria de bulimia e anorexia, e depois com o ganho de peso e

saúde, a jovem levanta a questão: um corpo mais magro significa um corpo mais

bonito e mais feliz?

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Assim como Priscila, Mirian também denuncia os truques imagéticos de

corpos construídos com programas de edição, com poses ou artefatos para parecer

com uma silhueta mais fina, alertando seus seguidores sobre o ideal de perfeição

que tanto a mídia tradicional quanto nos perfis que circulam na internet, usando a

imagem de seu próprio corpo na imagem de fotos de “antes e depois”. Como

podemos observar nas fotos a seguir junto com o discurso: “Lembre-se disso

quando você estiver rolando a timeline e aparecer aquela foto do corpo perfeito que

faz você se sentir mal com o seu próprio corpo: muitas vezes é um conjunto de

truques (posa, contrai, esconde o que sobra, corta no lugar certo, mete filtro) e existe

uma outra versão mais real daquela "perfeição".

Figura 35: Foto Mirian Bottan mostrando “truque”

Fonte: <https://goo.gl/5BJVM9>.

Em outras postagens, ela rebate os comentários de dúvidas e de deboches

do tipo "você não sabe o que é ser gorda de verdade" e "duvido que vc realmente

seja feliz assim", dizendo: “Eu não sei mesmo o que é ser obesa de verdade numa

sociedade como a nossa. Mas eu só não sei porque sei bem o que é vomitar dentro

de um balde escondida no quarto, no mato, numa sacola plástica, vomitar sangue,

correr o risco de o meu coração parar a qualquer momento. Minha vida alternava

entre engolir e botar pra fora uma montanha de comida ou fechar a boca e sentir o

estômago roncar até quase desmaiar. Até me cortava pra provar que era eu que

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mandava. Aquele corpo tinha que me obedecer, ele ia ficar magro.” Como podemos

verificar a seguir:

Figura 36: Foto “antes e depois” Miriam Bottam

Fonte: <https://goo.gl/rkJIYS>.

E declara: “Então o meu corpo, que pra uns é absurdo de desleixado e pra

outros é muito pouco pra reclamar, está apenas sendo perdoado e cuidado com

amor. Está livre da obrigação de ser perfeito e é isso que quero passar aqui. Me

alimento de forma saudável na maior parte do tempo, não me privo do que sinto

vontade e desisti de fazer exercício só pra moldar minha forma [...]”

Diante desse quadro, em acordo com Pelbart (2000), colocamos a reflexão:

como atentar para os indícios de que por trás de uma imagem, que é um pouco do

total que nos concebe como sujeitos, manifestem-se subjetividades extemporâneas

que experimentam futuros ainda incertos, que reatam com virtualidades ainda

inexistentes, ensejando pelas mais diversas singularizações? Uma vez que, quem é

cada um de nós senão uma combinatória de experiências, de informações, de

leituras, de imaginação? “Cada vida é uma enciclopédia, uma biblioteca, uma

amostragem de estilos, onde tudo pode ser continuamente remexido e reordenado”,

diz Pelbart citando Calvino (2000, p. 20).

Vimos que o testemunho nos meios de comunicação digitais pode ser

direcionado à busca pelo corpo “perfeito”, magro e musculoso, ou a exibição de um

corpo “imperfeito”, de verdade, real. Em ambos os casos é confessada a verdade

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que se acredita ser capaz de autenticar publicamente a subjetividade, rompendo “os

lacres da reminiscência ou do esquecimento” (FOUCAULT, 2013, p. 70). E nos dois

casos, há o desejo de sedução do público, seja pelo progresso da construção do

corpo “perfeito”, seja pela exibição das “imperfeições” do corpo. Ao passo que se der

o testemunho, acredita-se que se confessa publicamente uma suposta verdade

individual sobre como mudar a condição do corpo e o desejo em busca da perfeição

ou como aceita-lo e respeitá-lo, como signo de autenticidade. Essa revelação da

verdade constitui, talvez, uma nova invenção de prazer: “o prazer da verdade do

prazer, prazer de sabê-la, exibi-la, descobri-la, de fascinar-se ao vê-la, dizê-la,

cativar e capturar os outros através dela” (FOUCAULT, 2013, p. 80).

Nos primeiros exemplos, o prazer da confissão pública se dá principalmente

pela conquista do modelo do corpo “perfeito”, pode-se até passar pelo relato das

faltas e dificuldades para atingir o objetivo, e dizer que a “luta” é em favor dos

valores de saúde, mas o que importa é a superação estética daquele corpo. Já no

segundo, o prazer da confissão pública se dá pela transgressão das regras “da boa

forma”, na resistência ao modelo imposto pelo capital e aceitação do próprio corpo e

de suas falhas. Porém, em ambos se busca o reconhecimento social através do

testemunho ao público, seja provocando fascínio ou rejeição.

Assim, podemos dizer que as confissões públicas e imagéticas continuam a

assumir “funções [...] psicológicas, de melhor conhecimento de si [...] de

esclarecimento de suas próprias tendências” (FOUCAULT, 2003, p. 237). De modo

que, em acordo com Machado (2014), o esclarecimento sobre como o indivíduo se

constitui e autentica sua subjetividade já não se dá como outrora, sob a aprovação

do padre ou médico, ou pela verificação em segredo das narrativas dos diários

íntimos. As práticas de exibição do ‘eu’ virtual necessariamente contêm a apreciação

e julgamento do público, ou seja, “o conteúdo dirige-se a uma audiência, da qual

espera-se reconhecimento e legitimação”. Como diz Sibilia:

O aspecto corporal assume um valor fundamental: (...) o corpo se torna uma espécie de objeto de design que deve ser constantemente cuidado e renovado. É preciso exibir na pele a personalidade de cada um. As telas – seja do computador, televisão, do celular, do tablet, da câmera de fotos ou da mídia que for – expandem o campo de visualidade, esse espaço propício à projeção de selfies onde cada um deve se performar ao se construir como uma subjetividade alterdirigida (SIBILIA, 2016, p.151).

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3.3 A narrativa heroica nas mídias digitais.

Foucault (2015, p.67), ao analisar como a confissão foi se difundindo e seus

efeitos na sociedade, salientou a metamorfose na literatura que em lugar “de um

prazer de contar e ouvir, dantes centrado na narrativa heroica ou maravilhosa das

‘provas’ de bravura ou de santidade” passou a preferir os relatos de “uma literatura

ordenada em função da tarefa infinita de buscar, no fundo de si mesmo, entre as

palavras, uma verdade”. Nessa perspectiva, Paula Sibilia nos fala que já não se trata

apenas da narrativa de fatos e atos. No lugar disso, se constrói uma complexa rede

de “pensamentos, emoções e sentimentos que envolvem as peripécias do herói do

romance” fazendo nascer uma narrativa que “além de descrever o que se fez

pretende, sobretudo, exprimir quem se é” (SIBILIA, 2016, p.137).

Apesar do contraste presente entre as narrativas dos blogs pessoais, ambos

enfatizam o aspecto da superação. As narrativas giram em torno da construção da

boa imagem de si, que inclui um saber sobre o corpo e um conhecimento estético

acerca da composição da autoimagem. As confissões públicas, ou melhor, o

testemunho em tela, tanto da busca pelo ideal de corpo “perfeito” quanto pela

aceitação do próprio corpo trazem a superfície um tipo de autenticidade subjetiva

constituída a partir da imagem e do relato sobre a conquista de autoestima, ambos

são celebrados como um tipo de “herói do cotidiano”, com a qual um grande número

de pessoas se identifica e se torna seguidor.

Tal enredo dialoga com a teoria da jornada do herói, ou o chamado monomito,

de Joseph Campbell, que foi apresentada em um de seus trabalhos mais famosos, o

clássico: “O herói de mil faces”.

Tomaremos por mito uma narrativa organizada em arquétipos e símbolos,

responsável por fundamentar as atividades humanas e ser uma das bases da nossa

cultura pela qual diferentes áreas do conhecimento emergem; narrativa simbólica

responsável pelos diferentes produtos da fantasia humana e que está sujeita à

perenidade, derivação e desgaste2 (SILVA, 2017).

Campbell, em sua obra, compara personagens de diferentes épocas, culturas,

2 Essa interpretação nos foi demonstrada em conversa com Thiago T. R. Silva, com base na síntese de diversos autores sobre o mito herói que fez, no dia 05 de junho de 2017.; T. T. R. Silva é autor da dissertação O imaginário do herói na triologia Mass Effect: Estudo sobre o mito e o imaginário no processo criativo do herói em jogos digitais, em que se dedicou a pesquisar o mito do herói.

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crenças e mitologias tais como Jesus Cristo, Moisés, Buda e Maomé, no qual ele

apresenta o que há em comum na narrativa de cada um desses personagens. E que

são usadas para mostrar os três momentos da jornada do herói, que podem ser

subdivididos em fases ao longo do desenvolvimento da jornada. Os três momentos

típicos do monomito são: a partida, a iniciação e o retorno.

A jornada do herói representa um ciclo de uma ida e volta, o tema básico é

abandonar uma condição, encontrar a fonte de vida e volta em uma condição

diferente, mais rica ou mais madura, a qual estabelece uma nova consciência em

função do que descobriu e faz discípulos.

O herói, afirma Campbell (JOSEPH, 1988) é alguém que deu sua vida por

algo maior ou diferente dele mesmo. Alguém que realizou uma coisa excepcional

que ultrapassa a esfera comum da experiência. Há dois tipos de proeza: uma é a

ação física, o herói que consegue realizar um ato de guerra ou um ato físico de

heroísmo, salvar uma vida, por exemplo, sacrificar-se por outra pessoa. E o outro

tipo é o herói espiritual que aprende uma forma de experimentar um nível

supranormal da vida espiritual humana e depois volta e comunica aos outros. Em

nossas análises, observamos a experiência da conquista física do corpo nos moldes

estéticos contemporâneos e a apreensão do valor de sua interioridade acima do

corpo físico, e pelos meios de comunicação digitais o testemunho de tais proezas.

Em acordo com a interpretação de Silva (2015), sobre os estudos da mitologia

de Campbell, o mito vem sendo a fonte responsável por produzir símbolos que

elevam o espírito humano em uma jornada ascensional, uma fonte para motivações

e de conduta para as atividades humanas, pelas quais se desenvolveram as bases

da cultura e do pensamento e forneceram o meio para o desenvolvimento da

potência do espírito e da vida humana. Uma vez que, para Campbell, “as religiões,

filosofias, artes, formas sociais do homem primitivo e histórico, descobertas

fundamentais da ciência e da tecnologia e os próprios sonhos que nos povoam o

sono surgem do círculo básico e mágico do mito” (CAMPBELL, 1991, p.15).

O mito é responsável por fornecer os símbolos que inspiram os mais

profundos centros criativos e se manifestam na mais despretensiosa forma de

conduta, como afirma Campbell (1992, p.15) “esses símbolos são produções

espontâneas da psique e cada um deles traz em si, intacto, o poder criador de sua

fonte”, tal como vimos nas criações imagéticas e discursivas em forma de

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testemunho nas mídias digitais sobre os relatos de fraquezas e superação da

condição de um antes e de um depois.

Em uma entrevista concedida a Bill Moyers para um documentário sobre usas

obras (CAMPBELL, 1988), o autor foi questionado se mesmo não sendo heróis no

sentido grandioso de redimir a sociedade teríamos que empreender nessa jornada

espiritual, psicológica dentro de nós mesmos. Em resposta, Joseph Campbell

afirmou que somos heróis desde que nascemos, desde que deixamos a condição de

um ser aquático que vivia no líquido amniótico do útero de nossas mães para sair ao

mundo e tornamos um mamífero que respira independentemente, assim, essa seria

a forma primaria de herói. De acordo com as palavras de Campbell, pensamos que o

ser humano tende naturalmente a se portar de forma heroica, pois, por meio do seu

trajeto vital e da forma como aceita as provações ele manifesta essa natureza

heroica no modo de agir, sentir, demonstrar e no nosso caso, se espetacularizar.

Ao ser perguntado se o heroísmo tem um objetivo moral, Campbell respondeu

que o objetivo moral é salvar um povo, uma pessoa, uma ideia. O herói se sacrifica

por algo, essa é a moralidade. De outro ponto de vista, se aquilo não devia ser feito,

é uma outra opinião. Mas não anula o heroísmo daquilo que foi feito (CAMPBELL,

1988). Diante da proposição de Campbell, pensamos que quando o sujeito se expõe

publicamente nas redes sociais, apresentando os “defeitos” do seu corpo, do corpo

real, como vimos o caso de Mirian, ele está sacrificando a reputação de sua imagem

para salvar a essência de sua subjetividade, salvar os valores da moral da

autoestima e amor próprio dele mesmo e do povo que o segue.

Ao longo do documentário, o entrevistador levanta a reflexão se às vezes não

deveríamos ter pena do herói, e não admiração, pois são tantos heróis que se

sacrificam e tantas vezes suas realizações são destruídas pela incapacidade de

seus seguidores a verem. A esse ponto Campbell afirma que todos os heróis se

sacrificam, e que isso se trata de outro tema recorrente nos mitos, o herói sai da

floresta com ouro, mas vira cinzas (JCAMPBELL, 1988). Em face dessa reflexão,

pensamos que o papel das redes de comunicação na internet vai além da simples

espetacularização, ao propagar as histórias de um sujeito para outro; o “herói social”

lança uma projeção do seu “eu” para o mundo, tal projeção é provocada de uma

intimação pessoal para uma intimação social, seja causando inspiração ou rejeição,

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causando um impacto de positivo ou negativo, mas suas ações rompem os lacres do

esquecimento.

Não há recompensa sem renúncia, sem um preço, diz Campbell. O problema

real é a perda de algo primário. Perde-se a si mesmo ao entregar-se a outro, isso já

é uma prova, uma grande transformação. E os mitos tratam disso, da transformação

da consciência. Na nossa sociedade quem está fazendo mitos heroicos?

(CAMPBELL, 1988).

Diante disso, de acordo com Campbell, todos nós agimos na nossa sociedade

em relação a um sistema, ou seja, em relação às forças do biopoder. Em uma

reflexão sobre o papel do imaginário do herói em relação às forças do sistema, o

autor é questionado sobre como conseguir usar o sistema para realizar objetivos

humanos e como mudar o sistema de forma a não servirmos a ele. A resposta não

aparece de forma simples, Campbell não crê que os signos da jornada do herói nos

ajudem a mudar o sistema, mas crê que podem nos ajudar a viver nele como ser

humano não cedendo às exigências impessoais do sistema (CAMPBELL, 1988).

Desse modo, em acordo com as reflexões de Campbell (CAMPBELL, 1988),

consideramos que o espírito criativo dentro dos processos lógicos das redes de

comunicação na internet tem sua vida própria, e age como um sistema auto-

organizador. Talvez, há algo de heroico nisso, talvez, como diz Campbell, haja um

herói dentro de cada um de nós sem sabermos. Porém, conforme o tempo passa, a

vida desperta o caráter do imaginário que buscamos construir, o qual vai sendo

descoberto na medida que vão se abrindo as dobras das subjetividades e isso

exerce certa influência.

Diante disso, concordamos com as reflexões de Pelbart (2000), em dizer que

mesmo em meio às visões mais apocalípticas sobre a atualidade, é preciso

reconhecer que “a desterritorialização violenta que o capitalismo impõe à

subjetividade” (mesmo que isso esteja implícito como sua característica) ultrapassa

infindavelmente os limites que ele próprio teria interesse em encontrar respeitados,

obrigando-o a desprender-se. Dito de outro modo, a subjetividade é

desterritorializada pelo capital, resiste às suas capturas com as mais diversas formas

e em direções mais inesperadas: em aspectos até inéditos de sociabilidade, de

resistência e de implicação com o presente.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Quando nos propomos a estudar as práticas confessionais com o uso da

produção de fotografias de “antes e depois”, disseminadas nos meios de

comunicação digitais, coube nos indagar como esse modo de visibilidade, essa

forma de “ser” e “estar” no mundo, foi constituída ao longo da história

contemporânea.

Apesar de termos delimitado um objeto em específico para a pesquisa,

durante nossa investigação, procuramos delinear certas tendências que se formam

em nossa sociedade e sua expansão pelos meios de comunicação.

Buscamos apresentar quais os valores, desejos, ideais, afetos e crenças que

penetram no imaginário dos indivíduos e como se constroem as subjetividades

contemporâneas.

Para isso, apresentamos, no primeiro capítulo dessa dissertação, um resgate

histórico das fases da sociedade de consumo, o desenvolvimento dos meios de

comunicação, da imagem na publicidade e o como se desenvolveram as forças

biopolíticas, às quais as sociedades estavam sujeitas.

Reconhecemos que nossa realidade tem sido transformada pelos avanços

das ciências, em especial pela tecnologia da informática e a inserção da internet no

nosso cotidiano. E que as convocações biopolíticas do sistema midiático não só

criam novas realidades, como alteram as formas de interação sobre o que

entendemos por comunidade e criam, além disso, novas políticas de vida e

subjetividades. As imagens da publicidade, sobretudo o recurso de produção

imagética de uma condição antes e de depois do corpo, fazem parte do processo da

criação de valores da sociedade do espetáculo e convocam o enunciatário a

participar desse discurso trazendo uma realidade mais próxima de sua vida e,

portanto, um encontro de identificação.

No segundo capítulo, procuramos explorar o que acontece dentro e fora do

ciberespaço, tentando desvendar quais as linhas de forças históricas, culturais,

econômicas, sociais e os afetos que impulsionam as configurações das

subjetividades atuais, junto a uma série de novas práticas de expressão e

comunicação, hoje, em alta, a fim de compreender os sentidos desse curioso

fenômeno: a exibição do próprio corpo a partir das fotos de “antes e depois”.

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113

Pudemos depreender a constituição de um novo modelo antropológico de

subjetividade, em que o sujeito é concebido segundo os eixos do corpo, da ação e

da intensidade. E que a performance individual e a autonomia são os pilares que

sustentam a autoestima do sujeito, as quais se convergem na promoção do seu eu e

de sua felicidade, fazendo-se necessária uma difusão ativa através dos diversos

dispositivos de comunicação, especialmente nas redes sociais digitais.

Entre essas novas modalidades de expressão em torno do eu, possível

graças ao incremento das ferramentas da internet, as quais permitem que qualquer

usuário possa publicar o que quiser para uma potencial audiência de milhões de

pessoas de todo o mundo, através dos blogs, Youtube ou em suas páginas pessoais

das redes sociais digitais, percebemos que se destacam, como eficaz instrumento

de produção de verdades e autenticidade, os testemunhos em primeira pessoa que,

de algum modo, se remetem à antiga prática da “técnica de confissão”.

Diante disso, observamos que há uma espécie de intimação para que a

subjetividade se apresente por meio das narrativas imagéticas do antes e depois.

Pois, estando a autoestima relacionada com a ideia da condição do indivíduo de ser

perdedor ou vencedor, o sujeito, ao superar a condição do próprio corpo, conforme

as forças dos biopoderes atuais, precisa autenticá-la publicamente.

Evidenciamos que a produção de imagem de uma condição de um antes e

um depois é resultado da emergência de um novo modelo antropológico social,

decorrente do processo da construção das subjetividades a partir das forças

contemporâneas do biopoder e dos imperativos do capitalismo atual.

E que o sujeito ao ver-se compelido a se expor midiaticamente, torna-se o

protagonista de uma história de superação na qual a conquista da autoestima está

ao lado do reconhecimento dele como modelo social de "herói de uma história",

Reconhecemos em nossa pesquisa que os processos lógicos das redes de

comunicação na internet atuam na propagação dessas histórias, compondo um

sistema complexo de imagens de antes e depois. E, que o espírito criativo dentro

dos processos lógicos das redes de comunicação na internet tem sua vida própria,

como sistema auto-organizador. Em acordo com a perspectiva de Campbell,

consideramos que talvez haja algo de heroico nisso, como se houvesse um herói

dentro de cada um de nós e sem que o saibamos. Mas, conforme o tempo passa, a

vida pode despertar o caráter do imaginário que buscamos construir, o qual vai

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sendo descoberto na medida em que vão se abrindo as dobras das subjetividades, e

isso exerce certa influência.

Concluímos nossa pesquisa com o entendimento de que a subjetividade

mesmo transformada, modificada e até mesmo desenraizada pelo capital, resiste às

suas capturas, exibindo as mais diversas formas de ser e em direções mais

inesperadas: em aspectos até inéditos de sociabilidade, de resistência e de

implicação com o presente. O que realizamos em nossa pesquisa foi apenas uma

parte do todo. Portanto, cabe a nós cartografar, sem cessar, as novas políticas de

subjetividade.

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