W Salles Estudo Teológico Religião

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 O estudo teológico da religião: Uma aproximação hermenêutica Walter Salles

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O estudo teolgico da religio:Uma aproximao hermenuticaWalter Salles

UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS UNISINOSReitor Marcelo Fernandes de Aquino, SJ Vice-reitor Aloysio Bohnen, SJ

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Cadernos Teologia PblicaAno III N 24 2006ISSN 1807-0590

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Cadernos Teologia PblicaA publicao dos Cadernos Teologia Pblica, sob a responsabilidade do Instituto Humanitas Unisinos IHU, quer ser uma contribuio para a relevncia pblica da teologia na universidade e na sociedade. A teologia pblica pretende articular a reflexo teolgica em dilogo com as cincias, culturas e religies de modo interdisciplinar e transdisciplinar. Busca-se, assim, a participao ativa nos debates que se desdobram na esfera pblica da sociedade. Os desafios da vida social, poltica, econmica e cultural da sociedade, hoje, especialmente, a excluso socioeconmica de imensas camadas da populao, no dilogo com as diferentes concepes de mundo e as religies, constituem o horizonte da teologia pblica. Os Cadernos de Teologia Pblica se inscrevem nesta perspectiva.

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O estudo teolgico da religio:Uma aproximao hermenutica

Walter SallesDizer algo de alguma coisa j dizer outra coisa, interpretar.

Introduo Admitir, ao menos hipoteticamente, a aproximao entre teologia e religio no contexto universitrio ter por pressuposto a possibilidade da religio ser estudada cientificamente e de a teologia possuir cientificidade comprovada para estud-la. Entretanto, esta possibilidade no to evidente quanto possa parecer. Talvez no seja nenhum exagero de minha parte afirmar inicialmente que o assunto tal como aparece formulado no ttulo deste artigo no pode se esquivar da reflexo sobre o papel da teologia na universidade do sculo XXI, ao menos como pressuposto no dilogo entre as cincias que se dedicam ao estudo da religio. A pergun-

ta pelo lugar da teologia na universidade no um mero artifcio retrico, uma vez que a resposta a esta questo acaba configurando a maneira de conceber a reflexo teolgica e, igualmente, porque o problema da alocao da teologia na universidade no fsico, mas epistemolgico, pois supe uma reviso de seu paradigma: Que teologia? Que maneira de fazer teologia na universidade como estudo da religio? E tudo indica que o pluralismo religioso desponta como um dos grandes desafios que se apresentam ao exerccio da teologia neste incio de sculo XXI. Uma prtica religiosa que, em nosso contexto, foi traduzida de forma magistral por Guimares Rosa em seu romance Grande Serto: Veredas:Muita religio, seu moo! Eu c, no perco ocasio de religio. Aproveito de todas. Bebo gua de todo rio... Uma s, para mim pouca, talvez no me chegue (...)

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Tudo me inquieta, me suspende. Qualquer sombrinha me refresca1.

certeza de que o telogo tem que ser moderno por tradio.

O objetivo deste artigo , pois, mostrar que a hermenutica teolgica o caminho que torna plausvel a elaborao de um discurso teolgico de validade pblica e pertinncia acadmica, na medida em que se entenda que a antropologia o lugar de toda teologia. Todavia, o novo que se preconiza no exerccio da teologia, seu empreendimento hermenutico e a sua orientao antropolgica, no corresponde a um discurso inaudito ou a uma prtica nunca antes levada a termo. A prpria histria do pensamento teolgico no Ocidente estaria a desmentir esta falsa pretenso. A novidade , na verdade, provocada pelo cenrio no qual se desenrola este trabalho teolgico, um cenrio composto pela universidade com as revises epistemolgicas pelas quais passam as cincias, o reconhecimento oficial da teologia por parte das autoridades brasileiras (MEC), o que exigir cada vez mais da teologia um discurso de validade pblica, e por fim o pluralismo religioso que desponta como um novo paradigma para o exerccio da teologia.2 este cenrio que convida a prtica teolgica a retirar da sua tradio a novidade de seu discurso, na1 2

Uma composio de lugar O dilogo, ou s vezes o monlogo que caracteriza a relao entre a teologia e as cincias humanas que se dedicam ao estudo da religio, possui uma histria, uma longa histria, marcada por alianas e conflitos. Compor o lugar a partir do qual me situo na discusso sobre o estudo teolgico da religio me obriga a discorrer por um caminho que j em si mesmo um ato hermenutico, uma interpretao, pois significa abandonar outros caminhos possveis. O caminho que desejo trilhar tem como prembulo a idia de que a desqualificao e mesmo a qualificao da teologia como intrprete da religio poderia ser vtima de um juzo apressado, diante de conceitos complexos, como cincia, religio e teologia, cuja relao entre si um campo minado por pr-conceitos e lugares comuns, tais como considerar a base emprica como o fundamento ltimo de toda e qualquer atividade cientfica,

GUIMARES ROSA, Joo, Grande serto: veredas, p. 15.

Por exerccio da teologia, salvo algumas excees, refiro-me basicamente nesta reflexo prtica da teologia crist.

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tomar a teologia somente por defensora da ortodoxia da f eclesial e em ltima anlise da f crist, bem como ver a religio unicamente sob a perspectiva crist e como uma dimenso arcaica, pr-moderna, e portanto ultrapassada da histria da humanidade. A histria do pensamento teolgico no Ocidente nos ensina que a passagem da teologia patrstica teologia medieval, ou seja, seu ingresso na universidade, provocou profundas transformaes na maneira de se compreender o trabalho teolgico. O alcance destas mudanas somente se tornou perceptvel no decorrer de um processo que tem no imperialismo da razo tcnico-cientfica, erigida como critrio nico de cientificidade, uma de suas caractersticas mais marcantes e na desqualificao da teologia como cincia, uma das conseqncias mais significativas para o mnus teolgico. Historicamente, a rigor, no se pode falar de entrar na universidade, uma vez que a teologia foi parte integrante da construo deste marco da cultura ocidental, tornado possvel graas viso crist e teocntrica prpria do mundo medieval, ou seja, uma viso unificada de toda a realidade em torno do nome Deus e que buscou a universalidade do saber. Neste mundo teocntrico, Deus3

era a medida de todas as coisas, e o valor de algo ou de algum era estabelecido na relao com Ele. O espao e o tempo geo-grficos eram visto sem grandes dificuldades como espao e tempo teo-grficos, graas contnua referncia a Deus que permitia ao ser humano orientar-se e encontrar o sentido da vida.3 No interior desta cultura, uma determinada prtica teolgica freqentemente se esqueceu da relatividade de suas afirmaes e da historicidade da verdade, o que conduziu muitos telogos a uma postura intransigente, marcada pela convico de possuir definitivamente a verdade. Com base na perspectiva histrica, pode-se afirmar igualmente que religio um termo elaborado pelo Ocidente, em decorrncia das sistematizaes tericas e dos conflitos ideolgicos que marcaram um longo processo de elaborao cultural. Neste processo, a Teologia crist teve um papel fundamental, uma vez que seu mtodo forneceu a gramtica da linguagem utilizada para dizer uma determinada viso de mundo e de Deus, que, com o passar do tempo, veio a ser hegemnica. Nesta estruturao do pensamento ocidental, a perspectiva crist no raramente adotou uma forma hierarquizante para identificar as prticas internas da Igreja a fim de distin-

VZQUEZ, Ulpiano, Pequenos avisos sobre a orientao espiritual, p. 55-9.

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gui-las de outras prticas religiosas. Por isso, gradativamente, tornou-se comum no Ocidente a distino entre a verdadeira e a falsa religio, ou seja, entre o monotesmo cristo e as outras formas de religiosidade, ditas pags. Todavia, hoje, estamos distantes, e uma distncia secular, daquele mundo no qual a teologia era a cincia por excelncia que fornecia a gramtica da linguagem usada para compreender o mundo e o ser humano, a partir da divindade. Este mundo ruiu, seu fundamento foi abalado pela mutao cultural provocada pelo antropocentrismo moderno que trouxe como consequncia uma crise de identidade para a prpria teologia. Da solidez de um sistema tomista, que via a realidade de forma unitria e totalizante do ponto de vista da f crist, a teologia passou ao desconfortante lugar no meio de uma cultura moderna fragmentada. Alm disso, a passagem de um mundo a outro, do teocntrico ao antropocntrico, no foi apenas uma questo semntica, mas sobretudo significou, dentre tantas outras rupturas, a reduo do exerccio da teologia formao dos quadros da estrutura eclesistica: padres e pastores. Todavia, hoje, a presena da teologia no contexto universitrio, ao menos como cincia que se dedica ao estudo da religio, requer um distanciamento deste modelo teolgico, uma vez que tal modelo no corresponde 8

mais ao novo contexto histrico com o qual o discurso teolgico chamado a dialogar. Um dos grandes desafios que se impe hoje ao exerccio teolgico, em dilogo com outras formas de saber, o de dizer Deus num contexto (ps-moderno?!) no qual se insiste em criticar a v pretenso de se descobrir uma verdade universal por meio de esforos racionais. Para o chamado pensamento ps-moderno, no mais possvel conceber um centro de referncia, seja Deus (mundo teocntrico), seja o prprio ser humano (mundo antropocntrico). Em outras palavras, se para a modernidade a luz da razo humana ofuscara a verdadeira luz que, vindo ao mundo, ilumina todo homem (Jo 1,9), para a ps-modernidade ambas as luzes se extinguiram. No caso especfico da teologia crist, a diversidade da prtica religiosa que encontramos hoje no Brasil questiona alguns dos fundamentos do cristianismo e, portanto, a maneira de fazer teologia sob a perspectiva crist. Em parte, porque no parece ser mais vivel o exerccio da teologia sem o respeito dignidade das outras religies, sobretudo daquelas que no possuem a tradio judaico-crist como matriz fundadora. Alm disso, a ligao congnita entre teologia e estudo da religio cada vez mais questionada, uma vez que este estudo igualmente reivindicado por outras for-

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mas de saber que no raramente lanam um olhar de suspeita sobre a reflexo teolgica. No porque o pensamento moderno tenha rejeitado a religio como objeto de estudo, como assunto da cincia, mas porque, para a chamada cincia moderna, a religio no mais um assunto teolgico propriamente dito, e sim antropolgico, ou seja, religio, e tudo o que a ela se relaciona, interessa cincia como expresso cultural do ser humano: alienao, doena, projeo, degenerao, fuga da realidade, fanatismo, busca de sentido etc. Ainda que o percurso desta reflexo esteja delimitado pelo papel da teologia no estudo da religio, no podemos esquecer que, para alm desta fronteira, existe uma discusso anterior e mais abrangente: O que vem a ser cincia no contexto acadmico? A resposta a esta questo de grande importncia, pois a pertinncia do discurso teolgico e a sua validade pblica dependem em parte da noo de cincia que venha a ser usada como parmetro para definir quem merece ou no o status cientfico no estudo da religio. Historicamente, a inadequao cientfica da teologia aos olhos da cincia moderna est em parte no recurso imaginao e experincia religiosa que no se exau4

re na visualizao e na sistematizao das anlises do objeto estudado. A questo que este recurso no somente uma condio prvia da tarefa teolgica, mas fundamento da narratividade que lhe prpria, caracterizada por uma linguagem construda com base em mitos, ritos, smbolos e prticas religiosas. Nem sempre, porm, a prtica teolgica, teve plena conscincia deste seu fundamento e, por vezes, deixou-se seduzir por um discurso cujas bases estavam firmadas em uma metafsica essencialista da tradio filosfica ocidental, discurso que tomou Deus por verdade ontolgica e que comeou a ruir sob o impacto do pensamento moderno. Ao desmoronar a metafsica tradicional, diante do tremor ssmico provocado pela modernidade, com ela veio abaixo parte do edifcio teolgico alicerado na tradio crist.4 A histria do pensamento ocidental mostra-nos que a relao entre a cincia moderna, emprico-formal, e a f religiosa evoca automaticamente a histria de um longo conflito e nomes como os de Galileu, Darwin, Hume, vm freqentemente memria. Uma mentalidade de corte positivista, ainda presente em diversos contextos acadmicos, tende a apresentar cincia e f como posies irreconciliveis, a ver a relao entre ambas

GEFFR, Claude, La crise de la raison mtaphisique, p. 465-83.

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sempre sob a tica do conflito. Talvez o choque inicial entre ambas fosse inevitvel, haja vista que a irrupo da cincia moderna no mundo ocidental significou uma grande mudana de paradigma cultural.5 Aos poucos, os imensos benefcios proporcionados pelos avanos tecnolgicos fizeram a cincia moderna posicionar-se como via obrigatria para a apreenso do real desde a sua estrutura emprico-formal, a tal ponto que muitos passaram a acreditar que fora dos paradigmas desta cincia reinava o mito, a cultura infantil, a fantasia, o irreal, o irracional, o no-objetivo.6 Em outras palavras, para a cincia moderna no h mistrios, mas problemas a serem claramente formulados, investigados e resolvidos. Para este tipo de mentalidade, os enunciados da f religiosa e da teologia no possuem consistncia por carecerem de uma base emprica, eliminando da f a razoabilidade e conseqentemente a possibilidade do conhecimento. A oposio a esta nova mentalidade no vinha somente do mbito religioso, mas foi sem dvida na religio, mais propriamente em instituies poderosas como as igrejas crists que viam seu poder, sua legitimidade e a5 6

verdade de seus enunciados colocados prova, que a resistncia aos novos valores trazidos pela cincia moderna tornou-se maior e s vezes mais violenta. Entretanto, esta rejeio da religiosidade e a imposio de um determinado modelo epistemolgico ignora o fato de que tanto a f religiosa como a religio so experincias antropolgicas que se expressam por meio de um outro tipo de linguagem que no aquela das cincias modernas, e que nem por isso falseiam a realidade. Em outras palavras, a f e a religio interpretam a realidade e dizem-na por meio de uma linguagem simblica, metafrica. No meu intuito entrar nos pormenores desta histria, mas sim, baseado nas conseqncias do encontro com a cincia emprico-formal, buscar uma melhor compreenso do trabalho teolgico na interpretao da experincia religiosa, notadamente da religio crist, a fim de mostrar que, para alm do conflito que durante sculos caracterizou a relao entre a teologia, a cincia (moderna) e a religio, as cincias humanas que se dedicam ao estudo da religio, inclusive a teologia, possuem uma dimenso antropolgica de base fiducial que as aproxima e que reclama um constante ato de interpretao.

Sobre este tema ver a obra de Thomas Khun, intitulada A estrutura das revolues cientficas. RAHNER, Karl,Teologia e cincia, p. 38.

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Como nos lembra a histria da evoluo do pensamento cientfico no Ocidente, a crise da modernidade europia tambm a crise do paradigma que coloca como o nico fundamento do saber cientfico a capacidade de medir, observar e quantificar o objeto de estudo, ou seja, a delimitao do que cientfico ao campo visual (esquema, lista, diagrama). Assim sendo, a distino bsica que possibilita a classificao de uma forma de saber em cientfica ou no-cientfica est em permitir ou no a abertura a outros sentidos alm da viso.7 Hoje, esta circunscrio do saber cientfico a basicamente um sentido profundamente questionada. Questiona-se, por exemplo, a idia de que qualquer forma de saber que no seja capaz de observar, medir e quantificar o seu objeto de estudo no possa ser qualificada como cincia. Ou ainda, que o discurso da chamada cincia experimental seja o nico mtodo capaz de se aproximar da realidade em detrimento de outros discursos (poesia, mito, crenas...), que so constantemente reduzidos insensatez, falta de sentido. Como sabemos, constava do projeto iluminista a superao da religio em nome do progresso da humanidade, progresso este que se manifestava, em parte, na7

autonomia e na tolerncia universal. Todavia, a crena no progresso ilimitado da humanidade, fruto das inmeras conquistas proporcionadas pelo desenvolvimento das cincias experimentais, com o passar do tempo mostrou-se ambguo. Guerras, conflitos sociais, o abismo entre pases ricos e pobres, a desigualdade no interior das prprias naes e o fato de boa parte da humanidade ser muito mais vtima do que beneficiria do progresso tcnicocientfico colocaram a racionalizao ocidental sob suspeita. Por mais que ilumine a nossa razo, a racionalizao ocidental no de todo evidente e sensata para toda e qualquer razo, ou seja, trata-se de uma racionalizao que possui seus limites. Afinal, a sua evidncia est vinculada a contextos histricos e culturais bem determinados, e, como tal, no pode ser compreendida por toda a humanidade. Alm disso, a modernidade que combatera a f religiosa em nome da razo, que a destitura de sua dimenso social, reduzindo-a a esfera do privado, do mito, do mgico ou a uma etapa infantil da humanidade, considerando-a resqucio de um atraso cultural e de contradies econmicas, no conseguiu, por sua vez, instaurar o paraso sobre a terra mediante a imposio de uma raciona-

WESTHELLE, Vtor, Outros saberes, p. 264.

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lidade instrumental e prtica como baluarte de toda verdade. Estes limites impostos racionalidade moderna no nos devem fazer esquecer que a religio igualmente chamada a reconhecer seus limites e suas patologias, deixando-se purificar e organizar novamente seu universo conceitual luz da razo humana, a qual no se restringe racionalidade ocidental, tcnicocientfica. Desse modo, a discusso acerca dos fundamentos da religio, como ato humano ou desumano, no pode limitar-se ao universo cristo e tampouco a uma determinada tradio racional, que, durante sculos, se imps culturalmente na histria do Ocidente. Em resposta a estes questionamentos, o postulado hermenutico ganha espao na pesquisa cientfica, ou seja, a cincia passa a ser vista como um ato construtivo de interpretao da realidade. Esta forma de conceber a cincia encontra-se em ntima relao com a suspeita que se abate sobre a centralidade outrora concedida mediao emprica, ao dogma da objetividade e pressuposio da neutralidade do pesquisador na anlise de seu objeto de estudo. O ato de pesquisar interpretativo, situado num contexto histrico e atende a interesses determinados. Em outras palavras, a pesquisa cientfica no se restringe aos aspectos formais, supondo igualmente aspectos existenciais, por estar inserida num quadro 12

referencial que pressupe complexos processos culturais, formados por jogos ideolgicos e por interesses pessoais e sociais. Este quadro referencial requer um processo hermenutico que no se esgota na mediao emprica, na objetividade da pesquisa e tampouco na neutralidade do pesquisador, como referenciais absolutos. Por isso, o locus hermenutico de quem se dedica ao estudo da religio, por exemplo, no indica rigor ou falta de rigor, mas somente esclarece desde onde se interpreta esta realidade. Alm disso, o estudioso da religio deve estar ciente de que est diante de uma realidade profundamente complexa, que escapa abordagem de uma nica cincia. Do ponto de vista teolgico, esta dimenso hermenutica coloca-nos diante da necessidade de se distinguir entre uma teologia confessional voltada principalmente para os interesses eclesiais e uma teologia igualmente confessional, todavia dedicada compreenso da religio, das manifestaes espirituais da cultura e do papel das prticas religiosas no contexto social, sempre em dilogo com outras cincias que estudam a religio. Tal distino no significa que uma teologia seja mais cientfica do que a outra, mas apenas que uma e outra naturezas teolgicas possuem interesses e objetivos diferentes. O discurso teolgico sobre a religio estaria, pois, para

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alm das definies dogmticas, na contnua busca de perceber as dinmicas da linguagem religiosa no cotidiano, nos cdigos vitais que ajudam a dar sentido existncia humana, no interior da cultura. Contudo, estar para alm das definies dogmticas no significa abandonar o dogma, mas sim a postura dogmtica que nada mais faz do que buscar na Escritura e na Tradio a confirmao do que j fora previamente definido pelo magistrio eclesistico. Alm dessa distino, uma questo de outra natureza se impe prtica teolgica, visto que seu problema no somente o confinamento eclesistico, mas diz respeito igualmente a uma herana que coloca as cincias sob o juzo da teologia, dentro da Igreja. Hoje, a teologia convidada a justificar a sua pertinncia ao lado de outros saberes que igualmente exigem a sua cidadania acadmica. A teologia chamada a ser um saber ao lado de outros saberes e no mais a cincia diante da qual todas as outras tm que se justificar. No que diz respeito ao estudo da religio, a teologia um dos olhares que a vem de uma perspectiva particular. Assim como nenhuma perspectiva esgota o que porventura se possa dizer da religio, a experincia religiosa, por sua vez, no se diz totalmente numa nica forma histrica de religio e institucionaliza-se em torno de mo-

tivos transreligiosos que nos reenviam, apesar de sua textura religiosa, a motivos mais globalmente humanos. Todas as religies tomam estes motivos e os inscrevem nas organizaes que lhes so prprias em funo de registros comuns, o que equivale dizer que as religies no se constituem somente como um conjunto organizado dos fenmenos religiosos, mas se estruturam tambm de uma relao determinada com o cultural e o social. Em outras palavras, a religio possui uma dimenso eminentemente antropolgica e como doadora de sentido um convite interpretao feito a distintos pontos de vista, pois, na linguagem religiosa, smbolos e metforas se entrelaam como fios de uma trama que tecem o texto de uma cultura fundamentado em um contexto histrico e em uma tradio determinada.

Dois projetos de teologia: F. Schleiermacher e J. L. Segundo Uma vez realizada a composio de lugar com base na qual me situo para discorrer sobre o papel da teologia no estudo da religio, gostaria de abordar de forma sucinta dois projetos teolgicos que, a meu ver, fornecem um significativo referencial terico a esta reflexo. Proje13

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tos que marcaram profundamente a prtica teolgica, um no contexto protestante, inicialmente europeu, e outro no ambiente catlico, notadamente latino-americano. Todavia, trazer para o espao desta reflexo a contribuio de Friedrich Schleiermarcher (1768-1834) e de Juan Luis Segundo (1925-1996) comporta um duplo perigo: para os que conhecem seus mtodos teolgicos, temo ser repetitivo e superficial; para quem ambos os projetos so desconhecidos talvez o que se dir a seguir seja demasiadamente abstrato. Todavia, vale o risco, sempre o risco da interpretao. A princpio, aproximar-se do pensamento teolgico de Schleiermacher pode parecer algo estranho se levarmos em conta a distncia secular que nos separa deste telogo protestante. Entretanto, a atualidade de seu pensamento se mostra algo fecundo para a reflexo sobre a atual relevncia do estudo teolgico da religio. Em parte, porque seu mtodo teolgico tem como pano de fundo o dilogo com pessoas eruditas, acadmicas ou no, que estavam imbudas do esprito iluminista e que, devido a esta postura, menosprezavam a religio e conseqentemente desdenhavam da tarefa teolgica. Alm disso, por ser inteno de seu projeto teolgico manter e8

ampliar o lugar da religio, da f crist e da teologia na cultura moderna ilustrada. No menos significativo a definio de religio proposta por Schleiermacher, profundamente arraigada na natureza humana e intimamente ligada idia de autonomia proposta pelo Iluminismo, e ainda hoje reivindicada pela cultura ocidental. Um dos aspectos relevantes do projeto teolgico de Schleiermacher leva-nos a repensar a tendncia tipicamente moderna inclusive de algumas perspectivas teolgicas de estudar a religio, colocando entre parnteses a experincia do Sagrado (do Infinito) que a constitui. A no-aceitao deste deslocamento ou a considerao da ao do Infinito na realidade finita representa a expresso consciente de uma recolocao da teologia numa cultura moderna em transio (sculos XVIII e XIX) que acreditava ter alcanado a maioridade pelo uso da razo e que, portanto, se atrevia a pensar baseada em si mesma, nas experincias e nos valores humanos. Nesta cultura parecia no haver mais lugar para Deus, e pensadores ligados ao idealismo alemo, como, por exemplo Fichte, colocavam srias dvidas quanto possibilidade de existir um lugar para a teologia na universidade.8 Por isso, a importncia de Schleiermacher para o contexto teolgico

DREHER, Luis H, O mtodo teolgico de Friedrich Schleiermacher, p. 37.

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consiste, de certa maneira, no fato de ele ter sido um dos pioneiros na tarefa de repensar o empreendimento teolgico num contexto marcado pela hostilidade oriunda do pensamento ilustrado. Em sua obra Sobre a religio, Schleiermacher comea o seu discurso sobre A essncia da religio com uma pergunta ampla e abrangente: O que religio? Tal indagao lhe permite fazer uma primeira advertncia:A religio(...)h de recusar a tendncia a estabelecer seres e a determinar naturezas, a perder-se em uma infinidade de razes e dedues, a investigar as ltimas causas e a formular verdades eternas (...)A religio(...)no deve servir-se do universo para deduzir deveres, ela no deve conter nenhum cdigo de leis9.

Essa perspectiva teolgica toma distncia dos tericos que procuram indagar sobre a natureza do Universo e a essncia de um Ser supremo, afasta-se igualmente dos prticos que colocam a vontade de Deus como algo fundamental na religio, e ope-se reduo da religio ao mbito de doutrinas racionais e morais acerca de Deus. Isso porque a religio no cincia e tampouco 9

moralidade, sendo seu solo natural o ser humano, mais precisamente seus sentimentos. A rejeio da postura de metafsicos e moralistas, abre um outro caminho que leva a definir a religio como intuio e sentimento.10 Esta definio que tem por pressuposto a presena do Infinito, na realidade finita, ou ainda, a possibilidade da ao de Deus no ser humano, o que se configura em uma ntida rejeio da tentativa de tornar a idia de Deus cativa dos novos paradigmas oriundos da noo de cincia moderna que provocou o deslocamento da religio para o mbito da razo especulativa e da moral. Na tica de Schleiermacher, este deslocamento significava renunciar ao especfico da religio que no se confunde nem com a moral, nem com a metafsica, e no s no se confunde como independente de ambas, afinal a religio no quer explicar o universo (metafsica) e tampouco deseja aperfeio-lo (moral), mas sim intu-lo. Assim, chamar de religio a uma mescla de opinies sobre o Ser supremo ou acerca de obrigatoriedades relativas vida humana, opinies quase sempre definidas pelas autoridades eclesisticas, tomar um caminho que nos afasta da essncia mesma da religio.

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SCHLEIERMACHER, Friedrich. Sobre a religio, p.29-30. O que hoje freqentemente se entende por religio, nos escritos de Shcleiermacher equivale expresso religio positiva, ao passo que experincia religiosa se aproxima da sua idia de religio. Idem, ibidem, p. 33.

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Schleiermacher estava convencido da possibilidade de o Infinito atingir nossos afetos e, portanto, provocar em ns o sentido e o gosto por ele. Essa perspectiva valoriza o humano, sem se tornar cativa do pensamento moderno e ao mesmo tempo percebe a religio como autoconscincia imediata da presena do Infinito no finito. nesta faculdade particular do esprito humano, o sentimento, que surge a religio como algo constitutivo de toda a vida humana. A experincia do Infinito , pois, sentimento que implica conscincia da absoluta dependncia de Deus, a experincia de no se sentir a origem de si mesmo, uma vez que na religio o ser humano tem conscincia de suas prprias limitaes, da facticidade e da relatividade da sua existncia e de vincular todos os afetos a Deus. Este sentimento torna-se parte integrante de toda a autocompreenso (autoconscincia) humana, afinal a dimenso absoluta da dependncia de Deus diz-nos que esta relao no define a pessoa somente em um determinado aspecto de sua existncia, mas a pessoa como um todo. Do ponto de vista antropolgico (cristo), essa a relao fundamental que abarca as demais relaes humanas e que ajuda a melhor definir o ser humano. A religio , pois, concebida como a autoconscincia de um ser-em-relao, relao do finito com o Infinito e essa relao, como algo constitutivo do ser humano, diz 16

respeito ao todo de sua existncia. Uma relao que na verdade um dado, uma oferta, e no uma mera conquista humana, especulativa ou prtica. Todavia, a absoluta dependncia no significa total passividade ou total ausncia de liberdade, pois da parte do ser humano significa acolher livremente algo que lhe ofertado, mas que pode ser rejeitado. Embora seja uma realidade infinita, incomensurvel, a religio deve possuir um princpio de individualizao que possibilite a sua manifestao de diferentes maneiras, por meio de figuras mutveis e historicamente situadas, o que alguns chamam de religies positivas. A histria das religies continua em movimento, podendo produzir novas formas positivas da religio que transformariam o cristianismo histrico em algo do passado. Por isso, a religio crist no pode pretender uma exclusividade nica e tampouco um carter definitivo que abarque todos os tempos. Para Schleiermacher, a antipatia cultivada em sua poca era na verdade muito mais uma averso a qualquer Igreja ou a qualquer forma de organizao religiosa que tivesse a inteno de transmitir a religio como sua propriedade exclusiva, do que pela religio em si mesma. Segundo Schleiermacher, o problema religioso fundamental para a modernidade que a religio foi in-

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terpretada como saber, como conhecimento da divindade. Todavia, para ele, religio est na ordem da experincia imediata de Deus como disposio inata do ser humano para a relao com o Infinito, percebido da nossa finitude. A religio , pois, afeio e receptividade, imediatidade e auto-experincia, e no que diz respeito ao estudo da religio, somente podemos compreender a nossa relao com Deus, e no a realidade transcendente de Deus em si mesma. A maneira de compreender a religio para Schleiermacher aquela de uma unidade indissolvel com a humanidade, sem, contudo, proceder de uma concepo reducionista da humanidade que nega a transcendncia na religio. A experincia do Infinito no finito faz da religio uma caracterstica fundamental do ser humano, jamais captada por completo, que o remete para alm de si mesmo ou de uma simples relao contingente. Isso porque a religio fundamentalmente relao com o Transcendente que se passa no humano, no sendo a religio, para essa perspectiva teolgica, um estado passageiro no ser humano, pretrito de uma cultura, e tampouco totalmente estranho ao ser humano, mesmo que essa

experincia comporte sempre uma novidade. Essa inclinao natural expressa um profundo otimismo antropolgico que, ao contrrio do pensamento moderno, entende a experincia religiosa como desdobramento da experincia humana, na qual se revela uma realidade transcendental e se produz determinada conscincia da divindade.11 Na medida em que elevada a conceito, essa experincia produz um discurso teolgico, uma reflexo sobre o discurso humano que fala de Deus. Assim, o exerccio da teologia consiste em oferecer uma descrio clara e vivificante de uma experincia interior comum, ou seja, a teologia a clarificao de uma experincia existencial concreta: o ponto de partida do trabalho teolgico a experincia de f de diferentes pessoas em distintas situaes. No lugar de uma teologia dos tratados, temos uma teologia que parte das experincias humanas e essa maneira de se conceber a teologia toma distncia do aprisionamento monoltico que ameaava a reflexo teolgica, ao se atrelar a teologia aos dogmas e aos interesses particulares dos representantes eclesisticos. Para Schleiermacher, mesmo que a teologia tenha por ponto de partida as experincias humanas dos cris-

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Por isso, um sculo e meio mais tarde, em continuidade a este pensamento, Karl Rahner fez a pergunta sobre as estruturas antropolgicas que possibilitam o ser humano acolher a automanifestao de Deus.

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tos, dificilmente uma reflexo teolgica poder perceber o valor de tais experincias, caso ela continue cativa de uma linguagem e de um contedo previamente definidos pelas autoridades eclesisticas. Ao tomar a experincia religiosa como desdobramento da experincia humana e como a experincia que fornece o instrumental lingstico para a tarefa teolgica, Schleiermacher prope um critrio profundamente antropocntrico que se distingue metodologicamente da metafsica que parte de um conceito de Deus e de uma tica teolgica, que tem por fundamento a idia de lei de Deus. Alm do que, esta opo metodolgica se aproxima do ethos do Iluminismo ao trabalhar com a idia de autonomia e humanidade no interior da religio. Autonomia, porque a religio apresentada como uma realidade inicialmente autnoma ante a razo, as leis e as autoridades eclesisticas. Humanidade, no sentido de que a religio brota do interior do prprio ser humano, como aquilo que o constitui. Esta aproximao entre a teologia e a religio passa inevitavelmente pela compreenso daquilo que se12

convencionou chamar de arte e tcnica da interpretao: a hermenutica.12 E para Schleiermacher interpretar na verdade o modo de ser humano, algo que no se restringe somente a uma dimenso da vida, mas diz respeito vida como um todo. Insatisfeito com o estado da hermenutica em sua poca, Schleiermacher props-se a organizar as regras da hermenutica a fim de fazer dela uma arte verdadeira. Para ele, a hermenutica uma cincia geral, sendo seu projeto contextualizar as hermenuticas regionais numa hermenutica geral, destacando o carter universal da interpretao. Para esta concepo, a hermenutica no se caracteriza como uma disciplina auxiliar de algumas cincias, e sim como a arte de compreender em geral. Apesar de alguns aspectos da obra teolgica de Schleiermacher no se aplicarem atual reflexo sobre o estudo da religio, o seu projeto teolgico, no final do sculo XVIII, deu incio a uma nova era tanto para os estudos teolgicos quanto para a interpretao cientfica da religio. Talvez no seja nenhuma impreciso afirmar que uma de suas grandes contribuies para o estudo teolgi-

Schleiermacher nunca deu uma forma sistemtica a seus escritos sobre hermenutica. Todavia, em 1959, Heinz Kimmerle, sob a orientao de H-G Gadamer, publica um livro intitulado Hermenutica (Hermeneutik), no qual rene os escritos de Schleiermacher que abrangem o perodo entre 1805 e 1833. O desenvolvimento de sua reflexo sobre a arte da interpretao confere a Schleiermacher o ttulo de fundador da hermenutica moderna.

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co tenha sido o fato de haver deslocado a compreenso da religio do contexto de uma mera construo cultural para a dimenso antropolgica, concebendo a religio como uma estrutura fundamental que faz parte de toda a vida humana. Em outras palavras, a religio existe por si mesma e no por permisso ou benevolncia da cincia, sendo o seu estudo dinamizado pela atitude hermenutica que caracteriza tanto a teologia como as demais cincias humanas. justamente este carter antropolgico e o empreendimento hermenutico da teologia que um sculo e meio mais tarde, num outro contexto, tomado por diferentes problemas, fundamentariam a reflexo de um outro telogo: Juan Luis Segundo. Em sua obra intitulada O dogma que liberta, Segundo define de forma sucinta o seu trabalho teolgico:o que de mim se exigia era a progressiva formao de um modo cristo e global de pensar que pudesse lanar luz sobre uma realidade complexa, na qual a f de um grupo (preferentemente) de leigos se achasse comprometida.13

Dessa forma, a teologia surge como a busca de sentido para a existncia humana, ou ainda, consiste em ajudar o ser humano a ser mais humano, falando-lhe de Deus, do Deus que se revela. A teologia deve, pois, aju13

dar o fiel a melhor compreender a sua f em sintonia com a sua vida e a sua histria, ou dito em termos neotestamentrios, deve ajudar as pessoas a darem razo de sua esperana (1Pd 3,15). Uma das riquezas da reflexo teolgica de J.L.Segundo est no esforo em demonstrar a impossibilidade de uma cincia neutra, afinal toda cincia est a servio de uma escala de valores, e isso profundamente humano. No existe pesquisa, por mais objetiva que pretenda ser, que no seja realizada fundamentada em um horizonte de interesses. Conhecer sempre interpretar, e a estrutura hermenutica de toda forma de saber faz-nos entrar com nossos paradigmas e categorias na interpretao do objeto de nossa experincia ou pesquisa. O ser humano no pura razo, pois est inserido numa histria, sendo movido por interesses pessoais e coletivos. Todos ns precisamos de um sistema de referencialidade para organizar nossos valores e orientar nossa existncia, o que exige inicialmente um ato de f, entendido como uma dimenso antropolgica fundamental, quer se tenha uma religio ou no. semelhana de Schleiermacher que concebe a religio como uma experincia fundamentalmente antropolgica, J.L.Segundo faz da f

SEGUNDO, Juan Luis, O dogma que liberta, p. 26.

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religiosa caso particular de uma dimenso antropolgica universal. Nesta viso antropolgica, as informaes que aceitamos como vlidas sem uma verificao emprica imediata o que podemos denominar de dados transcendentes. Trata-se de informaes no demonstradas empiricamente que nos chegam por via testemunhal e que aceitamos como verdadeiras por atenderem s nossas expectativas e tambm por serem transmitidas por algum em quem confiamos. E isso vale para todo cientista, quer ele tenha uma f religiosa ou no.14 Esses dados so transcendentes no porque falam de Deus ou por se tratar de uma linguagem estritamente religiosa, ou ainda, por se referirem a uma dimenso ou ser que transcenda a realidade, mas sim porque so dados a serem considerados como vlidos ainda que a sua comprovao emprica no nos seja possvel num primeiro momento. Assim, pode-se ser honrada e coerentemente ateu e, no obstante, sempre ser mister estabelecer como vlidos dados que no se podem verificar empiricamente15. Algo inerente at mesmo s chamadas cincias experimentais que tm a mediao emprica como uma dimenso central de sua estrutura epistemolgica.14 15

Isso porque no existe um saber puramente desinteressado ou livre de ideologias. A cincia moderna constitui-se num ato reconstrutivo de interpretao da realidade, ao qual est associado um sistema referencial elaborado baseado em jogos ideolgicos, conflitos de interesses, crenas e convices pessoais, objetivos formais e existenciais, bem como em condicionamentos histricos do mtodo empregado no processo de produo cientfica. Esse sistema referencial no est voltado somente para verdades formais, mas, sobretudo, para afetos construdos na relao com princpios herdados, uma vez que inicialmente aceitamos tais princpios pelo fato de serem transmitidos por pessoas com as quais estabelecemos uma relao fiducial, por pessoas nas quais temos f, no sentido antropolgico do termo. esta f antropolgica que nos permite acolher ou rechaar determinado mundo de valores que tomam corpo em pessoas que, por sua vez, se apresentam a ns como testemunhos referenciais. Assim sendo, podemos dizer que todo ser humano necessita de testemunhos referenciais para articular seu mundo de valores, os quais so oferecidos pela sociedade e exigem um ato de f, pois no podemos experimentar at as ltimas conseqncias todos os valores que iro

Idem, O homem de hoje diante de Jesus de Nazar, p. 31; 92. Idem, ibidem, p. 215.

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fundamentar a nossa existncia antes de nos decidirmos por eles. No sabemos por experincia prpria o quo satisfatrio ser o caminho por ns escolhido, pois a nossa escolha implica uma aposta, sendo a idia de um caminho satisfatrio construda das experincias alheias, no comprovadas previamente por ns16. A f como uma dimenso antropolgica significa que ela constitutiva do ser humano, representando uma aposta existencial e fazendo da sua verificabilidade ltima uma instncia escatolgica. Assumo algo como verdadeiro ainda que no o possa verificar empiricamente, por enquanto. Trata-se de uma reapropriao pessoal de valores simbolicamente manifestos no ambiente cultural por outras pessoas. Por isso, tanto o atesmo como o tesmo, de certa maneira, ultrapassam aquilo que pode ser comprovado cientfica e empiricamente, ou seja, se crer em Deus uma aposta, igualmente o a negao da sua existncia. Mesmo o materialismo, sobretudo o histrico, necessita de elementos da f antropolgica que no podem vir da prpria cincia. O sucesso da anlise marxista da realidade, por exemplo, no est somente no seu rigor cientfico, mas tambm no sentimento de esperana suscitado nos16 17

leitores de Marx, e este sentimento no pode ser comprovado s por meio do mtodo emprico-formal. A esperana numa sociedade justa uma aposta e leva-nos a acreditar em algo que de imediato ultrapassa a comprovao emprica. O ponto de partida da f antropolgica a pessoa individual, mas ela somente pode ser elaborada do tecido social no qual estamos inseridos e na reapropriao pessoal de valores simbolicamente manifestos no ambiente cultural por outras pessoas que nos servem de referncia. Isso leva a f antropolgica a uma aposta existencial que no se confunde com um passo cego no escuro, pois a opo que tal f comporta somente possvel graas ao testemunho de pessoas que nos ajudam a valorar, a dar sentido prpria vida. Assim, a f antropolgica, antes de se expressar no campo religioso e de se exprimir no campo conceitual da teologia, traz em si mesma uma estrutura fiducial que fundamenta nossas escolhas, as quais limitam e realizam nossa liberdade: todos ns, crentes ou no, construmos nossa escala de valores, inicialmente confiando em outras pessoas.17

Idem, O homem de hoje diante de Jesus de Nazar, p. 117. Idem, A libertao da teologia, p.115.

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esta f antropolgica, que, sem deixar de s-la, transforma-se em f religiosa. A religiosidade desta dimenso antropolgica nos diz que pessoas como ns viveram determinados acontecimentos histricos como revelao de Deus, querendo distingui-los de outros acontecimentos ordinrios, e encarnam valores que do sentido existncia humana18. Por isso, por meio da f religiosa, no se trata de declarar a aceitao de normas e dogmas, e sim aceitar uma proposta existencial apresentada e encarnada numa pessoa concreta. A f crist a aceitao dos valores que Deus prope na pessoa de Jesus Cristo, e isso acontece pelos caminhos da histria, marcada por conquistas, esperanas e dilemas humanos. A f religiosa determina, pois, valores fundamentais naqueles que a aceitam, e na religio crist esses valores ganham maior visibilidade com a proximidade do Reino de Deus proclamado por Jesus Cristo, proximidade que provoca uma metania, uma modificao radical na escala de valores (Mc 1, 14-15). A f religiosa edificada da f antropolgica surge como fonte de uma nova estrutura significativa e deve dar solues humanas a questes humanas, desde um processo que J.L.Segundo cha18 19

ma de aprender a aprender: depositamos a f humana naqueles que souberam manter certos valores, basicamente semelhantes aos nossos, aprendendo a realiz-los apesar de mudanas, incertezas e fracassos19. Aprender a aprender com pessoas que vivem esses valores em determinadas situaes que so tidas como revelao de Deus. Do ponto de vista cristo, a revelao que converte a f antropolgica em f religiosa, a qual continua a desempenhar a mesma funo bsica, qual seja, estruturar uma escala de valores que d sentido existncia humana. A revelao de Deus no cai do cu, mas brota das experincias humanas cuja textura sempre um apelo interpretao, e esta concepo de revelao nos afasta da idia de que a f se tornaria religiosa quando abandonssemos as testemunhas humanas para apoiar-nos exclusivamente na autoridade de Deus, ou seja, deixar os sinais dos tempos para fixar nossos olhar nos sinais dos cus (Mt 16,1-4). Do ponto de vista cristo, podemos afirmar que Deus, em sua liberdade infinita, decidiu revelar-se por meio de sinais dos tempos e no de sinais dos cus, o que

Idem, O homem de hoje diante de Jesus de Nazar, p. 79. Idem, ibidem, p. 96.

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faz do trabalho teolgico abertura aos problemas mais urgentes da humanidade. No podemos crer em Deus seno a partir de um compromisso com a histria humana, suas vicissitudes, seus dramas, suas alegrias, suas esperanas. E crer em Jesus como o Cristo supe que tenhamos f naqueles que o conheceram, interpretaram e nos transmitiram sua crena nele, uma vez que no possumos um acesso direto sua vida e sua palavra. O eu creio da f pessoal supe o ns cremos da tradio, e os relatos sobre Jesus so sempre atos interpretativos e no testemunhos objetivos. Crer em Deus uma experincia profundamente humana que no anula a nossa liberdade. Crer interpretar, decidir, assumir determinadas posturas na complexidade do real, de maneira razovel. Da que tanto a f religiosa de um fiel quanto a f antropolgica de um ateu possuem uma estrutura antropolgica comum: a busca por sentido, a organizao da vida em torno de uma escala de valores e a necessidade de testemunhos referenciais. Apoiado na dimenso antropolgica da f religiosa e na perspectiva hermenutica inerente prpria revelao divina, o discurso teolgico configura-se na possibi20

lidade de afirmarmos o valor da vida humana sob a perspectiva da f crist. Esta postura metodolgica conduz a teologia a no ter Deus por objeto material, isto , a no partir de Deus para falar do humano, ao contrrio, a mensagem divina ser interpretada com base em toda e qualquer realidade humana. E ao se inserir no chamado antropocentrismo teolgico, J.L.Segundo entende que a presena de Deus na histria no uma concorrente ou rival do ser humano, mas uma graa que fundamenta a sua ao criadora como construtora de histria. E mais, as verdades de f existem hoje somente da interpretao e da aplicao que o crente (o fiel) faz na sua vida: ...a pretenso de somente conservar o depsito da revelao uma das melhores maneiras de lhe ser infiel, de corromp-lo, de tra-lo. Porque uma maneira por demais cmoda de ser fiel20, ou, como afirmava Schleiermacher, querer conservar a todo custo inalterada uma doutrina, dissociada de um processo hermenutico, transform-la numa falsa ortodoxia. semelhana de Schleiermacher, apesar da distncia de mais de um sculo de histria, a orientao antropolgica e o empreendimento hermenutico surgem para J.L.Segundo como dois pilares fundamentais para a

Idem, O dogma que liberta, p. 13.

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edificao de um projeto teolgico minimamente razovel. , pois, nesta dupla dimenso do trabalho teolgico, antropologia e hermenutica, que vejo a possibilidade da perspectiva teolgica ser portadora de um discurso de validade pblica e pertinncia acadmica no estudo da religio.

A teologia como antropologia e como hermenutica A reorientao antropolgica do estudo da religio exige uma maneira nova de conceber o exerccio da teologia, devido aos laos estreitos que a aproxima da religio. O discurso teolgico, para ter validade pblica no dilogo com a cultura contempornea, h de trabalhar com uma definio de religio que esteja arraigada na natureza humana e profundamente ligada idia de autonomia. A teologia, em sua aproximao hermenutica da religio, h de considerar a religio como uma dimenso antropolgica antes de conceb-la como uma estrutura eclesial, uma dimenso humana que guarda autonomia diante de qualquer forma de discurso e de leis e de autoridades eclesisticas. Autonomia entendida como sendo diferente de individualismo, pois no se trata de tomar a prpria experincia como instncia absoluta, mas sim como fundamento em oposio aceitao de 24

uma verdade baseada unicamente em autoridades externas (instituies, hierarquia, dogmas...). Por isso, a teologia no seu dilogo como a comunidade acadmica, deve ter como ponto de partida o positivo da relao entre Deus e o ser humano, vale dizer, o emprico, que diferente do emprico-formal das cincias exatas e experimentais, tomando, porm, distncia de uma tentativa meramente especulativa de compreender esta relao. A dimenso humana e, portanto, verificvel da experincia religiosa, fundamenta-se no fato de que desta experincia emana um discurso religioso que se constitui em respostas humanas a perguntas concretas, respostas caracterizadas por sua referncia a Deus. A experincia religiosa no est acima de outras experincias humanas e muito menos fora do humano. Por sua vez, o discurso religioso que acompanha a experincia religiosa uma interpretao da realidade que comum a todos, pois se trata de uma experincia humana e no sobrenatural, no sentido de que no uma experincia que esteja para alm da prpria humanidade, num recndito ao qual somente alguns privilegiados ou mais instrudos tm acesso. Ou ainda, a f em Deus no anterior experincia humana, crer em Deus algo que nasce da maneira como se experimenta a prpria existncia humana. Portanto, a f religiosa ou a des-

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crena aparecem respectivamente ao crente e ao ateu como a melhor maneira de interpretar o mundo comum a todos ns. Entretanto, se compreendermos a experincia religiosa como uma disposio inata e particular do ser humano para se relacionar com o Infinito, ou ainda, se tomarmos o ser humano como ponto de partida da compreenso da religio, sem contudo reduzi-la ao humano, isso nos exigir o esforo de pens-la teologicamente para alm de uma humanidade auto-suficiente, em contraposio cultura ilustrada que no aceita a religio como algo inerente ao ser humano e que igualmente nega a relao com o Transcendente, como abertura ao Infinito. Isso faz do chamado giro antropolgico na teologia um ponto de partida e no um fim em si mesmo. Se me refiro experincia religiosa como uma realidade humana antes de ser eclesial, a fim de ressaltar sua autonomia ante a determinadas estruturas eclesisticas, preciso dar um passo a mais e dizer que tal experincia igualmente uma realidade pr-teolgica. A experincia religiosa constitui-se, pois, como ato primeiro, sendo o discurso teolgico um discurso sobre uma realidade anterior, autnoma, a qual pode ou no vir a institucionalizar-se de forma eclesial e mesmo ser elevada a conceito como discurso sistematicamente estruturado.

Para dizer o mesmo com a linguagem de Schleiermacher, afirmar que a teologia filha da religio equivale a dizer que o discurso teolgico elaborado com base em uma experincia religiosa que o precede, a qual no tomada necessariamente por uma instituio eclesial, mas como experincia, sentimento da ao do Infinito no finito. Por isso, o mtodo teolgico, ao considerar o estudo da religio, deve ter por fundamento um necessrio e inevitvel antropocentrismo que encontramos presente em diversas reflexes teolgicas do ponto de vista do chamado giro antropolgico e fundamentados no qual podemos falar da religio como uma experincia profundamente humana. Alm disso, a particularidade da experincia religiosa fornece o mapa lingustico para que se possa interpretar a realidade, sendo este instrumental lingustico o objeto de estudo da teologia como discurso interpretativo de uma realidade que a precede, e que, portanto, pr-teolgica, e da qual a experincia crist apenas uma experincia especfica, singular, e no a nica possvel e verdadeira. Esta especificidade da experincia religiosa crist como ponto de partida para o exerccio da teologia requer, no entanto, o conceito genrico de religio como dimenso constitutiva do ser humano, dimenso pr-teolgica e pr-eclesial.

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Esta aproximao entre teologia e religio coloca-nos inevitavelmente diante da questo sobre a verdade no contexto plural no qual vivemos: existe uma nica religio verdadeira, plenitude das demais expresses histricas da relao com o Sagrado, com o Transcendente? Provavelmente, no. Mas uma resposta negativa a esta questo no deve ser precipitadamente identificada com o menosprezo que, por vezes, caracterizou o discurso teolgico no que diz respeito fora e importncia da institucionalizao da experincia religiosa, ou ainda, sua capacidade de nos situar no mundo e ajudar a estruturar a prpria vida. Entretanto, o risco desta institucionalizao est em ligar a verdade religiosa a uma instituio como tal, ou ainda, compreender a verdade religiosa do momento histrico fundador que a legitima, momento mediado por uma instituio historicamente situada, portanto limitada. A religiosidade que caracteriza o ser humano a matriz antropolgica que pode dar corpo a formas institucionais, mas pode tambm possibilitar ou dar lugar a formas no-institucionais que alguns chamam de religiosidade errante21. Nessa perspectiva, a religio diz mais do

que ela mesma na relao com o Sagrado, pois permite o surgimento da religiosidade que transcende as suas prprias fronteiras. Este pluralismo religioso exigir tanto dos telogos como de outros estudiosos da religio a abertura a uma maior multiplicidade de temas, interesses e perspectivas que se situam para alm das fronteiras da religio crist e das diversas teologias que ela produz. Assim, a interdisciplinaridade deixa de ser uma intriga entre diversas disciplinas que procuram se apropriar do objeto religio e assume a noo de uma cooperao entre diversas formas de saber que compreendem no serem proprietrias exclusivas do objeto que pesquisam. Qual seria, no entanto, a importncia da experincia religiosa na tarefa teolgica? O que a teologia acrescenta experincia religiosa que ela j no possua em si mesma? Uma experincia religiosa quase sempre necessita de ritualidade. Uma pessoa de f religiosa, por vezes, precisa de um mestre espiritual. Em ambos os casos, porm, nem sempre existe a necessidade de um discurso teolgico. Todavia, a presena da teologia se faz necessria quando a experincia religiosa se insere num con-

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Esta perspectiva desenvolvida por Pierre Gisel em seu texto Le New Age. Entre institutionalization de la religion et religiosit vagabondante. Un regar de thologien.

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texto histrico diferente, na medida em que acontece a inevitvel descontinuidade de formas e representaes do mundo religioso. Desse modo, a teologia seria a descrio ordenada e metdica que clarifica a f por meio de uma linguagem mais elaborada, sem contudo tender a um estudo sistemtico sobre Deus como verdade ontolgica, e sim a uma hermenutica da linguagem religiosa como afirmaes humanas sobre Deus e comportamentos humanos diante dele. Hermenutica aqui entendida no somente como tcnica de interpretao de textos, mas acima de tudo como decifrao da vida no espelho do texto22 na possibilidade de compreender o sentido da vida no sentido segundo, velado pelo sentido primeiro oferecido pelos smbolos da linguagem religiosa. no equilbrio instvel entre a linguagem simblica e o discurso racional que se constri o discurso teolgico sobre a religio, o qual deve estar estruturado de tal modo que a sua validao acontea na recepo de uma tradio que implica numa verdadeira produo de sentido. Por isso, conceber a teologia como hermenutica teolgica, tem por pressuposto a idia de que no existe22 23

discurso teolgico sobre a religio que no seja uma tentativa de interpret-la. Alm disso, a hermenutica denuncia a ilusria pretenso de um saber desinteressado, centrada num Eu neutro, na medida em que todo processo interpretativo supe um sistema referencial que organiza uma determinada escala de valores, a partir da qual nos debruamos sobre uma determinada realidade. Este deslocamento do ser humano com relao a toda falsa subjetividade central constitui-se num evento de verdade fundamental de nosso tempo.23 O exerccio da teologia torna-se um constante ato interpretativo e consider-lo dessa maneira levar em conta a historicidade da verdade. O carter hermenutico da teologia est intimamente relacionado sua dimenso antropolgica, uma vez que somente podemos compreender textos histricos, como o caso dos textos religiosos, se tivermos em conta as questes que movem a prpria existncia humana. No caso concreto do cristianismo, qualquer afirmao sobre Deus somente possvel segundo a interpretao da linguagem da f por meio da qual se dizem as diversas formas da relao com Deus na histria. A afirmao de que Deus criador est entra-

RICOEUR, Paul, O conflito das interpretaes, p. 322. GEFFR, Claude, Como fazer teologia hoje, p.35.

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nhada de questes sobre a origem e o destino do ser humano que indaga sobre a sua condio de criatura ou sobre a sua finitude, ou ainda, sobre o problema do mal no mundo. Com o decorrer da histria, uma teologia com orientao hermenutica tornou-se paulatinamente o destino da razo teolgica, significando hoje esta nova orientao teolgica tomar distncia da metafsica clssica e das filosofias do sujeito para considerar o ser humano segundo a dimenso lingstica que o constitui. Na medida em que este distanciamento ganha espao na reflexo teolgica, podemos falar de uma virada na prtica teolgica:....compreender a teologia como hermenutica tomar a srio a historicidade de toda verdade, inclusive da verdade revelada, e tomar a srio tambm a historicidade do homem como sujeito interpretante(...) A teologia sempre atividade hermenutica, pelo menos no sentido em que ela interpretao da significao atual do acontecimento Jesus Cristo a partir das diversas linguagens de f suscitadas por ele, sem que nenhuma delas possa ser absolutizada, nem mesmo a do Novo Testamento24.

No contexto da experincia religiosa crist, a conversao entre o sujeito interpretante e o texto supe24

uma condio prvia: o ato de f, vale dizer, um prejulgamento favorvel com relao ao texto que recebido da tradio, tendo-o como palavra de Deus. Dilogo realizado sempre com base no chamado crculo hermenutico: a inter-relao entre a riqueza dos questionamentos que surgem da realidade e aquela da tradio, relao capaz de produzir uma nova interpretao da Escritura. Neste crculo hermenutico, temos a busca por um equilbrio entre a experincia pessoal e a tradio, a valorizao da pessoa dentro de um processo de relao interpessoal. Trata-se da apropriao e da reapropriao da tradio por parte do indivduo, ou seja, o enraizamento das manifestaes particulares da f numa determinada tradio e a capacidade desta tradio de fornecer elementos para a construo e reformulao da f pessoal. E isso para alm das fronteiras da teologia. justamente a presena da dimenso hermenutica em toda esfera do saber que, na minha opinio, possibilita estabelecer um dilogo entre a teologia e as outras formas de saber no estudo da religio. Todavia, h de se considerar que a cincia hermenutica diferente da noo de cincia aristotlica que possibilitou a reivindicao da suposta neutralidade e objetividade na pesquisa

Idem, Como fazer teologia hoje, p. 18.

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cientfica, o que marcou profundamente a histria da cultura ocidental. E a diferena est em que hoje cada vez mais se acentua o carter interpretativo de todo conhecimento humano. No existe acesso imediato realidade, pois todo acesso realidade feito por meio da linguagem que j necessariamente uma interpretao, a qual no se configura como uma espcie de criao do nada. A interpretao uma retomada, uma apropriao daquilo que dizem os textos da nossa predileo e as pessoas que se nos apresentam como testemunhos referenciais, para utilizar a linguagem de Juan Luis Segundo. Alm disso, colocar a interpretao como apropriao criativa de uma determinada tradio considerar o risco que est presente em todo ato interpretativo:O risco da interpretao nunca devemos esquec-lo o risco da deformao, da distoro e do prprio erro. Mas quando se trata do cristianismo, tambm o risco puro e simples da prpria f... (e) a f s fiel ao seu impulso e ao que lhe dado crer se levar a uma interpretao criativa do cristianismo. O risco de, por falta de au-

dcia e lucidez, s transmitir um passado morto no menos grave do que o do erro25.

Este risco da interpretao que na verdade significa o arriscar-se numa nova maneira de ser, possibilitada pela interpretao da textualidade da vida, tem por pressuposto que o sentido do texto no est atrs do texto, na conscincia do autor, na reconstruo do contexto no qual o texto foi tecido ou na primeira recepo do texto, e tampouco se encontra no prprio texto. O sentido est diante do texto, na possibilidade da fuso de horizontes que a apropriao interpretativa do texto nos propicia: o horizonte do texto e o novo horizonte de compreenso. A questo em torno da interpretao de um texto foi objeto de uma longa querela e de numerosos debates. No me possvel e nem cabvel, neste momento, entrar nos pormenores desta histria, mas apenas sup-los26. Em todo o caso, se o sentido no est antes e nem por baixo, mas diante do texto, ento...ler no decifrar um sentido antecedente, mas produzir um sentido, dei-

25 26

Idem, Como fazer teologia hoje, p. 5-6. RICOEUR, Paul, Du texte laction. Essais dhermneutique, p. 39-118. Ao falar da interpretao como apropriao do texto, Ricur diz que ela todo contrrio da contemporaneidade e congenialidade; ela compreenso pela distncia e compreenso na distncia (p.116). nesta distncia que ns, leitores e intrpretes, podemos habitar o mundo do texto e nele compreendermos a ns mesmos. Assim, como afirma o prprio Ricur, Hermenutica decifrar a vida no espelho do texto.

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xando-se governar pela cadeia de significaes27. E na leitura de um texto, como ato interpretativo, aquilo do que nos apropriamos uma proposio de mundo que est desdobrada, desvelada, diante do texto. Por isso, compreender passa a ser entendido como compreender-se diante do texto, sendo que a apropriao do mundo do texto conduz a novas produes de sentido na ordem da linguagem e na ordem da prxis: a hermenutica centrada no mundo do texto conduz a reinterpretao da prtica, no se prendendo a uma mera interpretao textual. A apropriao do mundo do texto aponta para uma nova possibilidade de existncia, de fazer existir um mundo novo. Por isso, para Paul Ricoeur, a hermenutica acima de tudodecifrao da vida no espelho do texto28. Assim, a tradio no se configura apenas e nem sobretudo como uma transmisso de valores e conceitos vlidos de uma vez por todas, mas principalmente como produo de sentido. E a apropriao de uma tradio mediada pelo mundo do texto leva a novas produes, tanto na ordem da linguagem como na prtica. Portanto, o cristianismo tradio enquanto vive de uma origem primeira que dada, mas tambm tradio porque esta origem somente pode ser redita historicamente segundo27 28

uma apropriao criativa da mesma, apropriao que sobretudo interpretao da tradio num novo contexto cultural, ou seja, interpretao criativa da linguagem da f e da existncia crist. Neste processo interpretativo que caracteriza o trabalho teolgico, o intelectus fidei algo diferente da razo especulativa que se move por meio do esquema sujeito-objeto. A inteleco da f implica o ato hermenutico que se distingue de um simples ato de conhecimento e identifica-se com um modo de ser no qual a compreenso do passado indissocivel da compreenso de si mesmo, sem contudo cair numa espcie de psicologismo ou numa mera hermenutica existencial. Compreender considerado menos como ao da subjetividade e muito mais como insero num processo de transmisso. Processo que, na linguagem de Juan Luis Segundo, se chama aprender a aprender. Por isso,A revelao atinge sua plenitude, seu sentido e sua atualidade somente na f que a acolhe(...) A f, em seu aspecto cognitivo, sempre conhecimento interpretativo marcado pelas condies histricas de uma poca. E a teologia, enquanto discurso interpretativo, no somente a expresso diferente de um contedo de f

GEFFR, Claude, Como fazer teologia hoje, p. 37. RICOEUR, Paul, O conflito das interpretaes, p. 322.

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sempre idntico, que escaparia historicidade. Ela tambm a interpretao atualizante do prprio contedo da f29.

Do ponto de vista hermenutico, os textos bblicos so revelao, na medida em que desdobram diante de ns a possibilidade de um ser novo e no porque foram escritos sob o ditado de Deus. Um ser novo segundo o qual podemos nos compreender, podemos decifrar a vida. Por isso, a apropriao do texto implica uma nova possibilidade de existncia associada vontade de fazer existir um novo mundo. No h revelao sem converso nem sem um comportamento tico. A apropriao do texto igualmente a possibilidade de um novo discurso. E todo discurso em si mesmo algo provisrio, relativo, no se confunde com um saber constitudo, acabado, imutvel, linguagem interpretativa, sempre relativa perspectiva que o produziu. E esta interpretao possvel graas alteridade do texto, distncia que possibilita novos sentidos desde o nosso presente de leitor. Todavia, no caso concreto do trabalho teolgico, o telogo recebe o texto de uma comunidade, a Igreja. E porque esta comunidade est em continuida29 30

de com a comunidade primitiva, que produziu esse texto, que ele no pode faz-lo dizer qualquer coisa30. Esta viso da teologia suscitou diversas crticas, a saber: a teologia hermenutica nada mais seria que uma teologia da palavra, preocupada somente em propor uma nova interpretao terica do cristianismo, deixando de lado a prtica histrica dos crentes e da Igreja; a teologia tomaria a hermenutica somente como mtodo de leitura de texto; a hermenutica no trabalho teolgico seria expresso do pensamento metafsico e de tcnica de leitura. Estas crticas talvez digam mais respeito a uma atitude dogmtica na teologia que apresenta as verdades da f de maneira autoritria, tendo por garantia unicamente o magistrio da Igreja. Para uma atitude dogmtica de olhar a realidade, como me referi acima, o ponto de partida da teologia seria o ensinamento atual do magistrio, aparecendo a Escritura como prova daquilo que j estava estabelecido pelo magistrio. Em outras palavras, uma atitude dogmtica busca nas Escrituras e na tradio a legitimao de uma deciso j tomada. Contrariamente a esta postura, a hermenutica teolgica no estudo da religio leva a srio a historicidade da

GEFFR, Claude, Como fazer teologia hoje, p. 18.

Idem, ibidem, p.23.

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verdade e a historicidade do intrprete da mensagem crist que busca atualiz-la para a sua realidade, o que faz da teologia um fenmeno de reescritura com base em escrituras anteriores. Neste processo, temos a compreenso do passado e a atualizao criativa direcionada para o futuro, perpassando a compreenso de si no presente. Por isso, igualmente tarefa da hermenutica discernir a experincia histrica que fundamenta as formulaes teolgicas que se transformam em definies dogmticas31. A teologia como hermenutica diferente da chamada teologia positiva, que privilegia a pesquisa histrica dos dados da f e distinta tambm da teologia especulativa, que enfatiza a explicao radical dos dados da f. A teologia como hermenutica procede a uma releitura dos objetos textuais, procurando decifr-los para hoje, e desta nova leitura realiza uma nova escritura. A teologia hermenutica interpretao da palavra de Deus e das experincias histricas, o que faz da teologia um discurso necessariamente plural, no sendo este pluralismo na teologia e mesmo na confisso de f uma exigncia dos tempos modernos ou ps-modernos,31 32

mas exigncia da identidade hermenutica prpria ao discurso teolgico. O empreendimento hermenutico da teologia no significa, contudo, o fim do dogma, mas sim o fato de se tomar como ponto de partida o engajamento na leitura criativa dos textos da tradio, em sintonia com a apreenso da realidade que, por sua vez, gera novos conceitos. No empreendimento hermenutico, considera-se sempre a posse relativa da verdade no plano humano, a qual aponta para uma verdade inacessvel inerente ao mistrio de Deus. Se o erro do historicismo foi identificar a verdade do cristianismo com a reconstruo dos fatos histricos, o erro do racionalismo teolgico foi a ruptura entre os enunciados dogmticos e os fundamentos escritursticos e histricos. Alm do que, a concepo metafsica da verdade e a concepo de verdade do historicismo so herdeiras de uma mesma problemtica de fundo: a idia de correspondncia, de adequao entre sujeito e objeto, segundo uma relao imediata na origem identificada com a plenitude do ser ou com um fato histrico32. Por isso, no intil lembrar que todo relato histrico dito no seio da histria e como interpretao dessa histria.

Idem, Crer e interpretar, p. 50. Idem, ibidem, p. 75.

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O trabalho hermenutico na teologia significa, pois, o esforo constante para tornar mais audvel e inteligvel a linguagem da f religiosa. A linguagem teolgica supe uma verdade que fundamentalmente histrica, recebida por via testemunhal, e o testemunho no exerccio da teologia supe sempre distncia e interpretao. Portanto, no h acesso imediato verdade, uma vez que a verdade dos enunciados da f somente atingida pela linguagem teolgica numa perspectiva histrica. A verdade crist para a linguagem teolgica sempre um devir entregue ao risco da histria e da liberdade criativa do crente, sob a moo do Esprito (Jo 14,26). Um pressuposto fundamental neste debate hermenutico que envolve o estudo da religio, do ponto de vista cristo, o fato de que o testemunho da comunidade primitiva tornou-se um texto, ou seja, a teologia trabalha com um texto que j em si mesmo um ato de interpretao. Na verdade, a Escritura um ato de interpretao, e a distncia que nos separa dos textos bblicos a possibilidade de a teologia realizar um ato de reinterpretao da existncia humana por meio da linguagem religiosa. E neste empreendimento hermenutico a teologia encontra nos textos da Escritura, na tradio e33

no contedo das nossas experincias histricas, critrios fundamentais para avaliar a pertinncia da atual interpretao da mensagem crist. A reflexo sobre a dimenso hermenutica da teologia no estudo da religio, com base na noo de texto, pode ser considerada como um paradigma apropriado ao objeto das cincias humanas, enquanto a metodologia da interpretao de textos, um paradigma geral no contexto das cincias humanas33. Isso permite considerar as cincias humanas como cincias hermenuticas, uma vez que o objeto de estudo de tais cincias semelhante a um texto sempre aberto interpretao. E entender-se como cincia hermenutica j em si mesma uma abertura ao outro, ao diferente, abertura que possibilita o dilogo entre a teologia e as cincias humanas no estudo da religio. Isso porque o carter hermenutico nos afasta de uma postura dogmtica, enquanto a noo de mundo do texto nos distancia de uma interpretao subjetivista da realidade. Tanto a teologia como as cincias humanas, que se dedicam ao estudo da religio, interpretam a textualidade da vida com base nas tramas e nas urdiduras que tecem o texto da histria humana.

RICUR, Paul, Du texte laction, p.183.

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Concluso Com base na problemtica, anunciada ao longo desta reflexo, algumas consequncias para uma teologia crist do pluralismo religioso merecem destaque34. Inicialmente, preciso dizer que o passo inicial para ultrapassar a oposio entre a cincia e a f religiosa nos conduz a uma concepo de f religiosa que possui uma dimenso antropolgica razovel de ser e estar no mundo, bem como a uma ampliao do conceito de razo para no nos tornarmos cativos de uma viso unilateral e racionalista do pensamento moderno, hoje profundamente questionada. No obstante o valor de todas as dimenses da racionalidade moderna, tcnico-cientfica, a f religiosa no deixa de ser uma instncia razovel. Ela no racional porque no se fundamenta na evidncia (empricoformal) da verdade crida, mas razovel na medida em que se coaduna estrutura racional humana: acreditar, amar, confiar. Esperar humano e ultrapassa a lgica ou a racionalidade puramente verificativa e quantitativa das cincias modernas, e crer, como ato humano, est alm da razo (moderna), porm jamais contra ela e nunca sem ela.34

Em seguida, importante lembrar que uma hermenutica teolgica do pluralismo religioso no tem como preocupao primeira a formao de padres ou de pastores, e sim ajudar o fiel a melhor compreender a sua f, a sua experincia religiosa, fazendo-a ser um processo de amadurecimento, isto , de humanizao do ser humano. Ajudar a experincia religiosa a iluminar a existncia humana, procurando responder s questes que tocam profundamente o corao humano. igualmente importante ressaltar que a mudana de lugar da teologia hoje no comporta necessariamente o deslocamento fsico que deu origem universidade no perodo medieval, quando a teologia deixou as escolas de grandes mestres para entrar num novo universo do saber: a universidade. da prpria universidade que se busca uma nova perspectiva teolgica, novidade que parece encontrar no estudo da religio um paradigma emblemtico. Todavia, este novo na teologia h de considerar a superao de um modelo teolgico acentuadamente eclesistico e clerical. Eclesistico, porque sua funo principal consiste em encontrar na Escritura e na Tradio fundamentos para o ensinamento do magistrio. Clerical, porque exercida exclusivamente por padres e pas-

Fundamento-me sobretudo nos escritos do telogo francs Claude Geffr.

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tores, e para a sua formao. Esta superao significa a passagem para uma teologia que busca, sobretudo, ser intrprete da linguagem religiosa como doadora de sentido de vida. Da que a pluralidade das grandes religies nocrists se configura no desafio maior para a Teologia crist neste incio do sculo XXI. Se o atesmo foi o horizonte desde o qual, a partir da segunda metade do sculo XX, a teologia reinterpretava as grandes verdades da f crist, o pluralismo religioso configura-se como o horizonte do saber teolgico no sculo XXI. Trata-se de uma questo incontornvel para o exerccio da teologia que est a exigi-la inter-religiosa. Assim, tomar o dilogo inter-religioso como horizonte da teologia para este sculo significa tambm colocar em discusso o conceito de verdade subjacente teologia crist, ou seja, reinterpretar as verdades da f crist luz das verdades contidas nas outras tradies religiosas. O pluralismo religioso aponta para um significativo deslocamento teolgico, uma vez que o reconhecimento teolgico do valor da diversidade religiosa coloca obrigatoriamente a pergunta pelo lugar das religies no projeto salvfico de Deus. Numa teologia do plura-

lismo religioso, busca-se um discurso teolgico que considere o valor positivo da historicidade das religies no que diz respeito sua relao com o Absoluto, ou seja, considerar positivamente a alteridade das outras tradies religiosas em sua diferena irredutvel, ou ainda, de uma forma mais radical, pensar o pluralismo religioso como algo querido por Deus. Esta teologia deve considerar a diversidade religiosa como um pluralismo de direito e no como uma mera contingncia histrica, isto , o pluralismo no uma cegueira culpvel do ser humano e tampouco um fracasso da misso da Igreja, mas algo que misteriosamente faz parte dos desgnios de Deus. Enfim, cabe dizer que a reaproximao entre a teologia (crist) e a religio no contexto acadmico brasileiro aponta para uma nova maneira de conceber o exerccio da teologia dentro da universidade. Novidade em gestao desde uma orientao antropolgica que pretende levar a srio a dimenso hermenutica de toda e qualquer cincia, o que colabora com a inteleco da religio como dimenso constitutiva do ser humano e, ao mesmo tempo, permite o dilogo entre a teologia e as outras formas de saber no mundo acadmico.

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Walter Ferreira Salles (1963) natural de Rio de Janeiro/RJ. Desde 2001, professor na Pontifcia Universidade Catlica de Campinas (PUC-Campinas). graduado em Filosofia, 1991, e em Teologia, 1995, pelo Centro de Estudos Superiores da Companhia de Jesus (CES). Concluiu o mestrado em Teologia, 1997, pelo Centre Svres Institut Suprieur de Thologie et de Philosophie de la Compangie de Jsus, Frana, com a dissertao Une nouvelle vie en Jsus Christ (Uma nova vida em Jesus Cristo). doutor em Cincias da Religio, 2006, pela Universidade Metodista de So Paulo (UMESP). Sua tese de doutorado intitula-se A teologia e o estudo da religio. A hermenutica teolgica como reinterpretao da linguagem da f e da existncia crist. Algumas publicaes do autor Antropologia, lugar de toda teologia. In: VV.AA. Teologia e modernidade. So Paulo: Fonte Editorial, 2005. Deus est morto! Nietzsche e o fim da teologia. In: Reflexo, v.83-84, p.37-49, 2003. O drama da criao. A primeira semana dos Exerccios Espirituais. Revista de Espiritualidade Inaciana, n. 40, p.5-23, 2000. Jesus Cristo, Princpio e Fundamento. Revista de Espiritualidade Inaciana, n. 36, p.5-18, 1999.