Walter Benjamin. Passagens Arquivo M 2

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Passagens A singular indecisão do flâneur. Assim como a espera parece ser o estado próprio do contemplador impassível, a dúvida parece ser o do flâneur. Em uma elegia de Schiller se: "A asa indecisa da borboleta." 10 Isto remete à correlação entre a eufórica leveza e o sentimento de dúvida, tão característica da embriaguez no haxixe. (M 4a, 11 E. T. A. Hoffmann como tipo do flâneur. Seu conto "Des Vetters Eckfenster" ("A janela de esquina do primo") é o testamento do flâneur. Daí o grande êxito de Hoffmann na França, onde este tipo gozava de especial compreensão. Nas observações biográficas da edição em cinco volumes de seus últimos escritos lê-se: "Hoffmann nunca foi um grande aficcionado da natureza. Os seres humanos a comunicacação com eles, sua observação, o simples fato de olhá-los importavam-lhe mais que qualquer outra coisa. Quando saía a passeio no verão, o que, com bom tempo, ocorria diariamente no entardecer ... não era fácil encontrar uma taverna ou confeitaria, onde ele não tivesse entrado para ver se havia pessoas, e de que espécie." [M 4a, 21 Ménilmontant. "Neste imenso bairro, cujos magros salários condenam crianças e mulheres a eternas privações, a Rue de Ia Chine e as que se encontram com ela e a cruzam, como a Rue des Partants e esta surpreendente Rue Orfila, tão fantástica com seus circuitos e suas voltas bruscas, com seus tapumes de madeira mal cortada, seus caramanchões desabitados, seus jardins desertos regressando ao estado de pura natureza, com ervas daninhas e arbustos selvagens, respiram o sossego e uma rara calma... É, sob um grande céu, uma trilha no campo, onde a maioria das pessoas que passam parece ter comido e bebido." J. K. Huysmans, Croquis Parisiens, Paris, 1886, p. 95 ("La rue de Ia Chine"). [M 4a, 31 Dickens. "Em suas cartas ... queixa-se sempre, quando em viagem, mesmo nas montanhas da Suíça ... sobre a falta do burburinho das ruas que era indispensável para sua produção poética. 'Não saberia dizer como as ruas me fazem falta', escreveu ele em 1846 de Lausanne, onde elaborou um de seus maiores romances (Dombey and Son). 'Parece que elas fornecem a meu cérebro algo que lhe é imprescindível quando precisa trabalhar. Durante uma semana, quinze dias, consigo escrever maravilhosamente em um lugar afastado; um dia em Londres é então suficiente para me refazer e me inspirar de novo. Mas o esforço e o trabalho de escrever dia após dia sem essa lanterna mágica são enormes... Meus personagens parecem paralisados quando não têm uma multidão ao redor... Em Gênova ... eu tinha ao menos duas milhas de ruas iluminadas por onde eu podia vagar durante a madrugada, e um grande teatro todas as noites."' Franz Mehring, "Charles Dickens", Die Neue Zeit, Stuttgart, 1912, XXX, n o 1, pp. 621-622. [M 4a, 41 Descrição da miséria, provavelmente sob as pontes do Sena: "Uma boêmia dorme, a cabeça inclinada para frente, a bolsa vazia entre as pernas. Sua blusa é coberta de alfinetes que o sol faz brilhar. E todos os seus acessórios domésticos e de toalete duas escovas, a faca aberta 10 Des Schmetterlings zweifelnder Flügel." Cf. Friedrich Schiller, Såmtliche Werke, vol. l, Munique. 1965. p. 229: "...mit zweifelndem Flügel / Wiegt der Schmetterling Sich Ober dem rötlichen Klee." (RT) 11 Os volumes XI-XV dos Ausgewählte Schriften de E. T. A. Hoffmann foram publicados em 1839 Na Editora Fr. Brodhag, Stuttgart. A citaçåo que segue, de autoria de Julius Eduard Hitzig. encontra•se vol. XV, pp. 32-34. (R.T.)

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A singular indecisão do flâneur. Assim como a espera parece ser o estado próprio do

contemplador impassível, a dúvida parece ser o do flâneur. Em uma elegia de Schiller lê

se: "A asa indecisa da borboleta." 10 Isto remete à correlação entre a eufórica leveza e o

sentimento de dúvida, tão característica da embriaguez no haxixe.

(M 4a, 11

E. T. A. Hoffmann como tipo do flâneur. Seu conto "Des Vetters Eckfenster" ("A janela de

esquina do primo") é o testamento do flâneur. Daí o grande êxito de Hoffmann na França,

onde este tipo gozava de especial compreensão. Nas observações biográficas da edição em

cinco volumes de seus últimos escritos lê-se: "Hoffmann nunca foi um grande

aficcionado da natureza. Os seres humanos — a comunicacação com eles, sua observação, o

simples fato de olhá-los — importavam-lhe mais que qualquer outra coisa. Quando saía a

passeio no verão, o que, com bom tempo, ocorria diariamente no entardecer ... não era fácil

encontrar uma taverna ou confeitaria, onde ele não tivesse entrado para ver se lá havia

pessoas, e de que espécie."[M 4a, 21

Ménilmontant. "Neste imenso bairro, cujos magros salários condenam crianças e mulheres

a eternas privações, a Rue de Ia Chine e as que se encontram com ela e a cruzam, como a

Rue des Partants e esta surpreendente Rue Orfila, tão fantástica com seus circuitos e suas

voltas bruscas, com seus tapumes de madeira mal cortada, seus caramanchões desabitados,

seus jardins desertos regressando ao estado de pura natureza, com ervas daninhas e arbustos

selvagens, respiram o sossego e uma rara calma... É, sob um grande céu, uma trilha nocampo, onde a maioria das pessoas que passam parece ter comido e bebido." J. K. Huysmans,

Croquis Parisiens, Paris, 1886, p. 95 ("La rue de Ia Chine").[M 4a, 31

Dickens. "Em suas cartas ... queixa-se sempre, quando em viagem, mesmo nas montanhasda Suíça ... sobre a falta do burburinho das ruas que era indispensável para sua produçãopoética. 'Não saberia dizer como as ruas me fazem falta', escreveu ele em 1846 de Lausanne,onde elaborou um de seus maiores romances (Dombey and Son). 'Parece que elas fornecema meu cérebro algo que lhe é imprescindível quando precisa trabalhar. Durante uma semana,quinze dias, consigo escrever maravilhosamente em um lugar afastado; um dia em Londresé então suficiente para me refazer e me inspirar de novo. Mas o esforço e o trabalho deescrever dia após dia sem essa lanterna mágica são enormes... Meus personagens parecemparalisados quando não têm uma multidão ao redor... Em Gênova ... eu tinha ao menosduas milhas de ruas iluminadas por onde eu podia vagar durante a madrugada, e umgrande teatro todas as noites."' Franz Mehring, "Charles Dickens", Die Neue Zeit, Stuttgart,1912, XXX, no 1, pp. 621-622.

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Descrição da miséria, provavelmente sob as pontes do Sena: "Uma boêmia dorme, a cabeçainclinada para frente, a bolsa vazia entre as pernas. Sua blusa é coberta de alfinetes que o solfaz brilhar. E todos os seus acessórios domésticos e de toalete — duas escovas, a faca aberta

10 Des Schmetterlings zweifelnder Flügel." Cf. Friedrich Schiller, Såmtliche Werke, vol. l, Munique. 1965.p. 229: "...mit zweifelndem Flügel / Wiegt der Schmetterling Sich Ober dem rötlichen Klee." (RT)

11 Os volumes XI-XV dos Ausgewählte Schriften de E. T. A. Hoffmann foram publicados em 1839 NaEditora Fr. Brodhag, Stuttgart. A citaçåo que segue, de autoria de Julius Eduard Hitzig. encontra•sevol. XV, pp. 32-34. (R.T.)