Walter Smetak Estranha Mistura

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Domingo, 10 de Abril de 2005 Estranha mistura Filho de um músico e uma cigana checos radicados na Suíça traz sua genialidade ao Brasil Ainda criança, Smetak colava o ouvido na mesa para ouvir as vibrações da cítara tocada pelo pai Desde muito cedo, Anton Walter Smetak fascinou-se pelos mistérios do som. Com 2 ou 3 anos de idade, costumava colar os ouvidos na mesa, para ouvir na madeira as vibrações da cítara tocada pelo pai. Filho de um músico e uma cigana checos radicados na Suíça, Smetak nasceu de uma estranha mistura, envolvendo os gens da arte e do esoterismo, da técnica e da intuição, tudo isso somado à sua personalidade inquiridora de menino. Mas por volta de 1913, ano do seu nascimento, a vida em Zurique não dava vazão à curiosidade infantil; os estudos eram feitos em internatos rígidos, e a educação doméstica era controlada pela mãe com mãos de ferro. O pai, afeito às atividades mais lúdicas, encorajava-o a seguir a carreira musical e tocar cítara. Anos depois, ele se desapontaria quando o filho, por amor a Bach, escolheria o piano. Depois de um acidente com as mãos e muitas desavenças com o pai, Smetak passa a dedicar-se ao violoncelo e, em 1929, ingressa no Conservatório de Zurique. De lá, ele continua seus estudos na Academia de Música e Arte Dramática "Mozarteum", na Áustria. Até então, ele era mais um músico europeu de formação rígida e tradicional, e o elo perdido entre o jovem e o velho Smetak, tão contrastantes entre si, parecia infinito. Mas já havia nele uma grande curiosidade pela natureza da música, menos no aspecto estético, do que na forma como ela nascia, se desenvolvia e morria, no eterno ciclo das escalas musicais executadas pelos instrumentos. Para saciar tanta curiosidade, seria preciso desmontar cada violoncelo, abrir cada piano, observando a vibração das cordas, para penetrar no lado obscuro das caixas de ressonância. E assim, Smetak passou a faltar às aulas do conservatório para freqüentar oficinas de lutiers, conhecendo o fino artesanato dos instrumentos musicais. Sempre habilidoso com trabalhos manuais, ele não demorou a perceber que levava jeito para a coisa. Solos nos trópicos Ao mesmo tempo, consagrou-se como um bom violoncelista, participando de orquestras e fazendo solos em Zurique. Mas as delícias da fama, na década de 30, viriam juntamente com as dores da guerra. Ao ser confundido com um alemão nazista, Smetak recebe certa noite uma pedrada na cabeça, em plena rua. O episódio precipitaria sua vinda para os trópicos, mais precisamente Rio Grande do Sul, a convite de Grunsky, seu professor de violoncelo. "Ele fugiu da guerra. Era careta, medroso, tinha medo de ser recrutado", conta João Santana Filho, jornalista e amigo de longa data. Chegando ao Brasil em 1937, o jovem Smetak era apenas um menino; trazia consigo sua nova esposa alemã, Maria Agnez, uma copista de escalas musicais. Dizia-se que era mulher dominadora, e tinha a idade de sua mãe; algo que Freud explicaria bem. Tempos depois, a diferença de idade contribuiria para o fim do casamento, em 1959. Trabalhando na orquestra das rádios de Porto Alegre, Smetak foi convidado para lecionar violoncelo no Instituto de Belas Artes do Rio Grande do Sul. Estava bem estabelecido na região, e o choque cultural parecia ser pequeno, numa terra onde a colônia de alemães e suíços crescia a olhos vistos. Mesmo assim, existia perseguição aos alemães nazistas na região, e com a dissolução das orquestras, Smetak decide excursionar como músico pelo resto do país. À época, tocou em boates do Rio e São Paulo, no famoso Cassino da Urca, e chegou mesmo a integrar a orquestra de Carmem Miranda, como um anônimo ilustre. Nas horas vagas, dava prosseguimento às atividades de lutier, estudando eletrônica e criando um microfone de contato para piano. Por falta de recursos financeiros, ele acaba desistindo de patentear a invenção anos depois. Além das atividades de luteria e orquestra, Smetak ainda encontrava tempo para compor. Até a primeira metade da década de 50, já reunia 13 peças para piano e três para violoncelo de cordas, que viriam a ser executadas nas rádios de Zurique. Entre elas, está a famosa obra O malandro assobiando, para violoncelo e orquestra. Rupturas Mas se as partituras do período mostram, aparentemente, a trajetória de um músico europeu tradicional, nas entrelinhas se percebe que uma grande transformação estava sendo gestada, literalmente, no interior de Walter Smetak. Amigos contam que uma doença grave acometeu-o no Brasil, com sintomas semelhantes a um fogo percorrendo-lhe o corpo. À época, Smetak e os médicos não compreenderam bem o fenômeno; anos depois, ele qualificaria o período de quase-morte como uma espécie de iluminação, um chamado. "Foi quando ocorreu o primeiro momento de ruptura na Correio da Bahia file:///C:/Documents%20and%20Settings/Roberto%20Castro/Desktop/4... 1 de 2 24/5/2009 19:35

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Domingo, 10 de Abril de 2005

Estranha misturaFilho de um músico e uma cigana checos radicados na Suíça traz sua genialidade ao Brasil

Ainda criança, Smetak colava o ouvido na mesa para ouvir as vibrações da cítaratocada pelo pai

Desde muito cedo, Anton Walter Smetak fascinou-se pelos mistérios do som. Com 2ou 3 anos de idade, costumava colar os ouvidos na mesa, para ouvir na madeira asvibrações da cítara tocada pelo pai. Filho de um músico e uma cigana checos radicadosna Suíça, Smetak nasceu de uma estranha mistura, envolvendo os gens da arte e doesoterismo, da técnica e da intuição, tudo isso somado à sua personalidade inquiridorade menino.

Mas por volta de 1913, ano do seu nascimento, a vida em Zurique não dava vazão à curiosidade infantil; os estudos eramfeitos em internatos rígidos, e a educação doméstica era controlada pela mãe com mãos de ferro. O pai, afeito àsatividades mais lúdicas, encorajava-o a seguir a carreira musical e tocar cítara. Anos depois, ele se desapontaria quandoo filho, por amor a Bach, escolheria o piano. Depois de um acidente com as mãos e muitas desavenças com o pai,Smetak passa a dedicar-se ao violoncelo e, em 1929, ingressa no Conservatório de Zurique. De lá, ele continua seusestudos na Academia de Música e Arte Dramática "Mozarteum", na Áustria.

Até então, ele era mais um músico europeu de formação rígida e tradicional, e o elo perdido entre o jovem e o velhoSmetak, tão contrastantes entre si, parecia infinito. Mas já havia nele uma grande curiosidade pela natureza da música,menos no aspecto estético, do que na forma como ela nascia, se desenvolvia e morria, no eterno ciclo das escalasmusicais executadas pelos instrumentos. Para saciar tanta curiosidade, seria preciso desmontar cada violoncelo, abrircada piano, observando a vibração das cordas, para penetrar no lado obscuro das caixas de ressonância. E assim,Smetak passou a faltar às aulas do conservatório para freqüentar oficinas de lutiers, conhecendo o fino artesanato dosinstrumentos musicais. Sempre habilidoso com trabalhos manuais, ele não demorou a perceber que levava jeito para acoisa.

Solos nos trópicos

Ao mesmo tempo, consagrou-se como um bom violoncelista, participando de orquestras e fazendo solos em Zurique. Masas delícias da fama, na década de 30, viriam juntamente com as dores da guerra. Ao ser confundido com um alemãonazista, Smetak recebe certa noite uma pedrada na cabeça, em plena rua. O episódio precipitaria sua vinda para ostrópicos, mais precisamente Rio Grande do Sul, a convite de Grunsky, seu professor de violoncelo. "Ele fugiu da guerra.Era careta, medroso, tinha medo de ser recrutado", conta João Santana Filho, jornalista e amigo de longa data.

Chegando ao Brasil em 1937, o jovem Smetak era apenas um menino; trazia consigo sua nova esposa alemã, MariaAgnez, uma copista de escalas musicais. Dizia-se que era mulher dominadora, e tinha a idade de sua mãe; algo queFreud explicaria bem. Tempos depois, a diferença de idade contribuiria para o fim do casamento, em 1959.

Trabalhando na orquestra das rádios de Porto Alegre, Smetak foi convidado para lecionar violoncelo no Instituto de BelasArtes do Rio Grande do Sul. Estava bem estabelecido na região, e o choque cultural parecia ser pequeno, numa terraonde a colônia de alemães e suíços crescia a olhos vistos. Mesmo assim, existia perseguição aos alemães nazistas naregião, e com a dissolução das orquestras, Smetak decide excursionar como músico pelo resto do país.

À época, tocou em boates do Rio e São Paulo, no famoso Cassino da Urca, e chegou mesmo a integrar a orquestra deCarmem Miranda, como um anônimo ilustre. Nas horas vagas, dava prosseguimento às atividades de lutier, estudandoeletrônica e criando um microfone de contato para piano. Por falta de recursos financeiros, ele acaba desistindo depatentear a invenção anos depois. Além das atividades de luteria e orquestra, Smetak ainda encontrava tempo paracompor. Até a primeira metade da década de 50, já reunia 13 peças para piano e três para violoncelo de cordas, queviriam a ser executadas nas rádios de Zurique. Entre elas, está a famosa obra O malandro assobiando, para violoncelo eorquestra.

Rupturas

Mas se as partituras do período mostram, aparentemente, a trajetória de um músico europeu tradicional, nas entrelinhasse percebe que uma grande transformação estava sendo gestada, literalmente, no interior de Walter Smetak. Amigoscontam que uma doença grave acometeu-o no Brasil, com sintomas semelhantes a um fogo percorrendo-lhe o corpo. Àépoca, Smetak e os médicos não compreenderam bem o fenômeno; anos depois, ele qualificaria o período dequase-morte como uma espécie de iluminação, um chamado. "Foi quando ocorreu o primeiro momento de ruptura na

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vida dele", explica Santana Filho.

Após se recuperar da doença, Smetak encontraria no misticismo todo o bálsamo para sua dor, e assim entenderiamelhor o que o acometeu. Foi quando criou laços definitivos com a eubiose, religião apresentada por um amigo músico,em São Paulo. Sua presença nas reuniões ministradas pelo mestre José Henrique de Souza - fundador da SociedadeTeosófica Brasileira, em 1924 - tornou-se freqüente. A partir da eubiose, Smetak saciou sua personalidade inquiridora,encontrando explicações para a existência, a natureza do tempo, do mundo, a partir de ensinamentos milenares vindosdo Oriente. A proposta da "religião-sabedoria" era unir fé e ciência, intuição e razão, incentivando os questionamentos ediscursos de seus membros na construção de um novo homem e um novo mundo.

Imerso nesses ensinamentos, Smetak incorpora-os em sua arte, dando os primeiros títulos de caráter esotérico às suascomposições musicais. Nessa época, ele recebe um convite do maestro Hans Joachim Koellreutter para lecionar nosSeminários de Música da Ufba, em 1957. A chegada à Bahia, mais do que uma simples mudança de cidade, de cultura oude costumes, foi a segunda grande ruptura em sua vida. Mas ele ainda não sabia disso.

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