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XII Semana de Extensão, Pesquisa e Pós-Graduação - SEPesq Centro Universitário Ritter dos Reis XII Semana de Extensão, Pesquisa e Pós-Graduação SEPesq – 24 a 28 de outubro de 2016 Waterfronts Fluviais, uma análise por aproximação: A Estação das Docas de Belém e o Cais Mauá de Porto Alegre Rodrigo Poltosi Gomes de Jesus Mestrando em Arquitetura e Urbanismo Uniritter/Mackenzie [email protected] Resumo: O presente artigo trata de projetos urbanos de revitalização desenvolvidos em áreas portuárias degradadas, comumente denominadas na bibliografia de waterfronts, sendo parte da linha de pesquisa desenvolvida pelo autor na dissertação de mestrado em Arquitetura e Urbanismo. O entendimento destes projetos passa pelo processo global de reestruturação econômica e a posterior disseminação, na década de 80, do planejamento urbano estratégico, que se materializa nas cidades através da implantação de projetos urbanos, e especificamente nas zonas ribeirinhas, em projetos de waterfronts. O trabalho buscará na bibliografia especializada uma aproximação com a definição destes conceitos e, no momento seguinte, analisará o caso do projeto já implantado da Estação das Docas, em Belém do Pará, como forma de identificar e validar os principais conceitos e estratégias projetuais, bem como formas de gestão e implementação da intervenção e os atores envolvidos. O resultando desta análise poderá ser cotejado com a situação da área portuária do Cais Mauá de Porto Alegre, que atualmente encontra-se em fase de pré-implantação, possibilitando assim eventuais correções de rumos e antecipação de possíveis resultados. 1 Introdução O processo global de reestruturação econômica a partir da crise do petróleo, da falência do Estado e decadência do sistema fordista, que proporcionou o crescimento do capitalismo nos anos 50 e 60, resultou em uma série de transformações nas cidades, com o surgimento de espaços urbanos desqualificados provenientes de antigas áreas da indústria da transformação. Os avanços tecnológicos quanto ao transporte de cargas, com a utilização de containeres, acabou por subutilizar as áreas portuárias de inúmeras cidades que tinham importância geográfica para o comércio fluvial de mercadorias e acabaram tendo sua orla esvaziada, evidenciando a necessidade de alternativas de reformulações de seu espaço. No entendimento que havia se chegado ao fim dos dias da economia manufatureira, com a emergência do mercado globalizado e do capitalismo neoliberal, houve uma incessante busca por uma solução para o ressurgimento econômico, e como aponta HALL (2013, pg. 407), a fórmula salvadora encontrada tratava de criar novas funções para as áreas obsoletas e subutilizadas deixadas pela crise, sendo denominada de Revitalização Urbana, uma palavra-isca que constituía num novo tipo de parceria criativa, entre o

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Waterfronts Fluviais, uma análise por aproximação:

A Estação das Docas de Belém e o Cais Mauá de Porto Alegre

Rodrigo Poltosi Gomes de Jesus Mestrando em Arquitetura e Urbanismo Uniritter/Mackenzie [email protected]

Resumo : O presente artigo trata de projetos urbanos de revitalização desenvolvidos em áreas portuárias degradadas, comumente denominadas na bibliografia de waterfronts, sendo parte da linha de pesquisa desenvolvida pelo autor na dissertação de mestrado em Arquitetura e Urbanismo. O entendimento destes projetos passa pelo processo global de reestruturação econômica e a posterior disseminação, na década de 80, do planejamento urbano estratégico, que se materializa nas cidades através da implantação de projetos urbanos, e especificamente nas zonas ribeirinhas, em projetos de waterfronts. O trabalho buscará na bibliografia especializada uma aproximação com a definição destes conceitos e, no momento seguinte, analisará o caso do projeto já implantado da Estação das Docas, em Belém do Pará, como forma de identificar e validar os principais conceitos e estratégias projetuais, bem como formas de gestão e implementação da intervenção e os atores envolvidos. O resultando desta análise poderá ser cotejado com a situação da área portuária do Cais Mauá de Porto Alegre, que atualmente encontra-se em fase de pré-implantação, possibilitando assim eventuais correções de rumos e antecipação de possíveis resultados.

1 Introdução O processo global de reestruturação econômica a partir da crise do

petróleo, da falência do Estado e decadência do sistema fordista, que proporcionou o crescimento do capitalismo nos anos 50 e 60, resultou em uma série de transformações nas cidades, com o surgimento de espaços urbanos desqualificados provenientes de antigas áreas da indústria da transformação. Os avanços tecnológicos quanto ao transporte de cargas, com a utilização de containeres, acabou por subutilizar as áreas portuárias de inúmeras cidades que tinham importância geográfica para o comércio fluvial de mercadorias e acabaram tendo sua orla esvaziada, evidenciando a necessidade de alternativas de reformulações de seu espaço.

No entendimento que havia se chegado ao fim dos dias da economia manufatureira, com a emergência do mercado globalizado e do capitalismo neoliberal, houve uma incessante busca por uma solução para o ressurgimento econômico, e como aponta HALL (2013, pg. 407), a fórmula salvadora encontrada tratava de criar novas funções para as áreas obsoletas e subutilizadas deixadas pela crise, sendo denominada de Revitalização Urbana, uma palavra-isca que constituía num novo tipo de parceria criativa, entre o

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governo municipal e o setor privado, apoiado em um conceito de reutilização adaptável, ou seja, a recuperação de antigas estruturas físicas para novos usos.

O Neoliberalismo viu nestas estruturas ociosas, localizadas em áreas centrais e estratégicas, com infra-estrutura disponível e forte simbolismo, uma importante oportunidade para investimentos imobiliários associados a este novo modelo de desenvolvimento urbano. Esta idéia de Revitalização Urbana estava alinhada com o que viria a ser o planejamento urbano estratégico, que foi inspirado em conceitos e técnicas oriundos do planejamento empresarial, sintetizado na Harvard Business School, que deveria ser adotado pelos governos locais em razão de estarem às cidades submetidas às mesmas condições e desafios que as empresas (VAINER, 2013, pg. 76).

A idéia do planejamento estratégico acaba derivando novas abordagens, como o marketing voltado para o planejamento de lugares, tendo como meta aumentar a atratividade do público através do desenvolvimento de estratégias de posicionamento, como a utilização do potencial cultural da cidade para torná-la vendável. Este tipo de intervenção, após experiências paradigmáticas da Europa e dos Estados Unidos, aponta VAINER (2005, p.3), transformou-se num modelo a ser seguido, se espalhando por diversos países, como uma solução para a crise das cidades.

Pode-se dizer que a operacionalização do Planejamento Estratégico, e da Revitalização Urbana se materializou através dos Projetos Urbanos, observando-se assim uma mudança na natureza do problema urbano, as questões urbanas que se centravam no planejamento em longo prazo, preocupada com a forma do crescimento da cidade, passavam agora a ter como problema central a competitividade urbana.

Dentro deste quadro o artigo buscará entender preliminarmente as questões conceituais que envolvem a definição de projetos urbanos e projetos de waterfront, para no momento seguinte analisar o caso do projeto já implantado da Estação das Docas, em Belém do Pará, como forma de identificar e validar os principais conceitos e estratégias projetuais, bem como formas de gestão e implementação da intervenção e os atores envolvidos. O resultando desta análise poderá ser cotejado com a situação da área portuária do Cais Mauá de Porto Alegre, que atualmente encontra-se em fase de pré-implantação, possibilitando assim eventuais correções de rumos e antecipação de possíveis resultados.

O trabalho pretende assim contribuir acerca da temática dos projetos urbanos nacionais, principalmente no que tange a projetos de waterfronts fluviais, aprofundando o debate de modo a colaborar para o desenvolvimento de uma bibliografia específica que proporcione a formulação de novos estudos sobre o modelo adequado para o desenvolvimento destas grandes intervenções urbanas.

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2 Projetos Urbanos e Projetos de Waterfronts A definição de Projetos Urbanos não é definitiva ou acabada, uma série

de autores discorre sobre o conceito com diferentes abordagens, muitas vezes de forma mais genérica, designando qualquer intervenção pública ou privada em grande escala que produza algum impacto em seu entorno imediato, ou ainda na cidade inteira.

CUENYA (2013, pg. 9), atenta para esta que apesar das discrepâncias e características de cada autor, os estudos concordam que existe um novo tipo de mega-projetos que surgiram e se disseminaram nas últimas décadas, com fisionomia quase idêntica: escritórios em arranha-céus, residências de luxo, hotéis de altíssimo padrão, shopping centers, espaços culturais e de lazer.

SOMEKH (2014, pg. 9) com o intuito de explorar as diferentes concepções da idéia de Projeto Urbano, apresenta uma matriz analítica a partir da produção teórica de diversos autores, analisando o que cada um deles entende quanto à concepção geral da expressão “Projeto Urbano”, aos atributos qualificadores dos Projetos Urbanos, e relativo à gestão, ou seja, a relação plano e projeto com o seu respectivo modus operandi para sua implementação. Como resultado da análise, podem-se sintetizar algumas características básicas deste modelo de planejamento e intervenção na cidade: • São encarados como uma resposta para grandes desafios da cidade

contemporânea; • Ambicionam a criação de novos espaços econômicos e de interesse

imobiliário; • Busca na singularidade local um ponto de apoio para desenvolver

intervenções de arquétipos globais; • Utiliza-se da arquitetura contemporânea internacional como apelo simbólico

na construção de uma imagem de cidade para o mercado global; • O Estado possui papel de mediação entre os interesses privados e públicos • Apresenta uma série de inter-relações entre fatores sociais, sócio-ambientais,

econômicos e financeiros, arquitetônico e urbanístico, político e simbólico. ULTRAMARI & REZENDE (2007, pg. 13) atenta que a partir das idéias

gerais que constroem o conceito de Projetos Urbanos se constituem dois grupos, os defensores e os detratores dos Projetos Urbanos, o que enseja que há grupos ideologicamente postados a esquerda e à direita, já que os autores indicam que há uma reação por parte das elites urbanas em relação ao planejamento democrático e participativo.

Os autores indicam críticas comuns ao modelo quanto à vulgarização da história urbana por meio da simples revalorização cênica do patrimônio arquitetônico, pela valorização de fragmentos da cidade acreditando que com isso é capaz de valorizar o todo, e pela procura na criação de ícones de arquitetura como forma de “apaziguar” críticas e polêmicas contrárias a

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determinado projeto político-partidário. VARGAS & CASTILHOS (2015, pg. 27) também citam que críticas costumeiras são realizadas direcionadas a questão da privatização dos espaços públicos por meio das PPP em razão da transferência de competência das administrações públicas para o setor privado.

Entretanto, ULTRAMARI & REZENDE (2007, pg. 8) destacam que estes projetos foram estigmatizados como intervenções de interesse de uma minoria capaz de apropriar-se de seus resultados financeiros e de elementos obrigatórios em ações do chamado Planejamento Estratégico, deixando assim de lado os seus aspectos positivos, relegados a uma questão menor na discussão.

ASCHER (2010, pg. 61) atenta que atualmente os vínculos sociais são mais frágeis e menos estáveis, porém mais numerosos, assim os indivíduos não teriam mais a sensação de compartilhar com os outros indivíduos um grande número de interesses comuns, refletindo e complicando o funcionamento da democracia representativa. Esta fragmentação e individualismo da sociedade acabam sendo representada por inúmeros grupos, cada qual com seu interesse, tornando complexa a materialização dos interesses coletivos.

SOMEKH & NETO (2005) reforçam este discurso, ressaltando que soluções efetivas para os problemas urbanos dependem hoje do envolvimento dos atores locais, da sociedade civil e de diversas esferas governamentais, na busca de novas formas de gestão e da capacidade de governança. SOMEKH (2004, pg. 130) ainda retoma a idéia de CASTELLS que neste momento caracterizado pela desestruturação das organizações, das instituições, dos movimentos sociais e das expressões culturais, “a identidade está se tornando a principal, e às vezes única, fonte de significado”. Desta forma, entende-se que a materialização da identidade é representada pelo patrimônio histórico-cultural edificado, cabendo assim integrá-lo e valorizá-lo neste modelo de construção da cidade. A inclusão do patrimônio histórico nestes projetos tem dado legitimidade às ações e ajuda a fazer frente a interesses exclusivamente econômicos que podem não considerar a importância dos bens culturais.

Entendemos neste trabalho que os projetos de revitalização de waterfronts fluviais são uma espécie de especialização dos Grandes Projetos Urbanos, conforme exemplifica VAINER (2005, pg. 10), o que gera a diferenciação em relação aos projetos intra-urbanos são as particularidades paisagísticas do sítio e a sua interface com o tecido urbano existente.

Os projetos de waterfront tornaram-se, em certo grau, a solução para algumas cidades, no que tange a criação de uma imagem pela qual ela se identifique e seja identificada, Além da qualidade paisagística, estas áreas portuárias subutilizadas deixaram uma grande carga histórica que acaba sendo resgatada como um pano de fundo para a transformação urbanística, que

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busca incorporar elementos arquitetônicos e usos de caráter global associados à singularidade local.

Pode-se apontar preliminarmente que os projetos de waterfront têm como principais características: • Valorização dos bens existentes e reconhecimento dos valores patrimoniais,

materiais e imateriais, enquanto referências da memória coletiva como suporte ao desenvolvimento do projetou;

• A utilização da paisagem como apelo paisagístico, numa lógica de consumo de lugar, e lugar de consumo;

• Repetição dos programas de uso consagrados em projetos anteriores; • A construção de referenciais ou ícones arquitetônicos, geralmente

desenvolvidos por arquitetos de reconhecimento internacional; • O estabelecimento de espaços de fruição pública; • A necessidade do estabelecimento de uma parceria público-privada com

forma de viabilizar investimentos e gestão do espaço. Como uma especialização dos projetos urbanos, os projetos de

waterfront merecem, a princípio, as mesmas críticas direcionadas aos projetos urbanos e ensejam novos questionamentos. VAINER ET. AL. (2005, pg. 18) indaga se este tipo de projeto realmente democratiza o acesso à frente fluvial ou, apenas servem para instaurar novas formas de aproveitamento de um território com grande potencial de valorização. O autor ainda destaca que o discurso da “devolução do rio à cidade” seria apenas um pano de fundo para a abertura de novas fronteiras da valorização, já que há evidências de que a aparente “democratização” do acesso à orla tem repercutido na oferta de produtos do mercado imobiliário de alto padrão, criando uma dinâmica de valorização do espaço da orla a partir dos impactos dos projetos de intervenção.

Por outro lado, Vicente Del Rio (2001), destaca as virtudes destes projetos, já que estas intervenções pontuais de qualidade e inseridas a um planejamento estratégico tendem a gerar impactos positivos e crescentes sobre o seu entorno – o centro – e a cidade como um todo.

3 O Projeto Estação das Docas – BELÉM do PARÁ

O caso da Estação das Docas, localizada na cidade de Belém, capital do Estado do Pará, provavelmente seja o projeto mais representativo no país como exemplo de revitalização de uma área portuária fluvial a partir do modelo internacional. Às margens da Baía do Guarajá, e do Rio Guamá, num ambiente de forte carga histórica, parte da intervenção em preexistências para configurar um espaço que represente uma nova imagem da cidade, numa perspectiva de desenvolvimento urbano direcionado ao turismo cultural.

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De acordo com LIMA & SANTOS (2008, pg. 232), o porto acabou tendo sua importância reduzida em função do término do período da extração gomífera amazônica, assim como a falta de modernização de suas instalações. As funções portuárias acabaram sendo deslocadas para o norte da cidade e assim como muitas outras cidades do país, Belém começou a apresentar problemas em sua área central.

Em meados dos anos 1980, nasce o discurso público de valorização da orla de Belém, com a idéia de “devolução” da orla e do “direito de ver o rio” a população. Conforme aponta KRUSE (2011, pg. 86), são elaborados diversos projetos de requalificação de áreas distintas nas margens da cidade, mas que face sua proximidade, acabam por reabilitar uma grande faixa da região central de Belém.

A Estação das Docas integra este conjunto de intervenções sendo considerado projeto estruturante pelo governo estadual, já que estava inserido num contexto de implantação de grandes equipamentos voltados para a transformação de Belém em um pólo turístico, como uma possibilidade de alterar a base produtiva do Estado. Desta forma, indica forte atrelamento com a concepção de planejamento estratégico, facilitando a atuação dos empresários envolvidos, voltado ao atendimento de um público externo e com um discurso de modernidade.

O projeto de intervenção na antiga área portuária foi fruto de um concurso público de projetos realizado em 1992 e vencido pela equipe coordenada pelos arquitetos Paulo Chaves Fernandes e Rosário Lima., entretanto, acabou gerando inúmeras polêmicas, sendo engavetado até 1997, quando o Governo do Estado realiza um convênio com a CDP - Companhia Docas do Pará, responsável pela administração portuária, para viabilizar a sua implantação.

As obras do complexo iniciaram em 1997 e foram finalizadas no ano 2000. A área de intervenção, localizada próxima a ponta da península da cidade, no centro histórico, possui 32.000m² ao longo de 500 metros de waterfront fluvial.

O partido adotado para o projeto pode ser entendido como três faixas paralelas ao Rio Guáma. A primeira junto à borda d’agua, onde funcionavam os guindastes, é exclusiva para pedestres, tornando-se num largo passeio oferecendo a paisagem ribeirinha ao visitante. Esta frente operacional de cais foi “humanizada”, com a instalação de mobiliário urbano e vegetação. Também foram mantidos alguns dos antigos guindastes, restaurados e pintados de amarelo reforçando a identidade do local.

A segunda faixa corresponde a sequência dos três antigos armazéns metálicos, importados da França, e que passaram por um processe de retrofit, para possibilitar a implantação de novos usos nas antigas estruturas destinadas ao depósito de carga.

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O primeiro armazém, denominado de “Boulevard das Artes”, abriga espaços expositivos, uma cervejaria, quiosquesl, bares, e uma área de serviços. O segundo, “Boulevard da Gastronomia”, é ocupado exclusivamente por operações de alimentação. O terceiro, “Boulevard de Feiras e Exposições”, é destinado à realização eventos ligado ao turismo de negócios. Ainda há um quarto armazém, de dimensão inferior aos demais, aonde opera um terminal hidroviário, para fins de lazer e turismo.

Figura 01 – Vista do “Boulevard de Feiras e Exposições” e do terminal hidroviário.

Fonte: Flicrk Estação das Docas

A terceira faixa, junto a Av. Boluevard Castilhos França, correspondente a antiga retro-área, sendo destinada ao estacionamento do complexo. Os dois acessos estão localizados nas extremidades, distantes cerca de 350 metros um do outro, criando um longo trecho sem animação.

A área do complexo foi arrendada pela CDP através de um convênio, por um período de 25 anos ao Governo do Estado do Pará através da Secretaria Executiva de Cultura (Secult). Do investimento de aproximadamente R$ 25 milhões para a implantação do projeto, o Estado do Pará financiou R$ 19 milhões, enquanto os outros R$ 6 milhões foram desembolsados pelos empresários que teriam o direito de explorar comercialmente a área.

Segundo ARRUDA (2003, pg. 154) a gestão do empreendimento ficou sob responsabilidade de uma entidade sem fins lucrativos, denominada “Organização Social Pará 2000”, constituída pela Secretaria Executiva de Cultura e por representantes de segmentos da sociedade, que possibilitaria que a administração fosse realizada nos moldes de uma empresa privada. A meta inicial que almejava a sustentabilidade financeira do complexo num prazo de um ano após sua inauguração nunca foi alcançada.

Conforme LIMA & SANTOS (2008, pg. 257), após dois anos o Estado já se via obrigado a injetar recursos financeiros para manter o funcionamento do complexo, e assim, acabava por subsidiar as atividades comerciais que ali funcionavam com recursos públicos. Os resultados negativos são reflexos da

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troca recorrente de operações comerciais e do consequente alto nível de inadimplência condominial.

Outro importante fator é que o projeto foi concebido para o atendimento voltado ao turista, contudo a cidade ainda não apresenta um fluxo turístico suficiente a ponto de propiciar a sustentabilidade econômica do negócio. VAINER et.al. (2005, pg. 12) destaca que este posicionamento do projeto nem sempre se insere nas possibilidades financeiras da maioria da população, especialmente no caso de uma metrópole pobre como Belém.

O acesso ao complexo acaba se dando em dois níveis, conforme aponta KRUSE (2011, pg. 102), o passeio público na orla ribeirinha pode ser usufruído por qualquer um, enquanto a parte privada (bares, lojas e restaurantes) acaba tendo acesso limitado pela capacidade econômica do freqüentador.

Desta forma observa-se que a inclusão social foi pouco expressiva, no uso pleno dos serviços e comércios ofertados, frustrando aqueles que acreditaram na inversão da lógica de produção do espaço urbano na orla.

De acordo com KRUSE (2011, pg. 103) as críticas são centradas recorrentemente na condição econômica da intervenção e da segregação social, o que limita a análise da área de forma mais complexa e que os aspectos positivos da intervenção, como a devolução de uma área subutilizada à cidade, a retomada da fruição do espaço através de usos mais apropriados à vida urbana contemporânea e à retomada do contato dos habitantes com as margens das cidades, ainda são aspectos pouco explorados por estudos. LIMA & SANTOS (2008, pg. 253) no mesmo sentido, destaca que embora o cidadão comum não se sinta à vontade para freqüentar os restaurantes da Estação das Docas, é inegável sua relevância na formação da identidade local, independentemente de se tornarem espaços de uso efetivo. 4 O Projeto Cais Mauá – Porto Alegre

As primeiras propostas para a revitalização da área do Cais Mauá iniciaram ainda no final da década de 80, e seguiram por quase trinta anos, de discussões e indecisões em torno exclusivamente das atividades a serem implantadas e da qualidade arquitetônica das propostas, até que em 2007, há uma nova abordagem do problema, onde a solução passa por um plano de negócios e pela viabilidade econômica, indo muito além do planejamento urbano tradicional e da questão estética e funcional.

A área do Cais Mauá corresponde ao trecho sul do porto, localizado na borda do centro histórico da cidade, numa faixa que varia entre 53m e 158m de largura e uma extensão de 2,3Km. A área é de propriedade do Estado do Rio Grande do Sul e possui 181.294,21m² dividida em três setores: Gasômetro (41.595,02m²), Armazéns (74.028,06m²) e Docas (65671,13m²).

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Figura 02 – Localização do Cais junto ao Centro Histórico e Divisão dos Setores.

Fonte: GoogleMaps, editado pelo autor.

A proposta de revitalização foi desenvolvida pelos reconhecidos escritórios Jaime Lerner Arquitetos Associados (Brasil) e da b720 Arquitectos (Espanha), apoiados por uma clara definição de atividades necessárias, auferidas com pesquisas de mercado, visando à sustentabilidade econômica e social do projeto.

A intervenção no setor armazéns se assemelha ao projeto da Estação das Docas, podendo ser entendido como faixas de intervenção. A primeira, junto ao Guaíba, consiste na qualificação da antiga área operacional num espaço amplo de fruição pública. A segunda faixa trata da refuncionalização dos antigos e históricos armazéns para abrigar atividades de comércio, serviço, alimentação, e de atividades culturais, estas últimas implantadas no conjunto do Pórtico Central com seus armazéns lindeiros. A antiga sede da SPH – Superintendência de Porto e Hidrovias, um edifício Art Déco de seis pavimentos será destinado a uma operação hoteleira. Os interstícios entre os armazéns serão destinados a praças de fruição pública. A faixa posterior, junto ao muro da Av. Mauá, será destinada a circulação e estacionamento de veículos.

Nos outros setores, Gasômetro e Docas, serão incorporadas novas construções, diversificando o mix de atividades. No primeiro será implantando um centro comercial, enquanto no segundo, escritórios e um hotel estarão abrigados em três edifícios de diferentes alturas, além da restauração da Praça Edgar Schneider e da refuncionalização do antigo Frigorífico.

O modelo de gestão estabelecido é uma concessão da área pelo Estado por 25 anos para a iniciativa privada, que deverá fazer todos os investimentos necessários e remunerar o Estado com um valor anual a titulo de

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“aluguel”. Após o término do prazo estipulado, todas as benfeitorias realizadas voltam à posse pública.

Abaixo é apresentada a implantação geral do projeto, com o centro comercial em primeiro plano, seguido da extensa linha do setor Armazéns até o setor Docas, onde serão implantados os edifícios corporativos.

Figura 03 – Vista Geral de Implantação do Projeto de Revitalização do Cais Mauá

Fonte: Acervo do autor.

5 Considerações Finais O entendimento conceitual dos projetos urbanos e da experiência

nacional já consolidada da Estação das Docas, em Belém do Pará, permite cotejar as estratégias deste em relação do projeto de Revitalização do Cais Mauá. Embora haja semelhanças entre as duas situações, como a posição geográfica na cidade próximo a área central, a re-valorização de edificações históricas, a valorização das características locais, a pouca relação com malha urbana da cidade, o uso da paisagem como apelo paisagístico, e o estabelecimento de espaços de fruição pública, observou-se que existem discrepâncias significativas entre as mesmas.

O Cais Mauá apresenta uma área 5,8 vezes maior que a Estação das Docas, o que acaba propiciando oportunidades de incorporação de novas edificações além da reutilização dos armazéns pré-existentes. Esta flexibilidade possibilita uma maior diversificação de usos, e consequentemente, atender uma diversidade maior de camadas sociais da população. Isto reflete no posicionamento do projeto do Cais Mauá, que acaba se voltando prioritariamente para a população residente, descolando-se da idéia de um projeto eminentemente turístico, repetindo de certa forma programas de uso consagrados em projetos anteriores de reconhecimento internacional.

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Ao contrário da Estação das Docas, o projeto de Porto Alegre foi desenvolvido por arquitetos de renome internacional, nos moldes do modelo de projetos de waterfronts difundidos internacionalmente, buscando estabelecer novos ícones arquitetônicos na cidade.

O modelo de implantação do Cais Mauá também acaba saindo da esfera pública, passando para uma espécie de parceria público-privada, onde não há participação financeira do Estado, ficando o ônus e o bônus de investimento na área por conta do grupo financiador do projeto por um determinado período de tempo, quanto retorna integralmente a gestão pública. Isto indica maiores possibilidades de sucesso na sustentabilidade financeira da intervenção, já que a área será administrada como uma empresa, por gestores especializados.

Por fim, conclui-se que o modelo adotado no Projeto de Revitalização do Cais Mauá apresenta mais elementos característicos do modelo difundido internacionalmente e pelos autores estudados, baseados num sistema liberal, que se difere da Estação das Docas, onde o Estado é mais presente e têm inviabilizado a sustentabilidade do projeto e conseqüente financiamento público das empresas que exploram comercialmente o local.

Referências Bibliográficas ARRUDA, E. S. Porto Belém do Pará: Origens, Concessão e Contemporaneidade. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional, UFRJ, Rio de Janeiro, 2003.

ASCHER, F. Os novos princípios do urbanismo. Editora Romano Guerra, São Paulo, 2010

CUENYA, B., NOVAIS, P & VAINER, C. Grandes Projetos Urbanos – Olhares Críticos sobre a experiência argentina e brasileira. Editora Masquatro, Porto Alegre, 2013

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XII Semana de Extensão, Pesquisa e Pós-Graduação - SEPesq

Centro Universitário Ritter dos Reis

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