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Frank Beddor - A Guerra dos Espelhos A guerra dos espelhos implica um desafio à visão de Alice no país das Maravilhas instaurada por Lewis Carrol. Os Chás da tarde e a inocente menina de cabelos loiros se convertem em uma aventura épica colorida de amor, assassinatos, traições, vingança e uma batalha sem fim entre a Imaginação Branca e a Imaginação Negra. Descobra o heroísmo, a paixão e a majestade deste mundo paralelo: entre no Labirinto Especular, fuja dos rastreadores, descubra os mistérios do Contínuo de Cristal, cruze o Bosque Sussurrante e mergulhe no Lago das Lágrimas. A verdade por fim sairá à luz. Isto não é um conto de fadas. Alyss é a herdeira do trono do País das Maravilhas, mas um dia seu brilhante futuro se parte em mil pedaços: sua malvada tia Redd, que anseia apropriar-se do poder, assassina seus pais. Alyss tem que fugir para nosso mundo, e de repente se sente sozinha e perdida na Londres da época vitoriana. Ali estreita amizade com o escritor Lewis Carroll, a quem conta sua verdadeira história com a esperança de que alguém a encontre e a leve para casa. Mas o autor deturpa toda sua história no clássico conto “Alice no país das maravilhas”. Felizmente, o guarda-costas de Alyss reconhece a sua protagonista e a busca por todos os rincões do mundo para devolvê-la ao País das Maravilhas, onde terá que lutar contra sua tia Redd para recuperar seu legítimo lugar como Rainha de Copas. Índice ADVERTÊNCIA AO LEITOR 4 PRÓLOGO 5 CAPÍTULO 1 8 CAPÍTULO 2 11 CAPÍTULO 3 13 CAPÍTULO 4 16 CAPÍTULO 5 17 CAPÍTULO 6 20 CAPÍTULO 7

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Frank Beddor - A Guerra dos Espelhos

A guerra dos espelhos implica um desafio à visão de Alice no país das Maravilhas instaurada por Lewis Carrol. Os Chás da tarde e a inocente menina de cabelos loiros se convertem em uma aventura épica colorida de amor, assassinatos, traições, vingança e uma batalha sem fim entre a Imaginação Branca e a Imaginação Negra.

Descobra o heroísmo, a paixão e a majestade deste mundo paralelo: entre no Labirinto Especular, fuja dos rastreadores, descubra os mistérios do Contínuo de Cristal, cruze o Bosque Sussurrante e mergulhe no Lago das Lágrimas. A verdade por fim sairá à luz. Isto não é um conto de fadas.

Alyss é a herdeira do trono do País das Maravilhas, mas um dia seu brilhante futuro se parte em mil pedaços: sua malvada tia Redd, que anseia apropriar-se do poder, assassina seus pais. Alyss tem que fugir para nosso mundo, e de repente se sente sozinha e perdida na Londres da época vitoriana. Ali estreita amizade com o escritor Lewis Carroll, a quem conta sua verdadeira história com a esperança de que alguém a encontre e a leve para casa. Mas o autor deturpa toda sua história no clássico conto “Alice no país das maravilhas”.

Felizmente, o guarda-costas de Alyss reconhece a sua protagonista e a busca por todos os rincões do mundo para devolvê-la ao País das Maravilhas, onde terá que lutar contra sua tia Redd para recuperar seu legítimo lugar como Rainha de Copas.

Índice ADVERTÊNCIA AO LEITOR 4 PRÓLOGO 5 CAPÍTULO 1 8 CAPÍTULO 2 11 CAPÍTULO 3 13 CAPÍTULO 4 16 CAPÍTULO 5 17 CAPÍTULO 6 20 CAPÍTULO 7 23 CAPÍTULO 8 25 CAPÍTULO 9 27 CAPÍTULO 10 30 CAPÍTULO 11 34 CAPÍTULO 12 36 CAPÍTULO 13 39 CAPÍTULO 14 42 CAPÍTULO 15 45 CAPÍTULO 16 48 CAPÍTULO 17 55 CAPÍTULO 18 57 CAPÍTULO 19 61 CAPÍTULO 20 65 CAPÍTULO 21 67 CAPÍTULO 22 69 CAPÍTULO 23 71 CAPÍTULO 24 73 CAPÍTULO 25 77 CAPÍTULO 26 79 CAPÍTULO 27 82 CAPÍTULO 28 85 CAPÍTULO 29 87 CAPÍTULO 30 89 CAPÍTULO 31 92 CAPÍTULO 32 95 CAPÍTULO 33 97 CAPÍTULO 34 100 CAPÍTULO 35 102 CAPÍTULO 36 105 CAPÍTULO 37 107 CAPÍTULO 38 110 CAPÍTULO 39 112 CAPÍTULO 40 114 CAPÍTULO 41 115 CAPÍTULO 42 116 CAPÍTULO 43 118 CAPÍTULO 44 120 CAPÍTULO 45 123 CAPÍTULO 46 126 CAPÍTULO 47 129 CAPÍTULO 48 132 CAPÍTULO 49 139 CAPÍTULO 50 141 CAPÍTULO 51 143 CAPÍTULO 52 145 CAPÍTULO 53 149 CAPÍTULO 54 151 CAPÍTULO 55 153 CAPÍTULO 56 156

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Advertência ao leitor

Faz uns anos, quando me encontrava em Londres a negócios, visitei o Museu Britânico e ali me topei com uma exposição de naipes antigos. Ao final do percurso se exibia um baralho incompleto, que despedia um brilho incomum. As cartas mostravam cenas de Alice no País das Maravilhas que eu nunca antes tinha visto.

À manhã seguinte, a caminho do aeroporto, passei por uma loja de antiguidades especializada em naipes. Quando falei com o antiquário da insólita exposição, ele me revelou que, de fato, as cartas que faltavam do baralho estavam em seu poder. Ato seguido, contou-me o relato da guerra dos espelhos. É o mesmo relato que o leitor tem em suas mãos.

Mas devo fazer uma advertência: a história verdadeira do País das Maravilhas está tingida de sangue, assassinato, vingança e guerra. Peço desculpas de antemão a quem possa ver ferida sua sensibilidade por algumas cenas deste livro, mas considero importante contar os fatos tal como se produziram. Talvez os leitores mais impressionáveis prefiram o conto de fadas clássico de Lewis Carroll.

Frank Beddor

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Disponibilização: PRT Revisão Inicial: Claudia Moraes Revisão Final: Lu Machado Visto Final: Ana Paula Batista Formatação: Dyllan Lira Logo / Arte: Iara Projeto Revisoras Traduções

Livro revisado da Lista Global da qual fazem parte os seguintes grupos:

Projeto Revisoras Traduções Adoro Romances em Ebooks Traduções Digitalizações – TeD PDL

Prólogo

Oxford, Inglaterra, julho de 1863.

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Como todo mundo pensava que tinha inventado tudo, ela tinha recebido mais insultos e brincadeiras por parte das outras crianças, mais sermões e castigos por parte de adultos do que qualquer menina de onze anos deveria ter que suportar. Mas agora, depois de quatro anos, se apresentava a melhor e última oportunidade de monstrar a todos que dizia a verdade. Um professor universitário tomou sua história a sério o bastante para escrever um livro sobre ela.

Ela estava sentada em uma manta, à beira do rio Cherwell, junto a uma cesta que continha os restos de um lanche campestre colocado junto ao cotovelo do pastor Charles Dodgson. A menina sustentava um livro entre as mãos. Tinha-o escrito e ilustrado ele mesmo, conforme lhe havia dito. O volume tinha um peso agradável, parecia substancioso. Estava embrulhado em papel de embrulho amarrado com fita preta. Dodgson a observava ansioso. Edith e Lorina, as irmãs dela, estavam tentando apanhar peixinhos de rio na beira da água. Ela desatou o laço e desembrulhou o livro com cuidado.

— OH! — As aventuras de Alice no país das maravilhas? Que tipo de título era esse? Por que tinha escrito seu nome assim? Tinha soletrado seu nome a Dodgson, inclusive tinha escrito o nome para que o visse. — «Por Lewis Carroll? » — leu em voz alta com inquietação crescente.

— Pareceu-me mais alegre do que dizer que o autor é um pastor anglicano.

Alegre? Pouco do que lhe tinha contado era alegre. Sua inquietação começava a ceder o passo ao temor. O que importava de verdade era que ele houvesse transcrito fielmente suas experiências no País das Maravilhas, tal como ela as recordava.

Abriu o caderno e admirou suas páginas grosseiramente cortadas, a esmerada caligrafia. Mas a dedicatória era um poema no qual voltava a aparecer seu nome mal escrito, e aquelas rimas festivas não lhe pareceram apropriadas, tendo em conta o material que introduziam. Uma das estrofes lhe chamou especialmente a atenção:

«Menina sonhadora?» E a que se referia com isso de que «quase nos parece real?»

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Começou a ler o primeiro capítulo e imediatamente sentiu que a esvaziavam por dentro, como uma das metades de toronja1 que o decano Liddell comia a cada manhã no desjejum, e dos quais só deixava a pele oca e alguns restos polpudos. Pela toca de um coelho? De onde tinha saído esse coelho apressado?

— Alice, aconteceu alguma coisa?

Ela saltava de um parágrafo a outro ao tempo que passava as páginas rapidamente. O lago das Lágrimas, a larva, sua tia Redd... Tudo aparecia deformado, reduzido a uma fileira de disparates.

— Converteu ao general Doppelgänger, o comandante do exército real, em dois gordinhos com gorros de colegiais.

— Reconheço que tomei algumas liberdades com sua história, para que fosse nossa, dos dois, tal e como te prometi. Reconhece ao conselheiro que me descreveu uma vez? É o personagem do coelho branco. Ocorreu-me a ideia ao descobrir que as letras do nome do conselheiro podiam ser trocadas de lugar para formar as palavras «coelho branco». Olhe, vou te ensinar.

Dodgson tirou um lápis e uma caderneta pequena do bolso interno de seu casaco, mas ela não queria olhar. Realmente, tinha prometido que o livro seria dos dois, e isto tinha dado forças a ela; força para aguentar as humilhações que eram consequências de sustentar uma verdade em que ninguém mais acreditava. Mas o que tinha em suas mãos era algo totalmente alheio a ela.

— Quer dizer que fez de propósito? — perguntou.

O sorridente gato de Cheshire. O Chá dos loucos. O pastor tinha transformado suas lembranças de um mundo cheio de orgulho, possibilidades e perigos em um universo de fantasias, em tolices para crianças. Não era mais que mais um entre tantos incrédulos, e isto (este livro absurdo e ridículo) era sua forma de zombar dela. Nunca havia se sentido tão traída em toda sua vida.

— Agora ninguém acreditará em mim! — gritou. — Colocou tudo a perder! Você é o homem mais cruel que conheci senhor Dodgson, e se você acreditasse em uma só palavra do que lhe contei, saberia que isso significa que é terrivelmente cruel. Não quero voltar a lhe ver! Nunca, nunca, nunca!

Arrancou a correr, deixando Edith e Lorina, que teriam que se virarem sozinhas para voltar para casa, e deixando o pastor Dodgson — que considerava que as crianças eram espíritos recém modelados pelas mãos de Deus, seres de sorriso divino, e acreditava que não havia empenho mais nobre que o de concentrar todas suas energias em uma tarefa cuja única recompensa era o sussurro agradecido de uma menina e o roce ligeiro de seus lábios puros — atônito, perguntando-se o que tinha acontecido.

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O pastor recolheu o livro, que ainda conservava o calor dos dedos da Alice Liddell, sem saber que nunca voltaria a estar tão perto dela.

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Capítulo 1

O reino levava doze anos desfrutando de uma paz provisória, da época em que a violência e o sangue derramado salpicavam a soleira de todos os marvilianos. A guerra civil não tinha sido a mais longa segundo as fontes históricas, mas sim uma das mais sangrentas. Aqueles que tinham participado sem vacilar muito das matanças e destruição tinham dificuldades para adaptar-se à vida em tempos de paz. Quando cessaram as hostilidades, corriam pelas ruas da capital do País das Maravilhas, roubando e saqueando a cidade de Marvilópolis até que a rainha Genevieve os capturou e os enviou às minas de Cristal, uma teia de aranha de túneis escavados em uma ladeira longínqua, onde aqueles que se negavam a obedecer às leis de uma sociedade decente viviam em quartos sem janelas e labutavam na extração de cristal da implacável montanha. Mesmo depois que esta gente desapareceu das ruas, a paz que imperava no País das Maravilhas não era comparável com a que reinava antes da guerra. Uma terceira parte dos edifícios de Marvilópolis, que pareciam de quartzo2, deviam ser reconstruídos. O anfiteatro da Lisa turquesa* tinha sofrido danos em um ataque, igual a incontáveis torres e capiteis que exibiam um exterior brilhante e aceso de pirita*. Mas as cicatrizes da guerra nem sempre estavam à vista. Embora a rainha Genevieve governasse seu reino com sensatez, velando pelo bem-estar de seu povo, a monarquia tinha ficado debilitada para sempre. A coalizão das dinastias Ouros, Paus e Lanças, que integravam o Parlamento, começava a rachar. As matriarcas das famílias invejavam a autoridade de Genevieve. Cada uma delas se achava mais capacitada que a Rainha para governar o País das Maravilhas. Todas permaneciam atentas, esperando uma oportunidade para lhe arrebatar o poder e com um olho não muito amistoso colocado nas outras famílias, se por acaso lhes ocorria adiantar-se.

Ao cabo de doze anos, a vida cotidiana no País das Maravilhas tinha recuperado o que caberia chamar «normalidade». Se você estivesse perambulado pelas reluzentes ruas de Marvilópolis, contemplando as silhuetas de seus edifícios de cristal e as fachadas das lojas, se tivesse passado pelas estações às que acudiam os marvilianos que se dirigiam aos seus trabalhos, em tubos brilhantes de vidro que flutuavam sobre colchões de ar, se tivesse se

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detido para comprar uma tortinha a um mascate e tivesse saboreado a explosão de sabor na língua, não teria suspeitado sequer que em alguns becos e em algumas esplanadas se estavam tomando certas precauções: regimentos de naipes soldados que efetuavam manobras militares, fabricavam novos meios de transporte, estavam desenhando e pondo a prova armas ofensivas e defensivas. E não teria sido o único.

Alheia a qualquer pensamento sobre a guerra, a princesa Alyss de Copas se encontrava no balcão do palácio de Copas com sua mãe, a rainha Genevieve. A cidade se achava em plenos festejos. Marvilianos procedentes de todos os rincões do reino, do bosque Eterno até o vale dos Cogumelos, tinham ido celebrar o sétimo aniversário de sua futura Rainha, que nesses momentos se aborrecia como uma ostra. Alyss sabia que havia muitos destinos piores do que ser Rainha do País das Maravilhas, mas ate mesmo uma futura soberana às vezes não tem vontade de fazer o que se espera dela, como por exemplo, suportar sentada várias horas de cerimônias. Teria preferido esconder-se com seu amigo Dodge em uma das torres de palácio, jogando gelatinas de uma janela aberta para vê-las arrebentar nas cabeças dos guardas que estavam abaixo. Dodge não teria gostado disto — opinaria que os guardas mereciam mais consideração, — mas suas recriminações teriam sido um motivo a mais de diversão.

E já que o mencionava, por onde andava Dodge? Ela não o tinha visto em toda a manhã, e não estava certo isso de fugir à homenageada no dia de seu aniversário. Buscou-o com o olhar entre a multidão do País das Maravilhas nos que tinham ido ver o Desfile de Inventores, que discorria pela rua empedrada de abaixo. Nem rastro dele. Provavelmente estava em outro lugar, fazendo alguma coisa divertida; qualquer coisa tinha que ser mais divertida que permanecer ali, contemplando os ridículos artefatos que exibiam alguns no País das Maravilhasnos. Jacob Noncelo, o preceptor real, tinha-lhe explicado que quase todo o País das Maravilhas se orgulhava de seu Desfile de Inventores, o único acontecimento do ano em que os cidadãos desdobravam sua habilidade e sua engenhosidade ante a Rainha. No caso de que algo chamasse especialmente a atenção de Genevieve, enviaria-o ao Coração de Cristal, uma rocha transparente que media dez metros de altura, dezesseis de largura, elevava-se em terreno do palácio e constituía a fonte de toda criação. Os objetos que se introduzia no cristal se projetavam ao universo para estimular a imaginação dos habitantes de outros mundos. Se um marviliano ficava a saltar sobre um pau acionado por uma mola com guidão e apoios para pés, e ela mandava tão curioso artefato ao cristal, em alguma civilização ou outra se inventava o potro saltitante ao cabo de pouco tempo.

Mesmo assim, Alyss se perguntava a que vinha tanta cerimônia. A obrigação de ficar aí de pé até que lhe doessem os pés era uma tortura.

— Oxalá papai estivesse aqui.

— Voltará de sua viagem a Confinia a qualquer momento — assegurou a rainha Genevieve —, mas, já que o resto do País das Maravilhas está aqui, aconselho que tente se divertir para não defraudá-los. Olhe que interessante, não acha?

Observaram um homem que baixava flutuando do céu com um artefato semelhante a um cogumelo abaulado preso às costas.

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— Não está ruim, suponho — respondeu Alyss —, mas estaria melhor se fosse peludo.

Assim que ela pronunciou estas palavras, o artefato que parecia um cogumelo ficou coberto de pelos, e seu inventor caiu no chão com um golpe surdo.

A rainha Genevieve franziu o sobrecenho.

— Está demorando. — protestou Alyss — Me prometeu que estaria aqui para a celebração. Além disso, não entendo por que foi viajar quando faltava tão pouco para meu aniversário.

O certo é que tinha suas razões, e a Rainha as conhecia bem. Os serviços de informação lhe tinham dado a entender que tinham esperado muito: conforme informes não confirmados, o poder de Redd aumentava dia a dia, e estava provendo suas tropas para o ataque. Genevieve já não estava segura de que seu próprio exército estivesse em condições de repelir uma ofensiva. Ansiava tanto quanto Alyss que o rei Nolan voltasse, mas da mesma forma pensava em desfrutar dos festejos do dia.

— Oh, veja isso — exclamou, assinalando a uma mulher que rebolava ao andar para manter um aro girando sem parar ao redor de sua cintura. — Parece uma das coisas mais divertidas.

— Seria mais se tivesse fontes de água — replicou Alyss, e imediatamente vários jorros brotaram de buracos diminutos abertos na superfície do aro, para grande surpresa da inventora, que seguia rebolando para evitar que o artefato caísse ao chão.

— Por mais que seja seu aniversário, Alyss — a repreendeu a rainha Genevieve —, não está certo que se exiba dessa maneira.

O cabelo que cobria o primeiro pára-quedas se desvaneceu. Os jorros do recém inventado bambolê se secaram. O poder imaginativo de Alyss os tinha feito aparecer e desaparecer. A imaginação formava uma parte importante da vida no País das Maravilhas, e Alyss possuía a imaginação mais poderosa que jamais tivesse desenvolvido uma marviliana de sete anos. Entretanto, como ocorre com qualquer dom extraordinário, a imaginação de Alyss podia ser usada tanto para o bem quanto para o mal, e à Rainha não faltavam motivos para estar ligeiramente preocupada. Apenas tinha se completado um ciclo da lua da Turmita desde o último incidente protagonizado por Alyss: exasperada com o jovem Valete de Ouros por causa de alguma indiscrição infantil, tinha imaginado que as calças dele se enchiam de minhocas escorregadias e ondulantes. O Valete de Ouros comentou que notara «algo estranho», baixou o olhar e viu que suas calças se moviam como se tivessem ganhado vida. Depois disso o assaltavam pesadelos com frequência. Alyss afirmou que não tinha feito isso de propósito, mas Genevieve não estava segura de que dissesse a verdade. Alyss ainda não tinha alcançado o controle total sobre sua imaginação, mas não tinha o menor pudor em mentir para evitar reprimendas.

— Será a rainha mais poderosa da história — assegurou à sua filha. — A força de sua imaginação será o maior triunfo do reino. Mas deve se esforçar para desenvolvê-la de acordo

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com os princípios pelos que se regeu a dinastia de Copas, Alyss: amor, justiça e vontade de servir ao povo. Ter uma imaginação indisciplinada é pior que carecer dela. Pode acabar sendo muito mais perigoso. Lembre do que aconteceu a sua tia Redd.

— Sei — respondeu Alyss, zangada. Embora não conheceu sua tia Redd, tinha ouvido falar dela desde que tinha uso de razão. Não se incomodava em tentar entender tudo; tratava-se de dados históricos, e a história a aborrecia soberanamente. Mesmo assim, sabia que parecer-se com a tia Redd não era bom.

— Bom, acredito que a princesa aniversariante já ouviu sermões suficientes por hoje — disse a rainha Genevieve. Deu uma palmada, e tanto o pára-quedas como o bambolê passaram ao interior do Coração de Cristal, para grande alegria de seus respectivos inventores.

Um par de botas do rei Nolan saiu flutuando no ar pela porta do balcão e começou a executar uma dança diante da mal-humorada Princesa.

— Alyss — a repreendeu a rainha Genevieve, observando esta nova amostra de uma imaginação extraordinária.

Algo em seu tom fez com que a menina interrompesse sua demonstração. As botas caíram ao chão com um golpe seco e aí ficaram imóveis.

— Tudo está em sua cabeça — suspirou a Rainha. — Não esqueça isso, Alyss. Aconteça o que acontecer, tudo está em sua cabeça.

Tratava-se de uma advertência, mas também de uma manifestação de esperança: A rainha Genevieve, consciente das forças obscuras que agiam em algum lugar inóspito do deserto Damero, não ignorava que, no País das Maravilhas, o júbilo e a felicidade não duravam eternamente; cedo ou tarde o reino sofreria um ataque, e para garantir sua sobrevivência precisariam de todo o poder imaginativo de Alyss, e até mesmo algo mais.

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Capítulo 2

Fazia dois dias que o rei Nolan tinha empreendido a viagem de volta através da Ferania Ulterior com seu séquito, e agora, sobre a estreita crista de uma montanha, esporeavam os seus maspíritus para que continuassem galopando. Os maspíritus, seres quadrúpedes com um corpo que visto por diante se assemelhava ao de um bulldog e que se estreitava por detrás até terminar em uma parte posterior desprovida de cauda, tinham o focinho chato, olhos sonolentos e pestanejantes, fossas nasais grandes como punhos e a boca torcida em uma careta maliciosa. Não constituíam o meio mais veloz para deslocar-se pelo País das Maravilhas, mas sim o mais eficiente para viajar a Confinia e retornar. Eram os únicos seres capazes de percorrer a uma velocidade aceitável o terreno acidentado da Ferania Ulterior carregados com um cavaleiro e com objetos de presente como cristais ou garrafas.

O rei Nolan não tinha partido para essa viajem por gosto. Tinha-o feito pelo bem do reino. Devia cercar uma negociação de último momento com o rei Arch da Confinia para tentar forjar uma aliança contra Redd. Como é natural, correspondia a Genevieve levar a iniciativa nas negociações, mas ela tinha estimado prudente enviar ao seu marido em seu lugar: Confinia estava governada por um homem; o rei Arch não acreditava nos matriarcados. Estava acostumado a afirmar que o trono não era lugar para uma mulher.

O rei Arch recebeu Nolan como se sua mera presença lhe causasse fadiga.

— Por que teria que me aliar contigo? — perguntou uma vez que Nolan expôs suas razões. — Redd não se atreve a atacar Confinia.

— Porque somos vizinhos, Arch. Se Redd chegar a invadir o País das Maravilhas, sem dúvida se tornará mais ambiciosa e fixará Confinia como seguinte objetivo.

— Bom, considero-me perfeitamente capaz de me defender de qualquer mulher, com ou sem aliança. — Arch estalou os dedos, e uma cortesã de corpo curvilíneo saiu de detrás de uma cortina de contas brilhantes para lhe dar uma massagem nos ombros. — Além disso, isso de pactuar com um reino que está em mãos de uma mulher vai um pouco contra meus princípios. Não quero que os estranhos costumes de seu povo influenciem a população

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feminina de Confinia. Se houver algo que não preciso é que alguém lhes inculque ideias sobre metas mais ambiciosas na vida que as levem a descuidar de seus deveres conjugais.

— Me preocuparia mais a influência que um País das Maravilhas subjugado por Redd poderia ter sobre toda a população de Confinia — apontou Nolan.

O rei Arch emitiu um som gutural, um grunhido de incredulidade.

— Serei-te sincero Nolan. Não merece a melhor das minhas opiniões, pelo modo com que se deixa manipular por sua mulher.

O rei Nolan não tinha a sensação — jamais a tinha tido — de que Genevieve o manipulasse. Precisamente se amava a sua esposa era, em parte, por sua força e por sua estimável capacidade para fazer cargo das responsabilidades que, segundo Arch, deviam recair em um homem. Para Nolan não havia nada comparável ao amor de sua bondosa e tenaz mulher.

— Assim que você receberia apoio militar para te defender de seus inimigos — disse Arch. — E o que receberia eu em troca? No que beneficiaria ao povo da Confinia esta aliança que me propõe?

— Ofereço-te direitos de exploração das minas de cristal em nosso território, assim como um pagamento bianual de um milhão de gemas de howlita3 e a plena disposição de nosso exército a te emprestar ajuda em caso necessário.

O rei Arch ficou em pé, com o que dava por terminada a entrevista.

— Pensarei nisso e te comunicarei minha decisão certamente no transcurso desta semana.

Ansioso por chegar ao palácio de Copas a tempo para a festa de aniversário de Alyss, Nolan estava decidido a percorrer o trajeto de volta cavalgando com seus homens a toda velocidade e sem se deter para descansar ou comer. Mesmo assim, faltava-lhes ainda dia e meio de caminho. A crista da montanha ficava agora muito atrás, e avançavam rapidamente por uma planície poeirenta. No topo de uma colina da que já se divisava o palácio de Copas no horizonte, Nolan refreou a seu maspíritu. Uma rajada de vento trazia consigo — ou isso se imaginava ele, pois se achava ainda a uma distância considerável do palácio — vozes de regozijo, música e risadas. Seus homens se detiveram ao seu lado.

— O que ocorre, meu senhor?

— Nunca me perdoará que tenha perdido sua festa.

— Acredito que a Rainha lhe perdoaria tudo, senhor.

— Não me refiro à Rainha, mas sim à Princesa.

— Ah. Ela sim que lhes dará problemas.

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Os homens estalaram em gargalhadas. Não cabia dúvida de que Alyss daria problemas ao rei Nolan, mas seriam problemas dos mais suportáveis. Inclusive quando fazia birras, sua filha era uma criatura encantadora.

— Vamos! — com renovada obrigação, o Rei tocou a seu maspíritu para que o levasse quanto antes a seu lar, com sua família.

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Capítulo 3

Jacob Noncelo estava reunindo uns quantos livros e papéis para preparar a aula que daria a sua aluna no dia seguinte. Agora que Alyss tinha completado sete anos, iniciaria os estudos formais que a capacitariam para ser rainha.

— E ser rainha não é fácil — murmurou Jacob Noncelo. — A dignidade real traz consigo enormes responsabilidades. Deve estudar leis, a arte de governar, ética e moral. Deve exercitar a imaginação com o fim de promover a paz, a harmonia e os preceitos da Imaginação Branca, pois a Imaginação Negra é extremamente nociva. E, se por acaso fosse pouco, deve percorrer o labirinto Especular. — Jacob Noncelo, sozinho na biblioteca do palácio de Copas, citou de cor um fragmento de um antigo texto marviliano intitulado In Regnum Speramus: — «Existe um labirinto Especular de aparência diferente para cada aspirante a rainha. Esta deve conseguir orientar-se no citado labirinto para desenvolver ao máximo o potencial de sua imaginação e ser apta para governar. » — O preceptor recuperou seu tom habitual. — E só as larvas sabem onde está o labirinto Especular.

O senhor Jacob Noncelo era um albino de um metro e oitenta de estatura, com umas veias de cor azul esverdeada que lhe palpitavam de forma visível sob a pele e umas orelhas ligeiramente grandes para o tamanho de sua cabeça, tão sensíveis que podiam captar os sussurros de alguém situado a três ruas de distância. Era um homem inteligente, mas tinha o costume de falar sozinho, coisa que causava espanto a não poucos marvilianos, sobre tudo entre os membros das famílias de Ouros, Espadas e Paus, que não lhe perdoavam que levasse anos educando as filhas dos Copas e não às das outras dinastias. Não é que a Jacob preocupasse muito o que os outros pensassem dele. Falava sozinho porque não havia muitas pessoas tão instruídas quanto ele, e gostava de falar com pessoas instruídas.

— Feliz aniversário, feliz aniversario!

Jacob abriu de par em par as portas que davam aos jardins reais, e aquele coro teria sido dolorosamente estridente se seu canto de felicitação tivesse estado dedicado a qualquer outra princesa. Entretanto, nada lhe parecia excessivo se se fazia em louvor de Alyss. Entre os convidados reunidos para cantar no jardim sob a direção dos numerosos girassóis, tulipas e margaridas (as flores de voz mais melodiosa que havia no País das Maravilhas), Jacob viu vários membros das famílias de naipes (fez uma reverência à Dama de Ouros quando seus olhares se cruzaram), assim como ao general Doppelgänger, chefe do exército real, quem de repente se dividiu em dois e se converteu nas figuras gêmeas dos generais Doppel e Gänger, para contribuir à canção com duas vozes em lugar de uma. Jacob saudou com outra inclinação à lagarta azul — esse oráculo entre oráculos, sábio entre os sábios —, que estava enroscada em

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um rincão do jardim, fumando seu narguilé4 enquanto um guinuco — um ser pequeno com corpo de pinguim e rosto de ancião — se bamboleava sobre seu lombo.

— A arte do bamboleio está menosprezada — ouviu Jacob que o guinuco comentava a lagarta. — Ouça, me deixe dar um trago nisso.

— Ejem, humm, ejem — pigarreou a lagarta, que nunca compartilhava sua pipa com os guinucos, nem sequer em datas tão assinaladas como o aniversário do Alyss de Copas. — Fumar te faz mal.

— Não há dúvida de que é um dia especial quando uma lagarta sai do vale dos Cogumelos para participar das celebrações — murmurou Jacob Noncelo, observando dois maspíritus que traziam para Alyss um bolo no qual, servindo de velas, havia vários pássaros lucirgueros (lucirguero ou tuttle-bird é uma criatura do imaginário do País das Maravilhas, não há tradução) que emitiam brilhos e batiam as asas. Junto à homenageada estava a Rainha, e atrás dela, Somber Logan, chefe do corpo de segurança do País das Maravilhas, conhecido como o Chapeleiro, e guarda-costas pessoal da Rainha. Levava uma mochila típica dos militares às costas, uma jaqueta larga, braceletes e a cartola que só tirava em tempos violentos. Era o único membro da multidão que mantinha uma atitude circunspeta, alerta.

A canção terminou. Os convidados aplaudiram.

— Faça um desejo, Alyss — disse a rainha Genevieve.

— Além de desejar que meu pai não houvesse saído de viagem — declarou Alyss —, desejo ser rainha por um dia.

A coroa de sua mãe se elevou e flutuou no ar para a cabeça da pequena. Todos os pressente prorromperam em gargalhadas, salvo Somber Logan, que nunca ria.

— Somber Logan — suspirou Jacob. — Até você deveria relaxar e aproveitar de vez em quando.

— Já chegará o momento de você usar esta coroa — disse Genevieve a sua filha. A imaginação da Rainha, que não era exatamente fraca, fez com que a coroa voltasse flutuando e se depositasse sobre a cabeça de sua legítima proprietária.

Alyss notou que Jacob os observava através das portas da biblioteca e decidiu divertir-se um pouco. Era o mínimo que podia fazer enquanto não encontrasse Dodge.

— Quer um pouco de bolo, Jacob Noncelo? — sussurrou.

O preceptor assentiu com a cabeça, e levou-lhe uma porção de bolo em um prato comestível de chocolate.

— Feliz não aniversário — disse. — É de caramelo com passas, manteiga de amendoim, malvaviscos e barrinhas de alcaçuz. Está muito bom.

Jacob ficou olhando o pedaço de bolo.

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— Eh, bom... Obrigado, Alyss, mas temo que não seja tão amável comigo depois de amanhã, quando tivermos começado com as aulas.

— Eu não preciso de aulas — replicou Alyss. — Simplesmente imaginarei que sei tudo e então saberei tudo de verdade, assim não tem por que me ensinar nada.

Jacob remexeu a porção de bolo no prato, examinando-o com os olhos entrecerrados.

— Querida — disse —, não pode imaginar tudo porque não conhece todo o imaginável. Justamente essa é a razão de ser das lições. Acredite em mim, sei do que falo. Eduquei a sua avó e a sua mãe quando tinham sua idade, e sim, tentei educar a mulher que não deve ser nomeada (quer dizer, sua tia Redd), mas mais vale que não sigamos por esse caminho.

Não muito seguro de que fora o mais conveniente, Jacob levou um pedaço de bolo à boca. Mastigou uma vez, duas vezes e notou que algo não ia bem; o que estava mastigando se movia. Alyss rompeu a rir. Jacob cuspiu o pedaço de bolo na mão e deu-se conta de que aquilo já não era bolo; transformou-se em um punhado de minhocas.

— Mordeu! — gritou Alyss, e arrancou a correr.

Isso das minhocas tinha sido uma brincadeira de mau gosto, de péssimo gosto, de fato, mas Jacob estava disposto a perdoar. Alyss era muito jovem, tinha muito que aprender. Embora fosse verdade que lembrava Redd em certos aspectos, o preceptor confiava em que a menina não chegasse a ser nunca como sua tia. Ele não deixaria. Por outro lado, não podia reprovar que Alyss procurasse maneiras de distrair-se. Mal havia crianças de sua idade no palácio.

Jacob passeou o olhar pelos jardins. A lagarta azul partiu rastejando a algum lugar. Os generais Doppel e Gänger se fundiram de novo em um só corpo e estavam, ou melhor, dizendo, o general Doppelgänger estava conversando com o juiz Anders, chefe dos guardas de palácio. Somber Logan, que seguia à Rainha como uma sombra protetora, estava mais inexpressivo que nunca.

Jacob se retirou ao interior da biblioteca, onde os livros ilustrados que Alyss folheava em sua mais tenra infância descansavam em prateleiras junto aos dez tomos de crônicas da guerra civil escrita dos pontos de vista de seus distintos participantes; os naipes soldado que tinham lutado na linha de frente, os milicianos do Xadrez, o general Doppelgänger e seus sargentos, até mesmo a rainha Genevieve. Incluía listas de quem tinha caído em cada batalha e explicações das estratégias que tinham requerido o sacrifício de tantas vidas de marvilianos. Jacob pegou o primeiro tomo de crônicas e o colocou junto aos outros livros e papéis que tinha juntado para as aulas de Alyss. O volume continha um catálogo de atrocidades cometidas por Redd: torturas, matanças de prisioneiros, fossas comuns. O preceptor sempre se considerou responsável pela degeneração de Redd, pois a atribuía a uma educação deficiente.

— Nunca é muito tarde para que uma futura rainha se familiarize com a cara mais feia do que implica ser rainha — disse para si.

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Capítulo 4

O rei Nolan e seus homens tinham deixado atrás a Ferania Ulterior. Atravessaram uma franja estreita do bosque Eterno e, a galope rápido, chegaram ao limite oriental de Marvilópolis, a zona mais rural da capital, onde residiam alguns camponeses e quem procurava uma vida tranquila. Seus maspíritus se detiveram de repente e enpinaram. Disseminadas pela aprazível paisagem, com aparência inofensiva, e parcialmente escondidos entre as sombras que se alargavam cada vez mais, estavam vários baralhos de Redd, cada um deles formado por cinquenta e dois naipes soldados empilhados um em cima de outro, aguardando ordens.

— As cartas de Redd estão preparadas.

De modo que já não tinha importância o que decidisse o rei Arch; o País das Maravilhas não podia se permitir o luxo de esperar uma ou duas semanas para que ele comunicasse sua resposta.

— Devemos pôr ao palácio de sobreaviso — disse o rei Nolan.

Um de seus homens extraiu um comunicador especular de seu alforje e começou a introduzir uma mensagem cifrada em seu teclado. Se tivesse tido tempo de pulsar o botão Enviar, dita mensagem teria aparecido em uma tela de cristal situada na sala de segurança do palácio de Corações. Entretanto, com um estalo como o de umas tesouras de aço ao abrir-se e

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fechar-se rapidamente, um baralho escondido nos arbustos se desdobrou e rodeou ao Rei e aos seus homens. O ar vibrou com os exaltados gritos de guerra dos soldados de Redd e com os guturais alaridos de agonia dos homens do rei Nolan. O comunicador especular caiu sobre uma pedra e se fez pedacinhos. Seu proprietário estava morto antes que o dispositivo tocasse o chão.

Os marvilianos se encontravam em uma inferioridade numérica de cinco a um. No centro da escaramuça estava o rei Nolan, brandindo a espada à esquerda e direita, ainda no lombo de seu fiel maspíritu, quando uma figura encapuzada em uma capa escarlate passou por entre os combatentes sem sofrer um arranhão e lhe atravessou o coração com a aguçada ponta de seu cetro.

— Minha Rainha... — gemeu ele, encurvando-se, moribundo, com fios de sangue nas comissuras da boca. — Minha Rainha...

Capítulo 5

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«Mordeu, mordeu, mordeu!» Sem deixar de rir, Alyss deixou Jacob Noncelo olhando com o cenho franzido as minhocas meio mastigadas que tinha na mão e correu até o salão Issa do palácio, onde (por fim!) encontrou Dodge Anders, que a esperava em posição de sentido. A julgar por seu aspecto, a teria esperado toda a vida, se necessário.

— Não sabia onde você tinha se metido — bufou ela. — cheguei a acreditar que estava fugindo de mim.

— Tinha que lhe conseguir um presente, não? Por que corria?

— Por nada.

— Ah-ah. — Dodge supôs que ela tinha estado fazendo das suas. Alyss sempre estava fazendo das suas, assim que ele preferiu não insistir no tema. Entregou-lhe uma caixinha amarrada com uma fita vermelha e lhe dedicou uma reverência. — Feliz aniversário, Princesa.

— Não faça isso.

Alyss se incomodava que seu melhor amigo se inclinasse ante ela, e ele sabia. Por acaso não o havia dito um montão de vezes, enfatizando que não lhe importava que ele fosse um plebeu e que detestava essas amostras de submissão? Dodge era três anos e quatro meses mais velho que ela. Gostava de fazer reverências a uma menina mais nova? E, a tudo isto, o que tinha de terrível ou de degradante ser plebeu? Davam a Dodge a liberdade para sair do terreno do palácio, coisa que Alyss não teria se importado de fazer. Apesar de seu espírito rebelde e independente, nunca tinha posto um pé fora dos luxuosos domínios do palácio de Copas.

Abriu o presente e se encontrou com um dente afiado, reluzente e triangular sobre um suporte acolchoado.

— Um dente de galimatazo — assinalou Dodge.

— Você não o matou, espero.

Os galimatazos eram uns seres enormes e ferozes que viviam nas planícies Vulcânicas, uma terra de vulcões ativos, rios de lava e gêiseres de gases tóxicos, muito perigosos para que um marviliano entrasse nela. Entretanto, nunca sabia o que esperar de Dodge. Desde dia em que, com três anos de idade, envolveu-se desajeitadamente na jaqueta de guarda real que pertencia a seu pai, seu caminho estava marcado. Dodge não aspirava à outra coisa que a ser como seu pai, o juiz Anders, que tinha se destacado por seu valor na guerra civil e que tinha sido designado para seu cargo atual pela Rainha em pessoa. Agora que se encontrava frente à Alyss, exibia seu próprio uniforme de guarda, com tudo e sua insígnia de flor de lis.

— Não, eu não matei ao galimatazo — respondeu. — Comprei o dente em uma loja.

— Guardarei por toda a vida — assegurou Alyss.

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Enlaçou o dente na corrente que levava no pescoço. Criou-se com Dodge, não lembrava uma época de sua vida em que não tivessem sido companheiros de aventuras. Tinha junto à cama um cristal holográfico no qual aparecia ele, aos quatro anos, dando um beijo na bochecha dela, que estava sentada em seu carrinho real. Ao fundo se entrevia alguns carrancudos funcionários da corte. Alyss nunca tinha entendido o que era o que lhes parecia errado, mas apreciava muito aquele cristal de qualquer forma.

Dodge se ruborizava cada vez que ela o mostrava, e por isso o mostrava frequentemente. Ele sabia por que os funcionários estavam carrancudos: era importante respeitar as diferenças de classe, que cada um soubesse qual era seu lugar. Embora possivelmente para Alyss essas coisas não tinham importância, o juiz Anders tinha exposto a situação a seu filho, que compreendeu que para crescer como guarda real devia manter uma conduta aceitável para a sociedade, e não permitir que seus sentimentos por alguém — especialmente por Alyss — o levassem a descuidar suas obrigações.

— Jamais poderá se casar com a Princesa, Dodge — lhe tinha explicado o juiz, compreensivo, inclusive um pouco orgulhoso de que a Princesa tivesse se afeiçoado a seu filho. — Um dia ela será sua Rainha. Pode lhe demonstrar seu afeto servindo-a o melhor que possa, mas ela deve casar-se com um membro das famílias de naipes, e o Valete de Ouros é o único jovem de idade próxima à sua que possui a categoria apropriada. Sinto muito, Dodge, mas você com a Princesa... é uma carta que não pode jogar.

— Compreendo isso, pai — lhe tinha respondido Dodge, embora isto só era certo em parte; sua cabeça compreendia, seu coração não.

— Não tem que fazer exercícios militares? — perguntou Alyss.

— Nunca é demais exercitar-se, Princesa.

— Não me chame assim. Sabe que eu não gosto.

— Não posso esquecer o que é, Princesa.

Alyss estalou a língua. Às vezes a solenidade de Dodge a exasperava.

— Há um exercício militar que quero que faça. Vamos fingir que aproveitamos uma festa. Imagine que há música, montões de comida deliciosa, e que você e eu começamos a dançar. — Estendeu-lhe a mão.

Dodge vacilou.

— Agora.

Rodeou a cintura de Alyss com o braço e começou a dar voltas com ela lentamente. Nunca havia tocado a Princesa, pelo menos desse modo. Ela despedia um aroma doce de terra e pólvora. Era um aroma puro, delicado. Cheirariam assim todas as garotas, ou só as princesas? Um girassol que crescia em um vaso de barro no rincão da sala entoou uma melodia para acompanhá-los.

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— Isto não é um exercício militar — protestou ele, fazendo uma tímida tentativa de libertar-se.

— Ordeno que não vá a lugar nenhum. Enquanto dançamos, Redd e seus soldados entram de repente na sala. É um ataque surpresa. As pessoas gritam e correm por toda parte. Mas você conserva a calma e promete me proteger.

— Sabe que te protegeria Alyss. — Invadiu-o uma sensação de calor e se sentiu um pouco tonto. Tinha à Princesa segura muito perto de si. Notava sua respiração na bochecha. Era o menino mais sortudo do reino.

— E logo você luta contra Redd e seus soldados.

Ele não queria soltá-la, mas o fez, para brandir sua espada. Lançava estocadas a esquerda e direita contra seus inimigos imaginários, girando e agachando-se em imitação de Somber Logan, cujos exercícios com as armas observava e estudava frequentemente.

— E depois de se salvar por um fio várias vezes — continuou Alyss — e de arriscar a vida a cada segundo, vence aos soldados e atravessa Redd com a espada.

Dodge, a veemência personificada, atirou uma estocada ao ar, ali onde imaginava que se achava Redd. Fingiu contemplar sua obra, os inimigos derrotados dispersos pelo chão, ante ele. Continuando, embainhou a espada.

— Salvaste-me — prosseguiu Alyss —, mas estou muito alterada pelo que vi. Para me acalmar, dança comigo.

O girassol do rincão se colocou a cantar de novo. Esta vez sem hesitar, Dodge tomou Alyss entre seus braços e evoluiu com ela pela sala. Tinha baixado a guarda, apesar de si mesmo e de que sabia o que seu pai pensaria de seu comportamento. Estava se deixando levar por uns sentimentos que nem sequer devia ter.

— Será meu Rei consorte, Dodge?

— Se assim o desejar Princesa — disse, tentando aparentar despreocupação. — Serei...

— Ei, você, limpe as minhas botas! — gritou uma voz procedente do corredor. — Faz o que eu mando, criado!

Dodge se separou de Alyss imediatamente e ficou rígido, em posição de sentido.

— Lave meu colete, faça a minha cama, empoeire a minha peruca! — exigiu a voz.

O Valete de Ouros, um moço de onze anos, herdeiro da família de Ouros, irrompeu no salão Issa. Deteve-se ao ver Alyss e Dodge.

— O que está fazendo? — perguntou-lhe Alyss.

— Pratico para ser uma figura da realeza, para você o que parece que faço?

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O Valete de ouros teria sido um menino charmoso se não fosse por sua personalidade agressiva e pelo fato de que tinha o traseiro maior e redondo de todo o País das Maravilhas. Era como se levasse uma almofada inflada na parte de atrás das calças. Além disso, tinha adotado o ridículo costume de usar uma peruca comprida, branca e empoada porque alguém lhe tinha contado que os nobres de outros mundos as levavam. Fixou-se na caixa e na fita que estavam no chão. Fixou-se no dente de galimatazo que pendia do pescoço de Alyss.

— A pergunta é: — disse — o que vocês estão fazendo?

Nem Alyss nem Dodge responderam.

— De mãozinhas dadas com a Princesa, hem? — riu, aproximou-se de Alyss e estendeu a mão para o dente de galimatazo que pendurava sob sua garganta.

— Não toque isso — lhe advertiu Dodge.

— Doce Princesa, quando crescer e for minha esposa, te presentearei com ouros e mais ouros, não com dentes podres de animais asquerosos.

— Vai embora, por favor — lhe rogou Alyss.

— Deixe-a em paz — disse Dodge. — Falo sério.

O Valete de Ouros se voltou para encarar o filho do chefe da guarda. Levou um dedo aos lábios e fingiu estar abstraído em suas meditações.

— Vejamos... Ah, já sei. A, e, i, ou, ou, sou mais importante que você.

Os punhos de Dodge se lançaram e derrubaram o Valete, que ficou estupefato no chão com a peruca torta, em uma posição imprópria de uma pessoa de alta classe. Dodge se preparou para brigar, mas o Valete ficou em pé trabalhosamente, saiu do salão e se afastou correndo pelo corredor em direção aos jardins reais.

— É melhor irmos ou nos meteremos em confusões — disse Alyss. — irá contar ao seu pai.

Dodge fez algo que um guarda real não devia fazer: agarrou Alyss pela mão e a levou ante uma estátua de tamanho natural da rainha Issa, bisavó de Alyss. Apertou o rubi engastado na parte frontal da coroa, e na parede se abriu uma porta que se comunicava com um dos numerosos túneis de serviço que discorriam sob o palácio de Corações.

— Aonde vamos? — perguntou Alyss.

— Já verá.

E, agarrados pela mão, avançaram a toda pressa pelo túnel, cruzando com guardas que se dirigiam aos seus postos de vigilância e criados que levavam fontes com gelatinas, torradas e tortinhas.

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Capítulo 6

Para as rainhas, inclusive a conversa mais banal mantida em um dia de festa pode degenerar em uma discussão sobre assuntos delicados. Nos jardins reais, Genevieve acabou falando com as damas de paus e de espadas sobre a influência negativa que exerciam as sociedades de Imaginação Negra sobre a juventude marviliana.

— Contaram-me que bebem sangue de galimatazo — disse a Dama de Espadas.

— Pois me parece revoltante que as crianças de hoje dêem por certo a harmonia que reina atualmente no País das Maravilhas — declarou a Dama de Paus. — Parece que queriam derrubar o estado das coisas só pelo prazer de fazê-lo.

— Temos agentes secretos de Bonetería infiltrados em muitos desses grupos — lhes informou a rainha Genevieve.

— É mesmo?

A Dama de Paus apoiava qualquer iniciativa que minasse o poder de Genevieve. Dedicou um sorriso à Rainha e decidiu, a contra gosto, deixar de patrocinar as sociedades de Imaginação Negra. Enquanto ela tomava esta determinação, o Valete de Ouros, que corria por um corredor em forma de coração, viu-se levantado no ar, de novo com a peruca torta. Lutou para soltar-se, esperneando.

— Que pressa é essa, homenzinho? — perguntou Jacob Noncelo. — Qual é o problema?

— Homenzinho é você! — espetou o Valete.

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— Humm, bom... É verdade que, na ordem superiora do cosmos, não sou mais que um homenzinho. Nesse sentido, todos somos insignificantes. Boa observação, Valete.

O Valete não entendia nem uma virgula do que o sujeito pálido lhe dizia, e não lhe importava nem um tiquinho.

— Me solte preceptor!

Uma vez que seus pés pousaram de novo sobre terra firme, o Valete, tentando endireitar a peruca, mas colocando-a virtualmente ao reverso, explicou que ia por aí, ocupando-se de seus assuntos quando, de improviso, Dodge tinha saído de trás de uma estante, tinha-o jogado no chão e lhe havia golpeado os calções. O Valete só pretendia salvar à Princesa de Dodge, o plebeu, que estava empenhado em beijá-la, e agora ia contar tudo a seu pai e à rainha Genevieve para que deportassem Dodge às minas de Cristal, castigo leve para tão graves delitos.

— São delitos graves, em efeito — conveio Jacob Noncelo. — Mesmo assim, Valete, não acha que já é hora de que comece a assumir as responsabilidades que suporta sua classe?

— Talvez — respondeu o moço com suspeita.

— Na sua idade, não deveria precisar da ajuda de seu pai para administrar castigos. Apanharei ao culpado e o trarei a sua frente. Você vai e coma uma boa porção de tortinha sem comentar com ninguém este terrível incidente até que eu volte. Sem dúvida surpreenderá à Rainha quando der ao Dodge seu castigo justo.

Jacob seguiu ao menino com o olhar enquanto se afastava pavoneando-se pelo corredor, meneando as nádegas de esquerda à direita e de direita à esquerda em direção aos jardins reais. Com seus ouvidos ultra-sensíveis, Jacob Noncelo tinha escutado todo o ocorrido no salão Issa. Só quando esteve seguro de que o Valete não diria uma palavra à Rainha daquele assunto sem importância, quando ouviu o moço mastigar com gulodice uma parte de tortinha, saiu em busca de Alyss e Dodge. Inclinou a cabeça, como um cão ao perceber um ruído estranho e agudo, e escutou os sons longínquos. Ouviu que um casal falava de seu próximo safári na Ferania Ulterior. Ouviu um homem que sussurrava a três ruas dali. E logo ouviu um murmúrio de vozes humildes. Guiando-se pelo ouvido, dirigiu-se para uma das saídas do palácio.

Alyss e Dodge corriam por uma sucessão de túneis de serviço. Alyss, encantada da vida, ria a gargalhadas, enquanto que Dodge ia sério, concentrado no que fazia. Ao final, ele abriu uma porta empurrando-a com o ombro e os dois saíram à luz de Marvilópolis. Pela primeira vez em sua vida, Alyss de Copas se encontrava fora dos limites do palácio.

— Olha.

Ante seus olhos se desenvolvia uma cena festiva: uma multidão de marvilianos dançava, tocava instrumentos musicais e representava sainetes5. Um lojista reconheceu Alyss e, lhe expressando cortesmente desejos de boa saúde, ajoelhou-se ante ela. Ao precaver-se de quem se achava entre eles, um marviliano atrás de outro seguiu o exemplo do lojista até que,

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meio minuto depois, Alyss e Dodge ocupavam o centro de uma multidão reverente e prostrada a seus pés.

— Eh, sim... — disse Dodge em voz alta sem dirigir-se a ninguém em particular. — Se parece um montão à princesa Alyss, não é mesmo? Mas se chama Stella. Não é ninguém.

Os marvilianos levantaram a cabeça e intercambiaram olhadas. Como era possível que esta formosa menina de olhos doces e cabelo negro arrumado como o da Princesa não fosse Alyss de Copas? Suas dúvidas se dissiparam quando apareceu Jacob Noncelo. Se o preceptor real a buscava, a garota tinha que ser a princesa Alyss.

— Vamos correr! — exclamou Alyss assim que viu Jacob, mas o albino erudito era um homem bastante veloz e lhes teria dado alcance em seguida ha não ser porque sua toga ficou coberta de plumas fluorescentes de lucirguero, inchou-se em torno dele e o elevou no ar.

— Alyss, nãooo!

Dodge jogou uma olhada para trás.

— Mas o que...?

— Não era essa minha intenção — se desculpou Alyss, consciente de que não devia empregar sua imaginação desse modo. — Só queria era que não nos pegasse. — Tinha-lhe vindo à mente um vislumbre de ideia para evitar que Jacob se aproximasse, e abruptamente tinha se feito realidade.

Jacob caiu do céu sobre a erva lamacenta. Escorregou várias vezes ao tentar seguir Alyss e Dodge, mas estes já se perderam de vista. Percorreram a toda pressa meio-fios de tijolos, atalharam por becos e cruzaram várias vias principais. Ao cabo, as vitrines brilhantes das lojas e as ruas esplendorosas da capital deram passo a um bosque. As árvores e as flores soltaram gritos de surpresa ante a presença da Princesa, e se esforçaram por adotar o aspecto mais frondoso possível enquanto separavam de seu caminho seus ramos e pétalas. Ela e Dodge corriam e saltavam sobre pedras e leitos até que chegaram ao bordo de um escarpado e tiveram que deter-se. Alyss baixou o olhar do alto da elevada parede de rocha. Abaixo se estendia uma massa de água contida por uma barreira de cristal.

— O que é? — murmurou, em parte porque estava impressionada e em parte porque não queria que Jacob os localizasse por meio do ouvido.

— Chamam-no o lago das Lágrimas — respondeu Dodge, também em sussurros. — Dizem que, se você cair dentro, te transporta para fora do País das Maravilhas, mas ninguém sabe com segurança. Algumas pessoas entraram nele, mas nenhuma só saiu.

Alyss guardou silêncio.

— Às vezes vem gente esperar que retornem quem mergulhou ali. Choram e deixam cair suas lágrimas na água. Por isso se chama assim.

Alyss contemplou a superfície. Aquilo não era justo. Como podia ser tão triste o mundo no dia de seu aniversário? Tentou imaginar o que faria ela se Dodge ou um de seus pais

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caísse no lago das Lágrimas. Como seria sua vida sem eles? Entretanto, não o conseguiu. Falhou-lhe a imaginação.

— Deveríamos voltar — disse Dodge.

— Sim, sim — fizeram coro as árvores e arbustos mais próximos a eles.

Alyss sabia que alguém viria a buscá-los, talvez até mesmo Logan em pessoa. Ela, por ser quem era e o que era, não podia escapar.

— Será melhor se voltarmos e nos comportarmos como se não tivesse acontecido nada — arriscou —, será realmente como se nada tivesse acontecido.

Dodge lhe emprestou sua jaqueta de guarda, todo um gesto por sua parte, tendo em conta o que significava para ele, e Alyss sabia. Ela a pôs sobre a cabeça à maneira de um xale para que os marvilianos não a reconhecessem, e completou o disfarce com uma máscara de lagarta que criou ao imaginá-la.

Com o fim de evitar que Jacob os encontrasse, permaneceram calados durante o caminho de volta ao palácio, um trajeto que lhes pareceu muitíssimo mais curto que o da fuga. Muito antes do que tinham previsto, encontravam-se caminhando entre a fileira de fontes esplêndidas que conduziam à porta principal. Ao outro lado da grade fechada, Alyss divisou o iridescente Cristal de Corações e as nuvens brancas de energia imaginativa que irradiava.

— Miau. — Um gatinho de pelagem dourada se esfregou contra sua perna.

— De onde saiu você? — Agarrou o gatinho nos braços. Levava uma fita como colar, e, pendurado dela, um cartão com uma felicitação simples: FELIZ ANIVERSÁRIO, ALYSS! — Reconheceu-me apesar de meu disfarce.

— Quem lhe envia isso?

— Não diz.

Dodge olhou em redor, procurando o autor de tão generoso presente, mas nenhum dos numerosos marvilianos que desfrutavam da celebração fora das portas do palácio lhes emprestou a menor atenção.

— Está sorrindo — assinalou — Não sabia que os gatos sorriam.

— Sorri porque gosta de estar comigo. — Alyss não queria deixar no chão o seu novo mascote.

Os guardas da grade identificaram Dodge Anders, mas lhe advertiram que não podiam permitir a entrada a sua amiga sem a devida autorização. Alyss tirou a máscara.

— Nossas mais humildes desculpas, Princesa — disseram os guardas, abrindo as portas rapidamente. — Não esperávamos veê-la. Rogamos que nos perdoe.

— Perdoarei-os com uma condição: — anunciou Alyss — que não comentem a ninguém que viram Dodge e eu fora de palácio. Posso confiar em seu silêncio?

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— É obvio Princesa.

— Não diremos uma palavra.

Os guardas se inclinaram ante ela. Alyss e Dodge entraram no palácio. Quando as portas da grade se fecharam a suas costas, o gatinho saltou dos braços da Princesa e se afastou pelo vestíbulo dando saltos.

— Não, gatinho!

Mas o gatinho corria e corria, como se soubesse exatamente aonde ia e tivesse coisas que fazer, compromissos que cumprir. E, de fato, tinha-os.

Capítulo 7

A rainha Genevieve escapuliu a seus aposentos para descansar um pouco e deixou que os convidados se ocupassem de si mesmos. Sem uma palavra, Somber Logan a seguiu e se apostou no corredor para montar guarda. Os aposentos da Rainha consistiam em três salões que se comunicavam entre si. Um deles estava repleto de sofás macios e almofadões enormes sobre os quais Sua Majestade costumava deitar-se comodamente; outro era um vestiário aonde se guardavam os numerosos e régios vestidos da Rainha; o terceiro era um banheiro, no qual penduravam cortinas adornadas com borlas e feitas de um tecido mais voluptuoso que qualquer gênero que pudesse encontrar-se fora do reino.

Genevieve estudou sua imagem no espelho do banheiro. Os aniversários de sua filha sempre a faziam sentir-se velha. Não fazia tanto tempo que ela mesma tinha iniciado sua aprendizagem para converter-se em rainha. Viu que tinham aparecido nas comissuras dos olhos e dos lábios algumas rugas que no ano anterior não estavam aí. Era uma pena que a imaginação tivesse seus limites, que só pudesse modificar a realidade física até certo ponto e que ela não pudesse imaginar que voltava a ser jovem.

O que era esse cheiro? Um cheiro familiar, picante, mas adocicado. Viu um rastro de fumaça azul e o seguiu até a sala de estar, onde encontrou à lagarta azul enroscada em torno de seu narguile, fumando com ar sonhador. Em outras circunstâncias, Genevieve teria se zangado ao descobrir que alguém (que, além disso, era uma lagarta gigante) tinha profanado

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seu santuário privado sem que ela a convidasse. Entretanto, a lagarta não era uma lagarta gigante qualquer. Havia oito lagartas no País das Maravilhas, cada uma de uma cor diferente. Eram os grandes oráculos da região, e já eram velhas nos primórdios do reino. Serviam ao Coração de Cristal, e não lhes importava muito quem ocupasse o trono, sempre e quando o cristal estivesse a salvo. Diz-se que podiam ver o futuro porque se negavam a julgá-lo, mas cada vez mais membros das famílias de naipes subtraíam importância às profecias das lagartas, alegando que a fé nelas não era mais que uma superstição absurda, um vestígio de uma época primitiva. As lagartas não intervinham ativamente no funcionamento do governo nem nas disputas entre as famílias de naipes, mas não tinham problemas em deixar que Genevieve vislumbrasse fugazmente o futuro se o Coração de Cristal corria perigo, a fim de que pudesse tomar medidas para protegê-lo.

— Obrigado por vir hoje, lagarta — a saudou — É uma honra receber em meus aposentos um ser tão sábio. Todos lhe estamos humildemente agradecidos, sobre tudo Alyss.

— Hum, hum, hum — pigarreou a larva, exalando uma baforada de fumaça.

As volutas adotaram a forma de uma mariposa com as asas estendidas e ato seguido se transformaram em uma confusa sucessão de cenas. Genevieve viu um gato grande que se lambia. Viu o que parecia um relâmpago. Viu o rosto de Redd. Logo, a fumaça adquiriu de novo a forma de uma mariposa. Esta fehou as asas, e Genevieve despertou em um sofá com um aroma de tabaco rançoso no nariz. A lagarta tinha desaparecido. Somber Logan e uma morsa que levava um smoking que era dois números menor do que devia se encontravam de pé ante ela.

— Acredito que desmaiou, senhora — disse a morsa mordomo. — Lhe trarei um pouco de água. — E saiu da sala a toda pressa.

A rainha guardou silêncio por uns instantes, e logo...

— A lagarta azul esteve aqui.

Somber Logan franziu o sobrecenho e levou uma mão à asa do chapéu, esquadrinhando a sala com o olhar.

— Não estou muito segura do que me mostrou — acrescentou Genevieve.

— Notificarei ao general Doppelgänger e ao resto dos boneteros. Prepararemos uma defesa contra o que esta por vir, seja o que for.

A rainha Genevieve teria gostado de poder descer ao menos uma vez até a guarda que se via obrigada a manter alerta todo o tempo para garantir a segurança do País das Maravilhas. As profecias das lagartas sempre eram muito vagas. Às vezes, suas visões só refletiam possibilidades, os desejos escuros de quem não pensava pô-los em prática jamais. Contudo, não podia correr esse risco estando Redd no meio.

— Procura não alarmar aos convidados — indicou.

— É obvio. — Logan se despediu com uma reverência e partiu.

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Genevieve se considerava afortunada de tê-lo como guarda-costas. Somber Logan era capaz de brandir uma espada (ou várias de uma vez) com maior rapidez e precisão que ninguém. Era destro e ágil para as acrobacias. Podia girar e dar cambalhotas no ar sem que o tocasse uma só aranha obus em meio de um ataque maciço de tais animais. Entretanto, apesar de suas habilidades, não poderia proteger à Rainha sempre. Como ia saber que as medidas que se dispunha a tomar não serviriam de nada, pois já era muito tarde?

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Capítulo 8

À hora do chá a festa se transladou a sala de jantar Sul, e a maioria dos convidados foi para casa. A morsa atendia a mesa comprida ante a qual estavam sentadas a rainha Genevieve e as famílias de naipes.

— Um torrão de açúcar em seu chá, senhora? Uma gota de mel no seu, senhor?

Genevieve sorria cortesmente, sem prestar muita atenção ao que acontecia ao redor. Devido à advertência da lagarta e a que fazia horas que esperava o rei Nolan sem ter notícias dele, não podia concentrar-se. Ah, mas aí estavam Alyss e Dodge. Só o espírito de Issa sabia em que confusões se colocaram.

— Ora, ora, mas se não é a garota do aniversário — disse. — Pode se saber onde esteve?

— Em lugar nenhum.

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Tentando adotar o ar mais inocente possível, Alyss se sentou. Olhou rapidamente ao Dodge, para lhe indicar que não dissesse nada, e ele, com a maior serenidade possível, voltou para seu posto de guarda, no extremo oposto da sala a aquele onde se encontrava seu pai. O Valete de Ouros, com migalhas de tortinhas nas bochechas, o colete e a peruca, fulminou-os com o olhar. Abriu a boca para anunciar o castigo de Dodge, mas nesse momento entrou Jacob, sujo de lama, com plumas aqui e lá.

— Jacob! — exclamou a rainha Genevieve. — O que aconteceu com você?

— Não grande coisa, em realidade. Minha toga adquiriu certas propriedades... como dizê-lo... Aviarias, e me encontrei flutuando no ar. Por sorte, em seguida caí sobre um lamaçal, do qual consegui sair, não sem necessidade de certo engenho.

A rainha Genevieve permaneceu muda por uns instantes, piscando.

— Alyss!

— Não era minha intenção — alegou Alyss — Começaram a acontecer coisas, sem mais...

O Valete de Ouros saltou sobre sua cadeira e apontou com um dedo gordinho para Dodge.

— Ousou golpear minha augusta pessoa e sequestrar à princesa Alyss, e a terra que levam nos sapatos demonstra que saíram do palácio! Exijo que deportem o plebeu às minas de Cristal!

Todos os membros das famílias de naipes romperam a falar de uma vez; uns soltavam grunhidos de indignação, e outros gargalhadas de incredulidade.

—Por favor, acalmem-se — disse a rainha Genevieve — Jacob, isso é verdade?

— Não exatamente — respondeu Jacob, — mas temo que seja verdade que os meninos saíram por um momento dos terrenos do palácio.

— Dodge Anders! — bramou o juiz. — Vêem aqui agora mesmo!

— Sim, senhor!

— Às minas de Cristal! — insistiu o Valete, cuspindo migalhas de tortinhas sobre o cabelo da Dama de Espadas.

O Senhor de Ouros se levantou, para fazer uma declaração à corte.

— Minha bondosa e gentil Rainha, espero que me concedam mais terras e um incremento dos dízimos em compensação por tão desafortunado incidente. O bom nome de minha família ficou manchado de forma ultrajante pelo trato que recebeu meu filho às mãos deste... este... moço! — espetou, gesticulando em direção ao Dodge.

— Se alguém manchou repetidamente o bom nome de sua família foi este menino — sussurrou a Dama de Paus ao ouvido de seu marido.

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O Senhor de Paus riu com um bufo.

— Um momento, um momento! — gritou o Senhor de Espadas, levantando-se de sua cadeira. — Se os Ouros tiverem que receber mais terras e dinheiro, nós também!

A rainha Genevieve começava a sentir dor de cabeça.

— Não se concederão mais terras nem dízimos a ninguém.

As famílias protestaram e ficaram a discutir acaloradamente. O gatinho de Alyss entrou na sala com passo ligeiro.

— Meu gato! — exclamou Alyss. O silêncio se impôs na estadia.

— Você...? — alcançou a dizer a rainha Genevieve justo antes que um ruído surdo e profundo estremecesse o palácio. As taças e os candelabros tremiam, e o gatinho começou a experimentar uma transformação terrível: suas patas se encompridaram e alargaram até que ficou de pé sobre duas pernas musculosas; suas patas dianteiras agora eram dois braços poderosos e nas garras tinha as unhas largas e longas como facas de açougueiro. Sua cara seguia sendo a de um felino com o nariz chato e rosado, bigodes e presas dos que gotejava baba. Não era um gatinho adorável. Era o Gato, o principal assassino de Redd, em parte humano, em parte felino.

Antes que o general Doppelgänger ou o juiz Anders tivessem tempo de reagir, antes inclusive de que Somber Logan pudesse desembainhar e se colocar em ação, ouviram gritos e detonações fora da sala de jantar. A maciça porta dupla saltou em pedaços, uma parede se desmoronou e uma horda de naipes soldado de Redd irrompeu pela abertura com as espadas ao alto.

Erguida entre os escombros e lascas estava uma versão terrífica de Genevieve, uma mulher a quem Alyss nunca tinha visto antes.

— Que lhes cortem a cabeça! — gritou a mulher. — Que lhes cortem sua pestilenta e aborrecida cabeça!

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Capítulo 9

Adestrar aos soldados tinha requerido tempo e esforço. Redd se indignava com o grande número de idiotas que asseguravam dominar a Imaginação Negra, sem ser conscientes da quantidade de trabalho que era necessário para chegar a praticá-la de forma minimamente aceitável. Ou careciam da ambição, o incentivo da vingança e o ódio cego que teriam nutrido a Imaginação Negra em seu interior. Entretanto, estas pessoas não eram precisamente os súditos mais disciplinados do reino. Redd não só tinha sido desterrada do País das Maravilhas fazia anos e obrigada a instalar-se em uma sórdida fortaleza que se elevava no monte Solitário,

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no meio do deserto Damero6 — onde hectares cobertos de neve se alternavam com hectares de breu e rocha negra, em uma disposição que do ar parecia um tabuleiro de xadrez gigantesco —, não só isso, mas também tinha tido que criar um exército integrado por desertores, mercenários e assassinos. Muitos deles tinham sido Doses e Treses no Baralho do País das Maravilhas, naipes soldados utilizados principalmente como bucha de canhão em primeira linha contra os ataques de aranhas obus e esferas geradoras. Por sorte para ela, Redd também tinha ao seu dispor Quatros, Cincos e Seis, assim como a um grupo variado de ex-marvilianos que jamais tinham pertencido ao Baralho, mas que não se sentaram a gosto no alegre e luminoso País das Maravilhas.

Quantas vezes nos últimos poucos anos tinha visitado os campos de adestramento com a esperança de presenciar a glória nascente de uma máquina de guerra composta por soldados bem treinados e sedentos de sangue?

E quantas decepções levou ao ver um bando de inadaptados realizar desajeitadas manobras militares ineficientes?

Em uma ocasião se deparou com um Seis, um tenente, que estava gritando a um Dois curto de inteligência, quem, por sua vez, embalava em seus braços um porquinho da índia adorável e peludo.

— Ordenei que concebesse pensamentos negros e me sai com isto? — bramou o tenente — Então um porquinho da índia é perverso? Considera que um porquinho da índia encarna tudo aquilo que é maligno?

— Talvez... se for um porquinho da índia maligno.

— Parece maligno este porquinho da índia?

O tenente e o Dois fixaram a vista no porquinho da índia, que, aconchegado no braço do soldado, movia o nariz de um lado a outro, alheio à conversação.

— Este não é um bicho maligno! — rugiu o tenente.

Embora Redd precisasse contar com o maior número de soldados possível, ordenou ao tenente que matasse o Dois.

Graças a seu intenso afã de vingança e à dura instrução que tinham recebido os soldados durante dez horas por cada ciclo lunar, seu exército por fim estava preparado. Escolheu o sétimo aniversário de Alyss como data para o ataque. O País das Maravilhas renderia comemoração a sua futura rainha. Que melhor momento para recuperar pela força o que lhe pertencia? Os marvilianos teriam uma futura rainha, de fato, mas não seria a que eles esperavam.

Enviou vários rastreadores — seres mortíferos com corpo de abutre e cabeça de mosca — em missão de reconhecimento aéreo. Ela mesma os tinha criado e adestrado. Suas tropas se distribuíram por naipes, afiaram suas armas, carregaram suas esferas e pistolas de cristal. Redd se apresentou ante eles no alto do escarpado promontório do monte Solitário. Estendeu os braços para abranger todo o maligno e lançou a voz ao vento.

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— Faz anos, minha própria família me exigiu que abandonasse a comodidade de meu lar. Arrebataram-me o poder que me correspondia por direito de nascimento. Todos vocês tiveram que abandonar seus lares por um motivo ou outro, e juntos suportamos muitas penalidades nesta terra erma. Em que outro lugar teríamos podido sobreviver? Mas tudo isso terminou. Hoje voltaremos a nossa pátria e a reconstruiremos a nossa imagem e semelhança... Quer dizer, a minha imagem e semelhança. Hoje faremos história. Entretanto... — baixou o olhar para a soldadesca concentrada ante ela, ao pé da montanha, — se houver céticos entre vocês, se alguém não estiver plenamente disposto a morrer por minha causa, que dê um passo à frente. Os dispensarei de participar da batalha de hoje até que se sintam preparados para lutar, e lhes permitirei desfrutar de uma taça de chá.

Continuando, Redd fez algo insólito: sorriu. Por desgraça, seus músculos faciais não estavam acostumados a semelhante uso, de modo que para os soldados pareceu que sua expressão se tornava ainda mais feroz. Controlaram-se muito para não dar um passo à frente.

— Então, para a vitória! — gritou Redd.

Uma coisa tinha que reconhecer em favor dos rufiões de seus soldados: possivelmente não fossem os mais imaginativos, nem muito experientes na prática da Imaginação Negra, mas todos e cada um tinham aprendido perfeitamente a matar. Igualmente destros no manejo da espada, as adagas, as clavas, as lanças, as esferas e as pistolas de cristal, aniquilaram facilmente aos guardas fronteiriços do País das Maravilhas que os perseguiram, e Redd em pessoa se encarregou de que o palácio não recebesse uma só mensagem de alerta, fazendo-os desaparecer com o poder da imaginação. Custou um pouco para massacrar os guardas do interior. Partiram sobre Marvilópolis sem mal sofrer baixas, levantando ao seu passo nuvens de cor vermelho sangue e vendavais. Assim que os marvilianos, que alguns momentos antes estavam celebrando, os viram abandonaram seus jogos e correram para refugiar-se em suas casas. Todos os maiores de doze anos recordavam a devastação que tinha causado a guerra civil entre Redd e Genevieve. Sabiam por que Redd tinha aparecido.

Os invasores chegaram à vista do palácio. Só o Coração de Cristal despedia uma luz intensa em meio da penumbra que Redd havia trazido consigo. Ela ordenou a seus soldados que rodeassem a praça. Com o olho de sua imaginação, viu seu esbirro mais imponente, que tinha adotado a aparência de um gatinho, percorrer em silêncio os corredores em forma de coração e passar junto a postos de vigilância nos quais os guardas diziam «olhem, que gato tão bonito» e «vem aqui, bichano». Mas o bichano tinha uma missão, de modo que não se detinha. Quando se encontrou perto da sala de segurança, recuperou o aspecto de assassino. O Gato derrubou a porta, que estava fechada com chave, para surpresa dos cinco guardas que estavam tranquilamente sentados junto aos controles e os cristais de observação. Bastaram-lhe uns poucos movimentos de seus musculosos braços para derrubá-los como bonecos de trapo e deixá-los tombados no chão, sangrando. Arrancou a chave mestra que o guarda principal levava presa ao cinto e a introduziu no console de segurança. Deu-lhe a volta e começou a apertar um interruptor atrás de outro; por todo o palácio de Copas, abriram-se ferrolhos, abriram-se portas e grades, o que permitiu que as tropas de Redd irrompessem no edifício. O Gato se transformou de novo em gatinho e se dirigiu saltitando para a sala de jantar Sul, onde se achavam os Copas e seus convidados, ignorantes do que estava acontecendo.

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Redd entrou no palácio pela primeira vez desde que era uma moça. Tinha nascido e passado boa parte de sua infância nesse palácio, seu palácio, e toda a dor e o ressentimento que tinha reprimido durante tantos anos começaram a bulir em seu interior. Com cada passo que dava para sua irmã, sua ira aumentava. Sim, ela tinha sido uma «menina má», e daí? Tinha feito experiencias com cristais e estimulantes artificiais da imaginação, e daí? Nunca lhe tinham importado um pingo a justiça, o amor, o bem-estar do povo, bla, bla, bla, e daí? Ela tinha sua própria forma de ser. Por que seus pais não tinham sido capazes de respeitar este fato e deixá-la em paz em vez de empenhar-se em convertê-la na princesa que nunca seria? Por que não tinham sido capazes de querê-la tal como era?

O dia que a excluíram da sucessão ao trono lhe veio à memória com toda a amargura do fel que lhe derramava por dentro.

Esse dia, a sábia rainha Theodora anunciou que não podia permitir que uma filha sua tão indisciplinada tivesse acesso ao poder real. Genevieve herdaria o trono, em lugar dela! A força da raiva fez que as feições de Redd começassem a mudar, a torcer-se e a afilar-se. Sempre tinha sido propensa ao ciúme, a cólera e ao ódio mais feroz, mas agora albergava rancor suficiente para alimentar estes sentimentos durante toda uma vida, e os avivaria até que...

Deixando-se levar pela fúria, entrou no closet de sua mãe.

— Nem sequer você poderá me arrebatar o que me pertence por direito de nascimento — espetou, depositando um cogumelo rosado e mortífero na língua de sua mãe. Ao contato com a saliva da Rainha, as raízes do cogumelo cresceram, desceram pela garganta da adormecida soberana e lhe oprimiram o coração. O chapeuzinho do cogumelo apareceu em sua boca, o que significava que o coração tinha deixado de bater.

Quanto a seu pai, deixou-o com vida, pois nunca tinha sido mais que um homenzinho fraco e bom para nada. Depois do assassinato de sua querida Theodora, Tyman perdeu o juizo. Falava com sua defunta esposa enquanto vagava pelo palácio arrastando os pés. Redd teria se tornado rainha, teria governado com todo o poder que possuía, se não fosse pela ousadia de sua irmã. Quase era risível: a pacífica Genevieve, incapaz de matar uma mosca, acreditava realmente que a coroa pertencia a ela. Redd armou a seus seguidores, e Genevieve organizou aos seus. Enfrentaram-se. Houve mortos, casas destruídas. Redd sabia que sua imaginação era mais poderosa que a de Genevieve, mas suas forças estavam em inferioridade numérica, e não contava com o apoio de um só membro da Chapelaria nem de ninguém capaz de fazer frente à Somber Logan. Entretanto, agora o Gato estava a seu serviço, assim como os rastreadores. Mesmo assim, a terminante derrota que lhe infligiu sua irmã mais nova e o desterro do País das Maravilhas eram humilhações impossíveis de esquecer.

Redd fervia de indignação. Dirigiu-se a grandes pernadas para a sala de jantar Sul, sem prestar atenção aos projéteis que explodiam à direita e esquerda, enquanto os guardas do palácio caíam às mãos de seus soldados. Uma esfera geradora explodiu bem diante de Redd, mas, sem afrouxar o passo, ela atravessou a fumaça e as chamas. Em meio às ruínas, encontrou-se por fim cara a cara com sua irmã e prorrompeu em alaridos.

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Mataria-os a todos.

Capítulo 10

A onda expansiva derrubou Alyss de sua cadeira. Quando jazia no chão, tossindo por causa da poeirada que se levantou dos escombros, viu que um bando de naipes soldados de Redd e vários ex-marvilianos sanguinários atacavam a um grupo de cortesãos e civis inocentes.

— Não!

De repente, uma mão lhe tampou a boca. Era de Dodge, que a arrastou debaixo da mesa consigo.

— Não faça ruído ou virão atrás de você também. Fique aqui e não se mova.

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Alyss não tinha intenção de mover-se, e menos ainda de sair de debaixo da mesa. Estava acontecendo muitas coisas, nenhuma delas boa. Entretanto, Dodge estava a seu lado. Podia contar com ele. «Enquanto Dodge e eu estivermos juntos... »

Instantes depois da explosão, o general Doppelgänger correu para uma cortina grosa e puxou a alavanca escondida atrás e acoplada a um eixo que se sobressaía do chão. Neste momento, os ladrilhos negros que o cobriam giraram e deixaram ao descoberto um exército de milicianos do Xadrez brancos: cavalheiros, bispos, torre, peões. Os milicianos cercaram combate com os naipes soldados. Os aços entrechocaram, e vários corpos caíram sem vida. O general Doppelgänger se dividiu nas figuras gêmeas dos generais Doppel e Gänger, que a sua vez se partiram em dois, de maneira que agora havia um par de generais Doppel e um par de generais Gänger lutando contra os soldados de Redd. Na verdade, Alyss não tinha se dado conta de que a mulher de aspecto venenoso que tinha gritado «que lhes cortem a cabeça» era sua tia Redd. Ainda não tinha amarrado os fios porque... Onde estava sua mãe? Ali, fazendo retroceder aos soldados de Redd, de dois em dois, inclusive de três em três. Até esse momento, Alyss não sabia que sua mãe soubesse combater. Estremecia cada vez que Genevieve estava a ponto de receber um golpe, e se fixava nas armas que imaginava para proteger-se — espadas, sabres, claves — cada vez que lhe arrancavam uma das mãos. Em todo momento manejava quatro armas ao mesmo tempo, duas delas com a imaginação, a fim de rechaçar aos inimigos que a atacavam por trás.

Mas por que não imaginava simplesmente que os naipes soldado morriam? Alyss tentou fazê-lo ela mesma: fechou os olhos e visualizou os soldados amontoados sem vida no centro da sala. Entretanto, era impossível matar a alguém com vontade de viver valendo-se unicamente do poder da imaginação. Quando Alyss abriu as pálpebras, o caos ainda reinava na sala, e vários peões e torres e um ou outro cavalheiro branco sucumbia às mãos do inimigo. Os alaridos de dor e desespero lhe feriam os ouvidos.

Um corpo caiu violentamente sobre o tampo da mesa. Dodge rodeou Alyss com o braço, como se isso bastasse para protegê-la do perigo.

— Não se mova, quieta — lhe sussurrou.

Ela se aconchegou contra ele. Não queria continuar contemplando a batalha, só afundar o rosto no ombro de Dodge para que, quando olhasse de novo, aquela espantosa cena tivesse desaparecido e tudo houvesse voltado a ser como antes.

Somber Logan tirou a cartola. Segurou-a pela aba e fez um movimento de pulso brusco e rápido; o chapéu se aplanou e se dividiu em uma série de folhas cortantes em forma de S e unidas por sua parte central. Lançou a arma, que atravessou a sala girando e talhando inimigos antes de cravar-se na parede do fundo.

Um naipe soldado Quatro extraiu a arma da parede. Entretanto, arrojar a cartola de Somber requeria uma técnica difícil de dominar, por isso cada vez que o soldado tentava executar o movimento rápido de pulso que tinha observado Somber fazer, a arma caía no chão com grande estrépito.

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Somber abriu passo para a cartola, lutando, dando voltas no ar, com a jaqueta da chapelaria ondulando como uma capa. Seus braceletes de aço se abriram de repente e se converteram em armas em forma de hélice que giravam pela parte exterior de seus punhos. De sua mochila brotaram navalhas e saca-rolhas de diversas longitudes e grossuras, como se se tratasse de um canivete suíço gigantesco.

À medida que Somber se aproximava, o naipe Quatro ficava mais e mais nervoso. A cartola caiu ao chão uma última vez. Somber recolheu a arma e a examinou para assegurar-se de que não estava danificada.

— Terá que aprender a usá-la — assegurou. — Olhe, ensinarei como se faz. — Estas foram às últimas palavras que o soldado ouviu em sua vida.

Redd passeava em meio à confusão da batalha sem sofrer o menor dano. Cada vez que um peão branco cometia o engano de atacá-la, lhe dava um golpezinho com o dedo que o fazia sair expedidos contra uma parede ou a ponta de alguma lança. Não era pouco o orgulho que sentia ao ver como o Gato se desempenhava bem em combate: atirava golpes mortais aos milicianos, e produzia tantas baixas entre eles quanto Somber entre os naipes soldado. Também lhe agradava a rapidez com que os cabeças das famílias se dobraram ante ela. Assim que tinha ordenado que despojassem a todos de suas respectivas cabeças, o Senhor de Ouros deu com grande valentia um passo à frente, inclinou-se para diante e disse: «Majestade, lamentamos termos sido privados de sua presença durante tanto tempo, e celebramos jubilosos sua volta.» Imediatamente, os de Espadas e Paus dedicaram por sua vez profundas reverências e expressões de afeto a Redd. Assim, ela lhes perdoou a vida. No momento. Além disso, havia algo no jovem de Ouros que a intrigava. Ali, sob o braço protetor de seu pai, com seu aspecto elegante, parecia mais interessado que temeroso, como tentando aprender o máximo possível da violência que presenciava. Quem sabe? Talvez lhe fosse útil no futuro.

O juiz Anders lançava espadadas a direita e esquerda contra os soldados invasores. Conseguiu salvar vários milicianos que se viram rodeados por uma equipe de naipes Dois e, assim que viu que tinha o caminho livre para o Gato, arrancou a correr em direção à criatura, com a espada em alto para desferir um golpe mortal.

Dodge se precaveu do que estava a ponto de ocorrer.

— Veja isso — disse a Alyss, orgulhoso da destreza e o arrojo de seu pai.

Entretanto, o Gato se desembaraçou do chefe da guarda paciana facilmente. Com o dorso da mão, derrubou o juiz Anders, cuja espada se deslizou pelo chão até ficar fora de seu alcance. O Gato levantou o homem e lhe abriu a garganta com uma garra.

— Nãaooo! — antes que Alyss pudesse detê-lo, Dodge saiu disparado de debaixo da mesa, recolheu a espada de seu pai e arremeteu contra o Gato — Yaaah!

O assassino, com um sorriso zombador, derrubou-o com um golpe leve. Seis milicianos do xadrez se lançaram contra ele para evitar que matasse ao moço.

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Sangrando pelos quatro cortes paralelos que lhe tinha feito o Gato na bochecha com a garra, Dodge se encurvou sobre seu pai morto, soluçando.

Alyss, só sob a mesa, rompeu a chorar também. As lágrimas lhe banhavam o rosto desde a irrupção de Redd e seus esbirros, mas tinha a impressão de que eram de outra pessoa, de que não formavam parte dela, como se seu corpo tivesse reagido ante o horror daquela cena quando seu cérebro ainda não o tinha assimilado. Então deu rédea solta a sua angústia, estremecendo-se com a força de seus soluços. «O juiz Anders morreu. Dodge me abandonou. Por que meu pai partiu, para começar? E onde está mamãe? Onde...? »

Um rosto apareceu ante ela; tinha os olhos negros e afundados, a pele maltratada, de aspecto doente, e o cabelo pesado.

— Olá, sobrinha.

Alyss notou que algo a arrastava para tirá-la de debaixo da mesa e a sustentava em desequilibrio. Era a cabeleira negra e longa de Redd.

— Assim que se supunha que você ia ser rainha? — soprou a mulher, não precisamente impressionada.

— Tia Redd?

— Nada mais e nada menos.

— Solta-a, Redd. — Era a voz de Genevieve.

— Pretende me dizer o que devo fazer? — inquiriu Redd, com uma expressão de absoluto desdém. — Dê uma olhada ao redor. A época em que podia dar ordens chegou a seu fim.

— Por favor, solta-a.

Redd perdeu a paciência.

— Sabe que não o farei. É a causadora de sua própria desgraça, «rainha» Genevieve. Não posso permitir o luxo de deixar com vida a um só dos Copas, exceto a mim mesma, está claro.

— Tome a mim como prisioneira em seu lugar.

— Irmã estúpida. Já te tenho. Por certo, se por acaso ainda esperava a seu Rei consorte, lamento te comunicar que não voltará para casa. Jamais.

Do cetro de Redd saiu uma nuvem de fumaça vermelha, e em meio desta começou a piscar uma série de imagens: a emboscada feita ao rei Nolan e seus homens nas cercanias do palácio de Copas, o Rei, transpassado pelo cetro bicudo e nodoso de Redd.

— Pai! — chiou Alyss.

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— Meu doce Rei — gemeu Genevieve, e ato seguido dezoito cones, cada um deles com uma ponta de metal afiada como uma adaga, saíram zumbindo para Redd. Esta elevou a mão com displicência: os cones se detiveram no ar e, ao mesmo tempo, caíram no chão, amontoados. A pesada luminaria que pendia em cima da cabeça de Redd se soltou e se precipitou sobre ela. Redd fez um gesto para espantar um mosquito frente a sua cara, e a luminaria se desintegrou, reduzida a pó.

— Isso é o melhor que sabe fazer, irmã? — riu Redd.

Várias lanças com folha de fio duplo voaram girando em direção a ela. Desviou-as para os lados, uma atrás de outra, aborrecida de sua própria força, cansada desta perseguição por parte de Genevieve.

— Já chega de joguinhos — sussurrou. Ato seguido, apertou a base do polegar com a ponta do indicador e Alyss começou a sufocar; sentia que a sua garganta tinha inchado até fechar-se. Se sua mãe tinha fracassado, ela teria que dar com uma solução por si mesma, imaginar algo que a tirasse do apuro. Entretanto, não conseguia concentrar-se. Um queijo redondo rodou até topar com o pé de Redd. Um par de sapatilhas dançava no ar.

Redd soltou uma gargalhada.

— E com essa imaginação ia herdar o trono?

Alyss acreditou que ia explodir devido à falta de ar. Procurou tatando o dente de galimatazo que levava no pescoço e fincou a aguçada ponta no antebraço de Redd com todas suas forças. O dente ficou preso.

— Ah!

Redd soltou Alyss, que caiu no chão. Antes que conseguisse aspirar uma baforada de ar, percorria um corredor a toda pressa junto a sua mãe, quase sem tocar o chão com os pés. Irromperam nos aposentos privados da Rainha, correram entre os sofás e as poltronas, deixaram atrás o guarda-roupa no qual se penduravam às roupas reais e entraram na penteadeira, onde...

O Gato as alcançou e arremeteu contra elas. Ambas acreditaram que tinha chegado seu fim, mas algo passou zumbindo junto à cabeça da Princesa e se afundou no peito do Gato. O sicário desabou a seus pés. Somber se agachou sobre a besta e extraiu sua cartola da ferida mortal.

— Leve Alyss — ordenou a rainha Genevieve, assinalando o espelho, — o mais longe possível.

— Mas, Majestade...

— Me reunirei com vocês assim que puder, se é que posso. Deve manter a Princesa a salvo até que tenha idade para governar. Ela é a única esperança de que o País das Maravilhas sobreviva. Prometa-me isso.

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Somber inclinou a cabeça. Seu dever primordial era proteger à Rainha. Enquanto Genevieve vivesse, ele devia permanecer a seu lado e combater contra o inimigo. Mesmo assim, compreendia que o futuro do País das Maravilhas dependia da sobrevivência de Alyss. O reino era mais importante que a vida de uma Rainha. Elevou a vista e a pousou em Genevieve.

— Prometo — disse.

Genevieve se ajoelhou diante de sua filha.

— Aconteça o que acontecer, sempre estarei perto de você, querida. No outro lado do espelho. Nunca esqueça quem é, entendido?

— Quero ficar com você.

— Sei Alyss. Amo você.

— Não! Fico! — Alyss se abraçou a sua mãe.

Uma parede veio abaixo, e ali estava Redd, à cabeça de uma seção de naipes soldado.

— Oh, que meigo. Por que não nos abraçamos todos juntos? — disse, aproximando-se deles com um ar em absoluto carinhoso.

Somber agarrou Alyss nos braços e saltou no interior do espelho. Genevieve fez pedacinhos do cristal com seu cetro e se voltou para Redd. Para sua surpresa, viu com a extremidade do olho que o Gato, que jazia no chão com um buraco considerável no peito, abria as pálpebras. Sua ferida se fechou, e ele se lançou sobre ela. Tudo aconteceu muito depressa: Genevieve materializou um raio branco de energia com a imaginação e fulminou com ele o Gato, que caiu morto pela segunda vez. Os naipes soldado deram uns passos à frente para atacar à Rainha, mas Redd lhes indicou que se detivessem. Arrancou o raio denteado do peito do Gato e começou a fazê-lo girar na mão como um bastão, até que ficou vermelho vivo.

— Bom, irmã, não sei o que dizer. Mentiria se não reconhecesse que tenho uma vontade tremenda de me despedir de ti.

Chocou o raio violentamente contra o chão. Na zona de impacto brotaram dúzias de rosas negras, cujos caules espinhosos começaram a enrolar-se rapidamente em torno de Genevieve, se cravando em sua pele e imobilizando-a. As pétalas se abriam e fechavam; bocas de dentes afiados, ávidas de carne real.

— Que lhe cortem a cabeça — ordenou Redd, levantando o raio de energia do chão.

— Não! — Genevieve lutava por liberar-se dos caules das rosas. Seu povo ficaria a mercê de Redd. E Alyss... era só uma menina.

Redd lançou o raio com força. A cabeça de Genevieve caiu para um lado, o corpo para o outro, e a coroa rodou pelo chão como uma moeda. Redd a recolheu e a colocou sobre a testa.

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— A Rainha morreu. Viva a Rainha! Ou seja, eu.

A unidade de naipes soldado prorrompeu em vivas.

Redd inflingiu um chute no Gato, que estava convexo com a língua pendurando, a viva imagem da morte.

— Vamos! Ainda restam sete vidas.

Os olhos do Gato se abriram de repente.

— Encontra Alyss e mate-a. — Fez um passe com a mão, e o espelho voltou a ficar inteiro. O Gato saltou através dele, atrás do último membro da família de Copas que restava com vida, além de Redd.

Capítulo 11

O catoptransporte, também conhecido como transporte por meio do cristal, era bastante comum no País das Maravilhas. Cada espelho era um portal que dava acesso ao

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Contínuo de Cristal, uma rede de caminhos que permitia a qualquer marviliano entrar por um espelho e sair por outro. Havia espelhos enfocados que conduziam a lugares específicos (como a esquina da via País das Maravilhas com a Rua Tyman). Os espelhos desfocados permitiam aos viajantes escolher seu destino, sempre e quando houvesse no lugar aonde desejavam viajar outro espelho que os refletisse no exterior. Uma passagem do In Regnum Speramus diz: «Assim como um corpo submerso tende a subir à superfície, um corpo que penetra em um espelho deseja ser refletido para o exterior.» necessitava-se prática para permanecer no interior do Contínuo e dominar os princípios básicos de navegação. Um viajante inexperiente podia entrar em um espelho de sua própria casa, com a intenção de visitar um amigo que vivia no outro extremo da cidade, e acabar refletido ao exterior pelo espelho de seu vizinho.

— Eh... Perdoe-me.

Então talvez o viajante entraria no espelho de seu vizinho, só para sair pelo do vizinho de seu vizinho, e assim sucessivamente, até chegar à casa do amigo que vivia no outro extremo da cidade. Com um pouco de tempo e experiência, aprenderia a realizar o deslocamento em um número menor de passos. Percorrer distâncias longas no Contínuo era complicado, virtualmente impossível exceto para os viajantes mais experimentados. Por outro lado, os trajetos curtos não requeriam uma preparação extraordinária.

Não obstante, o espelho dos aposentos privados da Rainha não se comunicava com o resto do Contínuo. Era um cristal enfocado, uma saída de emergência para a família real e seus amigos mais próximos. Depositava ao usuário no mais profundo de um bosque. O espelho do destino se encontrava bem oculto atras de um arbusto do mais discreto.

Uma vez dentro do Contínuo, Alyss voltou atrás o olhar e viu a imagem trêmula de sua mãe, cada vez menor entre as superfícies reluzentes e cristalinas junto às que avançavam Somber e ela. Genevieve estalou em mil fragmentos de forma irregular que saíram voando em todas as direções — «mamãe!» —, e logo a escuridão invadiu tudo. Parecia que tinha chegado ao final. Um vazio negro se expandia atrás deles, como quando alguém destruía um espelho enfocado e o caminho a um destino concreto se apagava por completo.

Aonde Somber a levava? Aonde, aonde, aonde?

O vazio ganhava terreno, cada vez mais perto, e de repente... Alyss despertou, ainda nos braços de Somber, com a bochecha tamborilando contra o ombro dele. O sono de portal era um efeito secundário do catoptransporte entre os jovens e os inexperientes. Alyss e Somber já não estavam no Contínuo; corriam por um bosque escondido nas trevas. Alyss não via absolutamente nada do que tinha adiante ou atrás, e nem sequer teria se dado conta de que se achavam em um bosque se não tivesse ouvido o sussurro das árvores que os rodeavam. Começou a chover com raios e trovões. Aumentou o vento. Como podia Somber ver por onde ia?

Do alto lhes chegou o que soava como alaridos de almas penadas.

— Rastreadores — disse Somber, mais para si que para Alyss.

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Sim, rastreadores, que alertavam a quem os perseguia sobre sua posição. E é que não cabia a menor duvida de que alguém os perseguia. Somber o ouvia aproximar-se deles a toda velocidade através do sub-bosque, arrancando ramos e pulverizando a água dos atoleiros em sua atropelada carreira.

Depois do que para Alyss pareceu uma eternidade, o bosque Sussurrante deu passo a uma extensa clareira, e ao final chegaram a bordo de um precipício. Ela demorou um segundo para perceber onde estava: na parede de rocha que se elevava sobre o lago das Lágrimas que ela e Dodge tinham contemplado fazia só um momento. Como teria gostado que Dodge estivesse a seu lado agora. A água estava escura e turva. De repente, compreendeu tudo.

— Ninguém jamais volta — murmurou, olhando o lago com tristeza.

— Mas você voltará — assegurou Somber — Tem que voltar.

Nesse momento, o Gato irrompeu na clareira e se lançou sobre eles, com os braços estendidos. Somber saltou. O Gato enganchou com uma garra a manga do vestido de aniversário da Princesa e a arrancou, mas foi tudo que conseguiu. Alyss de Copas, agarrada com força a Somber Logan, precipitou-se para a superfície do lago.

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Capítulo 12

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— Aponta os pés para baixo! — gritou Somber, mantendo-se o mais vertical possível. Sabia que se Alyss e ele não minimizavam ao máximo o impacto ao cair à água, o golpe seria tão violento como se chocar contra uma superfície de diamante, e os dois seriam mortos.

Alyss mal teve tempo de fazer o que lhe indicavam antes de mergulhar até as profundezas do lago. Soltou-se sem querer do capitão da Chapelaria. Ele estendeu a mão para Alyss, mas ela, presa do pânico, começou a agitar braços e pernas, afundando-se cada vez mais até ficar fora de seu alcance. Quando abriu os olhos, não viu mais que espuma e uma massa de borbulhas, de modo que os fechou de novo, negando-se a confrontar o desconhecido. Bem quando lhe parecia que não podia aguentar a respiração um segundo mais e que pereceria afogada, deteve-se e começou a mover-se em sentido contrário, vamos, para a superfície, com a mesma força e velocidade com que tinha descido.

Saiu disparada da água, um atoleiro sujo em meio de uma rua pela que discorria um desfile. Das calçadas, uma multidão de pessoas de rosto anônimo e estranho, vestidas em vários tons de cores apagadas, a aplaudiam.

«Toda esta gente que salta, dá cambalhotas e faz malabarismos... E esses são soldados?» Tinham-na tomado por uma integrante da troupe de ciganos que executava piruetas e truques de magia junto ao regimento que desfilava pela rua.

— Bravo, bravo! — aclamava o público.

Cinco chapéus de feltro, uma bengala com ponta de marfim, um par de óculos com armação de concha, um jornal enrolado, uma batata e dois pratos de bolo de vitela e rins se elevaram e começaram a descrever círculos no ar. O jornal enrolado golpeou um menino que estava sentado sobre os ombros de seu pai, e uma mulher recebeu um golpe de bolo no rosto. Alyss, aturdida, nem sequer era consciente de que os objetos tinham se posto a voarem impulsionados por sua imaginação. Não tirava o olho do atoleiro sujo, com a esperança de que Somber aparecesse. Então uma limusine dourada descoberta, puxada por oito cavalos ricamente arreados, passou sobre o atoleiro, salpicando. Alyss espionou em seu interior uma mulher — uma rainha, sem dúvida uma rainha! — que saudava a multidão.

— Mamãe?

Era possível. Talvez Genevieve tivesse chegado a esse mundo antes que ela. Se existia alguém capaz disso... Por outro lado, talvez quem era rainha em um mundo fosse reconhecida como tal em outros, não? Alyss se esqueceu do atoleiro sujo e arrancou a correr depois da limusine, e imediatamente os chapéus de feltro, os óculos a bengala, a batata e o bolo de rins caíram no chão.

— Mamãe. Mamãe, espera!

Abriu caminho em ziguezague por entre os soldados que partiam, em direção à carruagem da Rainha. Os militares topavam com ela e a afastavam a cotoveladas.

— Some pirralha.

— Pra longe daqui, maltrapilha.

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Ela apenas se fixava; estava alcançando a limusine. Sua mãe a veria, ordenaria que a subissem ao veículo dourado e a depositassem no fofo assento de couro, e lhe explicaria os horríveis acontecimentos da última meia hora. Tudo tinha sido unicamente uma prova, diria-lhe Genevieve, a primeira prova que Alyss devia passar como futura Rainha.

Achava-se a trinta metros da carruagem quando esta chegou ao final do percurso do desfile e virou bruscamente para se enfiar numa rua lateral. Enquanto se afastava a toda pressa, uma fileira de soldados cortou o acesso à rua para evitar que as pessoas seguissem a limusine. Com toda a dignidade que foi capaz de reunir e encorajada por sua fé inquebrável em sua própria autoridade (afinal de contas, era uma princesa), Alyss se aproximou dos soldados que montavam guarda.

— Aonde vai essa limusine?

Não obteve resposta. Talvez não a tivessem ouvido. Dispunha-se a repetir a pergunta quando um dos guardas se dignou baixar a vista para ela. A julgar por sua expressão (parecia que alguém tinha lhe aproximado um rabanete pestilento ao nariz), o aspecto desarrumado de Alyss não lhe tinha causado uma impressão muito boa. Ela jogou uma olhada a seu vestido, esmigalhado pelo Gato e empapado pelo lago das Lágrimas; não apresentava um porte precisamente régio.

— Ao palácio do Buckingham, ou o que você pensava? — ele espetou.

Entretanto, Alyss não estava pensando, pois os acontecimentos aconteciam com muita rapidez para que ela pudesse assimilá-los. Para ela, o palácio do Buckingham não era nem mais nem menos que o lugar aonde foi sua mãe.

— E onde está esse palácio? — perguntou.

— Não sabe onde está o palácio do Buckingham?

— Se não me disser isso, posso te fazer a vida impossível.

A ameaça soou engraçada ao soldado.

— Ah, sim? E por que tenho que te dizer onde está o palácio? O mais certo é que queira fazer algo mau à Rainha.

— Sou a princesa Alyss de Copas. A Rainha é minha mãe e...

— Seu Ma...? Vá, vá. — O soldado se voltou para o indivíduo que tinha ao lado e que tinha seguido toda a conversação. — Eh, George. Esta garota diz que sua mãe é a Rainha.

— Não me diga! — exclamou George, e se dirigiu a outro soldado que se encontrava junto a ele. — Ouviu Timothy? A mãe desta garotinha é a Rainha. Suponho que é nosso dever protegê-la com a vida.

— Louvor a Sua Alteza Real — disse Timothy, com uma reverência.

Os outros soldados prorromperam em gargalhadas.

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Alyss sabia que não há nada mais perigoso que a imaginação posta ao serviço da ira, mas aqueles soldados lhe tinham demonstrado muito pouco respeito. Talvez se devesse às propriedades deformadoras de sua raiva, ou à imundície daquela cidade estranha, mas quando imaginou que os lábios dos soldados ficavam costurados, o que ocorreu ao invés disso foi que lhes desfizeram as costuras das jaquetas e das calças.

Os guardas, que acreditaram que os uniformes tinham descosturado por causa da risada, riram com mais vontade.

A fúria de Alyss se dissipou, e ela ficou triste e confusaa. Cabia a possibilidade de que não fosse sua mãe quem ia na limusine? Não tinha visto sua mãe explodir em mil pedaços e deixar passo a mais absoluta escuridão? Além disso, por que lhe tinha falhado a imaginação?

Sem dar-se conta, afastou-se dos soldados.

— Somber? — chamou.

Mas só a rodeavam desconhecidos; uns conversavam sobre pequenos grupos, outros caminhavam a toda pressa para chegar quem sabe aonde. A rua estava coberta de imundície e fuligem, e o ar fedia a excrementos de cavalo.

— Somber!

Tinha que encontrar o atoleiro pelo qual tinha saído a esse mundo. Desse modo se reencontraria com o Somber, talvez inclusive retornasse ao País das Maravilhas. Voltou sobre seus passos, mas o meio-fio estava salpicado de atoleiros. E se tinha ido muito longe e o tinha passado ao largo? Nada daquilo lhe parecia familiar. E se tinha percorrido uma distância maior da que pensava ao perseguir a carruagem? E se não encontrasse jamais com o atoleiro? O que aconteceria quando o sol assomasse por entre as nuvens?

Se parasse para pensar na situação que estava atravessando... Não, era melhor que não. Seu pai tinha sido assassinado. Sua mãe, com toda probabilidade, tinha morrido. Tinham degolado o juiz Anders. E Dodge, seu melhor amigo... «Mas não pense nele. Nem pense. » ficou presa nesse lugar estranho. Sozinha. «Não pense... »

Devia armar-se de coragem. Era uma princesa, a futura Rainha do País das Maravilhas. Não seria muito decoroso que ficasse a chorar como um bebê.

Tomou impulso, correu para o atoleiro mais próximo, deu um salto e caiu bem no meio, molhando-se e salpicando um casal de meia idade que passava por aí.

— Que grosseira, santo céu! — protestou à senhora.

O homem fez menção de perseguir Alyss, mas esta já tinha saído correndo do atoleiro e se dirigia para outro. Plantou-se nele de um salto e salpicou totalmente um jovem elegante recém saído da oficina de seu alfaiate.

— Argh! Este lenço de seda por si só vale mais que você, monstrinha imunda!

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Alyss se lançava de atoleiro em atoleiro. Fechava os olhos com força ao elevar-se no ar e concentrava toda sua energia em imaginar que se encontrava de volta no País das Maravilhas; ao baixar abria os olhos, a água saltava em todas as direções, e ela descobria que continuava naquele mundo desconhecido. As responsabilidades que trazia consigo de ser Princesa... Talvez nunca a tenham seduzido totalmente, mas sem dúvida eram preferíveis a isto.

«Nunca encontrarei a maneira de voltar para casa. Nunca, jamais!»

Desesperançada, começou a dar saltos sobre o mesmo atoleiro, gritando «não, não, não!» até que foi impossível distinguir suas lágrimas das salpicaduras da água da rua.

— Está se banhando ou o que? — perguntou um menino que a observava de uma distância prudencial para não molhar-se.

Ela parou de saltar e engoliu os mucos. O menino vestia calças cinzas com emplastros nos joelhos e as coxas, uma casaca que era muito grande para ele e cuja barra lhe chegava virtualmente aos tornozelos, e umas botas de pele rachada, sem cordões.

— Sou a princesa Alyss de Copas, do País das Maravilhas — disse com ar desafiante.

— Sim, e eu sou o príncipe Quigly Gaffer, de Chelsea. É um vestido muito estranho esse que veste.

Ela baixou a vista para seu vestido de aniversário empapado e sujo, cheio de babados, apertado na cintura, com uma saia rodada incomodamente amplo dos joelhos para abaixo, e um pescoço alto, leve e franzido. Estava decorado com aplicações em forma de coração, de cores que só se encontravam no País das Maravilhas. Inclusive ali o vestido era bem chamativo, pois procedia do guarda-roupa da Princesa, quem só o exibia um dia ao ano, depois de que os alfaiates reais o ajustassem às medidas de seu corpo em crescimento.

— É tudo o que tenho — repôs, e ao ouvir suas próprias palavras se desfez em pranto de novo.

Quigly a contemplou por um momento. Mesmo com as manchas de terra e sujeira e as lágrimas que derramavam seus olhos, havia algo na garota que o intrigava. Parecia mais brilhante que tudo o que a rodeava. Era como se a iluminasse de dentro uma lampada cuja luz deixava transluzir de forma muito tênue os poros de sua pele.

— É melhor que venha comigo se quer pôr roupa seca, Majestade — disse Quigly, e pôs-se a andar.

Alyss estava indecisa. A meia quadra de distância, Quigly se voltou para ela.

— Venha! — gritou, animando-a por gestos a que o seguisse.

Ela jogou uma última olhada em torno de si, procurando Somber, e abandonou o atoleiro em que estava. Não podia se permitir o luxo de ficar sem um amigo.

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Capítulo 13

Nem sequer o adestramento mais duro na Chapelaria teria preparado Somber para a experiência de ver-se arrastado pelas águas do lago das Lágrimas. Depois de sair de um atoleiro com um salto mortal e cair de pé com a agilidade de... bom, de um gato, deixou-se levar por seu instinto de autoproteção. De sua mochila brotou seu arsenal habitual de armas. Seus braceletes de aço se abriram de repente e começaram a girar como hélices. Somber levou a mão à cabeça para agarrar sua cartola, mas não a encontrou, o qual era uma má notícia. Uma notícia muito má. A cartola era sua arma principal, a que se esforçou mais por dominar. E certamente ia precisar dela, a julgar pelas expressões de surpresa e de alarme que via nos rostos que o rodeavam. Tinha emergido do portal de saída em Paris, França, em 1859, e se encontrava em meio a uma grande avenida conhecida como Champs-Élysées. Vários parisienses derramaram seus cafés ante aquela visão. A súbita aparição de Somber perturbou o tráfico, e os carros viravam bruscamente à direita e esquerda. Um deles derrubou uma barraca de fruta, outro esmagou umas cestas de baguettes e fogaças. Os cavalos relinchavam e se encabritavam, nervosos.

Quem era aquele homem adornado de um modo tão estranho e de cuja mochila se sobressaíam navalhas e saca-rolhas? O que eram essas folhas giratórias que levava nos pulsos?

Somber não afastava a vista do atoleiro, pois esperava que o Gato ou os soldados de Redd surgissem dele em qualquer momento.

— Alyss?

Mas não a via em lugar nenhum. Isso era pior que ter perdido a cartola. Tinha estado submerso no lago das Lágrimas só por uns instantes, com uma só missão, uma missão simples — cuidar da futura Rainha do País das Maravilhas —, e tinha deixado que a corrente a levasse. Certamente a água a tinha arrastado a um portal que se abria a outro lugar.

Alguns homens uniformizados com boinas pequenas e rígidas, que pareciam confusos e bastante assustados, dirigiam-se para ele. Somber fechou rapidamente as navalhas de seus pulsos e começou a correr, não porque temesse esses homens, mas sim porque temia o que podia chegar a fazer a eles. Até mesmo neste mundo estranho para ele, reger-se-ia pelo código da Chapelaria, que só permitia o uso de técnicas de combate contra pessoas que fossem inimigos provados, e até nesses casos, só na medida justa. Por outro lado, convinha-lhe passar o mais inadvertido possível e perder-se de vista para encontrar à princesa Alyss.

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Com as abas de sua jaqueta da Chapelaria ondeando atrás dele, cruzou a Champs-Élysées e se enfiou numa rua residencial. Era mais rápido e ágil que os franceses, e teria sido fácil deixá-los atrás se soubesse orientar-se por Paris. Em um par de ocasiões acreditou que tinha conseguido enganá-los, só para descobrir que tinham atalhado por um beco e agora se encontravam diante dele.

Devia livrar-se deles definitivamente. Diminuiu o passo e deixou que se aproximassem. Quando se encontravam a uns dez passos dele, abriu com um estalo as navalhas de seus pulsos, ameaçou atacá-los e eles se dispersaram a toda velocidade para refugiar-se em cafés, cervejarias, confeitarias, padarias, ali onde podiam. Somber fechou seus braceletes e continuou correndo. Desta vez, ninguém o seguiu.

Escondeu-se debaixo de uma ponte, à borda do Sena e aguardou a que anoitecesse, pois sabia que então lhe custaria menos mover-se pela cidade sem chamar muito a atenção. Tinha a intenção de pentear as ruas, de jogar uma olhada a cada passadiço e cada ruela em busca da Princesa antes de transladar-se a outro povoado ou outra cidade. Conseguiria mapas, rastrearia o mundo inteiro em caso necessário, familiarizaria-se com as vias interurbanas, cruzaria as fronteiras como um fantasma. A promessa que tinha feito a Genevieve, a rainha que tinha deixado para trás, assim o exigia.

Protegido pelo manto da escuridão, Somber começou seu percurso das ruas em um extremo da cidade e avançou pouco a pouco para o extremo oposto. Agora que lhe apresentava a oportunidade de fixar-se nisso, Somber advertiu que a algumas pessoas as rodeava uma espécie de aura. Supôs que estavam dotadas da luminescência da imaginação, de modo que seguiu a um homem que despedia este brilho pela rué do Rivoli até uma loja modesta que tinha um letreiro de madeira em forma de cartola em cima da porta. Talvez fosse a chefia dos homens e mulheres da Chapelaria local. Talvez encontrasse ajuda e companheirismo ali. Seguiu o homem ao interior do local. Dentro havia chapéus de todos os tipos: chapéus de feltro, chapéus cogumelos, boinas escocesas, gorros, boinas; todo um desdobramento de tocados que impressionou inclusive ao Somber. Agarrou uma das cartolas e lhe aplicou um movimento de pulso, mas o chapéu conservou sua forma inócua.

Um cavalheiro diminuto com um bigode espaçado se aproximou.

— Bonjour, monsieur. Est-ce que je peux vous aider7?

— Venho do País das Maravilhas — explicou Somber. — Sou o capitão da Chapelaria de lá. — Fez uma pausa, esperando que o balconista captasse o significado, a importância de suas palavras.

— Cela est un bon chapeau8 — disse o homenzinho, assinalando a cartola.

Somber deixou o artigo onde estava.

— Procuro à princesa Alyss de Copas, do País das Maravilhas. Emergiu em algum lugar deste mundo, igual a mim, através de um portal, e...

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Entretanto, o olhar do balconista não mostrou o menor sinal de reconhecimento ao ouvir o nome de Alyss, nem de entender o que Somber lhe dizia. Quando o homem começou a exaltar as qualidades de uma boina em particular, Somber partiu da loja. Ia tentar a sorte em outras, pensou. Confiava nos vendedores de chapéus mais que em ninguém.

Algumas portas mais à frente, três homens saíam de um café, levemente bebados. Pararam em seco, com expressão de sonolenta surpresa, ao fixar-se em Somber e em seu estranho traje.

— Je n'aime pas les étrangers9 — disse um deles.

Somber não precisava entender francês para captar a hostilidade em sua voz. O homem insinuou um murro ao Somber, e seus acompanhantes riram. Somber não piscou.

— Não quero brigar contigo — disse.

— Non?

— Não.

O homem lhe deu um empurrão. Somber permaneceu firme onde estava, contendo-se de maneira exemplar.

— Qu'est-ce qu'il y a dans le sac10? — inquiriu o homem, assinalando a mochila do Somber — Donnez-moi le sac11. — Deu um passo para ele, estendendo o braço para a mochila.

Só um inimigo tentaria apoderar-se das armas de Somber. O chapeleiro ativou as navalhas de seu pulso e executou um salto mortal para trás para dispor de mais espaço. Levou as mãos a sua mochila e lançou um punhado de adagas. Ouviram-se três golpes surdos e um dos homens ficou pregado a uma carreta de madeira pelas mangas da camisa. Somber esperava que esta demonstração de destreza marcial lhes desse a entender que podia matá-los aos três se assim o desejasse.

Vários outros homens saíram dos cafés próximos, alertados pelo ruído. Rodearam Somber; eram quinze. Um deles lhe apontou à cabeça com uma pistola.

Somber identificou vagamente aquele objeto como algo que um marviliano tinha inventado quando ele era menino. Para refrescar a memória a respeito a sua utilidade, cravou o olhar no homem e disse:

— Bu!

Preso do pânico, o homem abriu fogo.

Uma bala redonda de aço saiu disparada para Somber, que, veloz como a língua de um galimatazo, agachou-se para esquivá-la. Ato seguido, pulsou um botão em sua fivela, e uma série de folhas curvas de sabre se desdobraram ao longo de seu cinturão. Entretanto, antes que estas ficassem em movimento, o grupo se dispersou. Cada homem corria para afastar-se o máximo possível de Somber, o que não impediu que mais tarde assegurassem que

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tinham visto aquela figura ameaçadora massacrar a mais de vinte civis com seu sofisticado armamento, e que eles se salvaram por milagre.

Os sabres do cinturão do Somber se retraíram. Fechou as navalhas de seu punho com um estalo e se permitiu um breve sorriso, aliviado por não ter tido que matar ninguém. Não reparou no tapete grande e primorosamente decorado que lhe vinha em cima, seguro por seis dos mais valentes comerciantes de tapeçarias da cidade. O tapete o derrubou, e os homens o enrolaram nela apertadamente. As armas de sua mochila transpassaram o grosso cilindro, mas Somber tinha os braços imobilizados contra os flancos; não chegava com as mãos a sua fivela nem podia sacudir os pulsos para ativar seus braceletes mortíferos.

Os tapeceiros colocaram nos ombros o tapete em que Somber estava aprisionado e o levaram ao Palácio da Justiça. Apesar de tudo, enquanto ele respirava através das fibras do tapete, o que lhe preocupava não era sua segurança, mas sim a de Alyss de Copas, uma princesa perdida em um mundo hostil.

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Capítulo 14

O Gato, de pé no borda do precipício, contemplava as ondas e a espuma que se formaram abaixo, na água, quando Alyss e Somber mergulharam no lago. No céu, os relâmpagos cintilavam, retumbavam os trovões e a chuva caía a baldes. Se havia algo que o Gato não gostava, era a água. Dava igual a se tratasse de chuvas, duchas, ou banhos; detestava molhar-se. Deu meia volta e se internou de novo no bosque com o farrapo do vestido de Alyss no punho.

— Deixaste-os escapar — disse uma voz.

O Gato se deteve em seco, tenso.

— Fugiram — acrescentou outra voz.

Girou em torno, mas não viu ninguém. O bosque estava lhe falando, as árvores, os arbustos, as flores.

— O que foi? — perguntou um arbusto próximo — tem medo de se encharcar um pouco?

O bosque estalou em gargalhadas ao ouvir isto, mas o Gato não achava engraçado que zombassem dele. Agachou-se, arrancou o arbusto pela raiz e o jogou no chão. O silêncio se apoderou do bosque. O Gato se aproximou de uma árvore.

— Falava comigo?

A árvore não respondeu.

O Gato olhou a sua esquerda, logo a sua direita.

— Não vejo ninguém mais por aqui, assim devia estar falando comigo.

A árvore continuou calada. Não adiantou de nada. O Gato lhe passou as garras pelo tronco, descascando-o.

— Aaaaaaaaah! — gritou a árvore.

O Gato entrou de novo no Contínuo de Cristal através do espelho do bosque (seu guardião, o arbusto mudo, estava mais mudo que nunca) e reapareceu na sala de estar do Genevieve. Abriu passo pesadamente através dos restos da destruição até um corredor em forma de coração que conduzia a sala de jantar Sul, passando por cima dos cadáveres de

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naipes soldados e membros da guarda como se jamais tivessem sido pessoas vivas que riam, choravam ou se alegravam, como se não tivessem seres queridos que os esperavam em casa.

Apesar da explosão que tinha sacudido o palácio e dos corpos que jaziam nas diversas posturas em que os tinha surpreendido a morte sobre as mesas e no chão, na sala de jantar Sul reinava um ambiente festivo. Os soldados de Redd se serviam aperitivomaravilha, roedores fritos e todas as gostosuras que encontravam, e as metiam na boca com maneiras pouco elegantes. Como não lhes interessava muito o chá, tinham tomado por assalto a adega, e agora inchavam a barriga tomando uma taça atrás de outra do melhor vinho da Rainha.

— À saúde da rainha Redd!

— À morte da rainha Genevieve!

Estes brindes significavam exatamente o mesmo para Redd, que estava ajeitada em uma poltrona, luzindo a coroa ensanguentada.

— E bem? — disse ao ver o Gato — Onde estão suas cabeças?

Ninguém reconhecia um fracasso ante Redd sem sofrer um castigo doloroso ou algo pior. O Gato lhe mostrou o pedaço de tecido arrancado do vestido de Alyss.

— Isto é tudo o que fica deles. Lamento-o, Majestade. Não pude me controlar.

— Não é prudente controlar-se em situações como essa — repôs Redd — Bem feito.

Entretanto, as mentes maquinadoras e desonestas como a de Redd sempre maliciam as maquinações e a desonestidade alheias. Tentou ver Alyss com o olho de sua imaginação, para descobrir a verdade por si mesma: nada. A imaginação não podia penetrar no lago das Lágrimas, para sorte do Gato.

— Está morta? — perguntou uma voz detrás de uma cortina — Alyss morreu?

Redd fez um passe com a mão e a cortina se abriu, deixando ao descoberto Jacob Noncelo.

— Mas se é meu sábio e douto preceptor — disse ela.

Jacob Noncelo era um homem leal, e foi por lealdade a Genevieve, Alyss e à Imaginação Branca que decidiu, nesse momento, velar por sua própria sobrevivência apaziguando Redd. Embora fosse um intelectual, jurou a si mesmo que um dia derrotaria a essa mestra da Imaginação Negra e devolveria ao País das Maravilhas a glória e a paz. Inclinou a cabeça.

— A suas ordens, Sua... Malignidade Imperial.

Redd torceu a boca com desdém.

— «Sua Malignidad Imperial»? Ah! Sim, é perfeito. A partir de hoje todo mundo se dirigirá para mim como «Sua Malignidade Imperial» ou morrerá. Eh, você!

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— Sim, minha Rai... — começou a responder um naipe Dois, mas uma das garras do Gato lhe transpassou imediatamente o pulmão.

— Eh, você! — chamou Redd a um Três.

— Isto... sim, Sua... Sua Malignidade Imperial?

— Quero uma lista dos possíveis simpatizantes da rainha anterior que não estejam mortos nesta sala. Precavi-me que o general Doppelgänger não se encontra entre os cadáveres que dispersou por aqui. Ponham seu nome no primeiro lugar da lista. Quanto a outros, perguntem a eles. — Voltou à vista para as famílias de naipes nobres, que estavam apinhadas, tentando ocupar o menor espaço possível. — Estou certa de que cooperarão.

— Certamente — declarou o Senhor de Ouros, sem tirar a mão do ombro do Valete de Ouros.

— É obvio — acrescentou a Dama de Espadas.

— Claro, sem lugar a dúvidas — apostilaram a Dama de Paus e seu marido.

Redd não era uma idiota. Sabia que o medo e a intimidação não bastariam para governar o reino. As famílias nobres se acotovelavam com governantes de principados e comerciantes influentes, assim como com membros destacados do que restava do exército. Estes contatos podiam ser explorados em proveito e glorificação de Redd.

— Serão introduzidas algumas mudanças no reino que talvez sejam benéficos para todos — anunciou sua Malignidade Imperial — E um deles, de não pouca importância, é o seguinte: posto que não tenho herdeiros da linhagem de Copas nem desejo os ter, escolherei meu sucessor entre os membros das famílias nobres. Não posso lhe garantir nada a quem melhor me sirva de vós, mas terão mais possibilidades de herdar a coroa que outros. —aventurou-se a sorrir, um gesto que ao menos à Dama de Espadas pareceu mais horripilante que a visão dos numerosos corpos sem vida que a rodeavam, e que, para falar a verdade, Redd conseguiu esboçar não sem certa dor física. — Não lhes importa que abuse de sua ambição deste modo, não é?

— Claro que não — respondeu o Senhor de Ouros.

— Absolutamente — adicionou a Dama de Espadas.

— De forma alguma — apostilaram a Dama de Paus e seu marido.

As famílias nobres se esforçaram por lembrar quem tinha escapado, e mencionaram a vários peões, uma torre, um cavalheiro e vários naipes soldados.

— Dodge Anders fugiu! — asseverou o Valete de Ouros, falando em voz mais alta que outros.

— E quem é esse tal Dodge Anders? — inquiriu Redd.

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— Está apaixonado pela princesa Alyss, mas não quer reconhecê-lo. É o filho de um membro da guarda. Seu pai é esse daí. — O Valete assinalou ao juiz Anders, que jazia morto no chão.

Redd se aproximou do moço. Os soldados interromperam suas ruidosas celebrações. O Gato ficou imóvel. Ninguém sabia o que Redd ia fazer.

— É um menino muito solicito, não é verdade? — disse lhe beliscando as bochechas como uma avó carinhosa.

O Valete não podia responder, com o rosto preso entre as mãos de Redd.

— Acrescentem o nome do Dodge Anders à lista — ordenou, e soltou ao moço, lhe deixando as bochechas arroxeadas. Tirou a coroa da cabeça e a jogou em Jacob — Organize minha coroação ao pé do Coração de Cristal. Imediatamente. Todos os membros das famílias de classe devem assistir, a menos, é obvio que prefiram à comodidade do sono eterno.

Rodeada por Jacob Noncelo, o Gato, as famílias de naipes e os soldados de seu exército que não estavam muito bêbados para se ter em pé, além de alguns que sim o estavam, encontrava-se Redd, de pé no pátio do palácio, ante o Coração de Cristal. Elevou a voz ao céu tormentoso:

— Estou disposta a perdoar a quem cresceu durante meu exílio e não fizeram grande coisa para propiciar minha volta, com uma exceção: qualquer um que esconda ou ajude a um simpatizante da rainha anterior ou da Imaginação Branca será açoitado, encarcerado, submetido a torturas inexprimíveis e executado. Agora, me coroem.

Jacob Noncelo deu um passo à frente para cumprir a ordem, mas, em que pese a sua rapidez, não foi o bastante rápido para ela. Bastou-lhe curvar um dedo para que a coroa saltasse das mãos do preceptor e pousasse sobre a cabeça de Redd.

— Reclamo meu reino — declarou, tocando com ambas as mãos o Coração de Cristal.

Uma descarga de energia a sacudiu. O cristal branco se tornou vermelho; um vermelho tão intenso e penetrante que Jacob e os outros tiveram que afastar o olhar ou fechar os olhos para evitar que lhes queimassem as pupilas.

Redd tinha reivindicado o poder do Coração de Cristal como próprio.

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Capítulo 15

Os generais Doppel e Gänger, igual a aqueles poucos que tinham sobrevivido ao ataque de Redd, evitaram o Contínuo de Cristal ante a possibilidade de que a força invasora tivesse o controle dos caminhos de cristal. Chegaram a pé ao bosque Eterno e decidiram resguardar-se em um pequeno descampado cercado por árvores que lhes avisariam da

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proximidade do inimigo. Os que estavam ilesos carregavam os feridos, mas todos sofriam pela derrota e pela perda dos seres queridos que tinham ficado para trás.

— Devemos nos organizar rapidamente — insistiu o general Doppel aos outros.

— Antes que Redd se refestele no trono — conveio o general Gänger.

O cavalheiro branco assentiu com a cabeça.

— Se queremos reunir um exército temos que fazê-lo o quanto antes — prosseguiu o general Doppel —, por muito inoportuno que seja este momento para o recrutamento.

Os três voltaram à vista para os naipes soldados aturdidos pela batalha que chegavam arrastando-se a aquele refugio no meio do bosque.

— Meus bispos e eu estamos dispostos a arriscar tudo pelo reino — afirmou o cavalheiro. — Encontraremos marvilianos que queiram lutar a nosso lado contra Redd, disso pode estar seguro. — O cavalheiro congregou a seus bispos e aos peões destes. — Se espalhem pela cidade — ordenou — Encontrem pessoas dispostas a defender a Imaginação Branca e lhes indiquem onde acampamos. Devem chegar até nós por sua conta, tomando extremas precauções. Mas se assegurem de que seus desejos de unir-se a nossa causa sejam sinceros, ou nos delatarão e estaremos perdidos.

Entre os soldados que se agrupavam no bosque havia alguém que em realidade não era um soldado, mas sim um moço abatido, derrubado contra uma árvore, que soluçava sem se importar se até mesmo Redd o ouvia. Aos generais teria sido mais fácil dominar a um galimatazo raivoso que a um menino desconsolado.

— Não deveriam me ter trazido — gemeu Dodge — Eu não deveria tê-los abandonado.

— Não podia fazer nada, filho — disse o general Doppel.

— O teriam matado — assinalou o general Gänger.

— Pelo menos teria morrido junto a meu pai! Poderia ter protegido Alyss!

— Se Somber não foi capaz...

—... então temo que ninguém teria podido lhe proporcionar um amparo suficiente.

Dodge secou o nariz.

— Sentimos muito, de verdade — disseram os generais Doppel e Gänger ao uníssono.

— Perdi a meu pai e... Alyss!

Os generais abaixaram a cabeça e fizeram uma pausa antes de falar.

— Todos nós perdemos a princesa Alyss...

—... e compartilhamos sua aflição por isso.

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Dodge duvidava. Era impossível que soubessem o que sentia; a dor, a solidão repentina e dilaceradora. Talvez tivessem perdido a sua Princesa, mas para ele Alyss era muito mais que isso. Acaso alguma vez voltaria a ver a alegre e fragrante Alyss de Copass? Alguma vez voltaria a lhe confiar seus sonhos de glória militar? Que sentido tinham os sonhos agora? E logo estava seu pai... mal podia assimilar: não voltaria a ver seu pai. Ali onde antes estavam seus dois seres mais queridos não havia agora mais que um vazio, um nada.

— Sentimos muito — repetiram os generais. Entretanto, tinham que confortar o que ficava de seu exército; separaram-se de seu lado e puseram-se a andar entre seus soldados, para oferecer palavras de consolo aos feridos e elogiar a valentia de todos.

Dodge não recordava ter fechado os olhos, não era consciente de ter estado dormindo até que despertou à manhã seguinte sobressaltado, com uma ideia lhe dando voltas no cérebro e a firme determinação de levá-la à prática. Quando os generais se aproximaram, ele estava arrancando a insígnia da flor de lis de sua jaqueta de guarda, que ato seguido ficou ao reverso. Continuando, esfregou-se com punhados de terra até que virtualmente não se notava que levava um uniforme da guarda.

— O que pretende? — perguntou o general Doppel.

— Se for muito tarde para ajudar a Alyss, pelo menos ainda há algo que posso fazer por meu pai.

Os generais intercambiaram um olhar de preocupação.

— Vou recuperar seu corpo — anunciou Dodge — O chefe da guarda palaciano merece um enterro digno de sua classe, e eu me encarregarei de que o tenha.

— Não pode voltar para lá — replicou o general Gänger.

— Por que não?

— Pois... — titubeou o general Doppel — não podemos saber se o corpo do juiz Anders continua ali, e...

—... e os soldados de Redd estão por toda parte — terminou o general Gänger — É impossível que consiga o que quer.

— Vou.

— Proibimos-lhe isso!

Dodge Anders sempre tinha respeitado as classes de comando, pois a vida militar requeria disciplina, mas de repente saltou.

— Quais são vocês para me proibir isso? Acaso lhes corre sangue dos Anders pelas veias?

— Eu o acompanharei, se assim estiverem mais tranquilos, generais.

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A torre branca. Dodge notou que o coração lhe pulsava com força na garganta. Respirava agitadamente e de forma entrecortada. O miliciano do Xadrez se aproximou e se colocou a seu lado. Dodge o agradeceu em seu foro interno. Não conhecia bem à torre, mas se alegrava igualmente. Viria-lhe bem um pouco de companhia.

Os generais sacudiram a cabeça, impressionados a seu pesar pelo caráter do moço, embora a missão que se impôs era uma loucura. Com silenciosa sincronia, cada um extraiu de seu uniforme uma medalha em forma de coração de cristal e pedras preciosas idênticas a do outro, e a estenderam para Dodge.

— Com todo nosso respeito por seu pai — disse o general Doppel.

— Por favor, lhe entregue isto — pediu o general Gänger.

Dodge agarrou as medalhas e as guardou com todo cuidado no bolso. Notou que lhe tremia o lábio inferior. Voltou-se e se internou a toda pressa no bosque.

— Cuida dele — rencomendaram os generais ao miliciano.

O soldado torre sabia que na cidade chamaria muito a atenção, assim, assim que deixou o acampamento, agarrou uma manta e cobriu com ela as suas ameias, o que lhe dava a aparência de um mendigo anônimo. Alerta e em silêncio, Dodge e ele se encaminharam para o palácio de Copas.

Ao chegar a Marvilópolis, encontraram-na virtualmente deserta. Grupos pequenos de soldados de Redd passavam o tempo diante dos cafés abandonados, bêbados de vinho, incomodando aos poucos marvilianos que se atreviam a sair à rua e se dirigiam a seu destino a passo rápido com a cabeça encurvada, decididos a ocupar-se unicamente de seus assuntos.

Dodge e a torre atalhavam por ruelas da cidade, evitando aos soldados. Chegaram ao palácio sem incidentes e se surpreendeu descobrir que estava desguarnecido, que ninguém o vigiava.

— Onde está o Coração de Cristal? — perguntou o miliciano torre.

Dodge se deteve a escrutinar o pátio. Que aparencia tão lúgubre apresentava, abandonado e desprovido da luz do poderoso cristal. De repente, uma figura saiu correndo do palácio. Dodge e a torre se dispunham a desembainhar a espada, mas não foi necessário. A figura — um homem — não pareceu reparar neles; sobrecarregado com taças e pratos, passou ao largo e partiu. Outro homem escapuliu do palácio e cruzou o pátio, levando consigo uma caixa de música e vários travesseiros.

Dodge olhou à torre. O que estava acontecendo?

Nos melancolicos corredores do palácio, descobriram vários saqueadores que andavam de um lado a outro sem fazer ruído, acumulando objetos de lembrança da derrocada família real. Um homem passou correndo por seu lado com um dos brinquedos velhos de Alyss nos braços; uma coleção de minhocas de luz. Dodge fez ameaça de dar uma rasteira no ladrão,

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mas a torre lhe pôs uma mão no braço e negou com a cabeça: Dodge devia concentrar-se no que tinha vindo fazer.

Tão sigilosos e ágeis como os ladrões, Dodge e a torre percorreram as salas de banquetes e os salões. Viram muitos soldados de Redd inconscientes no chão e sobre as mesas, mas nem rastro de Redd ou do Gato. Aproximavam-se da sala de jantar Sul, passando por cima dos cadáveres de naipes soldado e membros da guarda.

— Esse cheiro... — Dodge tampou o nariz com uma mão.

— Será pior dentro — lhe advertiu a torre.

A sala de jantar estava vazia, pois se respirava um ar muito pestilento para os saqueadores. O miliciano torre se deteve ao cruzar a soleira e sacudiu a cabeça cheia de ameias enquanto contemplava o resultado daquele açougue. Não obstante, em meio daquela cena dantesca, Dodge só via o corpo de seu pai. De pé ante o juiz Anders, chorou em silêncio.

— Terá que se apressar — lhe disse a torre com suavidade.

Dodge enxugou as lágrimas e assentiu com a cabeça, mais para si que para a torre, como querendo convencer-se de que tinha as forças suficientes para seguir adiante com aquilo.

Levaram a juiz Anders ao jardim e, utilizando respaldos de cadeiras quebradas como pás, começaram a cavar. Não era uma tarefa fácil. Suavam em bicas; doíam-lhes os músculos. Mas ao final conseguiram fazer o buraco grande o bastante. Uma vez que o juiz Anders jazeu no chão, Dodge tirou do bolso as medalhas que lhe tinham dado os generais e as depositou sobre o peito de seu pai. Com mãos vacilantes e tremulas, começou a jogar terra sobre a sepultura.

Não! Era impossível, pior que todas as experiências que tinha vivido, ver cair a terra sobre seu pai, o homem que lhe tinha dado a vida. Um alarido lhe brotou do peito. Deixou cair sua pá improvisada e correu a ocultar-se em um rincão do jardim. Como ia seguir vivendo? Por que teria que seguir vivendo, quando seus seres mais queridos já não viviam? Ficou calado, derrotado. Como e por que ia seguir vivendo? Estas eram perguntas que deviam ser respondidas. As únicas perguntas.

Quando por fim saiu de seu esconderijo, o juiz já estava enterrado. A torre se encarregou de tudo, ou quase.

— Você quer fazer isto? — perguntou-lhe o miliciano, estendendo uma semente para Dodge: a semente da Outra Vida.

Dodge a agarrou e a deixou cair sobre a tumba de seu pai. Imediatamente, a semente germinou em um formoso e exuberante buquê de flores, cujo acerto guardava semelhança com a figura do juiz Anders; um monumento vivente.

— Obrigado — murmurou Dodge.

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A torre aceitou o agradecimento em silêncio e se precaveu de que não havia lágrimas nas bochechas do moço. A expressão de Dodge, tensa e com os olhos entrecerrados, parecia mais de raiva que de tristeza.

Permaneceram uns instantes de pé ante a tumba como uma comemoração final.

— Era um homem bom — asseverou a torre —, valente e honorável.

Dodge fungou o nariz com amargura.

— Sim, e esta foi sua recompensa.

Capítulo 16

Para Alyss pareceu que Quigly Gaffer era o mais simpático da turma de meninos órfãos ou que fugiram de casa e não tinham onde viver. Não só se mostrava atencioso com ela, mas também com todo mundo. Era o menos anti-social, o menos depressivo, e tinha uma atitude jovial e atirada com a que animava os outros quando não havia comida suficiente, quando fazia frio ou chovia e já tinham perdido a conta de todos os umbrais cobertos dos quais tinham sido expulsos. Em outras palavras, Quigly Gaffer lhes infundia esperança quando mais estavam desesperados. E isso por que ele tinha passado por tantos lares quanto os demais.

— Bom, Princesa, falemos de você — lhe havia dito ele enquanto caminhava a seu lado, o dia que ela chegou a Londres. Então Alyss tinha exposto sua lamentável situação com uma crueldade que a surpreendeu.

— Vi como assassinavam ao meu pai, o Rei do País das Maravilhas. Minha mãe, a rainha, está morta. Minha tia matou a ambos. Mas, embora estivessem vivos, daria igual, porque nunca poderei voltar para casa.

— Eu também vi como matavam a meus pais, igual a você — comentou Quigly — Íamos em nosso carro de dois cavalos quando um par de ladrões decidiram que não gostavam de nossa cara e então partiram a cabeça de meu pai com uma paulada. Vi-os matar a minha mãe com o mesmo porrete, enquanto ela lhes suplicava que tivessem piedade. E também me

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teriam dado um bom fim com o porrete se não tivesse corrido a me esconder nas sombras enquanto os ladrões tentavam tirar os anéis de minha mãe. Assim suponho que você e eu temos algo em comum: meus pais estão tão mortos quanto os seus.

Para Alyss lhe ocorriam outras coisas que preferiria ter em comum com ele. Embora então não sabia, e Jacob Noncelo certamente não o teria ensinado assim, Alyss estava aprendendo através do Quigly Gaffer algo que lhe seria útil quando fosse rainha.

Lição número 1 do plano de estudos cuidadosamente preparado pelo Jacob: para a maioria dos habitantes do universo, a vida não é tudo tortinhas e barrinhas de alcaçuz, mas sim uma luta contra as dificuldades, a injustiça, a corrupção, o abuso e a adversidade em todas suas formas, em que a mera sobrevivência — por não falar de uma sobrevivência digna — constitui um heroísmo. Seguir adiante depois do fracasso é o ato valoroso que muitos levam a cabo. Para governar com benevolência, uma rainha deve participar dos sentimentos daqueles menos afortunados que ela.

— Mesmo que você não vestisse esse vestido, me teria bastado ouvi-la falar para me dar conta de que não é daqui — assegurou Quigly — Não reconheço seu acento. Não tenho ideia de onde é.

— É marviliano, suponho.

— Ah, sim, claro. Você era do País das Maravilhas, não? — Quigly riu — Por que não nos fala desse lugar, Princesa?

E ela assim o fez. Notou que, à medida que falava, o tom frio e impessoal que tinha empregado para narrar a morte de seus pais dava passo à tristeza e a saudade por tudo aquilo que, tão rápida e repentinamente, de forma tão inesperada, converteu-se em coisa do passado. Estava segura de que o Desfile de Inventores já não lhe pareceria tão aborrecido, se ao menos pudesse retornar ao balcão do palácio para contemplá-lo.

— Vê essa luminária? — perguntou, assinalando uma das luminárias de gás que flanqueavam a rua — A inventaram no País das Maravilhas, mas em lugar de uma chama descoberta tinha uma ampola de vidro dentro e só tinha que apertar um interruptor para acendê-la.

A seguir descreveu o palácio de Copas, as flores cantoras dos jardins reais e o Contínuo de Cristal.

— E não é por me gabar, — adicionou — mas tenho uma imaginação muito poderosa.

—Já notei isso.

—Acha que inventei isso tudo?

Quigly não respondeu. Alyss se fixou em um dente de leão solitário que se sobressaía do lodo. Cravou a vista na flor e imaginou que começava a cantar. Isto pareceu requerer um esforço maior do que lhe teria custado no País das Maravilhas, e também mais tempo. Mesmo assim, as pétalas do dente de leão se moveram, e do centro da flor saiu uma voz aguda e fragil.

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— À, à, à, laaaaaaaaaa.

Isso foi tudo o que Alyss conseguiu, mas bastou para impressionar Quigly. Ele tinha ouvido falar de magos que «projetavam» a voz de tal maneira que dava a impressão de que uma pessoa ou objeto situados no outro extremo da habitação estavam falando quando em realidade quem falava era o próprio ilusionista que estava a seu lado.

— Bom truque.

— Não é um truque. — Ato seguido, ao lembrar-se de algo, acrescentou aflita: — É meu aniversário.

—Feliz aniversário senhorita.

Alyss sentiu que lhe umedeciam os olhos e que a dor se apoderava dela.

— OH, não se chora nos aniversários — disse Quigly — Tem que conhecer alguns de meus amigos. Já verá como se anima.

Chegaram a um beco sem saída à sombra da ponte de Londres, onde se encontraram com um grupo variado de crianças de entre cinco e doze anos que vadiavam ajeitados em umas gavetas velhas.

— Escutem, escutem — vozeou Quigley — Trago uma pessoa recém incorporada a nossas filas.

Os meninos olharam para Alyss com pouco interesse. Não era a primeira vez que viam uma pessoa recém incorporada. De fato, a composição do grupo variava constantemente; era comum que um menino ou uma garota se unisse a eles um bom dia, comesse de seu pão durante umas semanas e logo desaparecesse sem deixar rastro, de modo que ninguém sabia se o tinham detido por roubar, se o tinham encerrado em um orfanato ou se o tinham matado.

Quigly apresentou Alyss.

— O grandalhão é Charlie Turnbull. O do lado, que tem um sinal no nariz, é Andrew MacLean, um órfão também. Esse dali é Otis Oglethorpe, que escapou de sua casa, embora sua mãe está morta. Pelo que se refere às senhoritas, temos Francine Forge, Esther Wilkes e Margaret Blemin, todas elas órfãs. Damas e cavalheiros, apresento-lhes à princesa Alice do País das Maravilhas. Chegou até aqui através de um atoleiro de água, e lhes recomendo que a tratem como corresponde ante a realeza.

— Uma poça d´água? — disse Charlie Turnbull com uma gargalhada — Princesa do País das Maravilhas?

Quigly não se incomodou em dar mais explicações. Pinçou no que parecia um montão de farrapos, tirou umas calças, uma blusa e um casaco de homem e os segurou no alto para submetê-los à consideração de Alyss.

— Suponho que isto lhe virá bem.

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Aonde ia ela a tirar a roupa molhada para vestir aquilo?

— Sinto muito, Princesa — disse Quigly — Não há aposentos privados para você aqui, nas ruas de Londres.

Alyss se despiu, tentando aparentar que se despojar da roupa diante de todo mundo não era algo fora do normal. A blusa vestia bastante bem, mas as calças e o casaco eram muito grandes para ela. Atirou seu vestido de aniversário sobre a pilha de farrapos e mantas se por acaso alguém queria utilizá-lo uma vez que estivesse seco. Calçou um par de botas que Quigly tinha encontrado por aí e se desfez de seus sapatos de aniversário do País das Maravilhas.

— Bom, bom, vamos ver o que temos — disse Quigly aos outros.

Extraíram de seus bolsos várias moedas e coisas de comer: algumas moedas, uma carteira virtualmente vazia, um pouco de queijo, salsichas, uma coxa de frango. Otis Oglethorpe contribuiu com um pão que escondia sob seu casaco e Charlie Turnbull tirou meia torta de carne de debaixo do chapéu.

— E você? — perguntou Otis ao Quigly — O que trouxe?

— Trouxe a Princesa, parece-te pouco?

— Não podemos comê-la — objetou Charlie Turnbull —, e será outra boca para alimentar com comida que poderia ir parar à barriga dos outros.

— Compensarei-lhes amanhã. A Princesa e eu traremos comida de sobra para todos, não se preocupe.

Charlie fulminou Alyss com o olhar. Conhecer os amigos do Quigly não a tinha animado absolutamente.

Os mantimentos se repartiram equitativamente entre os oito. O queijo e as salsichas não eram precisamente tão saborosos como os do País das Maravilhas; o queijo estava pastoso, as salsichas insípidas. Para Alyss pareceu que a torta de carne tinha gosto de uma meia usada e recheada.

Depois de comer, Andrew, Francine e Margaret — os órfãos mais jovens — se aconchegaram juntos sobre o montão de farrapos e dormiram. Charlie fabricou uma cama com três caixas e um edredom velho. Otis simplesmente se deitou no chão duro, envolvendo-se em seu casaco como em uma manta. Esther Wilkes ficou dormindo sentada, com as costas apoiadas em uma parede e as pernas estendidas ante si no beco.

Alyss não podia conciliar o sonho. Provou a contar guinucos. «Um guinuco, dois guinucos, três guinucos. » Não serviu de nada.

— Está inquieta, Princesa? — Quigly se ofereceu a lhe fazer companhia durante um momento. — De dia nos dispersamos — lhe explicou —, para pedir esmola, tomar emprestado ou roubar, conforme se atravesse. Francine, Andrew e Margaret trabalham em equipe. Dois deles distraem a um tipo enquanto o terceiro esvazia os seus bolsos. Há dias em que alguns de nós percorre as lojas, procurando mantimentos vencidos que os lojistas jogam no lixo. E cada

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noite nos reunimos aqui e compartilhamos a pilhagem. Não sei se colaborar nos faz a vida mais fácil, e Charlie nem sempre contribui com tudo o que conseguiu durante o dia (não sabe que eu sei, assim não o diga), mas à maioria alivia saber que pertence a um grupo. A pessoa pode chegar a sentir-se bastante solitária quando não tem uma família como Deus manda.

— Disso tenho certeza — conveio Alyss.

— Bom. — Quigly se enroscou no chão e apoiou a cabeça nos braços. — Tenho que dormir. Tenho feito uma promessa aos outros, e amanhã será um grande dia, garanto isso. Tenho planos para nós, para você e para mim. Boa noite, Princesa.

— Boa noite, Quigly Gaffer.

Em pouco tempo, Alyss estava sozinha, escutando a respiração pausada e rítmica dos vagabundinhos adormecidos. Francine murmurou algo em sonhos e afundou o rosto na parte interior do cotovelo de Andrew. Charlie começoua roncar. Alyss voltou o rosto para o céu, aquela extensão ilimitada que, desde que tinha memória, recordava-lhe as possibilidades maravilhosas que se abriam ante ela. «Quatro guinucos, cinco guinucos, seis... » Agora, encoberto e sem estrelas, o céu lhe parecia muito vazio. «Sete guinucos, oito guinucos, nove guinucos... »

Alyss, que tinha sido a última a dormir, foi também a última a despertar. Ainda estava esfregando os olhos para tirar as remelas quando Quigly lhe estendeu uma flor branca com as raízes enredadas em uma bola de barro que sustentava nas mãos.

— Acredita que poderia voltar a fazer esse truque?

Ela demorou uns segundos em entender o que lhe pedia: que fizesse a flor cantar.

— Não é um truque.

— Bom, mas acredita que poderia fazê-lo de novo?

— Não sei... acho que sim.

— Faça-o.

Levou-lhe mais tempo que no dia anterior, e inclusive mais esforço e concentração, mas ao final a flor rompeu a cantar com alegres gorjeios.

— Yujuuu! — celebrou Quigly, saltando pelo beco.

— Onde estão os outros? — perguntou Alyss.

— Foram cumprir seus deveres do dia, Princesa. E é hora de que nos ocupemos dos nossos.

Escolheu uma esquina muito transitada. Explicou a Alyss que só o que tinha que fazer era sentar-se em uma caixa colocada de barriga para baixo e encarregar-se de que a flor cantasse assim que lhe piscasse um olho.

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— O que é isto, damas e cavalheiros? — gritou, elevando a voz para chamar a atenção dos londrinos que passavam a toda pressa — Pois nada menos que a única flor cantora do mundo! A jovem aqui presente veio da África com a flor mais estranha que jamais tenham visto. Sim, parece uma flor comum, nisso lhes dou a razão! Mas não é comum nem corrente, asseguro. Canta! Querem ouvi-la cantar? Vamos, aproximem-se!

Quando já reuniu um grupo de curiosos o bastante numeroso, Quigly dirigiu uma piscada a Alyss, e ela fez cantar à flor. Foram só uns compassos, mas com isso bastou. Ao público lhe pareceu uma magnífica demonstração de magia. Quigly passeava entre os espectadores, convencendo-os a todos e cada um de que jogassem umas moedas em seu chapéu.

— Umas moedas, damas e cavalheiros, pois nem todo mundo teve a oportunidade de ver a assombrosa flor cantora da África. Vamos, que a viagem da África não sai barato.

Alyss conseguiu realizar quatro atuações mais, uma por hora, e cada uma mais exaustiva que a anterior. Ao final teve que parar, pois não podia mais. Entretanto, para então já tinham ganho mais dinheiro do que Quigly jamais havia visto junto. Encaminharam-se de volta ao beco para reunir-se com os outros, que esvaziaram os bolsos: um punhado de moedas, um relógio quebrado, queijo, salame, umas batatas fervidas.

— E vocês dois o que nos trouxeram? — perguntou Charlie.

— Quase nada — respondeu Quigly, tirando as moedas dos bolsos.

Os meninos não acreditavam. Onde Quigly e Alyss tinham conseguido tanto dinheiro? Quigly não revelou o segredo; queria ser o único que conhecesse o poder de Alyss.

— Mas amanhã lhes trarei outro tanto — prometeu — A Princesa e eu descobrimos um método para ganhar dinheiro, isso é tudo o que precisam saber. Charlie, Otis, venham comigo. Vamos comprar comida para nos dar um banquete que não esquecerão em muito tempo. Vamos ver, o que cada um quer?

Quando os outros foram dormir, Alyss disse a Quigly que não tinham que passar todo o dia em uma esquina para ganhar dinheiro.

— Posso imaginar tudo o que precisemos — asseverou.

— Gastarei com gosto o dinheiro que você consiga Princesa, sem importar de onde o tire.

De modo que Alyss tentou imaginar uma pilha das diferentes moedas que tinha visto esse dia. Tentou imaginar o peso dessas moedas nos bolsos de seu casaco. Por desgraça, seguia cansada pelo trabalho que lhe havia custado fazer cantar à flor, e antes que pudesse materializar uma só moeda, Quigly começou a rir dela.

— Que cara põe! — exclamou. Tratou de imitar sua expressão, com o rosto crispado pelo esforço e a obstinação.

Allys não achou graça.

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— Bom, esquece-o — disse — Não imaginarei um montão de dinheiro para você, nunca.

— Oh, vamos, Princesa, não seja assim. Não estava te gozando. Todos temos uma cara engraçada às vezes. Alguns temos um aspecto engraçado sempre. Agora imagine o que quiser.

Entretanto, Quigly deixava escapar o riso, de modo que Alyss já não voltou a tentar imaginar uma pilha de moedas essa noite nem nenhuma outra. «Faremos as coisas pelo caminho difícil, se isso for o que ele quer. »

Passavam as horas nas esquinas; ela fazia cantar à flor com a força da imaginação enquanto ele pedia ao público à vontade. Não obstante, cada dia o poder do Alyss sobre a flor parecia diminuir e suas atuações se tornavam menos frequentes. Quanto mais tempo passava naquela cidade úmida e cinza, menos fé tinha em sua imaginação. «Não é tão poderosa como acreditava mamãe. Nunca foi. »

Ao menos duas vezes ao dia, entre uma função e outra, tentava imaginar o paradeiro de Somber. Nunca conseguia ver nada. O olho da imaginação? Não tinha recebido uma formação suficiente para utilizá-lo. No final, só restavam forças e persistência suficientes para realizar uma atuação ao dia com a flor, por isso Quigly procurava que fosse em uma hora em que pudessem atrair ao maior número de espectadores possível: o entardecer, quando as ruas estavam mais abarrotadas que nunca de gente que retornava a casa depois de trabalhar.

Cada noite, depois dos jantares que se pagavam graças às atuações de Alyss, Andrew, Margaret e Francine lhe pediam que lhes falasse do País das Maravilhas.

— Anda, anda, anda — lhe rogavam.

Ao reproduzir em sua mente o mundo luminoso e cristalino que Alyss lhes descrevia, com seus palácios em forma de coração, suas morsas mordomos e suas larvas gigantes e fumantes, evadiam-se por uns momentos de sua vida de pobreza, privações e mendicância. Nem Otis, nem Quigly nem Esther ficavam tão fascinados pelas histórias de Alyss sobre o País das Maravilhas quanto os órfãos mais jovens, mas desfrutavam bastante com elas para escutá-las em um silêncio melancólico. Charlie Turnbull, por sua parte, deixava bem claro que não acreditava numa só palavra.

— Não são mais que uma série de estupidezes — grunhia.

Alyss falou com o Andrew, Francine e Margaret de Somber Logan e de quão desafortunado tinha sido perder seu guarda-costas, pois era um eximio lutador. Disse que, se o capitão da Chapelaria tivesse permanecido a seu lado, ela nunca teria conhecido Quigly ou aos outros. Para demonstrar do que era capaz um homem como Somber, descreveu os naipes soldados que se retorciam agônizando no chão do palácio de Copas, apertando as feridas com as mãos, entre cujos dedos emanava o sangue a fervuras.

— Realmente conhece um homem capaz de combater contra tantos inimigos de uma vez?

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— Sim.

— Isso é mentira — repôs Charlie.

— Mas Dodge Anders é o melhor membro da guarda que houve no País das Maravilhas — prosseguiu Alyss — É bonito, valente e amável e inteligente. Chegará a ser um lutador quase tão bom como Somber. Às vezes o ajudo a realizar seus exercícios de esgrima. Seguro na frente dele escudos de cores diferentes, e quando eu falo uma cor ele tem que lançar uma estocada ao escudo que tem essa cor enquanto eu o sacudo e o movo em todas as direções para ficar o mais difícil possível. É meu melhor amigo e... Não... quer dizer, era. — Passeou a vista pelo beco. — Era meu melhor amigo.

— Continua, Alice — a incentivou Andrew quando ela estava a um tempo calada.

— Não — murmurou Alyss. — Não quero falar mais de País das Maravilhas.

E, um dia, sua imaginação deixou de funcionar por completo. Foi uma tarde, à hora em que Quigly, com sua personalidade de homem de espetáculo, costumava reunir uma multidão de londrinos desejosos de ver a flor cantora da África. Quigly fez para Alyss o sinal da piscada e ela visualizou as pétalas abrindo-se e fechando-se como lábios, e a flor tomando ar para entoar alguns compassos de uma canção de ninar, talvez, ou de...

Mas nada aconteceu. Ela fez um esforço ainda maior e soltou um grunhido. Alguns dos pressente acreditaram que se encontrava errada.

«Canta flor!»

Transcorreu um minuto, e depois outro. Alyss começou a suar sob sua roupa suja e esfarrapada.

«Canta flor, canta!»

O público começou a dispersar-se, resmungando e amaldiçoando entre dentes.

— Só precisa que lhe dêem incentivo, isso é tudo! — gritou Quigly, estendendo o chapéu para pedir esmola — Duas moedas por pessoa e lhes garanto que essa flor africana cantará como os anjos!

Ninguém jogou dinheiro no chapéu. Um cavalheiro ameaçou indo procurar um policial. Assim que Quigly o ouviu, agarrou Alyss pela mão e arrancou a correr, deixando atrás a flor e a gaveta.

— Sinto muito — se desculpou Alyss uma vez que se achavam a salvo e pararam para recuperar o fôlego.

— O que aconteceu?

— Não sei — respondeu ela. Estava assustada. Era como se tivesse perdido a visão ou a audição. — Talvez quanto mais tempo passasse fora de País das Maravilhas, mais se debilita minha imaginação.

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— Hummm — disse Quigly, cético.

— Sinto muito, Quigly.

— Eu também sinto Princesa.

Era a primeira vez que Alyss o via zangado. Tinha-lhe falhado. Tinha falhado a Francine, Margaret, Andrew, Esther, Otis e Charlie. Nunca antes tinha falhado a alguém que contasse com ela, e não gostou nada da sensação que isso lhe produzia.

Sem trocar palavra, ela e Quigly retornaram andando ao beco para reunir-se com os outros órfãos. Pelo caminho, passaram pelos bares A Panela de Pescado e O Marinheiro Grisalho para pedir caridade. Só conseguiram uma bolsa de pedaços de pão velho.

— Estávamos pensando em jantar pato esta noite — lhes informou Andrew, que tinha saído correndo para recebê-los quando dobraram a esquina do beco —, recheado e à laranja. Francine, Margaret, Otis e eu jamais provamos pato.

Ao chegar ao fundo do beco, Quigly olhou para Alyss, adotou um tom despreocupado e declarou que pato não era bom.

— Não perdem grande coisa, asseguro isso. Não por acaso «pato» rima com «putrefato». Bom, suponho que é uma hora tão boa como qualquer outra para lhes anunciar... que teremos que voltar a viver como antes durante um tempo, quer dizer, que cada um de nós terá que conseguir o que puder durante o dia e depois trazer para compartilhar com outros.

— Mas o que está falando? — inquiriu Charlie.

Por toda resposta, Quigly se voltou do reverso seus bolsos vazios, pálidas línguas de pobreza.

— Bom o que temos?

— Eu não tenho nada! — respondeu Charlie — O que roubei comi isso como café da manhã, e não sobrou nada mais porque pensei que jantaríamos como até agora...

Os outros estavam na mesma situação.

— Bom, ao menos temos estes pães dormidos. — suspirou Alyss.

— Um manjar suculento onde os tenha — comentou Quigly, tentando não parecer muito desanimado — Dividiu os pães dormidos em oito porções e garantiu que estava satisfeito, inclusive antes de comer toda sua parte. Apesar de tudo, Alyss notava que sua atitude alegre e animada era forçada, até mesmo um pouco sarcástica.

Permaneceu acordada quando os outros já estavam dormindo.

«Tenho que pensar algo. Por que não posso fazer essa flor cantar? Porque afinal de contas minha imaginação não era nada especial, por isso. Assim devo pensar algo. Farei-o. Farei-o, farei-o, farei-o, farei-o. »

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—Já sei como podemos conseguir tanta comida quanto antes — disse ao Quigly à manhã seguinte —, mas vamos precisar da ajuda do Charlie, Otis e Esther.

— O que você disser Princesa. — Não se mostrava muito entusiasmado; não parecia ter muita vontade de falar com ela. «Já ficará contente, uma vez que tenhamos a barriga cheia. »

Alyss vestiu o casaco mais elegante que encontrou na pilha de roupa do beco depois de rebuscar durante um bom tempo, e tirou a imundície do rosto e das mãos com sua própria saliva. Agarrou o cabo de um lápis, escreveu uma lista de carne em um quadrado pequeno de papel e guiou a outros a um açougue pelo qual tinha passado várias vezes com o Quigly.

— Se escondam atrás deste carro e esperem a que lhes faça um sinal — lhes disse, e ato seguido entrou no estabelecimento.

— O que posso oferecer a pequena dama? — O açougueiro era um homem corpulento e fornido de rosto corado. Levava um avental manchado de sangue.

— Devo levar isto para minha mãe. — Estendeu-lhe a lista de carnes.

— Hummm. Parece muito para que você leve sozinha.

— Temos carruagem lá fora, mas o chofer foi cuidar de outras ordens. —Dedicou-lhe seu sorriso mais radiante e ele não pôde mais que acreditar no que lhe dizia. As circunstâncias em que se encontrava não bastavam para apagar seu cordial olhar de princesa.

— Vamos ver o que diz aqui... Quatro quilos de bifes...

Passou para a parte traseira do açougue, e Alyss indicou com gestos a Quigly e aos outros que entrassem a toda pressa. Agarraram os frangos que estavam pendurados ante a janela, os embutidos e os presuntos. Alyss lhes colocava mais peças de carne nos braços quando já estavam muito carregados para agarrá-las por si mesmos.

— Ei!

O açougueiro deixou cair o bife e abriu passo trabalhosamente datrás do mostrador. Os órfãos saíram disparados do açougue e se dispersaram em todas as direções.

—Já te peguei!

Um policial que passava por ali agarrou Alyss pela gola do casaco. Ela se despojou do objeto, deixando a mostra sua roupa de menina da rua, mas só conseguiu avançar uns passos antes que o policial a apanhasse de novo.

— Me solte! — gritou ela, imaginando que um lucirguero batia as asas muito perto do rosto do homem ou lhe dava um bicada na mão com que a segurava, mas nenhuma das duas coisas aconteceu.

Quigly tinha se detido ao final da rua e olhava para Alyss, com um frango debaixo de cada braço e os bolsos cheios de salsichas. Tinha decidido ir em seu resgate? Arriscaria sua

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própria segurança e poria em prática um ardiloso plano para liberá-la, de forma que ambos pudessem fugir?

Claro que não. Deu meia volta, virou na esquina a toda velocidade e desapareceu.

Alyss nunca soube se foi à única do grupo a quem pegaram esse dia (foi), mas já antes que a levassem com muito pouca delicadeza ao Orfanato de Charing Cross, onde viveria até que a adotassem os Liddell, e inclusive antes de que compreendesse que nunca voltaria a ver o Quigly Gaffer, tinha começado a pensar que talvez não valesse a pena afeiçoar-se com as pessoas. Não faziam mais que te trair. Traíam-te ao te abandonar.

Alyss tentou não escutar quando uma zeladora de Charing Cross abriu a porta de uma sala muito ampla com duas filas de camas de armar, alinhadas contra as paredes e dezenas de meninos que choravam, gritavam e brigavam, e lhe disse: «Bem-vinda a seu novo lar. »

Capítulo 17

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Seguidos por uma multidão enfurecida, os franceses levaram seu prisioneiro ao tribunal de primeira instância do Palácio da Justiça. As pessoas davam cotoveladas e empurrões para abrir passo até um lugar de onde ver melhor o que acontecia. O recinto, de dimensões modestas, estava tão lotado que ao cabo de pouco tempo se respirava um ambiente viciado e sufocante. Os homens colocaram o tapete enrolado verticalmente no centro da sala, ante o juiz.

Dos fiscais, advogados defensores e jornalistas de tribunais, escapou uma risadinha.

— Quel est ceci12?? — perguntou o juiz, a quem aquilo não o fazia nenhuma graça.

O fiscal, um cavalheiro com toga e bigode, levantou-se e soltou uma enxurrada de palavras ininteligíveis em francês, que, embora amortecidas pelo tapete que o envolvia, Somber inclinou-se para ouvir.

— Où est le prisonnier13? — perguntou o juiz.

O fiscal assinalou o tapete. De novo, os assíduos do tribunal riram. O juiz exalou um suspiro profundo e pediu ao cavalheiro que fizesse o favor de não ridicularizar ao tribunal. O fiscal se desculpou e explicou que não era essa sua intenção, mas que o detido era très dangereux14 e só tinham conseguido controlá-lo valendo-se do tapete.

Um homem deu um passo à frente e declarou que o detido possuía poderes violentos e sobrenaturais. A multidão de curiosos, nenhum dos quais tinha presenciado a escaramuça na Rua de Rivoli, confirmou o dito com vozes de «C'est vrai! C'est vrai!15».

Entretanto, o juiz, que tinha visto desfilar os seres mais variados de sua posição privilegiada no tribunal, simplesmente se perguntou se se daria ao luxo de acompanhar seu pedaço de brie16 e sua garrafa de bordô habituais com um pouco de cordeiro frito em seu café favorito, o Chien Dyspeptique.

—Je voudrais voir le prisonnier17 — disse.

O fiscal pigarreou várias vezes e replicou que, com o devido respeito, não lhe parecia que liberar o Somber do tapete fosse boa ideia. O juiz soprou e ordenou ao fiscal que tirasse o Somber do tapete, pois do contrário o encerraria por desacato. Estenderam o tapete no chão. A multidão de curiosos se lançou para diante, apertando-se, com a sensação de que estava a ponto de ocorrer algo espetacular.

Não se eneganaram. Assim que Somber se viu livre do tapete que o tinha imobilizado, ficou em pé de um salto e...

Zuinc.

As navalhas de seus pulsos cortaram o ar, imprecisas por causa da velocidade. Somber extraiu uma adaga de sua mochila e a lançou. A arma se cravou em um quadro que pendurava na parede, junto à cabeça do juiz, o que ocasionou que o sábio senhor se abaixasse sob seu banco para proteger-se.

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Antes que os policiais do tribunal reunissem coragem suficiente para tentar capturá-lo de novo, Somber deu uma cambalhota e se precipitou pela janela mais próxima. Caiu na calçada e se afastou a toda velocidade. Os curiosos se aglomeraram frente à janela, tentando vislumbrar pela última vez o homem misterioso. O juiz apareceu por cima do banco para ver se sua vida ainda corria perigo. Depois de sobreviver a um dia como esse, decidiu que ganhou com acréscimo um prato de cordeiro frito no Chien Dyspeptique.

Começaram a circular rumores sobre um homem armado com navalhas giratórias que emergia dos atoleiros. Com o passar dos meses, e depois de uma série de supostos avistamentos de Somber que nunca se demonstraram oficialmente, os rumores se fossilizaram e se converteram em lenda. Os civis asseguravam que era capaz de vencer a um regimento inteiro sem ajuda. Os militares se perguntavam em voz alta até onde teriam chegado às conquistas de Napoleão se aquele homem tivesse servido em suas fileiras. Os jovens imaginavam que eram ele e representavam o papel de super-herói. Nos salões elegantes, damas e cavalheiros ricos e educados deixavam de lado suas maneiras educadas e tentavam imitar suas acrobacias, suas piruetas e, algumas vezes, até mesmo seus saltos mortais. Criadas de toda a França se reuniam em cozinhas sombrias e contavam umas as outras histórias sobre o legendário personagem, de quem se apaixonaram. Imaginavam que uma mulher devia lhe ter quebrado o coração, pois, acaso havia algum outro motivo para que um homem se comportasse desse modo que o sofrimento por um amor não correspondido? Antes de ir à cama, estas criadas doentes de amor deixavam velas acesas na janela, de modo que, se Somber tivesse sido capaz de voar sobre Paris em plena noite, teria visto uma cidade adormecida salpicada daquelas trêmulas luzinhas, símbolos de um desejo, pontos de calor na fria escuridão que iluminavam o caminho para o coração das mulheres. Entretanto, Somber não teria se sentido digno de tanta admiração, pois estava lutando com uma sensação nova para ele: a impotência. Não tinha podido cumprir a promessa que tinha feito à rainha Genevieve. Tinha-lhe falhado.

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Capítulo 18

Alyss não se dava bem com o resto das crianças que viviam no orfanato, crianças que tinham sofrido sua cota de sofrimentos e de dor, como ela, mas que nem por isso deixavam de entregar-se a jogos como a taba18, amarelinha e esconde-esconde. «Que ridículos e imaturos. » Os pensamentos sobre Redd, sobre a sorte que tinha afastado Dodge, nublavam-lhe a mente. Não estava em condições de mostrar o menor entusiasmo pelos jogos.

Tinha despertado um interesse especial nas monitoras de Channg Cross, coisa que só a distanciou mais dos outros órfãos. Saltava à vista que quando crescesse seria uma mulher bonita. Era como se sua beleza pudesse lhe dar acesso a estratos sociais normalmente vedados aos órfãos, o que beneficiaria Charing Cross, que sem dúvida receberia donativos de famílias enriquecidas ansiosas por encontrar uma criatura de formosura sobrenatural para adotar. Cada vez que Alyss mencionava o País das Maravilhas, as zeladoras a faziam calar com uma brutalidade que não teriam demonstrado se não estivessem tão interessadas nela.

— Tudo isso existe só em sua cabeça, senhorita, e ninguém quer ter uma filha que diga tolices todo o tempo. Se não quer passar aqui o resto de seus dias, tire de sua cabeça todas essas fantasias absurdas.

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O doutor Williford, o médico residente em Charing Cross, escutava pacientemente as fantasias absurdas do Alyss.

— Estou certo de que você viveu experiências pelas nenhuma menina deveria passar — lhe disse — Mas não pode se refugiar em sua imaginação, Alice. Aceita o que aconteceu com você e seja consciente de que não está sozinha em sua desgraça. Tente se concentrar nas imagens e os sons que lhe rodeiam, porque essa é a realidade. Ainda há esperanças de que chegue a ter uma vida normal e produtiva.

Ela deixou de confiar seus segredos ao doutor Williford e começou a passar os dias olhando pela janela que dava a um pátio descuidado e recoberto de folhas secas. Foi ante essa janela onde uma das monitoras a encontrou uma tarde em que as coisas deram uma virada (uma vez mais).

— Alice, cumprimente o pastor Liddell e a sua senhora.

Alyss afastou a vista da janela gordurenta para olhar o casal: uma mulher de olhar severo e um homem de aspecto resoluto e audaz com luvas e um sobretudo. Todos os desconhecidos lhe pareciam iguais: estranhos, longínquos, incapazes de se conectar com ela.

— É bonita — observou a senhora Liddell —, mas acredito que um corte de cabelo e um bom banho não lhe viriam mau.

— Efetivamente — conveio o pastor Liddell.

Os Liddell viviam em Oxford, onde o pastor era decano do colégio universitário de Christ Church. Ao que parece, tudo o que acontecia trazia consigo um elemento de infortúnio. Assim que Alyss deixou Charing Cross, viu-se em circunstâncias não menos desagradáveis.

«Nem mais uma palavra!», repreendia-a a senhora Liddell quando Alyss descrevia o Desfile de Inventores a suas novas irmãs.

«Os animais não falam, porque são bestas sem inteligência», replicava quando Alyss assegurava o contrário.

— As flores não cantam porque não têm laringe — insistia quando Alyss falava das vozes maravilhosas de algumas flores — Se continuar dizendo tolices, vou lavar sua boca com sabão.

— Sou uma princesa e estou esperando que Somber venha a resgatar — asseverou Alyss — Vocês vão ver.

— Alice, se quer chegar a ser alguém na sociedade — lhe advertiu a senhora Liddell —, ou pelo menos mostrar seu agradecimento para nós por ter te acolhido em nosso lar, deve deixar de envergonhar esta família e viver com os pés firmemente plantados no chão, como todo mundo.

Para castigar Alyss, a senhora Liddell a trancava em seu quarto, às vezes durante dias, às vezes durante uma semana inteira; ordenava que lhe levassem as refeições ali. A primeira vez, Alyss se alegrou. Supôs que desse modo ao menos não teria que vê-los. Enganava-se.

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Embora não a deixavam sair, não proibiam as suas novas irmãs de visitá-la, e uma tarde, quando ela levava um dia presa, Edith e Lorina entraram em seu dormitório, sentaram-se em sua cama e cravaram a vista nela. Alyss tentou não lhes fazer caso e se esforçou por lembrar cada pedra preciosa do palácio de Copas, cada curva de cada corredor em forma de coração. Havia inumeráveis desenhos do palácio cravados com tachinhas às paredes. «Quatorze passos do pátio inferior até o salão de baile, dezessete banheiros no total e... »

— Por que não desenha outra coisa para variar? — perguntou-lhe Lorina.

— Porque não quero esquecer de onde venho.

— Então é melhor desenhar o orfanato! — gritou Edith, e pôs-se a correr, seguida por Lorina, rindo a gargalhadas.

Alyss ficou sentada, sustentando o lápis em cima de seu desenho. «Não deveria me importar o que pensem. Não me importa. » Entretanto, suas risadas de chacota lhe tinham provocado uma pontada de... o que? Humilhação? Vergonha? Às princesas gostam tão pouco que delas mofem como ao resto dos mortais. Alyss separou de si o desenho, que ficou inacabado para sempre.

— Muito bem, garotas — anunciou a senhorita Prickett, tutora das irmãs Liddell —, posto que é o primeiro dia que Alice assiste a nossa aula, lhe desejemos sorte e a animemos a aplicar-se a fundo.

Alyss estava sentada à mesa do refeitório junto a Edith, Lorina e Rhoda, com papel e lápis cuidadosamente dispostos ante ela. Havia um quadro nego colocado no alto do aparador, e nela se liam as palavras «Bem-vinda Alice Liddell».

— Meu nome não se escreve assim — soltou Alyss.

A senhorita Prickett olhou para o quadro nego, e depois para Alyss.

— Ah, não? Seria tão gentil de se aproximar e me mostrar como se escreve? Vou desculpar você por esta vez, Alice, mas de agora em diante não deve falar a menos que eu lhe indique isso. Tem que levantar a mão e esperar que te dê a palavra.

Alyss manteve a cabeça bem alta e o olhar à frente enquanto caminhava para o aparador. Quando chegou ante o quadro nego, apagou as letras «ice» de seu nome e escreveu «yss» em seu lugar. Edith, Lorina e Rhoda prorromperam em gargalhadas.

— Basta! — repreendeu-as a senhorita Prickett — Alyss, vai escrever cem vezes seu nome na piçarra. A-L-I-C-E. Já pode começar.

Assim Alyss teve que ficar ali, em frente delas, enquanto a senhorita Prickett dava começo à aula. Edith, Lonna e Rhoda a observavam dissimuladamente por detrás de seus livros e intercambiavam olhadas irônicas. Alyss desejou que o cabelo delas se enchesse de minhocas, que as pálpebras ficassem coladas, que sua língua risonha se desse um nó.

Nada aconteceu.

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«É inútil. Tanto dá a Imaginação Branca quanto a Negra, não posso utilizar nenhuma nem outra. » Tinha escrito A-L-I-C-E noventa e nove vezes. Como a senhorita Prickett não a olhava nesse momento, riscou as letras A-L-E-S-S na piçarra e se dirigiu para seu assento.

A senhorita Prickett se voltou para a piçarra.

— Um momento, por favor! Estou segura de que se acha muito esperta, senhorita Liddell, mas agora verá o que acontece às garotas que se bancam as espertas. Apaga o quadro e começa de novo. Escreverá A-L-I-C-E outras cem vezes. Já pode começar.

Alyss obedeceu, pois lhe tinham tirado por completo as vontades de ser o centro de atenção.

— Talvez assim tenha aprendido como se escreve seu nome corretamente — a lecionou a senhorita Prickett quando terminou.

Quando Alyss se sentou de novo, ouviu a Lorina sussurrar «Alice a Estranha», e o apelido ficou. Certamente tampouco ajudava a melhorar sua imagem o fato de que, cada vez que os filhos de amigos da família se aproximavam para conversar com Alyss, ela lhes ensurdecia os ouvidos com histórias sobre o País das Maravilhas.

«Deve pensar que é melhor que nós — resmungavam os meninos; — se faz chamar princesa e tudo. »

Alyss se metia em brigas e intercambiava insultos com seus perseguidores. Frequentemente chegava a casa com hematomas e arranhões, humilhada. Tentava fazer ouvidos surdos a tudo, mas a assaltava uma dúvida: «É possível que todo mundo esteja errado?» Começava a se cansar de teimar em suas convicções contra os Liddell, seus amigos, todo mundo. «Realmente é possível que todas e cada uma das pessoas que conheço estejam erradas e eu esteja certa? Seria muito mais fácil para mim se pudesse esquecer. » Sua vida anterior como princesa de outro mundo era um mero produto de sua imaginação? «E se o sonhei tudo quando estava doente acamada? »

E então aconteceu algo muito simples, mas milagroso. Alyss encontrou a alguém disposto a lhe dar ouvido, ou melhor, os dois ouvidos, ao que ela tinha que contar. Tratava-se do pastor Charles Lutwidge Dodgson, professor de matemática em Christ Church. Era um sujeito amável, mas retraído, que vivia no colégio universitário e em algumas ocasiões ia à casa dos Liddell para tomar o chá. Aficionado à fotografia, fazia retratos das meninas. Alyss posou para ele em um rincão do jardim com um vestido de cor clara com as mangas abauladas, meias três-quartos brancas e sapatos de verniz. Na imagem, aparecia olhando à direita da câmara, lhe dirigindo um sorriso tímido, mas orgulhosa ao fotógrafo, como se compartilhasse um segredo com ele. Mas não foi assim até que deram um passeio de barco a Godstow quando lhe falou do País das Maravilhas. Faziam uma escala para descansar, e estavam deitados na grama enquanto Edith e Lorina jogavam nas margens do rio Isis, que é o nome que recebe aquele lance do Tâmisa.

— Não quer brincar com suas irmãs? — perguntou o pastor Dodgson.

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Alyss já não se incomodava em explicar às pessoas que ela não tinha irmãs.

— Não — respondeu.

Para Dodgson esta resposta pareceu encantadora.

— Mas por que não?

— Quando se foi princesa e lhe arrebataram seu reino, não te entusiasma facilmente com uma confusão de peixes e mato em um rio.

O pastor Dodgson riu.

— Alice, de que diabos está falando?

«Falo para ele? Acreditará em mim? Parece diferente dos outros. Tento, pela última vez? » E então deixou sair tudo o que tinha estado guardando. As lembranças fluíam dela como se a obrigassem a expressá-las em voz alta, rapidamente, para convencê-la de sua veracidade ou cair para sempre no esquecimento. Quando disse o nome de Dodge, Charles Lutwidge Dodgson começou a tomar notas. Dodge. Dodgson. Ele era o jovem. O pastor se sentia adulado de fazer parte do mundo imaginário de Alyss.

— Jamais tinha conhecido alguém com uma imaginação tão assombrosa como a tua — lhe assegurou.

Alyss sabia que isso não era certo. Não tinha conseguido materializar nada desde fazia muito tempo.

— Pra ver se te entendi bem — disse Dodgson — A pessoa pode viajar por meio dos espelhos, entrar por um e sair por outro?

— Sim. Tentei isso aqui, mas nenhum tipo de vidro funciona.

Ela o observou enquanto rabiscava algo em sua caderneta.

— Realmente vai escrever um livro sobre País das Maravilhas, senhor Dodgson?

— Pode ser que sim. E será nosso livro, Alice, teu e meu.

O livro demonstraria que ela dizia a verdade. Não se daria por vencida. Ainda não.

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Capítulo 19

Em uma região situada entre o bosque Eterno e a Ferania Ulterior, notável unicamente por sua desolação, vários marvilianos que até pouco tempo tinham sido gente respeitosa da lei e amante da família brigavam sem descanso no mais temido dos campos de trabalho de Redd, Blaxik. Por ter incorrido na desaprovação da Rainha, trabalhavam em galpões industriais sem ventilação dezessete horas ao dia e sustentando-se a base de água e inflarroz, um alimento muito popular entre os pobres porque cada grão se inchava no estômago, de maneira que quem o ingeria se sentia satisfeito.

Decretou-se que todos os marvilianos tivessem em sua casa uma estátua de porcelana e cristal de um metro de altura com a efígie de Redd, a peça principal em um altar dedicado à soberana do reino. As inspeções realizadas sem prévio aviso por soldados de Redd não eram incomuns. Todo aquele que não cumprisse o decreto ou que não mantivesse sua

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estátua imaculada dava com seus ossos em Blaxik, onde — em um toque de ironia que agradava a Redd — os obrigavam a deixar sua pele fabricando essas estátuas.

Entretanto, aquela noite algo não ia bem. A produção de estátuas se viu interrompida por um ataque dos rebeldes. Explosões periódicas sacudiam os dormitórios do campo. Os brilhos iluminavam as figuras encetadas em combate corpo a corpo. Os naipes soldado do exército ultramoderno e tecnologicamente avançado de Redd, conhecido como o Corte, tentavam repelir o assalto, coisa que não teria devido ser tão difícil para eles posto que as tropas rebeldes não eram mais que um balaio de gatos de ex-soldados de Copas e civis País das Maravilhasnos. Não obstante, tinham a seu favor a ira justificada, uma arma mais eficaz que as habilidades de combate, e entre eles havia um que de repente se dividiu em dois para acrescentar um homem mais à batalha: os generais Doppel e Gänger, que lutavam juntos a um cavalheiro branco, uma torre branca e vários peões. Os rebeldes se faziam chamar alysianos, em honra da jovem princesa que tinha morrido prematuramente, sem ter subido ao trono. A princesa Alyss de Copas: que mesmo morta, seguia viva como símbolo de uma época mais inocente (embora imperfeita), como um ícone de esperança no retorno da paz.

Entre os alysianos destacava um soldado por sua crescente destreza militar e sua temeridade suicida. Embora este renegado nem sempre se relacionava com os outros rebeldes, se se encerrava em si mesmo quando não estava enfronhado na batalha, ao menos lutava em seu mesmo bando. Todos os que o tinham visto combater sabiam que mais valia o ter como aliado que como inimigo. Foi este renegado quem abandonou o amparo de seus companheiros na batalha de Blaxik. Sem preocupar-se com sua própria segurança e brandindo a espada reluzente, abriu passo por entre as hostes de Redd, que pareciam naipes normais (mas maiores) quando não estavam em batalha, mas que agora se abriam em leque como se a mão de um jogador profissional gigantesco estivesse estendendo-os sobre o pano verde de uma mesa de jogo. Cada naipe se desdobrava para formar um soldado com quase o dobro da altura que um homem marviliano médio, com extremidades de aço e um cérebro apenas o bastante desenvolvido para obedecer às ordens em combate. O renegado apontava com sua espada à parte superior do peito dos soldados, seu único ponto vulnerável (uma zona situada em cima do esterno, na base do pescoço com tendões de aço); um golpe direto atravessava componentes vitais, que despediam faíscas, e o soldado morria. O renegado disparou uma aranha obus contra as portas da fábrica; no ar, o projétil esférico se transformou em uma enorme arranha negra e atravessou as portas. Enquanto o renegado atirava estocadas e cutiladas aos soldados de Redd, os trabalhadores escravizados conseguiram fugir através da planície até o bosque Eterno.

O resplendor de um dormitório em chamas iluminou o rosto do renegado: charmoso e de feições duras, com quatro cicatrizes paralelas na bochecha direita. Dodge Anders. Com apenas quatorze anos, lutava como um homem feito.

Tinham transcorrido uns poucos anos desde o assalto inicial de Redd ao palácio de Copas, e o caos que se desatou atrás de sua tomada de poder no reino tinha dado passo a uma nova ordem. Ao inteirar-se do golpe de Redd, temerosos do regime que pudesse instaurar, muitos cidadãos tinham feito as malas imediatamente e tentado emigrar a Confinia, aquele país independente separado do País das Maravilhas pela agreste extensão da Ferania Ulterior

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e governado pelo rei Arch. Entretanto, talvez porque quem desejava emigrar não pagara um suborno o bastante generoso aos funcionários de alfândegas de Confinia, ou talvez porque Redd tinha previsto que se produziria um êxodo de covardes e tinha chegado a um acordo com o rei Arch, ninguém conseguiu abandonar o país. Todos ficaram apanhados em País das Maravilhas, submetidos à sanha de Redd. Famílias inteiras foram enviadas a campos de trabalho ou, em casos piores, exterminadas. Outros, que não tinham tentado fugir do país mas que se opunham ao reinado de Redd, inteiraram-se da existência dos alysianos e renunciaram à vida normal para unir-se à resistência.

Redd decidiu governar o reino de sua fortaleza do monte Solitário. O castelo constituía uma lembrança permanente dos anos que ela tinha passado no exílio e do injusto desterro ordenado por sua querida e difunta irmã, o que servia de justificativa para seus brutais métodos repressivos. Pouco depois da coroação, Redd mandou transladar o Coração de Cristal à fortaleza, e agora notava sua presença luminosa em sua câmara secreta, enquanto caminhava de um lado a outro da sala, escutando Jacob Noncelo recitar fragmentos do In Regnum Speramus. Ela estava reescrevendo o livro com a ajuda do preceptor, que fazia às vezes de secretário.

— «O reino sempre tinha sido uma terra de ingenuidade e otimismo» —leu Jacob — «Era como se estivesse regido por meninos e meninas... »

— Por meninos — corrigiu Redd.

— «... por meninos que ainda não tinham deixado de lado seus brinquedos infantis para confrontar a dura realidade do universo.»

— Bem — disse Redd — Seguimos: «Um universo em que só sobrevivem os mais cruéis, um universo em que o galimatazo grande come ao pequeno, vallendo a expressão. »

A aguda pena de Jacob deslizou-se sobre o papiro real. O Gato entrou na sala.

— Sim? — perguntou Redd.

— Blaxik caiu e os escravos escaparam — sussurou o Gato — foi obra dos alysianos.

Redd apertou os punhos. Um tremor sacudiu os objetos da sala. Os alysianos: um ponto negro na cara de seu reino, uma agulha cravada no punho de seu regime. Por que o Gato não tinha acabado com eles? As armas e os móveis que não estavam presos ao chão vibravam com sua crescente cólera. Jacob Noncelo e o Gato, que conheciam sua escassa tolerância para com o fracasso, saíram a toda pressa da sala.

—Yaaaaaaaaah! — bramou Redd, de pé no centro de um torvelinho de cadeiras, abajures, espadas, lanças, pratos e livros, um tornado surto do poço sem fundo de sua imaginação carregada de ódio.

Blaxik em mãos do inimigo? Os escravos, livres? Rodariam cabeças.

***

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Ao finalizar a batalha de Blaxik, ainda com adrenalina nas veias, Dodge e a torre branca se aventuraram a percorrer as concorridas ruas da zona urbana deprimida em que se converteu Marvilópolis para refrescar a memória sobre por que lutavam. A torre se camuflou com um casaco com capuz, mas Dodge se negou a fazer outro tanto. Não estava disposto a ocultar seu rosto à vista de seus inimigos.

— Lembro-me de quando os marvilianos tinham carinho a esta cidade — comentou a torre enquanto andavam com cuidado por uma calçada repleta de lixo — As ruas estavam limpas, o chão varrido. Os arbustos e as flores do meio-fio sempre cantarolavam melodias alegres. — Baixou o olhar ao meio-fio: não havia mais que moitas e ervas secas; toda a vegetação estava em silêncio, morta, orvalhada com a Naturicida, uma substância química que Redd tinha concebido expressamente com esse fim. — E podia comprar uma tortinha quentinha e recem feita em qualquer esquina. Sinto falta das tortinhas.

Dodge assentiu com a cabeça. Guardava suas próprias lembranças: os edifícios reluzentes como o quartzo da época de Genevieve, as titilantes cores das torres e das agulhas que se mantinham limpas e brunidas. O País das Maravilhas tinha sido um lugar brilhante, esplendoroso, incandescente, habitado em sua maior parte por cidadãos trabalhadores e respeitosos da lei. Agora, tudo estava recoberto de imundície e fuligem. A pobreza e a delinquência tinham gotejado das ruelas para apropriar-se das vias principais. Todo aquilo que fora brilhante e luminoso devia ocultar-se no mais recôndito da cidade.

— Cruzemos a rua — propôs o miliciano torre.

Dodge entendeu por que: diante deles, desatou-se uma briga. Dois marvilianos esquálidos atacavam a um terceiro. Certamente uma venda de estimulantes da imaginação se torceu. Quando Dodge e a torre caminhavam pela rua, não podiam avançar mais que uns passos sem topar com alguma disputa. Procuravam manter-se afastados para não chamar muita atenção.

Atravessaram a rua e chegaram a uma esquina lotada de churrasqueiras em que se assavam kebabs de minhocas e onde os traficantes de cristais ofereciam sua mercadoria de contrabando. Dodge tentou evocar em seus sentidos o aroma das tortinhas recém assadas. Não lhe tinha comprado seu pai uma nessa mesma esquina? Sua memória sensorial lhe falhou. Resultava-lhe impossível reviver o passado. Por cima dos gritos e outros ruídos da rua, ouviu uma voz imaterial que repetia ordens e louvores de Redd, procedente de uns alto-falantes instalados no alto. «O caminho de Redd é o caminho correto. No princípio estava Redd, por isso, quando chegar o final, estará Redd. » Rostos tridimensionais projetados em cercas holográficas informavam sobre as campanhas e os impostos mais recentes. De fundo, emitida desde Deus sabe onde, soava uma música enlatada, a trilha sonora da queda em colapso de Marvilópolis para a mais absoluta decadência. Parecia provir de cada greta da calçada, de cada buraco da rua, de cada fissura nos edifícios deteriorados pelo tempo; era uma melodia apoiada na repetição infinita, com letra escrita pela própria Redd, que a elogiava como salvadora do País das Maravilhas.

— Eu adoraria experimentar o silêncio de novo — disse Dodge — Passar um dia inteiro rodeado de silêncio.

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— Sim, mas já sabe como é isto. — A torre fez sua melhor imitação de Redd: — «de agora em diante, o silêncio fica proibido. O silêncio dá pé ao pensamento independente, que a sua vez dá pé à dissidência. »

Em realidade, ambos sabiam que não havia muitos dissidentes de verdade. Todos os detratores de Redd tinham sido rapidamente extirpados da população geral e ninguém havia voltado a saber deles.

A batalha de Blaxik ficava cada vez mais longe, e os ânimos do Dodge e a torre começavam a temperar-se. Podiam escolher entre muitos lugares para passar o tempo, sempre e quando tomassem cuidado.

— Que tal se formos a uma briga de galimatazos? — sugeriu a torre. No anfiteatro, as bestas descomunais e ferozes arremetiam umas contra outras com um ódio incontivel que só podia comparar-se com o que os membros do público tinham entre si.

Dodge negou com a cabeça.

— Sempre se arma alguma briga, e eu não gosto da sensação que fica quando nos escapulimos sem ter ferido sequer aos soldados de Redd.

— À estátua, então?

Dodge sacudiu a cabeça de novo. A estátua da rainha Redd se elevava no limite ocidental da cidade. Desde seu mirante, Dodge contemplava através dos olhos daquela enorme réplica de ágata a cidade que se estendia a seus pés. Às vezes, sua sede de vingança remetia um pouco ao imaginar que se encontrava dentro do crânio da Rainha. Mas aquele dia não tinha vontades.

— Demos um passeio já — disse.

Passaram por diante das vitrines cobertas por tábuas da esplanada de Redd, as casas de penhor e os locais dos agiotas da praça de Redd, e os colossais blocos residenciais Torres de Redd, cujo lema publicitário «Se você vivesse aqui, já estaria em casa» não ajudava precisamente a vender apartamentos Ubres. Fizeram uma escala no hotel e cassino de Redd, onde, além de apostar cristais, os País das Maravilhasnos podiam jogar a vida em um só lançamento de jogo de dados. Dodge apertou o passo quando passaram frente ao palácio de Copas — agora cansado no abandono e habitado por ocupantes ilegais atordoados pelos estimulantes — caminho do solar onde estavam construindo as Cinco torres de Redd. Sua Malignidade Imperial tinha prometido que as Cinco torres de Redd seriam a estrutura mais alta do universo; uma coluna vertical de aço revestida de vidro anguloso e frisado que se elevaria majestosa para o céu e estaria rematada por cinco agulhas pontiagudas como os dedos da própria rainha.

— Acha que chegará a terminá-la? — perguntou a torre.

Dodge ficou tenso.

— Acho que não devemos lhe dar a oportunidade.

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Por toda parte viam letreiros que exortavam os marvilianos a assistir às reuniões das inumeráveis sociedades da Imaginação Negra que proliferavam agora em todos os salões de banquetes, enquanto que as sociedades da Imaginação Branca se viam obrigadas a reunir-se na clandestinidade. Os defensores da Imaginação Branca que descobertos eram condenados a uma morte lenta e dolorosa; enviavam-nos às minas de Cristal, tal como se fazia com os praticantes da Imaginação Negra durante o reinado de Genevieve, mas se antes davam ênfase no trabalho duro e o arrependimento objetivando a sua futura vida em liberdade, agora os detentos eram obrigados a trabalhar até mais à frente do limite de suas forças.

— Que tipo de mundo é este — perguntou o miliciano torre, aborrecido —, em que vizinhos e amigos se delatam mutuamente? Um mundo em que os filhos, zangados com seus pais porque não deram de presente um jogo de iniciação à Imaginação Negra no seu aniversário, podem denunciá-los ao tenente da Corte mais próximo e declarar que ouviram seus pais dizer que Redd não é a soberana legítima do reino, para que os prendam e os submetam a torturas inenarráveis? Estou certo de que para Redd é a mesma coisa se disserem a verdade ou não.

— Provavelmente prefere que não — disse Dodge.

A torre assentiu e voltou a imitar a voz de Redd:

— «Porque a mentira é muito mais de acordo com a Imaginação Negra. Meu reino prospera graças ao engano e a violência. »

— E a incerteza.

A torre soprou de indignação.

— Leis diferentes para pessoas diferentes. Os membros da família de Espadas ou de Paus evitam que os mandem às minas fazendo donativos generosos à conta pessoal de cristal da Rainha; em troca, para o País das Maravilhasno comum, não há esperança: os levam a mina.

Dirigiram seus passos para o bosque Eterno. Já tinham visto o bastante.

— Eu te direi que tipo de mundo é este — prosseguiu a torre, respondendo a sua própria pergunta. — É um mundo que não pode durar.

— Não — repôs Dodge, mas já não estava pensando na ascensão e a queda das rainhas, nem na corrupção geral da população. Pensava em algo mais pessoal, em sua motivação para levantar-se cada manhã: a ideia de matar o Gato.

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Capítulo 20

Trinta e duas horas depois de escapar do Palacio da Justiça, Somber Logan estava fora de Paris, rastreando a campina com a intenção de encontrar Alyss. Ao cabo de algumas semanas de busca infrutífera, chegou à cidade de Cannes, na Riviera francesa. Corria o mês de agosto, e o verão estava em seu apogeu. Somber não tinha visitado ainda uma só loja de chapéus quando ia caminhando por uma rua próxima à praia e ouviu que um cavalheiro que passava por ali comentava a seu acompanhante «Ah, regardes cela! Pauvre petit chapeau haut-de-forme!19»

Somber tinha aprendido o suficiente francês para saber que «chapeau» significava «chapéu». Enquanto os dois homens prosseguiam seu caminho, ele se voltou para dar uma olhada ao chapéu em questão e viu uma cartola que flutuava no centro de um atoleiro. Em um milissegundo deu-se conta de que era seu chapéu. Como tinha chegado até ali? Somber examinou o atoleiro. A água devia estar evaporando-se pelo calor, mas ao fixar-se na borda descobriu que não era assim. Um atoleiro em evaporação estaria rodeado por uma margem de umidade que indicaria o tamanho que tinha antes de sofrer os efeitos do sol.

Somber tinha estudado uns quantos atoleiros desde que tinha chegado a este mundo, perguntando-se se algum deles o levaria de volta ao País das Maravilhas uma vez que reencontrasse a princesa Alyss. Não tinha percebido nenhum detalhe revelador neles, nada que assinalasse seu possível uso como portal de retorno.

Por outro lado, este... Com cuidado de não colocar o pé nele, agachou-se e recolheu o chapéu. Estava empapado, mas, a julgar por seu aspecto, em boas condições. Fez um movimento rápido com o pulso. As navalhas em forma de S apareceram imediatamente. De modo que a cartola ainda funcionava. Com outro giro de pulso, as navalhas se transformaram

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de novo em um objeto gotejante que Somber colocou na cabeça. Deu uns golpezinhos à taça do chapéu como um dandi que acrescenta o toque final a seu traje antes de sair para passar uma noite de farra e diversão. Para experimentar, Somber pegou uma pedra e a deixou cair no atoleiro.

Com um som de sucção, a água a arrastou velozmente para baixo até que não ficou rastro dela.

Certamente era um portal de retorno. Somber supôs que, embora o lago das Lágrimas fosse a única via para sair de País das Maravilhas, havia muitos portais para retornar, como aquele, o que parecia indicar que havia varios caminhos conectados ao lago das Lágrimas como tentáculos à cabeça de um polvo. De agora em diante se manteria alerta se por acaso topava com outros atoleiros ou massas de água em lugares onde não podiam existir de maneira natural.

Três dias depois, em Mônaco, encontrou outro, na borda da orla marinha branqueado pelo sol. Então o assaltou uma dúvida: e se Alyss tinha descoberto um portal de retorno e tinha viajado de volta a País das Maravilhas? Não era provável, pois ninguém que mergulhou no lago das Lágrimas tinha voltado jamais. Por outro lado, Alyss não era como os outros que tinham caído no lago das Lágrimas. Não era como outros em nada. Se havia voltado, não sobreviveria durante muito tempo. Não tinha recebido a formação necessária, não tinha exercitado seu músculo imaginativo o suficiente, e Redd não teria cuidados com ela. Para pôr a prova o portal que tinha diante, extraiu uma das adagas que levava na mochila e a deixou cair na água.

Desapareceu no ato, com o mesmo som de sucção.

Somber aplanou sua cartola e empilhou as navalhas da forma mais compacta possível. Guardou a arma na jaqueta, em um bolso seguro, revestido de um tecido groso; não tinha a menor intenção de perdê-la de novo.

E se sua teoria estava equivocada? E se esse atoleiro não fosse um portal que conduzia a País das Maravilhas, mas sim a um destino desconhecido? Entrar nele implicava um risco importante. Pelo bem de Alyss e do reino, devia assumi-lo.

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Capítulo 21

Quando alguém recupera a calma e leva um tempo para refletir, não é raro que as declarações lançadas em um arranque de fúria lhe pareçam desafortunadas, e como é possível que ferissem familiares, amigos, amantes, maridos ou esposas, a pessoa desejaria não as ter pronunciado. Entretanto, não era este o caso da garota de onze anos Alyss de Copas, que tinha aguardado com impaciência que o pastor Charles Dodgson terminasse o livro que descrevia sua vida no País das Maravilhas, sempre imaginando que aqueles que tinham duvidado dela teriam que engolir suas palavras. Quando Dodgson finalmente lhe entregou um exemplar do livro, num dia de picnic, enquanto comiam frango frio com salada junto ao rio Cherwell, e ela descobriu que tinha muito pouco a ver com ela e que o homem tinha desfigurado tudo o que lhe tinha contado e o tinha convertido em uma fileira de disparates — como tinha podido lhe fazer isto? , que brincadeira tão desumana! —, a ira se apoderou dela até a ponta dos dedos. Se suas histórias sobre o País das Maravilhas não eram meras fantasias, mais teria valido que fossem, pois não lhe tinham causado mais que penas e desgostos. «Minha última oportunidade se perdeu! Arrebataram-me isso!»

O que disse era exatamente o que pensava, e nenhuma só vez, nos anos que seguiram, arrependeu-se de dizê-lo.

— Você é o homem mais cruel que conheci, senhor Dodgson, e se você acreditasse uma só palavra do que lhe contei, saberia que isso significa que é terrivelmente cruel. Não quero voltar a lhe ver! Nunca, nunca, nunca!

Deixou Dodgson na ribeira, perplexo, e correu até chegar em sua casa. Irrompeu no vestíbulo e fechou a porta de um golpe, o que sobressaltou a senhora Liddell.

— Volta cedo, não?

Mas Alyss, com o rosto crispado de aflição e raiva, não se deteve. «Que homem tão cruel e desumano! O que se supõe que devo fazer? Não posso viver como Alice a Estranha. » Subiu os degraus de dois em dois até seu quarto e fechou a porta com chave.

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— Alice — a chamou à senhora Liddell, que a tinha seguido. — Onde estão Edith e Lorina? Onde está o senhor Dodgson? O que aconteceu?

Alyss não respondia, nem saía de seu quarto. Não escutava os golpes que a senhora Liddell dava à porta, nem sua resistência furiosa mas inútil com o pomo da porta, nem sua imperiosa exigência:

— Alice, abre a porta agora mesmo.

O sangue lhe rugia nas veias, e de repente começou a arrancar a punhados os desenhos do palácio de Copas das paredes e a fazê-los migalhas. «Nunca mais. Não lembrarei nada. Apagarei tudo isso. Já não serei Alice a Estranha. Alice a Estranha deve morrer. » Sim, essa era uma solução: renunciar a seus delírios ridículos e fantásticos, e integrar-se sem reservas no mundo que a rodeava. Ser como todos os outros.

Ficou a escutar.

A senhora Liddell já não esmurrava a porta de seu quarto. Ouviu umas vozes procedentes de abaixo. Sem dúvida Dodgson havia voltado com suas irmãs. Aquele desalmado!

— Alice, venha, desça! — gritou-lhe a senhora Liddell. — O senhor Dodgson está aqui!

— Não quero vê-lo!

Ao pensar de novo no que ele tinha feito e lembrar o tato de seu estúpido livro nas mãos, encolerizou-se outra vez — «Me enganou! Tem o coração de gelo!» — e deu um chute nos montões de papel rasgado que havia no chão.

Mas o que...? Algo tinha se movido no espelho; não era seu reflexo nem o de nenhum objeto do quarto. Não! Era Genevieve, vestida tal como Alyss a tinha visto por última vez, mas sem coroa.

— Nunca esqueça quem é, Alyss — disse Genevieve.

— Cale-se! — gritou Alyss e lançou um travesseiro contra o espelho.

Sua mãe — ou quem quer que fosse a mulher do espelho — nunca tinha tido que viver experiências como as que Alyss tinha vivido durante os últimos quatro anos. De repente, o espelho estava vazio, só refletia o quarto. Mas, é obvio, nunca tinha havido ninguém dentro do espelho. Que absurdo! Sua imaginação lhe pregado uma peça.

Esgotada, Alyss se deixou cair no chão, soluçando. Pouco depois, ficou adormecida entre os pedaços de castelos de papel. Quando saiu de seu quarto à manhã seguinte — um quarto impecável, sem papéis rasgados no chão nem rastro dos atos de destruição cometidos nele algumas horas antes —, os Liddell estavam tomando o café da manhã na copa. Imediatamente perceberam uma mudança em Alyss, embora não teriam sabido assinalar exatamente do que se tratava. Edith e Lorina ficaram quietas, com a comida no meio da mastigação e a boca aberta, que deixava à vista uma massa de ovos mexidos. O decano Liddell deixou de besuntar manteiga em seu pão-doce, e a senhora Liddell continuou servindo chá na

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taça mesmo depois de que o líquido ultrapassou a borda e derramou no pires. Não se deu conta do que tinha feito até que a criada se aproximou para limpar.

— Vestiu o vestido — observou a senhora Liddell. Tinha-o comprado fazia meses e Alyss se negou a vesti-lo por medo de que lhe desse um aspecto comum.

— Sim, mãe.

Isso não era tudo, tinha trocado em algo mais.

— Está... bastante bonita — disse o decano Liddell.

— Obrigado, pai.

A mudança residia em detalhes mais sutis; o ângulo em que Alyss tinha a cabeça inclinada, o suave movimento de seus braços, seu andar cuidadoso. Os Liddell estavam tão fascinados com seu aspecto que não se precaveram de que era a primeira vez que os tinha chamado pelos nomes mais íntimos: pai e mãe.

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Capítulo 22

Somber introduziu um pé no atoleiro, mas a sola de seu sapato não chegou a tocar o fundo. Precipitou-se para baixo, para as profundezas, até que se deteve por uns instantes no fundo, para logo sair disparado para cima tão rapidamente como tinha caído. Quando emergiu, encontrava-se no lago das Lágrimas.

As nuvens formavam redemoinhos violentamente no alto, e a água estava agitada. Somber nadou até a borda de cristal, aguçando os sentidos se por acaso Redd ou suas hordas andassem perto. Saiu da água e caminhou sigilosamente até a árvore mais próxima, um exemplar velho e maltratado pelo tempo com o tronco coberto de cortes e os galhos cortados e nodosos.

— A princesa Alyss retornou ao País das Maravilhas? Viu-a sair do lago?

— A princesa Alyss morreu! — respondeu a árvore em voz muito alta, como para que o ouvisse uma força invisível, mas onisciente capaz de infligir um dano muito grande a menor provocação.

— Não tenho provas de sua morte.

— A princesa Alyss de Copas morreu! — repetiu a árvore, mais alto que antes, mas acrescentou em um sussurro — Os olhos-de-vidro de Redd estão por toda parte. Falar é perigoso. A Princesa não voltou.

Somber não sabia o que eram os olhos-de-vidro — Redd os tinha enviado a vigiar o reino fazia pouco tempo —, mas não pensava ficar por aí para descobrir. Seu sentido de dever lhe ditava que retornasse ao outro mundo para procurar à Princesa enquanto lhe restassem forças. Encontraria-a, a educaria para que se transformasse em Rainha guerreira, do mesmo modo que tinha educado a sua mãe, e depois ambos poderiam voltar para a casa para enfrentar a miríade de problemas que infestavam o reino. Os olhos-de-vidro não eram mais que um deles.

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Mergulhou de novo no lago das Lágrimas. A gravidade do portal, que o arrastou para baixo, começava a ser familiar, igual à pausa no fundo, a suspensão momentânea, seguida da ascensão vertiginosa. Emergiu em um atoleiro situado detrás de um estábulo, aos subúrbios do Budapest, Hungria. Três cabras impassíveis foram os três únicos seres que viram a figura sair expelida do atoleiro esquentado pelo sol e cair agilmente de pé.

Somber se perguntou se algum dia aprenderia a controlar o lago das Lágrimas tal como navegava pelo Contínuo de Cristal, de modo que pudesse escolher seu destino na Terra. Parecia-lhe difícil: a água era um meio denso; manobrar nela requeria destreza, equilíbrio, resistência e força tanto física quanto mental. Não obstante, deixou estas considerações para outro dia, para outro ano, pois Somber empreenderia a busca de Alyss por todo mundo muito a sério.

Estava convencido de que se seguisse à pista de pessoas rodeadas da aura da imaginação, uma delas o conduziria até a Princesa de País das Maravilhas, que com toda segurança resplandeceria neste mundo.

O capitão da Chapelaria passou por lojas de chapéus em cidades da Espanha, Portugal, Bélgica, Suíça, Austria, Baviera, Itália, Prusia, Grécia e Polônia, entre outros países. Em 1864, quando levava cinco anos de busca e tinha percorrido duas vezes o continente europeu, subiu a bordo do ferry de Calais com destino a Dover, Inglaterra. Se “As aventuras de Alicia no País das Maravilhas” já tivessem sido publicadas quando chegou à ilha, a qualquer um dos balconistas das lojas de chapéus e armarinhos que visitava teria soado familiar o nome de Alyss de Copas, Princesa de País das Maravilhas, quando ele o pronunciasse, embora sem dúvida o teriam tomado por louco; um homem que procurava um personagem de ficção. Como este não era o caso, simplesmente tentavam lhe vender chapéus que ele não precisava e elogiavam o que tinha posto. Um ano depois, quando o livro do pastor Charles Dodgson saísse à luz, Somber se acharia longe da Inglaterra.

Conforme errava pelo mundo em busca da Princesa do País das Maravilhas, com mapas lhe sobressaltando de todos os bolsos disponíveis, desgastados pelo uso e cheios de notas rabiscadas que indicavam onde tinha estado, a lenda de Somber crescia. Embora as línguas em que se transmitia eram tão diversas quanto os territórios que cobria — línguas que foram do africano até o hindu, passando pelo japonês e o Gales —, e os detalhes do relato diferiam com frequência, a premissa básica era a mesma: um homem solitário dotado de poderes físicos aterradores e equipado com uma curiosa coleção de armas cruzava continentes em uma busca misteriosa que o levava até todos os lugares do mundo onde se vendiam chapéus, já fora a tenda de um beduíno norteafricano que oferecia gorros tecidos à mão ou uma chapelaria exclusiva no coração de Praga.

Teve supostos avistamentos de Somber nos Estados Unidos, que se encontrava nos últimos meses de uma guerra civil; viram-no rondar pelas ruas de Nova Iorque, avançar pesadamente pelas colinas nevadas de Vermont, os caminhos cobertos de gelo de Delaware, Rhode Island, New Hampshire e Maine. Viajou para o sul até o México e América do Sul, beirou a península Antártica e avançou de novo para o norte até a Califórnia e o Oregón. Chegou ao Canadá e de lá se transladou aos países asiáticos e Extremo Oriente.

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Então, na terceira semana de abril de 1872, treze anos depois de ter perdido Alyss, Somber entrou em uma loja em um bazar muito concorrido do Egito, ao pé da grande pirâmide de Gizé.

— Procuro Alyss de Copas, Princesa do País das Maravilhas — disse ao mercador — Pertenço a Chapelaria do País das Maravilhas. Agradecerei-lhe toda informação que possa me dar sobre a princesa Alyss e, ao seu devido tempo, recompensarei-lhe por isso.

Tinha pronunciado estas mesmas palavras tantas vezes e sem êxito que um homem normal teria perdido toda a fé em seu poder para dar pé a uma resposta significativa. O certo é que não albergava a menor esperança de que o mercador tivesse informação útil, por isso se surpreendeu quando o homem o levou até uma prateleira elevada no que descansava um livro, entre uma reprodução da esfinge esculpida em arenisca e uma cesta de línguas de camelo seca. O homem lhe tirou o pó com a manga e o passou a Somber. Era uma edição inglesa de “Alicia no País das Maravilhas”.

Seu nome estava mal escrito, mas... «o País das Maravilhas»? Tinha que ser sua Alyss. Quem mais podia ser? A menina das ilustrações não lhe parecia absolutamente, mas não era impossível que se tratasse de uma mera coincidência. O seguinte passo de Somber agora estava muito claro: para encontrar Alyss, primeiro teria que localizar ao autor do livro, Lewis Carroll.

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Capítulo 23

Rápido como uma bala, Dodge atravessava a toda velocidade o brilho caleidoscópico do Contínuo de Cristal lançando gritos de júbilo.

Os marvilianos que se apressavam a afastar-se de seu caminho acabavam sugados pelas vias do cristal e expelidos através de espelhos em casas de desconhecidos ou em restaurantes imundos; espelhos pelos quais nunca tinham planejado sair, pois se dirigiam para outros destinos.

—Sim, sim, sim! —gritava Dodge — Vamos!

Quatro olhos-de-vidro o perseguiam. Seu aspecto era o de marvilianos comuns salvo pelos implantes de cristal incolor e refletivo que tinham nas pálpebras dos olhos. Os olhos-de-vidro, uma raça artificial com visão, força e velocidade sobre-humanas, estavam desenhados para o combate corpo a corpo e patrulhavam o Contínuo de Cristal com a ordem de aniquilar a todos os suspeitos de ser alysianos. Sua vigilância tinha conseguido limitar a mobilidade dos rebeldes e virtualmente tinha bloqueado um canal de comunicação importante utilizado pela resistência. Os comunicadores especulares portáteis nunca tinham sido práticos mais que para remeter mensagens breves e crípticas, pois estes podiam ser interceptados a qualquer momento. Para os alysianos, a forma mais eficaz de enviar e receber informação delicada era por meio de mensageiros interportais que se deslocassem pelo Contínuo de Cristal. Agora bem, ser um mensageiro interportal significava expor-se a uma morte prematura. As corridas interportais estavam a um passo de ser consideradas missões suicidas. Dodge Anders tinha levado a cabo mais corridas interportais que qualquer alysiano e sempre se oferecia voluntáriamente para transmitir as mensagens, as advertências e as notícias mais importantes. O motivo desta corrida era que registrou-se atividade entre as tropas de Redd, e o general Doppelgänger suspeitava que atacariam logo um posto de alysianos situado nos contrafortes da montanha Snark. Tinham que pô-los sobre aviso.

Tuuuuuuuuum.

Dodge voava através do Contínuo, com os olhos-de-vidro lhe pisando os calcanhares, cada vez mais perto. Os momentos como este, que punham a prova suas habilidades de navegação e sua força, eram os únicos em que experimentava algo remotamente parecido à felicidade. O grave perigo de morte que corria lhe era indiferente. Fazia algo útil e sentia que a consumação da vingança estava muito mais perto.

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Ante ele, o Contínuo se dividia em varia direções. Lançou o peso de seu corpo para a esquerda e executou uma curva fechado no segundo último. Voltou os olhos atrás: um dos olhos-de-vidro não tinha girado a tempo. Ficavam três, e devia enganá-los imediatamente, antes que outros se somassem à perseguição.

Girando para se esquivar dos disparos dos olhos-de-vidro, Dodge desembainhou sua espada e a segurou firmemente com ambas as mãos. Fazendo um grande esforço de vontade, parou em seco. Os olhos-de-vidro, que não o esperavam, precipitaram-se para ele, e o que ia diante ficou trespassado pela espada de Dodge. Antes que os dois olhos-de-vidro que restavam recuperassem o equilíbrio, Dodge relaxou e se deixou arrastar pela força de atração do espelho mais próximo. Saiu do Contínuo no vestíbulo de um bloco de apartamentos. Em menos tempo do que um maspíritu ao galope levava para dar um só passo, colou-se tudo o que pôde à parede, junto ao espelho. Os olhos-de-vidro saíram disparados dele e se afastaram correndo. Dodge estilhaçou o espelho com o punho da espada: enquanto os fragmentos de vidro caíam e se esparramavam, Dodge retornou ao Contínuo através de uma lasca refletiva não maior que o esporão de um galimatazo, uma técnica que os olhos-de-vidro não tinham conseguido dominar, pois, quando o tentavam, não conseguiam introduzir todo seu corpo no Contínuo, a não ser só as partes refletidas no fragmento. Percorrendo como um cometa a via cristalina do espelho, que desaparecia rapidamente, com o vazio ganhando terreno a suas costas, Dodge voltou o olhar para trás por última vez e viu um dos olhos-de-vidro com meia cara, um ombro e pouca coisa mais, e ao outro com a cabeça e o torso mas sem braços. Não restavam forças, e o vazio o tragou em seguida. Dodge também teria passado a formar parte de um nada se não tivesse seguido a artéria principal do Contínuo no momento justo.

Prosseguiu seu caminho, em direção a um espelho concreto que não estava muito longe da montanha Snark. Emergiu do Contínuo e cobriu o resto do trajeto a pé. A euforia que o tinha invadido durante a perseguição se desvaneceu antes que ele chegasse a seu destino. Quando avisou o comandante do posto dos alysianos de que Redd possivelmente planejava um ataque, já voltara a ser o Dodge extremamente contido de sempre.

Missão cumprida. E agora o que? Podia encaminhar-se de volta ao bosque Eterno, mas certamente não encontraria aí mais que ao general Doppelgänger e os outros, discutindo estratégias. Qualquer coisa era preferível a ficar sentado, de braços cruzados.

De modo que decidiu empreender outra corrida interportal. Emergiu perto do bosque Sussurrante e o atravessou até chegar ao lago das Lágrimas. De quando em quando ia ali e ficava de pé ao bordo do precipício, contemplando o lago, pensando na vida que lhe havia tocado a sorte. Igual a seu pai, outrora tinha acreditado nos princípios da Imaginação Branca: o amor, a justiça e a vontade de servir ao próximo. Mas agora se dava conta de quão ingênuo tinha sido: a adesão a princípios elevados não levava a nenhum lugar neste mundo. Esta observância não era uma recompensa em si mesmo, como pregava seu pai. Que tipo de recompensa permitia que outros subjugassem, assassinassem e fizessem desaparecer a nossos seres mais queridos?

Tinha sido uma temeridade ir ao lago. Não deveria correr esse risco desnecessário. Tinha que permanecer com vida. Sua sede de vingança assim o exigia. E satisfaria essa sede.

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Capítulo 24

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Alice esforçava-se por se integrar no mundo em que se encontrava e se negava a ver Dodgson cada vez que ele se apresentava na casa. Doído por seu rechaço, o pastor espaçou suas visitas até que estas cessaram por completo. O livro que tinha escrito para ela foi editado para o desfrute do público sob o título das aventuras de Alice no País das Maravilhas. Todo mundo sabia que as histórias que contava Alice tinham servido de inspiração — o que dava pé a um sem-fim de brincadeiras —, mas ela se adaptou tão bem aos costumes e crenças da época e havia interiorizado as inclinações das outras garotas de sua idade até tal ponto que tinha acabado por travar amizade com os que se mofavam dela sem piedade. E embora a senhora Liddell nunca averiguou o motivo da raiva de Alice naquela fatídica tarde junto ao rio Cherwell, estava mais que satisfeita com a conduta que levava sua filha depois disso. As tolices que tinha escrito Dodgson, longe de envaidecer à moça, pareciam havê-la ajudado a sentar a cabeça, coisa que nenhuma outra coisa tinha conseguido, como se lhe tivessem aberto os olhos a quão insana era seu palavrório sobre País das Maravilhas. Alice se distanciou do livro e de seu autor, e a senhora Liddell o interpretou como sinal de que estava amadurecendo. E não se equivocava.

Recém cumpridos os dezesseis anos, quando saía a dar um passeio no domingo pela rua principal com sua mãe e suas irmãs, começou a ocorrer o que as monitoras de Charing Cross haviam previsto: os jovens da alta sociedade paravam a admirá-la, moviam céu e terra para indagar quem era, convidavam-na a festas e uma vez ali se esforçavam por impressioná-la com sua esperteza e sua experiência de vida. Descobriam que a senhorita Liddell não tinha precisamente falta de inteligência. Para alguns até mesmo tinha muita. Era uma jovem reflexiva, instruída, que tinha opiniões próprias sobre uma ampla gama de temas que iam da política do Governo até a responsabilidade que entranhava o poderio militar britânico, a natureza do comércio e a indústria em uma monarquia, a assistência aos pobres e desfavorecidos, o sensacionalismo da imprensa de Fleet Street e os segredos do sistema jurídico postos em evidencia pelo célebre escritor Charles Dickens.

Muitos dandis acomodados — inclusive aqueles que não se sentiam a gosto com mulheres que parecessem mais espertas que eles — se lamentavam de que Alice fosse adotada, pois isso significava que não podiam casar-se com ela. É obvio, eles davam por sentado que a senhorita Liddell teria se considerado muito afortunada de contrair matrimônio com qualquer deles. Entretanto, ela não se deixava impressionar facilmente, e não se apaixonava por qualquer um. As vicissitudes de sua vida a tinham levado a reprimir seus sentimentos por outras pessoas; era perigoso afeiçoar-se por alguém, pois ao final, indevidamente, acabava sofrendo. Conversava com os jovens, aceitava seus convites a festas e cerimonias, mas mais para fazer feliz a sua mãe que por interesse nos homens.

O pastor Dodgson publicou uma segunda parte de Alice no País das Maravilhas intitulada “Através do espelho”. De novo, o público acolheu com entusiasmo seus disparates. A própria Alice não leu o livro, mas pouco antes de sua publicação, e contra sua vontade, esteve na mesma sala que o autor. Oxford não era uma cidade grande, e ela cruzou várias vezes com Dodgson na rua, ou em algum prado da universidade, mas tinha tomado cuidado de fugir de

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toda conversação com ele; saudava-o tal como exigia a boa educação, mas isso era tudo. Quando completou os dezoito anos, a senhora Liddell considerou oportuno fixar para a posteridade a imagem da jovem em que se transfromou sua filha. Queria que Alice posasse para um retrato fotográfico e pediu a Dodgson que fosse o fotógrafo.

—Mãe, por favor. Sabe que não quero vê-lo —protestou Alice.

—Uma dama pode ter aversão a um homem — a instruiu a senhora Liddell —, mas não deve manifestá-la de forma tão explícita.

Assim, Alice aceitou posar para o retrato. O dia escolhido para isso, ouviu Dodgson entrar na casa e preparar sua equipe no salão.

«Homem detestável, como é possível que não seja consciente do que me fez? Deveria perdoá-lo? Não posso, não posso. Devo me mostrar cortês. Mas despachar o assunto em um minuto. Visíveis e não visíveis. »

Alice não era capaz de dissimular por completo seus sentimentos, e quando a senhora Liddell a chamou para que descesse, foi com a pressa de quem está agoniado pelos compromissos.

— Boa tarde, senhor Dodgson — disse e se deixou cair em uma cadeira.

Ficou lá, encurvada, com as mãos no regaço e a cabeça inclinada sobre seu ombro direito, olhando ao Dodgson com o sobrecenho franzido até que ele — o mais rapidamente possível, pois o comportamento de Alice o incomodava — lhe tirou a fotografia. Ato seguido, ela se levantou da cadeira.

— Obrigado, senhor — disse, sem pousar os olhos nele a não ser em algum ponto situado por cima de sua cabeça, e saiu da sala.

Quando Alice contava já vinte anos, a senhora Liddell começava a estar ansiosa por que escolhesse um marido entre seus numerosos pretendentes.

—Mas é que não sinto nada por nenhum deles — se queixou Alice, sacudindo a cabeça para desterrar a lembrança de um moço que tinha deixado atrás fazia anos. «Não pense nele! Não pense, não pense!»

Um sábado, a família Liddell assistiu a um concerto ao ar livre de um quarteto no prado de Christ Church. Dispunham-se a sentar-se quando um jovem cavalheiro se aproximou, com a intenção de falar com o decano Liddell. Era o príncipe Leopoldo, filho mais novo da rainha Vitória, e o tinham enviado a Christ Church para que o decano Liddell se encarregasse de sua educação. Era a primeira vez que via a família.

A senhora Liddell ficou nervosa e emocionada quando a apresentaram.

— E estas senhoritas — disse o decano, referindo-se a suas filhas —, são Edith, Lorina e Alice. Garotas, saúdem o príncipe Leopoldo.

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Alice lhe estendeu a mão para que a beijasse. O Príncipe não parecia muito disposto a soltá-la.

—Temo que não pode ficar com ela, Alteza — disse ela. Ao perceber que ele não a tinha entendido, acrescentou: — A mão. Preciso dela ainda.

—Ah. Bom, se devo devolver-lhe a devolvo, mas se alguma vez precisar que alguém a guarde em um lugar seguro...

—Pensarei em você, Alteza.

O príncipe Leopoldo insistiu em que os Liddell se sentassem com ele. Colocou-se entre Alice e a senhora Liddell, e quando o concerto deu inicio com uma composição do Mozart, inclinou-se para sussurrar no ouvido de Alice:

—Não me fascinam as composições. Saltam levianamente de uma obra a outra sem se aprofundar em nenhuma delas.

—Também existem muitas pessoas assim — lhe respondeu Alice, também em sussurros.

A senhora Liddell, alheia a este diálogo, dirigiu a sua filha um olhar que Alice não tinha ideia de como interpretar. O Príncipe passou todo o concerto lhe falando, tocando em todo tipo de temas, da arte até a política. A senhorita Liddell lhe parecia diferente de outras jovens, que só falavam de peças de veludo, estampados do papel de parede e a última moda, mulheres que esperavam que ele desmaiasse só vendo sua piscada de olhos. A senhorita Liddell não tentava deslumbrá-lo; de fato, dava a impressão de que não lhe importava muito o que o Príncipe pensasse dela, e isso despertava nele uma franca admiração. Quanto a sua beleza... Sim, possuía uma beleza inegável. Em conjunto, parecia-lhe uma criatura deliciosamente enigmática.

Assim que finalizou o concerto e Leopoldo partiu, a senhora Liddell enunciou o que tinha estado tratando de comunicar a Alice com o olhar.

— É um príncipe! Um príncipe! E ficou cativado por você, disso tenho certeza!

— Só conversamos mãe. Falei com ele como o teria feito com qualquer outro.

Entretanto, custava não fazer caso do entusiasmo e o arroubo de sua mãe, e Alice começou a topar com Leopoldo por toda a cidade. Se visitava a galeria de pinturas de Christ Church, encontrava-o contemplando ensimesmado um óleo de um dos antigos professores. Se ia à biblioteca Bodleiana, encontrava-o folheando um volume de História da decadência e queda do Império romano, de Gibbon (que ela tinha lido inteira). «É bastante bonito, suponho. E obviamente é de boa família. » Certo, mas também o eram muitos dos homens que rivalizavam por sua atenção. Pelo menos ele não acariciava o bigode com impaciência quando lhe falava da necessidade de assistir aos pobres de Grã-Bretanha.

— Os países deveriam julgar-se pelo cuidado que proporcionam a seus filhos mais desfavorecidos — explicava — Se Grã-Bretanha aspira verdadeiramente a ser o reino maior do

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mundo, não basta fazer ostentação do poderio militar ou da superioridade de nossa indústria. Devemos servir de exemplo e ser mais caridosos e protetores com os nossos.

O príncipe Leopoldo sempre a escutava atentamente, sopesando seus argumentos e considerações com seriedade. Nunca se mostrava de acordo nem em desacordo com ela.

«Possivelmente mamãe tenha razão. Casar-me com um príncipe certamente não é o pior que me poderia acontecer. » Entretanto, por mais que Alice se esforçasse por apaixonar-se por esse homem, seu coração não se deixava convencer.

Três meses depois do concerto no prado do Christ Church, ela e Leopoldo foram na carruagem do príncipe Leopoldo, que se dirigia a Boar's Hill.

— Seu pai me disse que visitará o orfanato de Banbury amanhã pela tarde —comentou Leopoldo — Eu gostaria de te acompanhar, se me permitir isso. Nunca se sabe com que problemas se pode topar ali uma jovem.

—O que achar mais conveniente, Alteza.

Ele se ofereceu a levá-la em sua carruagem, mas Alice respondeu que preferia ir a pé.

—A pessoa descobre muito mais coisas da cidade quando vai caminhando; uma pequena loja de curiosidades, ou um rincão ajardinado onde nunca tinha suspeitado que pudesse haver um jardim, em meio da aglomeração urbana. Quando a gente vai em uma carruagem, passa junto a esses tesouros a toda pressa, sem fixar-se neles.

As peculiaridades mais insignificantes da humanidade, longe de lhe parecer insignificantes, eram para ela pequenos milagres dignos de celebrar-se, e o Príncipe começava a amá-la por isso.

Em Banbury, os órfãos formaram redemoinhos em torno de Alice, abraçando-se a sua saia e gritando todos de uma vez. Alice ria e mantinha quatro conversas simultâneas, e, aos olhos do Leopoldo, em contraste com as paredes manchadas de fuligem, a roupa muito folgada dos órfãos e o rosto pálido e esvaído das monitoras, estava mais radiante que nunca. Enquanto percorriam o orfanato, seguidos por uma procissão de crianças, um menino se negava a soltar o polegar esquerdo de Alice.

Ela pediu um relatório detalhado das dificuldades que atravessava o orfanato de Banbury. As monitoras lhe mostraram os pisos de madeira podres por causa do transbordamento de águas negras, o teto curvado da enfermaria, os colchões puídos e finos como bolachas. Mostraram-lhe a despensa, que estava vazia salvo por dois sacos de feijões e arroz cru.

— As crianças não comem mais que arroz e feijões há duas semanas —lhe informou uma das mulheres — Se supõe que deveríamos receber um fornecimento de costelas de vitela, mas até o momento... nada. Este tipo de coisas ocorre com certa frequência, desgraçadamente.

O príncipe Leopoldo levava um momento em silêncio. Esclareceu a garganta.

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— E quanto à pessoa encarregada de que Banbury receba os mantimentos e roupas que as crianças precisem?

— O diretor decide com muito cuidado quem deve receber o que e em que quantidade, Alteza — explicou a instrutora — Diz que acolhemos a muitos meninos e que talvez nem todos o mereçam. Por exemplo, esse daí... — apontou com o dedo ao menino que se aferrava ao polegar de Alice — tem muito talento para roubar, embora a metade das vezes o que rouba é comida pela fome que tem. Todos passam fome. —Assinalou com um gesto aos órfãos que os rodeavam.

Alice olhou ao menino agarrado a seu dedo e se lembrou de Quigly Gaffer. «O que terá sido dele? E dos outros? Andrew, Margaret e Francine, que mal tinham idade para vestir-se sem ajuda, por não falar de viver na rua sem o carinho nem o apoio da família. »

A expressão melancólica e distante da Alice causou uma funda impressão no Príncipe.

— Falarei com a Rainha — anunciou ao cabo de uns instantes — Acredito que instituiremos uma comissão para que investigue este assunto e, enquanto isso, faremos as gestões necessárias para aumentar as rações de comida. O que lhe parece?

— Parece-me de uma generosidade muito pouco comum neste mundo — assegurou a mulher.

— E se puder evitar, aqui ninguém estará tampouco em condições de averiguar se for corrente no outro mundo.

Os órfãos ficaram calados, pestanejando, sem acreditar no que acabavam de ouvir. A Rainha Vitória e o príncipe Leopoldo iam interceder por eles? As instrutoras reiteraram seu agradecimento ao Príncipe várias vezes, enquanto Alice observava com um sorriso, que era a única recompensa que ele desejava.

No caminho de volta, detiveram-se para descansar no jardim botânico da universidade. Ali, Alice se viu de repente sentada em um banco com o Leopoldo ajoelhado ante ela.

— Decida o que decidir, Alice — lhe dizia —, quero que saiba que nos próximos anos te apoiarei encantado em suas obras de beneficência. Mas desejo com todo meu coração que me permita fazê-lo em qualidade de seu marido.

Alice não entendia.

—Estou pedindo que se case comigo — esclareceu Leopoldo.

—Mas... Alteza, tem certeza?

—Essa não era precisamente a resposta que eu esperava, Alice. O mínimo que posso dizer de você é que é uma plebeia muito pouco comum, e me sentiria muito orgulhoso de ser seu marido. Sem dúvida sabe, é claro, que não poderá levar o título de Princesa, nem terá direitos sobre o patrimônio real, não é?

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—É obvio. — Casamento? De novo, notou a pontada de um afeto enterrado tempos atrás, do afeto que sentia por alguém que... «Não, não não! Pensa em outras coisas. Seja realista.» Esse casamento agradaria a sua mãe. Faria-o por ela, pelo bem de sua família.

—Aceito, Leopoldo!

Deixou-se beijar enquanto notava que o frescor do ocaso a envolvia.

—Já falei com a Rainha e pedi a bênção de seu pai, que me deu — disse isso o Príncipe — Ofereceremos uma festa para anunciar nosso compromisso.

Se tivesse tido tempo para refletir, talvez Alice tivesse se reprimido, por considerar que a ideia que lhe tinha ocorrido era muito caprichosa. Entretanto, as palavras possuíam uma força própria, e só quando as tinha pronunciado em voz alta, precaveu-se de quão apropriada era a ideia.

—Vamos organizar um baile de mascaras.

Sim, era muito adequado: uma mascarada para celebrar as iminentes bodas da jovem órfã com o príncipe Leopoldo de Grã-Bretanha.

Capítulo 25

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O comprido e tortuoso rastro de editores e tradutores levou Somber até o colégio universitário de Christ Church, em Oxford, Inglaterra. Chegou ante a porta de um apartamento de solteiro no pátio conhecido como Tom Quad. Eram 12h30min. Pela primeira vez em treze anos, estava muito perto de encontrar Alyss de Copas. Ao outro lado da porta: Charles Dodgson, de pseudônimo Lewis Carroll. Somber chamou.

—Quem é? —perguntou uma voz.

—Meu nome é Somber Logan. Sou membro da Chapelaria do País das Maravilhas, e vim em busca da princesa Alyss de Copas.

Houve uma longa pausa, e ao final a voz do outro lado da porta disse:

—Não... não sei quem lhe envia, ma... mas isto não tem gra... graça. É do... domingo, senhor, um dia pouco ade... adequado para gastar com brincadeiras.

Somber permaneceu frente à porta durante o tempo suficiente para compreender que Dodgson não ia abri-la.

Com um estalo metálico, as navalhas de seu bracelete esquerdo fenderam o ar e Somber as fincou na porta. Esta se partiu em duas despedindo lascas em todas as direções, e Somber passou através da abertura a uma sala pequena e esquentada pelo fogo que ardia na chaminé. Dodgson, que estava sentado a sua escrivaninha trabalhando, ficou em pé de um salto, surpreso e assustado pela entrada de Somber. Derramou seu chá sobre o tapete e caneta tinteiro caiu e manchou de tinta as páginas de um diário aberto sobre a escrivaninha.

—Com que di… direito...? — começou a protestar Dodgson, retrocedendo até um rincão da sala.

Somber pegou seus navalhas. O homem que tinha diante de si possuía a aura mais brilhante que tinha visto.

—Onde está a princesa Alyss?

—Que... quem?

—A princesa Alyss do País das Maravilhas. Sei que você esteve em contato com ela. Estou em posse de seu livro.

Quando Somber levou a mão a um bolso da jaqueta da Chapelaria, Dodgson soltou um gemido.

—N... não, P... por favor!

Mas Somber só pretendia tirar seu exemplar de Alicia no País das Maravilhas. Guardou o livro de novo, dirigiu-se a grandes pernadas a escrivaninha e ficou a folhear o diario de Dodgson.

—Sabe quem sou?

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—A... acredito que sei que... quem se S... supõe que é. M... mas o a... asseguro que n... não tem nem um pingo de gra... graça. Há-lhe en... enviado Alyss p... para zombar de mim?

—Procurei à Princesa durante anos, durante mais da metade de sua vida, e obtive muito poucos resultados. Mas agora encontrei a você...

—N... não falará em se... sério?

—Oh, falo muito a sério. E darei com ela embora não me diga onde está. Entretanto, será melhor para sua saúde que me ajude.

—Mas se mal a tenho vi... visto nos últimos n... nove anos. Se ne... nega a ré... relacionar-se co... comigo.

Somber percebeu na voz do pastor uma profunda tristeza e a pesadume provocada por lembranças dolorosas. O homem dizia a verdade.

—Onde posso encontrá-la?

—Vi... vive em... no decanato daqui, de Christ Ch... Ch... Church.

Somber se dispunha a perguntar onde estava o decanato quando se fixou em um jornal aberto sobre a mesa de centro. Chamou-lhe a atenção uma manchete:

Alice no País das Maravilhas se casa

Alice Liddell, musa de Lewis Carroll, contrairá matrimônio com o príncipe Leopoldo.

«Alice Liddell? »

—Trocou de nome? —perguntou Somber em voz alta, embora mais para si que para o Dodgson, quem guardou silêncio— Onde está o decanato? — perguntou o capitão da Chapelaria, esta vez em um tom premente.

—Em... no pátio do lado. A... a casa da port... porta azul, mas...

—Mas o que?

—Agora me... mesmo está no p... palácio do Kensington, P... P... preparando-se para...

Somber agarrou o jornal bruscamente e saiu disparado do apartamento, lendo por cima o artigo enquanto corria a toda velocidade para Londres. Por que a Princesa tinha trocado de nome? Como podia fazer-se passar por uma jovem comum daquele mundo e prometer matrimônio? Não tinha sabido o que esperar quando encontrasse à Princesa: tinha imaginado uma moça não de todo preparada para assumir seu destino, uma mulher a que precisaria convencer de seus próprios poderes, que ainda não reagia por instinto com o jogo de uma rainha guerreira, mas não estava preparado absolutamente para encontrar-se com aquilo.

O palácio de Kensington. Somber correu até a porta frontal de grade e não parecia ter a menor intenção de deter-se.

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—Alto! —ordenou um dos guardas.

Somber se elevou no ar, deu uma cambalhota por cima da grade e caiu de cocoras, sobressaltando a um guarda de rosto infantil que patrulhava o recinto. O jovem tropeçou, seu fuzil se disparou e...

Somber se voltou com a força da bala. Nunca tinha recebido um tiro. Incrédulo, levou a mão à ferida ensanguentada. O guarda ficou olhando-o, sem saber o que fazer.

Soaram uns toques de apito e, pouco depois, pisadas de botas que corriam procedentes de todas as direções. Ouviam-se também latidos furiosos de cães soltos. Para Somber não ficou outro remédio que fugir. À bala o tinha alcançado no ombro, tinha-lhe esmigalhado tendões e ligamentos e lhe tinha estilhaçado o osso. Não podia mover o braço direito. Pendurava-lhe lasso, golpeando-se contra seu flanco, deixando um rastro de sangue. Com sua mão sã, Somber aplicou uma pressão constante à ferida para frear a hemorragia. Não sem dificuldade, subiu pela parede do palácio e pegou a toda pressa uma rua na penumbra, mas, assim que teve percorrido dois terços de sua distância, descobriu que era um beco sem saída.

A matilha de cães se encontrava já muito perto dele quando três guardas apareceram na entrada do beco, aproximaram-se, empunhando fuzis e baionetas, escrutinando com os olhos entrecerrados as sombras em que se refugiou o capitão da Chapelaria, encurralado. Sem dúvida uma adaga ou um saca-rolhas teria saído zumbindo da escuridão em direção a seus órgãos vitais se Somber não tivesse tido escolha. Entretanto, quando os guardas chegaram ao final do beco, encontraram-no vazio, deserto. Só viram um atoleiro no chão que não se teria formado ali de maneira natural, rodeado pelos cães, que lhe grunhiram durante um momento até que, depois de farejarem cautelosamente, ficaram a beber de sua água suja.

Capítulo 26

Depois de treze anos, os alysianos tinham a moral muito baixa. Viviam mal em condições apenas aceitáveis para minhocas que se retorciam no barro, e tudo para que? Cada dia se produziam deserções e ficava em perigo a segurança da organização. Embora ninguém o expressasse em voz alta, todos compartilhavam a convicção de que nunca voltariam a obter uma vitória significativa como a de Blaxik. Expulsar Redd do País das Maravilhas parecia uma meta acessível em um primeiro momento, mas os alysianos se viram reduzidos a um punhado de células separadas que atacavam objetivos insignificantes em zonas remotas; um posto

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avançado que observava os movimentos de galimatazos nas planícies Vulcânicas ou de uma estação de pesagem de veículos de transporte terrestres ordinários carregados de cadáveres à borda do deserto Damero.

Redd tinha anunciado que recompensaria a todo aquele que traísse a causa dos alysianos. Desde um em um e de dois em dois, vários alysianos se entregavam a membros da Corte e revelavam a localização das posições rebeldes. Bombardeavam-se os acampamentos com aranhas obus e esferas geradoras resplandecentes, e logo os arrasavam por completo com plataformas roseiras de Redd, uns veículos de ônix semelhantes a tanques com bandas de rodagem em forma de rosas negras e espinhosas. Nunca se voltou a saber dos desertores, mas os alysianos que acariciavam a ideia de desertar preferiam acreditar que seus ex-camaradas estavam tão entregues aos prazeres com que Redd os tinha recompensado que não davam sinais de vida. O certo é que aos alysianos que se rendiam os atavam de pés e mãos, faziam-lhes cortes nas extremidades e no peito para estimular o apetite das rosas carnívoras e os jogavam em fossas em que as rosas os comiam vivos.

No mais antigo dos acampamentos alysianos, encravado no mais profundo do bosque Eterno, o general Doppelgänger tinha convocado uma reunião de conselheiros. O acampamento estava protegido por uma série de espelhos gigantescos colocados uns em cima de outros em uma disposição intrincada de maneira que refletiam o céu e o bosque, um panorama interminável de nuvens e folhagem, a fim de enganar ao olho da imaginação de Redd, que em realidade não via absolutamente tudo, assim como a qualquer membro da Corte com quem tivessem que lutar no bosque. Os espelhos não comunicavam com o Contínuo de Cristal, e os alysianos os tinham resgatado dos campos de trabalho que tinham assaltado durante seu primeiro ano de atividade. Vários guardas patrulhavam o perímetro, e havia um técnico responsável por manter o delicado equilíbrio dos espelhos, que deslocava ligeiramente em uma ou outra direção segundo as mudanças de luz, o movimento das nuvens e a estação do ano. Para o olho inexperiente, e a menos que alguém se situasse justo diante de um espelho e visse sua própria imagem refletida — coisa muito improvável, dado o complicado solapamento de espelhos colocados em ângulos distintos —, o acampamento era invisível.

—Ela nos oferece uma pequena parte do País das Maravilhas, certamente da Ferania Ulterior, embora isso ainda está por decidir, em troca do afastamento de toda atividade rebelde — disse um homem gordo apertado em uma cadeira e vestido com o comprido manto característico dos jovens das famílias de naipes. — Seremos livres para viver e nos organizarmos como quisermos, mas devemos dar nomes de alysianos. Não teremos que jurar lealdade a Redd nem aos preceitos da Imaginação Negra, mas não poderemos praticar a Imaginação Branca. Ela propôs celebrar uma cúpula para tratar dos detalhes do acordo.

— Por que escolheu você como mensageiro? — perguntou o miliciano torre. Se ele se encontrasse cara a cara com Redd, teria sabido aproveitar a situação. Teria dado a Redd a resposta dos alysianos a sua oferta por meio da espada.

O senhor obeso se colocou bem a peruca branca empoeirada. Não era outro que o Valete de Ouros, que ao crescer se converteu naquele homem seboso e superalimentado. Seu proeminente traseiro se esparramava a ambos os lados da cadeira, e dobras de carne se sobressaíam entre os braços e o assento.

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— Não sei — respondeu — Eu estava empoando minha peruca quando sua imagem apareceu em meu espelho. Deve supor que eu saberia reconhecer uma proposta razoável quando a ouvisse, pois venho de uma família de classe.

—Me parece suspeito —asseverou o miliciano cavalheiro — Tem certeza de que nenhum dos rastreadores de Redd te seguiu até aqui?

—Por favor. Não sou um novato na arte do segredo e do subterfúgio, sabe?

A torre soltou um grunhido.

— É uma armadilha, de qualquer forma.

O Valete de Ouros tinha duplicado sua fortuna familiar desde a ascensão de Redd ao trono. Seu poder de observação lhe tinha sido muito útil em uma sociedade onde só cresciam os mais matreiros, os mais oportunistas, os mais egoístas e os mais desleais com seus amigos. De menino estava acostumado a acompanhar à Dama de Ouros à fortaleza de Redd no monte Solitário. Foi a melhor formação que podia ter recebido: ver sua mãe elogiar à Rainha e lhe entregar cristais preciosos para conseguir as pequenas concessões que lhe pedia; estudar as negociações de Redd com os traficantes de armas e empresários do mundo do espetáculo que solicitavam licenças para caçar galimatazos vivos nas planícies Vulcânicas e enfrentá-los entre si no anfiteatro de Marvilópolis.

Em sentido estrito, não era um alysiano, mas bem um «valetiano» interessado unicamente em seu próprio bem-estar e proveito. Com a permissão de Redd, subministrava mantimentos aos alysianos; em troca, lhe facilitava informação secreta das quais omitia detalhes importantes, pois se dizimassem aos alysianos, ele deixaria de ser tão rico. Seus métodos, embora indiretos e labirínticos, proporcionavam-lhe o dobro de benefícios que outras operações comerciais mais simples. Averiguava quando sairia de fábrica um envio de aranhas obus e, utilizando como intermediário a um vitróculo reprogramado a fim de proteger sua identidade, vendia essa informação a certos sujeitos de intenções avessas. Uma vez perpetrado o roubo, seu vitróculo o denunciava às autoridades de Redd, mas para quando estas interrogavam aos delinqüentes e averiguavam onde estava o contrabando de aranhas obus, o Valete já as tinha levado dali e as tinha vendido aos alysianos.

—Acha que deveríamos participar da cúpula? — perguntou-lhe o general Doppelgänger.

—Não vejo que tenhamos alternativas.

—Cavalheiro, você o que acha?

—Não se pode confiar nela. Mas eu obedecerei suas ordens, sejam as que sejam.

O general Doppelgänger suspirou e — do mesmo modo que uma gota de água se dividiria pela metade para formar duas gotinhas idênticas — se separou em dois. Os generais Doppel e Gänger ficaram a caminhar de um lado a outro, inquietos.

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Havia outros que deveriam assistir à reunião. Ao secretário real, Jacob Noncelo, tinha-lhe resultado impossível; eram contadas as ocasiões em que podia afastar-se de Redd sem correr riscos. Quanto a Dodge Anders..., bom, ninguém sabia onde estava. Com frequência partia sozinho, sem dizer aonde, e a ninguém parecia adequado perguntar.

— General Doppel...

— Sim, general Gänger?

Os generais ficaram quietos, olhando-se, por uns instantes, e logo assentiram com a cabeça; tinham chegado a uma conclusão. O general Doppel falou.

— Obviamente, tampouco confiamos em Redd, mas estamos de acordo com o Valete de Ouros. Nossas tropas estão se debilitando. Dentro de pouco, Redd não terá que incomodar-se em fingir que quer chegar a um acordo conosco.

— Bem, então eu me encarrego de tudo — disse o Valete de Ouros, lutando por liberar-se da cadeira. — Estou desejando que chegue o dia em que possa me sentar com todos vós em uns móveis decentes. E agora, se alguém... tiver a bondade de me ajudar...

Os generais não mencionaram seu plano de contingência, que consistia em levar clandestinamente aos alysianos chave a Confinia e conspirar com o rei Arch para derrotar Redd: poderiam pedir soldados e armas em troca da promessa de instalar um homem no trono. No momento, decidiram guardar em segredo o dito plano e esconder inclusive a seus conselheiros, com a esperança de que não fosse necessário pô-lo em prática.

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Capítulo 27

Dodge se encontrava a bordo do precipício, contemplando o lago das Lágrimas. A brisa agitava e frisava ligeiramente a superfície. Ele jamais teria reconhecido que a lágrima que escorregou por sua bochecha, precipitou-se no vazio e caiu à água não foi efeito do vento. Sentia muita falta de seu pai. Desejava com toda a alma poder seguir acreditando no reino governado por Genevieve, aquele em que Dodge tinha vivido fazia uma eternidade, quando Alyss e ele usavam o palácio como pátio de jogos. Mas aqueles anos de inocência e de alegria pertenciam à outra pessoa, a outro Dodge, e não ao homem que estava ali.

Dispunha-se a dar meia volta para partir quando avistou algo na superfície do lago: uma pessoa nadava com dificuldade para perto do cristal da borda. As árvores, arbustos e flores ficaram a tagarelar e Dodge baixou a toda pressa por um atalho abrupto e pedregoso que conduzia ao bordo do lago, dando tropeções, sem lhe importar o risco de cair. O homem nadava só com um braço; não era de estranhar que lhe custasse tanto esforço. Apesar de todos os anos que tinham passado, Dodge o reconheceu.

—É Somber Logan.

—Sim.

Ajudou Somber a sair da água e percebeu que estava ferido. Tinha a camisa rasgada e o ombro direito banhado em sangue. Através de um orifício irregular na pele e no músculo, Dodge podia a ver pedaços de osso. Tirou a jaqueta e improvisou um torniquete com ela, para frear a perda de sangue de Somber.

—Sou Dodge, filho do juiz Anders, que foi chefe do guarda real.

—Lembro-me de você.

—Nos disse que tinha morrido, que o Gato...

—Pouco importa se estiver vivo ou morto a não ser pelo que concerne à Princesa. Poderei cumprir ao menos parte da promessa que fiz à rainha Genevieve. A princesa Alyss de Copas vive. Cresceu e é uma mulher de idade suficiente para voltar e reclamar o trono como Rainha legítima.

Fazia tempo que Dodge tinha deixado de se surpreender pelos golpes da vida. Mas que Somber Logan tivesse retornado ao País das Maravilhas através do lago das Lágrimas, que a princesa Alyss estivesse viva...

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—Fazia muito tempo que não acontecia algo bom — comentou, com a vista fixa em Somber até que se deu conta de que tinha que levar a homem dali, a um lugar onde estivessem a salvo e pudessem lhe examinar o ombro.

Dodge decidiu não empreender uma carreira interportal. O capitão da Chapelaria se apoiava nele para deslocar-se pelo método mais arcaico do País das Maravilhas: caminhar através do bosque Sussurrante e depois pelos subúrbios de Marvilópolis.

—Não reconhecerá este lugar — o acautelou Dodge.

Somber reconheceu alguns dos edifícios em que pese a seu estado ruinoso, mas não se encontrava em condições de sentir pena pelas mudanças que tinha sofrido a cidade desde o golpe de Redd. Estava esgotado, queria dormir. Teve que deter-se em várias ocasiões para descansar. Tinha perdido a sensibilidade no braço direito.

—Falta pouco — disse Dodge quando entraram no bosque Eterno.

Chegaram ante uns guardas alysianos que patrulhavam o que ao Somber pareceu uma zona de bosque, indistinguível do resto. Os guardas ficaram parados, sem acreditar em seus olhos, alternando o olhar entre o rosto de Somber e seus braceletes. Fizeram uma reverência e se apartaram para deixá-los passar.

—Você se converteu em lenda —lhe explicou Dodge — Você e a princesa Alyss.

Entraram no acampamento alysiano por uma abertura entre dois espelhos. Os soldados alysianos emudeceram ao ver Somber. A notícia de que o capitão da Chapelaria tinha retornado se propagou rapidamente pelo acampamento, entre sussurros. Os dois homens passaram ao interior da tenda, onde os milicianos cavalheiro e torre, junto com o general Gänger, observavam o general Doppel, que segurava uma cadeira enquanto o Valete de Ouros tentava desprender-se dela de um puxão.

—Ah! Humf!

Ao reparar na presença de Somber, uma mescla de assombro, incredulidade, júbilo e confusão apareceu nos rostos dos milicianos e do general Gänger.

O general Doppel o viu justo no momento em que...

—Fuuuaaah! — O Valete de Ouros se levantou da cadeira cambaleando-se e esfregou os maltratados glúteos, amaldiçoando aquele móvel detestável que o tinha aprisionado entre seus braços — Só alguém do tamanho de um guinuco20 caberia nessa coisa!

E então ele também posou a vista no homem mítico.

—Somber Logan — disseram ao mesmo tempo os generais Doppel e Gänger.

—Chamem à cirurgiã — disse Dodge.

O cavalheiro saiu a toda pressa da tenda e voltou ao cabo de uns segundos com a cirurgiã. Embora o retorno de Somber a tinha sobressaltado tanto como a outros, fez um

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esforço elogiável por dissimulá-lo e concentrar-se em sua tarefa. Deu vários toques à ferida de Somber com uma varinha candente para limpar-lhe e deter a hemorragia. Logo lhe colocou uma manga em forma de U com tumores de energia interconectados e núcleos fundidos sobre o ombro, e esperou durante um momento a que sanasse o osso quebrado, assim como os ligamentos, músculos, veias e tendões rasgados. Retirou a manga e cauterizou uma porção de pele cultivada no laboratório sobre a ferida aberta.

Somber pôs a prova seu ombro fazendo girar o braço em círculos. Enquanto recuperava as forças pouco a pouco, explicou o que tinha acontecido depois de que mergulhara com Alyss no lago das Lágrimas.

—Ou seja, Alyss de Copas vive? —perguntaram os generais Doppel e Gänger boquiabertos.

—Isso é ridículo — balbuciou o Valete de Ouros, que tinha escutado o relato de Somber com preocupação crescente. —Senhor Logan, sou o Valete de Ouros, sem dúvida lembra de mim. Eu era um garoto quando você partiu intempestivamente do País das Maravilhas. Espero não ofender a ninguém se disser que, embora lamento a perda da princesa Alyss tanto como os demais, aqui as coisas estão em um momento crítico. Não temos tempo de ir perseguir fantasmas.

—Me davam por morto, e, entretanto, aqui estou — repôs Somber.—Digo a vocês que Alyss de Copas segue com vida e que tem idade suficiente para voltar e exercer a dignidade de Rainha, que lhe corresponde por direito. —ficou em pé. —Voltarei para lá e a trarei de volta.

—Não, deixa que eu vá — disse Dodge.

—É meu dever proteger à Princesa.

—Para garantir que o País das Maravilhas tenha um futuro que valha a pena, se não lembro mal. Mas você se viu? Não está precisamente em plena forma.

Somber, sem abrir a boca, limitou-se a fazer girar o braço em torno de sua nova articulação.

— Dadas suas habilidades e sua experiência, é mais valioso para os alysianos que eu —assinalou Dodge — Fique e ajude aos generais. Há preparativos por fazer. Alyss precisará de um exército que a respalde.

— Não estão todos esquecendo algo? — disse o Valete de Ouros em tom queixoso. — Concordamos que cessará toda atividade por parte dos alysianos.

—Se contarmos com Alyss, pode haver outras opções — responderam os generais Doppel e Gänger.

Somber repensou: embora a cirurgiã tinha feito um bom trabalho, seu ombro demoraria ao menos um dia ou dois para voltar a normalidade. Talvez, por seu próprio bem e, sobre tudo, pelo do reino, convinha-lhe dedicar um tempo a planejar estratégias e meditar um

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pouco. Estendeu para Dodge o jornal empapado em que se anunciava a festa de compromisso de Alyss.

—Para encontrar um portal de retorno, procure água onde não deveria havêr.

Dodge assentiu com a cabeça e se deteve quando se dispunha a sair da tenda.

—Por aqui se produziram muitas mudanças, nenhuma delas boas. Há coisas que deveria saber. Peça aos generais que o ponham ao dia.

Havia, em efeito, coisas que Somber tinha que saber: a dissolução da Chapelaria, a ilegalização de suas classes. A Chapelaria sempre tinha sido uma defensora resoluta da Imaginação Branca, por isso representava um perigo muito grande para que Redd permitisse que continuasse existindo. Todos os alunos e titulados do centro — Gorros, Asas, Sapateiros e Corseteiros — tinham caído uma noite em uma emboscada que lhes tenderam os olhos-de-vidro, e tinham sido massacrados sem cerimônias. Entre eles se encontrava uma plebeia que, embora não formasse parte da Chapelaria, encarregava-se dos trabalhos administrativos da instituição, e que tinha significado para Somber mais que nenhuma outra.

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Capítulo 28

Alice Liddell, de vinte anos de idade, deslizava-se garbosamente de um grupo de convidados a outro, arrastando detrás de si a longa cauda de seu vestido de seda sobre o chão de parquete do salão de baile. Sua cabeleira negra e ondulada lhe chegava por debaixo dos ombros, e sua pele parecia marfim liso e imaculado à luz das luminarias de cristal. Os membros mais destacados da sociedade britânica tinham ido a sua festa de noivado — duques, duquesas, cavalheiros, condes, viscondes e senhores rurais —, todos eles com o rosto oculto atrás de uma máscara, igual a Alice. À manhã seguinte, os periódicos publicariam todo tipo de detalhes sobre o baile de mascaras para que lessem as lavadeiras, os lacaios, os taberneiros, os cozinheiros e as criadas da cidade; a gente de classe baixa que lutava dia após dia para chegar ao fim de mês e que gostava de mexericar sobre um mundo em que mal que acreditava, o mundo de luxos e comodidades em que agora vivia Alice Liddell.

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«Não posso evitar sentir... o que? Que continuo representando um papel? Sim. Depois de todos estes anos. Ao menos em um baile de mascaras, outros representam um papel também. »

—Ah, senhorita Liddell. —A duquesa do Devonshire interceptou a Alice quando estava cruzando o salão — Você leva um vestido tão deslumbrante como caberia esperar de você. E uma máscara estupenda. Só que... do que se supõe que está disfarçada, querida?

A máscara da Alice era do mais simples: um armação de arame coberto de papel parafinado com uns buracos para os olhos, o nariz e a boca.

—Sou uma mulher comum — respondeu Alice — Nem feia nem bonita. Nem rica nem pobre. Poderia ser qualquer mulher, absolutamente qualquer uma.

Leopoldo se aproximou para lhe pedir que dançasse com ele. Levava uma máscara similar a da Alice em sua simplicidade, embora não deixava tão perplexos aos convidados. Era uma máscara de seu próprio rosto, pintada a óleo por um artista do lugar.

— Querida — disse, lhe estendendo a mão.

A orquestra atacou os compasses de uma valsa, e o casal evoluiu por todo o salão, enquanto os pressente os contemplavam reclinados contra a parede. Entre os numerosos pares de olhos cravados neles, estava outro: o de um estranho que olhava pela janela. O príncipe Leopoldo não era bom bailarino; faltava-lhe agilidade nas pernas e fluidez em seus giros. Para Alice isto era quase um alívio; de certa forma atenuava seu sentimento de culpa por não amá-lo. Ao menos quando ele dançava não parecia perfeito.

A valsa terminou, e o Príncipe percebeu que a Rainha estava em um rincão da sala, com o sobrecenho franzido.

—Acredito que é melhor que vá saudar minha mãe — disse e beijou a mão de Alice.

Leopoldo tirou a máscara e a depositou sobre uma mesa. O estranho que tinha estado olhando pela janela entrou na sala e, sem que ninguém o visse, agarrou a máscara.

Alice apenas se refrescou um pouco com uns sorvos de vinho quando notou uns golpezinhos no ombro. Ao voltar-se viu seu futuro esposo com a máscara posta de novo e a mão estendida para lhe pedir que lhe concedesse outra dança.

— Outra vez? — perguntou ela — Mas e a Rainha?

O homem mascarado guardou silêncio. A orquestra começou a executar outra peça e ele a conduziu à pista de baile. Com um braço em torno da cintura e uma mão na parte inferior das costas, levou-a com soltura de um lado a outro, fazendo-a girar ou agachar-se em momentos determinados. Os passos dos dois estavam perfeitamente coordenados, como se tivessem dançado juntos toda a vida. Os convidados não puderam fazer menos que precaver-se disso; deram lugar ao casal e aplaudiram.

Alice deu-se conta de que seu par de baile, fosse quem fosse, não era seu noivo.

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—Você não é Leopoldo —riu— Halleck, é você? — perguntou, mencionando um amigo do Príncipe.

O estranho não respondeu.

— Quem se esconde atrás dessa máscara?

O estranho continuou calado. Alice elevou as mãos e lhe tirou a máscara, deixando a descoberto o rosto de um jovem charmoso de olhos amendoados, com um nariz que certamente fora quebrado mais de uma vez, e o cabelo descuidado e despenteado.

— Conheço você?

— Conhecia-me faz tempo — disse o estranho. Voltou o rosto para lhe mostrar a bochecha direita, sulcada por quatro cicatrizes paralelas que brilhavam rosadas e irregulares contra sua pálida pele.

Ela parou de dançar, sobressaltada.

—Mas...

Ouviu que se produzia uma agitação entre os convidados que estavam atrás. A senhora Liddell e o príncipe Leopoldo se situaram junto a ela. Quando ela voltou os olhos para a frente, o estranho tinha desaparecido.

— Quem era esse homem? — inquiriu Leopoldo em tom exigente.

— Que grosseiro. Estou certa que não era ninguém — assegurou a senhora Liddell, inquieta. Nunca tinha visto o Príncipe tão alterado — Diga-lhe Alice. Diga que esse homem não era ninguém.

— Não... não sei — titubeou Alice — Não sei quem era. Por favor, me desculpem, preciso tomar ar.

Saiu ao balcão apressadamente. Não podia tratar-se dele. O homem das cicatrizes. Era impossível que se tratasse dele. Não existia.

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Capítulo 29

O Gato lançou uma patada à corda que se pendurava do teto da sala de Invenções. Estava rodeado de protótipos das numerosas invenções de Redd expostos em nichos e iluminados com luzes direcionais: um rastreador com corpo de lucirguero e cabeça de minhoca; um arbusto seco e murcho, a primeira vítima do Naturicida; um soldado número Dois do Baralho, metade aço e metade carne e osso, mais vulnerável e dotado de menor mobilidade que os soldados naipes que finalmente chegaram a se produzir em série; um modelo primitivo de plataforma roseira; um vitróculo com um cristal alargado e horizontal

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como receptor visual em vez das duas esferas incrustadas nas conchas oculares, de aspecto mais humano; inclusive uma versão anterior do Gato, com garras menores e (ao menos isso pensava o Gato) não tão bonito como tinha ficado o sicário definitivo.

Podia passar horas jogando com a corda, enganchando-a com as garras, soltando-a, agarrando-a de novo. Pôs-se a ronronar quando a voz de Redd ressonou na sala.

— Gato, vai à cúpula de observação imediatamente.

No geral, quando Redd o chamava era para proferir uma avalanche de insultos contra ele e recriminar suas falhas a gritos. Entretanto, nesta ocasião o tom de Redd soava diferente, quase afetuoso, como se planejasse lhe dar uma surpresa agradável. E já era hora. Ele merecia elogios e recompensas, pois era o responsável por impor a disciplina ao povo do País das Maravilhas.

A cúpula de observação ocupava a planta superior da fortaleza do monte Solitário. Tinha pisos de pedra polidos e brilhantes, paredes de painéis telescópicos de vidro que ofereciam uma vista de 360 graus do País das Maravilhas. O Gato entrou na cúpula saltitando e soltou um miado brincalhão, mas, com a brutalidade de uma rabada, seu estado de ânimo se escureceu. O mordomo morsa e o Valete de Ouros estavam na sala. O Gato não conseguia entender por que Redd insistia em tolerar o Valete de Ouros.

—Estive rememorando tempos passados, Gato — disse Redd—, e eu gostaria que me contasse de novo como rasgou o coração de Alyss em pedacinhos pequenos e carnudos que jogou no lago das Lágrimas faz tantos anos.

O Gato sentiu no nariz que algo não estava certo. O sorriso zombador do Valete de Ouros destilava mais auto-suficiência que de costume, e a morsa não o tinha olhado nem uma vez desde que se apresentou na cúpula, pois estava muito ocupada tirando o pó das varas de cristal do centro de uma mesa larga e espanando os objetos e as superfícies que precisavam. A morsa tinha estado limpando a mesma vara de cristal desde a que o Gato chegou, e estava formando se um montículo de pó sobre a mesa.

—Segui a Princesa e Somber Logan pelo Contínuo de Cristal — começou a relatar o Gato —, os alcaçei em um precipício...

Um volume do In Regnum Speramus voou para ele de um lado da sala e o golpeou na cabeça.

—Ai! O caso é que... segui a pista deles pelo bosque e dei com eles em um precipício sobre o lago da...

A bolsa de pó da morsa saiu disparada para ele. O Gato a viu, afastou-se no último momento e a bolsa arrebentou contra o painel de vidro que tinha a suas costas.

—... sobre o lago das Lágrimas. Então Somber...

Pedaços de rocha vulcânica saíram apressadas para ele. Agachou-se para esquivar de um, mas uma pedra procedente de outra direção o acertou totalmente.

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—Au! Derrubei o Somber de... ai!... de um golpe, e logo... ui!... reduzi-os a ele e a Alyss a pedacinhos de carne e... ai!... joguei-os no lago das Lágrimas.

Caiu, cansado e maltratado. Redd se aproximou e ficou de pé, frente a ele.

— Mente Gato. Tem me feito acreditar uma mentira durante treze anos. Acabam de me informar que Somber Logan está no País das Maravilhas e Alyss de Copas vive.

O Gato viu o Valete de Ouros atrás dela, tomando com grande deleite sorvos de licor de uma taça transparente, com o mindinho estendido em uma postura afetada.

—É obvio, é bom que minta — prosseguiu Redd—, sempre e quando não mentir para mim. Pelo visto, se a pessoa for ardilosa o bastante para descobrir a maneira, pode voltar ao País das Maravilhas através do lago das Lágrimas.

Sua mão esquerda se transformou em uma garra felina. Cravou no ventre do gato as garras de seus dedos indicadores e médio. O Gato, entre gorgolejos e fortes convulsões, sangrando pela boca, morreu.

A morsa, fazendo o possível para fingir que não se inteirou do ocorrido, espanou o pó de toda a mesa com movimentos nervosos das duas aletas. O Valete de Ouros soltou uma risadinha, mas se calou de repente quando sua taça saltou de sua mão e verteu seu conteúdo na cara do Gato.

Este cuspiu, tossiu, e suas pálpebras se abriram, vacilantes.

—Não faça tanto teatro —o repreendeu Redd— Ainda restam seis vidas. Se voltar a mentir para mim, não sobrará nenhuma. E agora, se levante e limpe o queixo.

O Gato ficou em pé, lambeu a pata e esfregou com ela o queixo e os bigodes para tirar as manchas de sangue.

—Isto é o que você vai fazer —disse Redd — Mergulhará junto com um pelotão de naipes sicários que escolherei pessoalmente no lago das Lágrimas. Encontrará a minha sobrinha e lhe arrancará, cortará ou serrará a cabeça; dá-me igual como o faça, o importante é que separe a cabeça do corpo e me traga. Se voltar sem ela, darei por certo que Alyss segue com vida e que você fracassou, e será seu fim. Se não voltar ao País das Maravilhas por medo do que eu possa te fazer, que não te caiba a menor duvida de que enviarei outros para te buscar e morrerá seis vezes seguida.

O Gato fez uma reverência.

—Agradeço sua clemência, Seu Malignidade Imperial. Esta vez não falharei.

—Não, suponho que não.

Informado sobre o paradeiro de Alyss por um petulante Valete de Ouros, o Gato guiou a seus naipes sicários ao precipício que se elevava sobre o lago das Lágrimas. Sem outra fanfarra que o sussurro do vento entre as árvores emudecidas e o martelar de seus negros corações, saltaram, deixaram-se arrastar para baixo pela sucção do portal, experimentaram

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um forte impulso ascendente e saíram expelidos de um atoleiro que estava no interior do Parlamento. Voando, atravessaram umas janelas e caíram na calçada, em meio de uma chuva de vidros quebrados.

Capítulo 30

Embelezada com seu vestido de noiva, Alice se encontrava de pé ante um espelho de corpo inteiro na sacristia da abadia de Westminster. Menos de meia hora depois, estaria casada com um príncipe e gozaria da mais alta consideração dos estratos sociais superiores sem ter tido que sacrificar seu coração a um homem a quem não detestava mas tampouco amava. Entretanto, o futuro lhe paraecia tão incerto quanto seu passado mais remoto.

A sala começou a vibrar com as notas do órgão, mas Alice mal se precaveu disso. Estendeu um braço para o espelho. Pousou seus dedos contra a superfície fria e refletiva, e permaneceu assim, com a mão tocando a de sua imagem refletida. Acaso esperava outra coisa? Que sua mão atravessasse o espelho? Ridículo. Alguém bateu na porta. A senhora

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Liddell irrompeu na sacristia, levantando a saia do vestido para evitar que se arrastasse pelo chão, e Alice se alegrou de que alguém a resgatasse de sua solidão.

—É a hora, querida. É à hora. Quase não acredito!

—Nem eu — respondeu Alice, aparentando uma emoção e um ansia que não sentia.

Deu um beijo na bochecha de sua mãe, e juntas se dirigiram ao átrio da abadia. Ali, as damas de honra e os padrinhos de bodas aguardavam que chegasse o momento de fazer sua entrada, junto com o decano Liddell, que estava preparado para levar a sua filha ao altar.

—E pensar que, quando voltarmos a falar, estará casada com um príncipe — suspirou a senhora Liddell.

—E você será sua sogra.

—Sinto-me tão contente só de pensar...! Tem-me feito imensamente feliz, Alice.

Depois de um último abraço, a senhora Liddell foi sentar-se junto ao resto da família, perto do altar.

A marcha nupcial começou a soar, e as damas de honra e os padrinhos puseram-se a andar pelo corredor de dois em dois. Alice jogou uma olhada aos convidados. A Rainha Vitória e seu séquito ocupavam os bancos das primeiras filas na parte direita da igreja. Uma barreira de soldados separava à Rainha do resto dos convidados, que enchiam a abadia por completo. Ao fundo da igreja, vários jornalistas rabiscavam notas em suas cadernetas. Todos estavam em seus assentos, voltados para a entrada, esperando espectantes que Alice aparecesse. Mas ela tinha querido aproveitar a oportunidade para espiar seus convidados. Por quê? Porque procurava alguém, um rosto em particular. Tinha estado perguntando-se se ele se apresentaria no dia de suas bodas de um modo tão misterioso quanto na festa de noivado. Não era ele aquela figura meio escondida entre as sombras sob a galeria esquerda? Não conseguia ver as feições com clareza, mas...

O decano Liddell lhe estendeu a mão. Alice se deu conta de que estava comportando-se como uma tola. Por que se obcecar com um desconhecido só porque tinha cicatrizes no rosto? Isso não significava nada. Provavelmente, o homem da festa de compromisso só fosse um rival de Leopoldo que queria demonstrar que dançava melhor que ele. Tomou a seu pai pelo braço.

—Alice, querida —disse o decano — Se fosse qualquer outra pessoa que estivesse a ponto de emparentar com uma família tão destacada, preocuparia-me que talvez não soubesse estar à altura. Mas contigo não. Estou convencido de que não só seguirá dando ao príncipe Leopoldo motivos de orgulho e que manterá seu amor sempre vivo, mas sim lhe ensinará como fazer o bem no mundo de uma forma que eu, como simples decano de seu colégio universitário, jamais teria sonhado lhe ensinando. É muito afortunado de te ter.

—Obrigado, pai.

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Com passos compassados, pai e filha começaram a caminhar pelo corredor. O rosto de Alice não mostrava o menor rastro de inquietação nem da consternação que a tinha assediado no baile de mascaras. Qualquer um que a tivesse visto teria dado por certo que não pensava mais que no momento transcendental que estava vivendo, e isso é certamente o que acreditava o príncipe Leopoldo. Vestido com uniforme militar completo e uma espada ancestral ao flanco, aguardava ante o altar maior com o arcebispo. O decano Liddell roçou com os lábios a bochecha de Alice, deixou-a ao lado de Leopoldo e se dirigiu sem fazer ruído ao assento em que se encontrava sua esposa.

Leopoldo sorriu a sua noiva. Seu sorriso gotejava acanhamento, admiração, alegria e tal admiração que ela mesma ficou sobressaltada ao vê-la. Alice temia que ele estivesse superestimando-a, e que o mais duro de seu matrimônio não seria o fato de que não o amava, mas sim tentar ser digna de sua estima. Voltou-se para o arcebispo. A suas costas, os bancos rangeram, os convidados pigarrearam. O arcebispo começou a falar, mas Alice mal o escutava.

—Se alguém presente tiver alguma razão para que estas bodas não se celebre, que fale agora ou cale-se para sempre — recitou o arcebispo.

Alice foi assaltada pelo desejo imperioso de dirigir a vista à galeria da esquerda, onde imaginava que se encontrava o homem das cicatrizes, cujo nome ela se esforçou muito por apagar de sua memória e que ainda não se atrevia a formular em sua mente, como se ao fazê-lo corresse o risco de fazer aparecer um ser cuja inexistência era crucial para sua felicidade atual e futura na Inglaterra.

Ouviu a si mesma repetir as palavras do arcebispo sem compreender seu significado. «Os votos. Pronunciei os votos. » ficou escutando os timbres e ressonâncias das vozes masculinas que se alternavam.

E então aconteceu algo estranho. Foi como se uma tormenta que tinha estado incubando-se e estava a ponto de desatar-se tivesse aspirado todo o oxigênio daquela enorme sala, só para soltá-lo com muita mais força. Mais tarde, Alice juraria que tinha tido uma intuição de que algo ia ocorrer, que havia sentido algo antes que os vitrais a ambos os lados da abadia estalassem para dentro quando os seres mais estranhos os atravessaram e caíram entre vidros quebrados de cores direfentes. Os convidados se lançaram em massa para as saídas, atropelando-se uns aos outros. Outros se ajoelharam para rogar a Deus que os liberasse de todo mal.

Nos segundos que transcorreram entre a ruptura de cristais e a primeira morte, os soldados rodearam à rainha Vitória e a escoltaram através de uma porta de uso normalmente reservado ao arcebispo, que a seguiu a toda pressa rezando com voz entrecortada. O príncipe Leopoldo rodeou à noiva com um braço protetor, mas ela se soltou em um ato reflexo, e cravou a vista na besta de aspecto felino que abria passo para ela, tirando de seu caminho soldados e policiais com patadas que lhes rasgavam a pele. Ela o reconheceu, do mesmo modo que alguém se lembra do que sonhou horas depois de ter despertado, e este reconhecimento trouxe consigo um alívio perturbador, e é que se essa coisa era real...

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Ficou imóvel e indefesa no meio do caos. Esses não eram os naipes soldado que lembrava. «Mas não deveria lembrar o que se supõe que não existe. »

Leopoldo e Halleck lutavam contra quatro das criaturas de grande estatura e extremidades de aço cuja parte posterior estava formada por escudos protetores que tinham gravados naipes do baralho: Paus, espadas e Ouros. Os dois homens tinham praticado a esgrima, mas Alice via que teriam sorte se saíssem com vida. «Por favor, que Leopoldo esteja bem. Aconteça o que acontecer que ele... »

O Gato se elevou no ar e se lançou sobre Alice. Ela continuou sem mover-se de onde estava. Estendeu o braço para tocar aquela besta para comprovar de uma vez por todas se era real, quando...

«Sabia!»

Não tinha se enganado: a figura entre as sombras era o homem das cicatrizes, pois ali estava, correndo para ela do perímetro. Tomou-a nos braços e a afastou uma fração de segundo antes que o Gato caísse e destroçasse o altar com um golpe de seus braços grossos como coxas. Agora Alice corria, segura pela mão daquele personagem cujo nome ainda não se atrevia a articular para si. O homem a conduziu ao exterior através de um dos vitrais quebrados. O Gato e os naipes sicários saíram da abadia de um salto para persegui-los. Naquela Rua de Londres reinava uma confusão de gritos e empurrões. Um naipe sicário caiu sobre a cauda do vestido de Alice e a freou em seco. O homem das cicatrizes cortou de um talho a cauda do vestido, deu-se a volta e cortou com a espada as correias que prendiam um cavalo a sua carruagem.

—Ei! —protestou o condutor da carruagem.

Mas o homem das cicatrizes já havia montado sobre o cavalo e levantou Alice de um puxão enquanto esporeava ao animal para que galopasse pelas ruas. O Gato arrancou a correr atrás deles, tão veloz quanto qualquer ser quadrúpede da Terra graças a suas poderosas pernas.

Os naipes sicário levavam consigo esferas geradoras brilhantes, de maneira que, enquanto o homem das cicatrizes guiava o cavalo a esquerda e direita, da calçada ao meio-fio e viceversa, ziguezagueando para converter-se em um alvo mais difícil, as explosões sacudiam os edifícios dos arredores. Alice, tonta por tanta agitação, tinha a impressão de que seu companheiro se dirigia para um destino específico, pois cada vez que o cavalo escorregava e passava de comprimento alguma rua, ele o fazia dar a volta e enfiá-la rapidamente, entre pedestres aturdidos e os insultos dos choferes.

Em efeito, o homem sabia aonde ia. Tinha memorizado a rota que tinha seguido desde seu portal de saída até a abadia de Westminster e a estava percorrendo em sentido inverso. Encontravam-se perto. Só lhes faltava cruzar umas poucas ruas quando uma esfera geradora impactou em um carro vazio da polícia situado a menos de vinte metros, fazendo com que explodisse em chamas. O cavalo em que cavalgavam Alice e o homem das cicatrizes empinou e os derrubou. Caíram sobre um montão de couves que levava um vendedor de ruas

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em uma carreta. Saltaram ao chão e o homem das cicatrizes pôs-se a correr, arrastando Alice pelo braço.

—Aonde vamos? —ofegou ela.

—Já verá! —E apontou com o dedo: um atoleiro.

Ela se envergonhou do que disse a seguir, o primeiro que lhe veio à cabeça quando esse homem e ela tomaram impulso e saltaram no atoleiro, agarrados com força pela mão:

—Vai estraga meu vestido — protestou, e então...

Zuuum.

Afundavam-se a toda velocidade, cada vez mais fundo. Alice soltou a mão do homem. Isto não podia estar acontecendo, não podia... Entretanto, acontecia. E enquanto ascendia rápida como uma bala para a superfície, depois de ter feito o impossível por convencer-se de que o lugar que estavam a ponto de ver seus incrédulos olhos não existia, pronunciou o nome —Dodge Anders—, e seus pulmões se encheram de água.

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Capítulo 31

Jacob Noncelo, com as veias azuis esverdeadas palpitando em sua douta cabeça, aguardava na borda do lago das Lágrimas segurando as rédeas de dois maspíritus a seu lado. Não tinha sido fácil chegar até ali. Desde que tinha sido informado da volta de Somber Logan, Redd agia de forma mais tirânica que nunca e exigia que passasse horas ao dia rescrevendo In Regnum Speramus, sem deixar de olhar por cima de seu ombro para assegurar-se de que

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transcrevesse suas venenosas palavras tal e qual ela as cuspia. Tinha-o obrigado a riscar páginas inteiras do antigo texto para substituí-las por ordens favoráveis ao novo regime, como se Sua Malignidade Imperial acreditasse que, ao suprimir passagens que tinham infundido força e ânimos à rainha Genevieve em outro tempo, estava eliminando à própria princesa Alyss.

—Não se encontra bem? —bramou Redd depois de ouvir sua desculpa para desatender seus deveres esse dia — E a mim o que me importa que não se encontre bem? Ensinarei-te o que é não se encontrar bem!

—Mas é que tenho a mão terrivelmente dura, e me viria bem descansar um pouco do esforço diário —alegou Jacob — Com o devido respeito, sugiro-lhe... Não poderia Sua Malignidade Imperial criar as páginas novas com a imaginação de forma que eu não tenha que as escrever?

Redd soltou uma gargalhada, mostrando seus dentes negros e bicudos.

—Jacob Noncelo, não é tão covarde como eu acreditava. Se não te deixasse continuar vivo pela possibilidade de que me sejam úteis todos esses conhecimentos que acumulou nessa cabeça macilenta e calva que tem, quase me daria pena verte morrer. Antes que saia a Lua de Redd deve se reunir comigo na cúpula de observação.

De modo que Jacob se dirigiu rapidamente ao lago das Lágrimas, consciente do risco que corria: se a Redd ocorria visualizá-lo com o olho da imaginação, seria seu fim. Mas o assunto que trazia entre mãos era muito importante; tinha que acudir.

Formaram-se ondas na superfície do lago; algo se agitava no fundo.

—Pelo bem da Imaginação Branca, esperemos que Dodge tenha tido êxito — murmurou o sábio preceptor, e um dos maspíritus lhe respondeu com um grunhido.

As ondas do lago, que se propagavam a partir de um centro borbulhante, fizeram-se maiores e numerosas. Dodge emergiu de repente e aspirou uma grande baforada de ar. Ao precaver-se de que estava sozinho, olhou em redor, desesperado.

—Está ela aqui?

—Não. Eu acreditava...

Algo apareceu na superfície e ficou flutuando: o corpo da princesa Alyss, relaxado e inerte. O preceptor correu até a borda da água e ajudou Dodge a levar a Princesa à borda e depositá-la no chão.

—O que lhe acontece? — perguntou Dodge.

Jacob aproximou uma de suas orelhas grandes e sensíveis da boca flácida de Alyss.

—Engoliu água. Ouço-a mover-se dentro dela.

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Como bom preceptor real, Jacob levava diversos instrumentos educativos escondidos nas dobras de sua toga. Tirou de um bolso interior um tubo brando e flexível, introduziu um extremo pela boca do Alyss até pouco além da garganta e sugou com força pelo outro extremo. Encheu quatro vezes o tubo de água que cuspiu sobre o chão. Alyss se convulsionou ligeiramente, respirou, vomitou água e tossiu até recuperar a consciência por completo. Ao ver que tinha aberto os olhos, um ramo de lilases entoou uma jubilosa canção de boas vindas. Aturdida e desconcertada, Alyss se incorporou com os músculos do peito doloridos por causa da tosse que lhe sacudia toda a caixa toráxica.

—Jacob Noncelo — sussurrou.

As orelhas do preceptor tremeram de gosto.

—A suas ordens, Princesa.

Ela se voltou para seu amigo da infância, e um sorriso lânguido e vacilante apareceu em seus olhos e seus lábios.

—Dodge Anders.

Dodge ficou rígido. Ouvir Alyss dizer seu nome... foi como lembrar-se de uma ferida esquecida.

—De onde vem essa música? —perguntou ela. As liláses subiram o volume de voz e ela as viu balançar-se alegremente com seus caules, abrindo e fechando as pétalas ao cantar — Mas se as flores não têm laringe...

—O que é a laringe? — perguntaram as flores e romperam a rir.

Alice teve a sensação de estar vivendo em um sonho reconfortante e por uns momentos se deleitou com ele, mas então seu semblante se endureceu em um gesto de determinação e ela tentou não deixar-se encantar pelas cores vivas, quase evidentes que a rodeavam.

—Isto não é real —afirmou — Não deveria lembrar tão vividamente de algo que em teoria não existe. Quanto a vocês... a tudo isto... é impossível que exista.

Jacob franziu o sobrecenho, preocupado.

—Por que não?

—Porque não. —Não era uma resposta muito boa, era consciente disso — Ninguém pode entend...

—Devemos nos apressar — a cortou Dodge.

Alguém se aproximava; formaram-se novas ondas na superfície do lago.

Dodge e Jacob ajudaram rapidamente Alyss a ficar em pé e a montar em um maspíritu, muito rapidamente, talvez, pois a ponto esteve de cair pelo outro flanco do animal.

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Recuperou o equilíbrio e se sentou firmemente, mas virada de cara à traseira do maspíritu.

Dodge e Jacob intercambiaram um olhar. Supunha-se que aquela ia ser sua rainha guerreira?

—É melhor que se sente olhando para frente — assinalou Dodge.

As ondas no lago se fizeram mais pronunciadas e faziam espuma. Dodge e Jacob deram uma mão a Alyss para que se sentasse como era devido sobre o maspíritu. Dodge montou de um salto diante dela e tomou as rédeas enquanto Jacob subia sobre o outro animal. Justo quando ouviram movimentos na superfície da água, os três entraram no bosque rapidamente. Alyss voltou à vista atrás e viu que o Gato e o que restava de seu corpo de sicários os perseguiam. Talvez ainda restasse uma oportunidade de voltar a Londres para casar-se com o Leopoldo, seguir sendo a afetuosa filha do decano Liddell e sua esposa, e abandonar-se a aquela vida ordenada e tranquila que tanto se esforçou por forjar. Não tinha ideia de como seriam as coisas neste outro mundo. Tinha graça que o que tanto tinha desejado quando era mais jovem — retornar ao País das Maravilhas — agora produzisse tal desassossego. Mas a quem pretendia convencer? A ideia de que podia voltar para sua existência relativamente inocente na Inglaterra era pura fantasia. O lago das Lágrimas, Redd e o Gato... Caçariam-na estivesse onde estivesse.

Os sussurros das árvores e arbustos circundantes se atenuaram, o rangido de ramos que se rompiam e de passos sobre folhas secas soou mais intenso, mais próximo, e se ouvia inclusive por cima do martelar das pesadas patas dos maspíritus. Não conseguiriam deixar o Gato para trás. Alyss, convencida disso, aferrou-se com força à cintura de Dodge.

—São mais rápidos que nós — disse.

—Bem! Então teremos que lutar! —Dodge fez o animal girar em torno de si mesmo e mal teve tempo de elevar a espada antes de começar a combater com dois dos naipes sicários.

Alyss perdeu o equilíbrio e caiu no chão.

—Alyss! —gritou Jacob.

Mas ela tinha ao Gato virtualmente em cima, sonrindo com sua boca cheia de dentes.

—Como cresceu —vaiou o assassino — A última vez que te vi era só assim de alta. —Elevou a garra à altura da cintura e riu.

Ela tentou correr, mas de um empurrão a derrubou de novo ante si. Arrepiou-lhe a cauda e ele soltou uma cuspida. Ela tentou fugir outra vez, e ele voltou a derrubá-la de costas, brincando com ela como um gatinho com uma barata antes de matá-la. Alyss sabia o que devia fazer: imaginar algo, invocar uma defesa, mas fazia tanto tempo que não exercitava sua imaginação que... Tinha que tentar de qualquer maneira. E assim o fez, tremendo e com o cenho franzido pelo esforço. Mas foi inútil. Nada aconteceu.

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O Gato levantou a garra para dar o golpe. Alyss gravou em sua retina a que acreditava que seria a última imagem que veria: Dodge atravessando com sua espada um naipe sicário, que se dobrou em dois e se desabou no chão, morto; outros assassinos, atacando-o com fúria redobrada; Jacob Noncelo, correndo para ela, dizendo «sou um acadêmico, não um guerreiro. Em uma batalha de inteligencia possivelmente poderia... », enquanto se interpunha entre o Gato e ela.

—A Redd não parecerá bem este comportamento por parte de seu secretário — sussurou o Gato, e suas garras cintilaram.

Jacob apertou muito os olhos.

—Uma nanosfera em repouso tende a permanecer em repouso, e uma nanosfera em movimento tende a permanecer em movimento enquanto não atue sobre elas uma força externa — balbuciou, como se realmente pretendesse combater a força física do Gato com a força superior de seu intelecto. A seguir passou a recitar uma enxurrada de lições eruditas, surpreso de que lhe desse tempo de expressar tantas, dadas à eficácia e a velocidade com que o Gato estava acostumado a massacrar suas desafortunadas vítimas.

Alyss estava tão assombrada quanto Jacob, embora por outras razões. Tinha os olhos totalmente abertos e, justo quando o Gato se preparava para descarregar uma patada sobre o preceptor, cinco peões brancos saltaram das árvores, e dois deles receberam o golpe destinado a Jacob. Uma unidade de milicianos do Xadrez surgiu da espessura, e um baralho camuflado de soldados da Corte de Redd se repartiu com o estalo de umas tesouras que se abrem e se fecham rapidamente. Estava a ponto de liberar uma escaramuça no bosque Sussurrante.

Alyss puxou a manga de Jacob.

—Ah — disse ele depois de abrir os olhos e entender o que estava ocorrendo.

—Vão embora! — gritou-lhes um miliciano, nós torre os manteremos a raia! Mas vão embora!Agora! —Embora estava encetado em combate mortal com um naipe número Três, se arrumou para dedicar uma reverência ao Alyss— Princesa —disse.

Dodge se aproximou galopando em um maspíritu e levantou Alyss à sela, atrás dele. Jacob se encarapitou com dificuldade à garupa do animal e os três se afastaram a toda velocidade. O entrechocar de aços, os grunhidos guturais e os roucos gritos de batalha se apagaram na distância. Alyss se voltou para jogar uma última olhada ao enfurecido Gato e aos valentes milicianos que estavam arriscando a vida por ela.

—A maioria deles não sobreviverá —disse Dodge, esporeando ao maspíritu em direção a Marvilópolis, que cruzariam evitando as artérias principais para chegar ao bosque Eterno — Mas você está a salvo. No momento.

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Capítulo 32

—Já deveriam ter voltado.

—Avisei vocês — disse isso o Valete de Ouros, com ar despreocupado, levando a boca um punhado de patas de roedor salgadas e secas — Temos que esperar o melhor, mas estar preparados para o pior.

—Já deveriam ter voltado — repetiu o general Doppelgänger, caminhando de um lado a outro da barraca de campanha, atividade que aparentemente não aliviava de todo sua ansiedade, pois se dividiu nas figuras gemêas dos generais Doppel e Gänger, que continuaram caminhando de um lado a outro; mas isto tampouco os tranquilizou, de modo que os generais voltaram a fundir-se em um só.

—Não me surpreenderia muito que Dodge fracassasse —comentou o Valete de Ouros — Deveríamos planejar um futuro que ainda estejamos em condições de moldar.

Lançou um olhar inquieto a Somber Logan, que tinha estado sentado em silencio em um rincão da barraca, com um cristal holográfico de bolso na mão, desde que o general Doppelgänger o tinha informado do sangrento fim da Chapelaria. De vez em quando, Somber pulsava o dorso do cristal com o polegar, e sua imagem cobrava vida: uma mulher que ria e dizia algo em tom zombador. A presença de Somber incomodava ao Valete. O que bulia dentro dessa cabeça ensombreada? E se tinha enlouquecido pouco a pouco durante seus treze anos de exílio, por causa das penalidades e os desafios misteriosos que tinha tido que confrontar? Um homem desenquadrado com habilidades tão mortíferas... Para atenuar seus temores, o Valete tentou cercar um bate-papo insustancial com o capitão da Chapelaria.

—Somber, me conte: em suas viagens, teve tempo de provar os bolos de frutas?

Com suma lentidão, Somber se voltou para o Valete e piscou várias vezes, para adaptar seus olhos à visão daquele cavalheiro com peruca.

O Valete soltou uma risadina tensa.

—Só tento quebrar a monotonia da espera. —Estendeu um punhado de patas de roedor ao Somber — Quer uma?

Somber afastou a vista sem dizer nada. Ouviram-se gritos de alegria procedentes do exterior. Somber ficou em pé, guardou o cristal holográfico no bolso e saiu rapidamente da

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barraca. O general Doppelgänger e o Valete de Ouros o seguiram a toda pressa. Se havia uma cena capaz de animar a um membro da Chapelaria que estava de luto, sem dúvida era aquela: a princesa Alyss, salva e aparentemente sã, rodeada por alysianos, güinucos e lucirgueros felizes, em meio de um folguedo ao que as árvores do bosque contribuíam com suas vozes para celebrar sua volta. Era uma cena muito grata, em efeito, e entretanto Somber não exteriorizou uma grande emoção; apenas uma ligeira elevação das comissuras da boca. Seu olhar se cruzou com o de Dodge, e os dois homens inclinaram levemente a cabeça em um gesto de mútuo respeito.

—É... é Somber? —perguntou Alyss ao avistar a cartola em meio da multidão.

Os alysianos abriram caminho ao Somber para que pudesse passar.

—Agrada-me ver que estão bem, Princesa.

Alyss jogou uma olhada em redor.

—Estou bem? Não me parece isso.

Somber agachou à cabeça.

—Sim, é imperdoável que a perdesse no lago, e assumo toda a responsabilidade. Se decidir me degradar como castigo por meu fracasso, espero saber aceitá-lo com dignidade. Não obstante, resta muito por fazer, Princesa, se querem vencer Redd.

Alyss suspirou e, quando falou, suas palavras soaram mais régias do que ela tinha imaginado possível.

—Não me surpreende, Somber, que se culpe desse «fracasso», como você o chama. Mas eu não te culpo. Como sabemos que não fui eu quem perdeu você faz já tantos anos? O que queria dizer é que ver tudo isto... —assinalou o quartel geral dos alysianos— me impressiona muito depois de ter passado tanto tempo longe daqui.

Somber se fez a um lado, e o general Doppelgänger se aproximou com grandes pernadas, dedicou várias reverências a Alyss e se dividiu em dois.

—Princesa Alyss! — exclamaram de uma vez os generais Doppel e Gänger — Nos enche de euforia comprovar que voltou. Bem-vinda, bem-vinda!

A multidão estava muito ocupada celebrando sua volta para reparar na expressão que escureceu o rosto do Valete de Ouros quando pousou os olhos na Princesa desaparecida fazia anos. Apesar de tudo, o Valete sempre estava mais que disposto a aproveitar qualquer circunstância imprevista em seu benefício. Forçou seus lábios a desenhar um sorriso e, ao notar que a algazarra se atenuava um pouco, abriu passo por entre a multidão.

—Abram passo a uma pessoa de classe —disse — Apartem-se, apartem-se.

Seu prodigioso traseiro derrubava as pessoas à direita e esquerda com cada passo. Plantou-se ante Alyss.

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—Ah, Princesa! Sem dúvida se lembra do Valete de Ouros, seu companheiro de brincadeiras preferido da infância, não é mesmo?

Alyss olhou ao Dodge, que ficou a apalpar a ponta de sua espada com interesse inusitado.

O Valete pegou sua mão e a beijou.

—Levo uma eternidade sofrendo por você, minha princesa. Lembra-se de que íamos nos casar? Pois permaneci solteiro para honrar sua memória, e me congratularia que me tomasse por marido, sempre e quando meu corpo varonil a agrade tanto quanto a mim. —Girou a direita e esquerda, para mostrar seu físico a Alyss.

Alyss não soube se foi a pouco apetecível figura que o Valete de Ouros exibia como uma fada, os rostos joviais e espectantes da multidão que a rodeava, ou ambas as coisas, mas de repente sentiu que tudo era muito para ela.

—Acredito que... eu gostaria de descansar um pouco —murmurou.

—A Princesa quer uma cama! —gritou um güinuco próximo.

—A Princesa quer uma cama! — repetiu um naipe número Dois e, enquanto o cavalheiro branco e seu peão trabalhavam em excesso em preparar um leito para Alyss, os alysianos, um após o outro, comentavam este fato como se se tratasse de um motivo de celebração em si mesmo, outro sucesso extraordinário que nem sequer se atreveram a sonhar.

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Capítulo 33

Enquanto Alyss descansava em sua barraca, o general Doppelgänger convocou uma reunião para planejar as táticas. Jacob Noncelo, o cavalheiro branco, o Valete de Ouros e Somber Logan se juntaram na sala de guerra dos alysianos, que mais que uma sala era uma clareira situada no mais denso do quartel geral do bosque, mobiliado com uma Mesa Aérea com tabuleiro de cristal e cadeiras combinando, assim como com quatro lousas de pedras semipreciosas Borrafácil® que faziam, às vezes de paredes as quais riscavam, discutindo e organizando todas as campanhas militares dos alysianos dos últimos sete anos.

—Mas ela pode nos dirigir? —perguntou o general Doppelgänger.

—Tem que fazê-lo — respondeu Somber.

—Que loucura! — estalou o Valete de Ouros, mas, ao ver o olhar inexpressivo de Somber, acrescentou: — Quer dizer... que loucura, com o devido respeito, senhor.

—Não cabe dúvida de que lhe faz falta todo o treinamento e a instrução que possamos lhe dar no pouco tempo de que dispomos — asseverou Jacob Noncelo.

—Eu só vejo uma jovenzinha que não está preparada para fazer aparecer nem uma gelatina com a imaginação, e muito menos lutar contra Redd pelo controle do reino — disse o Valete de Ouros.

Os generais assentiram com a cabeça, pensativos.

—Cavalheiro, você o que acha?

—É a Princesa. Corresponde-lhe o primeiro posto na linha de sucessão. Se estiver disposta a nos comandar...

—Se está capacitada para isso, quererá dizer — resmungou o Valete.

Dodge, quando assistia a aquelas reuniões, estava acostumado a guardar silêncio e escutar as propostas estratégicas, as discrepâncias em respeito ao protocolo e as interpretações dos informes de inteligência com exasperação e raiva contidas: eles eram os autoproclamados defensores do reino; teriam que estar enfrentando a Redd em batalha, não falando disso.

—Pergunto-me — disse, sem fixar a vista em um ponto concreto, e o mero feito de que tomasse a palavra impôs um silêncio repentino entre os outros — como se inteirou Redd de onde se encontrava Alyss. —Cravou o olhar no Valete de Ouros.

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—Está me acusando de algo?

—Suponhamos que o estou fazendo.

—Cavalheiros! —repreendeu-os o general.

—Então não me fará falta supor que é um panaca — espetou o Valete de Ouros —, porque terei a certeza de que o é.

Dodge ficou de pé, levando a mão ao punho da espada.

—Basta termos que lutar contra Redd — se interpôs Jacob Noncelo — Não melhorarão nossas possibilidades de triunfar se brigamos entre nós.

O Valete de Ouros deixou escapar uma risadinha petulante e desdenhosa.

—Cavalheiros, eu não tenho o menor desejo de brigar. Respeito profundamente os êxitos do senhor Anders no campo de batalha, mas o homem não sabe nada de política. Estou seguro de que vocês convirão comigo em que é muito propenso a usar a espada quando conviria mais que empregasse a língua.

— E você é muito propenso a empoeirar essa peruca em lugar de combater ao nosso lado quando precisa.

O Valete fez um gesto displicente com a mão.

—Que o senhor Anders acredite o que quiser. O único que me preocupa é Alyss. Não me cabe dúvida de que é nossa Princesa perdida, mas duvido que esteja dotada mental ou fisicamente para dirigir um ataque contra Redd.

—Levará tempo — conveio Jacob.

—E terá que percorrer o labirinto Especular — adicionou Somber.

—Sim, isso também — assentiu Jacob.

O Valete de Ouros se deu um tapa na frente, incrédulo.

—Essa velha farsa? Demonstrou-se que o labirinto Especular não servia para nada faz já tempo. A própria Redd nunca percorreu nenhum labirinto.

—Razão pela qual é possível derrotá-la — assinalou Jacob.

—General, peço-lhe isso encarecidamente... vamos acaeitar participar da cúpula e acabemos com esta loucura antes de que chegue muito longe. Uma oportunidade como a que nos oferece Redd não voltará a apresentar-se.

—Nenhuma rainha pode desenvolver ao máximo sua força nem seu poder sem passar pelo labirinto — disse Jacob.

O Valete de Ouros perdeu a paciência que restava.

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—Bem, estupendo, corramos todos ao labirinto! Depressa, vamos ao muito importante labirinto Especular enquanto nossa sobrevivência está em jogo!

—Não podemos simplesmente «ir correndo», como você diz —particularizou Jacob Noncelo — Somente as lagartas conhecem a convocação do labirinto. Alyss deve entrevistar-se com as lagartas.

—Mas se não têm saído do vale dos Cogumelos desde que Redd usurpou a coroa — repôs o cavalheiro branco.

—Então ela terá que deslocar-se até lá.

—Precisará de uma escolta militar — disse Dodge.

O Valete de Ouros puxou a peruca até cobrir o rosto e falou através de seus espessos e empoeirados cachos. Embora amortecida, a voz resultava audível.

—Se querem obrigá-la a cercar uma luta para a qual não está preparada, só fica desejar que o espírito da Issa guarde a todo aquele que caia sob seu cuidado. Farão-os partir para sua morte.

—E por que está tão ansioso por nos convencer de que pactuemos com Redd, digo eu?

Era Dodge quem tinha exposto a pergunta. Mas o Valete se limitou a afundar mais o rosto em sua peruca e soltou um grunhido.

—Jacob —disse o general —, não deveria estar no caminho de volta ao monte Solitário se por acaso Redd começa a suspeitar algo?

—Não vou voltar. O Gato me viu com Alyss. Agora meu posto é aqui, a seu lado.

Embora teria sido útil manter um espião na corte de Redd, o general compreendeu suas razões.

—Bem, seja como for, alegramo-nos de contar plenamente contigo.

As orelhas de Jacob se moveram, e uns instantes depois, todos o ouviram: alguém se aproximava com passo veloz. Somber se levantou, com a mão na asa da cartola, e Dodge ficou em pé de um salto, preparado para brigar. Mas não era mais que o miliciano torre, que vinha maltratado e machucado de sua escaramuça com o Gato no bosque Sussurrante.

—Você conseguiu chegar até aqui — disse, sonrindo ao Dodge.

—Você o conseguiste. Vamos procurar a cirurgiã.

A torre lhe tirou a mão que lhe tinha posado no ombro.

—Estou bem, só tenho feridas superficiais. Mas perdemos quatro quintas partes de nossos homens. Nem sequer conseguimos arrebatar uma só vida ao Gato. Mesmo assim, a Princesa está a salvo.

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Dodge assentiu com a cabeça.

—Já é algo. — A torre se sentou trabalhosamente em uma cadeira livre — Bom, o que perdi?

— Pois aqui a maioria acredita que Alyss deve percorrer o labirinto Especular para poder enfrentar a Redd com êxito — explicou o general Doppelgänger — Entretanto, eu ainda não expressei minha opinião.

O Valete de Ouros jogou uma olhada desde detrás de sua peruca, esperançoso.

— Acredito que deveríamos dar a Alyss a oportunidade de entrevistar-se com as lagartas no vale dos Cogumelos — disse o general Doppelgänger — Deixemos que ponha a prova suas capacidades com o labirinto.

—Nãaoo — gemeu o Valete e voltou a esconder o rosto atrás da peruca.

—Mas enquanto isso... — o general arrancou a peruca ao Valete de Ouros — deve informar a Redd de que assistiremos encantados a sua cúpula, se ainda está disposta a celebrá-la apesar da volta de Alyss. — voltou-se para outros e adicionou: — Nossa responsabilidade para com a causa nos exige que tenhamos planos alternativos se por acaso a Princesa fracassar.

—Não fracassará —asseverou Dodge — Eu não permitirei isso.

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Capítulo 34

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A Lua de Redd tinha saído. Sua luz sanguínea ardia sobre o deserto Damero através de um céu coalhado de nuvens, e as chaminés da fábrica onde se produziam as máquinas de guerra de Redd expeliam continuamente baforadas de vapores tóxicos.

O Gato avançava temeroso pelos passadiços da fortaleza do monte Solitário, com uma inquietação que ficou eclipsada pelo aspecto ameaçador do céu sobre o tórrido deserto, um céu que ele só pôde ver quando pegou o corredor em forma de espiral que conduzia à cúpula de observação, onde Redd aguardava a que lhe apresentasse provas de que sua sobrinha já não se contava entre os vivos.

Não era uma entrevista que o Gato estivesse ansioso por manter. Entrou na cúpula de observação e encontrou a sua Rainha de pé, contemplando Marvilópolis através de um painel telescópico, enquanto a morsa mordomo dava brilho aos outros cristais com um trapo.

Redd estava de costas ao Gato. Sem voltar-se, disse:

—Vejo você, mas não vejo a cabeça de minha sobrinha. —E, antes que ele pudesse pronunciar meia palavra, o cetro da Rainha o transpassou.

A morsa deu um pulo e se dirigiu à saída.

—Oh! É melhor que vá ver se...

—Fique onde está! —gritou Redd.

—Sim, ainda resta muito trabalho por fazer aqui, Sua Malignidade Imperial. — E o mordomo morsa retornou para continuar limpando os painéis telescópicos.

O Gato cambaleou sobre suas patas traseiras, com o cetro de Redd cravado. Em teoria era afortunado de ter nascido com nove vidas, mas todas as suas mortes eram dolorosas. Às vezes desejava ter só uma vida.

Caiu ao chão, morto.

Redd ficou a caminhar acima e abaixo junto a seu cadáver. Extraiu seu cetro do corpo. Os olhos do Gato se abriram de repente e a ferida de seu peito se fechou. Levantou-se devagar, se lambendo para limpar o sangue.

—Me explique como fez para fracassar desta vez — exigiu Redd.

—Os alysianos a encontraram primeiro. Voltaram aqui através do lago das Lágrimas e os perseguimos, mas...

—Alyss está no País das Maravilhas? Inaceitável! — gritou Redd, e o Gato sentiu de novo a estocada aguda e mortal de seu cetro.

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O mordomo soltou um soluço e o trapo caiu ao chão. Ao agachar-se para recolhê-lo, deu-se um golpe na cabeça contra um painel telescópico.

Redd tentou localizar Alyss com o olho de sua imaginação, mas não viu mais que uma massa confusa de árvores e folhagem. Era uma espécie de bosque. Mas havia muitos bosques no reino.

— Onde está Jacob Noncelo? Quero que o secretário real se apresente aqui imediatamente.

— Sinto muito, Sua Malignidad Imperial — disse a morsa, esfregando cabeça —, lamento-o muitíssimo, mas Jacob Noncelo não está aqui. Ninguém o viu desde...

— Agora está com os alysianos. — O Gato, que havia voltado em si, jazia no chão, olhando como lhe curava a ferida.

— Já basta de notícias desagradáveis, meu felino amigo — o ameaçou Redd. Agitou o cetro, e uma força invisível levantou o Gato e o colocou de pé — Vêem comigo.

Saiu veloz da sala, com os saltos repicando sobre o chão gentil. O Gato, depois de lançar um olhar à morsa com os olhos entreabertos, seguiu Redd pelo corredor em espiral, atravessou várias salas de uso incerto para o poço de vazio no qual desceram velozmente para as vísceras da fortaleza. Entraram em uma câmara enorme em que um exército de olhos-de-vidro aguardava ordens, formado em colunas. Quando Redd abriu a boca para falar, projetou a imagem holográfica de seu rosto crispado de raiva nas cercas do País das Maravilhas e nos cristais para anúncios pagos pelo governo. Os marvilianos interromperam seus diversos trabalhos e atividades para escutá-la vomitar umas palavras dirigidas aos olhos-de-vidro do monte Solitário.

—Leais súditos, há entre nós uma pretendente ao trono. Faz-se chamar Alyss de Copas. Sua ajuda para capturá-la ou lhe dar morte será obrigatória a partir de agora. Ela se encontra em um de nossos bosques. Encontrem antes que minha Lua se ponha, ou queimarei todos os bosques do País das Maravilhas. Quem conseguir será recompensado com a certeza de ter ganho meu favor eterno.

O rosto de Redd desapareceu dos pôsteres e das cercas da cidade, cedendo o passo aos anúncios habituais do hotel e cassino de Redd, os blocos residenciais de Redd, brigas de galimatazos e recompensas oferecidas a quem denunciasse a algum partidário da Imaginação Branca. Os marvilianos retomaram seus afazeres, embora certamente não faltava quem considerava que valia a pena ganhar o favor eterno de Redd e estava disposto a fazer o que precisasse para encontrar Alyss de Copas.

No monte Solitário, os últimos olhos-de-vidro saíram da fortaleza ao deserto.

Redd se voltou para o Gato, e sua voz retumbou na câmara vazia.

—Diga ao Valete de Ouros que chegou o momento de que demonstre sua lealdade de uma vez por todas.

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Capítulo 35

Na realidade ela não tinha intenção de dormir; só queria ficar sozinha para refletir. «Quanto tempo faz que estive no altar da abadia do Westminster, ao lado de Leopoldo?» Parecia que tinha transcorrido uma eternidade, um espaço terrivelmente comprido de tempo. «O que terá sido dele? E dos Liddell? O que pensarão que me passou? O que estarão fazendo justo neste momento? » Tinha chegado a amá-los, possivelmente do mesmo modo que uma pessoa sequestrada se afeiçoa com seus sequestradores, mas não cabia dúvida de que era amor. Alyss tinha compreendido isso.

Pensar tanto não solucionava nada, e Alyss respirou aliviada quando Jacob entrou na barraca com algumas peças de roupa cuidadosamente dobradas.

—Ponha isto —disse ele — Te espero lá fora.

Era um uniforme alysiano, de corte rudimentar como tudo o que os alysianos podiam fazer fora das zonas controladas por Redd. A camisa e as calças não eram da mesma cor. A malha de nanofibras era grosseira comparada com os que estavam acostumados a fabricar no País das Maravilhas, mas mesmo assim, ao esfregar a prega da camisa entre os dedos indicadores e polegar, Alyss comprovou que era mais suave e fino que a melhor seda da Inglaterra. Sim, eram objetos comuns, tão comuns como os que vestiam os pobres sob o reinado de Genevieve, com uma diferença: levavam a insígnia desbotada de um coração branco no extremo da manga direita.

Alyss se despojou de seu vestido de noiva e, apesas dos rasgões que tinha, estendeu-o com cuidado a cama de armar do general. Embainhou-se no uniforme alysiano e ficou com vontade de saber que aspecto lhe dava essa roupa tão pouco familiar para ela, mas não havia espelhos na barraca.

«Não resta outro remédio. Devo confrontar o futuro, sem importar o que me proporcione. »

Depois de tomar fôlego e erguer as costas com decisão, saiu da tenda. Jacob foi a seu encontro com um sorriso radiante e a segurou pelas mãos. Olhou-a de cima abaixo, agradado pelo que via.

— Mesmo que tivesse que ir vestida com a manta de sela de um maspíritu, Alyss, teria um porte majestoso.

—Obrigado, Jacob, mas...

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—Ah, não, nada de, mas. Acaba de voltar para nosso lado, e é muito cedo para expressar as dúvidas que certamente lhe assaltaram com essa palavra tão covarde, «mas».

Alyss lhe dedicou um sorriso, mais um movimento mecânico dos músculos faciais que um reflexo de seus sentimentos.

—Alegra-me ver que segue sendo o mesmo Jacob Noncelo — comentou — Depois de nosso recente enfrentamento com o Gato, pensava que talvez tinha se convertido em um herói de ação e que já não lhe interessavam as sutilezas do intelecto.

—Um herói de ação, eu? E que mais? Prefiro deixar a ação a outros. Claro que sou o Jacob Noncelo de sempre, Alyss; sou o mesmo precisamente porque sou velho. Fui o preceptor da avó de sua bisavó, e...

—Sim, recordo-o.

—Fui testemunha de tantos conflitos políticos que bastariam para encher várias cabeças. Nada disso me tem feito mudar. Reconheço que este assunto de Redd é o pior que vivi, mas sou muito velho para mudar. Mas não falemos mais de mim, por muito fascinante que seja como tema de conversação. Vamos.

Guiou-a até uma zona de descanso em que havia uns contêineres de munições gastos e vazios que faziam as vezes de assentos. Jacob se sentou em um que tinha servido de embalagem para esferas generadoras saídas da fábrica de Redd, com sua toga, folgada e marrom, formando dobras em torno dele. Parecia um vulcão diminuto com cabeça branca. Serviu-lhes o chá uma jovem que usava um chapéu de feltro e um sobretudo de pele rachada, tão inibida pela presença de Alyss que nem sequer se atrevia a elevar a vista para olhar à Princesa.

— Que tímida é — observou Alyss uma vez que a garota partiu a toda pressa.

—Geralmente, não. Pôs-se assim por sua causa. Nasceu aqui, neste acampamento. Sabe como se fazem chamar todas estas pessoas?

Alyss negou com a cabeça. Como ia ou seja o?

—Alysianos — disse Jacob.

O coração de Alyss se acelerou ligeiramente. «Alysianos? Não, isso é muita responsabilidade para mim. »

—Não acredito estar preparada para tudo isto — confessou.

Jacob a observou por uns instantes. Sem deixar de mover as orelhas em diferentes direções a cada som que percebia, contou-lhe as mudanças que tinha sofrido o País das Maravilhas nos últimos treze anos, e embora sua sabedoria abrangesse muitos temas, havia coisas que nem sequer ele entendia e que em sua maior parte concerniam a ela. E então lhe chegou o turno de falar, de tentar explicar o que lhe parecia muito inexplicável.

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—Tive que dar as costas a todas as minhas lembranças do País das Maravilhas —disse — Tive que fechar minha mente a essas lembranças para sobreviver em um mundo que não acreditava nelas. Resisti durante muito tempo, mas ao final foi...

— De modo que por isso ia se casar?

Alyss assentiu com a cabeça.

— Sempre pertencerei em parte a esse outro mundo.

— Bem falado. É impossível passar tanto tempo em um lugar e não levar dentro um pouquinho dele. Mas este é seu verdadeiro lar, Alyss. Este é o mundo ao qual pertence.

—Ah, sim? — jogou uma olhada ao redor. «Como podem chamar-se alysianos quando eu mesma mal me sinto alysiana? Isto é muito. Exigem muito» — Tenho a sensação de que já não pertenço a nenhum lugar. E quanto à família que deixei ali? E quanto ao Leopoldo, o homem com quem ia casar-me?

—Seremos generosos com as pessoas que lhe cuidaram como a uma filha, se podemos nos permitir esse luxo no futuro. No que se refere ao tal Leopoldo, temos coisas mais importantes de que nos preocupar que do amor de um homem, já seja deste mundo ou de qualquer outro.

Alguém os observava: Alyss surpreendeu Dodge olhando-os detrás de uma barraca. Elevou a mão para saudá-lo, mas ele se agachou para se perder de vista e já não voltou a aparecer.

—Você tem uma imaginação muito poderosa, Alyss — disse Jacob Noncelo — Os alysianos precisarão dela, e o destino do reino depende dela. No pouco tempo de que dispomos, meu dever é te instruir em seus usos e limitações, de acordo com os princípios da Imaginação Branca.

—Abandonou-me.

As orelhas de Jacob se frisaram em sinal de perplexidade.

—A imaginação não te abandonou, Alyss, porque não tem nenhum lugar aonde ir. Leva-a em seu interior, você goste ou não. Já o verá. Nasceu para ser uma rainha guerreira, como sua mãe. — Mas neste ponto o sábio preceptor fez uma pausa, ao recordar Alyss sentada ao contrario no maspíritu depois de emergir do lago das Lágrimas. Estava muito desorientada nesse momento, é obvio. Sim, mais valia pensar positivamente. — Sim, lutará cotovelo a cotovelo com seu exército — prosseguiu —, e enfrentará Redd porque só você tem a força e o poder para vencê-la.

—Uma rainha guerreira? — Alyss soltou uma gargalhada — O que eu sei de táticas de guerra ou de armas? Nunca empunhei uma espada na vida exceto quando era menina e brincava com o Dodge.

—Se conseguir percorrer o labirinto Especular, evoluirá até ser uma rainha guerreira. O labirinto fará sair o que leva aí dentro.

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Alyss sacudiu a cabeça com ceticismo.

—Nem sequer eu sei de que maneira atua o labirinto Especular — continuou Jacob — O In Regnum Speramus antes dizia: «Só aquela para quem o labirinto Especular está destinado pode entrar. » Ardo em desejos de que chegue o dia em que possa me contar o que há dentro.

—Não sei Jacob. Simplesmente, não sei.

Não cabia a possibilidade de que ela já não fosse à herdeira legítima da coroa? «Fui princesa em outro tempo, mas agora a continuidade se quebrou. » Seus anos e experiências nesse outro mundo tinham aberto um abismo entre a menina que ela tinha sido e a mulher em que supostamente se transformou. «Redd acabou com duas gerações da realeza de Copas nessa tarde espantosa. »

— Me fale de Dodge — pediu ao Jacob.

O preceptor guardou silêncio durante um momento comprido.

— Nenhum de nós voltou a ser o mesmo depois da volta de Redd. Alguns mudamos mais que os outros. No referente ao homem em que se converteu Dodge Anders, acredito que o melhor será que o descubra por si mesma. — Jacob se levantou de um salto — Bem, logo empreenderemos uma viagem ao vale dos Cogumelos, onde as lagartas lhe informarão. Acabe o chá e ponha em ordem seus pensamentos, pois começaremos a aula que devia ter começado faz treze anos.

Alyss seguiu Jacob com o olhar enquanto se afastava a toda pressa. Sem ter tomado um só sorvo de seu chá, e sem pensar no que fazia ou aonde ia, ficou de pé e cruzou o acampamento. Os alysianos que estavam reunidos frente à entrada de suas barracas, ou cozinhando em fogueiras acesas em fossas revestidas de pedra semipreciosa, inclinavam-se ante ela ao vê-la passar. Uns gritavam: «Com Alyss venceremos!»; outros desejavam: «Que a luz da Imaginação Branca volte a brilhar sobre o País das Maravilhas, Princesa. » Ela tentava mostrar-se o mais esperançosa possível dadas às circunstâncias.

«Alysianos. Fazem-se chamar alysianos. E agora olhe aonde vim parar. »

Encontrava-se diante de uma barraca; não uma barraca qualquer, mas sim a dele. Seus pés a tinham levado até ali de maneira quase inconsciente.

«Deveria chamar, ou...? »

Mas não foi necessario. Ali estava ele, saindo da barraca.

—Olá — disse ela.

Dodge ficou tenso, estufou o peito e endireitou as costas.

—Princesa.

Ela notou que estava surpreso, que o tinha pego despreparado.

—Queria algo? —perguntou ela — Quero dizer antes, quando...

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—Jacob te disse que nós devemos embarcar em uma viagem perigosa ao vale dos Cogumelos?

—Sim. —Tinha pensado, tinha esperado que se tratasse de outra coisa, mas do que, exatamente? — Dodge, realmente acredita que posso dirigir uma batalha contra as forças de Redd?

—Sim, acredito.

—Bom, ao menos um dos dois acredita. Estou segura de que é muito tarde para que o País das Maravilhas esperava de mim, fosse o que fosse. Pediria-te que me levasse para casa, mas já não tenho a menor ideia de qual é minha casa.

De repente se apoderou dela uma tristeza insuportável, e Alyss desejou que alguém, qualquer um, a abraçasse para consolá-la. Entretanto, fazer biquinho só endureceu a atitude de Dodge para ela.

—Há algo que deve ver — disse.

Se o futuro do reino não estivesse em perigo, e se Dodge não estivesse tão frio e distante enquanto a guiava ao exterior do quartel general dos alysianos, ela poderia ter se persuadido de que se encaminhavam para uma aventura inócua, como quando viviam em uma época menos complicada.

Capítulo 36

O Valete de Ouros avançava pesadamente pelo bosque Eterno carregado com uma caixa do tamanho e a forma de um cesto.

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—Demonstrar minha lealdade? Acaso não a demonstrei já uma e outra vez? Por acaso não entreguei traidores que ousaram lhe roubar suas armas? Por acaso não a mantive informada das atividades dos alysianos? Oxalá, por uma vez, não se deixasse dominar pelo mau gênio... Uma cúpula; assim é como teria resolvido eu o problema. Fazer os alysianos acreditar que lhes concede a condição de estado, enrolá-los para que se confiem. Eu me casaria com a Princesa sem deixar de guardar lealdade à rainha Redd, de modo que ela controlaria aos alysianos através de mim. Assim é como se dirigem as coisas. Mas aqui todo mundo quer brigar.

Um gatinho da cor do ouro brunido colocou a cabeça pela parte superior da caixa.

—Não, nada disso —disse o Valete ao animal — É melhor que não te veja.

Posou a palma de sua rechonchuda mão sobre a cabeça do gatinho e tentou empurrá-la para o interior da caixa, mas o animal bufou com a boca aberta e o arranhou com um ágil movimento da pata.

—Ai!

O Valete jogou a caixa longe de si e chupou a ferida da mão. As árvores próximas tagarelavam entre si. O Valete espionou a cauda do gatinho, que sobressaía da parte superior da caixa e se movia de um lado a outro, mas o animal não emitia som algum. Essa não era uma situação vantajosa? Tinha a seu principal rival encerrado em uma caixa! Seria-lhe fácil desfazer do gatinho. Sim, sim. Então Redd só teria a ele como conselheiro e ele a convenceria de que pusesse em prática o que ele saberia aproveitar melhor. Mas, e a tarefa que traziam entre mãos, a emboscada? E se Redd estava observando-o bem nesse instante com o olho da imaginação? Não, era melhor que esperasse. Desfazer-se do gatinho era muito arriscado no momento. Mas assim que se apresentasse a oportunidade...

Recolheu a caixa e prosseguiu seu caminho pelo bosque. A cauda do gatinho, que continuava ondulando fora da caixa, roçou-lhe a mão. O Valete se deteve e deu uma olhada ao redor. Onde estava o quartel geral dos alysianos? Sempre lhe custava dar com ele. À esquerda possivelmente? Sim, definitivamente, à esquerda. Não obstante, uns duzentos metros adiante, chegou à conclusão de que o acampamento devia ficar para o outro lado. Mas depois de avançar uns quatrocentos passos na direção oposta não parecia achar-se mais perto. Perdeu-se. O gatinho grunhiu. Mas então o Valete de Ouros avistou um brilho do sol refletido em um fuzil de cristal: dois guardas alysianos patrulhavam o perímetro do quartel geral. Ahá! O Valete sabia que não andava muito fora do caminho. Entretanto, agora que se avizinhava a violência, não convinha mais manter-se a distância?

Aproximou-se dos guardas com cautela, quase tão pálido quanto sua amada peruca.

—Devemos reforçar a segurança agora que Alyss está aqui —disse, uma vez frente a eles — solicitarei que apostem mais sentinelas no perímetro.

—Se acha isso necessário, milord…

—Obviamente, sim.

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—Sim, senhor.

—Está o... guardião do espelho por aqui?

—Neste momento não, senhor.

—Ah, vá. — O Valete apoiou seu peso primeiro em uma perna e logo na outra. Estava suando; sentia um comichão horrível na cabeça — Têm ideia de quando voltará?

—Não, senhor.

—Ah. —Notou que o gatinho se reanimava dentro da caixa, impaciente — Isto... Trago algo para ele.

Os guardas permaneceram calados.

—Não deveria um de vocês dar uma olhada?

Se o guarda que se ofereceu voluntário tivesse tido tempo, possivelmente se teria precavido de que o Valete de Ouros tremia. Entretanto, logo que o pobre desventurado aproximou o rosto da abertura da caixa para ver o que continha, os dois braços viris do Gato saíram dela. O Valete cambaleou para trás e deixou cair à caixa. Mas antes que esta tocasse o chão, enquanto o guarda gritava, o Gato completou sua transformação no assassino e eliminou a ambos os guardas. Uma onda de alerta percorreu as árvores e arbustos do bosque.

O Gato se voltou para o Valete, com as garras gotejando sangue.

—Chama o Baralho.

O Valete levou torpemente a mão a um bolso. Tirou uma bola de cristal revestido de mármore, a aproximou dos lábios e soprou nela. Nada. O som que emitia só era audível para o Baralho. Ouviu os estalos, semelhantes aos de bulbos, que produziam suas extremidades ao caminhar. Eram três baralhos no total, 156 soldados.

—Isto... Acredito que deveria esperar aqui —balbuciou o Valete de Ouros — Não quero que meus entendimentos com Redd saiam à luz, coisa que ocorrerá se o general Doppelgänger ou algum dos outros me vêem.

O Gato sabia que mentia, mas era melhor assim; o covarde Valete só seria um estorvo para ele.

—Faz o que quiser — espetou, e, acompanhado pelos números altos dos naipes do Baralho, irrompeu no quartel geral dos alysianos enquanto os números baixos começavam a estilhaçar os espelhos do perímetro.

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Capítulo 37

Dodge não tinha dito que se afastariam do bosque. Deviam ter informado a alguém. «Ao Jacob, ao general, ao Somber... Tinhamos que lhes ter avisado de que íamos. Este Dodge é

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tão diferente do que eu conhecia... » O Dodge Anders de dez anos se gabava de ater-se rigorosamente aos procedimentos militares e dava muita importância à comunicação entre os integrantes de uma unidade de combate. Entretanto, havia muitas diferenças entre aquele homem e o menino com quem Alyss tinha tratado.

Ele avançava diante dela a passo ligeiro, por isso Alyss frequentemente tinha que trotar a fim de não perdê-lo de vista. De vez em quando, ele se voltava para assegurar-se de que ela ainda o seguia, mas mesmo assim poderia ter sido mais gentil. «Não lhe custaria nada me ter em conta e diminuir um pouco o ritmo. »

Chegaram aos subúrbios de uma cidade desmantelada, quão mesma ela tinha cruzado fazia umas horas. «Realmente será esta a mesma cidade resplandecente em que vivi uma vez? Mal posso acreditar nisso. » As casas de penhor, os controles militares, o murmúrio constante de vozes gravadas que repetiam: «Ou com Redd ou à fossa» e «O caminho de Redd é o único caminho. » A miríade de anúncios luminosos de produtos e lugares totalmente desconhecidos para Alyss. O único edifício que reconheceu foi o teatro Aplu, onde tinha assistido a funções de “Os Joviais Farsantes”, uma companhia teatral que agradava muito a seus pais. Tinha as portas e janelas cobertas com tábuas e começava a cair aos pedaços. Os poucos marvilianos que ela via, deslizavam pela cidade como sombras temerosas e envergonhadas.

«Já era hora de que me tratasse com um pouco de consideração. »

Dodge a esperava, mais adiante. Mas quando ela chegou a seu lado, descobriu que não se deteve por cortesia.

— Essa é sua casa —assinalou Dodge — Redd a deixou em pé para mostrar até que ponto decaíram os Copas e a Imaginação Branca.

Ela ficou tonta ao contemplar as ruínas do palácio de Copas, e as lembranças lhe amontoaram na cabeça. «Quando meu pai e eu jogávamos esconde estonde pelos corredores, e sempre me fazia rir para me encontrar. "Com as letras de meu nome, se as trocar de ordem, podem-se escrever coisas como 'ao-non', 'onnal ou 'lonan'", dizia. "Mas isso não são palavras", eu replicava, e por ouvir minha voz, ele descobria onde estava eu, e depois de me encontrar, respondia: "Mas, Alyss, eu não disse que eram palavras de verdade." E havia todo tipo de curvas onde me esconder para espiar a ele e a mamãe, e eu o via dando a ela uma massagem na nuca enquanto ela estava no trono, elevando o rosto para ele para beijá-lo.»

—Podemos entrar?

—Sim, mas devemos ir com cuidado.

Os terrenos do palácio pareciam desertos; não havia saqueadores fugindo com taças e talheres nas mãos, pois não restava nada para roubar. Mesmo assim, Dodge desembainhou a espada e guiou Alyss sigilosamente para a entrada do palácio, lhe falando em sussurros.

—Às vezes os pobres e os desesperados se instalam aqui durante um tempo até morrerem por seu vício aos estimulantes da imaginação ou Redd os envia às minas de Cristal.

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Ao cruzar a desconjuntada grade principal, o coração de Dodge pulsava tão rapidamente como se estivesse em batalha. Não havia voltado a pôr um pé no palácio desde o dia que enterrou seu pai com a ajuda do miliciano torre. Não tinha querido voltar, pois temia os sentimentos que o lugar pudesse despertar nele. Mantinha o rosto voltado de maneira que Alyss não o visse, lutando contra emoções às quais já não estava acostumado.

Dentro, as paredes das outrora suntuosas salas estavam borradas com obscenidades, e o pouco restava do mobiliário e objetos decorativos estavam empilhados em montões carbonizados, pois era evidente que o tinham utilizado como combustível para fogueiras.

—Está vazio porque as pessoas roubaram as coisas —explicou Dodge —, justo depois de... já sabe, desse dia.

Alyss estendeu o braço e deslizou a mão pelas frias paredes de pedra.

—Não está vazio — repôs. Ao contrário. O lugar estava cheio de passado.

Em uma curva de um dos corredores: «Aqui é onde imaginei o chão coberto de bagos de escarujo21, e a morsa escorregou nelas, e deixou cair à bandeja de chá e o mordomo esmagou os bagos, caiu em cima deles e acabou tudo manchado e de cor escarujo. » No hall de sala do trono de sua mãe: «Aqui eu cobrava pedágio aos criados, e não os deixava passar a menos que me dessem gelatinas ou tortinhas. »

Havia esqueletos de naipes soldado e de milicianos do Xadrez dispersados pelo corredor poeirento que conduzia a sala de jantar sul, onde havia muitos mais. Alyss não viu restos de fogueiras aí, nem montões de móveis quebrados e chamuscados. Aparentemente mesmo os sem teto se mantiveram afastados dali. O ar cheirava como se nenhum ser vivo o tivesse respirado há mais de uma década. As paredes apresentavam vários buracos produzidos pelo ataque de Redd, mas não havia armas à vista. Provavelmente os saqueadores as tinham levado. Lágrimas silenciosas escorregaram pelas bochechas de Alyss. Ela se voltou para ver se Dodge chorava, afligido pelo peso daquela cena desoladora, mas mal distinguia suas feições na penumbra da sala.

—Seu pai...? — sussurrou ela.

—Está... enterrado no jardim. —A voz do Dodge soou afogada. Respirava fundo e com regularidade para tentar conservar a calma. Sua dor cedeu o passo à raiva. Entraram-lhe vontades de dar um murro a algo. Queria infligir a alguém a dor e a sensação de perda que o assediavam naquele lugar. «Alguém?» Sabia exatamente a quem faria sofrer: ao Gato.

Alyss se agachou para recolher do chão um osso triangular, carcomido e banguela. Pendurava de uma corrente.

—Lembra-se disto?

Dodge não estava certo. Não podia tratar-se de...

—Você me deu de presente isso. Prometi-te que o guardaria para sempre.

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Era o dente de galimatazo, que lhe tinha dado como presente de aniversário. Alyss abriu o fecho do colar e o colocou em torno do pescoço, de forma que o dente pendurasse sob sua garganta.

—Nunca te agradeci por me salvar a vida, assim... obrigado.

Ele fez uma careta, como se esta expressão de agradecimento lhe doesse fisicamente.

—Dodge, sei que é um pouco violento nos haver reencontrado depois de tanto tempo. Aconteceram tantas coisas... Nós dois nos transformamos em adultos muito diferentes das pessoas que acreditávamos que chegaríamos a ser. Mesmo assim, esperava um recebimento mais amistoso por sua parte.

—Sinto te desiludir.

—Não é isso o que quero dizer. É só que... fomos amigos, Dodge. Fomos mais que amigos. Não foi por isso que pediu que lhe deixassem ir me buscar no outro mundo?

—Para derrotar a Redd, para enfrentar ao Gato, faria qualquer coisa.

Aborecida, Alyss fez estalar a língua.

—Por isso dançou comigo no baile de mascaras? Também foi para derrotar Redd? Fez isso pelo Gato?

Dodge não respondeu.

Alyss lhe deu as costas e examinou seu próprio reflexo em um caco de vidro, o único fragmento que restava dentro do marco de um grande espelho decorativo que antes se pendurava nesta parede.

—Se já não significo nada para você, por que me trouxe aqui?

—Nunca disse que não significa nada para mim. — Mas Dodge não se atreveu a continuar; não confiava em si mesmo, de modo que voltou a começar: — Trouxe você aqui para lembrar a seu coração o que Redd fez, para avivar seu ódio. Você será o instrumento de minha vingança. Isso é o que significa para mim. Isso é tudo o que deve significar.

— Comovedor. — Seus dedos brincaram com a presa de galimatazo que levava no pescoço. «tire isso. Tire isso e mostre que, se não significa nada para ele, também não significa nada para... »

De repente, sua imagem refletida no espelho formou ondas e se transformou na imagem de Redd.

—Que alegria que tenham vindo nos ver. E agora, que lhes cortem a cabeça!

Dodge agarrou a mão de Alyss e puxou-a para afastá-la do espelho, que explodiu em pedaços afiados e cortantes; adagas diminutas lançadas contra a Princesa. O chão tremeu sob seus pés, as paredes estremeceram, as grosas vigas do teto rangeram e racharam, e começou a cair pó de concreto junto com pedras grandes como punhos. Dodge e Alyss arrancaram a

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correr, cobrindo a cabeça com um braço para proteger-se da chuva de entulhos. Saltavam sobre partes de paredes caidas e se esquivavam das vigas que lhes vinham em cima enquanto o velho palácio afundava em torno deles e pedecinhos de rocha saíam disparados para eles e os alcançavam na parte posterior das pernas. Com muita dificuldade conseguiram chegar ao exterior para ficar a salvo.

Alyss se inclinou, tossindo e limpando a boca a causa do pó. Onde fazia só um momento se elevava o palácio de Copa, agora não havia mais que um montão de escombros.

—Destruiu tudo — murmurou Dodge.

Resignação pelo passado, rebeldia contra o presente e esperança pelo futuro; os três sentimentos invadiram Alyss de uma só vez.

—Não tudo — disse.

Não enquanto albergasse esperança.

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Capítulo 38

Algo ia mal no bosque Eterno. As árvores e os lucirgueros gritavam, tagarelavam e armavam um barulho considerável. Ao cabo de um momento, o motivo se fez patente: inumeráveis árvores e arbustos tinham sido cortados, arrancados, amassados, partidos pela metade ou arrancados pela raiz. As flores jaziam pisoteadas, emudecidas. A pouca folhagem que seguia com vida lhes advertia: «Não passem! Não passem!» Um som inusitado percorria o bosque, uns passos rítmicos, mecânicos: os de filas intermináveis de olhos-de-vidro que partiam para o quartel geral dos alysianos. Os cadáveres dos guardas alysianos jaziam dispersos pelo chão, e os espelhos que tinham servido para camuflar o acampamento estavam quebrados; uns se sustentavam em pé, embora tortos e rachados; outros estavam completamente destroçados.

—Jacob e os outros — ofegou Alyss.

Deu um passo à frente, mas Dodge a agarrou pelo braço para detê-la.

—Não devemos nos aproximar. É muito perigoso.

Já estavam muito perto. Um vitróculo saiu de detrás de um matagal situado a pouca distância deles, com umas navalhas mortíferas que lhe sobressaíam do dorso das mãos, e se lançou para Alyss. Rapidamente, Dodge a derrubou . «Ai! Mas o que está...? » O vitróculo, depois de errar o golpe, espatifou-se de cabeça contra uma árvore seca. «Salvou-me a vida outra vez. » Entretanto, outros como ele, vinham em cima. Dodge lutava com uma espada em cada mão. Alyss centrou sua energia em imaginar aos olhos-de-vidro... «Como? Mortos? Inativados para sempre? Podiam ser mortos, como os marvilianos comuns? Concentre-se, concentre-se. » Desviou seus esforços para o Dodge, imaginou-o mais forte e ágil, mas os olhos-de-vidro estavam desenhados para esse tipo de combate. Dodge se viu avassalado; logo não seria capaz de defender a si mesmo, e menos ainda de defendê-la.

«Uma arma. Preciso de uma arma. » Alyss se arrastou até onde o vitróculo jazia inerte, em meio de várias partes de casca de árvore. «Deve haver uma arma em alguma parte. » Agarrou o objeto em forma de abacate que se pendurava do cinturão do vitróculo, uma granada de serpentes, uma das invenções mais recentes de Redd.

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Alyss estava bastante familiarizada com armas de guerra para compreender que o que tinha na mão era uma granada. Puxou a argola da parte superior e jogou o projétil contra os olhos-de-vidro. A granada se abriu de repente e dela saíram despedidos vários objetos enrolados como cobras, que serpenteavam e estalavam no ar, carregados de eletricidade. Dodge se atirou ao chão e rodou para afastar-se.

Suaap!

Uma das espirais fustigou a um vitróculo na bochecha, provocando um curto-circuito.

Suaap! Suaap, suaap! Suaap!

Os olhos-de-vidro caíram, um atrás do outro. Dodge e Alyss já estavam de pé e correndo quando se esgotou a energia das espirais e estas ficaram imóveis, chispando no chão do bosque até apagar-se. Outro grupo de olhos-de-vidro se separou da coluna em que marchava e se lançou em sua perseguição, pulando troncos em chamas e ramos quebardos e caidos.

O estrondo de suas pegadas, cada vez mais próximo...

Dodge elevou uma espada, dispôs-se a atirar uma estocada com toda a força que ficava quando, da folhagem que os rodeava, surgiram...

Não mais olhos-de-vidro, mas sim os generais Doppel e Gänger, montados sobre maspíritus. Dodge tentou frear o golpe. Muito tarde. O general Doppel levantou a espada instintivamente para defender-se, e seu aço se chocou com o de Dodge.

—Dodge! —gritou o general Doppel.

—Alyss! —exclamou o general Gänger.

O cavalheiro branco, a torre e um pelotão de peões chegaram correndo atrás deles.

—Rastreamos o perímetro com a esperança de encontrar à Princesa — explicou a torre para Dodge—, embora temíamos o pior.

Os olhos-de-vidro se juntaram, e imediatamente Dodge e os milicianos se enroscaram na batalha. Os generais se postaram nos lados de Alyss, a fim de protegê-la momentaneamente com seus maspíritus.

«Concentre-se, Alyss. Imagine. »

Com um alarido de guerra que soou como um pedaço de ferro ao rachar-se, um vitróculo apartou a golpes os peões e se dirigiu a toda velocidade para ela, mas o general Doppel saltou de sua montaria para a do general Gänger e disparou uma aranha obus no atacante. Ao impactar contra ele, a aranha descomunal arrancou um pedaço de carne sintética e pálida do sicário, e ficou a mastigar seus circuitos vitais. Assustado, o maspíritu empinou e se afastou velozmente. Dodge, encetado em combate com um vitróculo, deu-lhe um pontapé no meio das pernas. O vitróculo baixou a vista, desconcertado, pois não era uma zona especialmente sensível de seu corpo. Seu desconcerto durou muito pouco, mas deu a Dodge

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tempo suficiente para estender o braço e agarrar as rédeas do maspíritu desbocado quando passava galopando por aí. O animal continuou com sua carreira e o arrastou a seu lado até que Dodge conseguiu encarapitar-se sobre seu lombo.

—Princesa, pegue isto!

Alyss se voltou, apanhou no ar a arma que o cavalheiro branco lhe tinha arrojado: a Mão de Tyman, cinco folhas de espada curtas unidas a um punho. Elevou-a ao ver que um vitróculo arremetia contra ela. Uma das lâminas se afundou na concha ocular esquerda do sicário e ficou cravada ali. O vitróculo desabou e, enquanto o miliciano torre o rematava, Dodge se aproximou rapidamente, montado sobre o maspíritu, elevou Alyss e a sentou detrás de si, na sela.

—Vai! —gritou a torre — Nós rechaçaremos seu ataque, outra vez!

Inclusive no meio do horror da batalha, ao Dodge lhe escapou um sorriso. «Outra vez», uma brincadeira privada entre soldados aguerridos.

Os generais Doppel e Gänger se fundiram enquanto esporeavam aos seus arreios para que deixasse atrás a escaramuça. O maspíritu que levava Dodge e Alyss galopava a seu lado.

—Somber e Jacob saíram antes para limpar o portal de emergência — resfolegou o general Doppelgänger.

Entretanto, por mais depressa que fugissem, sua sensação de segurança duraria tão pouco quanto uma volta de fumaça na névoa. Já voltavam a ter olhos-de-vidro lhes pisando os calcanhares.

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Capítulo 39

Teoricamente, os viajantes pouco experientes do Contínuo podiam descobrir o portal de emergência dos rebeldes, ao ver-se acidentalmente projetados ao exterior através dele. Não obstante, o portal estava conectado ao Contínuo por meio de uma série tão insólita de vias de cristal22 que nenhum viajante que não fosse alysiano tinha estabelecido sua posição ou estava informado sequer de sua existência.

Somber Logan e Jacob Noncelo correram a capinar a entrada do portal, um espelho grosso e de aspecto antigo com borda chanfrada que estava instalado em uma zona do bosque pouco frequentada pelos marvilianos. Somber afundou o rosto no cristal, jogou uma olhada ao interior do Contínuo e retirou a cabeça ao mesmo tempo em que o general Doppelgänger, Dodge e Alyss chegavam galopando em seus maspíritus.

—O campo está livre — lhes informou Somber.

—Eu irei primeiro — disse Dodge e, sem uma palavra mais, mergulhou no espelho.

—Terá que se apressar — apressou Jacob, com as orelhas trêmulas — Ouço o aproximar de nossos inimigos.

O preceptor guiou Alyss através da superfície de cristal líquido e ao interior do Contínuo. O general Doppelgänger seguiu-os, e Somber fechava a marcha. Era só a segunda vez que Alyss entrava no Contínuo. Por um momento, com os olhos arregalados e encantada pela beleza das superfícies luminosas que a rodeavam, navegou pelo Contínuo com tanta facilidade como qualquer um, avançando como uma flecha ao longo daquela corda de salvamento caleidoscópica no mesmo ritmo que Dodge e outros. Entretanto, assim que lembrou que só tinha estado uma vez ali antes... Uf!... Perdeu o controle, flutuou para cima e para trás e se chocou com o general Doppelgänger.

—Focalize sua vontade e se concentre em pensamentos pesados — lhe gritou o general —, ou sairá jogada por algum espelho!

«Pensamentos pesados? O que são os...? »

O general a soltou.

«Oh, Oh. »

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Alyss perdeu velocidade de novo, e teria se visto sugada para o exterior do Contínuo se Somber não a tivesse apanhado no ar. Puxando a Princesa, o homem da Chapelaria dirigiu seu corpo para o Jacob.

—Segure-se a ele – indicou a Alyss.

Ela obedeceu e viajou através do Contínuo a cavalinho.

— Olhos-de-vidro à vista!

Sem reduzir a marcha, Somber agitou sua cartola, que se transformou em letais lâminas giratórias, e lançou a arma contra os olhos-de-vidro que os seguiam como cometas. As lâminas ricochetearam entre eles, ferindo um após outro, antes de voltar para a mão de Somber.

Mesmo assim, os outros olhos-de-vidro começavam a ganhar terreno.

Dispararam esferas geradoras. Somber as desviou para outras vias de cristal fazendo girar as lâminas de sua cartola tão depressa que a força do vento que geravam as levou longe. Se estivesse sozinho, teria dado meia volta para atacar aos olhos-de-vidro, mas seu dever lhe exigia que permanecesse junto a Alyss. Teria que combatê-los mais perto dela do que teria querido. Diminuiu a velocidade. As folhas de sabre de seu cinturão se desdobraram de repente e, dando voltas, Somber deixou que os olhos-de-vidro se aproximassem. Cortados e castigados pelos sabres, desorientaram-se. Incapazes de manter o equilíbrio dentro do Contínuo, viram-se arrastados longe da artéria principal e expulsos através de espelhos a lugares desconhecidos.

—Vêm mais! — gritou Dodge.

Desta vez vinham pela frente.

—Afaste-se! — advertiu o general Doppelgänger.

Dodge se impulsionou para a borda do Contínuo, e o general disparou uma aranha obus aos olhos-de-vidro que lhes vinham em cima. Na metade de sua trajetória, o projétil eclodiu, e a aranha que saiu dele imobilizou ao grupo inteiro, agarrando a cada um deles com uma pata pegajosa enquanto os bicava com as pinças que tinha por mandíbulas até deixá-los reduzidos a carcasas sem vida. Fiuuu! Viram-se expelidos do Contínuo.

Dodge se lançou sobre a aranha obus para evitar que atacasse Alyss. O animal se aferrou aos braços e as pernas de Dodge, e embora não estava programada para durar muito — logo se encolheria sobre si mesma e morreria —, dispunha de tempo suficiente para acabar com a vida de Dodge. Abriu as pinças e investiu no abdômen do Dodge.

«Concentre-se, pense, imagine. »

De um nada apareceu uma focinheira: um artefato ferrugento que cobriu as tenazes da aranha de maneira que os extremos bicudos ficaram arredondados.

—Ja! —gritou Alyss, eufórica. Fez aparecer à mordaça de um nada.

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Enlouquecida, a aranha tentou sacudir aquele estranho objeto das mandibulas. Dodge conseguiu liberar um de seus braços e, com um só movimento amplo e circular da espada, cortou-lhe as patas à aranha. Ato seguido, cravou seu aço nos órgãos vitais da besta.

—Viu isso? —exclamou Alyss, a cavalo sobre o Jacob agarrando-se com força a sua toga — Eu imaginei isso!

—Vi-o — disse Jacob Noncelo — Muito impressionante.

Mas mais impressionante ainda teria sido, pensou o preceptor, se Alyss tivesse imaginado um final feliz para aquele pesadelo. Aproximavam-se mais olhos-de-vidro, pela frente e por detrás, e tinham acabado as aranhas obos do general Doppelgänger.

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Capítulo 40

—Como é possível que ela não estivesse lá? Onde mais podia estar?

Martelando com o extremo inferior de seu cetro no chão a cada duas palavras, Redd fez com que umas rosas carnívoras de caule curto rodeassem os pés do Valete de Ouros e as patas almofadadas do Gato, de forma que ambos tinham que mover-se sem parar a fim de evitar que as flores lhes subissem pelas pernas.

—Talvez o Valete de Ouros não seja tão leal quanto você acreditava — aventurou o Gato.

—Sim, talvez. — Redd se voltou para o Valete.

—Minha Rainha... Quer dizer, Sua Malignidade Imperial..., os alysianos mais importantes estavam lá, e teria sido factível exterminá-los se o Gato não se ocupasse unicamente de Alyss.

—Eu lhe ordenei que se ocupasse unicamente dela!

—Mas não acredito que seja tão perigosa...

—E quem te perguntou alguma coisa? — bramou Redd. Seu cetro se elevou no ar, com o extremo afiado apontando a palpitante garganta do Valete de Ouros — Por acaso você tem nove vidas?

O Valete tragou saliva.

—Só tenho uma, e a consagro isso a você, Seu Malignidade Imperial.

—Humpf. —O cetro de Redd girou como uma bengala e se colocou a seu flanco — Gato, por que há uma caixa vazia de esferas geradoras no corredor?

O receptáculo de munições entrou deslizando-se na sala, movido pela imaginação de Redd.

—Ah, isso? — O Gato estava esperando essa pergunta. Essa agora era para o Valete de Ouros — A encontramos, junto com muitas outras, no acampamento dos alysianos. Olhei os códigos de fabricação. Roubaram-nas de sua fábrica faz três ciclos lunares e meio. Os ladrões foram interrogados e castigados, mas as doze caixas de armas roubadas não estavam onde nos indicaram.

—Vá ao ponto, Gato, ou notará uma pontada nas tripas.

O sicário felino se inclinou em sinal de respeito.

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—Sua Malignidade Imperial, capturaram aos ladrões graças à informação obtida pelo Valete de Ouros. Você permite que o rechonchudo lorde tenha acordos com os alysianos. Como os alysianos podem ter se apoderado dessas armas se não for através dele? Ele conhecia o paradeiro dos ladrões, assim certamente sabia onde estavam as armas.

— Que interessante — murmurou Redd, pensativa — Assim que meu bem alimentado informante esteve aproveitando-se das liberdades que lhe concedo para proporcionar armas a meus inimigos?

—Não! Decididamente não! — declarou o Valete — Sua Malignidade Imperial, isso é ridículo.

—Já veremos se é ridículo ou não.

A ponta afiada do cetro de Redd voltava a estar contra a garganta do Valete de Ouros. Entretanto, não tinha deixado de pensar de todo em Alyss e, em uma visão fugaz do olho de sua imaginação, vislumbrou a Princesa, rodeada de superfícies luminosas e efervescentes.

—Está no Contínuo de Cristal! — chiou Redd — Quebrem os espelhos! Até o último deles!

O rosto de Redd, congestionado de raiva, apareceu de repente nas cercas e proclames governamentais do País das Maravilhas.

—Façam pedacinhos de todos os espelhos do reino! JÁ!

Não obstante, a força de sua cólera se adiantou à maioria dos marvilianos. Em bares e antros de consumo de estimulantes de todo o País das Maravilhas, nos lares dos marvilianos comuns, nas mansões cercadas e vigiadas das famílias de classe, os espelhos estalaram. Os marvilianos ansiosos por destruir correram pelas ruas, rompendo janelas e qualquer outro objeto que pudesse servir remotamente como superfície refletiva.

Capítulo 41

Estavam perdidos, presos. Sem dúvida alguma os matariam: tinham olhos-de-vidro adiante, olhos-de-vidro às costas.

«O Contínuo está... está desaparecendo!»

À medida que os espelhos do reino saltavam em pedaços, as vias cristalinas que compunham o Contínuo começaram a desvanecer-se. Os olhos-de-vidro que perseguiam Alyss fugiam por sua vez do vazio. E o vazio ganhava terreno.

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«Acabar engolida por um nada significa converter-se em nada. »

Ao menos não sofreriam; a pessoa não sentia nada ao converter-se em nada.

O vazio se lançou em cima dos olhos-de-vidro, devorou primeiro à retaguarda e rapidamente avançou por suas filas. Já não ficavam olhos-de-vidro.

E o vazio seguia aproximando-se a toda pressa.

—Alguém tem um espelho de bolso? — perguntou Dodge.

Alyss e os outros o olharam, desconcertados. «Um espelho de bolso? Por que pede um...? »

—Rápido!

Jacob levou a mão às dobras de sua toga e tirou um espelho não maior que uma asa de lucirguero. Dodge o agarrou. Nenhum marviliano tinha tentado jamais o que ele estava a ponto de fazer. Nunca tinha havido necessidade.

Segurou o espelho em um ângulo determinado para que refletisse uma pequena parte do Contínuo e a regenerasse. Tão velozmente como o vazio se tragava tudo o que tinham detrás, o modesto espelho criava um lance equivalente de Contínuo diante deles. Mas e agora? Estavam condenados a correr pelo vazio, a salvo naquela parte do Contínuo (a respeito do qual Jacob, se estivesse em uma situação mais tranquila, teria assinalado que em rigor já não era um Contínuo, pois não comunicava com nada, e que sem o espelho de bolso nem sequer continuaria existindo)? Estavam destinados a permanecer apanhados naquele prisma móvel, movendo-se de um lado a outro através de um nada até que morressem de fome ou o cansaço ocasionasse que Dodge deixasse cair o espelho das mãos?

«O que é isso? Será...? É-o. Uma saída. »

Devia restar pelo menos um espelho intacto no reino. Ante eles, no vazio, a escassa distância, havia uma via de cristal que não conduzia a nenhum lugar. No ponto em que antes se unia à artéria principal do Contínuo, agora se acabava sem mais.

—Dodge!

—Já o vejo!

Trocando sutilmente o ângulo do espelho de mão, Dodge conseguiu desviar a trajetória do grupo para aquela via. A luz adicional e o baile mais enérgico de cores translúcidas eram como a própria dança da vida. Dodge, Jacob, Alyss, o general Doppelgänger e Somber, ao emergir do Contínuo na mesma ordem em que tinham entrado, encontraram-se em uma paisagem semelhante às vísceras abertas de um vulcão, com nuvens de fumaça sulfurosa que se elevavam preguiçosamente para o céu, e labaredas que surgiam do chão rochoso entre correntes de lava borbulhante: estavam nas planícies Vulcânicas.

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Capítulo 42

Avançaram em fila de um a um pela estreita crista de um vulcão, cobrindo o nariz e a boca com pedaços de tecido arrancados da toga de Jacob para proteger-se da cinza que flutuava no ar. Fazia muito calor para falar; mal podiam respirar. Ninguém havia dito uma palavra desde que tinham aparecido nas planícies Vulcânicas e Dodge tinha sugerido que destruíssem o portal de saída «no caso de». Não deviam subestimar a mente diabólicamente imaginativa de Redd; o menor resquicio do Contínuo de Cristal podia lhe bastar para reconstruí-lo por completo, o que lhe permitiria acessar as planícies rapidamente. Agora, Redd e seu exército não poderiam deslocar-se mais que a pé ou a lombos de bestas.

— Esse espelho devia ser utilizado pelos caçadores furtivos de galimatazos — tinha comentado Jacob — É uma sorte para nós que o tenham passado por cima, pois, do contrário, ainda estaríamos... — estremeceu-se ao pensar no vazio.

— Se Redd nos viu fugir pelo Contínuo, talvez ainda esteja nos observando — disse o general Doppelgänger.

— Não podemos evitar isso — disse Somber.

Dodge se impacientou.

— Então, em lugar de ficar aqui de bate-papo, vamos aonde tenhamos que ir.

De modo que Jacob, que levava mapas detalhados do reino dentro da cabeça, guiou-os para o vale dos Cogumelos. Enquanto caminhavam com cuidado pela pedregosa e acidentada crista, tinham que olhar para baixo constantemente para ver onde pisavam, o que lhes recordava uma e outra vez a altura a que se encontravam e quão perigosa era sua situação.

—Ah!

Uma parte de lava endurecida golpeou o general Doppelgänger no ombro. Os alysianos se detiveram e elevaram a vista. Outra pedra de lava caiu. E logo outra, e outra mais.

«O vulcão se move. »

Não era todo o vulcão, só a capa superior de rocha e terra situada no alto da levantada costa que se elevava sobre eles.

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«Um deslisamento, uma... »

A crista se desmoronou sob os pés dos rebeldes. Eles cairam rodando pela ladeira até o fundo do desfiladeiro que discorria ao pé do vulcão. O general Doppelgänger ficou meio sepultado entre a terra e as rochas. Jacob estava completamente de cabeça para baixo, pés para cima, mas rapidamente se endireitou, tossindo e cuspindo para não asfixiar-se. Alyss, a mais leve de todos, tinha caído dando tombos pela escarpada costa inferior do vulcão até deter-se em um leito de cascalho. Somber e Dodge se levantaram, sacudindo o pó vulcânico das mangas da jaqueta, como se sobreviver a um deslocamento de terras fosse coisa de todos os dias para eles.

—Estão todos bem? — perguntou o general Doppelgänger.

—Alyss? — soou a voz de Dodge, com tom de preocupação.

«Suja de negro pelo pó vulcânico, com cortes nos antebraços e os joelhos, e a palma da mão direita esfolada. »

—Estou bem. — Não queria que outros pensassem que para ela uns quantos arranhões e manchas-roxas eram feridas graves. Supunha-se que devia ser o bastante forte para derrotar Redd — Alguém está observando —disse.

Um par de olhos cor amarela esverdeada os espiava da escuridão de uma cova próxima. Antes que alguém pudesse abrir a boca, a gigantesca e escamosa cabeça de um galimatazo apareceu entre duas rochas situadas frente à entrada da cova.

Sua larga língua fustigou Jacob e produziu um rasgão fumegante na manga de sua toga que deixou ao descoberto sua delicada pele.

—Ai!

Mesmo naquela planície sufocante, Alyss e outros notaram o calor que despedia o fôlego do galimatazo, fétido devido à carne de inumeráveis animais mortos. A criatura abriu suas mandibulas até um extremo que parecia impossível, como uma cobra quando se dispõe a devorar um coelho; um gesto ameaçador que estava mas bem desconjurado, pois o galimatazo teria podido engolir a dois marvilianos inteiros de uma vez de um só bocado sem um grande esforço. Os alysianos retrocederam para a cova. O galimatazo deu uma sacudida para eles e lançou uma cuspida de fogo em Alyss. Ela se jogou no chão, e a bola chamejante impactou contra a parede do desfiladeiro, mas a breve luz de sua explosão os rebeldes alcançaram a ver que os olhos cor amarela esverdeada pertenciam a um galimatazo diminuto rodeado de ossos roídos: um recém-nascido.

—Está protegendo a sua cria — assinalou Jacob.

A galimataza mãe se ergueu sobre suas patas traseiras, preparando-se para investir, e Somber, agilmente, com um só movimento, tirou a cartola, desdobrou as lâminas e as lançou contra a rocha que se sobressaía por cima da entrada da cova.

Zac, zac, zak, zak.

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Várias pedras se afrouxaram, caíram e se amontoaram no chão, com o que a boca da cova ficou obstruída. As lâminas do Somber ainda não tinham voltado para suas mãos como um bumerangue quando a galimataza mãe proferiu um alarido de pena e, esquecendo-se dos alysianos, ficou a arranhar e escavar nas pedras, limpando a saída da cova para salvar a sua cria. Alyss e os outros aproveitaram para escapar ilesos pelo desfiladeiro.

Embora ninguém o expressou em voz alta, todos sabiam: enquanto estivessem nas planícies, o perigo dos galimatazos se abatia sobre eles.

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Capítulo 43

Surpreendentemente, Jacob Noncelo não levava um par de cristais de pederneira remetidos em algum lugar de sua toga de erudito, assim tiveram que acender uma fogueira à moda antiga, com fósforos e uma pilha de ramos secos. Tinham deixado para trás as planícies Vulcânicas e acampado junto a um rio largo, caminho do vale dos Cogumelos.

Dodge cobriu a queimadura de Jacob com uma folha umedecida e a atou com um caule de trepadeira resistente. Jacob pôs à prova a mobilidade de seu braço. Sem dúvida seus lamentos e caretas de dor eram um pouco exageradas, pois Dodge, depois de lançar um olhar rápido ao general Doppelgänger, disse:

—Talvez tenhamos que amputar.

Jacob ficou paralisado, mudo de espanto.

—Pode dar aulas igualmente bem com um braço do que com dois, não?

Jacob abriu e fechou a boca, mas dela não saiu nem um som. Dodge e o general Doppelgänger prorromperam em gargalhadas.

—Estou só pegando no seu pé, Jacob —disse Dodge – Ficará bem.

—Ah, ha, ha —disse Jacob, nervoso — Um pouco de frivolidade para aliviar a tensão que suportamos. Sim, ha, ha. —Mas não deixou de proteger o braço ferido com o são até que Dodge e o general dormiram. Depois de recuperar sua compostura habitual, sentou-se junto à Princesa.

—E agora, Alyss, começaremos essa lição que tantas vezes se postergou. Por fortuna, memorizei a maior parte dos livros necessários.

Alyss assentiu com a cabeça, mas não estava de humor para lições. O dia em si tinha sido toda uma lição... de sobrevivência.

—Fecharei os olhos por um momento — prosseguiu Jacob —, para rebuscar em minha mente o material correspondente. Só me levará uns instantes.

Entretanto, logo que o preceptor fechou as pálpebras, começou a roncar. As orelhas se abriam e fechavam com cada respiração. Alyss esboçou um sorriso, cansada, e o agasalhou com as abas de sua toga, a modo de manta. Continuando, foi ao outro lado da fogueira para deixá-lo dormir tranquilo. Como há muito tempo atrás, naquela primeira noite que passou em

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companhia de Quigly e os órfãos em um beco londrino, tinha muitas coisas na cabeça para conciliar o sonho. «Como funcionava isso quando era menina?» «Isso» era sua capacidade para fazer aparecer objetos por meio da força e a intensidade de sua imaginação. Como o conseguia? Tinha tido sorte com a focinheira. Não se tinha proposto fazer aparecer coisa semelhante; só tinha tentado imaginar ao Dodge a salvo das pegajosas patas da aranha.

Somber estava sentado mais à frente do resplendor do fogo, limpando suas armas, com a cartola a um lado. Primeiro tirou o bracelete esquerdo, logo o direito, e começou a esfregar as navalhas com uma folha. Alyss nunca tinha visto um homem da Chapelaria sem seus braceletes. «Tem todo o aspecto de um marviliano comum. » Efetivamente, sobre tudo quando Somber interrompeu sua tarefa para despojar-se de sua longa jaqueta e estendê-la no chão, junto a si. Sem casaco e sem armas que delatassem sua condição, nada em sua aparência o distinguia de qualquer homem adulto normal do País das Maravilhas. «Deve ter sonhos, esperanças, amores e dores à margem de suas responsabilidades, como qualquer um. Que estranho que eu saiba tão pouco de um homem que consagrou sua vida a proteger a minha família. » Ele a surpreendeu olhando-o. Ela sorriu para desculpar-se, como se tivesse se intrometendo em seus assuntos. Somber voltou a concentrar-se no trabalho de limpar. «Como funcionava?» Mas aí estava o problema. Não lembrava que sua imaginação tivesse que «funcionar». Simplesmente, era.

—Somber...

—Sim, Princesa?

—Quando luta em uma batalha, no que pensa?

Somber refletiu por uns instantes.

—Em nada, Princesa. Nada absolutamente.

—Assim não diz a si mesmo «vou lançar minha cartola e logo vou atacar com as navalhas de pulso» nem nada desse tipo?

—Não.

—Não — conveio Alyss —, claro que não. Simplesmente acontece. Seu corpo sabe o que tem que fazer.

Somber assentiu com a cabeça.

«É algo inconsciente. Para materializar algo à força de desejá-lo, esse desejo deve ser tão profundo que não dê capacidade à vacilação. O poder imaginativo, por si mesmo, deve ser algo que se dê por sentado, um fato demonstrado sobre o que não se pode duvidar. »

As horas noturnas passavam, e, ao princípio, Alyss era muito consciente de seus esforços por fazer aparecer objetos, muito consciente dos objetos em si. Um prato, uma espada, uma coroa... Repetia estas palavras uma e outra vez para si. Não se materializou coroa alguma. Em troca, formou-se parte de um prato, mas se esfumaçou em seguida. Apareceu uma espada, ou melhor dizendo o contorno de uma espada, liso, sem detalhes, como se não tivesse

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visualizado a arma nitidamente. Ao cabo de um tempo, a fogueira se extinguiu e ficou reduzida a um montão de brasas candentes. Alyss limpou a mente. Enquanto se achava em uma espécie de transe profundo, uma tampa grande de vidro como as que cobrem os bolos nas confeitarias, emergiu de um nada, no ar. Alyss a olhou, sem a menor surpresa. Inclinou a cabeça à esquerda, e a tampa de cristal se inclinou para a esquerda. Inclinou a cabeça à direita, e a tampa se inclinou para a direita. Logo, sem mover-se absolutamente, a fez descer sobre os resquícios da fogueira que, asfixiados pela falta de oxigênio, apagaram-se por completo. A tampa de vidro se dissolveu no ar.

Alyss sorriu, exultante, pois não só tinha feito aparecer um objeto, mas também tinha controlado sua imaginação como nunca antes. «Tenho que me exercitar. Tenho que... Oh. Acho que me viu. » Somber a observava. Em efeito, tinha presenciado essa demonstração de controle sobre sua poderosa imaginação. O capitão da Chapelaria inclinou a cabeça em sinal de respeito. Então se ouviu um estrondoso ronco final e Jacob despertou, tiritando e tentando esquentar-se com os braços.

—Faz frio com o fogo apagado, não?

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Capítulo 44

Uma vez destruídos os espelhos do reino, Redd voltou a descarregar sua fúria contra o Valete de Ouros.

—Trato você com uma indulgência da qual não gozam outros. Por quê? Porque se supõe que me beneficia. Deixo que acredite que vai por aí livre, e em troca, você deve me proporcionar informação sobre os alysianos. Como Rainha, sou quem mais sai ganhando de todos os acordos, e não me enche de júbilo, «lorde» de Ouros, que estivesse me traindo em benefício próprio.

—Sua Malignidade...

Redd fez um gesto com a mão, e o Valete saiu voando contra uma parede da cúpula de observação. A cauda do Gato se meneava de um lado para outro, alegre e brincalhona.

—O que devo fazer contigo? —perguntou Redd.

—Tal... talvez poderia... —começou a responder o Valete.

O Gato elevou uma pata.

—Eu sei!

—Era uma pergunta retórica, idiotas! Não lhes pedia que a respondessem! Desde quando preciso de ajuda para fazer alguém sofrer?

Desta vez, o Gato e o Valete de Ouros optaram prudentemente por não responder.

Redd deslizou para o Valete, com os pés flutuando sobre o lustroso chão, e lhe acariciou a peruca. Sustentou um de seus largos cachos na palma da mão, estudando-o por um momento. Com uma ferocidade inusitada, arrancou o cacho de um puxão e o jogou em um lado. A mecha caiu no chão e começou a aumentar de tamanho e de grossura. Saíram-lhe braços e pernas, e cresceu e cresceu até ter o dobro do tamanho do Valete.

—Lorde de Ouros, saúde minha peruca bestial — bocejou Redd.

Antes que o Valete pudesse dizer esta boca é minha, a besta lhe deu golpe brutal na barriga. O homem se dobrou em dois, lutando por respirar. A Peruca Bestial o levantou instavel e o lançou até o outro extremo da sala. O Valete caiu pesadamente, como correspondia a sua generosa humanidade. A Peruca Bestial se plantou frente a ele, pô-lo em pé e, enquanto o segurava com uma peluda extremidade, esbofeteou-o com a outra.

O Gato ronronava com um amplo sorriso na cara, contemplando o sofrimento do Valete de Ouros, mas seu gozo se viu interrompido pela voz de Redd, penetrante como uma

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garra, e estridente por causa da ira e da incredulidade. Redd havia voltado o olho de sua imaginação para Alyss. Esperava não ver nada — Alyss devia formar parte do vazio agora —, mas em troca vislumbrou à Princesa, junto a Somber Logan e outros, caminhando pelo terreno calcinado e coberto de lava das planícies Vulcânicas.

—Não está morta! — gritou — Alyss não está morta!

O Valete ouviu também estas palavras, mas seu cérebro desorientado demorou uns instantes em entender o significado. Entre uma e outra das bofetadas que estava lhe administrando a Peruca Bestial, conseguiu balbuciar:

—Vão ... procuram... o labirinto Especular!

Redd elevou uma mão e a Peruca Bestial se deteve.

—Devo estar amolecendo, lorde de Ouros, por acreditar que talvez tenha dito algo digno de ser escutado.

Foi uma sorte para o Valete que Redd tivesse feito caso omisso das lições que Jacob tinha tentado lhe ensinar em sua adolescência. O corpulento nobre compreendeu imediatamente que seus conhecimentos sobre o labirinto Especular podiam lhe salvar a vida. Entretanto, decidiu lhe revelar o menos possível. Sua saúde e bem-estar futuros talvez dependiam da destilação de tão valiosa informação a Redd.

—O labirinto Especular, Sua Malignidade Imperial. Se Alyss consegue percorrê-lo, desenvolverá ao máximo o potencial de sua força e seu poder imaginativo, e então estará em condições de lhe vencer.

—Mas se eu conto com o Coração de Cristal! Ela não pode desenvolver seu potencial ao máximo sem ele!

—Limito-me a repetir o que ouvi Jacob Noncelo dizer, Sua Malignidade Imperial.

Não deveria mencionar ao Jacob; Redd estava que jogava fumaça. O Valete jogou uma olhada rápida à Peruca Bestial, estava totalmente imóvel, como se nunca tivesse cobrado vida. No momento, tudo ia bem.

—E se eu percorrer o labirinto no lugar dela? —perguntou Redd.

—Ah, que ardilosa, Sua Malignidade Imperial. Se percorrer o labirinto, então será muito mais poderosa. Estou certo de que Alyss não poderá lhe derrotar.

Tudo o que o Valete de Ouros sabia do labirinto Especular teria cabido na terceira fossa nasal de um güinuco (que era extremamente pequena). Quando era menino, tinha ouvido várias vezes a sua mãe evocar ressentidamente o dia em que a princesa Genevieve tinha chegado ao final do labirinto para tranformar-se em Rainha. Entretanto, ela não sabia que não bastava saber orientar-se no labirinto para transformar-se em Rainha. Jacob Noncelo não tinha educado a nehum dos membros do clã de Ouros, de modo que todos ignoravam que só a pessoa para quem estava destinado o labirinto Especular podia entrar nele. Não obstante,

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igual a muitos outros jovens que crescem rodeados de luxos e comodidades, o Valete de Ouros não era consciente de sua própria ignorância.

—Agora veremos se o que diz é verdade — grunhiu Redd —Tragam-Me o In Regnum Speramus!

A morsa entrou com seus andar de pato na cúpula.

—Aqui está, Sua Malignidade Imperial. In Regnum...

O livro se afastou voando de suas nadadeiras e ficou flutuando no ar ante Redd enquanto ela passava rapidamente as folhas, procurando alguma menção ao labirinto Especular. Não encontrou nem uma. Viu os restos das páginas arrancadas do livro e suas próprias palavras, transcritas com a caligrafia do Jacob.

—Ora!

Deu um tapa no livro, que saiu disparado para a morsa, mas o mordomo se agachou e o volume caiu ao chão, onde patinou até sair ao corredor.

—Irei buscá-lo, Sua Malignidade Imperial — disse a morsa mordomo e partiu a toda pressa atrás do livro, aliviada como sempre que tinha algum pretexto para abandonar rapidamente à companhia de Redd.

Redd se aproximou tranquilamente do Valete, a quem a aparente despreocupação da Rainha provocava uma angústia ainda maior.

—E agora, meu indigno servidor, vai me dizer onde está esse labirinto Especular.

—Mas é que não sei.

Os dedos de Redd se contraíram, e ao Valete pareceu ver que a Peruca Bestial se movia.

—Os alysianos tampouco sabem! —apressou-se a acrescentar — Têm que perguntar às lagartas!

As lagartas: essas lagartas fastidiosas e descomunais. Redd tinha tentado desfazer-se delas e de suas profecias antiquadas pouco depois de tomar o controle do reino. Se havia algo que não precisava era que essas coisas andassem por aí incitando à rebeldia com suas predições. Entretanto, cada vez que se propunha a eliminá-las, elas previam seus ataques e se desvaneciam como a fumaça. Por isso ela tinha desafogado sua raiva contra o vale dos Cogumelos. Mas o que devia fazer agora? Arrasar o vale não serviria para cumprir seus propósitos.

—Decidi deixar que Alyss se encontre com as lagartas — anunciou — Vigiaremos atentamente a esse Coraçãozinho doce e tenro, e quando descobrir a localização do labirinto Especular, atacaremos e eu entrarei nele. Gato, você mova aos rastreadores.

—E por que não o lorde de Ouros? — protestou o felino.

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—Ainda pode me ser útil.

O Valete dedicou ao peludo sicário de Redd uma risadinha zombadora. O Gato o tinha metido no apuro em que se encontrava. O Gato traiçoeiro era o culpado das manchas roxas que começavam a lhe sair por todo o corpo. Teria que lhe devolver o favor de algum jeito.

—Vejo que não aprecia suas vidas tanto quanto eu acreditava Gato, pois do contrário já teria obedecido minha ordem — assinalou Redd.

Enquanto o Gato partia a contra gosto para agitar aos rastreadores, Redd enfocou de novo em Alyss com o olho de sua imaginação. Que maravilhosamente cruel era seu plano! A senhorita “Sabichona de Copas” a guiaria em pessoa até o labirinto Especular, e assim se tornaria a agente de sua própria perdição. Que deliciosamente perverso.

***

O Gato podia ouvir os chiados frenéticos dos rastreadores mesmo antes de chegar ao final do corredor. Empurrou com o ombro o pesado portão para abri-lo e entrou na câmara escavada no interior do monte Solitário. Os gritos dos rastreadores — estridentes como alaridos de dor — soavam tão fortes que ele não ouvia suas próprias pegadas nem sua respiração. A câmara estava fracamente iluminada por alguns cristais fosforescentes incrustados nas paredes. Do teto penduravam centenas de jaulas, em cada uma das quais tinha encerrados vários rastreadores: os raastreadores de Redd, nascidos da desconfiança e da paranóia de Redd: seres com corpo de ave de caça e cabeça de inseto chupador de sangue.

O Gato andava de um lado a outro da câmara, detendo-se ante cada jaula para agitar ante ela o vestido de casamento de Alyss, uma lembrança de sua incursão no quartel general dos alysianos. Os rastreadores, excitados pelo cheiro do objeto, apertavam suas ansiosas caras contra as grades das jaulas.

Uma vez cumprida sua missão, o Gato puxou uma alavanca no chão, e uma parede, que do exterior parecia fazer parte da montanha, deslizou-se para trás. As jaulas se abriram e, proferindo chiados selvagens, os rastreadores levantaram o vôo em plena noite, preparados para a caça.

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Capítulo 45

Os alysianos emergiram de um bosquezinho e descobriram que se encontravam no topo de uma montanha. O vale dos Cogumelos se estendia ante eles. Os sóis começavam a ocultar-se depois do longínquo horizonte, e seus raios enviesados iluminavam os cogumelos cravados no meio do círculo de montanhas coloridas pelo azul do ocaso. Não havia dois cogumelos iguais, e suas cores foram do rosa terroso ao marrom não terrestre; algumas eram quase translúcidas, e todas, com os brilhos dos sóis em seus chapeuzinhos e as sombras policromaticas que projetavam sobre o chão do vale, ofereceram aos alysianos um impressionante espetáculo de luminosidade caleidoscópica.

As cores do vale refletiam a esperança renovada no peito de Alyss e seus amigos, e, por um momento, pareceu-lhes quase impossível que Redd pudesse sobreviver a sua rebelião. Talvez fossem poucos, mas eram fortes e resolvidos. Tinham fé. Entretanto, este otimismo durou pouco, pois ao descer para o vale, advertiram que não era tão formoso quanto poderia ter sido, ou, de fato, como tinha sido em outro tempo. Os micélios23 de vários cogumelos apresentavam a marca do Baralho; havia chapeuzinhos destroçados no chão. Os templos de oração tinham caido em pedaços.

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Em silêncio, Jacob guiou aos alysianos através daquela inesperada cena de profanação até uma clareira, onde se encontraram com cinco lagartas gigantes, sustentadas sobre seu corpo enroscado, fumando todas de um mesmo e antigo narguile.

Cada uma se encontrava sobre um cogumelo de cor tão característica quanto a sua própria: vermelho, laranja, amarelo, arroxeado e verde. As lagartas não se mostraram absolutamente surpresas ao ver os alysianos e, de fato, tinham reparado em sua presença fazia um bom tempo.

—O conselho de lagartas — informou Jacob aos outros, e ato seguido deu um passo à frente para dirigir-se às lagartas — Sábios oráculos, precisamos sua ajuda. Havemos...

A lagarta alaranjada elevou sua extremidade superior direita, para interromper Jacob, e o resto de patinhas que tinha atrás imitaram o gesto.

—Sabemos por que estão aqui.

—Que tipo de oráculos seríamos se não soubéssemos? — disse a larva amarela.

O cachimbo de água ferveu enquanto a lagarta vermelha aspirava profundamente. Pôs os olhos em branco e deixou sair a fumaça pelas fossas nasais.

— Whooah.

Dodge e o general Doppelgänger intercambiaram um olhar de incerteza. Somber ficou alerta, com uma mão na asa da cartola, escrutinando os arredores em busca de perigo.

—Oh, sabias e oniscientes lagartas — disse Jacob Noncelo —, brindamo-lhes nossa humildade e nosso respeito, e esperamos que...

— Agora mesmo tenho uma sensação de déja vu muito estranha — comentou a larva verde.

—Não me diga — repôs a larva amarela — E não pensou que talvez seja porque você perviu que isso aconteceria?

—Ah, sim.

O conselho de lagartas riu disimuladamente.

—Entristece-nos ver que inclusive seu lar se viu afetado pelo reinado de Redd —continuou Jacob, tenaz — Se souberem quem somos e por que viemos, então já saberão que...

A partir deste ponto, as lagartas fizeram coro o resto de suas palavras:

—... viemos pelo bem do reino, para instalar à Rainha legítima no trono e acabar com estes anos de brutal tirania.

A capacidade das lagartas de ver o futuro (ou futuros possíveis) nem sempre as convertia em conversadoras agradáveis.

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—Trouxe alguma coisinha para mordiscar? — perguntou a lagarta alaranjada.

—Alguma tortinha, talvez? — inquiriu a lagarta amarela, esperançosa.

—Pois... — Jacob buscou em sua toga, mas não encontrou tortinhas.

«Farei aparecer uma dúzia de tortinhas. Será um bom exercício. » Alyss tentava concentrar-se, visualizar com nitidez suas imaginações, quando uma série de anéis azuis de fumaça, ficaram flutuando sobre sua cabeça, procedentes da parte mais densa do bosque de cogumelos.

—Azul convocou Alyss — assinalou a lagarta alaranjada — Lhe dirá tudo o que precisa saber.

Os membros do conselho guardaram silêncio enquanto chupavam avidamente as boquilhas de seus narguiles como se deste modo se comunicassem entre si.

—Adiante, Alyss — a animou Jacob Noncelo — Está tudo bem.

A princesa seguiu o rastro de anéis de fumaça por entre os cogumelos até as ruínas de um templo. No dintel24 estavam gravadas as palavras: « Lao Zi25 sonhou com a mariposa, ou a mariposa sonhou com o Lao Zi? » Frente à porta, sentada em um cogumelo azul, estava à lagarta azul, fumando em seu próprio narguile.

— Obrigada por me receber — disse Alyss com uma reverência

—Hem, hum, ahem — pigarreou a larva e exalou uma baforada de fumaça, no meio da qual apareceu o príncipe Leopoldo. O Príncipe estava em um salão de Londres, caminhando de um lado a outro com nervosismo, enquanto sua mãe, a rainha Vitória, se abanava sentada em uma poltrona acolchoada. O decano Liddell e sua esposa estavam ali também, muito juntos em um sofá, em uma postura muito correta e rígida. Pareciam tensos, intimidados pela Rainha. Alyss sabia que esta cena tinha a ver com ela — « se não, por que o oráculo me mostraria isso? » —, que Leopoldo ia e vinha pela sala porque estava preocupado com ela, sua noiva desaparecida. Ao menos, tinha saído vivo. Mas aquela imagem era do passado, ou do presente?

—Mesmo nesse mundo — explicou a larva —, onde ninguém sabia que era uma princesa, estava destinada a se casar com a realeza. Pelo visto, o destino não vai deixar você negar quem você é.

—Não pretendo negar isso, senhora Lagarta.

A lagarta franziu o sobrecenho, dando baforadas em seu cachimbo de água.

—Me chame de Azul.

—Ah. Certo. Não pretendo negar isso, Azul, é só que o tempo que passei longe do País das Maravilhas me deixou confusa. Passei por tantas coisas, e não faço mais que fugir de quem é mais poderosa que eu, coisa que não me parece... bom, muito própria de uma rainha.

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—Ehem, hum, hum — disse Azul, e na nuvem de fumaça que lançaram seus pulmões de lagarta formaram as palavras: «Em algumas ocasiões o mais corajoso é fugir» — Quando foge, salva a vida, o que te obriga a confrontar mais incertezas e problemas — sentenciou — Seria muito mais fácil para você se dar por vencida. Não deve duvidar de seu valor, Alyss de Copas. Quem foge de seus inimigos até que reúna a força suficiente para enfrentar-lo é tão valente quanto sábio.

«Pois é curioso que me sinta mais como uma covarde. »

—Sabe por que estou aqui?

—Está procurando o labirinto Especular, tal como fez sua mãe antes de você.

Alyss permaneceu calada, lembrando como ficou surpresa de ver sua mãe cercar combate com tanta decisão. «Certamente esteve frente a frente com a lagarta Azul, tal como eu estou agora. » Em efeito, e, ao igual a então, o futuro do reino estava ameaçado por Redd.

Azul pareceu lhe ler o pensamento.

—Alyss de Copas, sua mãe foi uma rainha guerreira, como teve ocasião de descobrir de forma tão dolorosa. Ela percorreu o labirinto para subir ao trono e aproveitar ao máximo seus dons inatos, mas sua força tinha um limite. Redd sempre foi mais forte que ela. Por outro lado, você, Alyss de Copas, leva a força de várias gerações nas veias. Chega até o final do labirinto e descobrirá isso por ti mesma.

—E se não o conseguir?

Azul ignorou a pergunta.

—Todas as experiências que viveu até agora tinham que acontecer para que se transforme na Rainha mais poderosa que o País das Maravilhas conheceu. Foi necessário forjar em você o temperamento prudente e judicioso que a guiará como protetora do Coração de Cristal. Somber Logan te conduzirá até a pessoa que sabe onde está o labirinto. Busca uma loja de quebra-cabeças. Reconhecerá a chave do labirinto assim que a veja, mas terá que retornar a Marvilópolis. —Azul formou um O com os lábios e soprou uma espessa nuvem de fumaça diretamente no rosto da Princesa.

Quando Alyss despertou, estava sozinha. Voltou caminhando entre os cogumelos aonde estavam Dodge e os outros. Os membros do conselho de lagartas seguiam enroscados sobre seus chapeuzinhos, fumando aprazivelmente. Suas expressões não mudaram quando avistaram Alyss, mas os alysianos cravaram nela um olhar de espera.

—Temos que retornar a Marvilópolis — informou ela.

Ouviram-se vários grunhidos ao redor dela.

—Isso é como meter-se na boca do galimatazo! —lamentou-se Jacob — Ou como alvoroçar um ninho de rastreadores, ou como...

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A lagarta verde exalou uma nuvem de fumaça que envolveu ao preceptor real, cujo semblante relaxou-se imediatamente.

— Bom — disse, com um sorriso sonhador — Suponho que devemos fazer o que devemos fazer.

— A que parte de Marvilópolis? — perguntou Dodge.

— Azul só me disse que Somber pode nos conduzir até alguém que saiba.

Outros se voltaram para o homem da Chapelaria, mas mesmo ele, que era capaz de manter a compostura durante batalhas que teriam impulsionado à maioria dos marvilianos a esconder-se atrás das saias de sua mãe, irritou-se um pouco ao ouvir isto.

— Eu? A quem eu conheço? Passei virtualmente treze anos fora do País das Maravilhas. As pessoas que conhecia estão mortas ou na clandestinidade.

Jacob, ainda sob os efeitos da fumaça da larva, posou-lhe uma mão no ombro.

—Tranquilize-se, meu bom amigo. Tenho certeza que o oráculo não fala por falar. Tem que haver uma razão. Relaxe e pense.

De modo que Somber pensou. O que teria feito a treze anos? A quem teria ido em busca de ajuda? Aonde teria ido?

—Há um lugar — disse ao fim — Não sei se existe ainda, mas eu costumava ir lá quando as fontes oficiais não me proporcionavam a informação que eu precisava.

—Muito bem, pois para lá é aonde iremos — disse o general Doppelgänger.

—Vamos de uma vez — saltou Dodge, consumido pela impaciência. Não lhe importava muito alvoroçar o ninho dos rastreadores; pelo contrário, estava desejando isso.

Capítulo 46

Foi um trajeto comprido e exaustivo, muito diferente dos cômodos deslocamentos que antes podiam levar-se a cabo no Contínuo de Cristal. Os alysianos, tentando evitar outros encontros com os galimatazos, rodearam as planícies Vulcânicas, e, por sorte — embora

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surpreendentemente, tendo em conta a agressividade habitual de Redd —, sua viagem transcorreu sem incidentes. Não toparam com um só vitróculo ou naipe soldado.

Pararam ao pé de um edifício abandonado e ficaram contemplando um lúgubre beco do País das Maravilhas.

—Onde está? — perguntou o general Doppelgänger.

—Ali. —Somber apontou com o dedo, enquanto dois marvilianos subiam dando tropeções de um botequim instalado em um porão e saíam cambaleando-se ao beco, bêbados.

—Esse é o lugar? — estranhou o general Doppelgänger — Tem um aspecto um pouco... desagradável.

—É o único lugar que conheço — repôs Somber. Estudou a seus companheiros: Jacob, com sua toga de erudito; o general, Dodge e Alyss com seus uniformize de alysianos. Por muito que se camuflassem, jamais passariam por marvilianos comuns. Mesmo assim, não convinha que chamassem muito a atenção exibindo suas cores rebeldes, assim Somber pregou sua cartola para convertê-la em um jogo de navalhas mortíferas que guardou em um bolso interior da jaqueta. Tirou o objeto e envolveu o braço com ela — Preparados? — perguntou.

Alyss assentiu com a cabeça, e os alysianos cruzaram o beco e entraram no botequim. Pararam por um tempo frente à entrada para que os olhos se acostumassem à penumbra, dando ao dono do estabelecimento e a um contrabandista velho e desdentado tempo para fixar-se neles. Outros frequentadores estavam muito absortos em suas bebidas para reparar nos recém chegados, semiinconscientes e encurvados em seus deteriorados tamboretes de bar ou totalmente fora de combate.

—Não é necessario que nos expormos aos olhares de todos, certo? — disse Dodge — Vamos sentar.

Assim que tinham tomado assento ao redor da mesa mais próxima, o dono do bar fez um sinal com a cabeça e da vácua escuridão saiu uma jovem que levava um chapéu de feltro e um sobretudo comprido não muito diferente do de Somber. Aproximou-se dos alysianos para anotar o pedido.

«Essa é...? Sim. A garota tímida que vi no acampamento, que nos serviu o chá durante minha primeira conversa com o Jacob. »

—Você? —exclamou Jacob, surpreso.

—Eu — confirmou a jovem.

—Mas... como...? Não entendo...

O soutros nunca tinham visto Jacob ficar sem palavras.

—Criatura —disse ele, sobrepondo-se — Não sei como sobreviveu ao assalto contra nosso acampamento e, é obvio, alegra-me ver você, tanto quanto me alegraria encontrar a

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qualquer outro dos nossos com vida, mas... o que faz aqui? É muito jovem para trabalhar em um lugar como este.

—Tenho treze anos. Sou velha o bastante, acredito eu. E sortuda por ter trabalho.

Alyss olhou para Dodge, cuja expressão inquisitiva, ligeiramente turvada, indicou-lhe que estava pensando quão mesmo ela. «É esta a pessoa com quem devíamosnos reunir? Tem que ser. Seria muita coincidência. » Mas a garota era tão jovem..., muito diferente do que Alyss esperava.

— Conhece bem a cidade? — perguntou o general Doppelgänger.

A garota deu de ombros.

— Melhor que a maioria.

Somber notou que a moça tinha uma “H” pequena e azul tatuada detrás da orelha, e seu rosto se nublou.

— É uma híbrida. Filha de civil e de militar. Não podemos confiar nela.

— Somber... — começou a protestar Jacob.

— Não preciso de sua confiança — replicou a jovem — Me ponho a serviço da Princesa..., se ela me permitir isso. — Com uma reverência muito sutil para que quem os rodeava se fixassem nela, falou com Alyss diretamente pela primeira vez — Molly, a do Chapéu, a suas ordens, Princesa.

Alyss abaixou a cabeça em sinal de agradecimento.

— Estamos procurando uma loja de quebra-cabeças em particular. Sabe algo dela?

— Acredito que sim.

— Como podemos ter certeza de que não conduzirá a uma armadilha? — A pergunta procedia de Somber.

— Não podem.

— Somber, não acredito que devamos temer à moça — disse Jacob Noncelo — E, a julgar pelo modo com que os outros clientes nos olham, não nos viria mal contar com um amigo neste lugar.

Cada vez mais clientes despertavam de seus sonhos etílicos durante o tempo suficiente para cravar seus olhos entrecerrados e ameaçadores nos intrusos. Os alysianos não eram bem-vindos ali. O contrabandista desdentado se levantou trabalhosamente e saiu a toda pressa do bar detrás fulminándo-os com o olhar.

—Pergunto-me aonde ele vai — comentou Dodge com sarcasmo.

—Se você esta com medo — disse Molly ao Somber —, pode ficar aqui.

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—Medo?

—Acontece com todo mundo.

—Ei você, mexa-se! — gritou-lhe o dono do local.

—É melhor que peçam alguma coisa — sussurrou Molly.

—Nos traga o que precisar para que não se meta em confusões — disse Jacob.

Molly foi procurar suas bebidas e recebeu uma avalanche de insultos do dono por sua suposta preguiça, enquanto ele enchia cinco jarras com uma beberagem espumosa e fumegante.

Jacob sacudiu a cabeça.

—Que mundo é este em que uma jovenzinha tem que servir taças em um antro assim para sobreviver?

—É uma híbrida — repetiu Somber, como se o fato em si bastasse para acautelar-se contra a garota.

—Tivemos híbridos no quartel geral dos alysianos, Somber — assinalou o general Doppelgänger — Quando a Chapelaria se dissolveu, vários membros viveram conosco durante um tempo. Muitos híbridos nasceram sob nossos cuidados. Não são tão desleais quanto você acha.

— Só seguem seus próprios interesses.

— Ela diz que sabe onde está à loja de quebra-cabeças — interveio Alyss, e se impôs o silêncio na mesa — A lagarta tinha que referir-se a ela. Dê uma olhada ao redor. Não há ninguém mais.

— Se é que esse é o lugar ao que nos enviou a lagarta — precisou Dodge.

Entretanto, Alyss tinha tomado uma decisão. Aquele era o lugar. Molly, a do Chapéu, era a escolhida.

—É-o — assegurou.

Molly se aproximou com as bebidas e começou às repartir em torno da mesa.

—Vê esse pôster, Princesa? O anúncio do hotel e cassino de Redd?

—Sim.

—É uma parede falsa. Atrás há um passadiço. O usamos para sair cada vez que há uma batida. O Baralho já vem no caminho.

—Graças a nosso amigo sem dentes — disse Dodge.

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Realmente, uma divisão do Baralho dobrava nesse momento a esquina do beco, guiada pelo contrabandista desdentado. O inconfundível som metálico que produziam as pernas dos naipes soldados ao partir ressonava entre os edifícios. Quando chegou aos ouvidos de quem se encontrava no interior do botequim, era quase muito tarde. O Baralho irrompeu no local e de repente os clientes sóbrios estavam derrubando mesas e atropelando-se uns aos outros em seu desespero por sair dali. Dodge, Jacob, o general Doppelgänger e Somber formaram um círculo em torno de Alyss; os três primeiros com a espada desembanhada, Somber fazendo girar suas navalhas. Molly, a do Chapéu, abriu a marcha, agachada para evitar as ávidas mãos dos naipes soldados, com o chapéu de feltro aplanado e convertido em um disco com as bordas afiadas. Dinc! Clanc! Pong! O chapéu parava os golpes de espadas dos soldados. Em formação fechada, a moça de treze anos guiou os alysianos através da parede falsa, ao longo de um túnel frio e úmido para que saíssem ao exterior, sãos e salvos.

A rua estava em calma, sem o menor indício da violência da que acabavam de escapar. Parecia uma noite qualquer em Marvilópolis. Molly seguiu caminhando tranquilamente, sabendo perfeitamente aonde se dirigia. Os alysianos ficaram parados, olhando-a até que ela se deteve e se voltou para eles.

— Bom, vocês vão vir ou não?

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Capítulo 47

A Avenida Esmeralda era uma das vias mais antigas da capital. Durante o reinado de Genevieve e em épocas anteriores, abundavam na elegante avenida as lojas e os restaurantes de categoria, mas os ricos e privilegiados se mudaram pouco a pouco a outras zonas, e as ruas circundantes se transformaram em refúgio dos bandos de ladrõess, fabricantes de estimulantes da imaginação e marvilianos que se dedicavam a outras atividades ilegais mais rentáveis. Os tentáculos da miséria acabaram por apoderar-se da própria Avenida Esmeralda, e o outrora celebre passeio estava agora tão invadido pela escória quanto às ruas que o rodeavam.

Em pontos dispersos das gloriosas ruínas da via, os sem teto se esquentavam em torno de fossas nas quais ardiam pedras de pederneira. Interromperam as conversas que mantinham entre dentes ao ver um estranho grupo de marvilianos aproximar-se de uma loja que levava muitos ciclos lunares fechada.

"BEZAS &" dizia o que restava do letreiro que antes anunciava os artigos que o estabelecimento vendia. Sua enorme porta principal, pela qual poderiam passar facilmente

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dois maspíritus lado a lado, estava fechada com chave. A vitrine estava coberta de pó e não revelava nada do interior. Dodge bateu na porta.

— Duvido que haja ninguém — disse o general Doppelgänger. As orelhas do Jacob vibraram. —Ouço problemas. —Mais pálido que de costume, o preceptor tirou uma espada de debaixo da toga e a empunhou com ambas as mãos.

Pouco depois, todos o ouviram. O céu escuro se enegreceu quando um bando de rastreadores eclipsou a lua entre chiados estridentes.

Os marvilianos sem teto se dispersaram ao mesmo tempo em que, gritando, os rastreadores atacavam. Dodge, Alyss, Jacob e o general atiravam golpes às bestas com as espadas enquanto Somber arrojava as navalhas de sua cartola para o grosso do bando. Zimp, zimp, zimp! Zimp, zimp, zimp! As navalhas feriram e mataram a vários rastreadores antes de voltar para as mãos de Somber. Molly comprimiu seu próprio chapéu para usá-lo como escudo e como arma ofensiva, afundando suas bordas afiadas no corpo das criaturas cada vez que descendiam em ataque para ela, com suas vorazes bocas de inseto abertas.

—Aaah!

Uma delas acertou um golpe em Dodge no ombro e o derrubou, de forma que sua espada saiu voando para fora de seu alcance. O rastreador voou ao redor dele e se dispunha a liquidá-lo com seus esporões quando alguém deu um chute à espada para que se deslizasse sobre o chão em direção a Dodge.

—Rastreia isto! — vaiou Dodge entre seus dentes apertados, esfaqueando à besta. Afastou-se rodando da criatura, que se retorcia agônica, e viu a torre e o cavalheiro branco lutar junto a ele, junto com uma pequena seção de milicianos subreviventes.

—Espero que não se importe que tenhamos nos apresentado sem avisar — disse a torre.

—Seguimos aos rastreadores — explicou o cavalheiro branco.

Um junto a outro, de pé, Dodge e a torre se voltaram, elevando as espadas para cima bem a tempo para que um rastreador que lhes vinha em cima se empalasse nelas e perecesse com um alarido espantoso. Uma divisão do Baralho de Redd apareceu no final da Avenida Esmeralda. Alguns dos naipes soldado levavam AD52, armas automáticas que disparavam projéteis muito afiados do tamanho e forma de naipes comuns, a razão de cinquenta e dois por segundo. Os soldados mal tinham dobrado a esquina e avistado aos alysianos quando um número Quatro disparou uma rajada de cartas adaga.

— Cuidado! — gritou o general Doppelgänger.

Os alysianos se jogaram no chão de barriga para baixo, menos Alyss e Molly, a do Chapéu, que colaram as costas à fachada da loja de quebra-cabeças, assim que as primeiras cartas adaga passaram zumbindo. Então...

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Somber se plantou de um salto ante elas e, com as navalhas dos pulsos ativadas, moveu os braços a toda velocidade e fez cair ao chão o resto das cartas adaga.

Imediatamente se produziu outra chuva de disparos de AD52, mas esta vez Alyss fechou os olhos, jogou a cabeça para trás e os naipes letais lhe passaram por cima ou pelos lados. Os alysianos se encontravam dentro de uma bolha protetora invisível criada pela imaginação de Alyss. As cartas adaga se desviaram velozmente para cima e feriram muitos dos rastreadores. Vários corpos de bestas sem vida caíram em torno dos alysianos e se estatelaram contra o pavimento.

O Baralho de Redd estava cada vez mais perto, e Somber arrojou as navalhas de sua cartola contra a vitrine da loja de quebra-cabeças. As folhas golpearam o cristal, girando, e abriram um buraco grande o bastante para que Alyss pudesse passar por ele.

—Entra aí! — gritou-lhe Somber.

O general Doppelgänger se dividiu nos generais Doppel e Gänger, com as espadas preparadas.

Dodge, sem separar os olhos dos naipes soldado que partiam sobre eles, disse a Alyss:

—Nós os manteremos ocupados. Você encontra o labirinto.

«Mas eram muitos. Mesmo com os milicianos, somos menos que eles. »

Molly, a do Chapéu, lhe puxou a manga.

«Não resta alternativa. Tenho que entrar. »

Antes que Alyss seguisse Molly ao interior da loja, imaginou que os AD52 entupiam-se de forma a ficarem inutilizados, e esperou que o que tinha imaginado tivesse dado resultado, mas não ficou para comprovar. Os alysianos já tinham aos naipes soldado em cima, e as espadas cintilaram. Alyss se lançou através do buraco da vitrine ao interior da loja.

De maneira bastante apropriada para um estabelecimento especializado na venda de quebra-cabeças e jogos, a loja estava construída em forma de quebra-cabeças. As estantes feitas à mão estavam dispostas de maneira que formavam um labirinto simples. Alyss e Molly a correram de um lado a outro pelas passagens estreitas, mas não encontraram nada. Todas as prateleiras estavam vazias. Começaram a atirar as estantes ao chão, a abrir todos os armários, alçapões e janelas falsas que encontravam.

— O que estamos procurando? — perguntou Molly.

Alyss mal a ouviu por cima do fragor da batalha que se desenrrolava fora. «Não sei exatamente. » Mas então vislumbrou um brilho azulado, um brilho de cor. Elevou a vista, e ali estava: na borda da prateleira mais alta da loja, um cubo de vidro luminoso.

—Ali encima!

—Eu pego!

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Molly começou a subir pela estante, e quando se achava a meia altura, o móvel se inclinou, a ponto de cair. Ela saltou ao chão e se afastou rapidamente para evitar que a estante lhe caísse em cima, mas o cubo de vidro estava no ar, precipitando-se para o chão.

—Nãaoo! — gritou Alyss. Se o cubo se rompia, talvez o reino estivesse perdido para sempre.

A Princesa saltou com os braços estendidos.

A estante caiu com grande estrépito e se quebrou em vários pedaços.

Alyss apanhou o cubo de vidro. Estava intacto. Deu-lhe voltas entre os dedos, procurando alguma pista sobre como funcionava. «O que esperam que devo...? »

Cabuuuuurrrc!

A porta da loja espatifou-se para dentro e Alyss, sem soltar o cubo resplandecente, cambaleou para trás e atravessou um espelho pintado de tal modo que parecia fazer parte de uma parede. O combate se estendeu ao interior do estabelecimento. Entretanto, flutuando sem peso dentro do espelho, a Princesa legítima do País das Maravilhas contemplou a cena paralisada no tempo. Ali estava Dodge, com a espada em alto, atacando a um naipe número Dois. Ali estava Somber, detido no ar, com os sabres de seu cinturão desdobrados para brigar contra três naipes soldado de uma vez (um par de Quatros e um Dois). Ali estavam os generais, indo em auxílio de Jacob, a quem aparentemente lhe tinha escorregado a espada da mão. E ali estava Molly, olhando com os olhos arregalados o lugar do espelho pelo qual Alyss tinha caíado. Alyss via isso tudo como através de um filme aquoso, e a pesar do perigo de morte que corriam ela e os alysianos, apesar da incerteza, sentiu-se quase serena enquanto se dirigia flutuando lentamente para o labirinto Especular.

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Capítulo 48

Ela pousou suavemente sobre seus pés no meio do que parecia ser um cárcere: um cárcere de espelhos. Estava rodeada de espelhos que se prolongavam indefinidamente para cima e, olhasse aonde olhasse, via seu reflexo repetido uma infinidade de vezes, cada vez menor, até perder-se na distância.

—Isto é um labirinto? — disse em voz alta, mas não ouviu unicamente sua voz, mas sim um coro de vozes, todas elas dela. Os espelhos não só refletiam sua imagem, mas também suas palavras.

Havia algo errado, além do fato de que não estava em um labirinto. «Eu devo ter encontrado a chave errada, mas... estranho, se parece comigo e ainda assim não se parece.» O reflexo que tinha diante dela, por alguma razão, era inexato. Estendeu o braço para ele e —«ah!» — o reflexo a agarrou pela mão e a puxou para o interior do espelho.

—Devemos nos apressar — disse o reflexo — Há muito para fazer e muita gente para ver, em muito pouco tempo.

—Mas... — Alyss não conseguiu pensar em nada para dizer.

O reflexo não lhe soltava o pulso, e a guiou a passo acelerado por entre corredores de espelhos que se ramificavam e serpenteavam até desaparecer ao longe, nichos e passadiços sem saída de superfície reflexiva. Inclusive o chão era um espelho. Levada de um lado para outro, Alyss intuía que seu reflexo tinha tomado aquela rota tão complicada só para confundi-la e desorientá-la. «É melhor que não tenha que encontrar o caminho de volta. » E é que teria sido totalmente impossível para ela; Alyss tinha perdido o norte por completo.

O reflexo a fez parar no que parecia uma zona de descanso, uma sala espelhada mais ampla que os corredores junto aos que tinham passado.

—Espere aqui — lhe indicou o reflexo — Logo terá companhia.

—Não me deixe! — Mas Alyss já estava sozinha. Ou não? Sua imagem lhe devolvia o olhar de todas as superfícies — Olá? — disse, e de novo um coro de vozes (as de seus reflexos) repetiu o que dizia. Ela elevou a mão para a que tinha mais perto para pegá-la, mas seus dedos não penetraram no espelho; só se chocaram contra a fria superfície de mercúrio.

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«Talvez eu devesse segui-la? » Mas Alyss já não sabia com segurança em que direção partiu seu reflexo. «Imagina uma saída. Isso deve ser o que se espera de mim. Com certeza se trata de uma prova. » Alyss se preparou para o esforço que requeria criar algo com a imaginação, mas, entre uma piscada e outra, viu alguém avançar para ela da distância de um espelho. A pessoa estava cada vez mais perto, e mesmo antes que Alyss pudesse distinguir os traços da mulher, reconheceu a roupa que vestia.

—Mãe! — exclamaram ela e seus reflexos com um grito afogado.

Genevieve ia vestida tal e qual sua filha a tinha visto pela última vez, mas sem a coroa. Situou-se bem do outro lado do espelho.

—Alyss — disse Genevieve, e o sorriso de nostalgia e orgulho que se desenhou no rosto da falecida Rainha fez as lágrimas brotarem dos olhos de sua filha.

—Transformou-se em uma mulher tão bonita quanto eu imaginava — comentou uma voz masculina.

Alyss voltou à cabeça e em um dos espelhos e viu, em lugar de sua própria imagem, a seu pai, Nolan, que lhe sorria afetuosamente.

—Papai! — disse e correu para abraçá-lo, desejosa de sentir o tato de seu pai, desaparecido fazia tanto tempo. «Não me importam o labirinto, nem Redd, nem o Coração de Cristal! Quero que nós voltemos a estar juntos! Quero recuperar a minha família!» Entretanto, Alyss não podia atravessar o espelho.

—O que é isto? — gritou — Onde estão?

—Estamos dentro de você, querida — respondeu seu pai.

Genevieve exalou um leve suspiro.

—Se triunfarmos sobre Redd, ninguém poderá dizer que nosso êxito não exigiu um sacrifício de nós. Mas às vezes penso que nos exigiu muito.

— A nós e a todos aqueles que lutam em defesa da Imaginação Branca — acrescentou Nolan.

— Sim, é obvio — disse Genevieve — O caminho para uma vitória de tamanha magnitude está condenado a encher-se de derrotas e fracassos.

Com um afável olhar de compaixão, Nolan passou de um espelho a outro até chegar junto a sua esposa. Rodeou-a com o braço e a beijou na testa, o que pareceu levantar o seu ânimo.

— Alyss — prosseguiu Genevieve —, é bom que tenha se proposto a exercitar sua imaginação. Vai bem encaminhada para desenvolver ao máximo o potencial e o controle de sua imaginação. Mas suas experiências e o que tem descoberto sobre ti mesma não são suficientes. Ainda não.

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— Olha-a bem! — riu Nolan — É uma adulta. Não precisa que seus pais a repreendam. Alyss, minha doce menina, bastará que tenha a metade da fé que os outros depositam em você para que tudo saia bem.

O casal real deu meia volta e pôs-se a andar para a distância no espelho.

— Esperem! — gritou Alyss — Não vão!

Mas Genevieve e Nolan continuaram caminhando.

— Espereeemm! Voltarei a lhes ver algum dia?

Eles pararam, aparentemente surpresos pela pergunta.

— Uma e outra, e outra, e outra vez — disse Nolan.

— Sempre e quando souber onde nos buscar — precisou Genevieve.

E então eles desapareceram, e o reflexo de Alyss voltou a ocupar o espelho.

As forças abandonaram à Princesa. Caiu de joelhos e afundou o rosto entre suas mãos. Jamais se recuperaria da perda repentina e violenta de seus pais, nunca aceitaria a ausência que sua morte tinha deixado. «Como podia fazer isso? Por acaso alguém poderia? » Seus soluços se amplificaram quando seus reflexos choraram com ela.

O pior já tinha passado. Só o que restava do arranque de tristeza que tinha sofrido Alyss era o soluço ocasional e a respiração entrecortada. Alguém lhe tocou o ombro.

—Pique! Agora é você!

Alyss elevou a cabeça e viu uma menina pequena. «É...? Mas como é possível? » tirou o cabelo do rosto e esfregou os olhos para ter certeza. «É idêntica a mim. »

Era ela: Alyss de Copass, aos sete anos de idade, usando seu vestido de aniversário.

—Quer que te siga? — perguntou Alyss.

A menina estalou a língua, irritada.

—Você nunca brincou de pique esconde?

—Sim, mas... já faz tempo isso. — A Princesa ficou de pé. Encontrar-se com uma versão mais jovem de si mesma não era coisa de todos os dias. Quem sabia aonde a levaria aquilo? — Muito bem — disse — É melhor começar a correr então.

Com um chiado de alegria, a menina se afastou a toda pressa pelo corredor. Alyss saiu atrás dela, e as duas percorreram um corredor atrás de outro do labirinto Especular. Com a mesma intensidade com que Alyss sumiu na angústia uns momentos antes, deixou-se levar agora pela euforia da brincadeira, rindo cada vez que estava a ponto de alcançar a Alyss mais jovem. Aproximou-se de uma esquina do labirinto e a pequena parou diante de um salto, para incitar à Princesa a tentar apanhá-la.

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—Hah!

As duas riam com tanta vontade que lhes custava correr, e quando a menina parou para recuperar o fôlego, Alyss apertou o passo e a agarrou.

— Peguei você! — exclamou, lhe fazendo cócegas.

— Não, não faça isso! Chega, chega!

A jovem Alyss gritava de prazer, pois, como era natural, a Princesa sabia onde tinha mais cócegas. Entretanto, a menina ficou séria de repente, afastou as mãos de Alyss de um empurrão e desviou o olhar para algo. Alyss se voltou para ver do que se tratava. Era um cetro encravado de Ouros coroado por um coração branco de cristal que estava ao final de um amplo corredor.

—Acha que consegue pegar esse cetro? — perguntou à pequena.

Parecia fácil. Alyss só tinha que andar pelo corredor e recolhê-lo.

— Por que não?

As paredes do corredor estavam recobertas de painéis espelhados e perfeitamente alinhados, um frente ao outro. Alyss deu um passo até situar-se entre o primeiro par, e seus reflexos começaram a dar voltas e voltas até formar uma espécie de vórtice, e de repente ela já não estava no labirinto Especular. Encontrava-se em um nada sem nenhuma característica especial, em meio de um torvelinho de imagens que formavam redemoinhos em torno dela. Mas se tratava só de imagens? Pareciam tão reais, e as pessoas que apareciam nelas... suas palavras e gestos feriam tanto quanto os de seres de carne e osso.

—Cortem-lhe a cabeça! Cortem-lhe a cabeça!

Redd voou em direção a Princesa. Alyss se afastou de um salto, com o coração desbocado, e então...

Aí estava Dodge, quando menino, com seu uniforme de membro da guarda, recebendo uma lição do juiz Anders sobre o protocolo que deviam observar os integrantes do corpo. Entretanto, igual à Redd segundos antes, se esfumaram. Agora tinha diante de sí Quigly Gaffer, apontando-a e rindo em sua cara como se ela fosse a criatura mais ridícula que tivesse visto.

—Pare. — lhe disse ela.

Não obstante, às gargalhadas do Quigly se somaram as do resto dos órfãos de Londres: Charlie Turnbull, Andrew MacLean, Otis Oglethorpe, Francine Forge, Esther Wilkes e Margaret Blemin, assim como algumas das monitoras que tinha conhecido no orfanato de Charing Cross.

— Parem com isso! — gritou.

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Suas gargalhadas continuaram ressonando nos seus ouvidos mesmo depois de que sua imagem se evaporasse. Agora estava contemplando uma cena silenciosa mas confusa: ela e o príncipe Leopoldo, rodeados por quem parecia ser seus quatro filhos, num picnic no bosque Eterno com o decano Liddell e sua esposa. Dois dos meninos eram muito pequenos, mas tinham as feições de Genevieve e Nolan. Alyss quis chamar sua família, mas não lhe saía à voz. O Gato se erguia sobre sua família, totalmente alheia a sua presença, lambendo o sangue das patas até que uma gota caiu ao chão e se converteu em um mar sanguinolento e encrespado no qual sua família começou a afogar-se. Também estavam imersos nele os alysianos — Dodge, Jacob, Somber, o general Doppelgänger, os milicianos —, todos se afogando. Mas então o mar desaguou por uma porta aberta, arrastando consigo seus amigos e entes queridos. Em cima da porta havia um letreiro luminoso que indicava a saída, e junto a ele se encontrava o mordomo morsa.

—Ai, céus — se lamentou a morsa — Isto só vai ficar pior, Princesa. Não têm por que passar por isso. Não é necessário. Por favor, vos rogo que parta enquanto possa. — Com a aleta esquerda, fez-lhe um gesto apressando-a para que saísse pela porta.

Mas Alyss não se deixou convencer. O labirinto lhe tinha mostrado aquelas imagens para abrandá-la, para fazê-la mais vulnerável ao que fosse que tivesse que confrontar a seguir. Estava decidida a confrontá-lo.

Deu as costas à morsa, levantou um pé para dar um passo para o vazio que tinha ante si e se encontrou de novo no labirinto Especular, no corredor que conduzia até o cetro.

Tinha conseguido deixar atrás o primeiro par de painéis espelhados.

Avançou até colocar-se entre o segundo par, e no ato o labirinto se desvaneceu e ela se encontrou no salão sul do palácio de Copas, o cenário da invasão de Redd.

«Deveria ter ido, ter fugido. »

—Não preciso ver isto — disse.

Todos os presentes na sala olhavam fixamente ao gatinho que tinha começado a mudar de forma para transformar-se no Gato, quando...

—Não! — uivou Alyss.

Kraaaaawbooosh!

Uma explosão fez saltar as portas em pedaços, e Redd e seus soldados renegados irromperam no salão. Alyss se viu obrigada a reviver o horror daquele momento desgraçado, presenciar de novo o assassinato do juiz Anders e a destruição de seu lar, assim como o instante em que ela mesma esteve a ponto de morrer às mãos de Redd. «Uma vez já foi demais! Ninguém teria que viver uma experiência tão horrivel! Ninguém!» Com uma fúria crescente, observou Somber e a Alyss de sete anos saltar através do portal de emergência do palácio (essa separação final e dilaceradora de sua mãe), e Genevieve, que se voltou para sua irmã para enfrentá-la a sós. Então viu o que não presenciou nesse dia: a sua mãe presa pelas

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rosas carnívoras de Redd, e a decapitação de Genevieve por parte de Redd com um só golpe do feixe de energia escarlate. «A assassina de meus pais!»

—Aaah!

Arrancou a correr para Redd, com fúria no coração. Mas a distância que a separava de Redd aumentou, e de repente o Dodge de vinte e três anos corria a seu lado, lhe dizendo com uma voz tensa por causa da ira:

—O ódio te infunde força. Não há mais justiça que a da vingança. Só conseguirá vencer Redd se alimentar sua raiva.

O Gato se interpôs em seu caminho de um salto, e Dodge afundou sua espada na besta uma e outra vez. Entretanto, isto não parecia mitigar sua fúria, que aparentemente seguiria viva por mais que matasse ao desumano capanga de Redd.

Alyss estava perto o bastante de Redd para atacá-la — por fim — quando a cabeça de sua mãe, que tinha rodado até um rincão, abriu os olhos e falou.

—A ira se nutre da Imaginação Negra, Alyss. Se sucumbir a sua ira, se transformará em um mero peão da Imaginação Negra, que pode triunfar temporalmente mas não para toda a eternidade.

—Mas olhe o que aconteceu com você! — replicou Alyss.

—Sim, me olhe. Não parece significativo que seja eu quem te diz estas coisas?

Não obstante, a pressão da raiva na cabeça de Alyss era muito forte.

—Sim é significativo! Significa que foi fraca e que por isso te derrotaram! — gritou, e ato seguido arrebatou o cetro de sua tia e lhe cortou a cabeça de um só golpe, tal como Redd tinha matado Genevieve.

Redd e as rosas se fundiram no chão e Alyss descobriu que se encontrava em uma sala circular com paredes de cristal telescópico que lhe permitiam ver o deserto Damero e Marvilópolis em sua totalidade.

Jacob entrou a toda pressa na sala com um livro aberto entre as mãos, lendo-o com urgencia, ansioso por fazer-se entender:

—Feg lubra messingpla gri bônus plam — leu o preceptor — Tyjk grrsplinuff rosh ingo.

—Jacob?

—Zixwaquit! Zergl grgl! Fffgburglgrgl!

O preceptor continuou balbuciando incoerências, cada vez mais alterado ante a incapacidade de Alyss de compreendê-lo. Então ela vislumbrou sua própria imagem em um espelho. Em lugar de suas feições habituais, viu Redd, que lhe devolvia o olhar. Transformou-se em Redd.

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—NÃO!

Destroçou o espelho, e tudo aquilo que a rodeava — a sala circular, o Jacob incoerente — explodiu em fragmentos em torno dela, que ficou de pé ante o espelho de entrada do labirinto; do outro lado do cristal, o combate entre alysianos e soldados de Redd continuava detido no tempo.

—Por que estou aqui? O que significa isto?

—Hahm, hum.

Umas nuvens de fumaça cruzaram seu campo visual. Ao voltar-se, ela viu a lagarta azul, fumando em seu narguile.

— Significa que fracassou Princesa.

— Eu...? — «Não posso fracassar. O labirinto está destinado a mim» — Mas...

— Não conseguiu percorrer o labirinto. É algo desafortunado para todos nós, mas não há remédio. Deve sair através do espelho e se reincorporar a batalha.

«O fracasso não é uma opção. Não pode ser. » Alyss teria preferido estar em qualquer outro lugar, mas não podia ir ainda, não como uma fracassada.

—É inaceitável — afirmou — Não aceito isso.

E antes que Azul pudesse lhe jogar fumaça no rosto, mergulhou correndo no labirinto. Perdeu-se em seguida, mas nem tudo estava perdido enquanto ela permanecesse ali. Ainda podia cumprir sua missão. Do contrário, o que seria de...?

Uma figura apareceu mais adiante, no corredor.

— Somber!

Oh, quanto se alegrava de vê-lo. Mas o capitão da Chapelaria, sem abrir a boca, elevou uma espada e se lançou para ela.

— Espera! O que está...?

Tinha que fazer algo depressa. Imaginou que empunhava uma espada e, antes de dar-se conta, estava encetada em combate com o homem mítico; ele como agressor, ela surpreendendo-se a si mesma com uma defesa que consistia em refletir os movimentos dele como um espelho.

Somber baixou a arma ao fim e se afastou, com uma expressão que denotava sua aprovação.

—Muito bem.

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Alyss compreendeu que a estava pondo a prova para desenvolver suas habilidades marciais, ou melhor dizendo, estava adestrando sua imaginação para que reforçasse suas habilidades marciais. Não obstante, quando apareceu um segundo Somber Logan...

«Terei que lutar contra dois deles? »

Além da espada, Alyss se armou com uma mão de Tyman. Intercambiou golpes com os dois Somber. Ouviu-se o entrechocar metálico das armas. Cada vez que um deles executava um movimento que ela não tinha visto antes, ela rapidamente se apropriava dele; imaginava que fazia parte de seu repertório. Mas não lhe bastaria visualizando-se como uma perita no manejo da espada; teria que empregar sua imaginação de outras maneiras porque um terceiro e um quarto Somber vinham para ela, e logo um quinto e um sexto. Enquanto cruzava a espada com um deles, imaginou que os outros recebiam também o golpe. Entretanto, isto foi insuficiente, pois mais réplicas de Somber se aproximavam, assim que ela invocou aos seus inumeráveis reflexos para que fossem em sua ajuda. Estes emergiram de seus espelhos, espada em mão, e agora para cada Somber Logan havia uma Alyss de Copas pronta para combater contra ele.

—Excelente — disse um dos Somber, e a um sinal dele, o resto dos homens da Chapelaria embainhou as espadas e ativou as navalhas dos pulsos e jogou mão de sua cartola bumerangue.

«Começo a me cansar, não estou certa de quanto tempo poderei... »

Imaginou que cartas adaga saíam disparadas das mangas de seu uniforme, mas os Somber as rechaçaram com facilidade. Alyss nunca antes tinha desdobrado os poderes de sua imaginação com tal precisão e intensidade, nem durante tanto tempo.

Estava esgotada.

Ao prever sua iminente derrota, lançou bolas de uma substância gomosa das mangas de sua uniforme. As bolas se aderiram às armas dos Somber, que deixaram de girar. Nesse instante, Alyss aspirou fundo e soprou, provocando tal vendaval que os Somber saíram voando e caíram esparramados por todo o corredor.

O combate tinha terminado. Alyss estava sozinha entre os Somber vencidos, pois os reflexos tinham voltado para seus espelhos.

— O controle e o poder não são tudo — asseverou um dos Somber — Deve se transformar no agente através do qual uma causa é mais elevada do que o triunfo de qualquer ser individual. Então talvez seja merecedora do Coração de Cristal.

Os Somber se levantaram do chão, fizeram uma reverência e se afastaram pelos diversos corredores do labirinto. Depois de um breve descanso, Alyss se sentia cheia de força e saúde, melhor que antes de enfrentar os Somber.

«Melhor do que me senti em muito, muito tempo... Talvez melhor que nunca. »

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Era um bem-estar muito parecido ao que estava acostumada a experimentar antes de fazer sete anos, quando se acreditava capaz de tudo e o mundo lhe parecia belo.

«O que foi isso? »

Um rangido, como se alguém elevasse um objeto pesado. E vozes.

«À esquerda? Sim, ouço-as de novo. »

Seguiu aqueles sons e, ao chegar ao final de um corredor estreito, encontrou-se com o Dodge, Jacob, Somber, o general Doppelgänger, o cavalheiro branco e a torre, ajoelhados, com as mãos às costas e a cabeça colocada em uma guilhotina enorme. A rainha Redd e o Gato a esperavam junto à alavanca que ativava o mecanismo para fazer cair à guilhotina.

—Mas eu matei você — disse Alyss.

—Você? —Redd se voltou para o Gato — Por que não me informou disso?

O Gato deu de ombros.

«Isto é real ou uma fantasia? Não pode ser real, posto que não esteja morta, assim não porei a ninguém em perigo se me retirar. Partirei sem mais. »

Mas não podia; a visão dos alysianos aprisionados a mantinha paralisada. Não queria arriscar-se, quanto à realidade que havia naquela cena. Face às (aparentemente) múltiplas vidas de Redd, como Alyss podia estar segura de que se alguém morria no labirinto, continuaria com vida no exterior?

— Matarei você de novo se precisar — disse Alyss, dando um passo à frente.

— Talvez — respondeu Redd —, mas isso não salvará seus amigos.

Alyss voltou a imaginar que lhe saíam bolas daquela substância pegajosa das mangas e que entupia com elas o mecanismo da guilhotina, impedindo com isso que a lâmina caísse.

Nada.

Imaginou que a lâmina se transformava em água que se vertia sobre as cabeças dos alysianos.

Nada.

Redd riu.

— O mais bonito de estar aqui — disse, assinalando o labirinto —, é que posso imaginar que sua imaginação fica inutilizada. Ah, Oxalá isto funcionasse também no exterior. Mas basta de bate-papo. Se for morrer (coisa que, de fato, ocorrerá), tenho certeza de que preferirá acabar com isso o quanto antes. Sem você, estas pessoas não representam perigo nenhum para mim. Só há uma maneira em que pode salvá-los: se rendendo. Não perde nada com isso; afinal, vou te matar cedo ou tarde. E então tanto seus amigos como você estarão

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mortos. Não obstante, para me economizar aborrecimentos, dou a você a possibilidade de escolher.

Mas como Alyss podia ter certeza de que, se se sacrificava, Redd perdoaria a vida de seus amigos, por não falar de deixá-los em liberdade? Não era mais provável que, uma vez que Alyss estivesse morta, Redd eliminasse aos alysianos só porque podia fazê-lo? Por outro lado, e se em um gesto de indulgência inaudito Redd os deixava viver? Tinham lutado em defesa da Imaginação Branca durante treze anos sem Alyss. Se, ao aceitar a sacrificar-se, ela podia arrancar de Redd a promessa de respeitar sua vida, não lhe exigia seu dever esse sacrifício? Talvez depois se apresentaria a oportunidade de fugir; talvez Somber encontrase uma maneira. O espírito da Imaginação Branca sobreviveria neles. Só existiria enquanto eles existissem.

Pensando que se tratava da última ação de sua curta e conturbada vida, a princesa Alyss de Copas se ajoelhou ante sua tia.

—Aqui está a minha herança — disse Redd, elevando seu cetro. Mas no instante em que sua fria folha tocou a tenra nuca de Alyss...

Zzzomp!

A cena desapareceu e a Princesa se achou diretamene diante do cetro do coração branco.

«Consegui...? Realmente consegui...? »

Estendeu a mão para o cetro e, assim que seus dedos se fecharam em torno de seu punho, ela se viu transportada pela magia do labirinto de volta à loja de quebra-cabeças, onde a encarniçada batalha entre os alysianos e os soldados de Redd se reatou.

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Capítulo 49

A chave do labirinto Especular emitia brilhos ritmicamente. Alyss se surpreendeu ao vê-la na palma de sua mão, mas uma Aspirante nunca saía do labirinto com menos do que tinha ao entrar; embora, em seu caso, Alyss esperava ter saído com muito mais.

Com o cubo resplandecente em uma mão e o cetro com o coração branco na outra, Alyss permaneceu imóvel no meio do combate. Um naipe número Quatro tentou atacá-la, mas lhe soprou e ele saiu voando para trás e atravessou uma parede da loja de quebra-cabeças.

— Princesa! — exclamou Molly, a do Chapéu.

—Tem o cetro! — A alegria de Jacob teria provocado que ficasse trespassado na espada de um naipe número Dois se Molly não houvesse se interposto com seu chapéu escudo.

Um par de números Três se separaram de Somber e se dirigiram para Alyss, mas mesmo antes de que ele pudesse reagir com um rápido golpe duplo, Alyss cravou a ponta de seu cetro na pequena zona situada sobre o peitilho dos naipes soldado. Estes se renderam, inativos, mortos, ao mesmo tempo em que um rastreador entrava como um cometa na loja e arrebatava de Alyss o cubo luminoso. Molly se dispunha a jogar seu chapéu contra a criatura quando...

—Deixe que o leve — disse Alyss — Já não precisamos dele.

Ouviu os rastreadores dispersarem-se no ar, com rumo ao monte Solitário. «E agora, o resto dos naipes soldados. »

Alyss deu um golpe no chão com o cetro, que se partiu em muitos cetros idênticos, mas menores. Ela fez um gesto com a mão, e os cetros saíram propulsados para o ponto vulnerável de todos os naipes soldado, cada um dos quais se rendeu e deixou de representar uma ameaça. Os alysianos se encontraram de repente em uma calma absoluta, rodeados de cadáveres de membros do Baralho.

Dodge, o general Doppelgänger, os milicianos... todos se voltaram para sua Princesa. A Imaginação Branca brilhava nela com tal pureza — agora que a qualidade vagamente luminescente que se apreciava nela quando era menina se mostrava em todo seu esplendor, sem as sombras da imaturidade, a incerteza ou a relutância — que ela reluzia como um sol, radiante com sua nova força. Todas as dúvidas que pudessem abrigar os alysianos sobre sua capacidade para liderá-los-se dissiparam assim que pousaram os olhos nela.

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—Eu diria que está preparada, não acham? — disse a torre.

Todos os alysianos prorromperam em gritos de júbilo, exceto Dodge, cuja oportunidade de vingar-se nunca tinha estado tão perto. A luminescência do Alyss se reduziu a um brilho tênue e constante enquanto ela estudava seu amigo de infância. Sua experiência no labirinto a fazia mais consciente de seu comportamento.

«Não reconheceu a verdade quando me levou ao palácio naquela ocasião? Não admitiu que lhe importasse mais a vingança que reinstaurar a Imaginação Branca no poder e devolver ao País das Maravilhas a glória perdida? Mais vale que não o perca de vista. » Nem a ele nem a nenhuma outra pessoa que avivasse o fogo de sua Imaginação Negra com a isca do ódio.

— Virão mais soldados do Baralho — avisou o general Doppelgänger.

— Que venham — disse Alyss.

Saiu da loja de quebra-cabeças, seguida pelos alysianos. Situou-se em meio da Avenida Esmeralda e elevou a vista para os edifícios e as torres desvencilhadas do bairro em que se encontravam, como se sentisse a dor daquelas estruturas inanimadas, as nefastas consequências do reinado de Redd que tinha sofrido sua amada Marvilópolis. Continuando, centrou sua imaginação nas cercas publicitárias holográficas instaladas por toda a cidade. Sem o menor gesto de esforço, imaginou que aparecia seu rosto em lugar dos anúncios e ofertas de recompensas que estavam acostumados a expor-se neles.

—Já não fugirei mais de você, Redd. É hora de que você fuja.

Enquanto Alyss pronunciava estas palavras na avenida Esmeralda, suas imagens holográficas as repetiam em todas as ruas. Os marvilianos interromperam suas atividades, legais ou ilegais, para contemplar à bela mulher que lhes falava das cercas nas quais, até então, só tinham visto Redd. Não eram poucos os que queriam que a mestre da Imaginação Negra continuassee no poder, pois sabiam como tirar proveito de um mundo governado por ela, mas a maioria dos marvilianos, embora não se atrevessem a manifestar isso em voz alta, alegrou-se em seu intimo pelo retorno de Alyss.

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Capítulo 50

— Fugir, eu? — gargalhou Redd. Ficou olhando o exterior da cúpula de observação com os olhos entrecerrados uma vez que a emissão de Alyss terminou. — A segurança em si mesma de Alyss de Copas, totalmente injustificada, será sua perdição.

— Hoje, o País das Maravilhas se verá livre para sempre de Alyss de Copas! —asseverou o Valete de Ouros, inflando sua já inchada barriga. Talvez tenha se excedido em sua ânsia por agradar a Redd, pois esta, irritada, jogou uma olhada à Peruca Bestial. —Vos... Rogo-vos que me perdoe por falar, Sua Malignidade Imperial.

—Rogue tudo o que quiser idiota empoado e mimado. Se eu não consiguir entrar no labirinto Especular logo, não te servirá de nada.

O Gato desdobrou um largo sorriso e lambeu os bigodes.

O Senhor e a Dama de Ouros, o Senhor e a Dama de Paus e o Senhor e a Dama de Espadas — todos eles integrantes do Gabinete de Supervisão Militar de Redd — arrastaram os pés, pigarrearam e em geral encenaram todos os tics nervosos aos que recorrem às pessoas que não estão seguras de como congraçar-se com sua volúvel e imprevisível líder.

—Sua Malignidade Imperial — se atreveu a dizer a Dama de Paus, com o devido respeito, mesmo se Alyss não representa um perigo, nós acreditamos que deveria transladar o Coração de Cristal a um lugar mais seguro.

Redd achou isso engraçado, de certa forma patético, pois nem a Dama de Paus nem nenhum outro membro do gabinete sabiam onde estava o Coração de Cristal.

— «Nós?» — protestou a Dama de Ouros — A Dama de Paus não fala em nome dos outros, Sua Malignidade Imperial.

— Não fala em nome dos outros absolutamente — a secundou o Senhor de Espadas.

— Acaba de me dizer o que tenho que fazer? — perguntou Redd, com uma sobrancelha arqueada, à Dama de Paus.

— Peço desculpas, Sua Malignidade Imperial, meu comentário foi inopor...

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— Por acaso acredita que meu poder não é suficiente para proteger o Coração de Cristal? Supõe, de fato, que meu reinado corre perigo?

— Não, é obvio que não. O que queria dizer é...

A Dama de Paus teve sorte de que os chiados dos rastreadores a interrompessem semelhantes aos berros de um bebê estrangulado. O Gato saiu saltando da cúpula e voltou antes que Redd pudesse impacientar-se. Em uma pata levava o cubo luminoso, chave do labirinto Especular. Redd estendeu a mão, e o cubo voou para ela.

—De qualquer modo — disse toqueteando cada uma das faces do cubo, apertando-o, lhe dando voltas em todas as direções —, não há por que preocupar-se com o Coração de Cristal. Não está nesta fortaleza. Por que não posso fazer isto funcionar?

O Valete de Ouros se aproximou.

—Me deixe tentar, Sua Malignidade Imperial.

O Valete pegou o cubo. Tateou cada uma de suas faces, apertou-o e lhe deu voltas em todas as direções. Agitou-o junto a sua orelha, para tentar escutar se havia peças soltas dentro, enquanto Redd dirigia umas palavras a seu gabinete.

—Nego-me a abandonar esta fortaleza. Pareceria um ato de covardia, posto que não tenho nada a temer. Se Alyss quer enfrentar a mim, melhor. Acabarei com ela. Mas que ninguém diga que a rainha Redd é uma insensível. Se eu não tenho poder, vocês têm ainda menos do que lhes faço acreditar. Alyss não os mimaria tanto quanto eu. Se assim se sentirem melhor, ordenem ao Baralho que prepare uma defesa. O Gato se encarregará dos olhos-de-vidro.

—Sua Malignidade Imperial — disse o Gato e atraiu a atenção de Redd apontando com um movimento de cabeça ao Valete de Ouros, que continuava lutando com o cubo de vidro.

—O que foi? — disse o Valete — Não está quebrado. Decifrar a chave leva tempo, mas eu estou a ponto. Insisto, não está quebrado.

—Melhor que não — lhe advertiu Redd através de uns lábios finos e pálidos.

Saiu velozmente da cúpula, desceu pelo corredor em espiral e atravessou uma ampla sala de baile que nunca utilizou. A parede do fundo do banheiro estava decorada com um enorme mosaico de quartzo e ágata que representava o rosto da Rainha. Quando Redd chegou até ali, a boca do retrato se abriu e ela entrou em um corredor secreto que só ela e o Gato conheciam. O corredor conduzia a um balcão que dava ao oco interior da fortaleza. Era ali, na câmara secreta do castelo, onde o Coração de Cristal, sustentado por vários suportes, brilhava com a luz cor carmesim escuro que despedia desde que Redd usurpou o poder. Ela se inclinou sobre o corrimão do balcão e pousou as mãos no cristal para absorver sua energia e reunir forças para a batalha que se avizinhava.

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Capítulo 51

A princesa Alyss de Copas foi vista pedindo uma jarra de cidra em uma cervejaria próxima ao centro da cidade. Foi descoberta mordiscando um kebab de guinuco da Rua Tyman e tratando de passar despercebida na avenida que discorria frente aos blocos residenciais de Redd. Avistaram-na entrando na estação de metro da praça de Redd e em vários lugares mais, enfrascada em atividades diversas. Entretanto, os olhos-de-vidro e os naipes soldado enviados para eliminar a estas Alyss não encontravam nada, pois estas eram espectros de Alyss, reflexos que tinham cobrado vida, imaginações da Princesa de verdade que ela tinha espalhado por todo o reino para confundir ao olho de Redd, que tudo via.

Enquanto as forças de Redd estavam ocupadas com os chamarizes, Alyss e seus companheiros chegaram à borda do deserto Damero. O terreno quadriculado se estendia ante eles. O promontório do monte Solitário se elevava sobre ele à meia distancia. O cavalheiro branco e o miliciano torre se ocupavam de seus homens, enfaixando as feridas que tinham sofrido na escaramuça da Avenida Esmeralda, lhes ordenando que passassem em revista às reservas de munição e que se certificassem de que as armas funcionassem bem. Dodge se encerrou em si mesmo, examinando a espada que tinha sobre os joelhos, para assegurar-se de que estaria em condições de fazer o que ele se propôs: arrebatar ao Gato suas vidas. Alyss devia estar totalmente concentrada no desenvolvimento de uma estratégia militar sólida, mas não podia evitar lançar um olhar a Dodge de vez em quando, de modo que tinha a atenção dividida.

«Não quer me escutar. Não quer escutar a ninguém. E se faço aparecer um copia do Gato para que lute contra ele? Ajudaria-lhe a desterrar o ódio de sua alma? »

— Alyss.

— Sim?

A julgar pela expressão de Jacob Noncelo, Somber Logan, Molly, a do Chapéu e o general Doppelgänger, era evidente que Alyss tinha deixado passar alguma coisa.

— Fica um longo trecho de deserto por cruzar — disse Jacob, assinalando a distância que ainda os separava da fortaleza.

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— E está o problema do ataque ao monte Solitário, que está muito bem fortificado — adicionou o general. — Precisamos de um exército mais numeroso que o de Redd.

«Não devo fomentar o ódio. Não farei aparecer o Gato. »

—Nosso objetivo é derrotar Redd — disse Alyss, em voz o bastante alta para que Dodge a ouvisse — Nosso objetivo é o Coração de Cristal, não a vingança.

Dodge não levantou os olhos de sua espada.

«Ouviu-me. Sei que me ouviu. »

—Onde Redd estiver, encontraremos o Coração de Cristal — afirmou Jacob — Lhe interessa permanecer perto dele para potencializar sua força ao máximo.

—Mas pode criar um exército tão numeroso como o que precisamos Princesa? —perguntou o general Doppelgänger.

—Não sei. — Materializar vários clones de si mesma era uma coisa, mas um exército inteiro?

—Deve tentar — disse Jacob.

Ela se voltou para os outros. Somber fez uma reverência em silêncio. Molly assentiu com a cabeça, ansiosa. Os milicianos ficaram observando, esperando. Até mesmo Dodge a olhava. Para fazer aparecer um exército, teria que proceder com concentração e precisão extremas. Devia imaginar vividamente milhões de detalhes relativos à vestimenta e as armas; se descuidava um só deles, poria em perigo o conjunto e todas suas imaginações teriam sido em vão. Possivelmente se sentia mais forte que alguma vez, mas se sentia o bastante forte para atacar aquela tarefa?

Seu cetro, que voltara a ficar inteiro, deixava traslucir a intensidade de seu esforço. O coração de cristal branco que tinha na parte superior brilhava cada vez mais, começou a cintilar e crepitar até envolver Alyss em uma nuvem de cargas elétricas que relampejava e lançava raios de energia. Quando os fogos de artifício cessaram e Alyss voltou a dirigir o olhar ao que a rodeava em vez da suas visões interiores, contemplou um imenso exército de soldados alysianos formados em ventosas atrás dela. Embora os soldados situados diante estavam perto, eram tantos que ela não alcançava a ver o final das filas.

«Consegui-o. Con... »

Alguém ria. Alyss se voltou.

—Sinto muito, princesa Alyss — disse Molly, cobrindo a boca com a mão, mas incapaz de parar de rir.

Que bicho tinha mordido à garota? Jacob, que nunca confiava nas aparências, aproximou-se do exército que Alyss tinha criado para inspecioná-lo com cuidado.

—Ah.

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O exército se compunha de soldados de brinquedo, figuras não maiores que as orelhas do preceptor.

—A Princesa está muito longe do Coração de Cristal — disse ele — Não pode vencer a Redd daqui.

O general Doppelgänger se dividiu nos generais gêmeos Doppel e Gänger, e ambos ficaram a caminhar nervosamente de um lado a outro, em perfeita sincronia.

—Bom, de algum jeito temos que chegar até onde ela está! —disse o general Doppel.

—Mas sem um exército de soldados de tamanho normal — objetou o general Gänger —, nossa causa está perdida.

Foi à vez de Alyss se aproximar dos soldaddos. Para ela eles pareciam bem aceitaveis. «É curioso como à perspectiva pode pregar peças à mente. » Recolheu um dos soldados de brinquedo e imaginou que marachava daqui para lá sobre a palma de sua mão.

—Tenho uma idéia — disse.

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Capítulo 52

A fortaleza estava bem guarnecida. Os regimentos do Baralho de todos os rincões do reino tinham sido mobilizados e estavam postados na linha de frente. Atrás deles se encontravam inumeráveis seções de olhos-de-vidro. Tanto os naipes soldado como os olhos-de-vidro estavam equipados com toda a gama de armas disponíveis no País das Maravilhas de Redd: esferas geradoras, granadas de serpentes, arranhas obus, AD52, e adagas e espadas de todo tipo.

Quando os sóis saíram para iluminar o novo dia, Redd estava tomando como café da manhã patas de lucirguero rangentes e picantes na cúpula de observação. O Gato e os membros de seu gabinete, que não tinham comido nada desde o dia anterior ao meio dia, observavam-na com olhos famintos, mas não diziam nada. O Valete de Ouros tinha optado sabiamente por desculpar-se e sair da cúpula, mas mais porque o punha muito nervoso que a Rainha o olhasse brincar inutilmente com a chave do labirinto Especular que pelos grunhidos de seu estômago.

Redd fincou o dente na última pata de lucirguero que restava, o último vestígio da escuridão noturna se dissipou, e todos o viram de uma vez. Teria sido impossível passá-lo por alto estando diante do cristal telescópico: um exército de alysianos, que parecia rivalizar em número com a população de todo o reino, concentrado a escassa distância, aguardando o sinal para atacar. Ao igual às tropas de Redd, os alysianos estavam armados com esferas geradoras, granadas de serpentes, arranha obus e AD52.

— Como Alyss conseguiu reunir um exército tão enorme? — perguntou a Dama de Espadas.

— Simplesmente terão um número maior de baixas — resmungou Redd, furiosa.

Sentada escarranchada sobre um maspíritu à frente dos soldados, Alyss elevou o braço por cima de sua cabeça e, momentos depois, o baixou bruscamente. Os alysianos se lançaram para a fortaleza.

— Lancem o primeiro ataque. — ordenou Redd.

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No exterior, o Baralho disparou esferas geradoras e aranhas obus contra os alysianos que se aproximavam. Muitos projéteis impactaram diretamente nas hostes agressoras, de forma que teriam que ter arrasado colunas inteiras. Uma vez efetuada esta descarga, os naipes soldado carregaram sobre a fumaça e as chamas. Redd, segura de si mesma, contemplava a cena de sua posição privilegiada na cúpula, mas quando a fumaça se dissipou, viu seus soldados rodeados por alysianos diminutos. Suas armas tinham tido um efeito nulo sobre aquele exército em miniatura, que prosseguiu seu avanço para a fortaleza.

O rosto de Redd se crispou de repente, quando se deu conta do que estava acontecendo.

— Como pude ser tão estúpida?

O Gato tentava elucidar se se tratava de uma pergunta retórica quando ela rugiu:

— É um produto da imaginação dela!

Redd agitou o braço com um movimento desdenhoso, e ato seguido Alyss e seu exército começaram a resplandecer de forma que os milhares de milhões de pontos de energia de que se compunham ficaram visíveis por uns instantes, antes de explodir e desaparecer por completo. Redd varreu o reino com o olho de sua imaginação.

— Onde está, Alyss? Onde anda minha querida sobrinhazinha?

Alyss e os outros ouviram as explosões e os sons ásperos e metálicos que produzia o Baralho ao dirigir-se a passo acelerado para o exército imaginado enquanto eles se aproximavam da fortaleza pelo lado oposto. Até esse momento, sua aproximação tinha passado despercebida; avançavam unicamente pelos quadrados negros de breu e pedra vulcânica do deserto para que Redd não os localizasse. Entretanto, para entrar na fortaleza não tinham outra opção que lançar-se ao ataque a peito aberto.

Barricado atrás de uma rocha negra, Somber fez as navalhas sair de sua cartola e as lançou aos naipes soldado e aos olhos-de-vidro que vigiavam a entrada da fortaleza. Enquanto a arma continuava no ar, ativou as navalhas de seus pulsos e atacou contra o inimigo. Molly aplanou seu chapéu para transformá-lo no escudo de bordas afiadas e se situou a sua esquerda com o Dodge, enquanto os generais Doppel e Gänger se colocavam a sua direita, seguidos pelos milicianos do Xadrez.

—Devemos estar perto do Coração de Cristal — disse Alyss a Jacob.

O preceptor a olhou, e as orelhas se curvaram em um gesto inquisitivo.

—Sinto-me... Não sei como explicar isso.

A Princesa levantou ambos os braços e estendeu seus dez dedos para a luta que se desenrrolava ante ela. Raios de energia brilhantes como estrelas brotaram de seus dedos, ramificaram-se e envolveram aos naipes soldado e os olhos-de-vidro até que cada um deles estava preso ao extremo de um dos raios, cujo extremo oposto continuava unido aos dedos de Alyss. Então a Princesa elevou os braços por cima de sua cabeça, e tanto os naipes soldado

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como os olhos-de-vidro se elevaram no ar, impotentes. Continuando, saíram voando para o céu, dando voltas. Em algum lugar do deserto Damero começaram a chover naipes soldado e olhos-de-vidro.

Os estampidos das esferas geradoras ao explodir sobre o exército imaginado por Alyss ainda chegavam até os ouvidos dos alysianos, mas cessaram pouco depois de que eles entrassem na fortaleza. O silêncio só podia significar uma coisa.

—Ela sabe — murmurou Alyss.

—Pode vê-la? — perguntou Jacob.

Alyss sentia a proximidade do Coração de Cristal. Nunca antes tinha sido capaz de visualizar a distância, mas a imagem de Redd apareceu nítida ante o olho de sua imaginação. Sua tia estava de pé em uma sala ampla da que ascendia um corredor em espiral, com um sorriso frio nos lábios, fazendo gestos a Alyss para que se aproximasse. Atrás da Rainha palpitava com ritmo constante o Coração de Cristal, escondido de algum jeito.

—Está me esperando — disse Alyss.

—Deveríamos nos dividir em grupos para estar mais seguros — os apressou o general Doppel — Além disso, assim poderemos cercar Redd se nos apresenta a ocasião. Jacob, Torre, Molly, venham conosco.

—Eu fico com a princesa Alyss — repôs Molly.

Outros intercambiaram olhadas. A moça não parecia disposta a dar seu braço a torcer, e não era um bom momento para discutir.

—Deixem que venha comigo — disse Alyss.

Os generais agacharam à cabeça: os desejos da Princesa eram ordens.

—Torre, Somber e Dodge também lhes acompanharão — indicou o general Doppel, e foi então quando advertiram que Dodge já não estava com eles.

—Aonde terá ido? — inquiriu o general Gänger.

«Procurar o Gato. » Alyss o viu com o olho de sua imaginação, avançando sigilosamente por um corredor. «E se se encontrar com Redd? Tentará lutar contra ela e perderá. » A Princesa dirigiu um olhar de preocupação a Jacob. Ele também sabia por que Dodge os tinha abandonado. E sabia que o desejo egoísta de vingança do jovem podia comprometer as possibilidades de êxito dos alysianos.

—Vamos dividir os peões — disse o general Doppel.

—Reunan-se conosco junto ao Coração de Cristal — propôs Alyss — Procurem um corredor em espiral.

Os generais se inclinaram ante ela.

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—Para então, esperemos que a paz da Imaginação Branca se reinstaure no reino.

Guiando-se com a ajuda do olho de sua imaginação, Alyss conduziu Molly, Somber Logan e milicianos através da fortaleza. Dava a impressão de que esteve ali antes, pelo modo com que se orientava sem vacilar pelos corredores, direto para Redd, enquanto, em outro lado, Dodge, evitando aos grupos de naipes soldado que patrulhavam os lúgubres salões e corredores (resultava-lhe fácil evitar ao inimigo quando atuava sozinho), ia à caça do Gato.

—Vêem aqui, bichano. Vêem aqui, bichano, bichano.

Já tinha percorrido silenciosamente as plantas inferiores da fortaleza, tinha dado uma olhada à caverna dos rastreadores e à câmara dos olhos-de-vidro, ambas desertas, e agora subia piso a piso, procurando de maneira sistemática. Ante ele, o corredor se curvava para cima e para um lado, como um saca-rolha, até perder-se de vista. Teria podido tomar qualquer dos caminhos que arrancavam a sua direita ou a sua esquerda, mas algo — uma sensação, um instinto — o impulsionava a caminhar para diante. A três maspíritus de distância da sala de baile em que Redd esperava Alyss, ouviu sussurros urgentes que procediam do outro lado de uma porta, a sua direita. Para Dodge não importava a possibilidade de que esses fossem os últimos atos de sua vida. Nada importava exceto enfrentar a seu bigodudo inimigo. Abriu a porta de uma patada e se encontrou...

Não com o Gato, mas com o Valete de Ouros e o mordomo morsa, que se escondiam para fugir da violência. Ambos deram um pulo, sobressaltados pela súbita entrada de Dodge, mas o Valete se recuperou em seguida. Tirou uma adaga pequena do bolso de seu colete e lançou uma navalhada ao ar, mais ou menos em direção à morsa.

—Ha! Yahh! Peguei agora! Graças a Issa que você veio — disse ao Dodge — Pensava que teria que matar a todos sozinho. Vai! Cha! Cha

O Valete continuou atirando estocadas ao ar, mas Dodge não se deixou enganar, mais que nada porque o Valete tentava ao mesmo tempo guardar a chave do labirinto Especular em um bolso de seus calções.

Para Dodge, qualquer um que tivesse colaborado com os assassinos de seu pai era um inimigo.

—Só há uma recompensa para os traidores — disse, e elevou a espada para descarregar sobre o Valete de Ouros um golpe mortal, quando...

Ouviu-se o som rouco característico de um ronrono. Dodge deu meia volta e viu o Gato ante a porta.

—E minha recompensa qual é? — inquiriu a besta.

Sem proferir nem um grito de guerra, nem um alarido de ataque, Dodge simplesmente arremeteu contra o Gato com a espada por diante. A criatura se afastou de um salto, e o aço de Dodge se chocou contra a parede de pedra. Nesse momento o Gato deu um golpe no ombro que lhe rasgou o uniforme de alysiano. O próprio Dodge só sofreu uns arranhões; quatro fiozinhos de sangue apareceram em sua pálida pele. Poderia ter sido pior.

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— Um presentinho para que combine como seu rosto — o Gato disse, assinalando as cicatrizes que sulcavam a bochecha de Dodge.

Este se esquivou para a esquerda e, quando o Gato se moveu para a direita para esquivá-lo, voltou-se e cravou à besta o punho-adaga que levava na mão livre, uma arma marviliana antiga, uma folha metálica que na base tinha quatro argolas para introduzir os dedos.

Uma zona da pelagem do Gato se tingiu de sangue, mas não se tratava de uma ferida mortal. O Gato deu um salto de bailarino de balé, caiu sobre suas patas dianteiras e golpeou Dodge com as traseiras, deixando no seu peito algumas marcas pouco profundas e fazendo-o cair ao chão.

Ao ver que a porta estava livre, o Valete de Ouros e a morsa saíram correndo da sala e se afastaram em direções distintas para procurar outro esconderijo.

***

Alyss se aproximava rapidamente do corredor em espiral, flanqueada por Somber e Molly, que a protegiam, e de repente se deteve.

—O que houve princesa Alyss? — perguntou Molly.

Com o olho de sua imaginação, Alyss viu o Gato lançar-se sobre o Dodge, que rodou no chão e se levantou, preparado para confrontar o que viesse a seguir, machucado e ensanguentado, mas mais resolvido que nunca.

—É Dodge — titubeou ela — Está...

Mas justo nesse momento, uma patrulha de soldados naipes a divisou e pôs-se a correr para ela. «Terá que se apressar. » Na parede sólida que Alyss tinha a um lado se materializou uma porta que comunicava com uma das múltiplas salas da fortaleza que não eram utilizavam. Assim que ela, Molly, Somber e outros a atravessaram, seguidos a certa distância por todos os naipes soldado menos um, que estava mais perto deles, e justo quando esse um — um número Três — cruzava a porta, Alyss imaginou que a abertura deixava de existir. A porta se desvaneceu, deixando ao número Três, parte embutido na parede e ao resto dos naipes soldado do outro lado, sem possibilidade de alcançá-los.

«Dodge. » Fixou o olho de sua imaginação nele e o viu golpear ao Gato na cara com o punho da espada. «Deveria lhe dar uma mão. » Fez aparecer a um segundo Dodge. «Não para satisfazer seus impulsos mais escuros, mas sim para garantir sua sobrevivência. »

—Eu me encarrego disto! — gritou ele quando viu seu clone.

Lançou uma estocada à versão imaginada de si mesmo, com o que deu ao Gato a oportunidade de afastá-lo de um empurrão para dispor de mais espaço. O clone desapareceu, e o Gato atacou Dodge com as garras preparadas para feri-lo. Pessima ideia. Dodge, com a espada em uma mão e o punho-adaga na outra, esfaqueou ambas as patas de uma vez, e

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antes que o Gato pudesse retroceder, afundou a espada até o punho no tórax da besta. O Gato se encolheu no chão, sem vida.

— Se levante! — bramou Dodge — Se Levante, se levante, se levante!

Pareceu-lhe que o Gato demorava sete vidas em voltar em si. Viu as pálpebras da besta tremerem e cravou de novo a espada no peito peludo. Não sabia que Genevieve e Somber já lhe tinham arrebatado uma vida cada um nem que a própria Redd lhe tinha tirado três mais. Agora que tinha começado, que tinha provado o sabor da vingança que tinha desejado desde fazia tanto tempo, estava frenético de raiva, impaciente por acabar com aquilo.

—Vamos, se levante!

Dodge sabia que um soldado tinha reflexos mais rápidos quando estava relaxado, mas seus sentimentos se impunham sobre sua formação militar, por isso cometeu o erro de não antecipar a astúcia do Gato. O jovem estava de pé junto à besta, atento ao menor de seus movimentos. Entretanto, ao voltar para a vida, o Gato ficou imóvel, como um morto, de modo que seu primeiro movimento não foi uma contração dos músculos do olho, mas sim um golpe que proporcionou à coxa de Dodge a ferida mais profunda que tinha sofrido até esse momento.

—Aaagh!

Dodge caiu para trás. O sangue lhe corria pelas calças rasgadas e pela perna.

Devagar, quase pausadamente, o Gato ficou em pé. Suas feridas se fecharam e ele sorriu. Parecia revitalizado, mais forte que nunca. Em troca, Dodge começava a sentir os efeitos das lesões; reagia com maior lentidão, e tinha pontadas de dor no ombro, na perna e peito. O Gato deu um passo para ele e, pela primeira vez durante o combate, Dodge deu um passo para trás, com um murmúrio de derrota na cabeça, quando...

Alyss chegou por fim à sala de baile onde Redd a aguardava. «Te envio meus desejos e minha esperança de que sobreviva, Dodge, posto que não me deixe te enviar outra coisa. Por favor, tente evitar que seus impulsos mais negativos dominem o que tem de bom em si. » dispunha-se a entrar na sala quando uma horda de olhos-de-vidros emboscados saiu ao passo de seus soldados, e de repente Somber, Molly, o cavalheiro e os milicianos estavam lutando por suas vidas em torno dela. «Redd quer que eu a enfrente sozinha. »

As espadas seentrechocavan com grande estrépito. «parecem-se tanto... São tão... » Realmente, a maneira de combater de Somber e Molly, o modo particular com que giravam, saltavam, lançavam chutes e murros e empregavam suas armas da Chapelaria era muito similar. «Ela briga como um membro da Chapelaria, mais que como uma híbrida. » Não obstante, estes pensamentos, tão fugazes como podem ser os pensamentos, dissiparam-se em seguida, e quando Alyss entrou na sala de baile, deixou atrás aos alysianos para que se defendessem sozinhos, pois todo seu ser estava concentrado em sua tia, com quem estava a ponto de encontrar-se cara a cara pela segunda vez em sua vida. Capítulo 53

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Redd tinha seguido o avanço de sua sobrinha pela fortaleza com irritação crescente. A garota — pois isso era Alyss para ela, só uma pirralha que foi muito mimada no passado que agora brincava de ser mulher — tinha muito pouca vergonha. Como podia acreditar-se herdeira da coroa? Que raciocínio retorcido a tinha levado a convencer-se disso? Se, para começar, Genevieve nunca deveria ter ocupado o trono, então como sua filha ia ser rainha? Não, pensou Redd. Ela era e sempre tinha sido a soberana legítima, e esse dia o demonstraria de uma vez para sempre.

Alyss entrou na sala de baile. Por fim: Alyss de Copas em pessoa. O problema era que havia oito Alyss de Copas. Qual era a autêntica?

— Acredita que seus joguinhoss lhe salvarão a pele? — espetou Redd, e de seu cetro saiu disparado um caule alargado com várias rosas carnívoras em direção a uma das Alyss. Atravessou-a sem lhe causar o menor dano. Um segundo caule de rosas que lançavam batidas de dentes ao ar com suas bocas de dentes afiados voou para outra Alyss, mas, de novo, nada aconteceu.

«Não devo me zangar, não devo me zangar. » A Alyss de verdade, a terceira pela esquerda, pensou que era uma sorte que tivesse materializado seus clones, pois no momento se encontrava paralisada, inesperadamente afetada por achar-se frente à Redd. «Por acaso não consegui dominar a ira no labirinto? Não posso me deixar levar pela ira. Não o permitirei. Devo me controlar. » Não obstante começava a acumular a raiva causada pela velha sensação de abandono que tinha experimentado depois da morte de seus pais, pelo injusto que era tudo.

— Não tenho tempo para tolices — disse Redd. Que a Alyss autêntica dê um passo à frente.

A rainha disparou um ramo de rosas espinhosas contra cada uma das oito Alyss. As rosas passaram através de sete delas sem consequências. A Alyss de verdade inclinou a cabeça de um modo especial e o ramo dirigido a ela se enrugou e se esmagou, murcho e seco.

— Somos da mesma família — comentou Alyss.

Redd soltou um bufo.

— E o que tem isso?

— Família — repetiu Alyss, mais para convencer a si mesma que para persuadir Redd.

— Não me fale da família! Seus pais não te repudiaram!

— Teria preferido que me repudiassem a ver como os assassinava.

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— Bom para você!

Redd abriu a boca e exalou uma labareda da que surgiram dois galimatazos. As bestas cuspiram fogo diretamente contra Alyss. A Princesa desviou as chamas a seus lados e, brandindo o cetro de cristal branco, desintegrou os galimatazos em inumeráveis pontos de energia. Enquanto as partículas flutuavam e se formavam redemoinhos no ar até desaparecer, Alyss disparou uma série de esferas geradoras a Redd, que ainda não estava canalizando muita energia para sua defesa, pois queria pôr Alyss a prova e descobrir do que era capaz, quais eram seus pontos fortes e quais seus pontos fracos. Com a atitude de uma instrutora resmungona que apaga umas velas, extinguiu as esferas geradoras antes que a alcançassem, juntando repetidamente os dedos polegares e índice no ar. Cada vez que o fazia, uma esfera chispava e deixava de existir.

Alyss notou que o Coração de Cristal lhe irradiava sua energia, que se imbuía dela. «Está atrás da parede do fundo. » Redd, ao permanecer perto dele para potencializar ao máximo sua força, tinha ocasionado que os poderes de Alyss também se vissem aumentados.

Alyss lançou duas esferas geradoras contra o mosaico de quartzo e ágata, que saltou em pedaços. O resplendor avermelhado do Coração de Cristal alagou a sala.

Redd se despojou da cautela como de uma pele que lhe tinha ficado pequena.

— É meu! — chiou — O cristal é meu!

Algumas lâminas em forma de X voaram girando para Alyss, quem teve que desdobrar toda sua agilidade para evitar que a fatiassem ou a atropelassem; esquivou de esquerda a direita e de direita a esquerda, mas, assim que tinha conseguido evitar uma avalanche de lâminas em X, outra se dirigia para ela a toda velocidade: um exército de armas que não precisavam de soldados que as dirigissem. Fez aparecer uma bolha de Imaginação Branca em torno de si para proteger-se. Uma lâmina em X a golpeou e a derrubou. Alyss tentou cegar o fio das lâminas, mas isso não impediu que voassem para ela, dando voltas.

«Tenho que passar à ofensiva. »

Sem deixar de esquivar as lâminas em X, disparou baralhos de cartas adaga e um par de aranhas obus, mas estava muito absorta defendendo-se para comprovar se aquilo servia de algo. Fechou uma mão em um punho e golpeou com ela a palma da outra. As lâminas giratórias caíram de repente ao chão, inofensivas. Mas agora tinha outro problema: a sala estava repleta de umas rodas enormes, pesadas, negras, recobertas de pontas agudas que rodavam ameaçadoramente. Esta vez Alyss não reagiu tão lentamente. Imaginou que aquelas rodas de pesadelo se convertiam em quadrados e ficavam emcalhadas, ancoradas por suas pontas agudas que se cravavam no chão.

«Não devo deixar que Redd me bombardeie. Nunca poderei passar à ofensiva se me limitar a responder a seus ataques. »

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Materializou uma bomba curiosa; uma que não destruía, mas sim criava. Explodiu aos pés de Redd, e uma jaula luminosa de uma liga reforçada pela Imaginação Branca se formou em torno da Rainha.

— Acha que pode me reter? — Redd riu e saiu da miniprisão como se não estivesse ali. Atrás dela, o Coração de Cristal já não brilhava com uma luz vermelha uniforme, mas sim mudava de cor constantemente, do rosa ao branco, do branco ao vermelho, do vermelho a um listrado de vermelho e branco.

Tia e sobrinha se achavam em meio de um torvelinho de Imaginações Branca e Negra, cujos ventos sopravam com força ao redor delas, zumbindo e crepitando, carregados de eletricidade, em meio de raios que cintilavam em todas as direções. «me dê força, Coração de Cristal. Dê-me... » Uma das aranhas obus de Alyss deve ter ido muito lonte do alvo, pois Dodge e o Gato estavam perfeitamente visíveis através de uma brecha irregular aberta na parede que ela tinha a sua direita.

«Não deveria ter afastado a vista de Redd nem por um... » Alyss se voltou a tempo de ver uma esfera enorme que lhe vinha em cima. Materializou outra igual, e as duas esferas colidiram.

O tremendo impacto provocou uma onda expansiva que estremeceu toda a sala. Redd se manteve firme, mas Alyss se viu arremessada para trás e caiu ao chão violentamente. «Como as coisas puderam complicar-se tanto? » Em um momento estava de pé, defendendo-se de sua tia; no momento seguinte estava caída e apresentava a viva imagem da derrota. Fazia um momento, Dodge lutava contra o Gato de igual a igual; ao momento seguinte, o Gato estava tomando impulso para estripá-lo de um golpe, enquanto Dodge enfrentava a sua morte iminente como...

— Dodge! — gritou Alyss e, em um ato reflito, fez aparecer um AD52 em suas mãos, justo antes que algo a golpeasse na cabeça. Um véu negro lhe turvou a vista, e ficou inconsciente, dando a Redd a vantagem que precisava para por fim acabar com a Princesa entrusa.

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Capítulo 54

Alice acordou na cama, com frio, mas suando. O príncipe Leopoldo, a senhora Liddell e o decano a contemplavam de pé com uma mescla de preocupação e alívio no semblante.

—O que é isto? — perguntou Alice, aturdida.

—Isto — respondeu à senhora Liddell — é sua cama. Está em casa, querida.

—Deste-nos um bom susto, querida — disse o príncipe Leopoldo — Lembra alguma coisa do que aconteceu?

«Se me lembro? » Não se atrevia a responder.

—Desmaiou na igreja e ficou mergulhada em uma espécie de delírio após.

«Não! Impossível!»

— Estive no País das Maravilhas — repôs.

O rosto da senhora Liddell se esticou. O decano Liddell esclareceu garganta.

— Como no livro do Carroll? — perguntou Leopoldo com afabilidade.

— Não tem nada a ver com o livro!

Sua veemência os assustou. Ela não se encontrava bem. Estava muito fraca para alterar-se dessa maneira.

— Alice — disse a senhora Liddell — Esteve muito doente. Talvez seja melhor que lhe deixemos descansar.

— Virei vê-la em breve — prometeu o Príncipe.

Leopoldo e os Liddell se voltaram para a porta. «Mas não podem partir. Ainda não. » Não podiam deixá-la tão confusa, tão — teve que reconhecer em seu interior — desiludida. «Nada daquilo foi real? O Dodge adulto, minha entrevista com a lagarta azul, o labirinto Especular? » incorporou-se na cama.

—Mas...

—O que foi? —perguntou o decano.

— Realmente estive aqui durante todo este tempo?

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— É obvio.

«Pode ser que tudo tenha sido um sonho febril? » tombou-se de novo sobre o travesseiro. «Era tão vívido... Como é possível que não tenha acontecido? »

—É uma armadilha, Alyss! — gritou Dodge, que entrou no quarto através da parede, armado com um AD52 — Veja o que veja, é uma ilusão!

Partiu tão depressa como tinha chegado, através da parede. Nem os Liddell nem Leopoldo se precaveram da intrusão. Alyss os estudou atentamente, e agora que sabia o que procurar, conseguia vislumbrar os milhares de milhões de pontos de energia de que se compunham. Notou algo na mão: o cetro do coração branco. «De modo que Dodge está bem. Sobreviveu à luta com o Gato. » Em efeito, Dodge, ao ver a morte tão perto, não tinha duvidado em usar o AD52 assim que se materializou em sua mão. Em vez de perder a vida, tirou outra mais das do Gato, deixando a besta com apenas uma.

Alyss fez com que a ilusão se esfumasse. A cama e os móveis, os Liddell, o príncipe Leopoldo... todos se desvaneceram, e ela se encontrou no chão da sala de baile do monte Solitário. Redd se erguia ante ela, a ponto de lhe descarregar um golpe com o cetro para lhe cortar a cabeça.

«Não estou louca, não, não estou louca, mas, sim estou!»

Quando o cetro de Redd se achava a só alguns centímetros marvilianos de seu formoso pescoço, Alyss soprou com força e a malvada Rainha saiu voando para trás. A Princesa se levantou de um salto. Redd continuava no ar quando Alyss lançou um raio de energia de seu dedo indicador. O feixe se agarrou a Redd, e Alyss, meneando o dedo adiante e atrás, jogava à Rainha contra as duas paredes da sala que sobravam em pé. Desorientados, os produtos da imaginação de Redd se esfumaram e se apagaram, de forma que cada vez eram menos ameaçadores para Alyss, cujos poderes pareciam aumentar em proporção direta a sua segurança em si mesma.

«O objetivo de evitar a ira, de não zangar-se nem alterar-se nunca, não é realista. Trata-se de uma questão de graus. »

A ira de Alyss a informava, mas não a dominava, embora parecia disposta a golpear Redd contra as paredes até matá-la, uma morte mas bem brutal se tivesse chegado a produzir-se, mas Redd conseguiu libertar-se da lança de energia que a prendia, cortando-a com a ponta afiada de seu cetro, e caiu ao chão.

Agora tocava a Alyss pôr a sua tia à defensiva. Disparou-lhe um baralho atrás do outra de cartas adaga. Fez aparecer aranhas obus em explosão, e os aracnídeos gigantes monopolizaram toda a atenção de sua tia. Alyss esmagou facilmente as rosas negras e vorazes que serpenteavam para a Princesa, enviadas por Redd, desviou as esferas e as navalhas voadoras, e imobilizou no ar sem problemas as lanças de energia negra (Alyss se sentiu adulada ao ver que sua tia lhe copiava esta ideia) com suas próprias lanças brancas.

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Talvez a proximidade do Coração de Cristal fortalecesse tanto a Redd quanto a Alyss, mas esta notou que era a mais forte das duas. Redd deve ter tomado consciência disso também, pois, frustrada e irritada em supremo grau, renunciou a imaginar mais coisas e arremeteu contra Alyss com o cetro em alto.

Brandiram seus cetros como espadas, as duas guerreiras poderosas encetadas em um nobre combate à moda antiga, corpo a corpo. O espaço que as rodeava resplandecia e zumbia e crepitava e fumegava com a tormenta elétrica desatada pelos poderes de sua imaginação. Então, veloz como a asa batente de um guinuco, Alyss enganchou o coração branco de seu cetro em uma curva nodosa do cetro de Redd e o puxou bruscamente ao chão, onde o fez explodir com uma descarga de energia imaginativa incandescente.

«A Mato ou...? Mas o que faço com ela, se não? Representará uma ameaça enquanto viver. O que devo fazer? O que devo...? »

Redd apertou as mãos em punhos que converteu em maças carnudas.

— Sou mais forte que você, Redd.

— Não me vencerá! — gritou Redd;

Alyss se preparou para outro ataque, mas se deu conta muito tarde do que acontecia. Contemplou com olhos incrédulos Redd lançar-se no interior do Coração de Cristal.

Crrrrcchsss! Sisssssss! Crrrch! Zzzzssszz!

O cristal chispou e se acendeu. Começou a vibrar, a emitir um zumbido grave e constante que se fez mais profundo e intenso.

***

O Gato, preocupado por ter ante si a um Dodge armado com um AD52 e pelo fato de que só sobrava uma vida, fixou-se em que direção fluía a energia imaginativa. Bufou e arrancou a correr para o cristal. Dodge lhe disparou uma rajada de cartas adaga, mas a besta era muito rápida e se introduziu de um salto no cristal, cujos violentos movimentos internos ocasionaram que toda a fortaleza do monte Solitário se estremecesse de forma ameaçadora, como se estivesse a ponto de vir abaixo, quando...

O rumor cessou. Tudo estava em calma. O Coração de Cristal despedia um brilho branco invariável.

A facção de alysianos capitaneada pelos generais Doppel e Gänger se reuniu na sala de baile e, junto com o Somber, Molly e outros, tinha derrotado os olhos-de-vidro. Todos ficaram atordoados no meio do silêncio que se impos depois dos acontecimentos tão extraordinários e inesperados. E é que, em toda a história milenaria do reino, ninguém tinha saltado jamais ao interior do Coração de Cristal, e ninguém sabia que consequências teria aquilo no futuro.

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Capítulo 55

O general Doppel foi o primeiro a recuperar-se. Viu o Dodge sentado no chão, ofegando, banhado em sangue; dele e do Gato.

— Chamem um cirurgião!

—Não será necessário, senhor. Absolutamente. Estou aqui e tenho justo o é necessario. — O mordomo morsa passou por cima de olhos-de-vidros mortos e cruzou a sala bamboleando-se com um estojo de primeiros socorros que continha uma varinha candente para limpar e estancar feridas, uma manga com tumores de energia interconectados e núcleos fundidos e um cilindro de pele cultivada no laboratório com um cauterizador laser. A morsa fez uma reverência a Alyss, contente de que o destino lhe tivesse brindado a ocasião — Lhes dou cordialmente boas vindas, rainha Alyss — disse.

Isto arrancou Alyss de seu estado de atordoamento. Ninguém a tinha chamado «rainha» antes.

A morsa começou a curar as feridas de Dodge. O jovem contemplava o Coração de Cristal, inexpressivo.

«Impossível saber no que pensa. Está satisfeito pelo que aconteceu? Saciou sua ânsia de vingança ou...? »

Produziu-se um alvoroço repentino à entrada da sala de baile: o Senhor e a Dama de Ouros, o Senhor e a Dama de Paus e o Senhor e a Dama de Espadas abriram passo a empurrões entre os milicianos reunidos e se aproximaram rapidamente de Alyss com expressões de grande alívio.

— Ouvimos um estrondo horripilante — disse a Dama de Ouros —, e quando terminou, viemos tão depressa como pudemos, sem mal nos atrever a abrigar a esperança de...

— Sua vitória satisfaz nossas aspirações mais profundas para o reino — a atalhou o Senhor de Espadas.

— Sim — acrescentou a Dama de Ouros —, totalmente. Foi espantoso... padecemos uma tirania terrível à mãos dessa mulher!

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— Redd nos reteve como reféns, Rainha Alyss — interveio a Dama de Paus.

— É mesmo? — inquiriu Alyss, dirigindo um olhar cético a Jacob.

— Bom, mais que fisicamente, fomos seus reféns mentalmente — matizou a Dama de Paus — Se não tivéssemos obedecido a Redd, tal como todos os marvilianos estavam obrigados a fazer, nos teria enviado às minas de Cristal.

— E me envergonha reconhecer — disse a Dama de Ouros — que nossa família, uma linhagem nobre que data das eras mais antigas, recebeu um trato atroz por parte da rainha anterior.

— Vocês? — gargalhou o Senhor de Paus — Minha esposa e eu sofremos muito mais que qualquer de seu clã, e inclusive diria que...

— Por que não dizem a verdade? — interrompeu-o a Dama de Espadas — Se alguém merece o título de pessoas pior tratadas por Redd, acredito que somos meu marido e eu.

As damas e os senhores romperam a falar de uma vez. Discutiam sobre quem era o mais prejudicado pelo regime de Redd, até que Alyss levou um dedo aos lábios — chisss —, e todos se calaram.

— Assim que as circunstâncias o permitam, instaurará-se um tribunal para determinar se se comportaram de maneira honorável durante o reinado de Redd ou se, pelo contrário, são culpados de crimes de guerra — disse Alyss.

— Crimes de guerra? — resmungou a Dama de Espadas.

O cavalheiro branco e seus peões rodearam às famílias nobres.

— Mas aquele que talvez seja o mais culpado não está aqui — disse Jacob Noncelo.

— Refere-se a este indivíduo? — perguntou a torre. Todos se voltaram para o miliciano, que tinha entrado na sala segurando ao Valete de Ouros — O encontrei escondido em um armário, perdendo toda a diversão.

— Me solte! Não é mais que um... um miliciano! — O Valete se liberou da torre com uma sacudida, alisou o colete, deu uns tapinhas na peruca e se inclinou ante Alyss — Rainha Alyss, não tenho feito outra coisa que lhe servir o melhor que pude. Arrisquei a vida por você ao me infiltrar nesta fortaleza. Que viva a Imaginação Branca!

A morsa já tinha terminado de atender ao Dodge, que se aproximou coxeando do Valete de Ouros. Sem abrir a boca, tirou a chave do labirinto Especular do bolso do corpulento senhor.

— Como isto chegou aqui? — balbuciou o Valete.

— Como pode filho? — escandalizou-se a Dama de Ouros — Que vergonha! Oh, que vergonha!

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— Nosso único filho nos traiu! — lamentou-se o Senhor de Ouros, embora tanto ele quanto sua esposa estivessem a par das atividades do Valete.

Alyss apontou com o dedo aos pés do Valete, uma bomba criadora estalou, e uma mini prisão se formou em torno dele.

Devido à violência da batalha, a coroa de Redd tinha caído ao chão. Jacob a recolheu.

— Morsa, se puder fazer a gentileza...

— OH, é obvio! — exclamou a morsa.

—... dê brilho a isto e prepara-o para a coroação de Alyss. — O preceptor se voltou para a jovem Rainha. Restava pouco para ensinar a Alyss de Copass que ela não tivesse aprendido por experiência própria ao longo de sua vida. A jovem olhava pensativa ao Coração de Cristal — Alyss?

—O que acontecerá? Deveríamos enviar a alguém para buscá-los?

Jacob meditou sua resposta durante um bom momento antes de falar.

—É possível que Redd já não exista tal e como a conhecíamos, mas do mesmo modo que uma invenção, quando penetra no cristal, serve de inspiração a seres de outros mundos, o espírito de Redd viverá sempre como uma força impulsora. Ao saltar no interior do cristal, tornou-se imortal. Quanto às formas que pode adotar no futuro, não me atrevo a fazer prognósticos. Mas o certo é que temo pelo universo.

Alyss permanecia calada, absorta em seus pensamentos. «Devia tê-la matado. Devia... »

— E agora... em relação à família que cuidou de você nesse outro mundo...

— Sim!

— Algo me diz que estão preocupados com sua filha perdida. — As orelhas do Jacob se torceram com picardia — Sei que sou só um albino extremamente sábio e que não tem por que me fazer caso, mas sugiro que materialize uma Alice Liddell de carne e osso e com personalidade própria. Dote seu gêmea de uma imaginação tão fecunda quanto a sua e envie-a a viver a vida que já não te corresponde.

«Posso fazer isso? »

— Mas como? E... sou capaz?

Jacob sorriu. Talvez ainda restassem coisas que podia ensinar a Alyss, depois de tudo.

— Olhe em torno de ti — lhe disse — Veja o que obteve. Eu pensava que, a estas alturas, já saberia que é capaz de tudo.

Seguindo suas indicações, Alyss posou as mãos no cristal e...

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Pum! Zzzz!

Um brilho branco e cegador ocasionou que todos se cobrissem os olhos. Em seu centro, Alyss, fundida em um abraço sinérgico com o cristal, imaginou os milhões de traços diminutos que compunham a Alice Liddell, até os poros de sua pele, e em algum lugar dos subúrbios de Oxford, Inglaterra, uma mulher adulta surgiu do que parecia um atoleiro comum, espantando a um ganso sedento.

Depois de passar várias semanas em Londres vivendo a conta do príncipe Leopoldo, os Liddell retornaram a Oxford. Sentaram-se para jantar quando Alice entrou pela porta principal. Sobre um som de fundo de gritos afogados, exclamações de alívio, surpresa, alegria e qualquer outro sentimento positivo que pudesse suscitar o milagroso retorno da Alice, ela lhes explicou como tinha escapado de seus sequestradores (um bando de estivadores escoceses que pretendiam fazer chantagem com a família real, conforme disse), uma façanha a que ela mesma subtraía importância por não considerar um nada do outro mundo.

Durante a ausência da Alice, e após convencer-se de que nunca a voltaria a ver, o príncipe Leopoldo se apaixonou por outra: a princesa Elena do Waldeck. A Alice pareceu aborrecer menos que a sua mãe inteirar-se de que Leopoldo tinha um novo amor. Ao cabo de pouco tempo, casou-se com um homem mais apropriado para sua condição social: Reginald Hargreaves, tesoureiro do colégio universitário de seu pai. O príncipe Leopoldo e a princesa Elena se casaram pouco depois.

Durante o resto de sua vida, Alice e o Príncipe se professaram um sincero afeto. E, possivelmente em lembrança do enlace que tinha estado a ponto de produzir-se, Alice deu a seu primeiro filho o nome do Leopold, e o Príncipe chamou Alice a sua primeira filha. Todos eles viveram satisfeitos para sempre, exceto talvez a senhora Liddell, que apreciava razoavelmente ao Reginald Hargreaves, mas não deixava de pensar quão maravilhoso teria sido que Alice se casasse com um príncipe.

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Capítulo 56

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A desordem em que se encontrava o reino não se emprestava a grandes celebrações, de modo que Alyss dispôs que sua coroação fosse breve e austera. A única concessão que fez à pompa foi retransmitir o acontecimento nas cercas patrocinadas pelo governo e os cristais anúncio de Marvilópolis. Queria que ao povo ficasse claro que tinha uma nova Rainha. Em nenhuma das cercas ou pôsteres voltariam a aparecer ofertas de recompensas para marvilianos que traíssem aos defensores da Imaginação Branca, nem publicidade dos numerosos produtos e invenções de Redd.

A flamejante Rainha e seu séquito — Dodge, Jacob, Somber, Molly, o general Doppelgänger, a torre e o cavalheiro — se retiraram à cúpula de observação do monte Solitário depois da coroação.

— O que é isso? — perguntou Molly, a do Chapéu, com uma careta ao ver um objeto grande e peludo que ocupava certo espaço perto de um painel telescópico.

A morsa se bamboleava pela sala com uma bandeja, oferecendo taças de vinho aos pressente.

— Ah, sim, é a Peruca Bestial — disse —, um brinquedo do Valete de Ouros. Alguma vez tinha visto você uma Peruca Bestial antes?

— É muito feia. Eu não gosto dela. — respondeu Molly.

A morsa se mostrou de acordo. Realmente, era muito feia.

Com o tempo, um novo palácio de Copas se edificaria no lugar onde antes se elevava o velho, e em seu jardim se destacaria a tumba do juiz Anders, assim como monumentos dedicados à rainha Genevieve, o rei Nolan e os numerosos e valentes alysianos que perderam a vida durante o tirânico reinado de Redd. Entretanto, não convinha baixar a guarda durante a reconstrução do País das Maravilhas. Teriam que caçar e destruir os olhos-de-vidro e os naipes soldados se não se encontrassem a maneira de reprogramá-los. Embora talvez os princípios da Imaginação Branca voltariam a prevalecer no reino, seguiria havendo problemas, como na época de Genevieve. Os seguidores da Imaginação Negra teriam que ser controlados; os membros da população viciados no cristal artificial ou aos estimulantes da imaginação teriam que ser reabilitados; aqueles que enriqueceram mediante práticas comerciais ilícitas teriam que abraçar um código profissional mais ético ou do contrário fechar seus negócios.

— Rainha Alyss.

— Sim?

Era Somber Logan. Aparentemente, custava-lhe encontrar as palavras.

— Eu... consagrei minha vida a seu amparo e a de sua mãe. Fiz tudo que estava em minha mão, e se em alguma ocasião não fui capaz de cumprir com as responsabilidades de meu posto...

— Fez mais do que qualquer rainha razoável poderia pedir.

O homem da Chapelaria fez uma reverência em sinal de agradecimento.

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— E desejo continuar a seu serviço, mas queria lhes fazer uma petição pouco ortodoxa. Eu gostaria... pedir uma licença temporária.

«De modo que o homem não está tão embebido em seu trabalho, depois de tudo, e talvez tenha interesses e afetos fora dele. » Alyss o recordou sentado junto ao fogo na noite em que ela conseguiu exercer o controle sobre sua imaginação pela primeira vez; o aspecto tão normal que apresentava sem suas armas. «Sim, fará-lhe bem viver durante um tempo como um marmviliano normal, não como o legendário Somber Logan, mas sim como um homem. »

— Esperava que restabelecesse a Chapelaria — disse.

— E o farei, minha Rainha, assim que me reincorpore ao serviço ativo. — Contemplou a possibilidade de lhe expor seus motivos (a perda de certa mulher que não tinha tido ocasião de chorar), mas lhe falhou a voz. A dor lhe paralisou a língua por uns instantes.

— Quem cuidará de mim enquanto isso? — perguntou Alyss.

Somber dirigiu a vista a Molly, a do Chapéu.

— Aí têm todo o amparo que precisa.

Molly sorriu de orelha a orelha, gratamente surpresa, e levantou o chapéu.

— Somber, além de um membro da Chapelaria, é um homem, e se precisar um tempo para se encarregar de assuntos pessoais, terá-o. Licença concedida.

— Obrigado, rainha Alyss.

Desculpou-se para retirar-se, e Molly, quase explodindo de prazer, seguiu-o através da sala. O guarda pessoal mais jovem que tinha tido uma rainha! A garota crivou Somber de perguntas enquanto Alyss dava uma olhada em Jacob Noncelo e no general Doppelgänger, que estavam encetados em um debate sobre se o suco de bagos de escarujo era ou não bom para a saúde. O cavalheiro branco apoiava ao preceptor, enquanto que a torre ficou de parte do general, não porque a nenhum dos dois milicianos lhe importasse o tema, mas sim porque desfrutavam vendo discutir aos dois renomados marvilianos. Então os olhos do Alyss pousaram em Dodge, que estava sozinho frente a um painel telescópico, contemplando as ruínas do palácio de Copas. A Rainha se aproximou.

— Reconstruiremos — lhe assegurou.

Dodge assentiu com a cabeça.

— Não nos esqueceremos de ninguém, Dodge. Nem do juiz Anders, nem do naipe soldado mais humilde; de ninguém.

Ele assentiu de novo.

—Devo-te um agradecimento — disse, dando uns tapinhas ao AD52 que levava preso à coxa com correias.

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— Me alegro de que seu orgulho não tenha te impedido de usá-lo.

— Deveria tê-lo usado mais.

Ela entendeu a que se referia. Tinha matado ao Gato, mas, sobre tudo, o Gato tinha escapado. Só o tempo diria se o enfrentamento de Dodge com a besta tinha bastado para afrouxar o nó de Imaginação Branca que lhe rodeava a garganta, lhe tirar os espinhos de ódio que lhe tinham dado um motivo para viver durante tanto tempo. Alyss esperava que ele fosse capaz de superar a ira. Desejava que o moço que tinha conhecido em outra época se encarnasse no corpo do homem.

«Talvez cheguemos a nos conhecer outra vez, a ressuscitar o amor que havia entre nós; um amor que, embora fossemos muito jovens, não tinha nada de infantil. » O dente de galimatazo que lhe tinha presenteado... «Levarei-o no pescoço para lhe demonstrar que não me esqueci e que ainda sinto algo por ele. Será uma espécie de amuleto para afugentar seus impulsos mais obscuros. »

Afastou a vista de Dodge Anders e espionou sua imagem refletida em um espelho. Lembrou-se do momento em que, quando estava no labirinto, encontrou-se naquela mesma sala e viu, em lugar de seu reflexo, o rosto de Redd, que lhe devolvia o olhar desde mesmo espelho. Mas agora, sua própria imagem tremeu e se desvaneceu. Em lugar dela, apareceram Genevieve e Nolan, abraçados, sonrindo orgulhosos. Sua presença parecia indicar que o progresso do reino, a sublevação triunfante dos alysianos, os êxitos e fracassos que lhes proporcionava o futuro..., tudo se tinha originado nela, na força e a sabedoria que pulsavam no interior de Alyss, a rainha mais poderosa que o País das Maravilhas tinha conhecido.

— Tudo está em sua cabeça — disse Genevieve.

— Sei — respondeu Alyss, e apesar dos traumas do passado e da incerteza do futuro, ela não teria renunciado a esse momento por nada — Não é maravilhoso?

1 A toranja ou toronja (Citrus x paradisi) é um citrino híbrido, resultante do cruzamento do pomelo (Citrus maxima) com a laranja (Citrus x sinensis). Este fruto também é conhecido pelos nomes de jamboa, grapefruit, laranja-melancia, pamplemussa, laranja vermelha, laranja-romã entre outras denominações. Ácida e azeda com uma doçura latente, a toranja tem uma suculência que rivaliza com a da sempre popular laranja e brilha com muitos dos mesmos benefícios para a saúde. A toranja é um citrino grande, parente da laranja e do limão, e é categorizada como branca (loira), rosa ou rubi. No entanto, esta terminologia não reflecte a cor da sua casca, amarela ou amarelo rosado, mas descreve a cor da sua polpa.

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2 O quartzo tem varias cores. A turqueza em azul ou verde oceano. A pirita também conhecida popularmente como Ouro dos tolos, em função da cor amarela, pode ser amarelo metálico, amarelo bronze 3 Branca, branca com veios cinzentos e azuis. 4 Narguilé é um cachimbo de água utilizado para fumar. Além desse nome, de origem árabe, também é chamado de hookah (na Índia e outros países que falam inglês), shisha ou goza (nos países do norte da África), narguilê, narguila, nakla, arguile, naguilé etc. Há diferenças regionais no formato e no funcionamento, mas o princípio comum é o fato de a fumaça passar pela água antes de chegar ao fumante. É tradicionalmente utilizado em muitos países do mundo, em especial no Norte da África, Oriente Médio e Sul da Ásia. 5 Sainetes ou farsa é uma peça dramática engraçada, em um ato, geralmente, de caráter popular, que é representado como uma função intermediária ou final. Eles iniciaram nos séculos XVIII, XIX e XX. 6 Aqui se adota o nome do deserto como esta no livro original que quer dizer tabuleiro de xadrez. 7 Bom dia Senhor. Posso ajudalo? 8 Este é um bom Chapéu. 9 Eu não gosto de estrangeiros. 10 O que tem no saco? 11 Dá-me o saco. 12 O que é isso? 13 Onde esta o prisioneiro? 14 Muito perigoso. 15 É verdade!É verdade! 16 queijo 17 Gostaria de ver o prisioneiro. 18 (N.R.La taba é um jogo em que se joga no ar um osso de pata de carneiro, ou um objeto nesse formato, cujo resultado depende em que lado o osso caia). 19 Oh, olhe isso! Pobre pequeno chapéu cartola! 20 Guinuco ou Gwynook em inglês é criatura do mundo do pais das maravilhas, não achei descrição 21Escarujou ou squig berries em inglês, também é uma criatura do universo marviliano que não tem tradução para o português. 22 Fruto de vários espelhos colocados estrategicamente. 23 Micélio é nome que se dá ao conjunto de hifas (filamentos) emaranhadas de um fungo. O micélio vegetativo é a parte correspondente à sustentação e absorção de nutrientes, se desenvolvendo no interior do substrato. 24 Dintel (arquitetura) Pedra colocada horizontamente de um lado ao outro de uma porta ou de qualquer outra abertura. 25 (velho mestre) Foi um famoso filósofo e alquimista chinês. A ele é atribuída a autoria de uma das obras fundamentais do taoísmo: o Tao Te Ching. ---------------

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Frank Beddor A Guerra dos Espelhos

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