visionvox.com.br€¦ · Web viewHá cinco anos, a vida de Laura Townsend ficou quase destruída...

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Há cinco anos, a vida de Laura Townsend ficou quase destruída devido a uma lesão cerebral que lhe afectou enormemente a fala e a forçou a abandonar uma brilhante carreira. No entanto, apesar das dificuldades, e la nunca perdeu o seu espírito luminoso. Agora tem um bom emprego numa clínica veterinária - e um lindíssimo patrão que enche o seu coração de sonhos. Mas o veterinário Isaiah Coulter merece uma mulher que consiga estar à sua altura. E Laura conclui que, por vezes, amar um homem significa deixá-lo seguir o seu caminho. .. Quando Isaiah contratou Laura não estava à espera de uma tão grande lufada de ar fresco. Impressionado pe la sua sensibilidade - e assombrado pe la sua desconcertante beleza - Isaiah apaixona-se. E agora está disposto a mover o céu e a terra para lhe demonstrar que e la é a mulher que ele precisa - a única que conseguirá trazer o sol para a sua vida.

Transcript of visionvox.com.br€¦ · Web viewHá cinco anos, a vida de Laura Townsend ficou quase destruída...

Há cinco anos, a vida de Laura Townsend ficou quase destruída devido a uma lesão cerebral que lhe afectou enormemente a fala e a forçou a abandonar uma brilhante carreira. No entanto, apesar das dificuldades, ela nunca perdeu o seu espírito luminoso. Agora tem um bom emprego numa clínica veterinária - e um lindíssimo patrão que enche o seu coração de sonhos. Mas o veterinário Isaiah Coulter merece uma mulher que consiga estar à sua altura. E Laura conclui que, por vezes, amar um homem significa deixá-lo seguir o seu caminho...

Quando Isaiah contratou Laura não estava à espera de uma tão grande lufada de ar fresco. Impressionado pela sua sensibilidade - e assombrado pela sua desconcertante beleza - Isaiah apaixona-se. E agora está disposto a mover o céu e a terra para lhe demonstrar que ela é a mulher que ele precisa - a única que conseguirá trazer o sol para a sua vida.

babel

O SOL DA MINHA VIDA Catherine Anderson

Título originalMy Sunshine

Edição © BABEL, 2011 Copyright © Adeline Catherine Anderson, 2005

TRADUÇÃOCarlos Silva

REVISÃOMário Azevedo

Este livro foi composto com o tipo Minion Pro e impresso na Multitipo

para a Arcádia em Setembro de 2011

ISBN978-989-28-0058-5

DEPÓSITO LEGAL332 693/11

BABELAVENIDA ANTÓNIO AUGUSTO AGUIAR 148, 6.°

1069-019 LISBOA Portugal tel.: +351 213 801 100 fax: +351 213 865 396 e-mail: babel @ babel.pt

www.babel.pt

arcádia

é uma chancela

O Sol da Minha VidaCatherine Anderson

Tradução de Carlos Silva

arcádia

Este livro é dedicado ao reverendo James Radloff, conhecido pelosseus paroquianos como padre Jim, um sacerdote que tocou inúmeras

vidas, incluindo as nossas. Como escritora, encontro-me muitasvezes com falta de palavras, mas por vezes os sentimentos são

demasiado profundos para poderem ser expressos com simplicidade.Portanto, eu recuo na simplicidade e digo simplesmente «Obrigada».

Obrigada por ser um sacerdote tão maravilhoso e dedicado.Obrigada pela sua amizade e orientação. Obrigada por estar semprepresente. E, por fim, mas não menos importante, obrigada por todos

os maravilhosos serões de segunda-feira.

Prólogo

Os relâmpagos faiscavam no céu plúmbeo, cada descarga brilhante logo seguida de um ensurdecedor ribombar de trovão. A chuva metralhava o veículo como se fosse gravilha grossa a bater em chapa metálica. Espreitando pelo pára-brisas, Isaiah Coulter mal conseguia descortinar as casas que se alinhavam ao longo da rua bordejada de árvores. Assustava-o a ideia de atravessar a correr os quinze metros que o separavam do alpendre de entrada da residência suburbana dos seus pais. Não era a primeira vez que pensava, desde que aquela tempestade começara, que deveria ter-se lembrado de pegar num casaco quando saiu de casa nessa manhã.

Quando abriu a porta do Hummer, a manga da sua camisa ficou ime-diatamente encharcada e gelada, graças ao vento gélido vindo das altas montanhas que descia sempre sobre Crystal Falls, no estado de Oregon, quando a luz do sol de Outono ficava obscurecida por nuvens. Isaiah cerrou os dentes, saltou do veículo e desatou a correr atirando com a porta atrás de si.

A água escorria-lhe pela cara quando chegou ao alpendre, e farripas gotejantes de cabelo castanho-escuro colavam-se-lhe à testa. Praguejando entre dentes, penteou o cabelo para trás com dedos encharcados e sacudiu inutilmente a camisa ensopada.

— Mãe? — gritou ele, ao abrir a porta da frente. — Sou eu, Isaiah!Enquanto limpava os pés no tapete da entrada, Isaiah passou o olhar pela

arrumada zona de estar, mal registando quaisquer pormenores por a mobília e a decoração lhe serem tão familiares. Na parede mais comprida, as caras dos seus irmãos, para além da sua, olhavam para ele de inúmeras fotografias emolduradas, um registo pictórico das suas vidas desde a infância à idade adulta. Os aromas deliciosos de tarte de maçã quente e de café acabado de fazer acolheram-no quando ele avançou um pouco mais pelo aposento.

— Na cozinha, filhinho! — gritou Mary Coulter.Seguindo o cheiro e o som da voz dela, Isaiah passou pela porta em arco.

De pé junto ao balcão da cozinha, a mãe lançou-lhe um sorriso de boas-vindas. Com as suas faces rechonchudas e rosadas, o seu cabelo escuro a tombar-lhe em caracóis soltos em volta do rosto, ela era, aos olhos de Isaiah, tão bela aos quase sessenta anos quanto o fora vinte anos antes.

— Como está a minha rapariga predilecta? — perguntou-lhe ele.— Humpf — respondeu ela, com um abanar da cabeça. — E não é isto um

desperdício? És o mais bonito de todos os meus filhos e ainda estás solteiro!Isaiah sabia muito bem que não era a cria mais bonita da ninhada. Na

verdade, tanto ele como os seus irmãos eram cópias a papel químico do pai e pareciam-se bastante uns com os outros. Quanto a ser solteiro, ele preferia assim. A medicina veterinária era um campo exigente, deixando-lhe pouco tempo livre para relacionamentos pessoais. Um dia, quando a sua vida se tornasse menos agitada, ele poderia pensar em assentar, mas por agora pre-cisava de se manter concentrado na carreira.

— Ora, mãe... — respondeu ele num tom de barítono lamentoso, a sua resposta habitual quando Mary o espicaçava para que se casasse.

— Não me venhas com o «ora, mãe». Olha para ti, Isaiah Joel, encharcado até aos ossos e com os lábios roxos de frio! Precisas de alguém com bom senso para cuidar de ti — disse-lhe ela, atirando-lhe uma toalha. — Enxuga-te o melhor que puderes antes que comeces a largar poças no meu chão. — Olhou-lhe para as botas.

— Se andaste a pisar bosta de cavalo, dou cabo de ti!Apanhando a toalha no ar com uma mão, Isaiah enxugou a cara e a nuca.As minhas botas sofreram uma lavagem à pressão quando atravessei <>

relvado, e esfreguei-as no tapete. Quanto aos meus lábios estarem roxos, é porque está um frio de rachar lá fora.

— Os teus lábios estão roxos porque é Outubro e estás sem um casaco vestido. Um homem com o teu quociente de inteligência devia saber isso.

— Eu sei. Só que me esqueci.— Esquecer-te-ias da cabeça se não a tivesses presa aos ombros. Sempre

nas nuvens, este rapaz, sempre embrenhado em altos pensamentos e esquecido de tudo o resto.

— Estava sol quando saí de casa esta manhã.— Pega na camisola do teu pai que está aí pendurada nas costas dessa

cadeira e veste-a. Ainda apanhas uma pneumonia se continuares a andar por aí com essa roupa encharcada no corpo.

Isaiah sentia mesmo frio. Despiu rapidamente a camisa molhada, tirou um saco de plástico do porta-sacos de pano pendurado num gancho da porta da cozinha, e enfiou nele a camisa. Pouco depois, quando enfiava a camisola do pai pela cabeça, ouviu a mãe a estalar a língua e a dizer:

— Tens as costelas à mostra, Isaiah Joel. Garanto-te, um vendaval levava-te como a uma folha.

Isaiah sabia muito bem que não era assim tão magro.— Ora, mãe!Habituado às repreensões da mãe, Isaiah curvou-se para a beijar na cara

antes de se sentar numa cadeira à mesa redonda de carvalho que estava a um canto da cozinha.

— Bolas, como essa tarte de maçã cheira mesmo bem!— Fi-la especialmente para ti — disse Mary, tirando dois pratos de tarte do

armário e dedicando-se à tarefa de cortar as fatias da sobremesa.Já não são poucas as vezes em que eu pressinto de antemão quando tu

vens.— Se a tarte de maçã é a minha recompensa, vou começar a telefonar- te

antes de vir. É a minha favorita.Mary sorriu.

— Sim, eu sei. Sou tua mãe, lembra-te.— Obrigado por me teres feito uma tarte, mãe. Foi muito querido da tua

parte. — Isaiah recostou-se na cadeira. — Onde está o pai?Mary largou um suspirozinho agudo, dando a entender com um leve

encolher de ombros que as suas chatices como esposa de Harv Coulter eram mais do que muitas.

— Ele saiu de manhã cedo para ir ter com o Zeke ao bar da Natalie. Houve qualquer coisa que se avariou no sistema de refrigeração, creio eu. Depois disso, ele ia ao Lazy J para ajudar o Hank a reparar a vedação. As costas dele têm-lhe estado a dar problemas toda a semana, mas achas que isso o refreia?

— Ele gosta de ajudar no rancho, mãe. Lá por estar reformado não quer dizer que tenha de parar de viver.

— Eu sei — retorquiu Mary, com outro suspiro. — E o Jake e o Hank precisam agora mesmo de ajuda. Com a Molly outra vez de bebé, e a Carly a tentar cuidar de um bebé tão pouco tempo depois da operação à vista, ambos os teus irmãos estão bastante atrapalhados.

Isaiah estivera tão ocupado que quase se esquecera da operação à córnea da cunhada.

— Como é que está a Carly?— Está bem — Mary mostrou um sorriso de agrado enquanto lambia do

dedo um pedaço de recheio da tarte. — Ela consegue ver, pelo menos. O maior problema nesta altura é reeducar aquela coisa...

— O córtex visual dela — sugeriu Isaiah.— É isso — concordou a mãe, acenando com a cabeça. — Todos esses

termos médicos entram-me por um ouvido e saem-me pelo outro. O Hank telefonou ontem à noite. Comprou fita isoladora vermelha e marcou com ela o rebordo de todos os degraus, de modo a que a Carly possa ver onde acaba um e começa outro. Ontem, ela quase que caiu no alpendre de entrada, quando levava o Hank Júnior ao colo.

Isaiah piscou os olhos.— Não admira que o Hank esteja a colar fita isoladora nos degraus.— Ele acha que isso ajuda disse Mary, abrindo outro armário e tirando dele

duas canecas de café. — Sem percepção de profundidade, ela não consegue ver bem os degraus.

Apreciando o calor que ainda irradiava do forno, Isaiah suspirou e flexionou os músculos dos ombros. Era estranha, pensou, a rapidez com que conseguia sempre relaxar na cozinha da sua mãe. Presumiu que fosse por o aposento ser um reflexo da própria mulher: pequena, viva, atarefada e cheia de amor.

O amor de Mary Coulter pelos seus filhos era notório para onde quer que ele olhasse. Todas as superfícies disponíveis estavam repletas de marcas de mãos em gesso, retratos da escola, projectos artísticos amarelecidos pela idade e coisas patetas que ele ou os irmãos tinham dado à mãe ao longo dos anos, incluindo uma prateleira de bric-à-brac atulhada com uma série de obsoletos isoladores cerâmicos de um poste de média tensão, que Isaiah e o seu irmão gémeo, Tucker, trouxeram para casa num dia longínquo. Mas ac-tualmente parecia que Mary começara a coleccionar lembranças dos netos. As botinhas de bebé do filho do Jake encontravam-se pregadas às cortinas brancas frisadas da janela, e toda a frente do frigorífico desaparecia debaixo das criações a pastel da criança, sendo que todas elas não passavam de garatujas.

Normalmente, Isaiah não gostava de confusão, mas de algum modo a sua mãe conseguia que aquilo resultasse. As paredes cheias de coisas e as manchas de cor não eram somente agradáveis à vista como também es-tranhamente relaxantes. A tensão que lhe criara nós nos ombros durante todo o dia dissipava-se ao recostar-se na cadeira. Observava a mãe com um leve sorriso. Até o avental dela o fazia recuar nos anos, uma coisa branca e pregueada, com bordados sobre os bolsos, que ela usava desde que ele se conseguia lembrar.

Como sempre, ela tagarelava sem parar enquanto trabalhava, lançando-se numa história acerca da neta de uma vizinha enquanto tirava meio galão de gelado de baunilha do congelador e vasculhava uma gaveta à procura da

concha. Isaiah ouvia sem prestar grande atenção, com a mente numa vaca que tratara nessa manhã.

— De qualquer modo — disse Mary, enquanto avançava para a mesa — pedi-te para passares por cá porque tenho uma ideia que quero partilhar contigo.

Isaiah aceitou o prato que a mãe fez deslizar sobre a mesa na sua direcção.

— Uma ideia acerca de quê? — perguntou ele, enquanto metia à boca uma garfada de fruta sumarenta e folhado estaladiço que escorria gelado a derreter.

— Não é de quê, mas de quem — corrigiu Mary. Depois de encher duas canecas com café a escaldar, ela voltou para a mesa e sentou-se do outro lado, de frente para ele. — É acerca da Laura, a rapariga de quem te tenho estado a falar.

Isaiah não se recordava de a mãe dizer o que quer que fosse acerca de uma pessoa chamada Laura. Lançou-lhe um olhar desconcertado.

Mary bufou, exasperada.— Tens estado a ouvir?Isaiah engoliu e assentiu com a cabeça.— A maior parte.— A maior parte?Ele pousou o garfo no prato.— Desculpa, mãe. Tenho andado um pouco distraído.— O que é, desta vez? — perguntou-lhe Mary, com resignação. — Espero

que não seja a morte de outro rato.Isaiah estremeceu com a lembrança. Há dois meses, uma nova técnica

preparara o rato de estimação de uma senhora para cirurgia abdominal. Depois de ter depilado o ventre do roedor, ela tentou aspirar o pêlo cortado e por azar também aspirou o rato. Coube a Isaiah explicar o falecimento inesperado do rato à respectiva dona. Não foi um dos seus melhores mo-mentos como veterinário.

— Não, não é um rato, graças a Deus. Desta vez é uma vaca. Infecção uterina. Fiz-lhe três lavagens e injectei-lhe todos os antibióticos conhecidos. Se esta última dose não resultar, vou ter de a abater. O fazendeiro é um tipo novo com uma família a aumentar. Não pode dar-se ao luxo de a perder.

Mary debruçou-se por cima da mesa para afastar uma madeixa de cabelo dos olhos de Isaiah.

— Oh, meu querido, estou tão preocupada contigo!Isaiah agarrou-lhe o pulso para lhe beijar a ponta dos dedos.— Eu estou bem, mãe. Apenas muito atarefado; e é tudo.— Não estás nada bem — insistiu ela. — Olha para ti. Isaiah olhou para

baixo.— O que é que se passa comigo?— Para começar, perdeste peso. E o teu cabelo está tão comprido que

quase te chega ao colarinho. E onde é que foste desencantar aquela camisa que trazias vestida? Parece que dormiste com ela.

Isaiah encolheu os ombros.— Ela parecia amarrotada porque estava molhada.— Molhada uma ova... estava toda enrugada.— Esqueci-me de a tirar da máquina de secar, é tudo. Sacudi-a e vesti-a.

Mary revirou os seus olhos azuis para o tecto.

— E o teu peso? De certeza que não estás a comer bem. O que foi o teu pequeno-almoço?

Isaiah tentou recordar-se, mas não conseguiu.— Iogurte, provavelmente. — Provavelmente? — Houve um cão que foi atropelado, mãe. Estive a operar desde as seis e

quarenta e cinco.— Portanto não tomaste o pequeno-almoço — concluiu Mary, acenando

judiciosamente com a cabeça. — E o almoço? Diz-me por favor que comeste alguma coisa.

Isaiah engolira uma embalagem de bolos Twinkies e um pacote de bolachas de queijo Cheese Nips entre visitas domiciliárias a ranchos.

— Comi enquanto conduzia — confessou, olhando culpadamente para as mãos, esperando que os seus dedos não estivessem amarelados. — Eu estou bem, fica descansada.

— Ah! Se há um homem que precisa de uma mulher para cuidar dele, és tu.

— Voltamos a isso agora? — casquinou Isaiah. — Não te esforces tanto comigo, mãe. Como se o meu casamento fosse resolver tudo, não? É uma nova geração. As raparigas de hoje não ficam em casa a cuidar dos maridos. Têm carreiras exigentes, e é assim que deve ser.

— Ainda deve haver por aí algumas raparigas à moda antiga.Se assim era, Isaiah não encontrara nenhuma. E não era por não ter

procurado.— Talvez — acabou por dizer, olhando depois para o relógio. — E essa ideia

de que me querias falar? Se ma queres transmitir, é melhor começares já, pois tenho de estar de volta à clínica pelas três.

Mary bebeu um pequeno golo de café.— Lembras-te da minha vizinha, Etta Parks?— A velhota que mora duas casas abaixo? — uma imagem fugaz de uma

mulher bonita, de cabelo branco, passou pela mente de Isaiah. — Sim, lembro-me.

Mary sorriu.— A Laura é a neta dela. E uma rapariga adorável. Ela vem quase todos os

dias ver a Etta, quando sai para passear os cães.— Cães? Quantos é que ela tem?— Oh, eles não são propriamente dela — os olhos azuis de Mary

humedeceram-se. — Essa é uma das formas de a Laura compensar a sua ma-gra pensão de invalidez, passear os cães das outras pessoas ou tratar deles enquanto os donos estão de férias. Creio que ela também faz outras coisas, trabalha a dias, passa a ferro e essas coisas. Mas foi o seu jeito para os ani-mais que me fez pensar em ti.

Isaiah pressentiu que a mãe estava a preparar caminho para alguma coisa. Olhou de novo para o relógio.

— Desculpa, não estou a perceber. Uma pensão de invalidez, diz a mãe?Mary forneceu os detalhes, contando-lhe que a neta de Etta fora nadar com

amigos alguns anos antes e batera com a cabeça numa rocha ao mergulhar no rio.

— Ficou com uma lesão cerebral qualquer — explicou ela.

Isaiah recordava-se vagamente de ter ouvido falar disso. A rapariga estivera algum (empo em coma, sem esperanças de sobrevivência, se bem se recordava.

— Quando a Laura acordou depois do acidente — continuou a mãe — toda a sua vida fora destruída. Não me consigo lembrar de qual era a profissão dela — era cientista, ou algo parecido, creio eu. Muito bom ordenado, muitas viagens. Depois, num abrir e fechar de olhos, foi-lhe tudo tirado. Ela agora vive num apartamento por cima da garagem de alguém e passeia cães para ganhar dinheiro.

— É uma pena — disse Isaiah. E disse-o do fundo do coração. — Só não sei bem o que é que tudo isto tem a ver comigo.

Mary franziu os cantos da boca.— A Laura é uma rapariga tão bonita e tão doce! A vida dela seria muito

mais gratificante se ela tivesse um emprego regular e pudesse conviver com pessoas da idade dela.

Isaiah mexeu-se na cadeira, incomodado.— Suponho que isso seja verdade, mãe, mas em termos práticos que tipo

de trabalho é que uma mulher com lesões cerebrais pode fazer?— Bem, vê lá que é precisamente isso — disse Mary, inclinando-se li-

geiramente para a frente, tornando-se subitamente séria. — Ela é absoluta-mente maravilhosa com cães, Isaiah. Ocorreu-me no outro dia que ela daria uma excelente zeladora de um canil.

— Eh lá! — exclamou Isaiah, levantando uma mão. — Não estás a sugerir o que eu estou a pensar, pois não? Uma zeladora de canil na nossa clínica? — Abanou a cabeça expressivamente. — O Tucker e eu gerimos um hospital veterinário, mãe, não uma organização de caridade! Não podemos contratar uma pessoa com lesões cerebrais.

— Mas, meu querido, as lesões cerebrais da Laura não são assim tão graves. Nem sequer notei que havia algo de errado até a Etta o ter mencionado.

— Não, de forma alguma. Desculpa, mãe, tenho muita pena, a sério. Gostaria de a ajudar, mas não há hipótese. Lembras-te do rato? Foi uma mulher perfeitamente normal que deu aquela bronca. Tanto eu como o Tucker esforçámo-nos muito para chegarmos onde chegámos. Está em jogo a nossa reputação como veterinários. Somos responsáveis pelo bem-estar de animais de estimação e de quinta. Não podemos ter uma mulher deficiente mental a trabalhar na nossa clínica.

Mary franziu os lábios. Isaiah conhecia-lhe aquela expressão. Ela usara-a contra ele milhares de vezes quando ele era miúdo.

— Se bem te recordas, fui eu e o teu pai quem vos emprestou o capital necessário para arrancarem com essa clínica.

Isaiah apertou a cana do nariz. Aquilo era verdade. A dívida fora totalmente reembolsada, mas isso não interessava para o caso.

— Sei que vos devo muito, mãe.Mary assentiu com a cabeça.— E não é todos os dias que eu te peço um favor.Por que razão, pensou Isaiah, lhe era tão difícil dizer não à mãe? Tinha

trinta e três anos e não vivera em casa desde que entrara para a universidade. Achava que isso se devia ao facto de os seus pais sempre terem vindo, infalivelmente, em seu auxílio quando ele precisava deles, e assim ele sentia-se na obrigação de fazer o mesmo por eles.

— É verdade. A mãe raramente me pede o que quer que seja.— Bom, estou a pedir-te agora — disse ela com suavidade. — Acredito

sinceramente que a Laura pode fazer o trabalho, Isaiah, e sei de fonte segura que vocês têm tido dificuldade em encontrar bons zeladores para o vosso canil.

Isaiah não podia contestar esse facto. Lavar à mangueira cocó de cão do chão do canil não era decerto um trabalho atractivo.

— Parece-me que o mínimo que podes fazer — continuou Mary — é entrevistá-la para o cargo. — Ela abriu as mãos em gesto de súplica. — Se achares que ela não é capaz de fazer o trabalho, tudo bem. Sei que tens bom coração e confio no teu discernimento. Mas não achas que lhe deves ao menos dar uma hipótese?

Isaiah sabia quando lhe estavam a dar graxa.— Vou ter de falar primeiro com o Tucker. Somos sócios, lembra-te. Não

tomamos decisões dessas unilateralmente.Mary arqueou uma sobrancelha.— Diz ao Tucker para me telefonar se ele tiver alguma objecção. Eu tratarei

dele.Isaiah não tinha quaisquer dúvidas de que a sua mãe faria precisamente

isso.

Capítulo Um

O suor cobria as palmas das mãos de Laura Townsend quando ela es-tacionou o seu velho Mazda vermelho em frente à Clínica Veterinária de Crystal Falls. Um trabalho a sério. Desde que falara ao telefone com Mary Coulter na noite anterior, essas quatro palavras dançavam repetidamente na sua cabeça. Estava entusiasmada com a perspectiva de trabalhar de novo numa posição oficial, mas sentia-se também aterrorizada. E se Isaiah Coulter a contratasse e depois ela cometesse um qualquer erro tremendo?

Depois de meter as chaves do carro na carteira, Laura ficou por um momento sentada, a olhar a clínica veterinária através do pára-brisas riscado, a qual dava para uma avenida movimentada no extremo norte da localidade. Era uma extensa estrutura de tijolo, com uma ala em cada extremo, dividida frontalmente por um grande e alto vão, com janelas do chão ao tecto de vidro fumado a darem para um separador ajardinado com passeio de ambos os lados e lugares de estacionamento. Da cor rosada da areia do deserto, o edifício era notável, com um telhado de várias águas que se erguiam e desciam numa cadência harmoniosa.

Nas traseiras da clínica, uma grande área de estacionamento não pavi-mentada pontoada por estruturas semelhantes a celeiros, recintos vedados e pinheiros ponderosa criava um pano de fundo rural que se adequava aos arredores esparsamente povoados. O maior desses «celeiros» ostentava uma placa com a silhueta de um cavalo e as palavras CENTRO EQUINO. Laura pre-cisou apenas de um breve segundo para ler as palavras em voz alta e lembrar-se do que elas significavam. Aquilo não era uma mera clínica veterinária, mas sim um hospital completo, tanto para animais grandes como pequenos.

Quereria ela realmente trabalhar num lugar destes? Mais importante ainda, seria ela capaz de lidar com a responsabilidade? Laura sentia-se razoa-velmente satisfeita com as coisas como elas estavam. Um pouco sozinha, talvez — ok, muito sozinha —, mas conseguia manter-se ocupada com os seus passatempos e trabalhos eventuais, e no geral a sua vida era agora bem melhor do que a que os médicos e terapeutas previram há cinco anos. Desde que se mantivesse calma, conseguia falar razoavelmente bem, e já era capaz de ver televisão e filmes, de que gostava muito. Recentemente, tinha até melhorado o suficiente para ouvir livros em cassetes áudio e conseguia perceber praticamente todas as palavras. Porquê então virar o seu mundo de pernas para o ar ao aceitar um trabalho que a poderia esmagar? E, se pro-vasse algo mais, continuaria satisfeita com a sua vida como ela era agora?

Muito tentada a arrancar e ir-se embora, Laura continuou a olhar fixamente para a clínica. E se os tratadores do canil tivessem de administrar me-dicamentos aos animais e ela se enganasse a ler uma etiqueta? Ou se tivesse de medir a temperatura aos animais doentes? Não fazia ideia se conseguiria ler um termómetro. Não te predisponhas ao fracasso. Essa máxima, incutida nela durante a reabilitação, salvara-a de muita dor nos últimos cinco anos.

Mas ela queria este emprego. Seria tão bom poder trabalhar de novo com outras pessoas — provavelmente até fazer amigos próximos da sua faixa etária. Estava carente de mais contacto humano — de uma oportunidade de falar e rir com outras pessoas, talvez até de desfrutar de uma noitada com outras colegas. Ela nunca teria esses prazeres na vida se continuasse a jogar sempre pelo seguro. A mudança envolvia sempre uma certa dose de risco, e era preciso coragem para arriscar. Tudo isto se resumia a uma questão: seria ela uma pessoa cobarde?

Laura abriu violentamente a porta do condutor e obrigou-se a sair do veículo. Um passo de cada vez. Porquê preocupar-se com os piores cenários possíveis se ainda nem sequer tinha o emprego? Estava decidida a ser completamente franca a respeito da sua deficiência na entrevista com Isaiah Coulter. Se ele ainda a quisesse contratar, ficaria encantada. Senão, ela com-preenderia, iria para casa e tentaria ser feliz com as coisas tais como elas estavam.

Ao aproximar-se da clínica, Laura tentou respirar pausadamente e expulsar a tensão do seu corpo. Ao entrar, quis fazê-lo com o pé direito, e não começar a balbuciar como uma atrasada mental e fazer uma triste figura. A afasia, o tipo de lesão cerebral de que sofria, não se dava bem com a agitação. O último terapeuta que a tratou explicara bem o problema, comparando o cérebro dela a um complicado painel eléctrico, e a agitação a uma chave de porcas que caía sobre ele e rebentava com todos os circuitos. Para uma pessoa como ela, manter-se calma era tão vital quanto respirar.

Com isso em mente, Laura tentou acalmar-se, redizendo palavras de apaziguamento, como fizera repetidamente desde que falara ao telefone com Mary Coulter na noite anterior. Não passa de um trabalho estúpido, de uma posição de fundo de escala que a maior parte das pessoas não pensaria sequer em aceitar. Contudo, as palavras não a conseguiram confortar quando ela agarrou o puxador da porta e o empurrou para a abrir. Ela já não era como a maioria das pessoas, e esta poderia ser a sua única oportunidade de se voltar a juntar à força de trabalho e de levar uma vida minimamente normal.

Laura estacou mal passou a porta principal. O espaçoso átrio de entrada estava repleto de clientes, com vários a esperar numa fila junto ao balcão de recepção, em forma de U, outros sentados numa área de espera separada, à sua direita, com uma secção para pessoas com cães, e outra para pessoas com gatos. A zoada das vozes humanas era entremeada com os latidos agudos de canídeos nervosos e os «miaus» aterrorizados de felinos aprisionados em gaiolas de transporte.

Havia quatro recepcionistas aflitas a atenderem ao balcão, enquanto outras duas se afadigavam por detrás delas, procurando ficheiros, tirando documentos das impressoras e atendendo telefones. Laura ficou com uma impressão confusa de paredes imaculadamente brancas, com atraentes frisos de cedro, um tecto em caixotão de madeira e o ténue e agradável aroma a desinfectante de limão.

Ela nunca imaginara que uma clínica veterinária poderia ser tão mo-vimentada — ou tão interessante. Observou um dachshund com uma capa impermeável amarela berrante, depois voltou a atenção para um pequeno cão castanho e branco, num carrinho de passeio vermelho-vivo. Vira recentemente uma peça noticiosa acerca dos milhares de milhões de dólares que os americanos gastam anualmente com os seus animais de estimação, mas até agora nunca imaginara quão frívolos eram alguns desses gastos. Mal podia acreditar nos seus olhos quando viu um chihuahua com um poncho de lã

multicolorido e um sombrero miniatura na cabeça. Espantoso. E as pessoas ainda achavam que ela é que era estranha?

Preocupada com as horas, olhou para o relógio, que tinha um mostrador antiquado, com pontos em vez de números. Os números tendiam a confundi-la, por ela os ver por vezes invertidos ou numa sequência errada. Faltavam dois pontos para as quatro e meia. Normalmente, dez minutos dar-lhe-iam uma boa margem de segurança, mas as filas ao balcão eram enormes e não pareciam estar-se a mover depressa. Detestava esperar pela sua vez e arriscar-se a chegar atrasada à entrevista mas, a não ser que furasse a fila, não via alternativa.

A boa educação venceu, e ela colocou-se na fila atrás de um homem de calças de ganga empoeiradas, colete vermelho e um boné amarelo engordurado.

Com os ombros doridos por ter estado longas horas a operar, Isaiah agachou-se em frente de uma jaula para observar um paciente que acordava de uma anestesia geral, um labrador cor de chocolate, com seis meses de idade, que ficara com a perna traseira direita presa em arame farpado. Quando o dono encontrou o cão, a perna já tinha sido danificada ao ponto de não ser tratável, e Isaiah não teve outra opção senão amputá-la. A operação correu bem, mas o cachorrinho perdera muito sangue e estava fraco, apesar da transfusão que recebera do seu genitor.

— Olá, Hershey - disse Isaiah, abrindo a porta da jaula para analisar a cor das gengivas do cão. Ah, sim, estás a ir muito bem. Antes de te dares conta, estás de pé e a sentires-te óptimo.

O labrador ganiu e tocou o pulso de Isaiah com um focinho seco. Acre-ditando firmemente que um pouco de carinho era tão importante depois de uma cirurgia quanto o eram os analgésicos e os bons cuidados médicos, Isaiah ficou por um momento a coçar as orelhas do animal.

Era triste ver um cão tão novo perder uma perna, mas Isaiah sabia por experiência que os canídeos tinham uma espantosa capacidade de recupera-ção. Se este cachorrinho recuperasse — e tudo indicava que sim — o membro amputado não o iria provavelmente afectar.

— Tens muitos anos formidáveis à tua frente, Hershey — sussurrou-lhe Isaiah. A constatação ajudou-o a suportar melhor a dor nos ombros.Outro sucesso. Com o tempo, Isaiah aprendera a apreciar os sucessos, porque, tal como qualquer médico, também tivera os seus fracassos. — Muitos, muitos anos formidáveis.

Nesse preciso momento, Isaiah ouviu alguém entrar na sala, por detrás dele. Devido à hora, presumiu sem olhar que fosse Belinda, a técnica que o auxiliara na sala de operações durante toda a tarde. Ela abriu o frigorífico. Um «pfft» suave indicou-lhe que ela acabava de abrir uma lata de refrigerante.

— Tens sede? — perguntou ela. — Só temos laranjada light, mas ao menos está fresca.

— Não, obrigado. — O que Isaiah precisava era de uma boa refeição. (comera um bagel1 ao pequeno-almoço, de manhã cedo, e não tivera oportunidade de comer outra coisa desde então. Agora eram seis e meia da tarde. — Creio que vou arrumar as coisas e sair daqui. — Pôs-se de pé e mostrou- lhe um sorriso cansado. — Devias fazer o mesmo. Deste o litro hoje.

1 Pão redondo de origem judaica, semelhante a um donut, mas sem ser doce e de interior denso e meio-cru. Muito popular nos Estados Unidos e no Canadá. (N. do T.)

Morena, com feições correctas, bonitos olhos castanhos e um corpo esbelto, Belinda riu-se baixinho.

— Nos seis meses que estou aqui, qual foi o dia em que não demos o litro?— Ponto assente — disse Isaiah, esfregando a nuca. — Eu e o Tucker

precisamos de arranjar para cá um par de sócios.— Boa ideia. Infelizmente, isso não nos vai ajudar esta noite — respondeu-

lhe ela, lançando-lhe um sorriso atrevido. — Tens planos para o jantar? Eu faço um molho para esparguete fenomenal, e tenho um vinho Merlot fabuloso que estou a guardar para uma ocasião especial...

Não era a primeira vez que Belinda convidava Isaiah para um jantar íntimo, e ele estava a ficar com falta de desculpas educadas. Correspondendo ao olhar esperançoso dela, ele decidiu que estava na altura de ser franco com a rapariga. — És uma mulher muito atraente, Belinda.

— Ainda bem que reparas...— Oh, claro que reparei — disse Isaiah. Não querendo ferir-lhe os sen-

timentos, ele injectou mais entusiasmo na resposta do que aquele que na verdade sentia. A verdade era que ele estava a trabalhar em demasia e a dormir muito pouco para sentir grande interesse pelo sexo oposto. — Mas, por razões puramente egoístas, não vou ceder a isso. És um membro valioso da minha equipa, aqui na clínica. Não me posso dar ao luxo de te perder por causa de um romance entre colegas que dê para o torto.

Ela pousou a lata de refrigerante sobre o balcão e despiu a sua bata azul. Por baixo, vestia uma camisola justa de malha verde que evidenciava os seus grandes seios.

— Temos tanto em comum: um interesse genuíno pela medicina veterinária, o amor pelos animais e um desejo mútuo por nos excedermos naquilo que fazemos. Quem é que diz que vai dar para o torto?

Isaiah deu uma risadinha.— As Leis de Murphy. — Atravessou a sala, pousou-lhe a mão no ombro e

mostrou-lhe um sorriso que esperava ser de pesar. — Vamos manter isto a um nível profissional, está bem? És uma técnica fabulosa, a melhor que tivemos.

— Tomo isso como um elogio, embora não tenhas a clínica há tanto tempo como isso.

— Vai para três anos... o tempo suficiente para reconhecer uma boa técnica quando vejo uma. Não podemos dar-nos ao luxo de te perder.

Os olhos dela humedeceram-se. Os cantos da boca tremeram-lhe ao dizer:— Então ficamos pelo esparguete e pela conversa profissional. Temos

ambos de comer.— Estou estoirado — respondeu-lhe ele. — Talvez noutra altura. Esta noite,

o esparguete terá de vir directamente da lata... se eu conseguir reunir a energia necessária para procurar o abre-latas.

— Não sabes o que perdes... — atirou-lhe ela, ao sair da sala.Isaiah não se incomodou a responder. Fora educado, falara-lhe com

franqueza. Não havia mais nada a dizer. Talvez Belinda fosse uma dessas mulheres que têm dificuldade em aceitar um «não» como resposta — ou talvez ele lhe estivesse a dar sinais contraditórios. Era possível, pensou. Admirava as aptidões profissionais dela, e gostava das suas respostas prontas e do seu sentido de humor ácido. Infelizmente, gostar de uma mulher e querer travar uma relação íntima com ela eram duas coisas diferentes.

Belinda era atraente, mas ele não sentia a centelha, o toque que o des-pertasse. Não que isso o surpreendesse. A clínica assoberbava-os tanto que, até o Tucker, que tomara o lugar do irmão Hank como o Don Juan da família Coulter, desistira recentemente de namorar. Nem ele nem Isaiah tinham tempo ou energia para grande vida social.

Isaiah abriu a porta do seu gabinete, entrou e estacou. Uma mulher loura estava a endireitar os diplomas emoldurados que pendiam da parede por detrás da secretária dele. Ele percorreu-lhe lentamente com o olhar o corpo esbelto. Ela vestia uma camisola solta, larga, que mesmo assim conseguia acentuar a estreiteza dos seus ombros e a sua cintura de vespa. À medida que o seu olhar descia, a sua recente convicção de estar demasiadamente preocupado e exausto para sentir atracção física saiu pela proverbial janela fora. Calças de ganga justas moldavam as nádegas bem formadas da rapariga e punham em evidência um par de pernas esculturais, que exigiam um olhar mais prolongado.

Por ser tão tarde, Isaiah presumiu que ela trabalhasse para o serviço de limpezas que vinha todas as tardes depois do fecho da clínica.

— Olá!Ela sobressaltou-se como se ele a tivesse tocado com um bastão eléctrico e

rodou sobre si mesma para o encarar.— Oh! — disse ela, levando uma mão esbelta, de dedos longos e finos, à

base do pescoço. — Desculpe-me... por mexer nas suas coisas. Elas estavam... tortas.

Ela falava de uma forma lenta e hesitante, que Isaiah atribuiu a nervos.— Espero que lhes limpe o pó, já que está a tratar delas. Esquecem-se disso

a maior parte das vezes, e a Val, a nossa gestora de recursos, vai aos arames quando encontra teias de aranha.

Uma expressão aflita aflorou ao rosto da rapariga. E que rosto bem bonito que era, uma oval quase perfeita com grandes olhos cor de avelã delineados com pestanas longas e espessas, feições delicadas e uma linda boca de lábios carnudos. O cabelo dela era da cor de conhaque caro, raiado com madeixas de um louro mais claro, e estava cortado num estilo algo revolto, à altura do pescoço.

Isaiah estava certo de nunca ter visto a mulher antes. Ter-se-ia decerto lembrado dela. Não era surpreendente. A companhia de limpeza estava cons-tantemente a treinar novo pessoal, na sua maioria estudantes universitárias muito necessitadas de dinheiro extra. Esta mulher parecia ser mais velha do que isso, mas não muito mais; andaria talvez pelos vinte e tantos anos. Ele perguntou a si mesmo se ela não estaria a estudar para um mestrado.

— Não é preciso parar com o que está a fazer — disse-lhe ele. — Não estou aqui para trabalhar. Só tenho de pegar numa ou outra coisa. — Quando se inclinou para agarrar no casaco que estava pendurado atrás da porta, acrescentou: — Não se esqueça de me despejar o lixo... Elas têm-se esquecido de o fazer algumas vezes.

— O seu lixo?A confusão evidente na voz dela fez parar Isaiah no momento em que

começava a tirar o casaco do gancho. Com a mão a pairar sobre o couro, ele voltou a estudá-la longamente com o olhar.

— Você é uma das empregadas da limpeza, certo? — Quando ela se limitou a ficar de boca aberta, é que ele baixou o braço. — Não, não me parece. — Arriscou um sorriso inquisidor. — Então, quem é?

— O meu nome é... — começou ela a dizer, antes de se interromper, passar a ponta da língua sobre o lábio inferior, e depois ficar a olhar para ele com o que só podia ser um ar de desânimo crescente. — O meu nome é... — Lançou uma mão ao cabelo e inspirou fundo três vezes. — Oh, meu Deus, dê-me um segundo...

— Não há problema. — Apoiando o seu peso contra a porta para a fechar, Isaiah cruzou os braços e ofereceu-lhe outro sorriso. — Talvez devêssemos avançar para aquilo que posso fazer por si e deixarmos a questão do nome para mais tarde...

O corpo dela perdeu parte da rigidez. Pressionou a ponta de um dedo contra uma têmpora, fechou os olhos e expirou lentamente.

— Eu sou L... Laura Townsend...Isaiah sentiu o estômago a contrair-se. Laura Townsend, a entrevista das

quatro e meia. A lembrança atingiu-lhe a consciência como um punho c errado. Estava a efectuar uma cirurgia exploratória num pastor-alemão com os intestinos dilacerados quando Gloria, uma das secretárias, o avisou pelo intercomunicador. «Diga à Gloria para mandar a menina Townsend esperar no meu gabinete», disse ele a uma das técnicas, e depois entrou o labrador cor-de-chocolate com uma perna desfeita, e ele esqueceu-se por completo do assunto.

Toda a rigidez abandonou a coluna vertebral de Isaiah. Deixou a cabeça descair contra a porta e quase que roncou:

— Peço-lhe imensa desculpa...Endireitou-se e olhou para o relógio. Duas horas — ela estivera à espera

durante mais de duas horas. Se fosse ele, estaria a subir pelas paredes.— Isto é indesculpável — disse ele, explicando apressadamente as

emergências que tinham aparecido. — As coisas tornaram-se de tal forma loucas que me esqueci totalmente que a menina estava aqui.

— Não faz mal — disse ela, e os seus lindos olhos escureceram de preocupação. — Os cães sobreviveram?

Isaiah reparou de novo na forma lenta e deliberada como ela formava as frases. Lesão cerebral. Agora tudo fazia sentido — a reacção perturbada dela quando ele a sobressaltou, depois a confusão com o próprio nome.

O pastor-alemão engoliu um pedaço de vidro — respondeu ele. — Felizmente, os donos suspeitaram que ele o tinha feito e, logo que ele deu sinais de não estar bem, trouxeram-no cá. O estrago não foi tão grande quanto poderia ter sido. Creio que se vai safar.

Ela pareceu aliviada por ouvir aquilo, revelando-se mais do que poderia adivinhar.

— E o labrador? — perguntou ela. — Também vai sobreviver?— Vai arribar, mas não teve tanta sorte. Não lhe consegui salvar a perna.— Oh, não! — exclamou ela, com uma expressão distante a vir-lhe aos

olhos. — Coitadinho! Como é que vai conseguir andar?— Os cães são criaturas espantosas. Andam muito bem apenas com três

pernas. Dentro de algumas semanas, voltará a correr atrás dos ratos do campo e dos esquilos. — Isaiah endireitou-se. — Mas chega de falar disso. Não

posso acreditar que a deixei à espera todo este tempo. Deve pensar que sou a pessoa mais mal-educada à face da Terra.

Ela colocou as mãos na cintura e abanou a cabeça.— Salvar dois cães era muito mais im-portante do que a minha entrevista.Ela pronunciou importante como se fossem duas palavras separadas.— O mínimo que eu deveria ter feito era mandar alguém avisá-la de que eu

estava retido numa cirurgia.— Foi melhor eu ter esperado. — A boca dela curvou docemente os cantos.

O sorriso dela iluminou-lhe o lindo semblante de tal forma que o fez sentir como se o sol tivesse acabado de irromper por entre as nuvens de um dia encoberto. — Deu-me uma oportunidade de ouvir todas as coisas que se passam ali fora — continuou ela, inclinando a cabeça na direcção da porta. — Isto aqui fica muito agitado... ani-mais feridos e gente transtornada. Não creio que eu seja a pessoa certa para o trabalho, afinal.

Isaiah ainda estava a debater-se com o facto de esta pessoa ser a Laura Townsend. Certo, a sua mãe dissera-lhe que ela era bonita, mas ele aprendera por amarga experiência que os gostos de Mary Coulter, no que dizia respeito às mulheres, raramente se coadunavam com os seus. Também havia aquilo das lesões cerebrais. Talvez tivesse sido maldade dele — okay, sem talvez algum; fora realmente muita maldade dele — mas imaginara uma pessoa atarracada e desajeitada, com uma expressão vazia e um lábio inferior pendente, perpetuamente reluzente de baba. Não fora preparado para os olhos cor de avelã brilhantes de inteligência, um corpo de fazer parar o trânsito ou uma cara capaz de partir o coração de um homem.

Quando ela passou por ele para ir buscar o casaco, Isaiah despertou subitamente para a realidade presente.

— Vai-se embora?Com um sorriso, ela tirou o casaco rosa de um gancho. Enquanto o vestia,

acrescentou:— Penso que é melhor — disse ela, tirando a carteira de onde ela estava

pendurada, por baixo do casaco. — O senhor precisa de alguém que seja activo, não de uma pessoa como eu, que se atrapalha e se esquece do próprio nome.

Ao ver que ela se dirigia para a porta, Isaiah tomou uma decisão rápida.— Preciso de alguém que goste de animais — atalhou ele, perguntando a si

mesmo o que estava a fazer. — A trabalhar na retaguarda, raramente se tem de lidar com emergências.

— Não?— Quando um cão ou um gato é colocado no canil, geralmente o pior já

passou. O trabalho envolve principalmente lavar jaulas, mudar as enxergas e voltar a encher as malgas da comida e da água. A confusão nos canis é geralmente provocada pelos próprios animais. Os cães tendem a ladrar muito, para tentar chamar a atenção. O barulho é tão ensurdecedor que mal nos ouvimos a pensar. Os gatos miam quase tanto como os cães ladram, provavelmente pela mesma razão.

Ela lançou-lhe um olhar interrogativo.— E isso é tudo? — perguntou ela, ajeitando o cabelo. As madeixas

douradas flutuaram de volta ao seu lugar, como fitas de seda. — Não vou ter de dar meds ou tirar temps?1

1 Formas encurtadas das palavras «medications» e «temperatures» em inglês, intraduzíveis para português. (N. do T.)

Isaiah reparou que ela encurtou ambas as palavras compridas naquela frase. Ela tinha claras dificuldades em pronunciar palavras com mais de duas sílabas.— Nada de medicamentos, nada de tirar temperaturas — assegurou- lhe ele. — A minha mãe diz que é absolutamente fabulosa com cães. É verdade?

Ainda a sorrir, ela franziu o nariz, um gesto que, ele estava seguro, de-sejava exprimir humildade, mas que em vez disso apenas a fez parecer tão mimosa quanto um botão de rosa.

— Gosto imenso deles — disse ela, encolhendo ligeiramente os estreitos ombros. — Eles não se importam que eu não consiga falar bem, mas só como a minha voz lhes soa.

Isaiah também não se importava que ela não conseguisse falar bem. Ela conseguia comunicar, e isso era tudo o que interessava.

— Gosta de gatos?— Sim. Não tanto como de cães, mas gosto deles.Isaiah cruzou os braços. Antes de poder oferecer um emprego à rapariga,

havia muito mais coisas que ele precisava de saber, mas estava cada vez mais convencido de que a sua mãe tinha razão: Laura Townsend talvez tivesse tudo o que era necessário para ser uma excelente tratadora de cães.

— Peço-lhe imensa desculpa por a ter feito esperar e por aquela minha confusão de há bocado; peço-lhe encarecidamente: pode ficar e permitir que eu a entreviste para o emprego? A minha mãe mata-me se eu a deixar ir embora sem sequer ter falado consigo.

Apareceu-lhe uma covinha na face.— A sua mãe é uma senhora muito querida. Não vai ficar furiosa consigo.

Basta que lhe diga que eu não sou a pessoa certa para o cargo.— Isso não é inteiramente verdade. Eu acho que é a pessoa perfeita para o

cargo.— Acha?Ele fez um gesto a indicar a cadeira giratória em frente da sua secretária.— Laura, sente-se, por favor. Talvez tenha razão, e não se adeqúe ao

trabalho. Nenhum de nós o ficará a saber se não se sentar e não discutir os pormenores comigo.

Ela olhou hesitantemente para a cadeira. Isaiah apercebeu-se de que ela estava tremendamente tentada, o que lhe revelou que ela queria aquele trabalho muito mais do que estava a mostrar.

Só para falarmos um bocado — assegurou-lhe ele, e depois arrumou o assunto pegando-lhe no ombro para a conduzir em direcção à secretária. Depois de a fazer sentar na cadeira, deu a volta à secretária para se sentar à frente dela. Laura aconchegou o casaco como se estivesse com frio.

Isaiah recostou-se na cadeira e apoiou um pé calçado de botas de cowboy no joelho oposto.

— O trabalho no canil exige três coisas: amor pelos animais, um bom coração e um estômago forte. Numa escala de encanto de um a dez, deve estar algures no negativo.

Isaiah viu uma pequena prega enrugar a fronte da rapariga e pensou que se calhar estava a falar depressa demais. Recostando-se mais no estofo de couro, fez um esforço consciente para abrandar.— A pior parte do trabalho é ter de limpar muita porcaria fedorenta — continuou ele. — Acolhemos ocasionalmente animais saudáveis, mas a maior parte das vezes eles estão doentes ou a recuperar de uma cirurgia.

Ela apertou as mãos sobre o regaço, estreitando os dedos com tanta força que os nós empalideceram.

— A sua mãe disse-lhe que eu tenho lesões cerebrais, Dr. Coulter?— Isaiah — emendou ele —, e, sim, ela falou nisso. Creio que ela disse que

foi um acidente na praia.Ela aquiesceu acenando com a cabeça.— Foi há cinco anos. Deixou-me com afasia. — A face dela encovou-se num

sorriso fugaz. — Já posso finalmente dizê-lo. Durante muito tempo não o consegui.

Isaiah assinava algumas revistas de medicina para se manter a par dos avanços conseguidos em tratamentos para seres humanos. Os canídeos ti-nham muitas das mesmas enfermidades, e as mesmas medicações ajudavam- nos muitas vezes. Por isso, lera recentemente um artigo acerca da afasia, que afectava aproximadamente um milhão de americanos em diversos graus, número esse que aumentava à taxa alarmante de cerca de oitenta mil por ano. Algumas pessoas ficavam afectadas na sequência de um enfarte, outras devido a traumatismos cranianos que lhes afectavam o hemisfério esquerdo do cérebro.

— Ah, pois — disse ele. — A afasia afecta a fala, não é?Isaiah também sabia o que a afasia não afectava: a inteligência da pessoa.

As vítimas da doença ficavam essencialmente aprisionadas nos seus corpos, dado que as lesões no hemisfério esquerdo interferiam com os impulsos cerebrais normais. Muitas dessas pessoas apresentavam fraqueza no lado direito do corpo. Nos casos graves, os doentes não conseguiam falar e percebiam muito pouco ou mesmo nada do que as outras pessoas lhes diziam. Laura Townsend tivera sorte nesse aspecto.

— A Laura parece falar muito bem...— Não conseguia, de início — disse-lhe ela, olhando-o nos olhos. — E ainda

tenho problemas.Agora que sabia de que tipo de lesão cerebral ela sofria, Isaiah compreen-

deu melhor a razão.— Mesmo quando estou a pensar na palavra certa — continuou ela — posso

dizer uma outra errada; e por vezes, quando fico nervosa, até as palavras que deveriam ser fáceis, como o meu nome, não me vêm à fala.

Não era de admirar que o coração da sua mãe se tenha enternecido com esta rapariga. Ela era linda e claramente muito inteligente. Bastava olhar para os olhos dela para se constatar isso. Contudo, estava reduzida a isto — a candidatar-se a um trabalho subalterno que a maior parte das pessoas não quereria. Mais triste ainda era o facto inegável de nem ele nem qualquer outro veterinário, em condições normais, pensarem sequer em a contratar.

Esta constatação fê-lo sentir muito pequeno. Quantas pessoas como Laura viveriam em Crystal Falls ou nos arredores, pessoas que o mundo ignorava e deixava para trás? As suas lesões cerebrais não eram claramente tão graves que ela não pudesse contribuir para a sociedade. Tudo o que ela precisava era de alguém que lhe desse uma oportunidade.

Isaiah detestava embaraçá-la com perguntas pessoais. Quando tentou imaginar como se sentiria se estivesse no lugar dela, quase que se dobrou sobre si mesmo. Mas havia algumas coisas que ele teria de saber antes de lhe oferecer um emprego.

— Consegue ler, Laura?

— Num bom dia — respondeu ela, encolhendo os ombros, dando a entender com esse gesto que haviam coisas piores. — Ao nível de um terceiro ano, da última vez que me testaram.

Ele puxou distraidamente o lobo da orelha.— E num dia mau?—As letras saltam — respondeu ela, ajeitando de novo o cabelo, num gesto

que ele começava a suspeitar ser um hábito nervoso. — A minha visão per-perif...

Ela deixou a frase inacabada e ergueu as mãos, em sinal de derrota.— A sua visão periférica? — sugeriu ele.Ela aquiesceu.— Está toda baralhada, pior nuns dias do que noutros. Ainda consigo ler

algumas palavras a meio, se forem curtas.Isaiah rabiscou uma nota num bloco de post-its, arrancou a folha de cima e

entregou-lha.— Consegue ler isto?Ela ficou a olhar para a escrita durante uns bons dois segundos.—Este não é um bom dia — disse ela, com uma risadinha ligeiramente

trémula. — Quando me enervo, é sempre pior.Uma sensação estranha e dolorosa assomou à garganta de Isaiah. Era

óbvio que ser testada na sua capacidade de leitura a enervava.— Isto não é uma daquelas coisas em que se passa ou se reprova. Leve o

tempo que quiser. Dê-lhe o seu melhor palpite...Os seus sobrolhos delicados enrugaram-se um contra o outro sobre a ponte

do nariz.— Você escreveu os números por extenso...— Fazemos isso aqui para evitar erros. Já me aconteceu trocar um por um

sete. Felizmente, o resultado não foi desastroso. Agora é nossa política escrever os valores em algarismos e também por extenso.

Ela pareceu aliviada.— Isso é bom. Escrevê-los por extenso, quero dizer. Os números são

traiçoeiros para mim. Por vezes vejo-os de cabeça para baixo, ou ao contrário. — Ela debruçou-se sobre a nota, franziu de novo o sobrolho e, com pausas, leu as palavras em voz alta. — Três... medidas... comida... seca..., duas... — Ela parou e ergueu os olhos do papel. — Há aqui um X sozinho...

É uma abreviatura para «vezes», neste caso, duas vezes ao dia. Usamo-la imenso em mapas de instruções.

— Oh — disse ela, acenando com a cabeça. — Duas vezes ao dia. Estou a ver.

Colocou o papel sobre a secretária e alisou a borda autocolante com as pontas dos dedos que tremiam. Ao observá-la, Isaiah deu por si com vontade de lhe afagar a mão.

— Conseguiu fazer isso muito bem. Consegue lembrar-se a partir de agora o que é que significa o X?

— Creio que sim.— Tem dificuldade em contar?— Perco-me sem os meus feijões...Ele já estava quase convencido de que ela era capaz de fazer o trabalho;

mas agora ela mandava-lhe uma bola curva.— Sem os seus quê?— Feijões — respondeu ela, metendo a mão num dos bolsos do casaco e

estendendo-a depois para Isaiah. Vários feijões vermelhos secos assentavam

sobre a palma da mão dela. — É um... truque... da reabi-lita-ção. Trago vinte comigo. Desta forma, quando tenho de contar, não me perco.

— E se tiver de contar para cima de vinte?Ela voltou a colocar os feijões no bolso.— Fico atascada num grande sarilho...Ele deu uma gargalhada surpreendida, feliz por um lado por ela conseguir

brincar com a situação, mas triste por ela estar precisamente nessa situação.— O que é que fazia antes de sofrer esse acidente, Laura? A minha mãe não

se conseguia lembrar.Ela bufou, corando.— Porque é que isso interessa? Não o posso fazer agora.Isaiah acusou o toque e aquiesceu acenando com a cabeça.— É verdade, e realmente não interessa. Só tinha curiosidade em saber.— Eu, hum, fazia... estudos... antes de eles cons-truírem estradas. — Cerrou

os lábios e engoliu em seco. — Para ver se o tráfego iria preju-dicar as plantas e os ani-mais. — Fez de novo um gesto de impotência. Os olhos dela escureceram de frustração. — Eu era uma enge... enge...

Voltou a apertar as mãos uma na outra, e os tendões do pescoço distenderam-se com o esforço que ela fazia para falar. Por fim, exalou profundamente, fechou os olhos com força e abanou a cabeça.

Isaiah apercebeu-se de que estava inclinado para a frente na cadeira, com os músculos tensos, os dentes cerrados. Meu Deus. Ele queria ajudá-la a deitar as palavras para fora, só que não o podia fazer.

— Engenheira do ambiente? — sugeriu ele por fim.As longas pestanas negras dela vibraram quando os seus olhos se abriram.— Sim. Eu tra-trabalhava por todo o no-noroeste.Ela fizera estudos de impacto ambiental e agora tinha de trazer feijões na

algibeira para conseguir contar? Isaiah frequentara inúmeros cursos de biologia enquanto estudava medicina veterinária e fazia uma ideia razoável do esforço necessário para alguém se tornar engenheiro do ambiente. Que coragem terá sido precisa para que pegasse nos destroços da sua vida e construísse uma nova! Num sentido muito real, ela era uma fénix que se reerguera das cinzas.

Olhando para ela, Isaiah chegou a uma decisão que decerto iria agradar à sua mãe.

— Ser uma zeladora de canil não será de certeza tão excitante quanto fazer estudos de impacto ambiental...

— Não me inte-ressa a excita-ção. Só quero ter de novo um trabalho normal. Tenho saudades de trabalhar com outras pessoas e de ter amigos.

Estudando a expressão dela, Isaiah quase que conseguia saborear a ânsia dela.

— Se tudo o que quer é um trabalho, está com sorte. Pelo que me apercebi até agora, não vejo qualquer razão pela qual não possa desempenhar este na perfeição.

— Não vê?Ela pareceu tão incrédula que Isaiah riu-se.— Não, não vejo. Pode precisar de um pouco de treino adicional antes de a

deixarmos fazer um turno sozinha, mas isso é uma coisa muito simples de arranjar.

Por um momento, ela ficou a olhar para ele como se ele lhe tivesse aca-bado de oferecer a Lua. Depois, a sua expressão ensombrou-se.

— E se eu come-ter um erro grave?

— Vai ser acompanhada de perto durante o período de treino. Se cometer um erro, e eu sublinho o «se», a pessoa que lhe estará a dar a formação decerto dará por ele. Ao fim de quinze dias, faremos uma avaliação de desempenho. Se vai ter problemas a executar o trabalho, isso já deverá ser patente por essa altura. — Isaiah pousou o pé no chão e rodou a cadeira para ficar de frente para a secretária. — Só pagamos dez dólares por hora, para começar, e não lhe podemos oferecer o emprego a tempo inteiro. As clínicas veterinárias precisam de um número irregular de empregados de modo a cobrir todos os turnos e dar a toda a gente tempo livre suficiente.

Laura nunca havia pensado verdadeiramente acerca do funcionamento de bastidores de uma clínica veterinária, mas presumia que fosse semelhante ao de um hospital, com pacientes internados a requerem cuidados e observação constantes.

— Os animais são deixados aqui sozinhos desde cerca das dezoito, às vezes mais tarde, dependendo da hora em que eu ou o Tucker sairmos, até às vinte e uma, quando chega o pessoal do turno da noite — continuou ele a explicar. — Depois, são deixados sozinhos desde as duas da manhã até às seis. Mas, com a excepção desses breves períodos, temos de ter aqui alguém sete dias por semana. Por isso, temos os empregados a tempo inteiro habituais, que trabalham nos mesmos dias da semana (pessoal de escritório, técnicos e técnicos assistentes), mais um certo número de pessoas a trabalhar em part-time, em turnos rotativos. Os zeladores de canil cabem nesse grupo.

Ela aquiesceu com um movimento de cabeça, indicando a Isaiah que o estava a compreender.

— Para um zelador de canil, creio que isso dará umas vinte horas por semana.

— Prefiro o part-time — assegurou-lhe ela. — Não consigo trabalhar muito tempo sem perder parte da minha assis-tência.

— Está a ver? Este pode mesmo vir a ser o trabalho perfeito para si.As faces dela coraram de prazer, e um brilho de excitação aflorou-lhe nos olhos.— Talvez seja — concordou ela.— Para além de o cargo ser apenas em part-time, vai ter também dois

patrões, eu e o meu irmão Tucker — disse Isaiah, fazendo um gesto na di-recção da porta. — O nosso edifício está disposto numa planta em forma de sinal de adição. Temos a recepção e os escritórios e gabinetes à frente e um canil nas traseiras, os quais servem tanto a ala norte como a sul. O Tucker exerce na secção norte; eu faço-o na secção sul, e partilhamos os escritórios da frente e os canis. Tenho técnicos e assistentes que trabalham principal-mente comigo. O Tucker também tem. Mas as pessoas do escritório e do canil trabalham para nós os dois.

— Estou a perceber.— Incomoda-a ter dois patrões?Ela pensou no assunto durante um momento e depois abanou a cabeça.— Creio que não.— Quer dizer que aceita o trabalho? Ela lançou-lhe um olhar interrogativo.— Se o seu irmão também vai ser meu patrão, não quererá também

entrevistar-me?Isaiah esteve quase a dizer-lhe que a mãe deles desancaria o Tucker se ele

estragasse aquilo, mas limitou-se a dar uma resposta mais diplomática:

Aqui não somos assim tão formais. Eu e o Tucker confiamos no critério um do outro. Se eu pensar que a Laura é a pessoa indicada para trabalho, ele não vai contornar a minha decisão. E eu penso que sim. Quero dizer, penso que a Laura é a pessoa indicada para o trabalho.

Ela sorriu de novo, mostrando uma fiada de dentes pequenos e perfeitos. Bem, nesse caso, sim, gostaria de tentarIsaiah teve a impressão de que tentar fora o refrão dela durante os

últimos cinco anos. Só uma atitude positiva de tudo-ou-nada a fez chegar onde estava agora. Ele abriu uma gaveta e tirou dela um formulário de inscrição.

O que é que acha? Vamos dar-lhe formação e ver como se desembaraça durante duas semanas. Se tiver problemas a fazer o trabalho, deixarei que se vá embora, sem ressentimentos. Se tudo correr bem, damos-lhe mais duas semanas, só para nos certificarmos, e depois contratamo-la para trabalho permanente.

— Parece-me bem.Isaiah fez-lhe as perguntas habituais, pedindo-lhe o nome completo, a data

de nascimento e o último emprego que tivera. Devido à deficiência de Laura, as respostas demoraram um pouco mais do que o habitual. Quando chegou à secção dos impostos e das retenções, o estômago de Isaiah roncava de fome e as mãos tremiam-lhe. Assentou apressadamente o número de segurança social dela e devolveu-lhe o cartão.

— E é praticamente tudo — disse ele, recostando-se de novo na cadeira. — Quando é que pode começar a formação?

— Por agora posso vir de manhã. A horas mais tardias, ser-me-á difícil. Faço trabalhos isolados. Não quero deixar nenhum deles até saber se este trabalho é para ficar. Preciso do dinheiro.

Isaiah atirou a caneta para cima do mata-borrão da secretária.— Por enquanto, a formação durante a manhã não deve apresentar

quaisquer problemas. Se tudo correr bem, ajustaremos o seu horário quando tiverem passado os trinta dias. Uma vez que se torne membro permanente da equipa, ser-lhe-á pedido que faça o turno da noite durante cerca de uma semana por mês. É das nove às duas da manhã. Fazemos a rotação do nosso pessoal do canil. Deste modo, ninguém fica preso no turno da noite para sempre. Acha que isso é um problema para si?

Ela abanou a cabeça.— As noites não têm problema.O estômago dele voltou a protestar, desta vez tão alto que o olhar dela

desceu até à secção média do seu corpo. Atrapalhado, pousou uma mão sobre o diafragma.

— Desculpe-me. Não como desde as seis da manhã.As sobrancelhas dela soergueram-se.— Isso não é bom para si.— É o que a minha mãe me está sempre a dizer — disse ele, sorrindo

envergonhado. — Tenho de admitir que me esqueço das horas quando me embrenho no trabalho.

Os olhos dela bailaram, divertidos.— Já tinha reparado.Ele teve de se rir.— Peço-lhe mesmo imensa desculpa pelo atraso — disse ele, batendo na

têmpora com a base da mão. — Não posso crer que me esqueci de que a Laura estava aqui à espera.

— Eu sou a rainha do esque-cimento. Não se sinta mal por isso — respondeu ela, mordiscando o lábio inferior. — Como é que ele se chama?

Isaiah mostrou-lhe um olhar vazio.— Desculpe?— O labrador castanho que perdeu a perna.— Ah, chama-se Hershey, por causa das barras de chocolate com o mesmo

nome.— Hershey — repetiu ela com suavidade. — Talvez eu ainda o venha a

conhecer.Isaiah ter-se-ia oferecido para mostrar o cão de imediato, mas estava

esfomeado e precisava de meter depressa alguma coisa no estômago.— Isso depende de quando possa começar a formação — respondeu cie,

colocando o formulário preenchido na gaveta do meio. — Ele só vai ficar cá mais uns dois dias.

— Desde que tenha as tardes livres para os meus outros trabalhos, posso começar já.

— Amanhã?Ela pensou um momento e depois assentiu. Com a necessidade de comer a

pressioná-lo, Isaiah levantou-se e deu a volta à secretária para pegar no casaco.

— Pode cá estar às seis? Eles começam bastante cedo nos canis...— Às seis está óptimo.— Vou deixar então uma nota à Susan Strong, a rapariga que abre a clínica

logo de manhã — disse Isaiah, enquanto vestia o casaco. — Se eu não estiver aqui, ela encaminha-a.

Laura apanhou a carteira do chão e passou a alça sobre o ombro quando se ergueu.

— Muito obrigada. Estou muito feliz por esta oportu-nidade. Não lhe posso prometer não fazer asneiras, mas vou dar o meu melhor.

— O seu melhor é tudo o que esperamos de si.Ela aquiesceu e voltou-se para a porta. No último instante, hesitou e voltou

a olhar para ele.— Só uma coisa...— O que é?Laura engoliu em seco e ficou parada um momento, girando a maçaneta da

porta para a direita e para a esquerda. Os olhos dela brilhavam de orgulho quando ele a encarou.

— Preciso de saber se o senhor me vai dizer se não estiver a fazer bem o meu trabalho. Não quero o trabalho se não for verdadei-ramente boa nele.

— Eu digo-lhe.Ela acenou com a cabeça, despediu-se e saiu. Isaiah ficou a olhar som-

briamente para a porta fechada depois de ela ter saído, perguntando a si próprio se seria capaz de cumprir essa promessa. Laura Townsend tocara-o de uma forma que poucas pessoas haviam feito. Se ela não fosse capaz de fazer o trabalho e ele a tivesse de despedir, seria uma das coisas mais difíceis que alguma vez fizera na sua carreira profissional.

Capítulo Dois

Quando Laura se dirigia de carro para a clínica na manhã seguinte, uma sinistra obscuridade de antemanhã envolvia a estrada de circunvalação que seguia para norte. Quando chegou aos subúrbios da cidade, viu que uma pálida lua em crescente ainda brilhava no céu cinzento-azulado, com a ponta inferior tão baixa que parecia tocar no topo dos muitos pinheiros ponderosa que bordejavam ambos os lados da estrada.

Conduzindo com a mão esquerda no volante, Laura bebia cuidadosos golos de uma caneca à prova de derrame que ela enchera de café antes de sair do seu apartamento sobre a garagem. Sempre que a infusão amarga lhe passava sobre a sua língua, ela fazia uma careta. Atrasara-se e não se dera ao trabalho de usar os seus feijões para contar as colheres de café que pusera no filtro da máquina. O resultado era o equivalente a lama do Mississipi. Sempre optimista, ela consolava-se pensando para si própria que assim uma única chávena lhe chegaria para aquela manhã. De modo a conseguir despertar, ela precisava de pelo menos duas.

No preciso momento em que Laura pousou a caneca e levou a mão ao rádio para o ligar, o seu telemóvel tocou. Tacteou dentro da carteira, encontrou o aparelho e abriu-o.

Boas, avó. Como é que sabias que era eu? — perguntou Etta Parks.Laura certificou-se de que a enorme caneca não tombara no porta-copos.— A avó disse que me ligava hoje de manhã para ter a certeza de que me

levantava a horas.— E levantaste-te! — observou alegremente Etta. — É bom saber que

conseguiste finalmente dominar aquele maldito despertador.— Não foi bem assim...O despertador a que Etta se referia fora um dos presentes que Laura

recebera de sua mãe no Natal anterior, uma engenhoca digital demasiado complicada para ela a poder regular ou ver as horas.

— Mal a mãe e o pai se mudaram, meti-o numa gaveta. Estou a usar outra vez o meu velhinho desper-tador de corda.

Etta deu uma gargalhada roufenha, fruto de quarenta anos de fumadora.— Oh-ho! Será que estou a ouvir um toque de rebeldia na tua voz?— Não. Creio que a mãe tem razão. Eu nunca melhorarei se não me esforçar

para isso. Mas preciso de escolher as minhas batalhas.— E de seres prática. Não é saberes regular um despertador digital, com

todas as campainhas e apitos, que vai melhorar a tua qualidade de vida.— Bem visto.Etta suspirou.— Não te sintas muito culpada por causa do despertador. Logo que a tua

mãe deixou a cidade, livrei-me daquela horrível colcha que ela me deu.

— Aquela verde?— Eu chamava-lhe a colcha do Rambo. Pretendia ser um motivo floral, mas

parecia mais uma camuflagem.— O que é que vais dizer à mãe quando ela te for visitar?— Que lhe fiz um buraco tendo sexo ardente com todos os meus amantes.Laura deu uma gargalhada horrorizada.— És tão má...— Nem de perto quanto a Marsha pensa que sou — suspirou Etta.— Se ao menos me tivesse divertido como ela pensa! E tão bom tê-los lá em

baixo, na Florida. Ela telefona-me uma vez por semana, e conversamos um pouco. Ela faz-me perguntas, eu digo-lhe o que ela quer ouvir, e assim nunca se enerva.

Por muito que Laura gostasse da mãe, percebia exactamente o que a sua avó queria dizer. Marsha Townsend era uma mulher maravilhosa, mas tinha uma tendência para controlar a vida das outras pessoas ao pormenor. Todo aquele adejar não passou despercebido a Laura, e se ela nunca mais teve de tomar outro suplemento natural para o cérebro, não era sem tempo. A sua mãe ainda lhe enviava frascos de comprimidos — todos os antigos medicamentos habituais e mais qualquer novidade que prometia fazer milagres — mas agora Laura podia simplesmente deitá-los no lixo.

O estalido do isqueiro de Etta ouviu-se pelo telemóvel.— Então, como é que estás esta manhã? Ainda nervosa com o emprego?— Muito — confessou Laura. — Tenho medo de estragar tudo.— Querida, tu és tão boa com os animais! Vais ser a melhor zeladora de i

anil que eles alguma vez tiveram. Confia em mim! As avozinhas velhinhas c queridas sabem destas coisas.

A avozinha querida de Laura dormia em curtas camisas de renda, uma delas num rosa-choque estonteante. Também cortejara quatro homens diferentes nos últimos seis meses, qualquer deles mais novo uma década do que ela.

— Vou ter de aprender muita coisa, avó — lembrou-lhe Laura.— Vais conseguir.— Espero bem que sim — disse Laura, entalando o telefone debaixo cio

queixo para poder beber outro trago de café. O sol erguera-se já no céu e a luz, filtrando-se em ângulo através das ramadas das árvores, matizava o cinza-azulado da estrada com manchas de ouro e sombra. — Vai ser giro ter outra vez um trabalho a sério.

— Estou tão feliz por ti, querida!— Eu também estou. Só espero é que tudo corra bem.— Vai correr. Não há filho da Mary Coulter que não seja maravilhoso. Lia é

tão boa pessoa. A propósito, o que é que achas do Isaiah? Estávamos tão entretidas a falar do emprego ontem à noite que não contaste muita coisa dele.

Uma imagem das feições morenas e bem cinzeladas de Isaiah lampejou na mente de Laura. Numa escala de beleza de um a dez, ele estava claramente fora da escala; era um dos homens mais atraentes que ela alguma vez vira.

— Bom, consigo dizer o nome dele. E já é uma grande coisa. «Afasia» e «Isaiah» soam quase ao mesmo.

— E é tudo? — perguntou Etta, incrédula. — Consegues dizer o nome dele?— Ele é simpático — esclareceu Laura.

— Simpático? Oh, deixa-te de coisas... Eu já vi esse rapaz. Só à distância, repara, mas mesmo assim via-se já que era um borracho. Fez-me desejar ser cinquenta anos mais nova.

— Ele é o meu patrão, avó.— E, depois, o que queres dizer com isso?— Não nos podemos babar...— Portanto achas que ele é giro...Giro não seria bem a palavra que Laura escolheria para descrever Isaiah

Coulter. Cabelo castanho-escuro desalinhado, um sorriso devastador a que era impossível resistir e uns escaldantes olhos azuis-celeste que lhe faziam a pele vibrar sempre que ele olhava para ela. Passara já muito tempo desde que se sentira minimamente atraída por um membro do sexo oposto — mais de cinco anos, de facto — e nem mesmo então o coração dela batera contra as costelas como uma bola de borracha sólida a saltar pelos degraus de uma escada.

— Ele é um vete-ri-nário, avó. Ganha provavelmente mais num mês do que eu num ano.

— Pro-va-vel-mente — corrigiu-a Etta. — E o que é que o rendimento anual dele tem a ver com o que quer que seja?

— Ele está muito fora do meu... — Laura hesitou, incapaz de se lembrar da palavra que queria usar.

— Alcance — ajudou Etta. — E isso é um disparate pegado. És uma rapariga inteligente e linda. Tens imenso para oferecer a qualquer homem, incluindo a Isaiah Coulter.

— Pois — respondeu Laura.Ela já nem sequer conseguia dizer inteligente sem a língua se lhe ema-

ranhar em nós. Os homens como Isaiah queriam companheiras que os de-safiassem intelectualmente, mulheres que fossem inteligentes, lindas e bem-sucedidas nas suas carreiras profissionais. E qual era agora a carreira dela — limpar retretes?

— Tira isso da cabeça, avó. Não vai acontecer.No momento em que Laura pronunciou aquelas palavras, sentiu o cabelo na

nuca a eriçar-se. Lembrou-se de como ficou surpreendida duas noites atrás, quando Mary Coulter lhe telefonara para lhe falar na possibilidade de um emprego na clínica do filho. Depois, recordou-se das palavras que Isaiah lhe dirigira no dia anterior: A minha mãe mata-me se eu a deixar ir-se embora sem sequer ter falado consigo. Era óbvio que ele fora pressionado a fazer-lhe uma entrevista.

— Oh, avó... — murmurou Laura, com a voz a tremer.— O que foi? — perguntou inocentemente Etta; com demasiada inocência

para a paz de espírito de Laura.— A avó e a Mary estão ambas à espera que o Isaiah e eu possamos... —

Laura interrompeu se, com a língua subitamente tão seca quanto algodão.Fazendo jus à sua reputação, Etta não se perdeu em rodeios.— E porque não? Ele é bonito, bem-sucedido, solteiro e precisa de uma

mulher. Só que ainda não encontrou a pessoa certa. Quem sabe se não és exactamente o tipo de rapariga de que ele anda à procura?

— Oh, avó! Eu estava tão satis-feita por ter esta opor-oportu-nidade e agora des-descu-bro que é um es-esquema que tu e a Mary a-arran-jaram!

— Laura, querida, acalma-te. Estás a gaguejar.

— Como é que me puderam fazer uma coisa destas?— Fazer o quê? Laura, ouve-me. Esta é uma grande oportunidade para ti, e

também irá beneficiar o Isaiah. Tanto ele como o Tucker têm andado aflitos para manterem uma boa assistência aos canis, e tu és maravilhosa com os animais. Eu e a Mary só esperamos que algo mais nasça daí. E é tudo.

Laura perguntou a si própria se Isaiah se apercebeu que a mãe dele e a sua avó estavam a fazer de casamenteiras. Oh, meu Deus. É claro que se apercebeu. Ele não era parvo. E ela fora a única a levar uma eternidade a lá chegar. Como é que o poderia voltar a encarar?

— Te-tenho de ir... — disse Laura, tensa.— Queridinha, não sejas assim. Queres o emprego. É isso que importa

realmente. O resto é... bem, uma coisa do género «esperar-para-ver». Talvez ele não volte a olhar para ti. Se assim for, tu ainda tens o emprego.

Laura tinha um mau pressentimento de que Isaiah já tinha mesmo olhado para ela com olhos de ver e pensado que ela era patética. Ter-se-á provavelmente apercebido desde o início do que a mãe dele estava a preparar e alinhado com aquela pantomina só para agradar à mulher. Nada de problemático, do ponto de vista dele. Se Laura fosse suficientemente insensata para acalentar qualquer esperança de que ele estivesse interessado nela, podia desenganá-la rapidamente ignorando-a. Entretanto, estaria a praticar uma boa acção, ao dar a uma pessoa deficiente uma oportunidade de ter um emprego remunerado.

Laura sentiu as faces a arder com a vergonha e com uma boa dose de fúria. Não queria desligar o telefone à avó, mas estava demasiado perturbada para continuar a conversa. Sentia como se um laço se tivesse apertado em redor do seu pescoço.

— O Isaiah não sabe de nada disto — continuou Etta. — Essa parte é só entre mim e a Mary, e agora tu, é claro. Não tens nenhuma razão para ficares...

Laura terminou a chamada. Depois encostou à berma da estrada, desligou o motor e ficou a olhar cegamente através do pára-brisas. Lá se ia o seu maravilhoso novo emprego. Fechou os olhos, sentindo uma desilusão tão esmagadora que lhe era difícil respirar. Depois da entrevista com Isaiah, deixara a clínica a andar nas nuvens, acreditando que ele a contratara por mérito próprio. Doía — oh, se doía — perceber que não fora assim.

Agora não podia, em circunstância alguma, aceitar o cargo. Não se arrastara dolorosamente, centímetro a centímetro, até uma recuperação parcial para aceitar a caridade de Isaiah Coulter. Precisava de trilhar o seu caminho no mundo sem concessões especiais. De outra forma, a sua luta teria sido em vão.

Três horas depois, Isaiah estava a entrar numa estrada de terra esburacada para fazer a sua visita semanal a uma quinta de produção de leite quando o seu telemóvel tocou. Arrancado bruscamente à contemplação distraída dos picos nevados das Cascades que se perfilavam no horizonte, ele suspirou e tirou o telefone prateado do cinto.

— Fala Isaiah...— Olá, querido.

— Viva, mãe — respondeu Isaiah. Esperava ser alguém da clínica. A sua mãe raramente lhe telefonava durante o dia, porque ele estava sempre demasiado ocupado para falar. — Como é que estás hoje? Está tudo bem contigo e com o pai?

— Oh, Isaiah, estou tão preocupada. Fiz uma asneira tremenda e agora não sei o que fazer.

Isaiah franziu o sobrolho, apreensivo. Os estábulos da quinta estavam já a seguir à curva, e por isso ele parou o jipe sobre a berma coberta de erva, meteu a caixa automática na posição de estacionamento e desligou o motor.

— Há alguma coisa em que te possa ajudar?— Oh, querido, espero bem que sim.Boomer, o pastor australiano1 tricolor, apareceu nesse momento a correr,

todo adernado na curva, deu um latido de satisfação e depois endireitou-se numa corrida para alcançar o Hummer. Preso ao telefone, Isaiah não pôde saudar o aussie como fazia habitualmente, e por isso pegou num biscoito de cão que trazia no assento do passageiro e atirou-o pela janela do condutor. A estratégia resultou. Em vez de saltar para a porta e lhe riscar a pintura, o Boomer deu um salto em corrida para abocanhar a guloseima lançada da mão de Isaiah. Para garantir o sossego, Isaiah atirou mais dois biscoitos pela janela de modo a manter o cão ocupado.

— A mãe sabe que eu a ajudo naquilo que puder. Qual é o problema?Mary emitiu um som queixoso.— É acerca da Laura Townsend...A atenção de Isaiah aguçou-se.— Sim, o que é que se passa com ela?— Oh, Isaiah, vais-te zangar comigo por causa disto. Em primeiro lugar,

deixa-me dizer-te que eu acreditava mesmo, mesmo, que ela iria ser uma zeladora de canil fabulosa. Sabes que eu nunca a recomendaria se não fosse assim.

Isaiah ergueu uma sobrancelha.— Claro que não o farias. Nem é preciso dizer. A clínica é a minha vida e a

do Tucker.— Exactamente, e estou certa de que a Laura iria ser uma aquisição

fabulosa para vocês os dois.— Iria ser? Não estou a perceber — disse ele, olhando para o relógio.

— Ela está na clínica neste preciso momento. Este é o primeiro dia da formação dela.

— Não — disse Mary quase num sussurro. — Receio bem que ela não esteja lá. Oh, Isaiah, estou tão perturbada que só me apetece chorar. Ela é uma rapariga tão querida! Eu nunca por nunca queria que ela viesse a saber...

— Saber o quê?Mary gemeu. Isaiah começou a ter um mau pressentimento, que só se veio

a agravar quando a mãe acrescentou:— Oh, como eu queria não te ter de dizer isto! És sempre tão imoderado

quando toca a estas coisas!

1 Raça de cão pastor, originária dos EUA; apesar do nome, também conhecida como aussie (australiano). (N. do T.)

Isaiah semicerrou os olhos. As únicas vezes que ele se recordava de ter sido vagamente «imoderado» com a sua mãe fora quando ela lhe tentara arranjar namoradas.

— Mãe, não me digas que tu...— Foi com boa intenção...— Não posso crer! Com a Laura, mãe? — Isaiah visualizou a cara oval de

Laura e os seus grandes olhos expressivos. Ela estivera tão hesitante durante a entrevista na tarde anterior, e depois tão grata por ter o emprego.— Mas em que raio estavas tu a pensar?

— Pronto, pronto... Não te censuro por estares furioso, Isaiah, mas não ralhes comigo.

Os olhos dele semicerraram-se ainda mais.— Não me venhas com essa da mãe ofendida. Sabes muito bem que não

estava a ralhar contigo. Ponto final. E porque é que a Laura não está na clínica a ter formação?

— Porque ela descobriu... — choramingou Mary.Isaiah apertou a cana do nariz.— Descobriu o quê, precisamente? — perguntou ele, embora receasse já

saber a resposta.— Que era um esquema casamenteiro. Oh, Isaiah, nós não queríamos

prejudicar ninguém. Tens de te compenetrar disso. Ela iria ser uma excelente zeladora de canil. Estou plenamente convencida. E se alguma coisa mais despontasse entre vocês os dois, não estávamos a ver mal algum nisso.

— «Nós»? Não me digas que o pai também está metido nisso!— Não. Não! Sabes como é o teu pai. Se decidires continuar para sempre

solteiro, ele acha que ninguém tem nada a ver com isso.Isaiah atirou outro biscoito ao Boomer.— Talvez devesses aprender com ele. O que queres dizer com «Nós»? A

Bethany está envolvida?— Meu Deus, não. A tua irmã está tão ocupada com o pequeno Sly, a casta

Ann e a academia de equitação que eu mal falo com ela agora.— E a Molly? — Isaiah imaginou a mulher do seu irmão Jake, de cabelos cor

de âmbar, a conspirar com a sua mãe enquanto tomavam café.— A Molly tem enjoos matinais. Também já não consigo falar muito com ela.Isaiah não conseguia acreditar que a mulher de Hank, a Carly, estivesse

metida no assunto. Ela fora recentemente submetida a uma operação à vista. Isso deixava apenas a Natalie, a mulher do Zeke, e ela não era do tipo intriguista.

— Quem é, então?— A Etta, a minha vizinha, e avó da Laura.Isaiah deixou a cabeça tombar contra o assento e fechou os olhos.— Já estou atrasado para uma visita a uma quinta, mãe. Despeja o resto.— A Etta esteve a falar com a Laura hoje de manhã cedo. A Etta descaiu-se

e a Laura ficou a saber que nós tínhamos arranjado este plano para vos juntar aos dois. A Laura ficou muito perturbada, desligou o telefone à avó e não apareceu na clínica.

— Tens a certeza de que ela não está lá?— Telefonei a confirmar. A Val disse-me que ela não entrou.Isaiah soltou um suspiro de cansaço.

— Muito bem, vamos ver se percebi. A Laura veio ontem à entrevista ignorando completamente que a sua avó metediça e a minha mãe intrometida estavam a planear casá-la com o seu novo patrão. Agora que sabe, já não quer o emprego e não apareceu para a formação. Acertei até aqui?

— Sim. É mais ou menos isso.— E estás à espera que eu consiga limpar a porcaria que vocês fizeram?— Ela é tão querida, Isaiah, e estava tão entusiasmada com o trabalho!

Parte-se-me o coração pensar que agora está tudo arruinado para ela.— E como raio queres que eu corrija agora isso? — perguntou Isaiah, dando

um murro no volante. — Se ela não quer o emprego, acabou-se, ponto final!— Eu estava só a pensar que talvez ela possa vir a mudar de opinião se tu...

bem, sabes... se tu fosses lá a casa falar com ela.— E dizer-lhe o quê, mãe? Que ela não se devia sentir transtornada ou

humilhada? Que tu e a avó dela são umas intrometidas inofensivas, e que não vos devíamos prestar qualquer atenção? Já sei: porque é que eu não lhe digo que nunca estarei interessado nela nesta vida, de modo a que a coisa deixe de ser problemática?

— Não te censuro por estares irritado.— É bom que não o faças, porque estou, e com toda a razão. — Isaiah

visualizou de novo a cara de Laura e cerrou os dentes. — A Laura queria mesmo este emprego, mãe. Era importante para ela. E sabes que mais?

— Não, o quê? — perguntou Mary, sumidamente.— Penso que tens toda a razão. Ela seria uma zeladora de canil excepcional.

Agora, por vossa causa, ela decidiu deixar passar a oportunidade. E triste. Não é qualquer veterinário que a irá contratar, sabes bem.

— Oh, Isaiah, sinto-me tão mal!— Ainda bem. Deves sentir-te. Da próxima vez que tiveres a tentação de

interferires com a minha vida, recorda-te de como te sentes mal neste momento. Os arranjinhos de casamento nunca resultam e são sempre, sempre, uma péssima ideia.

— Queres com isso dizer que não vais falar com a Laura?— Dá-me uma boa razão para que eu o faça...Longo silêncio. Por fim, Mary respondeu:— Porque ela é uma rapariga querida e maravilhosa, e porque tu és um

homem bom.Isaiah afastou o telemóvel do ouvido, ficou a olhar para ele durante longos

segundos e depois desligou-o. Raios. Será que a sua mãe nunca aprendia? Da última vez que ela lhe fizera uma daquelas, ele viu-se sentado a uma mesa de restaurante, a jantar diante de uma mulher com triplo queixo e um olhar esperançoso.

Não precisava da ajuda da sua mãe para encontrar uma esposa — nem queria. Boletim noticioso: Ele nem sequer queria uma esposa. Mais importante ainda, quando e se ele alguma vez decidisse procurar uma, queria fazê-lo por si próprio. Porque é que a sua mãe não conseguia meter isso na cabeça?

Um crepúsculo cinzento-escuro anunciava o fim de mais um dia so-brecarregado quando Isaiah subiu as escadas exteriores que levavam à casa de Laura Townsend, no piso de cima de uma garagem de dois andares que fora convertido em apartamento. Do exterior, não parecia grande coisa, um paralelepípedo com paredes de ripas de madeira pintadas de branco com

remates a azul e um pequeno alpendre. Mas, para quem vivia de um magro rendimento fixo como ela, não conseguiria provavelmente arranjar melhor.

Isaiah sabia por experiência própria como a habitação estava cara nos dias que corriam. Arrendar um apartamento T1 banal custava entre setecentos a oitocentos dólares por mês. Ele e o seu irmão Tucker pagaram duas vezes isso pela casa na cidade que partilharam durante mais de dois anos.Agora, graças a Deus, ambos tinham casa própria. Isaiah encontrara um talhão de terreno fora da cidade, junto da Old Mill Road perto da casa do Zeke, e construiu nele uma casa de troncos de madeira. Tucker comprara uma antiga casa de quinta num grande terreno do outro lado da cidade. Os dias de pagamento de renda tinham acabado para eles.

Quando Isaiah chegou ao patamar, parou por um momento para admirar a decoração do alpendre. Floreiras rectangulares com trepadeiras verdejantes adornavam a balaustrada do patamar. Dentro da esfera de luz lançada pelo candeeiro do alpendre, dois grandes vasos de barro cheios de hera flanqueavam uma porta azul a ostentar um elaborado batente de latão. Sob o beiral, um antigo berço albergava um trio de bonecos de peluche — um urso com um casaco de cetim e uma faixa à cintura, uma boneca com cabelos de fios de lã e um avental de criança que ele supôs ser uma boneca de trapos e um porco num fato-macaco de ganga remendada. O efeito era agradável e acolhedor.

Isaiah endireitou os ombros e respirou fundo antes de bater à porta com os nós dos dedos. Do interior, ouviu o tinir de metal, seguido do som de passos rápidos. Deu um passo atrás no momento em que Laura abriu a porta. Ela não parecia embaraçada e estava encantadoramente despenteada, com o cabelo em atraente desalinho em redor do seu lindo rosto. Os olhos dela abriram-se muito quando o reconheceu.

— Isaiah! — exclamou ela. E depois as suas faces enrubesceram.Ele beliscou o lobo da orelha e transferiu o seu peso de um pé para o outro.— Viva, Laura. Podemos falar um pouco?Com as costas do pulso, ela limpou do rosto uma risca do que parecia ser

farinha. Depois, recuou um passo para o deixar entrar. No momento em que passou a soleira, os sentidos de Isaiah foram bombardeados, primeiro com cor — tapetes, sofás e toalhas de cores vivas, almofadas dispostas com gosto — e depois com aromas deliciosos — abóbora e canela, carne assada e café acabado de fazer.

O seu estômago roncou. Só esperava que Laura não tivesse ouvido o ruído, pois naquele momento ele não sabia o que lhe deliciava mais os sentidos: se os cheiros, se a mulher. Ela trazia um avental com peitilho em axadrezado vermelho, posto sobre uma camisola de malha vermelha e jeans justas. Ao dirigir o olhar para baixo, ele verificou que ela estava descalça. Isaiah não era propriamente um apreciador de pés, mas os dela eram pequenos, de estrutura delicada, e curiosamente engraçados, com as pontas dos dedos tão rosadas quanto pétalas de rosa.

Fechando a porta atrás de si, Isaiah viu-se sem palavras. Ficou-se por uma frase tímida:

— Parece que a minha mãe e a sua avó andaram a fazer mexericos...O rosto de Laura enrubesceu ainda mais. Esfregou nervosamente as palmas

das mãos no avental axadrezado.— Desculpe-me. Eu não sabia. Juro, não sabia mesmo.Isaiah respirou fundo e lançou-se de cabeça.— Não é a Laura que deve pedir desculpa — disse ele, metendo as mãos sob

a bainha do seu velho casaco de cabedal para as apoiar sobre as ancas. — Foi sem dúvida a minha mãe quem veio com a ideia. Ela é useira e vezeira nisso...

— Oh — disse ela suavemente.Isaiah esfregou o queixo.— Normalmente, eu não ligo. Ela convida-me para jantar ou para uma lesta,

e quando eu chego há sempre alguma rapariga que ela me quer apresentar. É desagradável, mas não vem verdadeiramente nenhum mal daí. Esta é a primeira vez que ela foi tão longe. Estou tão envergonhado quanto um jaguar escorraçado por um esquilo minúsculo.

Os lindos olhos cor de avelã de Laura encheram-se de incredulidade.— O Isaiah? — disse baixinho.— Não estaria envergonhada no meu lugar? Não é que seja a primeira vez

que ela faz uma destas. Ela é contumaz, está sempre a tentar arranjar-me nina mulher — retorquiu ele, olhando para baixo, para si próprio. — Haverá algo de tão errado comigo para que ela pense que eu não consigo arranjar alguém por mim próprio?

Ela deu uma gargalhada súbita. Depois, prendeu o lábio inferior entre os dentes, observou-o por um bocado e abanou a cabeça.

— Não há nada de errado consigo, que eu consiga ver.Isaiah também não conseguia ver nada de errado nela. Não tinha acne, não

tinha duplo queixo, não tinha tiques de personalidade irritantes. Pela primeira vez, a mãe dele escolhera alguém realmente atraente. E não era mesmo azar seu? O que se aplicava à Belinda valia para todo o pessoal do sexo feminino que trabalhava na clínica: estavam proibidos os namoros de local de trabalho. Era uma regra rígida, instituída antes de ele e o Tucker terem iniciado a sua prática de medicina veterinária. Se a Laura viesse trabalhar para ele — e ele esperava sinceramente que sim — ela seria rigorosamente terreno proibido.

Laura fez um gesto na direcção da cozinha.— Eu ia começar a comer, e faço sempre comida a mais. Quer continuar a

conversa ao jantar?Isaiah estava morto de fome, e os aromas que lhe chegavam ao nariz eram

demasiado tentadores para que lhes pudesse resistir.— Oh, não, eu não posso. A Laura não estava à espera de uma visita, e

provavelmente já tem planos para as sobras.— Não — disse ela, abanando a cabeça e sorrindo. — Não posso alterar as

quanti-dades do livro de receitas para fazer uma porção menor. Contar é uma coisa, matemática é outra. Tenho pro-blemas com dividir e subtrair.

A maior parte das pessoas teria dito divisão e subtracção. Ocorreu a Isaiah que ela tinha constantemente de escolher as palavras para evitar gaguejar.

Ela ergueu as mãos numa súplica fingida.— Por favor, salve-me de ter de comer a mesma coisa toda a semana!— Nenhum homem consegue resistir a um convite desses — disse ele com

um sorriso. — Adoraria conversar ao jantar.

Ela apontou para um cabide de pé ao lado da porta.— Dispa o casaco e entre. Só me falta acabar uma coisinha...Quando ela se voltou para se dirigir à cozinha adjacente, Isaiah percorreu

com o olhar a pequena sala de estar. Mobiliário atravancado coberto de capas competiam pelo espaço com mesas de apoio desirmanadas, um velho baú maltratado que servia de mesinha de chá e uma miscelânea de bugigangas, quadros e coisas amontoadas no chão por todos os cantos. Para onde quer que olhasse, deparava com qualquer coisa — uma grinalda feita do que parecia ser feno, carregada de fitas e de flores, pequenas placas pin- ladas à mão, tapetes bordados, jarras de todas as formas e cores e fotografias de família, as quais lhe despertaram particularmente a curiosidade. Estariam os pais dela ainda juntos? Teria ela irmãos ou irmãs, e, se sim, quantos?

Ele despiu o casaco, pendurou-o e seguiu-a lentamente, reparando com agrado que o esquema decorativo dela incluía animais, uma pintura de um cão numa moldura dourada, uma estampa de um trio de gatinhos a brincar e todo o género de pequenas estatuetas de bicharocos. O amor pelos animais era claramente genuíno, uma característica que lhe seria muito útil numa clínica veterinária.

A cozinha, aberta para a sala de estar, continuava a atmosfera rústica e acolhedora. Uma arca e um louceiro de nogueira expunham uma colecção desirmanada de pratos azuis e brancos. Uma escrivaninha, colocada contra a parede, encontrava-se rodeada de coisas úteis e contudo decorativas — uma prateleira suspensa cheia de livros de receitas, um suporte para chávenas, um calendário com uma cena campestre e um relógio com um galo pintado no mostrador.

Sem ser convidado, Isaiah sentou-se a uma mesa de aspecto estranho, pequena, rectangular e com gavetas por baixo do extremo do tampo. Ne-nhuma das quatro cadeiras condizia.

— Vendas de garagem — explicou ela, enquanto enchia dois cálices com vinho tinto escuro. — Só passei a viver por conta própria há seis meses. Os meus pais deram-me algumas coisas. O resto consegui aqui e ali. Essa é uma antiga mesa de pasteleiro. As gavetas eram para guardar os rolos da massa.

— Ah — comentou Isaiah. O seu olhar dirigiu-se para a parede adjacente, coberta até meia altura com imitação sintética de pedra e encimada por uma grossa prateleira com cestos e mais bugigangas. — Eu devia-a contratar para decorar a minha casa. Está tão vazia quanto o bolso de um mendigo.

— Eu não poderia aceitar pagamento. Não sou assim tão boa.Isaiah achava que ela era. Gostava do ambiente acolhedor e confortável

que ela criara. Conseguira transformar um pequeno espaço rectangular num lar agradável e com personalidade.

Ao pousar o cálice de vinho, ela inclinou a cabeça na direcção de um cesto de fruta no centro da mesa.

— Se está com fome, sirva-se. São só mais uns minutos.Enquanto ela voltava para o fogão, Isaiah aceitava a oferta e escolhia uma

grande maçã vermelha, esfregando-a na camisa e dando-lhe uma grande e sonora dentada. Laura calçou luvas, abriu o forno e tirou dele uma assadeira com pintas azuis. Quando retirou a tampa abobada, os aromas que vogaram pelo aposento quase que o fizeram gemer.

— Espero que goste de assado.

— Adoro assado!Ela sorriu, tirou a carne da assadeira para a colocar numa travessa e depois

começou a tirar batatas e cenouras à colher para uma saladeira. Enquanto se afadigava a fazer molho dos líquidos que escorreram da carne, Laura olhou-o por cima do ombro.

— E tartes de abóbora, gosta?— Gosto de tartes de abóbora.— Óptimo. Estas são tartezinhas de abóbora. Fiz montes delas, e nunca

ficam boas depois de congeladas.Isaiah recostou-se para mastigar a maçã, bebericar o vinho e apreciar o

trabalho de Laura. Ela fazia tudo com economia de movimento, revelando não só que se sentia à vontade na cozinha como também tinha gosto em cozinhar.

Quando acabou de pôr a mesa e servir a comida, ele ficou a olhar incrédulo para os acompanhamentos, os quais incluíam fofas bolachas caseiras.

— Meu Deus, isto é um festim!Formou-se-lhe uma covinha na face quando ela desdobrou um guardanapo

azul-escuro e o colocou no regaço.— Uma loucura, não é? Andei a alimentar-me de comida congelada durante

uns tempos, mas fiquei farta. Agora cozinho-a eu e congelo o que não consigo comer. A minha conta da mercearia é grande e o meu congelador está cheio. Levo comida para a avó e para pessoas da minha rua, mas não posso dar mais.

Isaiah começou a atacar. Foi então que reparou que ela tinha juntado as mãos delicadas e inclinado a cabeça. Imitou-a rapidamente, sentindo-se um imbecil. Em casa, a sua família tinha o hábito de abençoar sempre a comida no início de cada refeição, mas ele perdera esse hábito.

— Meu Deus — rezou ela baixinho — dou-Vos graças por este bom dia, e por nos terdes abençoado com abundância. Ámen.

— Ámen — murmurou ele atabalhoadamente.Ela ergueu o olhar.— Vou-o deixar trinchar a carne.Boa. Era o pai dele quem fazia sempre isso. Lembrando-se de que era um

cirurgião e de que saberia seguramente trinchar carne assada, Isaiah puxou a travessa para perto de si. Enquanto ele se aplicava na tarefa, ela colocou alguma comida no prato e barrou uma bolacha com manteiga.

Quando ambos se serviram, ela disse:— Desculpe-me não ter aparecido na clínica hoje de manhã. Depois de ter

falado com a minha avó, não consegui.Isaiah olhou-a nos lindos olhos.— Não percebo bem porquê, Laura. A minha mãe e a sua avó estavam a

tentar juntar-nos, e descobrimos-lhes a tramóia. Admito que poderia ser uma situação desagradável se nós deixássemos que o fosse, mas por que razão o faríamos? Vamo-nos é rir disso e continuar como planeado.

— Eu só queria o trabalho se o Isaiah achasse que eu era boa nele — disse ela. — Para uma pessoa como eu, isso é muito im-portante.

— Acho sinceramente que a Laura vai ser excelente nesse trabalho.Ela lançou-lhe um olhar de dúvida.— O Isaiah é um homem in-teligente. Diz que a sua mãe já fez isto antes.

Creio que sempre soube e estava só a ser simpático. Repare que não há mal nenhum nisso. Mas não posso aceitar um emprego que não obtenha por mérito próprio.

Então era isso. Isaiah pousou o garfo na beira do prato e recostou-se na cadeira, a qual rangeu em protesto pela mudança de peso.

— Sou um homem ocupado, Laura. Inteligente, talvez, mas também tremendamente distraído. Tenho demasiadas coisas na cabeça para conseguir dar-me conta dos esquemas casamenteiros da minha mãe. Talvez eu devesse ter sabido, mas garanto-lhe que não sabia.

Ela ainda parecia pouco convencida.— Muito bem — disse ele. — Quer mesmo saber a verdade?Ela anuiu.— Eu nunca suspeitei de um esquema casamenteiro porque a minha mãe

me contou que a Laura tinha lesões cerebrais. Imaginei uma senhora de passo arrastado, muito gorda, com o olhar vazio, a boca descaída e baba a escorrer-lhe pelo queixo. — Isaiah fez uma pausa para que ela interiorizasse. — A minha mãe tentou lançar-me o laço por diversas vezes, mas nunca com uma pessoa desse género.

Com um nó no estômago e as mãos apertadas uma na outra por baixo da mesa, Isaiah esperou pela reacção dela, um pouco receoso de que ela pudesse ter ficado magoada e desatasse a chorar. Em vez disso, a boca dela franziu-se nos cantos e depois ela deu uma risadinha.

— Baba?Aliviado, Isaiah sorriu.— Fui mauzinho, não é verdade? Não devia estereotipar as pessoas, mas foi

precisamente disso que eu estava à espera. Quando a vi no meu gabinete e me apercebi de quem a Laura era, fiquei tão surpreendido, agradavelmente, devo acrescentar, que nem sequer pensei nas motivações da minha mãe.

— A escorrer-me pelo queixo?Ele não conseguiu conter uma risadinha.— Perdoe-me.

— Nem todas as pessoas com lesões cerebrais são assim — esclareceu ela.— Intelectualmente, eu sabia isso — confessou Isaiah — mas não estava a

usar o meu «chapéu pensador» ou a tentar evocar imagens clínicas na tarde em que ela me falou de si. Estava preocupado com uma vaca doente.

Ela inclinou a cabeça interrogativamente.— Se pensava que as minhas lesões cerebrais eram assim tão graves,

porque é que concordou em falar comigo?Isaiah pegou no seu copo de vinho.— Porque a minha mãe tem o hábito de me pedir favores. Para a contentar,

disse-lhe que faria uma entrevista. Sinceramente não acreditei que a Laura conseguisse fazer o trabalho. Mas, quando a conheci, mudei de opinião.

Ela limpou os cantos da boca com o guardanapo.— Depois do meu acidente, não ser capaz de falar foi só parte do problema.

Tanto a minha perna direita como o meu braço direito estavam quase inu-tili-zados, e tinha problemas motores. — Um olhar ausente perpassou-lhe no rosto. — Quando não estava na reab... reabi-li-tação, os meus pais tinham de cuidar de mim. Quando comecei a melhorar e a conseguir lazer algumas coisas por mim própria, jurei ficar boa e nunca mais precisar de ajuda.

Isaiah assentiu.— Por outras palavras, não lhe foi fácil tornar-se auto-suficiente.— Não. — O olhar dela saltou para o dele e fixou-se nele. — Tive de

enfrentar um dia de cada vez. Agora estou tão bem como alguma vez estarei. -

Ela fez um gesto indicando o que a rodeava. — Para que isto funcione, tenho de o fazer por mim própria. Sem favores especiais, dos meus pais, de si ou de qualquer outra pessoa. Não valerá de nada, se assim não for. Só me estarei a enganar a mim mesma. Está a com-preender?

Isaiah compreendia melhor do que ela poderia pensar. A sua irmã, Bethany, expressara preocupações semelhantes após o acidente de equitação que a paralisara da cintura para baixo. Tenho de conseguir fazer isto sozinha, gritava ela sempre que alguém a tentava ajudar. Fora frustrante para todos na família. Mas, no final, a teimosia pagou dividendos. Ela tornara-se auto-suficiente, e agora estava casada com um homem maravilhoso e levava uma vida praticamente normal.

— Eu compreendo-a — respondeu Isaiah. — Não se trata de qualquer favor especial, Laura. Se eu não acreditasse sinceramente que a Laura pudesse fazer o trabalho, não estaria aqui. Precisamos desesperadamente de pessoal competente para o canil. Eles despedem-se quase tão rapidamente quanto nós os conseguimos formar. Creio que a Laura fará um excelente trabalho, e estou convencido de que irá ficar connosco, não por não lhe aparecerem entretanto outras oportunidades, mas porque vai mesmo gostar dos animais.

Ela perscrutou o rosto dele por um longo momento.— Muito bem, então — disse ela por fim. — Se essa é realmente a razão pela

qual me deu o trabalho, eu lá estarei amanhã de manhã.— É mesmo essa a razão.Ela não lhe pediu mais garantias. Acreditando na palavra dele, Laura

recomeçou simplesmente a comer a sua refeição. Isaiah soltou um suspiro fundo, bebeu um golo de merlot e voltou a pegar no garfo.

Depois de meter à boca algumas garfadas, Isaiah teve de lhe dar os pa-rabéns pela comida.

— As únicas ocasiões em que consigo comer assim tão bem é quando vou jantar a casa dos meus pais.

— E o que é que come nas outras ocasiões?— Comida de restaurante, congelados — respondeu ele, encolhendo os

ombros. — Por vezes nem sequer como nada. Quando chego tarde a casa, estou geralmente demasiado cansado para tirar o que quer que seja do con-gelador e metê-lo no microondas. Prefiro ir para a cama com fome.

Ela abanou a cabeça.— Devia ter coisas à mão; queijo, fruta, coisas dessas. Pelo menos assim

podia pegar em qualquer coisa para comer sem esforço.Isaiah encolheu os ombros.— É verdade, mas a maior parte das vezes esqueço-me de ir às compras.Ela empurrou a travessa de carne na direcção dele.— Tire mais assado e 'tatas. Está muito magro.Tatas. Lá estava ela de novo a evitar palavras com mais de duas sílabas.

Não admirava que ela falasse devagar. Já era suficientemente difícil ter de voltar a aprender a falar sem ter de estar constantemente a escolher as pala-vras fáceis de pronunciar.

Quando a refeição terminou, Isaiah tinha devorado três grandes doses de carne e vegetais, quatro bolachas com manteiga, uma dose generosa de salada e cinco tartezinhas de abóbora coroadas de natas batidas. Estava tão cheio que gemeu ao erguer-se da mesa.

— Não me tem de ajudar a levantar a mesa — protestou ela ao vê-lo começar a empilhar os pratos.

— É claro que tenho — disse ele, erguendo os olhos e pestanejando. — Depois de uma refeição destas, o mínimo que posso fazer é ajudá-la com a louça.

Caíram num silêncio confortável enquanto trabalhavam. Depois, o telefone tocou. Isaiah continuou a carregar a máquina de lavar louça enquanto Laura atendia a chamada. Quando voltou para a cozinha, ela disse:

— Era a minha avó.— O quê, a cúmplice da minha mãe no crime?Ela revirou os olhos e confirmou.— Gosta-ria de ficar irritada com ela por uns tempos, mas com ela é di-fícil...— Deve ser mesmo impossível, se ela for como a minha mãe — disse Isaiah,

passando um prato por água antes de o colocar na máquina. — «Desculpa-me, Isaiah» — imitou ele numa voz aguda. — «Desculpa, desculpa, desculpa. Não volto a fazer isto!» Depois de uma meia dúzia de telefonemas, eu acabava sempre por ceder.

— Acha que ela vai cumprir a promessa?— A de nunca voltar a fazer isto? — perguntou Isaiah, pensando na questão.

— Claro que não — exclamou ele com um rápido sorriso. — Mas pelo menos o gosto dela melhorou.

Laura inclinou-se para meter na máquina a assadeira.—Pois. Não tenho baba a escorrer pelo queixo...É muito mais do que isso, pensou Isaiah, enquanto observava as atraentes

ancas dela, mas absteve-se de o dizer. Conseguira o que se propusera a fazer. Laura aceitara ir trabalhar para a clínica. Estabeleceram uma espécie de amizade. Ele não queria estragar isso dizendo-lhe que ela era a mulher mais atraente que ele conhecera em muitos anos. Não era correcto um empregador dizer uma coisa dessas. Bolas, nem sequer era correcto um empregador pensar nisso.

Capítulo Três

Na manhã seguinte, enquanto estacionava o seu velho Mazda nas traseiras da clínica, Laura repetia palestras de admoestação para si própria:

— Não passas de uma zeladora de canil, uma mulher que vai lavar à mangueira cocó de cão. Vais-te arrepender se deres cabo desta oportunidade e fores despedida por causa de uma estúpida paixoneta pelo teu patrão.

E era mesmo uma paixoneta estúpida. Isaiah Coulter era um homem bonito, perfeito e muito bem-sucedido na vida, que podia ter as mulheres que quisesse. Nunca iria olhar duas vezes para uma pessoa como ela.

Disciplinando a sua expressão, Laura entrou no edifício e encontrou-se numa divisão apinhada do chão ao tecto com caixas de material cirúrgico. A l i avessou o corredor até uma porta cinzenta e foi prontamente saudada por uma cacofonia de queixumes e gemidos quando a abriu. Estava nos canis e, daquele momento em diante, esqueceu tudo acerca de Isaiah Coulter. Cães. Olhando pela coxia central, ela viu-os de todos os tipos, desde os de raça pura aos rafeiros, grandes e pequenos. As únicas coisas que todos eles pareciam ter em comum era a alegria ilimitada em vê-la e as tentativas frenéticas em lhe chamar a atenção.— Oh, meu pobrezinho... — sussurrou Laura, ajoelhando-se em frente da jaula de um rottweiler. Havia um tubo a sair de uma larga ligadura atada em redor do ventre do canídeo e um cateter intravenoso preso por adesivo a uma das patas da frente. — O que é que te aconteceu? — perguntou ela suavemente, metendo os dedos pela rede de arame para lhe tocar no grande focinho. O cão roçou-o pelos dedos dela e gemeu. — Ah, sim, eu sei. É horrível. Estás aqui, doente e dorido, e os teus donos deixaram-te sozinho.

Laura conhecia exactamente aquela sensação. Depois do acidente, ela fora hospitalizada e depois finalmente levada para um centro de reabilitação. Os amigos dela vinham visitá-la a princípio, mas depois começaram a aparecer cada vez menos, incomodados na sua presença, dado que ela já não conseguia falar. A sua família viera visitá-la tanto quanto podia, é claro, mas, passadas várias semanas, os afazeres do dia-a-dia mantiveram-na afastada a maior parte do tempo. Mesmo agora, passados tantos anos, Laura conseguia recordar-se da sua sensação de abandono. Incapaz de comunicar, de andar, de ler ou mesmo de ver televisão, ela estivera isolada no seu sofrimento, com as horas de cada dia a estenderem-se numa procissão sem fim diante dela. Sessões de dolorosos tratamentos físicos constituíram o seu único alívio para o tédio e a solidão.

Olhando para os olhos castanhos transtornados do rottweiler, ela recordou-se do seu próprio desnorteamento durante aqueles meses e a raiva impotente que muitas vezes a assolava em repetidas vagas. Imobilizada e esquecida, era assim que ela se sentira, exactamente como este cão.

Naquele momento, invadiu-a uma sensação de propósito. É aqui que eu pertenço, pensou ela. Eu posso ajudar estes pobres animais, ajudá-los de verdade, porque compreendo como eles se sentem, de uma forma que mais ninguém consegue. Foi uma sensação maravilhosa, um afluxo enorme, ine-briante. Ela estivera à procura do seu lugar durante cinco longos anos, num mundo que ficara de pernas para o ar. Encontrara agora uma coisa importante que conseguia fazer. Estes animais precisavam verdadeiramente dela.

Laura avançou pela coxia, parando para acarinhar um cocker spaniel com gesso numa perna da frente, um caniche com um rabo pelado mas que parecia estar bem e um labrador negro com uma pata ligada e o que parecia ser uma abat-jour de plástico preso em volta do pescoço. Ela teria visitado todos os animais que estavam nas jaulas se não fosse o súbito aparecimento de uma mulher loura e robusta no extremo da coxia. Ao pôr-se de pé, Laura observou o cabelo da outra mulher cortado pelos ombros, os amáveis olhos azuis e os traços masculinos impressos numa cara rígida.

— É a Laura? — perguntou a mulher, num tom ríspido e pouco simpático.— Sim. Estava só a cumprimentar os cães.— Não devia meter as mãos através da rede antes de receber formação.

Está à procura de ser mordida?Laura escondeu a mão transgressora no bolso lateral das suas jeans.— Não, eu estava só a...— Alguns desses cães são traiçoeiros. Para limpar as jaulas deles, terá de

usar o laço.Laura não fazia ideia do que seria um laço. Olhou para os olhos tristes de

um setter irlandês. Nunca tivera medo de cães desconhecidos, muito menos de criaturas patéticas como estas. À medida que avançava pela coxia, desejava poder parar em cada uma das jaulas. Amanhã, prometeu ela, viria trinta minutos mais cedo para poder dar pessoalmente a cada animal um pouco de carinho.

— Não estou atrasada, pois não? — perguntou ela.— Não — respondeu a loura enquanto abria uma jaula. Tirou uma seringa do

bolso da frente da sua bata azul, fez uma festa ao collie que estava na jaula e depois debruçou-se para agarrar o animal pelo cachaço. Enquanto dava a injecção, disse: — Veio até um pouco cedo. Sou Susan Strong. Sou eu que lhe vou dar formação.

Laura estendeu a mão quando a outra mulher se endireitou.— Prazer em conhecê-la, Susan.Em vez de sorrir, Susan limitou-se a cerrar a boca. No canto direito

apareceu uma minúscula covinha, tão em baixo que parecia estar-lhe quase sobre o queixo.

— Gosta de cães?— Oh, sim, muito!— Isso é bom — disse ela, apertando finalmente a mão de Laura e depois

apontando para as jaulas. — Temo-los aos montes. Vêm e vão-se —

acrescentou ela, lançando um olhar severo a Laura. — Falo dos zeladores de canil. Andar a chafurdar na merda e no vomitado satura depressa. Se você não tem estômago para isso, poupe-me a maçada e desista agora mesmo. Dá muito trabalho formar uma pessoa nisto.

Laura endireitou os ombros. Não podia dizer com honestidade que gostava do cheiro das fezes dos animais, mas tinha um estômago forte. Também estava convencida de que encontrara finalmente o seu lugar.

— Se eu puder fazer o trabalho aqui, nunca vou desistir — respondeu ela.Susan resfolgou, um resfolgar fundo, de desdém, que não deixava dúvidas

quanto ao seu significado.— Já ouvi isso antes. E, para que conste, qualquer imbecil pode fazer este

trabalho.Laura não tinha por hábito falar da sua deficiência com estranhos, mas

neste caso parecia apropriado por duas razões. Susan precisava de saber do problema de Laura. E também tinha uma «pulga atrás da orelha» que precisava de ser tirada.

— Isso é uma boa notícia. Sou uma im-be-cil.Susan deitou-lhe um olhar penetrante.Laura humedeceu os lábios.— Lesões cerebrais. Mergulhei no rio perto das quedas de água. A maior

parte das vezes é seguro, mas houve uma seca nesse ano e bati com a cabeça numa rocha.

— Cruz credo! — Exclamou Susan. Um ar pensativo aflorou-lhe ao rosto. — Recordo-me disso. Aconteceu já há alguns anos, não foi?

— Cinco — confirmou Laura.Susan anuiu.— Durante um tempo, pensaram que você fosse morrer. Esteve em coma,

não esteve?— Sim, durante cerca de três semanas. Acordei com afasia, lesões no

hemis-fério esquerdo do meu cére-bro.— Bolas!— Tive de aprender de novo a falar — continuou Laura. — Irá notar que eu

falo de-vagar. Também tenho dificuldade em seguir uma con-versa se as pessoas falarem muito de-pressa ou se usarem palavras longas. — Fez um gesto indicando as jaulas em redor. — Quanto a este trabalho, tenho muita sorte em o conseguir. — Olhou Susan directamente nos olhos. — Se conseguir fazer o trabalho, não desistirei.

Susan sorriu por fim, e esse sorriso transformou-lhe a fisionomia, fazendo-a parecer mais um anjo papudo do que um sargento do Corpo de fuzileiros.

— Vai ser capaz de dar conta do trabalho — disse ela, por fim.Isaiah inclinou a cabeça para um dos lados para que a técnica anestesista

pudesse limpar-lhe o suor da testa. No meio de uma cirurgia abdominal, ele tinha sangue até ao topo das luvas cirúrgicas, e Belinda, a sua assistente, estava freneticamente à procura de um grampo. Nesse preciso momento, abriu-se uma porta na parte de trás da sala de operações. Isaiah ergueu o olhar para ver Susan Strong a entrar na sala. Lançou à loura entroncada um olhar que dizia «fica quieta» e depois voltou a atenção para o seu paciente.

Quando a artéria ficou laqueada, ele ergueu os olhos ao encontro do olhar interrogativo de Susan.

— Como é que a Laura Townsend se está a sair? — perguntou ele.

— Até aqui, tudo bem — respondeu Susan. — Lembra-se do boxer com aqueles problemas comportamentais? Quando ela abriu a porta do canil dele eu ia tendo um ataque cardíaco; mas o animal limitou-se a lambê-la até mais não...

Isaiah deu uma risadinha.— Ela tem jeito para os cães, não tem?— E muito. Até aquele pequeno e insuportável lulu-da-pomerânia gosta dela.— Precisamos de alguém bom com os animais lá atrás no canil... —

observou Isaiah.— Ámen. O maior problema dela vai ser preocupar-se demais — previu

Susan. — Não sei como é que ela vai reagir quando receber ordem para abater um cão.

Isaiah detestava ter de abater um animal pelas suas próprias mãos, mas há muito que aceitara isso como um mal necessário. Quando não se podia fazer mais nada para aliviar o sofrimento de um animal, a eutanásia era a única opção misericordiosa.

— Achas que ela é capaz de dar conta do recado?Susan assentou as mãos nas ancas largas. Por baixo da agressiva capa

exterior, ela era uma doçura, uma das pessoas mais bondosas e carinhosas que Isaiah conhecia.

— Aposto que ela se vai sair muito bem — respondeu Susan. — Foi uma manhã horrorosa, com vómito e merda até ao pescoço e uma hemorragia para coroar a porcaria.

— Uma hemorragia?— A cadelita cocker ruiva abortou.— Aquela cadela muito velha? — perguntou a anestesista.— Essa mesma — confirmou Susan. — É uma pena ter perdido as crias, mas

fica melhor assim. O Tucker teve de lhe extrair os ovários. As pessoas que continuam a querer que os animais tenham crias com aquela idade são doidas. Não consigo compreender.

— Não são doidas — atalhou Belinda. — São apenas mercenárias. Se a cadela tivesse parido sete cachorrinhos, estes seriam vendidos a quatrocentos dólares cada, talvez mesmo mais.

— Mais — retorquiu James Masterson, um rapaz alto e encorpado de vinte anos, com cabelo castanho e olhos azuis-bebé, que começara a formação como técnico assistente um ano atrás; enquanto tirava um cobertor do aquecedor, acrescentou: — A minha mãe pagou seiscentos por um cocker no mês passado. Faz as contas a isso e logo vês. — Sorriu e piscou o olho a Belinda. — Duas ninhadas por ano dariam um valente impulso aos meus rendimentos.

— Aos meus também — comentou Belinda, franzindo os lábios. — Sete cachorrinhos. Meu Deus, isso dava quatro mil e duzentos dólares! Se calhar eu deveria mudar-me para onde pudesse ter um cão e tornar-me criadora.

— Eu nunca faria criação de uma cadela velha — disse James. — Mas não vejo problema em fazê-lo com uma cadela jovem e saudável. Por mais que não seja, daria para cobrir a conta do veterinário.

— Estou mesmo satisfeita por terem acabado os tempos de parideira desta cadelita — disse Susan. — Se os donos quiserem continuar a fazer dinheiro-extra a vender cachorrinhos, terão de comprar outra cadela.

— Como é que a Laura reagiu a todo aquele sangue?Susan encolheu os ombros.— Creio que de início ela entrou um bocadinho em pânico.

— E isso não acontece com todos nós? — atalhou Angela. — Como é que ela se comportou quando se acalmou?

— Melhor do que a maior parte dos formandos. Quando precisei de ajuda, ela acorreu de imediato e fez o que eu lhe disse.

Isaiah ficou satisfeito por ouvir aquilo.— Eu tenho-a por uma mulher de coragem. Ninguém conseguia passar por

aquilo que ela passou sem ter muita fibra.— Quem é essa pessoa de quem estão a falar? — perguntou Belinda quando

entregou o suturador mecânico a Isaiah.— Laura Townsend — respondeu Isaiah, suturando rapidamente o animal. —

A Susan está a dar-lhe formação para os canis.— Oh, não sabia que a Val tinha contratado uma pessoa — comentou

Belinda, fechando os instrumentos cirúrgicos contaminados no invólucro de papel. — Isso são boas notícias. Nunca temos pessoal que chegue para os canis.

— Na verdade, não foi a Val quem a contratou — corrigiu Isaiah. — Fui eu.Belinda ergueu as sobrancelhas.— Tui Pensei que era a Val quem tratava disso.— Normalmente é ela que trata — respondeu Isaiah, tirando as luvas

cirúrgicas e deitando-as no balde de lixo. — A Laura é uma amiga da família. A minha mãe recomendou-a.

— Ah — comentou Belinda, pensativa, enquanto se dirigia ao lavatório para lavar os instrumentos antes de os colocar no esterilizador. — Já a conheces há muito tempo?

— Não. Acabei de a conhecer — respondeu Isaiah, recordando os olhos expressivos de Laura e esboçando um ligeiro sorriso. — Vocês vão todos gostar dela. E uma querida. Não é verdade, Susan?

Susan encolheu os ombros.— Até agora, gosto dela. É um pouco lenta a falar, e de quando em quando

olha para mim como se eu estivesse a falar grego. Mas de contrário mal consigo notar que há algo de errado nela.

Belinda voltou-se, interrompendo o que estava a fazer no lavatório.— Ela tem o quê?— Afasia — respondeu Isaiah, decidindo nesse momento que seria mais fácil

para Laura se todos os seus colegas de trabalho soubessem à partida da sua deficiência. — É um tipo de lesão cerebral que afecta a fala e as capacidades matemáticas.

Belinda lançou-lhe um olhar interrogativo.— Contrataste uma pessoa que não consegue falar nem fazer contas?— Não é assim tão mau — contrapôs Isaiah. — Ela fala devagar, tal como a

Susan diz, e fica confusa se lhe atiram com palavras compridas. Mas de resto ela está perfeitamente bem. Ficar-vos-ia agradecido se todos vocês fizessem um esforçozinho especial para a ajudarem a integrar-se.

Belinda ergueu os ombros com indiferença.— Tudo bem. Vou ajudá-la em tudo o que puder.Terminara a sua primeira manhã de formação, e Laura sentia-se como se os

seus ossos se tivessem liquefeito. Nunca se assustara com o trabalho, mas este emprego exauria-a tanto mentalmente como fisicamente. Havia tanta coisa a fixar. Conhecera pelo menos meia-dúzia de pessoas, incluindo Tucker, o seu outro patrão. Oh, como aquilo fora desconcertante. Ela sabia que ele se pareceria com Isaiah. Afinal, eram gémeos. Mas não esperava que fossem tão idênticos à primeira vista, ambos altos, morenos, musculados e demasiado bonitos para ela ter palavras para os descrever.

Ela estava a limpar uma jaula, e ele apareceu de repente para anotar qualquer coisa na ficha do cão.

— Bons dias! — disse ela. — Como está hoje, Isaiah?Ele olhou-a longamente e depois sorriu.— Eu não sou o Isaiah; sou o Tucker. E você deve ser a Laura.Ela sentiu de imediato a cara a escaldar. Eles eram ligeiramente diferentes

quando se olhava bem para eles. Tucker era apenas ligeiramente mais encorpado, e havia uma agudeza no seu olhar que não existia em Isaiah, um gume que dizia estou aqui, estou atento e nada me passa ao lado.

— Sim, Laura, eu sou a Laura — respondeu ela.Ele estendeu-lhe uma grande mão bronzeada.— Gosto em conhecê-la, e bem-vinda à clínica. A nossa mãe só diz boas

coisas a seu respeito.Por entre as linhas, Laura ouviu: ainda te vou observar atentamente. Não penses que não vou. Quanto a mim, ainda não está decidido se ficas ou não.

Por mais enervante que aquilo tenha sido, Laura respeitou a situação. Um empregador que não exigisse excelência não a obtinha. Tucker Coulter iria ser justo. Ela sentia isso nele. Mas também a pusera de sobreaviso de que não iria deixar passar nada.

— Darei o meu melhor para fazer um bom trabalho — disse ela.Ele lançou-lhe outro longo olhar, de olhos nos olhos. Depois, a sua

expressão suavizou-se.— Estou certo que sim, Laura. Se tiver alguma dúvida, não hesite em

perguntar a alguém. Temos aqui na clínica uma excelente equipa. Toda a gente está sempre pronta a ajudar quem precisa.

Toda a gente foram as palavras-chave naquela frase. Havia ali tantas pes-soas, todas as da equipa do Tucker mais as do Isaiah. Só recordar os nomes deles seria um desafio. Para além disso, ela tinha de aprender a disposição da clínica e onde estava tudo guardado. Os olhos de Laura ardiam-lhe de olhar para instruções de gráficos, e a cabeça doía-lhe de sobrecarga de informação.

Mas, oh, aquela era uma espécie maravilhosa de fadiga. Depois de se deixar cair para se sentar no chão de cimento da baia de um canil, Laura fechou os olhos, encostou a cabeça contra a parede de blocos de betão por detrás dela e começou a fazer festas a Marcus, um boxer que convencera toda a gente de que era um feroz assassino. Sabia bem ficar sentada por um momento sobre o cimento frio e ligeiramente húmido, a acariciar o pêlo áspero do animal.

Ia ser boa neste trabalho, pensou Laura com um arrepio de satisfação. Tivera alguns maus momentos nessa manhã, mas no geral o dia correra bem. Conseguira compreender os mapas e seguir todas as instruções. Mais importante ainda, conseguira manter a cabeça fria e fora capaz de ajudar a salvar a vida de uma velha cadela cocker spaniel. Isso fora tão recompensador que era quase como trabalhar nos serviços de urgência.

Laura abriu os olhos para olhar para a sua bata azul. Estava manchada de sangue e outras coisas que ela preferiu não identificar, mas ela ainda detestava ter de a despir. Uma farda. Ainda não tinha um distintivo com o nome, mas Susan disse-lhe que lhe iria arranjar um no dia seguinte. Então, ela

parecer-se-ia com toda a gente. Achava isso um disparate, mas parecer-se com toda a gente era importante para ela.

— Santo Deus, o que é que está a fazer?Sobressaltada, Laura levantou os olhos para ver uma bonita morena do lado

de fora da cancela de rede da jaula.— Só estou aqui a descansar um pouco com o Marcus.A mulher encostou o ombro contra a rede e sorriu.— A Susan disse que você fez amizade com ele. Isso é incrível. A propósito,

chamo-me Belinda.— Gosto em conhecê-la...Quando Laura começou a levantar-se para a cumprimentar, a técnica fez-

lhe sinal para se sentar.— Não se incomode — disse ela, agachando-se para ficar ao nível de Laura.

— Não ligamos aqui a essas formalidades.Laura recomeçou a afagar a cabeça de Marcus, que descansava no seu

regaço.— Está a trabalhar aqui há muito tempo? — perguntou.— Só há cerca de seis meses. Mas por aqui isso faz de mim uma veterana.

Só dois técnicos estão aqui há mais tempo do que eu, e trabalham na ala do Tucker.

Laura imobilizou a mão sobre a cabeça do boxer.— Tenho problemas com as palavras compridas. O seu nome vai-me ser

difícil de fixar.— Acha que Lindy lhe é mais fácil?Laura anuiu.— Muito mais fácil.— Então trate-me só por Lindy. Não me importo. É uma alcunha de família, e

estou habituada a ela — disse Belinda, metendo um dedo pela rede e abanando-o, recebendo logo uma rosnadela de Marcus. — Meu Deus, ele é mesmo mau. Estou espantada por ele ainda não lhe ter arrancado um braço.

A tensão desvaneceu-se do corpo de Laura. Olhando para o cão, ela disse:— Ele não é tão mau quanto parece. Ladra mas não morde. Creio que está

só com medo.— Pensa que já o percebeu, não é? — disse Belinda, abanando a cabeça.

— Mas, com aqueles dentes, de que é que ele tem de ter medo?Laura poderia ter enumerado várias coisas. Marcus tinha uma infecção, a

requerer injecções de antibióticos duas vezes ao dia, e, por ele parecer mau, todos os técnicos iam a extremos para se protegerem dele. Um laço, sabia agora Laura, era um dispositivo de nó corrediço montado na extremidade de uma longa vara. O utilizador podia apanhar com ele a cabeça de um cão, apertar o laço e manter imóvel mesmo um animal grande como o Marcus enquanto outra pessoa se aproximava dele para o tratar. Era natural que Marcus tivesse medo. Ninguém aqui lhe fazia festas. Em vez disso, atiravam-se a ele, com uma pessoa a estrangulá-lo enquanto outra o espetava com agulhas.

— E difícil para os cães compreen-derem a razão de estarem aqui — disse Laura com suavidade, a mente dela a nadar em memórias desagradáveis.— Os donos deixam-nos sozinhos, e vêm estranhos fazer-lhes maldades.

Belinda olhou pensativa para Marcus.

— Sim, penso que provavelmente você tem razão. Quando trato cães, penso que os estou a ajudar, mas da perspectiva deles creio bem que o que lhes estou a fazer lhes possa por vezes parecer uma maldade. — A boca dela curvou-se num sorriso. — Muito bem observado, Laura. Não admira que o Isaiah esteja convencido de que a Laura é uma excelente tratadora.

— Espero que ele tenha razão.Belinda pôs-se de pé.— Vai-se sair muito bem.— Vou tentar. Este parece ser um sítio muito bom para trabalhar.— Um sítio fabuloso, na verdade. Eu adoro-o. Trabalho principalmente com o

Isaiah. É um excelente patrão — disse Belinda, com um encolher de ombros e um sorriso. — E o cenário também não é nada mau...

Laura ficou a pensar no que ela quereria dizer. A perturbação devia ser patente na sua fisionomia porque Belinda riu-se.

— Isaiah... — explicitou ela. — Falemos no que é agradável à vista. Ele não é um borracho?

O calor assomou às faces de Laura.— Ele é simpático, penso eu...— Simpático? — Belinda deu outra gargalhada. — Ei, só estamos nós duas

aqui, numa conversa entre mulheres. Podemos abandalhar...— Okay — cedeu Laura. — Ele é um boca-dinho melhor do que só

simpático...— E o Tucker também não é nada mau — confidenciou Belinda. — São

gémeos, é claro, portanto nem sequer era preciso dizer. — Ela bateu com a base da palma da mão contra a têmpora. — Mas estou parva ou quê?! Você já deve conhecer o Tucker há muito mais tempo do que eu.

Laura abanou a cabeça.— Não. Nem sequer o cheguei ainda a ver.Belinda franziu o sobrolho.— Julgava que o Isaiah tinha dito que você era amiga de família...Foi a vez de Laura se rir.— Mais ou menos, penso eu. A minha avó vive ao lado da mãe dele.— Ah. Portanto não conhece a família de per se.— Conheço bastante bem a mãe dele. Por vezes, quando vou a casa da

minha avó, ela está lá a tomar café.— Estou a ver. Bem, como quer que a coisa tenha ocorrido, estou feliz por

ter sido contratada. As coisas vão ficar um pouco agitadas para si nas próximas duas semanas, mas talvez depois de a Laura se aclimatar nós possamos ir almoçar juntas e ficarmos a conhecermo-nos melhor.

O coração de Laura saltou de alegria. Almoçar com uma colega de trabalho. Era precisamente o tipo de coisa que ela esperava que pudesse acontecer, mas não esperava ter um convite tão cedo.

— Gostaria muito...— Óptimo. Está então combinado. — Belinda espalmou a mão contra a rede.

— Venho-a buscar depois, Laura. Bem-vinda à equipa.Laura sorriu para si própria enquanto Belinda se afastava. Bem-vinda à

equipa. Pela primeira vez em cinco anos, ela sentia finalmente que fazia de novo parte de alguma coisa.

A previsão de Belinda revelou-se correcta; as duas semanas seguintes foram incrivelmente agitadas para Laura. Depois de ter formação durante toda a manhã na clínica, ela voltava a correr à cidade para passear cães, limpar casas e engomar a roupa de outras pessoas. Como resultado, andava numa

roda-viva, arrancando todos os dias às cinco da manhã sem nunca abrandar até às cinco da tarde. Passava depois os serões a fazer o jantar, a lavar a louça, a limpar o seu apartamento e a lavar a roupa. Em resumo, mal tinha tempo para respirar.

Mas valia a pena. Ela simplesmente adorava o trabalho na clínica. Pensara que ser zeladora de canil fosse uma ocupação bastante solitária, mas não era. Empregados de ambas as alas estavam constantemente a entrar na área do canil para controlar o estado dos cães ou administrar medicamentos, proporcionando a Laura a oportunidade para conhecer umas vinte pessoas. Para além de Belinda, Trish, Angela, Susan, Mike e James, que trabalhavam na ala sul com Isaiah, havia um certo número de pessoas da equipa de Tucker de quem Laura gostava verdadeiramente, nomeadamente Sally Millet, uma técnica de pequena estatura e encorpada, com cabelo castanho encaracolado e alegres olhos também castanhos, que adorava contar anedotas e tinha um riso arranhado e contagioso; Jeri Gibson, uma ruiva roliça e «saída da casca» nos seus cinquenta e muitos anos que travava uma guerra permanente com as raízes grisalhas; Tina Moresly, uma senhora alta, de ossos largos, na casa dos quarenta, com uma personalidade brincalhona; e Lena Foster, uma assistente de veterinário do género avozinha de cabelo branco que se reformara há cinco anos e que agora voltava a exercer em part-time para compensar a sua magra reforma da segurança social.

Laura estava feliz por ter tantos amigos novos. Sabia bem andar pela clínica e ter pessoas a darem-lhe os bons-dias. Durante as pausas para o café, ela ouvia os mexericos, ria-se de anedotas que não compreendia e desfrutava da sensação de pertencer a qualquer coisa, que lhe faltara na vida por demasiado tempo. Judi tinha sempre histórias engraçadas das suas netas para contar. Lena estava sempre a tentar arranjar compromissos para maratonas de beneficência, procurando assim angariar fundos para a pesquisa da esclerose múltipla e do cancro da mama. Tina, casada mas sem filhos, trazia fotos das suas sobrinhas e sobrinhos. Era divertido, e Laura sentia-se sempre um pouco triste quando os intervalos terminavam.

A tristeza nunca durava muito tempo. Trabalhar tão de perto com os animais dava-lhe uma profunda sensação de alegria e de satisfação. Havia felinos de focinho querido que ronronavam e se roçavam por ela a pedir mais festas quando ela lhes pegava, e cães com todos os géneros de personalidade para a impedirem de se sentir aborrecida. Sempre que Laura lavava um cobertor, limpava uma jaula ou aproveitava um momento para dar a um animal um afecto especial, sabia que estava a fazer algo de positivo e importante. E isso sabia-lhe indescritível e maravilhosamente bem.

Certo dia, acabara de limpar o último canil e estava prestes a sair para ir para casa, com os pensamentos postos no fim-de-semana que se aproximava, quando Isaiah apareceu na coxia por detrás dela.

— Viva — disse ele. — Há muito que não a via.Tinham passado vários dias desde que se haviam falado pela última vez.

Ela vislumbrara Isaiah ocasionalmente e de fugida, enquanto se afadigava a

fazer o seu trabalho, mas andavam ambos demasiado ocupados para trocarem mais do que simples cumprimentos de cabeça. Vê-lo outra vez ao perto lançou-lhe de novo a pulsação num ritmo acelerado. Como é que ele conseguia ser tão bonito? A sua camisa de xadrez precisava urgentemente de ser passada a ferro, as suas botas estavam riscadas e cheias de pó e as suas jeans Wrangler estavam tão desbotadas que pareciam quase cinzentas. Era óbvio que ele dava muito pouca atenção à sua aparência.

Numa postura tipicamente masculina, ele estava de pé com as mãos apoiadas descontraidamente nas ancas, um joelho ligeiramente flectido, os ombros largos descontraídos. Um estetoscópio pendia-lhe do pescoço. O seu cabelo escuro caía-lhe em madeixas soltas e atraentes sobre a fronte alta. Quando ela olhou para os olhos azuis dele, esfumou-se todo e qualquer pensamento racional que pudesse existir na sua cabeça.

— Viva — conseguiu ela dizer. — Faz tempo...Ele apoiou um braço contra a parede divisória entre duas baias do canil.— Duas semanas, para ser exacto — disse ele, pousando um olhar caloroso

sobre o dela. — Está na altura de fazer a sua primeira avaliação de desem-penho.

Avaliação de desempenho? Laura sentiu um aperto no estômago. Oh, meu Deus. Se ele a despedisse, ela ficaria capaz de morrer. Ela adorava aquele trabalho, e fizera tantos amigos novos. Val Boswell, a gestora, era uma loura magra e tisnada pelo sol nos seus cinquenta e tal anos, sempre pronta a oferecer um sorriso caloroso e que, sendo amante de cães, visitava amiúde os canis só para ficar a conversar com ela um pouco. E isso já para não mencionar todas as técnicas e assistentes de ambas as alas. A favorita de Laura era Trish Stone, uma das técnicas de Isaiah, uma morena pequena de alegres olhos castanhos que falava constantemente nos seus filhos e nos seus cães, dois turbulentos airedales chamados Kip e Rip.

E os animais. Laura sentia um aperto no coração só de pensar em deixá-los.— Quer que eu vá ao seu gabinete? — perguntou ela, tendo logo vontade de

se morder por ter deixado a sua voz fraquejar.— Ná... nada de tão formal — respondeu ele, lançando-lhe um lento sorriso

descentrado que a fez sentir como se tivesse engolido uma dúzia de peixes dourados vivos. — Toda a gente me diz que a Laura se está a sair estupendamente, que é a melhor zeladora de canil que nós já tivemos. E benquista de todos. O pessoal do Tucker acha que você é fabulosa, e o meu pensa o mesmo. A Laura está sempre pronta a trabalhar, por mais desagra-dável que seja a tarefa. Até me dizem que fica aqui para além do termo do seu turno só para passar mais algum tempo com os animais.

Laura expirou profundamente o ar que não tinha consciência de estar a reter.

— Então fico?Ele lançou para trás a cabeça morena e desatou a rir. Quando dominou o

riso, disse:— Experimente ir-se embora e toda a gente aqui é capaz de desencadear

uma revolução. Por mim, podemos esquecer o nosso acordo original de a mantermos à experiência por trinta dias. O cargo é seu, Laura. Todos aqui, incluindo eu, sentem que a Laura está pronta a tornar-se um membro de pleno

direito da equipa. Vá falar com a Val na segunda-feira. Ela vai ter um plano de trabalho pronto para si.

Laura ficou tão encantada que quase lhe deu um abraço.— Oh! Então, tudo bem... Eu, hum... Obrigada, muito obrigada!— Não me agradeça. A Laura tem trabalhado que se desunha aqui. Durante

o dia, estou sempre tão ocupado que não tenho praticamente tempo para falar consigo. Mas na verdade não há verdadeiramente nada para debatermos, não há áreas onde a Laura precise de melhorar, não há áreas onde brilhe em particular. Pelo que sei, a Laura brilha em tudo!

Uma avaliação de desempenho rápida e informal vinha mesmo a calhar para Laura. Com efeito, ela estava ansiosa que ele se fosse embora para se poder abraçar a si própria e fazer a sua dança de contentamento.

Mas, em vez de se ir embora, ele limitou-se a franzir ligeiramente o sobrolho.

— Posso-lhe espicaçar um pouco os miolos para me ajudarem numa coisa?A pergunta despertou a veia humorística dela.— Eu não tenho muito cérebro para espicaçar...Ele semicerrou os olhos.— Não diga coisas dessas.Laura encolheu os ombros.— Desculpe. Acontece que é raro pedirem-me uma opinião.— Então saboreie este momento. Tenho de ir hoje à noite a uma festa de

anos, e disse ele, olhando para o relógio — depois de sair daqui, tenho aproximadamente trinta minutos para parar algures e comprar um presente. É para este velhote, o Sly Glass, que trabalha como capataz no rancho da família do meu cunhado. Ele e a mulher acabaram de remodelar a casa, e ele diz que gostaria de ter algo para a «toca» deles. A Laura é boa na decoração. Pensei que talvez pudesse ter algumas ideias e saber de alguma loja aonde eu possa ir.

Laura pensou por um momento.— Como é que ele é?— O Sly? — perguntou Isaiah, esfregando o queixo. — É um velho cowboy

magro e rijo, com um chapéu Stetson castanho e abaulado, com uma cara semelhante a um velho saco de papel castanho todo amarrotado.

— A Mula Teimosa... — disse Laura.Isaiah lançou-lhe um olhar estranho.— Ele é um pouco teimoso, creio eu...— Não, não, não é o seu amigo. A Mula Teimosa é uma loja do Oeste. Têm

algumas coisas impecáveis, coisas de que um velho cowboy é capaz de gostar.A perplexidade na expressão dele deu lugar a outro sorriso de orelha a

orelha, que lhe enrugou os cantos dos olhos.— A Mula Teimosa, é? Creio que já passei por lá. É junto à circunvalação,

não é?— Exacto.— Tem alguma ideia do que lhe devo oferecer? — perguntou ele. — O que é

que fica bem num escritório?— Para um velho cowboy, eu procu-raria coisas de cavalos. Uma velha sela

seria giro. Ou talvez o quadro de um campo com cavalos? Eles também têm umas bonitas almofadas de couro, para pôr nos sofás, todas feitas à mão.

— Uma velha sela, diz a Laura?

— Há imensa gente que tem uma velha sela no escritório, ou na sala íntima. Eles põem-na em cima de um... — o cérebro de Laura ficou de repente vazio. — Não me consigo lembrar da palavra! — disse ela, com um gesto de impotência. — Odeio quando isto acontece.

— Um cavalete?Ela estalou os dedos e acenou com a cabeça.— Exacto, um cavalete, só que um bonito.— Sabe, ele é mesmo capaz de gostar disso. É do tipo de gostar de selas.Laura sorriu.— Vai encontrar lá o que procura. É uma loja gira.Depois de Isaiah sair, Laura abraçou a sua própria cintura e rodopiou pela

coxia abaixo, tão contente que lhe apetecia gritar. Um membro de pleno direito da equipa. Encostou o queixo ao pescoço e voltou para cima a chapa com o seu nome para olhar para ela. No momento presente, dizia: LAURA, FORMANDA. Na próxima semana, iria ter uma nova com os dizeres: ZELADORA DE CANIL, em maiúsculas garrafais.

Era oficial. Ela estava aqui para ficar.A meio do turno de segunda-feira, Laura foi ao gabinete de Val para buscar

o seu novo plano de trabalho. Val estava encolhida atrás da secretária, a olhar para um bloco de notas em branco. Demorou um pouco a erguer os olhos.

— Olá, Laura — disse ela, com a voz sem o seu entusiasmo habitual.— Viva. O Isaiah disse que tem um novo plano de trabalho para mim.— Oh, bolas! — exclamou Val, batendo com o punho no seu curto cabelo

louro. — Esqueci-me por completo! Podes passar por cá antes de saíres?— Claro — respondeu Laura, observando a expressão da gestora e na forma

como a sua boca se curvava para baixo em amarga e exausta derrota. — Passa-se alguma coisa?

Val reclinou-se na sua cadeira estofada.— Na reunião de direcção na semana passada, o Isaiah e o Tucker decidiram

que deveríamos decorar a clínica para todas as festas daqui em diante, começando com o Halloween. Acham que isso irá levantar os ânimos a todos e fazer com que a clínica pareça mais agradável.

— Está bastante despida — observou Laura. — Mas sou suspeita, porque gosto de muita cor.

Sou inteiramente a favor de que esta clínica melhore o aspecto — disse Val, passando os dedos no peito ossudo. — Mas adivinha quem foi escolhida para fazer a decoração?

— Oh, oh. E não estás contente com isso, pois não?Val atirou com a caneta para cima da secretária.— Sou péssima para decorações. E lá em cima querem que a coisa seja feita

com bom-gosto.Laura rodou nos calcanhares para olhar em volta da moldura da porta, na

direcção do balcão de atendimento.— É capaz de não ser muito difícil — disse ela. — Qualquer coisa antiga vai

bem com madeira de cedro e paredes brancas.Val lançou um olhar especulativo a Laura.— És boa em decoração?Laura encolheu os ombros.— Razoável, creio eu.

— Eles não querem recortes de abóboras ou de bruxas colados por todo o lado.

— O que é que eles querem?Val soprou uma mecha de cabelo tombada sobre os olhos.— Coisas com gosto, apesar de tanto o Isaiah como o Tucker não con-

seguirem reconhecer uma coisa com gosto mesmo que ela corra para eles e os morda no rabo.

Laura deu uma risadinha.— Ora então! Vais-te sair bem!— Não — disse Val, franzindo as sobrancelhas como um vilão de desenho

animado. — Tu é que vais.Laura ergueu as mãos e deu um passo atrás.— Oh, não!— Oh, sim! Vais de certeza ser melhor nisso do que eu. — Val assentou os

seus cotovelos ossudos sobre o mata-borrão da secretária e inclinou-se para a frente, com uma súbita expressão de súplica. — Por favor, Laura... por favor, por favor, por favor?. Traz-me só os recibos e eu reembolso-te de todas as despesas. Detesto fazer decorações!

Laura adorava fazer decoração, e gostava tanto da Val que detestava ter de lhe dizer não.

— Não prometo que fique bem — experimentou ela a dizer.— Se for eu a fazê-la, garanto-te que não fica.— Estamos quase no Hallo-ween — lembrou Laura à gestora. — Não temos

muito tempo.— A quem o dizes! Homens! Não fazem a menor ideia do que é preciso para

decorar um átrio. Salva-me, Laura. Fazes-me esse favor?Na sexta-feira, Laura telefonou a desmarcar todos os seus outros com-

promissos e tarefas. Assim, na semana que começava, teria imenso tempo livre para se dedicar a um projecto-extra.

— Okay — acedeu ela. — Vou tentar. E porque não? Se não gostares do que eu fizer, pago-te as coisas e uso-as em casa.

— Combinado! — exclamou Val, com um sorriso de gratidão. — Lembra-te de anotares as horas extraordinárias de forma a que eu as possa incluir na tua folha de pagamentos.

— Eu não tenho de ser paga por isso — protestou Laura. — Tenho muito gosto em fazê-lo!

— Tens a certeza? Se eu ficasse cá mais tempo para o fazer, seria paga por isso. Por que razão não o serias também?

Laura abanou a cabeça.— Tenho um tecto salarial...— Então, jantamos fora; eu pago.— Parece-me óptimo.— Então está combinado — disse Val, pondo de lado o bloco de notas. —

Vieste cá por um motivo. Agora não me consigo lembrar de qual foi...— As minhas horas — recordou-lhe Laura.— Oh! — exclamou Val, revirando os olhos. — Creio que estou a chocar

qualquer coisa. A minha cabeça parece estar em papas, e estou indisposta do estômago.

— Espero que fiques bem depressa.— Oh, vou sim. Umas bolachas e um chá devem ajudar — respondeu ela,

esfregando a testa. — Podes passar por cá antes de te ires embora, Laura? Nessa altura já devo ter um horário de trabalho pronto para ti.

Depois de sair do gabinete de Val, Laura parou um pouco junto ao balcão da recepção para observar a sala de espera, que estava pejada de clientes com os seus animais de estimação. Tentou visualizar que tipo de decoração ficaria ali bem. Grinaldas sazonais eram capazes de ficar muito bem com a madeira de cedro. Cestos cheios de cabaças dariam um toque de cor muito necessária, com a vantagem adicional de os cestos poderem ser reutilizados para o Dia de Acção de Graças e para o Natal, e cheios de arranjos florais apropriados durante o resto do ano.

Essa ideia fez Laura dar meia-volta. Val ergueu os olhos interrogativamente quando Laura lhe apareceu de novo em frente da secretária.

— Acerca das paredes — começou Laura a dizer. — Estão todas nuas.— Grande novidade. Esta coisa é propriedade de dois solteirões.— Toda a clínica tem paredes nuas. Sei que não podemos ter muita coisa

nas paredes. Seria difícil de limpar. Mas, sem nada, faz a clínica parecer tão fria! Eu vou muito a feiras na rua. E se eu começar a comprar umas coisas para aqui? Não iria custar muito dinheiro compor este local.

— É, isso aí fora está muito desolado... — disse Val, ponderando a sugestão. — Se não custar os olhos da cara, estou certa de que tanto o Isaiah como o Tucker não se irão opor.

— Estou sempre a ver lindas pinturas emolduradas nas feiras. Nunca custam muito.

Val assentiu decisivamente com um movimento de cabeça.— Então vá, avança.Depois de sair do gabinete de Val, Laura passou um dedo pelo lambril de

madeira enquanto avançava pelo corredor. Decorar uma clínica iria ser um desafio. A sua experiência estava mais voltada para casas. Não tinha a certeza que tipo de quadros se adequaria mais ao ambiente. Talvez conseguisse arranjar algumas ideias a folhear revistas.

Sim, era uma boa ideia, pensou. No extremo do vestíbulo, voltou-se para estudar de novo a área, tentando visualizar como ela ficaria. Não conseguia contudo formar uma imagem nítida na sua mente. Só sabia que a Clínica Veterinária de Crystal Falls estava prestes a sofrer uma remodelação.

Capítulo Quatro

Na manhã seguinte, Laura estava a limpar os canis cinco e seis quando Isaiah apareceu ao fundo da coxia. Trazia uma bata azul manchada de sangue, uma touca cirúrgica e uma máscara. Os seus olhos ardiam de urgência por cima da faixa de pano branco.

— Preciso de si na cirurgia, já! — gritou.Laura largou os cobertores sujos que acabara de recolher nos seus braços,

trancou as portas dos canis e correu atrás dele. Quando entrou na sala de operações, ele atirou-lhe uma bata estéril, uma touca e uma máscara.

— Depressa! Mais de metade do pessoal meteu baixa por doença. Tenho em mãos uma fractura múltipla de fémur. E há uma artéria principal seccionada.

Petrificada, Laura olhou com horror crescente para o cão na mesa de operações. Um tubo ligado a um cateter, alimentado por um saco transparente contendo um líquido incolor, suspenso de um tripé, já estava preso à perna da frente do animal. Uma das suas pernas traseiras assentava num ângulo estranho e tinha sido apertadamente embrulhada numa toalha, a qual agora estava ensopada de vermelhão. Gotas de sangue pingavam da mesa de aço inoxidável para o chão de ladrilho.

— Laura? — disse Isaiah, lançando-lhe um olhar severo. — Sei que isto não faz parte das suas atribuições laborais, mas a Laura é a única pessoa que lenho aqui.

Laura limitou-se a abanar a cabeça. Decerto que ele não estava a querer que ela o assistisse na cirurgia. Não, não, não! Ela iria fazer uma qualquer asneira terrível. O cão iria morrer por sua causa. Ela não podia fazer isto.

Isaiah tirou a toalha da perna do cão e desapertou o torniquete improvisado que alguém havia aplicado para retardar a hemorragia.

— Tem de me ajudar, Laura. Não tenho mais ninguém. A Jennifer e a Gloria estão sozinhas na recepção. Estão a fazer os possíveis por arranjar mais pessoas para aqui, mas todas a quem elas telefonaram estão de cama com uma espécie de gripe. A Belinda está de baixa por doença. O marido da Trish telefonou a dizer que ela esteve toda a noite a vomitar. Não sei nada da Angela, mas está atrasada. O mais provável é que esteja demasiado doente para sequer telefonar.

— Mas...— Não há mas, nem meio mas. O Tucker está com três urgências na ala

dele, e só tem a Susan para o assistir. Normalmente, é a Val que preenche o lugar quando temos falta de pessoal, mas ela também não está cá. Assim, só me resta você para me ajudar.

Ainda a abanar a cabeça, Laura conseguiu articular:— Eu... não consigo. Desculpe, mas não consigo!— Tem de conseguir — disse ele, com os olhos azuis assestados nos dela. —

Está em jogo a vida deste animal. Não há tempo para os donos o levarem a outro veterinário. Ele esvai-se em sangue.

Laura apertou as roupas de cirurgia contra o peito, desejando também estar doente. Como é que todos foram apanhar o bicharoco e ela se sentia bem?

— Não sei o que fazer...— Eu vou guiando-a — disse ele, inclinando a cabeça para o lavatório

enquanto pegava numa tosquiadora para preparar o canídeo inconsciente.— Esse doseador por cima da torneira é de sabão anti-séptico. Há luvas

esterilizadas nessa caixa azul na ponta da bancada.Depois de tirar a bata suja, Laura vestiu rapidamente a limpa e correu para

o lavatório. Acomodando o cabelo com dedos dormentes enquanto enfiava a touca, ela olhou para o espelho para se assegurar de que toda a sua cabeça estava coberta. Os seus olhos, grandes e vidrados, olhavam para ela de uma cara branca como a cera.

— Depressa! — apressou-a Isaiah. — Não quero perder este animal.Laura estava a tremer com tanta violência que atirou com espuma de sabão

para todo o lado ao lavar as mãos e antebraços. Pouco depois, começou a sentir vertigens ao se aproximar da mesa. Havia uma poça de sangue em redor da parte traseira do cão.

— Não me desmaie aqui — avisou-a Isaiah, com suavidade. — Faça de conta que é uma coisa que está a ver na televisão. É o que eu costumava fazer.

Ele parecia tão calmo, tão pouco afectado pelo sangue, que custava a Laura acreditar que ele se tivesse alguma vez sentido tão nauseado quanto ela se estava a sentir.

Como se adivinhasse os seus pensamentos, ele disse:— A primeira vez que assisti a uma operação, quase que desmaiei.

Acontece a imensa gente. Tudo o que podemos fazer é encontrar uma forma de nos separarmos do que estamos a assistir.

Laura aquiesceu. Fazer de conta que era qualquer coisa a passar na te-levisão não funcionava muito bem. O cheiro adocicado do sangue recobria-lhe a boca, fremia-lhe na língua. O olhar dela estava constantemente a dirigir-se para a mesa de apoio ao lado de Isaiah. Sobre ela, estava uma dúzia de instrumentos diferentes, dispostos sobre uma toalha branca, o aço inoxidável de que eram feitos a brilhar sob a luz forte. Ela não sabia os nomes dos instrumentos, ou de qual deles ele poderia precisar. Assistira na televisão a suficientes programas de medicina para compreender que uma assistente cirúrgica tinha de prever as necessidades do cirurgião e corresponder sem hesitação às suas ordens.

As pernas dela pareciam ter-se liquefeito, mas obrigou-se a aproximar-se.— Não sei o que fazer — voltou ela a dizer, com voz trémula e fraca.— Não se preocupe. Tudo o que preciso é de um par de mãos-extra — disse

ele, apontando com o queixo para os instrumentos. — Neste preciso momento, preciso de um bisturi. — Ao ver que Laura hesitava, ele descreveu o utensílio e depois piscou-lhe o olho quando ela pegou nele. — Está a ver, querida? Já é uma profissional...

Quando ele fez uma longa incisão na perna do animal, Laura engoliu audivelmente em seco. Viu pequenos pontos negros a dançarem-lhe em frente dos olhos. Voltou o olhar para a cabeça do cão. Os seus olhos só estavam parcialmente fechados, e a sua boca pendia muito aberta. Era como se Isaiah tivesse puxado a língua do animal para fora, por cima dos dentes. Sentiu o

estômago a revirar-se. Para evitar o vómito, centrou a atenção no cobertor de algodão que agora cobria o corpo do canino.

— De que raça é ele? — pergunta Laura, desesperada em arranjar algo, qualquer coisa, que lhe afastasse a mente do que estava a acontecer.

— É um rafeiro como eu, um pouco disto e um pouco daquilo. Deve ser principalmente arraçado de pastor alemão, creio eu. «Rafeiro» não é um termo muito simpático. Pessoalmente, prefiro o termo «mestiço» — disse ele, olhando para o monitor para verificar os sinais vitais do animal e ajustar o fluxo do cateter. — Sabe o que é resposta capilar?

Laura abanou a cabeça afirmativamente. Conhecia o significado de muitos termos que já não conseguia verbalizar.

— De tantos em tantos minutos, belisque-lhe a língua e pressione-lhe as gengivas para verificar a resposta capilar. Tente usar apenas uma mão para fazer isso. Mantenha a outra estéril para me passar os instrumentos. Se se esquecer, troque de luvas.

Laura olhou estupidamente para a língua do cão.— Chama-se Humphrey — disse lsaiah, como se pressentisse a relutância

dela. — Quando ele acordar, vai-lhe lamber a mão para dizer «olá». Vai querer que ele volte a acordar, não vai?

A pergunta actuou no seu sistema em choque como um copo de água gelada atirada à cara. Ela apressou-se a beliscar a língua pendente do cão e a pressionar a ponta de um dedo contra a gengiva superior. Por não conseguir dizer capilar, e para salvar a cara, limitou-se a dizer:

— A resposta dele parece-me boa. A cor volta muito depressa.— Óptimo, óptimo. Os sinais vitais estão dentro do normal, mas isso pode

mudar num piscar de olhos quando um animal perde muito sangue.Laura sentiu um aperto no coração. Isto era real, pensou ela, estonteada. A

vida deste cão estava parcialmente nas suas mãos. Por assim ser, ela procurou bem fundo dentro de si a coragem que pensava não possuir. Uma estranha calma assentou sobre ela. Ela conseguia fazer isto. Ela iria fazer isto. Queria que o Humphrey acordasse em breve, queria sentir a aspereza da sua língua a lamber-lhe a mão e ver vida nos seus olhos agora sem expressão.

— Fale-me dele — disse ela, trémula. — É um novo paciente?O olhar de Isaiah saltou para os olhos dela e manteve-se neles só por um

momento, mas nesse momento o olhar foi caloroso.— Estou a segui-lo há cerca de um ano, intermitentemente — respondeu.Pediu-lhe então para limpar um pouco do sangue com um pedaço de gaze,

de modo a que ele conseguisse ver o que estava a fazer. Enquanto tra-balhavam, ele continuou:

— Só visitas de consultório... Vacinas, desparasitação, esse género de coisas. Não tivemos muito tempo para nos ficarmos a conhecer bem, mas, a julgar pelo pouco que vi dele, é um óptimo cão, esperto e muito simpático.

Sob a máscara, Laura sorriu ligeiramente.— Tem um ar amigável. Como é que são as pessoas dele?Ele lançou-lhe outro olhar rápido.— A Laura tem isso às avessas, não tem? As pessoas são os donos dele...Laura discordou.— Não penso que se trate de quem é dono de quem. Trata-se de amor. Ele

tem pessoas simpáticas?

Isaiah abanou afirmativamente a cabeça.— Um homem, uma mulher e uma rapariguinha amorosa com grandes olhos

castanhos e rabo-de-cavalo. Deixo-lhe a si adivinhar de quem o Humphrey gosta mais.

— Da menina! — respondeu logo Laura. Quase que podia ver o cão a brincar com a criança, ladrando e correndo alegremente atrás de uma bola. Ficou de repente muito contente por Isaiah lhe ter pedido para o auxiliar. Se o Humphrey sobrevivesse, ela poderia dizer que ajudara, mesmo que apenas um bocadinho, a salvar a vida dele. — Ele parece ser um cão que gosta de crianças...

— Em cheio... E, esta manhã, tornou-se um herói e tanto — disse ele, piscando-lhe os olhos, um hábito que ela começava a suspeitar que ele culti-vara por ter as mãos muitas vezes ocupadas e a parte de baixo da cara tapada pela máscara. — A menina correu para a frente de um carro.

— Oh, não! — O que restava da relutância de Laura desvaneceu-se. — Foi assim que ele ficou ferido?

Isaiah abanou afirmativamente a cabeça.— O dono diz que o Humphrey saltou para a rua mesmo a tempo de

empurrar a rapariguinha para fora da trajectória do carro. Infelizmente para o Humphrey, a condutora diz que tudo aconteceu tão depressa que ela não teve hipótese de travar. Se não fosse o Humphrey, ela teria atingido a criança.

— Oh, meu Deus.Embora Laura não pudesse ver a boca de Isaiah, as rugas que de repente se

lhe formaram no canto dos olhos disseram-lhe que ele estava a sorrir.— Já alguma vez salvou a vida de um herói?— Não.— Há uma primeira vez para tudo. O Huphrey merece uma medalha — disse

ele, abrindo a carne do animal e expondo tendões, osso e a artéria danificada. Laura passou por um mau momento quando olhou para dentro da ferida. Então, pensou de novo no Humphrey a correr atrás de uma bola, e os pontos negros que lhe perturbavam a visão desapareceram. Pegou em gaze limpa para absorver o sangue. Isaiah abanou a cabeça em aprovação. — Foi imaginação minha ou você disse que não era capaz de fazer isto? Estou a pensar mantê-la aqui a tempo inteiro...

Laura deu uma risadinha débil.— Nem pensar. Estou feliz nos canis. — O sorriso dela esfumou-se quando

voltou a olhar para o cão. — Ele vai safar-se, não acha?Isaiah deu um salto atrás para evitar um jorro de sangue.— Grampo!Laura procurou freneticamente o que se parecesse com um grampo,

entregou-lho e quase que desmaiou de alívio quando ele usou o instrumento para estancar a hemorragia.

— Oh, meu Deus.— Ele está aqui — disse Isaiah, com voz rouca — a olhar por cima dos

nossos ombros e a guiar as nossas mãos. — Ergueu então os olhos. — Deus, quero dizer. Há pessoas que me chamariam maluco por eu acreditar nisso.

Laura não era uma dessas pessoas. Naquele momento, ao olhar para os olhos de Isaiah Coulter, compreendeu o que o levara a tornar-se veterinário. Não era um desejo egoísta de dinheiro, nem uma ânsia de prestígio. Ele estava

aqui, a fazer o que fazia, porque gostava de animais e sentiu um chamamento para os ajudar.

— Com Deus de serviço, talvez o Humphrey tenha uma hipótese — disse ela, trémula.

— Não há talvez. Deus vela por todos nós, tanto seres humanos como animais. O Humphrey vai-se safar — disse ele, lançando um olhar a um altifalante montado no tecto por cima deles. — Da próxima vez, lembre-me para pôr uma música. Trabalho melhor com ritmo.

Laura sentiu o estômago a apertar-se.— Da próxima vez?— Tenho um cachorrinho com um osso de galinha espetado nos intestinos —

esclareceu ele, piscando-lhe de novo os olhos. — A não ser que a Gloria consiga fazer um milagre e arranje mais gente para cá, vou precisar de si a maior parte do dia. A não ser, claro, que a Laura tenha outros compromissos que não possa desmarcar.

Laura tencionava começar a decorar a sala de espera quando saísse ao meio-dia. Mas um cachorrinho com um osso nos intestinos era claramente prioritário.

— Não, não tenho nada — respondeu ela.— Então está combinado, querida.Um pensamento horrível ocorreu a Laura.— Não vou ter de o ajudar com os seus cavalos doentes, pois não?Ele desatou a rir.— Não, temos técnicos especialmente treinados para isso no centro equino.

Está safa dessa.Laura ficou aliviada. Cirurgia em gatos e cães era uma coisa, mas cirurgia

num cavalo seria uma coisa completamente diferente.Para Laura, a manhã passou-se num borrão surrealista. Em breve deixou de

pensar no sangue. Havia muitas outras coisas para lhe ocupar a mente — os nomes de diferentes instrumentos e técnicas cirúrgicas, desinfectantes e medicamentos. Quando não estava de pé ao lado de Isaiah, a assisti-lo num procedimento, andava numa correria a esterilizar mesas ou a juntar os utensílios necessários para efectuar uma cirurgia noutro paciente.

Pouco depois do meio-dia, mesmo a meio de uma operação, desta vez a um Terra-Nova com um pau entalado na garganta, Laura reparou que as mãos de Isaiah estavam a tremer. Preocupada, ela examinou o que conseguia ver da cara dele por cima da máscara cirúrgica. Havia uma palidez na sua tez escura, e a pele dele brilhava de suor.

— Você está bem?Ele fez um gesto afirmativo, mas Laura não estava convencida.— Isaiah?— Preciso de comer. Fico com tremuras de fraqueza.— O que é que tomou ao pequeno-almoço?— Nada. Tencionava ir ao McDonald's no caminho para cá, mas foi quando

recebi o telefonema acerca do Humphrey e nunca cheguei a lá ir.Logo que eles colocaram o Terra-Nova numa jaula de observação, tapado

com cobertores quentes, Laura despiu a bata, a máscara e as luvas cirúrgicas e correu para o frigorífico. Dentro, quase que só encontrou refrigerantes. As únicas coisas comestíveis eram boiões de iogurte light e queijo de dieta, o que

não constituía decerto a alimentação mais desejável para um homem grande e muito trabalhador. Ela encheu a dobra de um braço e ambas as mãos com comida e depois dirigiu-se ao seu patrão, que já estava a vestir uma bata cirúrgica limpa para operar um gato com uma uretra entupida.

— Coma primeiro — disse ela com firmeza, enquanto dispunha a refeição improvisada sobre uma toalha de papel estendida em cima do balcão.

— Não tenho tempo. Aquela bexiga está prestes a rebentar.Laura lançou-lhe um olhar de repreensão por cima do ombro.— Você tem de comer. Não pode operar um gato com as mãos a tremer!Isaiah não estava habituado a que um empregado cuidasse dele. Nor-

malmente, num dia atarefado, era cada um por si. Contudo, tinha de admitir que aquilo até sabia bem. Depois de ir ter com ela junto ao lavatório, ele sentou-se num banco e pegou num boião de iogurte.

— Obrigado, Laura.Abriu o envelope de celofane de uma colher de plástico e praticamente

inalou o iogurte. Ainda não engolira a última colherada e já ela abria o selo de outro boião e o empurrava na direcção de Isaiah.

— Beba também uns golos de refrigerante — disse-lhe ela. — Fará subir mais depressa o açúcar no seu sangue.

Isaiah bebeu vários tragos de Coca-Cola. Ao voltar a pousar a lata no balcão é que se apercebeu de como as suas mãos estavam a tremer.

— Obrigado — voltou a dizer. — Já me estou a sentir um pouco melhor.Os lindos olhos cor de avelã de Laura estavam sombrios de preocupação.— Devia mesmo comer mais vezes. Ninguém pode trabalhar assim tanto

sem comida.A simplicidade daquela afirmação não passou despercebida a Isaiah. A

maior parte das pessoas teria usado as palavras alimentação e energia. O facto de ela ter evitado esses termos fê-lo constatar quão extraordinário fora o desempenho dela nessa manhã. Enquanto trabalhava a seu lado, esquecera-se por longos períodos de que ela era deficiente.

— Já lhe disse quanto apreciei a sua ajuda nesta manhã? Sei que não foi fácil para si.

A boca dela encurvou-se nos cantos quando ela sorriu, dando aos seus lábios cheios uma doçura apetecível que era difícil de ignorar.

— O fácil é para mariquinhas — respondeu ela, com os olhos a bailarem de diabrura. — E, sim, já me agradeceu. — O olhar dela desviou-se para as jaulas na extremidade da sala, onde o Humphrey jazia agora acordado. O cão estava fraco mas conseguia erguer a cabeça, o que Isaiah tomou como um sinal positivo. — A verdade é que — continuou ela — sou eu que tenho de lhe agradecer. Consegui hoje ajudar a salvar vidas. É uma coisa que eu não pensava conseguir fazer.

Isaiah compreendeu a sensação de assombro dela. Ele próprio a sentira nas primeiras vezes que operara. Com o tempo, perdera-a, e só agora se apercebia disso ao trabalhar com Laura e observar o espanto nos olhos dela.

— É uma sensação incrível, não é?Ela disse que sim com a cabeça e olhou para as suas mãos.— Nem mesmo agora consigo acreditar que o fiz.Ele não pôde deixar de sorrir.— Não só o fez como fez um excelente trabalho.

Isaiah esteve para acrescentar que ela daria uma excelente técnica se ti-vesse a formação adequada, mas refreou-se antes de pronunciar as palavras. Laura fizera um bom trabalho sob a sua orientação, espantosamente bom, mas não poderia ir muito mais longe. A constatação disso entristeceu-o.

O rubor de satisfação que aflorou às faces de Laura revelou-lhe quanto o elogio era importante para ela, o que o entristeceu ainda mais. Se não fosse o acidente, ela teria tido um futuro brilhante.

Isaiah atirou com os boiões de iogurte vazios para o caixote de lixo.— Não vai comer nada? — perguntou ele, enquanto tirava o plástico que

empacotava um palito de queijo.Ela franziu o nariz e abanou a cabeça negativamente.— Depois. Agora não sinto muita fome.Ocorreu a Isaiah que provavelmente ela se deveria sentir demasiado

nauseada para conseguir comer. Ele também se recordava desses dias.— Desculpe-me. Esqueço-me de que as outras pessoas não vêem este tipo

de coisas regularmente. Depois de fazermos isto durante algum tempo, habituamo-nos.

— Hum — disse ela, lançando-lhe um olhar dúbio. — Talvez.Pelas cinco da tarde, as costas de Isaiah estavam a matá-lo. Estivera de pé

durante horas sem descanso. Quando a última operação terminou com sucesso, ele deixou -se cair pesadamente sobre um banco, inclinou a cabeça para trás e suspirou.

— Que dia este!Laura estava no lavatório, a lavar as mãos.— Se já acabámos, preciso de ir ao canil ver se todos os animais estão bem.Isaiah resmungou. Jennifer encontrara uma pessoa para tratar do canil na

ausência de Laura nessa manhã, mas a pessoa que deveria ter vindo à tarde telefonou a dar parte de doente. Isso significava que ainda haveria a fazer umas boas quatro horas de trabalho.

— Eu ajudo — disse Isaiah.— Eu aguento-me.— E fica-me aqui até Deus sabe quando?— Se calhar também vou ter de fazer o turno da noite, se todo o pessoal do

canil estiver doente.— A Jennifer falou com o Dan Fosworth. Ele diz que se sente bem, portanto

temos a noite assegurada. O que é bom, pois se calhar amanhã vou precisar de si outra vez aqui.

Ela parou de secar as mãos.— Acha?— E possível. Depende do tipo de gripe que toda a gente tem. A não ser que

seja do género que passa em vinte e quatro horas, o mais provável é ficarmos de novo com falta de pessoal.

— E quem fica a trabalhar nos canis amanhã?— A Lena precisa das horas. A Gloria disse-me que ela concordava em fazer

o dia todo.Trinta minutos depois, eles estavam juntos a limpar os canis. Laura recolhia

os cobertores sujos enquanto Isaiah lavava e desinfectava o chão. Tal como acontecera na cirurgia, depressa encontraram um ritmo compatível e conseguiram fazer muita coisa em tempo recorde. Mal Isaiah acabava de lavar e desinfectar uma jaula, Laura colocava de imediato cobertores limpos. Depois,

ela trazia o animal de volta à jaula enquanto ele lavava as tigelas e as voltava a encher de comida e de água.

Na pressa em terminar e ir para casa, Isaiah quase que ralhou com Laura quando reparou que ela se estava a demorar em cada uma das jaulas para fazer festas aos cães e falar suavemente com eles. O que é isto? Já haviam trabalhado doze horas nesse dia. Àquele ritmo, passariam ali toda a noite. Mas, mal abriu a boca para dizer qualquer coisa, reparou no olhar de pura adoração de um dos cães.

Isaiah mostrou um sorriso cansado e encostou um ombro contra a rede de arame da porta de um canil. Isto, apercebeu-se ele, era o que tornava Laura tão boa no seu trabalho. Ela gostava verdadeiramente dos animais, e eles gostavam verdadeiramente dela. Ela demorava-se só um minuto com cada cão antes de avançar para o seguinte. Tudo somado, ela teria gasto menos de dez minutos, e teria sido tempo bem gasto. Cada um dos cães ao seu cuidado obtinha a sua quota-parte de afecto.

— Você é espantosa — disse ele, por fim.Ela endireitou-se e lançou-lhe um olhar perplexo.Isaiah apontou para o relógio.— A Laura está aqui desde as seis da manhã, e sei que deve estar exausta.

Contudo, ainda arranja tempo para fazer com que todos estes cães se sintam amados. Acho isso extraordinário.

— Eles sentem-se sós.Foi tudo o que ela disse, mas a resposta revelou a Isaiah mais do que ela

poderia pensar. A mãe dele dissera a verdade: Laura Townsend era tão doce quanto parecia. Não era fingimento. Ela não estava a agir para o impressionar. Na sua opinião, o afecto que ela dedicava a cada animal era tão importante quanto os cobertores lavados e a comida.

— Pizza — disse ele.Ela voltou a parecer perplexa.— Jantar, você e eu, pago eu. O que diz?— Não tem de me alimentar.— Temos ambos de comer, e detesto ir a um sítio qualquer sozinho —

retorquiu ele, olhando-a com um olho semicerrado. — A Laura é ou não é a mesma pessoa que me estava a dar uma palestra há bocado acerca da alimentação?

A face dela encovou-se num sorriso.— Faz com que seja difícil dizer que não.— Então não diga.

• • •

A quarta-feira foi quase uma repetição da terça-feira, com mais de metade do pessoal de baixa e só Laura para assistir Isaiah na cirurgia, com a diferença de terem entrado menos casos urgentes. O ritmo menos acelerado deu a Laura

mais oportunidades do que ela desejava de reparar no homem que estava a seu lado — como os tendões nos seus antebraços bronzeados inchavam e se moviam enquanto trabalhava, como os seus olhos escureciam quando se concentrava, e como ele cheirava, uma atraente mistura de colónia com fragrância a especiarias, resquícios de sabão, e uma essência puramente masculina que a impeliam a querer aproximar-se dele para cheirar o seu aroma. Má ideia. A única esperança de Laura era a de que um par de técnicas estivesse suficiente melhor no dia seguinte para poder vir trabalhar, de modo a que ela pudesse voltar para os canis, que era o seu lugar.

Às dez, ela arranjou alguns minutos entre dois pacientes para fazer um bule de café fresco. Mal a máquina acabou de o fazer, ela pegou na manga de Isaiah e arrastou-o da sala de operações para fora.

— Está na hora de comer qualquer coisa — informou-o ela. — Desta vez no seu gabinete, para que eu também possa comer um pouco.

— Comer qualquer coisa? — perguntou ele, com um cintilar de interesse no olhar. — O quê? Mais iogurte?

— Nada disso. Uma coisa muito melhor.Isaiah estacou mal passou a porta.— Rolinhos de canela? Morri e fui para o céu! — exclamou ele, dando a volta

à secretária. Deixou-se cair sobre a cadeira e inclinou-se para a frente para cheirar. — Cheiram exactamente como os da minha mãe...

— A Safeway tem bons bolos — explicou ela. Não era mentira, a Safeway tinha uma pastelaria fabulosa. Mas Laura preferiu não lhe dizer que os rolinhos tinham sido feitos por ela. Não sabia bem por que razão o fizera, talvez por isso poder parecer demasiadamente pessoal. — Vão bem com café acabado de fazer.

Ele suspirou e deu uma dentada. Laura tirou um dos rolinhos para si própria, colocando-o sobre um guardanapo de papel. Antes de o provar, experimentou o café. Era a primeira vez que fazia café com a máquina da clínica, e não tinha a certeza de quantas colheres de café usar. Ficou aliviada por descobrir que o café sabia bem.

— Isto é uma maravilha — disse ele, lambendo um pedaço de vidrado de açúcar do dedo. — Os rolinhos de canela estão entre os meus favoritos. Iria jurar que estes são caseiros.

Laura sorriu enquanto enterrava os dentes no seu rolinho. Era bom, constatou ela; não seria uma das suas melhores fornadas, mas estava aceitavelmente leve, com a quantidade certa de canela e glacé. Era uma receita da sua avó, uma massa que se fazia de uma assentada, sem necessidade de amassar, de modo que ela teve tempo de fazer uma fornada na noite anterior antes de cair na cama.

— Vou trazer mais alguns, um destes dias — prometeu ela.Ele aquiesceu.— Mas não se esqueça de pedir à Val o reembolso. Não quero que a

despesa saia do seu salário.O custo fora principalmente em tempo e trabalho, mas ela não conseguiu

ter coragem para lho dizer. Era melhor que ele pensasse que os rolinhos foram comprados na loja. Assim, ela podia voltar a fazê-los sem se sentir constrangida.

— Para o almoço, tenho sanduíches, batatas fritas e um monte de sopas instantâneas. Graças a Deus que a Safeways está aberto vinte e quatro horas por dia. Não gosto de passar fome.

— As sanduíches vão ser óptimas — disse ele, pegando num segundo rolinho e voltando a recostar-se na cadeira, com uma expressão de pura satisfação espelhada no seu rosto moreno. — Mais do que óptimas. Continue assim que eu ainda a vou querer na cirurgia a tempo inteiro.

Posso manter o frigorífico cheio, trabalhe eu onde trabalhar — lembrou ela. — O mercado fica no meu caminho para o trabalho.

— Isso seria maravilhoso, Laura. Quando temos uma equipa completa a trabalhar, as técnicas combinam entre si as pausas para o almoço e geral-mente saem para irem almoçar a um sítio qualquer. Normalmente, eu não tenho tempo para isso.

Laura constatou que o problema de Isaiah era mais o excesso de dedicação do que a falta de tempo. Ele não era apenas um bom veterinário; era totalmente dedicado à sua profissão e aos animais confiados ao seu cuidado. Que se recordasse, ela nunca trabalhara tanto como o fizera no dia anterior. Tinha a sensação de que Isaiah dava tudo por tudo em cada dia.

Olhando para ele do outro lado da secretária, Laura voltou a desejar que pelo menos alguns dos técnicos e técnicas voltassem ao trabalho no dia seguinte. Ficaria satisfeita se as coisas voltassem ao normal. A intimidade nem sempre dá azo a desrespeito. Por vezes, no fundo de um coração insensato de mulher, planta-se a semente de sentimentos muito mais profundos.

Laura não podia deixar que essa semente criasse raízes. Precisava de voltar para os canis, a uma distância segura de Isaiah, antes que fizesse qualquer coisa realmente estúpida, como apaixonar-se por ele.

Capítulo Cinco

O desejo de Laura realizou-se. No dia seguinte, a maior parte dos outros empregados voltaram ao trabalho e retomaram as suas tarefas habituais. Satisfeita por o pior da epidemia de gripe ter passado, Laura voltou aos canis. O trabalho com Isaiah fora interessante e empolgante, mas estar com os animais era o trabalho dela. Tinha a rotina perfeitamente assimilada, sentia-se mais descontraída e, embora gostasse de todos os animais que ficavam por breve trecho ao seu cuidado, não estava em perigo de se perder definitivamente de amores por nenhum deles.

Quando o turno dela terminou ao meio-dia, Laura dirigiu-se ao seu carro para ir buscar os volumosos sacos de plástico que enchiam a mala e os assentos de trás desde a sua ida às compras na segunda à noite. No momento em que abria a mala, entrou no parque de estacionamento uma pick-up com um reboque para cavalos. Um homem de certa idade, de calças e casaco de ganga Levi's, saiu do veículo.

— Não há problema se eu estacionar aqui? — perguntou ele. — Os lugares em frente ao centro equestre estão todos ocupados...

Laura olhou para o grande pavilhão de cobertura metálica onde Isaiah e Tucker tratavam os cavalos, e lá estava um enorme reboque para quatro cavalos estacionado de lado, a ocupar todo o espaço de parqueamento disponível.

— Penso que não há problema — respondeu ela.Enquanto Laura tirava da mala sacos de decorações, o homem descarregou

um belo cavalo castanho-avermelhado do reboque. O animal lambia a perna dianteira direita e mancava muito.

— Oh, como é que ele magoou a perna? — perguntou ela.— Tem apenas um tendão distendido, espero eu — respondeu o homem. —

Mas está a mancar muito. Pensei que fosse melhor o Isaiah vê-lo.— Ah — exclamou ela. Normalmente, Isaiah fazia visitas domiciliárias a

quintas e ranchos três manhãs por semana, de modo a poder tratar no local de pequenos ferimentos e doenças comuns a animais grandes. — O senhor deve viver bastante longe...

O homem anuiu.— Sessenta milhas a norte, um bocado longe para um veterinário ir até lá.Laura sabia que tanto Isaiah como Tucker tinham demasiados pacientes

para poderem deslocar-se até tão longe para tratar apenas de um.— Estou a ver. Bem, espero que a perna do seu cavalo fique boa depressa.Ela ficou a olhar para o homem enquanto ele levava o animal para o centro

equestre. Um técnico envergando uma bata azul de laboratório saiu da recepção para levantar uma grande porta corrediça de modo a que tanto o cavalo como o dono pudessem entrar no edifício.

Alguns momentos depois, quando Laura entrou na sala de espera da clínica com os braços carregados de sacos, Debbie, uma das secretárias, perguntou:

— O que trazes aí? Precisas de ajuda?Laura não podia dizer a Debbie o que estava nos sacos. Halloween e de-

corações eram palavras polissilábicas. Se tentasse dizer as duas, uma a seguir á outra, começaria a gaguejar.

Optou por sorrir e levantar as sobrancelhas. Debbie, que poderia ser descrita como indefinida, com cabelo castanho claro cortado curto, olhos azuis, feições regulares e um corpo mediano, era normalmente uma pessoa reservada com ar executivo. Mas agora a curiosidade era claramente mais forte do que ela. Levantou-se da cadeira e deu a volta ao balcão.

— O que é que tens aí? — perguntou ela, esticando o pescoço para espreitar para dentro de um saco.

Laura pousou cuidadosamente os sacos no chão. Acenando com a mão, disse:

— Espreita e vê...Uma mulher que estava sentada na última cadeira da sala de espera

inclinou-se muito para a frente quando Debbie abriu um dos sacos. Seguiram-se exclamações de satisfação e, antes que Laura percebesse bem o que estava a acontecer, as suas compras para o Halloween ficaram sob ataque, com todas as recepcionistas a vasculharem a mercadoria, enquanto os clientes, com os cães pela trela, pairavam por detrás delas, tentando ver. Até Gloria, uma mulher aparentemente apática, largou uns sonoros «Oh!» e «Ah!» ao examinar os enfeites.

O burburinho fez Val sair do seu gabinete.— Mas que raio se passa aqui?— Enfeites de Halloween! — exclamou Jennifer Bacchi, uma ruiva alta mas

bem proporcionada, erguendo uma árvore miniatura, um ramo desfolhado pintado de negro para que parecesse deliciosamente sinistro. — Vem ver, Val! — Hoje, graças às lentes de contacto coloridas, os olhos azuis de Jennifer eram verde-esmeralda, e brilhavam de excitação. — Ela arranjou coisas giríssimas para pendurar nos ramos!

Cabelo louro à duende, desgrenhado pelo vento por ter acabado de vir do exterior, aonde fora para fumar um cigarro, Val adiantou-se para se debruçar sobre um saco e depois outro. A fragrância que a envolvia, uma mistura curiosamente agradável de perfume e fumo de tabaco, enchia o ar quando ela passava.

— Então, sou boa ou não sou? — a cara dela, tisnada pelo sol, enrugou-se toda num sorriso agradável quando ergueu os olhos para Laura. — Eu sabia que serias boa nisto!

— Trouxe uma carrada dessas maçãs caramelizadas! — exclamou Debbie. — E não é que parecem mesmo verdadeiras?

Val pegou num cesto amarelo que estava num dos sacos de Laura.— Oh, Laura, estes cestos são maravilhosos. O que é que vais pôr neles?Normalmente, quando Isaiah regressava à clínica após as suas consultas

domiciliárias às quintas e ranchos, entrava no edifício por uma porta nas traseiras, mas nessa manhã havia um reboque para cavalos a bloquear o seu lugar de estacionamento habitual. Isaiah reconheceu o camião que puxava o reboque como sendo de um cliente que vivia fora da área. Isaiah não se lembrava do sujeito ter uma consulta marcada para esse dia, mas isso não queria dizer muito. O seu dia estava sempre tão preenchido que apenas a sua agenda de marcações o salvava.

A falta de lugar de estacionamento nas traseiras forçou Isaiah a deixar o Hummer na parte da frente. Tirou as luvas de couro, contornou o veículo, saltou para o passeio fronteiro à clínica e avançou pelo cimento com marcas de patas a passadas longas e apressadas.

Ouviu os gritos antes de chegar ao edifício. Mal passou a porta, estacou e ficou a olhar, embasbacado. As suas empregadas, normalmente eficientes e dedicadas, tinham abandonado os seus postos para se agacharem, ajoelharem e sentarem no chão da área de espera, todas entretidas com um lote colorido de coisas de Halloween. Enquanto tiravam coisas do monte de sacos de plástico, elas emitiam sons semelhantes aos de um bando de galinhas assustadas.

Com as faces rubras de satisfação, Laura estava de pé no meio do grupo, explicando no seu modo pausado e suave onde tencionava pôr isto ou pendurar aquilo, sinal evidente para Isaiah de que era esta sua bonita e loura zeladora de canil a responsável por todo aquele caos. Dado que as clientes pareciam estar-se a divertir tanto quanto as empregadas, Isaiah não pôde deixar de sorrir. Parecia que nada mais ficaria na mesma na clínica agora que Laura fora contratada. A sua disposição luminosa e o seu calor humano pareciam contagiar toda a gente.

Um golden retriever apanhou a sua dona desprevenida e deu um puxão na trela para meter a cabeça num dos sacos. Laura soltou uma gargalhada e agachou-se para afagar o pescoço do cão.

— És mesmo espertalhão, não és? — disse ela, enquanto fazia festas nas orelhas do animal; depois, meteu a mão dentro do saco e tirou para fora um pacote. — Sim, acertaste, trouxe guloseimas para cãezinhos! — Laura recompensou o canídeo farejante com um biscoito cor de fígado. — Estes são saborosos; não são nada como aquelas coisas nojentas ditas saudáveis que o Isaiah e o Tucker compram...

O cão apressou-se a devorar a guloseima. Laura sorriu, deu-lhe outra, e depois pegou numa abóbora de plástico com tampa amovível enquanto se punha outra vez de pé. Estava a despejar os biscoitos de cão para dentro dela quando viu Isaiah.

— Isaiah!Os risos sucumbiram de imediato, e todas as cabeças se voltaram. Isaiah

avançou para elas.— Minhas senhoras... — disse ele, à laia de cumprimento.Debbie pôs-se de pé num salto. A cara de Jennifer ficou quase tão vermelha

quanto o seu cabelo. Gloria, que era sempre impassível e controlada, voltou a guardar os objectos que tinha tirado de um dos sacos antes de se juntar ao êxodo súbito em direcção aos postos de trabalho. Só Val se manteve no terreno, um triângulo de pouco mais de um metro de lado no chão de ladrilho pejado de abóboras e cabaças das mais variadas cores.

— Na última reunião de direcção, o senhor pediu que a clínica fosse decorada — lembrou-lhe ela. — Recorda-se?

Isaiah recordava-se de ter feito o pedido. Na altura, imaginara que fosse trabalho para uma só mulher. Agora podia constatar o erro do seu raciocínio.

— Parece-me um projecto válido. Continuem.Ao ouvirem estas palavras, as recepcionistas, que se apressavam a retomar

os seus lugares, estacaram. Isaiah piscou-lhes o olho. Os ombros começaram a relaxar, os sorrisos voltaram a despontar, os pés retomaram o caminho em sentido inverso e em breve a gralhada feminina ecoava de novo no átrio. Só Laura não se mexia. De olhos ainda muito abertos, ela olhava para ele.

— Creio que deveria ter guardado isto para fora das horas de serviço — disse ela. — Não tencio-nava atrapalhar a rotina habitual...

— A rotina habitual precisa de ser interrompida de vez em quando — respondeu Isaiah. Apenas se interrogava como Laura ficara com a trabalheira da decoração. Olhou para a parafernália espalhada por sobre o ladrilho. A Jennifer estava a brincar com o que parecia ser uma abóbora-lanterna miniatura a pilhas. Iluminava-se em tons de laranja, e depois piscava. — Onde raio foi desencantar estas coisas?

— Na Season's Delights, uma loja na Cidade Velha, junto ao jardim. Fui lá no Natal passado, e agora é onde vou sempre. Algumas coisas deles são carotas, mas a maioria não é.

Isaiah começava a suspeitar de que Laura gostava de fazer compras. Pa-recia saber precisamente aonde ir para comprar qualquer coisa em especial.

— Estou impressionado... Abóboras que se iluminam?— São para a árvore — esclareceu Laura, pegando numa coisa negra presa

a uma base, no meio da trapalhada espalhada aos seus pés. — Descobri também bruxas em vassouras e pequenos mafarricos para pendurar nelas. E teias de aranha. Vai ficar giro. Penso que ficarão bem sobre o balcão.

Ela apressou-se a mostrar a Isaiah uma quantidade de outras coisas que comprara — cestos, cabaças, maçãs caramelizadas artificiais, coroas e grinaldas de folhas de Outono, frascos de doces com a forma de abóboras e uma colecção de clássicos do Halloween que incluíam bruxas de papel, diabretes e esqueletos.

Mas Isaiah só tinha olhos para Laura. Ela vestia uma camisola de malha cor de ferrugem que combinava tão bem com todos os tons outonais que ela própria poderia ter saído de um dos sacos. Enquanto passava os olhos pela figura esbelta da rapariga, ele deu por si a desejar que assim fosse. Teria pegado nela debaixo de um braço e levado a rapariga para sua casa para a abrilhantar para o Halloween.

— Então... o que é que acha? — perguntou ela.Ele despertou de chofre para a realidade. Em que é que estava a pensar?

Havia uma forte possibilidade de estar a perder o juízo.— Eu... bem... é tudo óptimo... — gaguejou ele.— Tentei escolher coisas com gosto.Isaiah não pescava nada sobre decoração, mas vira o apartamento de

Laura. Ela tinha jeito para arranjar coisas e loisas, agrupá-las, e fazer com que ficassem bem e agradáveis à vista.

— Estou certo de que vai tudo ficar lindamente quando a Laura terminar.Laura sentiu o coração sobressaltar-se estranhamente no peito quando

Isaiah se aproximou dela. Nessa manhã, ele tinha na cabeça um Stetson cor de areia que ainda parecia aumentar mais a sua impressionante estatura, a aba a lançar uma sombra sobre as suas feições cinzeladas. O seu casaco de lona castanho, de bainhas compridas para andar a cavalo em frios dias de Inverno, apenas acentuava a sua boa aparência. A gralhada das mulheres ao seu lado foi diminuindo até que só o som da sua própria respiração lhe ressoava nos ouvidos.

— A Laura está bem?Laura endireitou os ombros.— Estou bem, estou óptima — disse ela. Só que não estava. Sentia o

coração apertar-se-lhe só de olhar para ele. E ter trabalhado com ele durante dois dias completos não fora bom. Ela queria perguntar-lhe se ele tomara o

pequeno-almoço. Teve de morder a língua para refrear o desejo de lhe lembrar que tinha de almoçar. — Estou feliz por ter gostado do que comprei.

Ele aquiesceu e tirou o chapéu. O cabelo escuro caiu-lhe em ondas emaranhadas por sobre a fronte, fazendo com que as pontas dos dedos de Laura desejassem compô-lo. Isaiah sorriu ligeiramente — um daqueles sorrisos descentrados que levantavam apenas um dos cantos da sua boca.

— Creio que é melhor eu ir-me embora, para que a Laura possa voltar ao seu trabalho — disse ele, tocando com a biqueira num dos sacos. — Mas não trabalhe demais, está bem? Esse vírus de gripe ainda pode andar por aí. Não exagere e desgaste as suas resistências. Não quero que fique doente.

A preocupação na voz funda dele parecia sincera, dando a Laura razão para se perguntar se ele estaria tão confuso pelos seus sentimentos em relação a ela quanto ela estava em relação a ele. Mal esse pensamento se imiscuíra na sua mente, o sangue esfriou-lhe nas veias. Estúpida, estúpida, estúpida! Um homem como Isaiah nunca se interessaria por uma pessoa como ela. Com a sua inteligência e a sua energia, ele poderia deixar uma marca no mundo da medicina veterinária. Com esse sucesso futuro viriam a fortuna e oportunidades estimulantes. A última coisa de que ele precisava era de uma mulher com lesões cerebrais a fazer-lhe de lastro.

A sensação de aperto em volta do coração tornou-se dolorosa, mesmo quando ela se forçou a sorrir.

— Não me vai levar muito tempo — disse ela, apontando para as outras mulheres. — Tenho montes de ajuda.

Os bonitos olhos azuis dele pousaram nos dela e, por um breve instante, Laura sentiu como se eles fossem as únicas pessoas na sala. Depois, ele deu meia-volta e foi-se embora.

Quando se encontrou na cirurgia, Isaiah pendurou o chapéu num cabide e tirou o casaco. Raios. Na maioria das vezes, não tinha quaisquer problemas em abafar sentimentos de atracção quando estes não eram convenientes. Tome-se, por exemplo, a mulher do Zeke, a Natalie. Era linda, talentosa e encantadora. Qualquer tipo com olhos na testa se babaria da primeira vez que a visse. Isaiah não fora excepção, mas, no momento em que sentiu um toque de desejo, expulsou-o por completo e nunca mais se permitiu senti-lo de novo.

Por que razão, então, não conseguia fazer o mesmo com Laura? Sim, ela era bonita, mas também havia milhares de outras mulheres que o eram. Ele nunca tivera problemas em resistir a qualquer uma delas. Com efeito, atarefado como sempre estava, era rara a mulher que o fazia olhar duas vezes para ela.

— Viva! — cumprimentou Trish, voltando-se da jaula de um gato. O seu sorriso de boas-vindas desvaneceu-se no momento em que viu a cara dele. — Oh, oh. Problemas?

— Nada de relacionado com a clínica. — Mentiroso. Laura estava a criar um lugar para si própria na clínica, demonstrando ser uma valiosa aquisição. Ele tinha de manter a cabeça no lugar no que a ela dizia respeito. Os homens que assediam mulheres que lhes estão subordinadas são um nojo, e ele nunca se permitiria descer a esse nível. — Estou apenas um pouco em baixo.

— A Laura trouxe bolachas caseiras... daquelas grandes e gordas, que se derretem na boca, com montes de pepitas de chocolate de leite. Coma algumas, para animar.

Isaiah quase que rosnou. Laura, Laura, Laura! O nome dela parecia despontar em quase todas as conversas. Decidido a concentrar-se no seu trabalho, Isaiah deu uma olhada para as marcações do dia. Estava certo, o

Roger Petty tinha uma marcação com ele para a uma e meia, para tratar do seu quarter-horse castrado, o Rusty. Mancava muito da perna frontal direita. Isaiah esperava que não fosse nada de grave. O velho gostava daquele cavalo como se fosse de um filho.

Arregaçando as mangas da camisa, Isaiah dirigiu-se ao lavabo para lavar as mãos. Quando se voltou para pegar numa toalha de papel, Trish foi na ponta dos pés até à sua frente e pôs-lhe uma bolacha à frente do nariz.

— Vá lá, uma grande dentada. O chocolate melhora a disposição!Só o cheiro era suficiente para melhorar a disposição de Isaiah. O pequeno-

almoço, meia embalagem de aperitivos de queijo que ele comera enquanto conduzia, fora há seis horas. Deu uma grande dentada na bolacha.

Quando começou a mastigar, Trish acrescentou:— Há estudos que dizem que o chocolate dá às pessoas a mesma sensação

que têm quando se estão a apaixonar.Isaiah parou de mastigar, com os dentes enterrados em deliciosas pepitas

de chocolate. Um activador hormonal era a última coisa de que precisava. Infelizmente, as pepitas de chocolate já se estavam a derreter sobre a sua língua, e ele não era de ferro. Que pessoa normal e racional conseguiria resistir e não engolir?

A bolacha era deliciosa. Isaiah devorou o resto e tirou mais duas de uma bandeja cor-de-laranja vivo, adornada com pequenas bruxas negras. Enquanto comia, constatou que havia alguma verdade no velho adágio que dizia que o caminho para o coração de um homem passava pelo seu estômago.

Depois de acabar a decoração da área de espera, Laura passou para a ala de Tucker da clínica, na esperança de que Isaiah estivesse ocupado nas salas de observações quando ela se virasse para a ala dele. Não teve essa sorte. Ele estava a meio de uma operação a um gato cinzento malhado quando ela entrou no bloco cirúrgico da ala sul.

Ao ouvir o som da porta a fechar-se por detrás dela, ele ergueu os olhos e lançou-lhe um longo olhar contemplativo. Habituada a uma recepção mais amigável, Laura interrogou-se se não teria feito algo de errado.

Trish, parecendo um pequeno elfo mascarado ao lado do seu alto patrão, lançou a Laura um olhar malandro.

— Ora aqui estás tu! Se tens as orelhas a arder é porque estávamos a falar de ti...

Belinda, que estava a limpar uma jaula de observação, voltou-se.— Pois é, menina — disse ela com um sorriso —, estás metida numa

alhada...Laura lançou a Isaiah um olhar interrogativo. Ele apercebeu-se e piscou os

olhos.— Uma alhada de fazer crescer água na boca — sossegou-a ele. — Estamos

apenas agradecidos pelas bolachas. São deliciosas.— Eu que o diga. E as bandejas são giríssimas! Põe-me mais no espírito do

Halloween — disse Trish, esfregando a ponta do nariz com o antebraço, através da máscara cirúrgica. — Despache-se e acabe isto, Isaiah. Apetece-me outra bolacha!

— Sim, senhora — respondeu Isaiah, debruçando-se para continuar o seu trabalho. — A propósito, Laura, creio que você e a sua avó estão convidadas para o jantar de Acção de Graças na casa dos meus pais.

— Acção de Graças? — exclamou Belinda, amassando um jornal sujo nas mãos. — Por favor! Não podemos deixar primeiro passar o Halloween?

Trish riu-se.

— Nem pensar! Vamos estar na carreira das festividades durante os próximos dois meses.

Belinda bufou e revirou os olhos.Como os pais de Laura viviam na Florida e a irmã em Portland, Laura

contava passar o feriado com a avó.— Ainda não falei com a minha avó — acabou ela por dizer. — E ela ainda

não disse nada acerca de ir a casa dos seus pais para o jantar de Acção de Graças.

Ele não ergueu os olhos.— Bem, ainda é cedo. A minha mãe tem o hábito de planear tudo para as

férias com grande antecedência. Interrogava-me apenas se a Laura lá poderia ir — disse ele, limpando o suor da testa com a manga da sua bata. — Não há problema, se a Laura tiver outros planos.

O prazer radiou através de Laura, inundando todo o seu corpo de calor. Ele queria saber se ela iria estar presente no jantar de Acção de Graças em casa dos seus pais. Ela não pôde deixar de se interrogar se isso significava que ele tinha a esperança de que ela pudesse ir. Mal o pensamento chegou, Laura afastou-o da sua mente. Terreno perigoso. No que dizia respeito a este homem, ela precisava de manter os pés bem assentes na realidade. Ele pen-sava nela como amiga, e nada mais.

— A minha avó não me disse nada. Mas seria bom — ouviu-se ela própria a dizer.

— Se decidirem ir, é melhor treinarem o vosso jogo de damas — disse ele com um sorriso. — Sou o campeão absoluto nas damas.

Laura sempre gostara de damas, e esse era um dos poucos jogos que ela ainda conseguia jogar.

— Eu também não sou má às damas...Os olhos dele enrugaram-se nos cantos, sinal seguro de que se estava a rir.

Depois, ele ergueu um polegar e voltou a sua atenção para o gato.— Oh, oh... Não estou a gostar do aspecto disto...Trish seguiu-lhe o olhar.— Parece-lhe maligno?— Merda! — suspirou Isaiah, desanimado. — E melhor fazermos uma

biopsia.Trish foi até um armário.— A Shania e o Trevor adoram bolachas com pepitas de chocolate, Laura.

Pode-me dar a receita?Laura estava especada a olhar para o gato inconsciente e a pensar nos seus

donos. Se o felino tinha cancro, eles poderiam ter de o abater.— O quê? — perguntou ela, voltando a atenção para Trish. — Desculpa.— Meu Deus — disse Isaiah quase num murmúrio. — Isto é cancro.Voltando para a marquesa com uma lamela de plástico transparente, Trish

respondeu à pergunta de Laura.— Eu disse que queria a tua receita das bolachas.— Claro — disse Laura, fazendo as palavras passarem por uma garganta

apertada. — Vou copiá-la para...— Filho da mãe! Há mais do que um tumor. Testa! — disse Isaiah, inclinando

a cabeça para Trish, de modo a que ela lhe pudesse limpar o suor do sobrolho. Depois, voltou-se a debruçar sobre o seu trabalho. — Que sorte malvada. Ela dá tudo por este gato...

Belinda abandonou o que estava a fazer para se aproximar da mesa de operações.

— Oh, não. Não o podemos deixar morrer, Isaiah. A Sra. Palmer vai ter um ataque cardíaco.

As sobrancelhas de Trish enrugaram-se de preocupação.— Acha que é muito grave?Por baixo da máscara que cobria a metade inferior da cara de Isaiah, Laura

pôde ver o músculo do maxilar dele a latejar.— Não sei se vou conseguir apanhá-lo todo. Mas raios me partam se não vou

tentar. Não admira que o bichano tenha andado arredado da comida. O pobrezito está todo comido por dento.

Trish olhou para Laura.— Conheces a Sra. Palmer?Laura abanou a cabeça negativamente.— É uma querida — atalhou Belinda — Uma velhinha adorável. O Seymour é

tudo quanto ela tem agora. O marido dela morreu há cerca de seis meses.Isaiah praguejou de novo. O coração de Laura sofria por ele. Naquele

momento havia imensa angústia nos seus olhos.— Meu Deus! — A palavra murmurada soou como um grito. Isaiah

endireitou-se e fechou os olhos. — Aguentem-me uns segundos — disse ele a Trish. — Tenho de telefonar à dona. — Arrancou a máscara enquanto se afastava da mesa. — Já volto.

O estômago de Laura revoltou-se com náusea quando ele saiu do bloco operatório. Trish estava de pé junto do gato, com o olhar desprovido da malandrice que era tão característica nela. Belinda voltou a limpar as jaulas, com uma expressão sombria.— Isto é o lado negativo da medicina veterinária — disse Trish com a voz embargada. — Aquele não vai ser um telefonema nada fácil para ele. — Afagou a cabeça do gato. — Pobre gatinho. — Inspirou profundamente. — É melhor assim do que da forma como alguns deles se vão. Ele só não vai acordar. E lá vai ele para a Terra do Arco-íris.

— Terra do Arco-íris? — repetiu Laura.Belinda interrompeu com brusquidão:— Não me venhas outra vez com essa treta do Arco-íris! Os animais não têm

alma, Trish. Portanto, não podem ir para o Céu.— Têm sim! — contrapôs Trish. — e a Terra do Arco-íris é onde eles esperam

pelos seus donos: um lugar maravilhoso, a meio caminho entre aqui e o Céu. Eles brincam e retouçam aí no paraíso animal, à espera que os donos venham juntar-se a eles para os acompanharem no resto da viagem até ao Céu.

Laura enlaçou a própria cintura. Para seu horror, apercebeu-se de que estava prestes a chorar. E não ajudava nada ver as lágrimas nos olhos da Trish.

— Odeio dias como este! — desabafou Trish. — Queria tanto que pu-déssemos salvá-los a todos!

— Pois, mas não podemos — atalhou Belinda, bruscamente, empurrando o caixote do lixo à sua frente com o joelho, enquanto avançava para outra jaula. — Se queres singrar nesta profissão, Trish, não podes ser tão piegas. Senão, estoiras.

Laura pensou no seu avô Jim, que os deixara há pouco mais de dois anos. O médico que saíra depois do bloco operatório pegara nas mãos da avó dela e tinha lágrimas nos olhos ao dar-lhe a notícia. Houve vida, e depois houve morte. Era a triste realidade a que ninguém conseguia escapar. O médico que se distanciasse deste drama humano arriscava-se perigosamente a perder a sua compaixão.

Isaiah voltou a entrar no bloco operatório nesse preciso momento. Não disse uma palavra, não estabeleceu contacto visual com ninguém. Foi direito a um armário, retirou um frasco e encheu uma seringa hipodérmica com um líquido incolor. Quando se aproximou da marquesa sem lavar as mãos ou pôr outra máscara, Laura percebeu o que ele ia fazer. Momentos depois, um silêncio pesado abateu-se sobre a sala quando Isaiah se inclinou para aplicar o estetoscópio ao peito do gato.

— A dona quer que ele seja cremado? — perguntou Trish, com a voz ainda pesadamente embargada.

— Não, ela quer levá-lo de volta para casa — respondeu Isaiah.— Ela tem filhos na cidade? — perguntou Belinda. — É que não o consegue

enterrar sozinha. É uma velhota debilitada, e o solo está a começar a gelar.— Eu vou lá e enterro-o — disse Isaiah, dobrando as pontas do lençol

cirúrgico sobre o gato e levando-o para fora da sala.Trish abanou a cabeça e lançou a Laura um olhar triste.— Como se ele tivesse tempo para fazer isso. Por vezes é tão querido...Laura encontrou Isaiah no gabinete dele, inclinado para trás na cadeira,

com um braço sobre os olhos e os pés em cima da secretária. Quando a ouviu entrar, pôs-se direito de um salto, batendo fortemente com as botas no chão. Ela podia ver pela expressão dele que estava incomodado por ter sido apanhado a chorar. Porquê, ela não sabia. A capacidade que ele tinha em se preocupar com as pessoas e os animais era uma das coisas que ela achava mais maravilhosas em Isaiah.

— Laura — exclamou ele, rodando para a encarar e mostrando um sorriso rígido. — O que é que ainda está aqui a fazer?

Laura achou que seria mais apropriado perguntar-lhe o que estava ele ali a fazer. Tinha pacientes à espera para exames de rotina e para vacinas. Todas as salas de observações estavam ocupadas e a sala de espera estava a ficar superlotada. Não era próprio de Isaiah fazer as pessoas esperar. Com efeito, nunca o vira negligenciar os seus deveres. O facto de ele o ter feito agora dizia muita coisa a Laura.

— Eu só queria dizer-lhe quanto estou triste pelo Seymour.Ele fez uma careta e esforçou-se por sorrir de novo, um sorriso que não se

lhe expressou no olhar.— Ah, pois... Ganhamos umas, perdemos outras... Nada de especial.Só que era mesmo algo de especial. Ele estava triste, e Laura sofria com

isso. Ela vira o olhar dele quando ele se apercebeu da extensão do cancro. Também vira a resignação sombria na cara dele quando administrou a injecção letal. Até ao momento, ela nunca parara para pensar em toda a tristeza associada à profissão deste homem. Ela pensara apenas em como ele era talentoso, e em como o seu talento lhe abria portas que estavam para sempre vedadas a ela.

— São todos algo de especial — disse Laura, interrompendo-se para engolir em seco. — Uma velhinha perdeu o seu único amigo. Se não se sentisse mal com isso, que tipo de veterinário seria você?

— Se calhar, seria mais feliz... — respondeu ele, passando uma mão pelo cabelo e assentando os cotovelos na secretária. Passou uma mão sobre os olhos e confessou suavemente: — Está bem, sinto-me pessimamente. Admito-o. Sentir-se assim parece que é próprio da profissão...

Laura afundou-se na cadeira onde fora entrevistada para conseguir o emprego. Parecia ter sido há séculos.

— Ela está completamente só — sussurrou ele. — O Seymour era tudo o que lhe restava. Aprendi na faculdade a não deixar que estas coisas me afectem. Mas parece que não aprendi bem a lição. Ela é uma velhota tão querida. Trouxe-me o Seymour porque ele não tocava na comida. Quando vi uma massa no raio-X, tive esperança de que fosse benigna.

Laura sabia que muita gente, incluindo Belinda, lhe poderiam lembrar que o Seymour era apenas um gato. Mas ela estivera presente dois dias antes, de manhã, quando fora o Humphrey a ser operado. Para este homem, todos os animais eram importantes.

— Você não os pode salvar a todos. Acontece o mesmo com as pessoas. Quando envelhecemos e os nossos corpos se gastam, acabou.

Ele concordou.— Eu sei — respondeu, torcendo a boca. — Só que é difícil quando sou eu a

ter de decidir e a abatê-los. E é particularmente difícil quando sei que uma velhotinha muito querida confiou implicitamente em mim e pôs todo o seu mundo nas minhas mãos.

Laura quase que conseguia sentir a dor dele e não conseguia pensar em nada de reconfortante para dizer.

— Ela não estava à espera daquele telefonema — disse ele, com a voz embargada. — Pensava que eu iria fazer um milagre, que o Seymour regres-saria amanhã a casa sentindo-se melhor. — Fez uma careta e deixou os om-bros descaírem. — Ela nem sequer pode pagar a conta. Vive de uma pensão da Segurança Social. Creio até que o Seymour comia melhor do que ela.

— Que pena...— Pois... — disse ele, encolhendo os ombros e esfregando o queixo. — Eu

dou a volta aos custos. Contudo, ela terá de pagar ainda os custos fixos. Isto porque o inventário foi comprado a meias entre mim e o Tucker. Mas posso abater um bom bocado não lhe cobrando os meus serviços.

Laura teve vontade de o abraçar.— E muito bondoso da sua parte, Isaiah.— Bondoso? Matei-lhe o gato! — retorquiu ele, beliscando a cana do nariz.

— Raios! Sei que ela está neste momento lavada em lágrimas. E isso põe-me doente.

Quando Laura saiu do gabinete de Isaiah, alguns momentos depois, fê-lo com um peso no coração.

Por volta das seis dessa tarde, Isaiah aprontava-se para arrumar tudo e sair quando Laura lhe apareceu inesperadamente na cirurgia. Embrulhada por causa do frio numa parka cor-de-rosa com um remate de peliça artificial no capuz, ela parecia adorável, com os olhos a brilharem de excitação, as faces coradas pelo frio da tarde. Trazia as mãos cruzadas sobre o peito, parecendo estar a esconder qualquer coisa sob o casaco.

— O que está a fazer aqui? — perguntou ele, embora se sentisse absur-damente agradado por a ver.

Encovando as faces num sorriso de conspiração, ela disse:— Tenho uma emer-gência...O coração dele teve um baque.— O que aconteceu?Ela aproximou-se, abrindo a frente do casaco. Um gatinho cinzento,

malhado e felpudo, estava anichado contra os seios dela, a dormir profundamente.

— Este pobrezinho apareceu a miar à minha porta. Anda perdido, e o meu senhorio não me deixa ter animais.

— Oh, oh... — disse Isaiah. Não conseguia descartar a sensação de que aquilo era uma piada e de que ele não percebera a graça.

— Tenho de encontrar um lar para ele — continuou ela, naquele seu modo lento e compassado. — Sabe de alguém que possa ficar com ele, alguém especial que o possa amar? Talvez uma velhinha que acabou de perder o seu gatinho...

Isaiah aproximou-se dela. O gatinho era precisamente da mesma cor que o Seymour.

— Ho! — exclamou ele, numa interjeição de espanto. — Meu Deus, ele é perfeito! Onde raio é que o foi descobrir?

— No meu alpendre — respondeu ela, olhando fixamente para ele com um ar inocente. — Esta é a minha versão, e não a vou alterar.

Isaiah não engoliu aquilo. É claro que existiam coincidências, mas a expressão de auto-satisfação de Laura dizia-lhe que não era o caso.

— Agora a sério, Laura, onde é que o encontrou? Ele é uma versão em miniatura do Seymour.

Ela pousou suavemente a mão em concha sobre o gatinho adormecido.— O canil municipal revelou-se um beco sem saída, portanto procurei no

jornal da tarde de ontem. Ele estava na última casa aonde fui. E é um macho. Que sorte, hem?

Isaiah sentiu como se tivesse uma bola de golfe entalada por detrás da laringe. Ficou a olhar estupidamente para a cara adorável de Laura. Naquele momento, ela parecia irradiar luz, parecendo mais angélica do que humana. Ele não podia acreditar que ela desperdiçara toda a tarde que tinha livre a passar Crystal Falls a pente fino à procura de um gatinho cinzento malhado que se parecesse exactamente com o Seymour. Aquilo fora extremamente bondoso da parte dela — e muito para além do seu dever profissional. Ela nem sequer conhecia a Sra. Palmer.

Belinda apareceu nesse momento, vinda do bengaleiro.— O que é? — perguntou ela, ao ver a expressão de espanto de Isaiah.Forçando-se a arrancar o olhar fixo na fisionomia de Laura, Isaiah

respondeu:— É um gatinho para a Sra. Palmer. A Laura passou toda a tarde a

responder a anúncios classificados, a tentar encontrar um gato cinzento malhado.

Belinda aproximou-se para ver o gatinho.— Oh... é tão querido!Laura é que é a querida, pensou Isaiah, mas refreou-se de o dizer. Por um

momento, as duas mulheres arrulharam e proferiram exclamações de espanto em relação ao gatinho adormecido. Depois, Laura voltou a dirigir o olhar para Isaiah, com uma expressão de expectativa.

— Então, o que acha? — perguntou ela. — Se o despejarmos no colo dela e lhe dissermos que ele não tem casa onde ficar, acha que ela vai engolir?

Isaiah desatou a rir, desaparecida a tristeza que o atormentara durante toda a tarde.

— É claro que vai engolir. Se ela hesitar, prego-lhe com o meu famoso dis-curso acerca da castração e da sobrepopulação de gatinhos na nossa área e de quantos são mortos todas as semanas por não encontrarem lar que os acolha.

Belinda sorriu para Laura.— Acredita, ele tem mesmo jeito para isto. A Sra. Palmer não vai conseguir

dizer que não.

— Deviam tê-la visto quando eu estava a cavar a sepultura esta tarde — disse Isaiah. O seu coração deu um baque com a recordação. — Ela ficou sentada no alpendre das traseiras, a embalar o Seymour nos braços e a so-luçar. Não houve nada que eu pudesse dizer ou fazer para a fazer sentir-se melhor. Ela parecia estar tão só que detestei ter de me ir embora.

Laura levantou o gatinho e encostou-o à face.— Ela agora já não vai ficar sozinha...A Sra. Palmer vivia numa velha casa móvel pré-fabricada1, de dois corpos,

com um pátio frontal coberto, atulhado de mobiliário de jardim e de peças decorativas, muitas delas de contraplacado recortado e pintado com arte. Um mobile de azulões balouçava pendurado numa viga exposta de madeira. De uma outra pendiam um rapazinho e uma rapariguinha empoleirados em baloiços. Perto do alpendre da frente, estava um velho fazendeiro barbudo, em fato-macaco azul, a segurar uma placa de BEM-VINDO nas mãos calosas. Havia tanto para ver que Laura mal podia abarcar tudo.

— O marido dela era marceneiro — explicou Isaiah. — Quando se reformou, continuou ocupado a fazer coisas de madeira para vender.

Laura estava a admirar uma colecção de animais recortados em con-traplacado que se amontoavam em redor dos degraus: guaxinins, coelhos, esquilos e um sem-número de outros perdidos naquela multidão, todos eles muito queridos.

— Ele era muito bom — comentou Laura. — Olhe para aquele tordo! Não parece mesmo verdadeiro?

Isaiah contornou uma família de ursos negros em miniatura para subir os degraus. Ao bater, disse:

— Creio que ele fez bastante dinheiro a vender estas coisas. A maior parte das pessoas não tem tempo ou talento para fazer este género de trabalho.

Ficaram calados, à espera de uma resposta à batida. Quando a velhota abriu finalmente a porta, o coração de Laura teve um baque. Apesar de o seu corpo frágil não ter força para se manter direito sem apoio, a Sra. Palmer estava de pé, com uma mão artrítica apoiada na ombreira da porta. Uma blusa de poliéster demasiadamente grande e umas calças de treino muito largas quase que engoliam a sua estrutura descarnada. O seu cabelo branco envolvia-lhe a cabeça, com pontas soltas a despontarem aqui e acolá.

— Dr. Coulter? — disse ela, com voz sumida.— Sim, sou eu, Sra. Palmer. Tenho um problema e rezo para que a senhora

me possa ajudar com ele...— Ai, meu Deus... — disse ela. Com dedos trémulos, empurrou débil - mente

a desengonçada porta de rede mosquiteira. — Entre, entre.Isaiah agarrou a porta e abriu-a toda.— Trouxe uma amiga comigo; espero que não se importe...A Sra. Palmer olhou para Laura, que vinha atrás dele.— Eu estou um pouco adoentada, sabe. Não sei se estou capaz de receber

convidados.— Não nos demoramos nada, prometo — assegurou-lhe Isaiah. — Tal como

lhe disse, tenho um problema.— Oh, bem... nesse caso — disse ela, dando um passo incerto atrás para os

deixar entrar. — Não tenho bolachas à mão, mas posso fazer um chazinho.

1 Tipo de casas de baixo custo muito em voga nos EUA para classes sociais de menos recursos, pré-fabricadas e transportadas inteiras para o terreno da pessoa, como se fossem caravanas. As de duplo corpo ou «dupla largura» (double-wide) são basicamente duas casas móveis transportadas em separado e unidas no local. (N. do T.)

— Não é necessário, obrigado — disse Isaiah, enquanto invadiam a minúscula sala de estar da velhota. — Esta é a Laura Townsend, Sra. Palmer. Trabalha para mim na clínica.

A Sra. Palmer franziu os olhos para ver.— Tenho muito gosto em a conhecer, minha querida. Desculpe esta

confusão, mas este tem sido um dia terrível para mim.Mantendo a mão esquerda espalmada contra a parte da frente do casaco,

Laura estendeu a direita para apertar a mão da velha senhora.— Tenho muita pena pelo seu gatinho...Correram lágrimas pelas faces da Sra. Palmer. Limpou-as com dedos

trémulos.— Sou uma velha tonta, a chorar por causa de um gato cheio de pulgas...— Não, a senhora não é tonta coisa nenhuma — protestou Laura. — A

senhora gostava dele.O interior da casa da Sra. Palmer estava tão atravancado quanto o seu

pátio. Laura olhou para todas as bugigangas poeirentas que adornavam as paredes de contraplacado barato e depois voltou o olhar para um grande cesto de verga repleto de novelos de lã, colocado junto a um velho e gasto cadeirão reclinável castanho. Ela quase que podia ver a velha senhora a descansar nele com Seymour a dormir ao colo, enquanto fazia croché e via televisão. Como a casa lhe devia parecer vazia, agora que o seu querido animal de estimação morrera!

Isaiah agarrou no ombro encarquilhado da senhora e levou-a até ao cadeirão. A Sra. Palmer sentou-se com alívio no almofadado, abaulado no centro por anos de uso. Ela indicou-lhes com uma mão trémula um sofá verde, coberto por um cobertor de motivos geométricos, que não estava em melhor estado.

— Sentem-se, por favor.Com o gatinho anichado debaixo do casaco, Laura sentou-se numa das

pontas do sofá. Isaiah declinou a oferta e agachou-se junto ao cadeirão da senhora. Com o seu blusão de montar castanho, bem poderia estar agachado junto a uma fogueira crepitante a segurar uma caneca de lata nas suas grandes mãos. Laura imaginou a luz das chamas a bailar-lhe na fisionomia bem delineada.

— O problema é o seguinte — disse ele solenemente à Sra. Palmer. — Hoje à noite, quando a Laura foi para casa, encontrou um gatinho perdido no alpendre da casa dela.

Os olhos azuis remelosos da Sra. Palmer arregalaram-se.— Oh, meu Deus.— Ele não tem lar e está cheio de fome — continuou Isaiah — e não há

hipótese de a Laura ficar com ele. Se não lhe conseguirmos arranjar uma casa onde ficar, ela vai ter de o levar para o canil municipal.

— Oh, não — sussurrou a velha senhora.— E uma situação triste — continuou Isaiah. — Há tantos gatos e gatinhos

sem casa neste momento... A Sociedade Protectora recolhe cerca de trinta a cada dia. Eles são excelentes quando se trata animais sem dono, até que eles sejam adoptados, mas com tantos... — Isaiah deixou arrastar a voz, ficando as implicações do que acabara de dizer a pairarem no ar. — Odiaria saber que este bichinho foi abatido.

A Sra. Palmer abanou a cabeça.— Se está a pensar que eu possa ficar com ele, desiluda-se. Não posso. O

meu rico Seymour ainda nem sequer esfriou na cova...

Isaiah acenou com a cabeça compreensivamente.— Estaria totalmente de acordo consigo há uma hora, Sra. Palmer. Mas, ao

ver este gatinho, mudei de opinião. — Isaiah hesitou por um momento. — A senhora acredita no destino?

— Destino? — repetiu a senhora.— Sim, sabe, que algumas coisas na vida acontecem por uma determinada

razão? Tal como quando a senhora conheceu o seu Alfredo, por exemplo. Acha que isso aconteceu por acaso?

— Encontrar o meu Alfredo? Por acaso? — a Sra. Palmer voltou a abanar a cabeça. — Céus, não. Estávamos destinados um para o outro. Sempre acreditámos os dois nisso.

— Há coisas que estão destinadas a acontecer, não há dúvida — concordou Isaiah. — E estou certo de que esta é uma delas. Quando pus os olhos neste gatinho perdido, fiquei todo arrepiado. É um sósia perfeito do Seymour. É como se Deus o tivesse pousado à porta de Laura especialmente para si.

— Ele é parecido com o meu Seymour?Isaiah voltou-se para Laura. Percebendo a deixa, ela tirou o gatinho de

baixo do casaco. Enquanto o segurava para que a Sra. Palmer o visse, ela disse:

— Não é incrível? Ele até tem aqueles tufozinhos de pêlo nas orelhas.A Sra. Palmer apertou cinco dedos nodosos sobre a boca e fixou no gatinho

os olhos cheios de lágrimas.— Agora sabe porque é que eu fiquei arrepiado quando o vi — disse Isaiah,

tirando o gatinho das mãos de Laura enquanto falava. — A minha mãe disse-me durante toda a minha vida que Deus nunca nos dá uma provação maior do que aquela que podemos suportar. Há seis meses, a senhora perdeu o seu marido. Hoje, perdeu o Seymour. Creio que Deus sabe bem como a senhora está triste e enviou este bichano para a porta da Laura, de modo a que ele pudesse encontrar um caminho para si.

Isaiah colocou o gatinho adormecido no colo da Sra. Palmer. As mãos da velhota pairaram trémulas sobre o minúsculo felino, as pontas dos dedos mal tocando na pelagem macia.

— Oh — murmurou ela. Um soluço embargou-lhe a garganta, fazendo tremer os seus frágeis ombros. — Oh, meu Deus, ele parece-se mesmo com o Seymour. Quase exactamente. Não parece?

— Nunca vi gato mais parecido — disse Isaiah, lançando a Laura um sorriso triunfante. — É uma parecença demasiado grande para ser coincidência. Estou convencido que este gatinho foi enviado do Céu.

— Oh, meu Deus — disse mais uma vez a Sra. Palmer, tomando finalmente o gatinho nas mãos para olhar para o focinhito engraçado. — Está tão magrinho! Consigo sentir-lhe as costelas!

O gatinho fora tirado à mãe nessa mesma tarde, e portanto estava até bastante anafado, mas Isaiah abanou a cabeça em assentimento.

— Quem sabe há quanto tempo o bichano está sem comer — disse ele. — É um mundo cruel para um gatinho sem lar.

A Sra. Palmer levou o gatinho ao peito.— É um milagre ter sobrevivido!— Eu sei que é um grande abuso, mas poderá dar-lhe um lar, Sra. Palmer?

— disse Isaiah, transferindo o seu peso para se sentar nos calcanhares. — Eu nunca estou em casa. Nunca poderia tomar conta de um gatinho tão novo, e a Laura vive num apartamento onde os senhorios não querem animais.

— É ainda terrivelmente cedo! — disse a Sra. Palmer. Mas o seu tom indicou que estava a ceder.

— Eu sei. Mas, dada a tremenda semelhança, não creio que o Seymour se importasse. Na verdade, ele até seria capaz de gostar da ideia... outro gato exactamente igual a ele. De certo modo, é uma honra à memória dele. Não acha, Laura?

— Oh, claro que sim — respondeu Laura, dizendo enfaticamente que sim com a cabeça. — Penso que o Seymour ficaria contente. Ele gostava muito de si, Sra. Palmer. Não iria querer que a senhora ficasse sozinha.

Ele vai precisar das vacinas, e de ser castrado quando chegar a altura observou a senhora.

— Deixe isso por minha conta — ofereceu Isaiah. — Faz-me um grande favor em o aceitar. É o mínimo que posso fazer.

A Sra. Palmer ergueu-se da cadeira. Aconchegando o gatinho contra o peito, ela foi em passo incerto até à cozinha, dizendo:

— Vamos dar-te um leitinho enquanto penso no assunto. Meu peque- iii no cheio de fome!

Isaiah sorriu para Laura ao erguer-se.— Está no papo! — sussurrou ele.Quando voltou, a Sra. Palmer estava radiante.— Meu Deus, como ele bebe aquele leite! Estou em crer que o

estômagozinho dele está tão vazio que está colado à coluna.— Eu trouxe uma comida especial para lhe pôr alguma carne nos ossos —

disse-lhe Isaiah. — Vou buscá-la. Isto é, se a senhora ficar como ele.A Sra. Palmer olhou para baixo e riu-se de satisfação. Seymour Segundo

seguira-a desde a cozinha e estava a atacar-lhe o cesto do croché. Antes que alguém pudesse reagir, um novelo de lã vermelha estava a rolar pelo chão e o gatinho lançado em sua perseguição. A velhota correu atrás do seu novo animal de estimação, apanhou-o e agitou um dedo reprovador em frente do focinhito cor-de-rosa.

— Tens de aprender que o meu cesto de croché não é para mexeres! — Ela aconchegou o gatinho para mais perto de si e sorriu. — Ele parece-se tanto com o meu Seymour! Se calhar foi mesmo enviado do Céu! — acrescentou ela, roçando a cara no pelo do gatinho. — Sim, fico com ele. Como poderia dizer que não? Não posso deixar que o sósia do Seymour seja posto a dormir!

Enquanto Isaiah saía para ir buscar a comida de gato, Laura sentou-se com a Sra. Palmer a observar o gatinho a brincar com um novelo de lã. A velhota estava-se a rir baixinho quando Isaiah regressou. Trazia um grande saco de comida granulada e uma caixa de comida enlatada, que depositou na cozinha.

— Se mo trouxer amanhã — disse ele — dou-lhe a primeira dose de vacinas, gratuitamente.

— Oh, não, o doutor não tem de fazer isso — protestou a Sra. Palmer.— Eu insisto. Como disse, a senhora já me está a fazer um grande favor ao

ficar com o gato. Partir-me-ia o coração ter de o levar para um canil. Nunca sabemos se um animal vai ser adoptado ou não. Sei que aqui, consigo, ele vai ser amado e bem tratado.

— Pode ter a certeza disso — confirmou a Sra. Palmer.— Em compensação, terá cuidados veterinários gratuitos — disse Isaiah,

observando o gatinho a dar uma cambalhota e a ficar enredado no fio de lã. — Ele vai-lhe dar trabalho...

A Sra. Palmer concordou acenando com a cabeça.— Tenho primeiro de lhe arranjar uns brinquedos. Ele é muito traquinas.

Quando Isaiah e Laura saíram alguns minutos depois, foi ao som do riso da Sra. Palmer. Isaiah parou no limiar do pátio e olhou para trás, para as janelas iluminadas, a sorrir.

— Isto sabe bem.Laura concordou inteiramente. Sabia maravilhosamente.— Não creio que ela chore mais...— Não, e é tudo graças a si. Por pior que eu me sentisse em relação a ela,

nunca me passaria pela cabeça arranjar-lhe um gato idêntico. Jogada brilhante!Enquanto caminhavam em direcção ao Hummer de Isaiah, Laura

respondeu:— Estou mesmo satisfeita que ela tenha ficado com ele. Não posso ter

animais em casa, sabe.Ele deu uma gargalhada e abriu a porta do passageiro.— Qual era o seu plano no caso de ela não querer ficar com ele?Laura fez uma careta.— Você não tem um gato mascote na clínica. A maioria dos vete-riná-rios

tem...— Um gato mascote, é? — disse ele, pegando lhe no braço para a ajudar a

subir para o Hummer. O calor da mão dele radiou através da manga do casaco dela. — É uma ideia.

Isaiah fechou a porta. Enquanto Laura apertava o cinto de segurança, ele contornou a frente do veículo e subiu, sentando-se ao lado dela.

— Estou esfomeado. Você já comeu?Laura queria poder dizer que sim. Não era boa ideia passar demasiado

tempo com Isaiah Coulter. A cada dia que passava, ela tinha mais dificuldade em controlar os sentimentos que nutria em relação a ele.

— Não, ainda não comi — confessou.— Óptimo! Que tal um italiano?Embora não fosse muito apreciadora de comida italiana, Laura pensou que

era uma ideia fabulosa. E nisso residia toda a questão: qualquer coisa relacionada com Isaiah Coulter a atraía.

Capítulo Seis

Para Laura, o fim-de-semana seguinte foi preenchido com as últimas preparações do Halloween, o qual marcava o fim do horário de Verão e o início da sua época favorita do ano, a época das festas. No sábado de manhã, foi à mercearia comprar os ingredientes para bolachas de açúcar enfeitadas, que ela cozinhou e decorou nessa mesma tarde. Depois, passou parte do serão com o seu senhorio, o Sr. Evans, que apareceu para atrasar uma hora todos os relógios e electrodomésticos, uma tarefa maçadora, frustrante e quase que impossível para Laura.

Depois de ir à missa com a avó no domingo de manhã, Laura regressou a casa e ouviu um romance de Jeffery Deaver gravado numa cassete áudio, enquanto embrulhava montes de doces individuais em quadrados de celofane atados com fitas laranjas e negras. Cada embrulho assim alegremente enfeitado ia para um grande cesto destinado a ficar junto à porta para os miúdos do «doce ou travessura» que tocariam à porta mais tarde.

O romance, intitulado O Vazio Azul, era acerca de um hacker maléfico que invadia os computadores das suas vítimas e atraía-as para a morte. Era adequadamente assustador para criar um estado de espírito próprio do Halloween, um complemento agradável às bruxas e diabretes que pendiam nas janelas de Laura e às duas abóboras iluminadas que estavam na sua cozinha, uma sobre o balcão e a outra como peça central na mesa. O apartamento dela cheirava divinamente, pois um pote de cidra com canela estava a fervilhar ao lume e a encher os aposentos com a sua fragrância de especiarias.

Pelas quatro da tarde, Laura estava tão pronta quanto podia para receber todas as crianças que lhe iriam decerto em breve bater à porta. Levando uma chávena de cidra quente para a casa de banho, tomou um duche rápido e depois vestiu o seu disfarce de Halloween, um pijama cor-de-rosa de uma só peça, com pés e um par de orelhas de coelho a condizer, que ela fizera com veludo, montado sobre arame leve e dobrável. E, pronto, eis que ela era quase um coelho de Halloween. Depois de pregar uma cauda em «pom-pom» ao traseiro do pijama, dedicou-se a trabalhar a cara, usando um lápis de maquilhagem negro para criar pestanas e bigodes exagerados, rouge para corar a face e batom para dar aos lábios um tom de rosa brilhante.

Acabara de completar a sua transformação quando tocou o telefone. Correu para o quarto e pegou no portátil.

— Está?— Olá, mana!— Aileen! — exclamou Laura, sentando-se na beira da cama. — Que bom

teres telefonado!— Não posso falar muito tempo. Tenho de vestir os disfarces aos miúdos.

Tenho estado todo o dia a pensar em ti, a lembrar-me de Halloweens passados.

Aileen vivia nos arrabaldes de Portland, a quatro horas de carro. Laura gostaria de poder ver a irmã mais velha com maior frequência, mas a condução citadina, com todos os sinais de trânsito abstrusos e os nomes estranhos, era demasiado confusa para ela. Aileen vinha ao Oregon Central visitá-la sempre que podia, mas um marido, dois filhos e um emprego a tempo inteiro mantinham-na bastante ocupada. Por isso, as duas irmãs não se viam desde que os pais se tinham mudado para a Florida, há seis meses.

— Também tenho pensado em ti — disse Laura, com um sorriso melancólico.

— Fizeste hoje a cidra do avô Jim? — perguntou-lhe Aileen.— Yep. Está a aquecer no fogão. Estou mesmo agora a beber uma caneca.— Eu também. A minha levou um toque de vinho. Preciso de qualquer coisa

que me aqueça as entranhas quando for esta noite para a rua com os miúdos. Está tanto frio lá fora! O Jim vai ser o nosso motorista, e tenho de acompanhar os miúdos no porta-a-porta. Como é que está aí o tempo?

— Frio. Estou desejosa que neve — respondeu Laura, olhando para a janela com cortinas de folhos. — Mas não caiu ainda nada. Ora! Vou acender a minha lareirazinha a gás. Vai tornar isto mais confortável e alegre.

— Estás vestida com o teu disfarce de coelhinha?— Temos de entrar no espírito da coisa. Estás outra vez vestida de Cléo?— Estou muito gorda para me vestir de Cleópatra este ano.— Não estás gorda.— Diz isso ao meu top de alças.— Então vais vestida de quê?— De bruxa malvada. Vá lá, ri-te à vontade! Vai ser muito mais prático.

Posso vestir um casaco grosso por baixo da minha capa de bruxa, para evitar que me gele o rabo, e posso gritar e comportar-me como uma bruxa, uma vantagem indiscutível quando estamos a tentar arrebanhar três miúdos na noite de Halloween. O Trevor e o Cody só têm uma velocidade: alta.

Laura podia ouvir a gritaria dos filhos da irmã como pano de fundo. Parecia que os rapazes, de seis e sete anos de idade, estavam a atormentar a sua irmã de dez anos, Sarah.

— Porque é que eles estão à bulha?— Pela posse das abóboras iluminadas. A Sarah fez a mais bonita de todas.

O Trevor diz que é dele, e ela está furiosa.Laura lembrava-se do tempo em que ela e Aileen estavam sempre a

discutir, levando a mãe delas ao desespero.— Éramos uns anjinhos...— Pois. Lembras-te de quando enchemos de papel higiénico a esquadra de

polícia?Laura deu uma risadinha.— Foi tão divertido! Os chuis estavam todos fora, em patrulha para

apanharem os brincalhões. Foi o crime perfeito...— Pareces-me óptima! Penso que estás a falar melhor.— Achas?— Sim, mais depressa e... bem, não sei, com maior fluidez, creio.— Nada de palavras compridas — notou Laura. — Estou a ficar boa a evitá-

las.— Mal posso notar que há alguma coisa de errado. Há quanto tempo não

nos vemos?— Seis meses.— Ainda estás a tomar aquela coisa para melhorar o cérebro?

— Qual quê... Agora que a mãe não está cá, deitei-a fora. Agora tenho um emprego a sério. Já sabias?

— A avó falou nisso. A mãe anda tão ocupada com a aeróbica aquática e as quermesses comunitárias que quase que não me liga. E estás a gostar? Do trabalho, quero dizer...

— Adoro-o! — exclamou Laura. Depois, enumerou as suas funções e prosseguiu, descrevendo Isaiah e quão bonito ele era. — Tenho uma grande queda por ele. Sei que é estúpido, mas parece que não o consigo evitar.

— Mas que mal há em teres uma queda por ele?— Nunca irá acontecer. Ele tem tanta coisa a favor dele, e eu... bem, eu não

tenho.Aileen resfolgou.— És uma mulher muito bonita, Laura. O Jim diz que és uma sósia da

Charlize Theron.Laura riu-se tanto que caiu para trás sobre a cama.— Pareces-te mesmo com ela — insistiu Aileen. — Qualquer homem que te

apanhe é um felizardo.— Também gosto de ti.Aileen suspirou.— A tua afasia é um problema. Não vou dizer que não é. Mas não é assim

tão má. O Isaiah está claramente interessado em ti. Um tipo não leva uma mulher a jantar fora por duas vezes a não ser que haja algo de pé. — Aileen deu uma gargalhada teatral. — E digo isto em sentido literal!

Laura revirou os olhos.— Não sejas grosseira.— Sou uma velha mulher casada. Posso ser ordinária se quiser.— Os jantares não foram desse género, não foram român-ticos nem nada.

De ambas as vezes, já era muito tarde, e ele só me convidou por deli-cadeza.— Pois, está bem...Laura ficou ao telefone durante mais uns minutos, a actualizar-se acerca de

todas as novidades familiares. Pouco depois de ela e Aileen terem desligado, o telefone voltou a tocar, e eram os seus pais. Laura teve de enfrentar as perguntas da mãe. Estava a tomar os comprimidos todos? Sim, mãe. Notara alguma diferença desde que começara a tomar os comprimidos de algas? Não, mãe. Laura sentiu-se aliviada quando o seu pai veio finalmente ao telefone. Mike Townsend era muito mais terra-a-terra do que a sua mulher.

— Como está a minha menina? — perguntou ele.— Estou bem, papá. Mas tenho saudades tuas...— Arranjaste uma abóbora iluminada?— Duas.— Tens cidra?— O que seria o Hallo-ween sem ela? — contrapôs Laura.Quando o seu pai se assegurou de que ela estava feliz, saudável e a ce-

lebrar a festividade como devia ser, despediu-se, deixando beijos e abraços para a avó dela antes de desligar.

Laura correu à cozinha para aquecer um guisado que sobrara do dia anterior para o seu jantar.

E, depois, ficou à espera que os miúdos viessem. O crepúsculo, que é normalmente a altura em que as crianças andam na rua em bandos durante o Halloween, veio e passou sem que houvesse uma batida na porta. Laura ficou de pé junto à janela da cozinha, a ver hordas de miúdos brincalhões a baterem à porta do seu senhorio, mas nenhum deles parecia aperceber-se de que vivia

alguém por cima da garagem. Laura pensou em abrir a janela para lhes gritar. Mas isso seria estúpido.

Desapontada, ligou para a avó.— Oh, querida, estou desolada. Sei quanto gostas de ver todas as crianças

com aqueles disfarces. Para o ano, tens de o vir passar cá a casa. Tenho tido montes de miúdos, tantos que estou quase sem doces.

Nesse preciso momento, a campainha da porta de Etta voltou a tocar, portanto Laura despediu-se apressadamente e deixou-a ir.

Não havia nada de interessante na televisão, por isso Laura passou a hora seguinte a ouvir mais um pouco da sua novela na cassete. Acabava de carregar na pausa do leitor de cassetes para ir tirar a maquilhagem da cara e as suas orelhas de coelho quando ouviu finalmente uma batida na porta.

O seu coração saltou de alegria. Um grupo de brincalhões do Halloween era melhor do que nada.

Quando Laura abriu a porta, deu de caras com a sua dupla em miniatura de pé no topo dos degraus, uma menininha adorável vestida de coelhinha cor-de-rosa. A criança tinha uns enormes olhos castanhos e caracóis escuros que lhe desciam em cascata até aos ombros.

— Doce ou travessura! — gritou ela.Um rapaz mais velho subiu por detrás dela e gritou as mesmas palavras

numa voz mais grave. Estava vestido de vampiro, com sangue a escorrer-lhe dos cantos da boca, de onde saíam dois grandes caninos.

Deliciada, Laura abriu a porta de par em par.— Entrem para aqui, que está mais quentinho — convidou ela. — vocês são

os meus primeiros brincalhões desta noite, e tenho montanhas de doces. Vocês vão carregados daqui.

— Também posso entrar?Laura espreitou por cima das crianças, e viu um cowboy alto e magro, de pé

no limiar do círculo de luz lançado pelo candeeiro do alpendre. Convencida de que eram os seus olhos que lhe estavam a pregar uma partida, ela perguntou:

— Isaiah?Ele deu um passo em frente, de modo a que ela o pudesse ver bem. Vestia

de novo o casaco de montar de lona castanha e o chapéu Stetson cor de areia, e parecia extremamente atraente aos seus olhos famintos — pernas longas e musculadas moldadas em ganga, ombros encolhidos com o frio, a cara ensombrada pela aba do chapéu. Laura sentiu o coração a bater-lhe descompassadamente no peito.

— Apresento-lhe a Rosie e o Chad, meus sobrinhos. A mãe deles, a Natalie, é dona do Papagaio Azul, e está lá esta noite a dar uma festa de Halloween karaoke. O meu irmão Zeke está a distribuir doces na sua loja fornecedora de ranchos. Ofereci-me para levar os miúdos na ronda do «doce ou travessura». A Valerie, tia deles e irmã da Natalie, não o podia fazer. Ficou na casa do Zeke e da Natalie para a ajudar a distribuir os doces de modo a não ficarem com as janelas sujas.

Esquecendo-se de que tinha orelhas de coelho, Laura levou a mão ao cabelo para o alisar. Quando as pontas dos seus dedos encontraram veludo, ela pestanejou. Por que razão ela nunca estava no seu melhor quando ele aparecia?

— Entrem, por favor! — disse ela, fazendo as crianças passarem a soleira da porta. — Vocês gostam de cidra?

— Gosto imenso! — respondeu a Rosie. — O Chad prefere refrigerantes com gás. Acha que a sua missão na vida é deixar apodrecer todos os seus dentes.

— Não é nada!— Também é!— Não é nada!Isaiah entrou atrás dos miúdos.— Rebobinem lá isso! Não quero guerras! Foi o que combinámos, lembram-

se?Lançando olhares assassinos ao Chad com os seus olhos expressivos, Rose

franziu os lábios e torceu o nariz. Com voz sibilina, Chad sussurrou:— Às vezes és mesmo uma merdinhas...— É melhor ser uma merdinhas do que um merdão! — replicou prontamente

Rosie.Laura refreou uma gargalhada. Isaiah parecia siderado. Por cima das

cabeças das crianças, lançou a Laura um olhar repleto de aflição, o que a fez ter novamente vontade de rir. Ela nunca vira um homem grande e possante parecer tão perdido e ensarilhado.

— Por acaso tenho refrigerantes no frigorífico — assegurou ela a Chad. Fechando a porta ao ar gélido da noite, acrescentou: — Também tenho montes de bolachas de açúcar. Se vocês tirarem os casacos e se sentarem à mesa, já vos sirvo.

— Bolachas de açúcar? — disseram as crianças em coro. — Boa!Enquanto as crianças despiam os casacos e corriam para a cozinha, Laura

lançou a Isaiah um olhar interrogativo.— Você vive no outro extremo da cidade. O que é que o traz até aqui?Ele tirou o chapéu e passou uma mão pelo cabelo escuro desgrenhado.— Doces envenenados.Laura franziu o sobrolho.— O quê?— A mãe deles está convencida de que é perigoso os miúdos aceitarem

doces de estranhos. A escola deu uma grande festa de Halloween na sexta à noite, mas não é a mesma coisa do que andar no giro do «doce ou travessura». Fui incumbido de os arrastar por toda a Criação Divina até às casas das pessoas conhecidas. A mãe sugeriu que eu os levasse a casa da sua avó. Ela disse-nos então que nenhum miúdo tinha vindo até aqui e encorajou-me a passar por cá.

— Estou feliz por o ter feito. Estava-me a sentir um pouco triste. Gosto de ver todas as crianças.

— São mais engraçadas à distância...Rosie deu um grito nesse preciso momento. Laura virou-se a tempo de ver

Chad a puxar pelas orelhas de coelho da irmã.— Ei! — gritou Isaiah. — Chad, pára já com isso! Rosie, pára de lhe bater!— O Chad está a ser um chato!— Não estou nada! Tu estavas-me a tentar arrancar os dentes!— Só porque não podes comer com eles postos!Laura apressou-se a ir à cozinha para endireitar as orelhas de Rosie, voltar

a colocar os dentes a Chad e acalmar os ânimos. Quando olhou para os olhos castanhos de Rosie, cheios de lágrimas, derreteu-se.

— Está tudo bem, querida. Vocês já têm tudo no lugar...Rosie levou as mãos à cabeça para verificar as orelhas postiças. Quando se

certificou de que elas não estavam danificadas, lançou a Chad outro olhar cortante e depois olhou interrogativamente para Laura.

— Tens um problema na fala?

— Rosie! — gritou Isaiah, parecendo chocado ao avançar pela cozinha dentro. — É muito feio perguntar isso!

— Não faz mal — disse Laura, conduzindo a criança para uma cadeira. — Tenho. Tenho difi-culdade a falar, Rosie. Há cinco anos, mergulhei no rio e bati com a cabeça numa rocha. Quando acordei, não conseguia falar.

— Nada de nada? — perguntou Chad, sentado do lado oposto à irmã. — Isso é chato.

— Pois é — concordou Laura, enquanto punha bolachas numa travessa e arranjava qualquer coisa para as crianças beberem. — Pepsi ou laranjada, Chad?

— Laranjada. Então como é que agora consegues falar?— Fui para a reabi-litação e aprendi tudo de novo.De chapéu na mão, Isaiah estava de pé com as ancas magras encostadas

ao balcão, as longas pernas cruzadas nos tornozelos. Lançou a Laura um olhar pesaroso.

— Não tem importância — sossegou-o ela. E na verdade não tinha. Apesar das recentes afirmações da sua irmã de que o seu problema de fala já quase que não se notava, Laura sabia que não, e não se importava de responder às perguntas das crianças. Ao trazer as bebidas para a mesa, disse:

— É por isso que eu falo tão devagar e paro entre as palavras. Sei que irrita as pessoas, mas para mim é melhor do que não conseguir sequer falar.

Rosie acenou com a cabeça em concordância.— Mas consegues falar muito bem, a sério.— Muito obrigada.— Mhh! — exclamou Chad ao ver as bolachas. — Têm cobertura de açúcar!

— Agarrou numa mão cheia e colocou-as no guardanapo. Depois de dar uma grande dentada numa bolacha decorada como uma abóbora-candeio, suspirou e disse — Fofinhas, também! As da minha mãe estão sempre queimadas no fundo e duras como pedras.

— A nossa mãe é cantora e compositora — esclareceu Rosie. — Por isso, o nosso pai cozinha a maior parte das vezes, porque a mamã distrai-se e deixa queimar tudo.

— Estou a perceber — disse Laura. Nunca havia encontrado uma ra-pariguinha tão nova com um vocabulário tão rico. — Quantos anos tens, Rosie?

— Tenho seis.— Mentirosa, mentirosa, ainda levas uma tosa! — gritou o Chad, em tom de

cantilena. — Só fazes seis em Fevereiro!— E depois? — gritou Rosie. — Estamos quase em Fevereiro.— Ainda não tens seis! Não pegues petas! A mãe vai-te pôr pimenta na

língua!— Ela tem quase seis — interveio Laura.Apaziguada mas ainda irritada, Rosie trincou afectadamente uma bolacha.— Tio Isaiah, tem de experimentar uma destas. São deliciosas!Laura regressou à cozinha, a abanar a cabeça de espanto ante o domínio da

língua inglesa que Rosie demonstrava.— Isto não é de famí-lia? — perguntou Laura a Isaiah.Ele sorriu. Em voz baixa, para que só Laura o pudesse ouvir, explicou:— Não somos aparentados. O meu irmão Zeke adoptou-os. O pai biológico

deles foi morto.— Oh, que tragédia!— O Robert não era muito bom pai — disse Isaiah, despindo o casaco. Por

baixo, vestia uma camisa de corte do Oeste, de manga comprida e cor

vermelho-sangue, que dava à sua tez já escura um bronze mais acentuado. — Os miúdos estão muito melhor com o meu irmão. O Zeke gosta deles como filhos, e está a revelar-se um grande pai.

Laura seguiu-o com o olhar enquanto ele foi até à sala pendurar o casaco e o chapéu num cabide de pé.

— Não está disfarçado — reparou ela.— A Rosie tentou vestir-me de fantasma, mas o lençol só ia até aos meus

joelhos.— Se calhar é melhor assim. O ar de cowboy está mais de acordo consigo.

— Laura foi buscar cidra para cada um deles e colocar mais bolachas numa travessa. Agarrando uma caneca quente com ambas as mãos, debruçou-se por cima da ilha da cozinha, do lado oposto ao dele. Com um olhar às crianças, cujas bocas estavam agora demasiadamente cheias de bolachas para que pudessem lançar insultos uma à outra, ela perguntou: — Então, a sua noite de tortura está a acabar, ou não?

— Isso queria eu! Há um grande bairro neste lado da cidade que a Nattie diz que é seguro. A maior parte das pessoas que lá vive é gente nova com as famílias. Vou deixá-los correr à vontade durante um bocado. Com um pouco de sorte, vão esgotar as energias e acabar por adormecer à hora habitual. Têm escola amanhã.

— Espero que os vigie de perto...— Vou com eles. O Chad tem idade suficiente para olhar pela Rosie, mas

nunca sabemos que género de loucos pode andar pelas ruas nesta noite — disse Isaiah, erguendo uma sobrancelha. — Quer vir?

Há anos que Laura não saía no Halloween. Parecia divertido, e ela queria muito dizer que sim, mas o afecto crescente que sentia por ele começava a alarmá-la.

— Obrigada pelo convite. Mas devo-me manter por aqui para o caso de apare-cerem mais miúdos.

— Ninguém lhe bateu à porta a noite toda...Laura sentiu-se a vacilar. Ele era tão simpático, e ela gostava tanto da sua

companhia! Desde que ela conseguisse manter os pés no chão, que mal poderia advir de serem amigos?

— Só se eu puder ir como estou e fizer «doce ou travessura» com os miúdos...

Ela estava à espera que ele desatasse a rir. Em vez disso, ele sorriu, en-colheu os ombros e disse:

— Faça o que lhe der na real gana... Eu apreciaria uma companhia adulta — disse ele, inclinando a cabeça, arqueando uma sobrancelha e lançando a Laura um olhar implorativo. — Faz-me esse favor? Se não vier connosco, ainda me posso passar e estrangular estes miúdos antes do final da noite.

Laura não estava minimamente preocupada que Isaiah pudesse fazer mal aos sobrinhos. Ela vira-o a tratar de animais e sabia quão ilimitadas podiam ser as suas reservas de paciência em situações exasperantes. E não estava aí o cerne do problema? Ela não se limitava a gostar deste homem. Ela também o admirava.

Pela segunda vez em muitos minutos, campainhazinhas de aviso tilintaram na sua mente. Infelizmente, Isaiah Coulter tinha uma maneira de ser irresistível, mesmo quando não estava a fazer de propósito. Quando passava para o seu modo persuasivo, Laura achava difícil, senão mesmo impossível, dizer-lhe que não.

Para Isaiah, aquilo que começara como uma incumbência desagradável — fazer de motorista a duas crianças briguentas — transformara-se num serão delicioso. Tal como havia ameaçado, Laura foi vestida com o seu disfarce de coelhinha cor-de-rosa para o bairro elegante, envergando por cima dele a sua parka rosa, que ela costumava por vezes levar para o trabalho, como única concessão ao aspecto prático, para não gelar com o frio da noite. Isaiah sempre achara Laura lindíssima, mas ao observá-la a deambular com a Rosie para bater às portas e gritar «doce ou travessura!» naquele jeito dela, lento e sincopado, constatou que a verdadeira beleza era muito mais profunda do que a aparência.

Ele cortejara inúmeras mulheres ao longo da sua vida, a maioria delas fisicamente belíssimas, mas nunca conhecera nenhuma tão natural, espon-tânea ou querida como Laura Townsend. Oh, claro está, conhecera raparigas que disfarçavam muito bem, fingindo gostar de animais, de crianças e de actividades ao sabor do momento. Mas depois era uma unha acrílica que se partia, uns collants que se desmalhavam, ou as mãos gordurentas de uma criança que entravam em contacto com uma permanente perfeitamente es-tilizada, e então toda a aparência se esfumava.

Não havia pretensiosismo em Laura. Quando um dogue alemão conseguiu escapar-se ao dono para ir ladrar e rosnar à porta dos recém-chegados, ela não desceu atabalhoadamente os degraus a quatro e quatro num ataque de pânico como muitas mulheres fariam. Em vez disso, tirou as suas orelhas de coelho para parecer mais normal e agachou-se para travar amizade com o animal ameaçador. Quando a Rosie ficou com as mãos todas besuntadas de chocolate Snickers e tocou com elas na cara de Laura, ela limitou-se a rir, lambeu um dedo para limpar a mancha pegajosa e depois voltou a meter o dedo na boca, dizendo:

— Mhhh! Posso ter mais?Em resumo, os miúdos adoravam-na, e Isaiah achava-a muito difícil de

resistir. Mesmo com bigodes e orelhas de coelho, ela conseguia atraí-lo mais do que qualquer outra mulher que conhecera.

No decurso da noite, Isaiah estava-se sempre a lembrar da figura dela quando Laura abriu a porta à Rosie — toda vestida para o Halloween e sem ter aonde ir. A decoração no interior do apartamento indicava o empenho dela na celebração das festividades. Entristecera-o vê-la rodeada da animação do Halloween e contudo tão terrivelmente só. Era uma pena que alguém com tanto para dar não tivesse ninguém com quem o partilhar.

— Consegui mais do que vocês! — gritou Chad, correndo à frente de Laura e de Rosie de volta ao passeio, onde Isaiah os aguardava.

— Não, não conseguiste! — gritou-lhe Rosie.— Consegui, sim!— Não, não conseguiste!Isaiah estava prestes a partir um molar de tanto ranger os dentes quando

Laura ergueu o seu saco e gritou:— Fui eu quem recebeu mais!Chad e Rosie gritaram ambos:— Não conseguiste nada!Laura gritou:— Consegui, sim!E a guerra verbal recomeçou. Só que, desta vez, teve uma reviravolta no

final que fez com que Isaiah desatasse a rir. Laura entrou na contenda durante algum tempo, dizendo «Consegui, sim!», até os miúdos entraram no ritmo, e

depois trocou de posição com eles, gritando «Não conseguiste nada!» De imediato, Chad e Rosie contrapuseram com «Consegui, sim!»

Laura deu uma gargalhada.— Apanhei-vos!Clamorosamente derrotadas, as crianças riram-se e apressaram-se a correr

para a casa seguinte. Mas ainda não tinham percorrido nem dez metros quando se começaram a acotovelar, tentando empurrar-se mutuamente para fora do passeio e espalhando pelo chão a maior parte dos doces durante o processo. Isaiah estava prestes a agarrar ambos os miúdos pela gola e dar-lhes um ralhete quando Laura gritou:

— Quem achar fica com eles!No instante seguinte, ela estava a correr pelo passeio, apanhando os doces

espalhados e colocando-os no seu saco, com a cauda de pom-pom a aparecer por baixo da orla do casaco sempre que ela se baixava. A rir-se, Isaiah seguiu-a, pegando em todos os doces que conseguia antes que os miúdos fossem capazes de os agarrar.

— Esse é meu! — protestou a Rosie.— Agora já não é — disse Laura, apanhando mais do saque de Chad antes

que ele se lançasse para o agarrar. — Não preciso de andar a tocar às portas atrás de vocês, meninos. Consigo arranjar mais doces assim.

Chad e Rosie apressaram-se a recolher os doces espalhados que ainda não tinham sido confiscados.

— Mas vocês são adultos! — queixou-se Rosie. — Não devem tirar os doces às crianças!

Impassível, Laura mostrou um sorriso triunfante a Isaiah antes de responder:

— E os miúdos também não devem andar à bulha. Se vocês quebram as regras, creio que nós também podemos.

Claramente sem saber o que responder, Rosie cerrou os lábios e franziu o sobrolho. Chad bufou de contrariedade.

— Anda! — disse ele à irmã. — Podemos arranjar mais doces na próxima casa.

Enquanto os miúdos andavam à frente deles, Isaiah ouviu Chad sussurrar para a irmã:

— Acabaram-se as brigas, OK? Se o tio Isaiah faz queixa de nós, estamos metidos num belo sarilho.

— Tu empurraste-me primeiro!— Porque tu me deste uma cotovelada!— Foi sem querer!— Treta!— Foi sim, senhor! Eu estava a tentar ver para dentro do meu saco e dobrei

o braço. Não te queria dar uma cotovelada!— Então porque é que não o disseste?— Porque me empurraste!Chad suspirou, endireitou as orelhas da irmã e optou por um compromisso:— Eu peço-te desculpa se tu também me pedires.Rosie deu um suspiro teatral.— Desculpa.— Desculpa-me também.Tendo chegado a um acordo de paz provisório, desataram a correr. Isaiah

abanou a cabeça, interrogando-se se a maneira lenta de falar de Laura faria com que as crianças a ouvissem com mais atenção do que a ele.

— Isto é espantoso. Sabe quantas vezes eu lhes pedi esta noite para deixarem de andar à bulha?

Laura limitou-se a sorrir.— A Laura é incrível com crianças — disse-lhe ele. — É uma pena não ter

filhos.Ela acompanhava-lhe o passo, ao lado dele, a respiração dela a formar

pequenas baforadas de condensação no ar frígido da noite. À luz dos candeei-ros públicos, os olhos dela brilhavam como topázio polido.

— Eu estava a planear tê-los, mas depois tive o acidente e as coisas mudaram — disse ela, franzindo o nariz e encolhendo os ombros. — Foi muito duro para os meus amigos. Não podia falar com eles, e por isso eles deixaram de me ir ver passadas algumas visitas. O meu namorado tinha muita pena de mim, mas eu já não lhe podia dar nada do que ele almejava, e não foi preciso muito tempo para que ele rompesse o namoro.

Acontecera essencialmente a mesma coisa a Bethany, irmã de Isaiah, após o seu acidente de equitação. Isaiah não suportava homens que abandonavam as mulheres quando estas mais precisavam deles. Contudo, era assim que as coisas se passavam na maior parte das vezes. Alguns homens só amavam uma mulher enquanto fosse fácil amá-la.

— Ainda não é tarde para constituir família — disse-lhe ele. — A Laura ainda é nova.

— Tenho trinta e um, Isaiah.— É assim tão velha? — brincou ele.— Para mim não é a mesma coisa...Isaiah inclinou a cabeça para lhe ver a cara.— Não estou a perceber...Ela evitou o olhar dele, mexendo no casaco.— Talvez um dia eu encontre um homem que não se importe com a minha

afasia. Mas não me parece que o vá encontrar em breve. E não posso ter um bebé sozinha.

Isaiah sentiu um aperto no peito, e teve vontade de se bater por ser tão idiota. Uma mulher linda como Laura teria normalmente homens a fazerem fila para a levarem a sair, e ele acabara de presumir... Meu Deus! Às vezes ele era tão cabeça no ar! As regras gerais não se podiam aplicar a ela. Mesmo sendo tão bonita, só a fala dela afastaria muitos tipos. E Laura também tinha um monte de outros problemas.

— Nos dias de hoje, você não precisa necessariamente de um homem para ter um filho — lembrou-lhe ele.

— A minha preo-cupação não é engravidar. É o depois... Não poderia criar um filho sozinha.

Isaiah contornou cautelosamente a questão. Estivera no apartamento dela, e este não estava só impecavelmente limpo como era adorável. Ela era também uma cozinheira fantástica.

— Acho que a Laura daria uma mãe fabulosa.— Muito obrigada. Só gostava que tivesse razão. Mas há demasiadas coisas

que não consigo fazer.Tanto quanto Isaiah se conseguia aperceber, ela cumpria todos os re-

quisitos básicos.— Tais como?Ela riu-se.— Quer uma lista? — e depois, com um fungar autodepreciativo,

acrescentou — Esqueça o que eu disse. Fazer listas é uma das coisas que eu

não consigo fazer muito bem. Tenho dificul-dade em escrever — e fez um gesto de impotência com as mãos. — Muitas das coisas que as pessoas fazem sem pensar são difíceis para mim. Nem sequer consigo passar cheques.

— Então como é que paga as contas?— Levo-as ao banco e peço ao caixa para me passar ordens de pagamento

nas quantias certas. Depois vou aos locais pagar pessoalmente.Isaiah nunca imaginaria aquilo. Ele pagava as suas contas pela Internet com

cartão de crédito, e todas as quantias eram-lhe debitadas uma vez por mês.Como se adivinhasse os pensamentos dele, ela mostrou um sorriso e disse:— Não é assim tão mau. Limito-me a contornar as coisas. Quando vou

comprar comida, caminho devagar, cubro toda a loja e olho para as coisas com olhos de ver. A maior parte das vezes regresso a casa com todas as coisas de que preciso.

— E como é que paga?— A maior parte das vezes com cartão de débito, às vezes em dinheiro.

Limito-me a entregar o meu dinheiro à empregada e esperar que ela não me engane.

Isaiah soubera desde o primeiro momento que Laura tinha dificuldade em contar, mas nunca parara para pensar nas ramificações que isso tinha no que dizia respeito à vida quotidiana. Ela tinha de dar às pessoas o dinheiro e confiar que não a enganariam no troco?

Forçando-se a regressar ao assunto original, ele disse:— À parte isso, você desembaraça-se bem. Se consegue fazer isso para si,

porque não fazê-lo também para uma criança?Os olhos dela ensombraram-se quando olhou para ele.— Os miúdos precisam de ajuda para fazerem os trabalhos de casa. Eu não

a poderia dar. Adoecem e precisam de re-médios. Não consigo ler muito bem as etiquetas. Eles também querem que lhes leiam histórias para adormecerem, e eu levaria até à meia-noite para ler uma só.

Nunca até àquele momento Isaiah se apercebera ao ponto a que o acidente no rio alterara a vida de Laura. Todas as coisas que a maior parte das mulheres toma como certas podem nunca acontecer a ela — nenhuma carreira interessante, nenhum marido, nenhuns filhos, nenhuns netos. Ela adorava animais e nem sequer podia ter um animal de estimação porque vivia num pequeníssimo apartamento por cima da garagem de alguém.

— Não o faça — disse ela, com um erguer de queixo orgulhoso.— Não faço o quê?— Não sinta pena de mim. Detesto quando o fazem!— Não tenho pena de si. Só acho é que não é nada justo...— Estou satisfeita com o que tenho. Estou feliz. Tenho uma boa vida. Talvez

não seja aquela que eu ambicionara, mas é suficiente.Suficiente. Uma pessoa como Laura não devia ser levada a contentar-se.

Certo, ela era deficiente, e qualquer homem que casasse com ela teria de compensar as suas deficiências. Mas haveria decerto contrapartidas. Laura gostaria provavelmente de ser uma mãe caseira. O marido poderia ter de ler as histórias para adormecer as crianças, ajudá-las nos trabalhos de casa e gerir todas as finanças domésticas, mas em contrapartida nunca chegaria a casa depois de um duro dia de trabalho com a responsabilidade de tratar ainda de cinquenta por cento das tarefas domésticas. Havia muitos homens, número esse em que ele se incluía, que se sentiriam extremamente felizes por chegarem a casa todas as noites e terem uma refeição quente no fogão, com uma esposa linda como Laura para a servir.

A ideia fez Isaiah estacar. Alerta vermelho. Mas que raio estava ele a pensar? Lançou a Laura um olhar de soslaio, apanhando-a num perfil perfeito. Um tipo podia escolher pior, não havia dúvida. Mas ele não estava pronto a assentar. Só a ideia dava-lhe vontade de fugir.

Tinha ainda muitas outras coisas a fazer primeiro.No dia seguinte, Laura estava escalada para fazer o seu primeiro turno da

noite. Quando chegou à clínica, pouco antes das nove, ficou sentada no carro durante alguns minutos, com a luz do habitáculo acesa, repetindo sem cessar o número de código que iria, se introduzido correctamente, desarmar o sistema de alarme. Depois de qualquer porta do edifício ser aberta, tinha de ser introduzido um número de código de quatro dígitos no painel de comando no espaço de um minuto, para impedir que o alarme disparasse.

Para qualquer outra pessoa, isto seria uma tarefa bastante simples. Para Laura, não o era. O código, 6925, era para ela uma malvada combinação de números. Por vezes, ela via letras e números de cabeça para baixo, ou invertidos como uma imagem num espelho, tornando os seis, noves, dois e cincos muito traiçoeiros. Um seis invertido, por exemplo, parecia-se com um nove, e vice-versa. De um modo ligeiramente diferente, os dois e os cincos eram igualmente traiçoeiros.

Laura fora à clínica nessa tarde para praticar a introdução do código sob a supervisão de Val, e correra tudo bem. Mas isso não significava que não corresse mal quando ela tentasse introduzir o código sozinha.

Depois de respirar fundo para ganhar coragem, ela saiu do carro e dirigiu-se resolutamente para as traseiras do edifício. Sentiu o coração a bater-lhe com força no peito quando meteu a chave na fechadura. Por favor, meu Deus, não deixes que eu faça asneira. Para que pudesse conservar o emprego, ela tinha de ser capaz de activar e desactivar o sistema de alarme. De outra forma, só poderia trabalhar durante o dia, quando outras pessoas estivessem presentes. Isso não seria justo para os outros zeladores do canil. Durante uma semana em cada mês, cada um deles era obrigado a fazer o turno da noite.

Laura sentia a pulsação acelerada ao abrir a porta e entrar na sala das traseiras fracamente iluminada. Depressa, depressa. Um minuto só tem ses-senta segundos. Quantos desses segundos já teriam passado? Ela fechou e trancou a porta, tal como a Val lhe dissera para fazer. Depois, agarrando num papel com o código escrito nele, apressou-se a ir até à consola do alarme, um pequeno painel rectangular fixado na parede. Fica calma. Basta-te olhar com muito cuidado para cada número antes de o digitares.

Com um dedo a tremer, Laura introduziu o código e depois carregou no 1 para desarmar o sistema. Depois, ficou paralisada no lugar, como que à espera que as sirenes no exterior começassem a uivar. Em vez disso, a luzinha vermelha piscou e passou a verde, o que significava que o sistema tinha sido desarmado com sucesso. Ela fechou os olhos e vacilou de alívio. Obrigada, meu Deus. Introduzira correctamente o código. Agora, tudo o que tinha a fazer era voltar a ligar o alarme de modo a que nenhuma pessoa não autorizada pudesse entrar no edifício enquanto ela ali estivesse sozinha.

Com um cuidado extremo, Laura reintroduziu o código e depois pressionou no três, seguindo as instruções da Val. A luzinha verde piscou e voltou a ficar vermelha, tal como devia. Laura sorriu e quase que dançou de alegria. Ela conseguia fazer aquilo. Raios, sim, sem problemas.

Metendo a garrafa termo e o saco da refeição debaixo de um dos braços, Laura sacudiu uma manga do casaco para a despir enquanto avançava através do armazém em direcção à porta que abria para os canis. Dera talvez dez

passos quando o alarme disparou. O uivo estridente era tão alto que parecia ribombar contra as paredes e daí disparar directamente para os tímpanos de Laura. O barulho assustou-a tanto que quase se urinou nas calças. Oh, meu Deus. Horrorizada, largou as suas coisas no meio do chão, correu a abrir a porta e entrou nos canis. Ao correr pela coxia central, os cães assustados aumentavam a confusão, ladrando e uivando e esgravatando as portas das jaulas com as patas.

Até àquele momento, Laura não tinha noção da enorme dimensão da clínica. Estava sem fôlego quando entrou no vestíbulo da frente, que separava as salas de exame dos escritórios e gabinetes. No caso de o alarme disparar, a empresa de segurança deveria telefonar para a clínica antes de alertar a polícia. Laura nunca usara qualquer um dos telefones das salas das traseiras, e não sabia bem onde é que eles estavam. Precisava de estar no balcão da recepção para atender a chamada.

Acabava de chegar ao átrio quando a sirene se calou abruptamente. Quase de imediato, os telefones começaram a tocar. Laura contornou o balcão para pegar no auscultador.

— Está?Respondeu uma mulher.— Boa noite, fala da Harris Security. Como deve saber, o alarme da clínica

acaba de disparar.— Foi um aci-dente — disse Laura, ofegante. — Devo ter carregado no

número errado quando entrei.— Ah, estou a perceber — disse a mulher, rindo-se. — Não há problema.

Acontece de quando em vez. Tudo o que preciso é da palavra-chave.O cérebro de Laura teve uma branca. A palavra-chave. Oh, meu Deus.

Levou uma mão à cabeça e quase que chorou de desespero. Estivera tão preocupada em não se esquecer do código que não pensara em memorizar a palavra-chave. Tinha algo a ver com cães. O nome de uma determinada raça, se calhar. Só que não se conseguia lembrar de qual a raça. Caniche, cocker, aussie? Nenhuma destas parecia ser a certa. Que iria fazer?

— É uma raça de cão... — disse Laura, com a voz a tremer.— Sim, mas preciso mais do que isso — informou-a a mulher. — Se não me

conseguir dizer a palavra exacta, terei de chamar a polícia.Laura deu com o punho fechado na cabeça. Estúpida, estúpida, estúpida. A

palavra-chave, precisava da palavra-chave. Por favor, meu Deus. Mas o seu cérebro permanecia teimosamente vazio.

— Tenho lesões cerebrais... — explicou ela.Nesse preciso momento, ouviu um barulho de qualquer coisa a cair, vindo

de um dos gabinetes. Sobressaltou-se e olhou para trás, interrogando-se se estaria mais alguém no edifício.

— A gestora de pe-ssoal disse-me a palavra-chave — explicou ela. — Mas, quando me enervo, fico confusa...

— Desculpe — disse a mulher. — Mas o nosso regulamento é este. Preciso da palavra-chave.

Laura respirou fundo, tentando acalmar-se.— Não pode tele-fonar a um dos médicos? Vão-lhe dizer que está tudo

bem...— Não, desculpe.Isaiah acabara de comer e estava a deitar a travessa de plástico do jantar

no lixo, por baixo do lava-louças, quando tocou o telefone. Resmungou e pegou

no telefone que estava em cima do balcão antes que o atendedor de chamadas pudesse arrancar. Tal como era seu hábito, não disse «está».

— Fala Isaiah.— Doutor Coulter? — perguntou uma voz de homem.— O próprio — respondeu Isaiah. Pensando que era um cliente com uma

pergunta acerca de um animal, Isaiah agarrou na garrafa de cerveja que acabara de abrir e contornou o bar para se sentar enquanto falava. Depois de ter estado de pé durante todo o dia, as costas estavam-no a matar. — O que deseja?

— Fala o agente Radcliff, da polícia estadual do Oregon.Isaiah ajeitou-se num dos bancos do bar. O assento de verga rangeu ao

receber o peso dele. Nem sempre eram más notícias quando a polícia telefonava. Ainda na semana passada, a Associação de Xerifes do Estado do Oregon telefonara-lhe a pedir-lhe um donativo. Mesmo assim, o coração de Isaiah bateu um pouco mais depressa.

— Há algum problema?— É isso que estou a tentar perceber. Há poucos minutos, o alarme da sua

clínica disparou. A mulher que estava no interior do edifício não conseguiu dar à empresa de segurança a palavra-chave correcta, e por isso fomos notificados.

A tensão abrandou sobre os ombros de Isaiah. Olhou para o relógio e viu que passava pouco das nove. Veio-lhe à mente uma imagem da cara de Laura e sorriu ao de leve.

— Estou a ver...— Ela diz que trabalha para si; é uma senhora chamada Laura Townsend.— A menina Laura Townsend trabalha efectivamente para mim. E o primeiro

turno da noite que ela faz. Nunca teve de lidar com o sistema de alarme anteriormente.

— Foi o que ela disse. Bem, isso é bom; pelo menos não é um ladrão.— Não é de forma alguma. Ela tem autorização para trabalhar lá.— Segundo ela, o problema com o alarme pode voltar a acontecer. Ela diz

que sofre de uma deficiência qualquer que lhe faz ver as letras e os números ao contrário. Sendo esse o caso, será talvez melhor que o senhor a tenha a trabalhar durante o dia, de modo a que ela não tenha de mexer no alarme.

O polícia tinha razão.— Eu vou lá tratar do assunto — disse Isaiah. — Diga por favor à menina

Townsend que estarei lá dentro de meia hora.Depois de a polícia se ter ido embora, Laura decidiu trabalhar nos canis até

que Isaiah chegasse. O tempo passaria mais depressa se ela se mantivesse ocupada, pensou para si própria; e, dessa forma, quando outro empregado pegasse ao serviço no turno seguinte, ela não teria deixado um monte de trabalho para outra pessoa fazer.

Enquanto recolhia cobertores sujos, Laura lutou contra as lágrimas. Desde o início que acordara com Isaiah que ele a deixaria ir-se embora se ela não conseguisse fazer o trabalho. Parte das suas funções era assegurar um dos turnos da noite durante uma semana em cada mês, tal como faziam os outros zeladores do canil. Agora que se mostrara incapaz de preencher esse requisito, Isaiah não teria outra hipótese senão a de a despedir.

Esta constatação entristeceu Laura, por diversas razões. Este era mais do que um simples emprego para ela. Ia sentir falta de todos os amigos que fizera ali na clínica. E, oh, como iria sentir saudades de trabalhar com os animais! Era o seu nicho. Os outros zeladores de canil faziam apenas o que lhes era exigido,

e nada mais. Só Laura se dava ao trabalho de dar diariamente a cada gato e a cada cão um pouco de atenção extra. E porque não? Não tinha ninguém à sua espera em casa — nem filhos, nem marido, nem sequer namorado. Se quisesse deambular pelos canis depois de terminar o seu turno, era livre de o fazer — e fazia-o com frequência. Por isso, este emprego tornara-se em pouco tempo no centro da sua vida.

Suspeitava de que Isaiah sabia quanto ela gostava de trabalhar para ele. Ele iria provavelmente sentir-se muito mal ao despedi-la. Ao pensar nisso, Laura limpou as lágrimas que lhe corriam pela cara e endireitou os ombros. Era altura de afivelar uma cara alegre. Não queria estar de olhos vermelhos e inchados quando ele chegasse. Isso só o iria fazer sentir-se pior. Eles tinham feito um acordo e ela tencionava honrá-lo.

Estava a lavar as jaulas quando ele chegou. No momento em que o viu avançar pela coxia central, desligou a mangueira, pendurou-a através da rede e saiu para ir ao seu encontro. Ele vestia uma camisola azul escura que parecia que tinha sido lavada quase tantas vezes quanto as suas Wranglers desbotadas; contudo, conseguia ainda parecer maravilhoso.

— Olá... — foi tudo o que ela conseguiu dizer.Os olhos azuis dele brilharam de riso contido.— Parece que o seu primeiro turno da noite começou com alarido. Ou

deverei dizer com uma sirene?Forçando-se a sorrir, Laura arregaçou as mangas da sua camisola de malha

rosa.— Desculpe-me tê-lo feito vir aqui tão tarde. Estive hoje a praticar com a Val

a desligar o alarme e pensava que o conseguia fazer.Ele enfiou a ponta dos dedos nos bolsos da frente das suas jeans.— Mas qual é exactamente o problema? Talvez a gente lhe consiga dar a

volta.— Eu gostava. Mas não creio que possamos — disse Laura, com um aperto

na garganta. — Os números e as letras são difíceis para mim. Os seis parecem-me por vezes noves. Os dois parecem cincos. — Ela encolheu os ombros e tentou rir-se. — Agora sabe porque é que eu não passo cheques.

Os olhos dele ensombraram-se de preocupação.— Não é grave, sabe. Praticamente toda a gente faz disparar o alarme de

vez em quando. Vamos pensar numa forma de...— Vou-me embora — atalhou Laura, interrompendo-o a meio da frase.Um silêncio tenso caiu entre os dois. Até os cães pareceram sentir a tensão

e pararam de ganir. Isaiah levantou lentamente uma mão.— Eh lá!— Foi o que combi-námos — lembrou-lhe ela. — Eu nunca quereria o

trabalho senão o conseguisse fazer. — Encolheu os ombros como se fosse um caso de somenos importância. — Não consigo, e assim é ponto final.

— Não está a ser um pouco precipitada?— Não pode confiar em mim para mexer no alarme, Isaiah. Isso quer dizer

que eu não posso trabalhar à noite. Todos os zeladores de canil têm de fazer turnos à noite. Faz parte do contrato. Eu não quero tratamento especial.

— Não lhe estou a propor tratamento especial. Acho apenas que podemos contornar o problema.

Ela ergueu as mãos num gesto derrotista.— Eu revi o código vezes sem conta. Não é uma questão de eu precisar de

mais tempo. Vejo por vezes mal os números, e não há prática que corrija isso.— E como é você com os oitos?

— Oitos? — repetiu ela, espantada.— Sim, oitos — reafirmou ele, traçando um no ar. — Ao contrário, invertidos

ou deitados, parecem sempre da mesma maneira.Isso era verdade, mas Laura não conseguia ver a relação.— O que é que os oitos têm a ver com isto?Ele sorriu e piscou os olhos.— Uma característica simpática do nosso sistema de alarme é permitir

vários níveis de acesso. Basta eu premir alguns botões para lhe atribuir o seu próprio código de acesso. O que acha de quatro oitos?

Laura mal conseguia acreditar no que estava a ouvir.— Tudo oitos? Pode fazer isso?— Se os oitos são fáceis para si, não só posso como vou fazê-lo.Laura estivera tão certa de que teria de abandonar o emprego que a su-

gestão abalara-a por completo. Assomaram-lhe de novo lágrimas aos olhos, e pouco podia fazer para impedir que o queixo lhe tremesse.

— Isso seria óptimo — disse ela. — Mas e quanto à palavra-chave? Eu também não me conseguia lembrar dela. Logo após a polícia ter saído, acalmei um pouco e lembrei-me dela. Mas juro que não me conseguia lembrar dela quando telefonou a pessoa do alarme.

— Há alguma palavra que ache que se possa lembrar? — perguntou ele. — Uma que lhe venha sempre à mente quando fica enervada e não consegue pensar com clareza?

Laura não precisava de pensar muito para responder àquela pergunta:— Estúpida.— Ah, querida — disse Isaiah. Antes de ela poder adivinhar o que ele se

propunha a fazer, ele passou-lhe uma mão sobre o ombro e chegou-a para ele. — Não é nada estúpida. Nem sequer deve pensar nisso.

A respiração de Isaiah agitou as madeixas de cabelo nas têmporas dela. Por um breve instante, Laura deixou-se abandonar no aconchego do braço dele. Ah. Ela deixou que os seus olhos se fechassem. Sentia-o tão grande, forte e sólido! Ele pousou-lhe uma mão no cabelo, o seu toque tão leve e imaterial que bem podia ter sido um suspiro.

— Não se diminua — ralhou-lhe ele ternamente, com os lábios a aflorarem-lhe o cabelo. — A Laura é uma engenheira do ambiente, pelo amor de Deus.

— Fui. Passado.— Mesmo assim, isso significa que teve cabeça para conseguir uma li-

cenciatura. A afasia não afecta a inteligência — contrapôs ele, passando-lhe uma grande mão acariciante pelas costas. — É tão inteligente agora como o era então.

A camisola dele roçou pela cara dela. O cheiro dele — uma mistura maravilhosa de almiscarado masculino, aftershave e vestígios fugazes de sa-bão — encheu-lhe os sentidos. A coluna vertebral de Laura perdeu toda a rigidez. Isaiah. Oh, como ela desejava abandonar-se de encontro a ele. Mas aquelas campainhas de alarme estavam já a repicar de novo. Este homem podia ter qualquer mulher que desejasse. Ela era louca por desejar coisas que nunca iriam acontecer.

Apoiando o cutelo das mãos contra o peito largo de Isaiah, Laura tentou afastar-se dele, mas acabou por esbarrar contra o círculo formado pelo seu braço. Assomou-lhe calor ao rosto quando os seus olhos se encontraram. O olhar dele sondava o dela, interrogativamente — e talvez sonhadoramente. A sua boca firme, refulgente como seda polida à luz fluorescente, resvalou para um sorriso descentrado. Por um instante apenas, ela pensou que ele a fosse

beijar, e teve a certeza de que o seu coração pararia de bater se ele o fizesse. Em vez disso, Isaiah enleou as mãos sobre os ombros dela e, suavemente, afastou-a dele.

Recuando um passo, Isaiah disse:— Apesar de me revoltar as entranhas, acho que «estúpida» pode funcionar

como palavra-chave. Vou telefonar à empresa de segurança e pedir-lhes para a colocarem no nosso ficheiro como palavra-chave alternativa.

— Eles farão isso?— Claro. Desde que não nos despistemos, eles estão-se nas tintas para o

número de palavras-chave que tivermos. Muitas empresas têm mais do que uma. Algumas pessoas não se conseguem lembrar de uma palavra-chave se esta não tiver um significado especial para elas.

Laura acompanhou-o desde o canil até ao armazém e ficou a observa lo enquanto ele programava o sistema de modo a que este aceitasse o código de utilizador dela. Depois de rever com ela várias vezes os diversos passos, Isaiah dirigiu-se à recepção para telefonar à empresa de segurança. Com um desejo tão intenso que roçava a dor, Laura seguiu-o com o olhar.

Estúpida. Naquele momento, mais do que nunca, ela teve a certeza de que a palavra assentava-lhe que nem uma luva. Estava a apaixonar-se por Isaiah Coulter. Se isso não fosse estupidez, não sabia o que seria.

Depois de fazer apenas dois turnos nocturnos, Laura deu por si a contar as horas que faltavam para poder regressar aos turnos diurnos. Não era para admirar que os zeladores de canil detestassem trabalhar nos turnos tia noite. Estar sozinho num edifício tão grande como aquele seria já de si assustador em plena luz do dia, mas era absolutamente sinistro à noite. As salas, que nunca pareciam tão grandes durante o dia, tinham um aspecto cavernoso sem pessoas nelas. Os corredores escuros e os recantos sombrios causavam arrepios a Laura. Até o som de uma porta a fechar-se atrás dela parecia ensurdecedor.

Ela nunca tivera medo do escuro ou receara a solidão, mas trabalhar sozinha durante o terceiro turno era suficiente para fazer disparar até a sua imaginação. Por diversas vezes, durante a noite, deu por si a olhar por cima do ombro, incapaz de afastar a impressão de que estava alguém a observá-la. A determinadas alturas, poderia jurar que ouvira movimento noutras partes do edifício — o sussurro furtivo de passos ou o clique abafado de uma porta a fechar-se.

Ela poderia não se ter sentido tão pouco à vontade se ao menos os cães estivessem acordados para lhe fazerem companhia, mas até os seus relógios internos pareciam estar regulados para o período diurno. Eles mal se mexiam quando ela entrava nas suas jaulas para recolher as cobertas sujas e lavar-lhes os pratos. Sentia falta do toque deles, a solicitarem carícias e arranhadelas, do ladrar excitado quando ela avançava pela coxia central e da sensação de utilidade que ela tinha sempre que interagia com eles.

Também sentia falta da camaradagem dos seus colegas de trabalho. À noite, ela não podia aguardar ansiosamente pelas pausas para o café com a Lena, a Jeri e a Tina. A Sally não estava ali para a fazer rir com as suas ane-dotas. O James nunca se esgueirava até aos canis para dar uma guloseima aos cães. Em suma, o turno da noite era uma perfeita estopada.

O tédio nas horas mortas da madrugada fazia com que cada minuto parecesse uma pequena eternidade. Por volta da meia-noite Laura tinha já a vista turva e sentia-se exausta e com uma vontade doida de ir para casa. As últimas duas horas do turno pareciam nunca mais acabar.

Nessa quarta-feira, Laura sentiu tantas saudades de toda a gente da clínica que decidiu ir até lá para lhes fazer uma visita. Depois de ter dormido até tarde nessa manhã, tomou um duche rápido, vestiu uns trapos velhos, meteu num pacote um punhado de bolachas congeladas que sobraram do Halloween, pegou no carro e foi até ao seu local de trabalho. Antes de sair do automóvel, permitiu-se dar uma olhada ao seu aspecto no espelho retrovisor. Não pusera maquilhagem, reparava agora, e quase que meteu a mão na mala em busca de um batom. Mas não. Isaiah teria já acabado as suas visitas domiciliárias aos ranchos, e ela iria decerto encontrá-lo, mas isso não implicava que ela se produzisse. Eles eram amigos, e nada mais. Ela tinha de ter isso sempre presente na cabeça.

As mulheres na recepção ficaram encantadas quando viram que Laura lhes trouxera guloseimas.

— Oh, que bom! — exclamou Jennifer. Com o cabelo apanhado no topo da cabeça com um gancho verde a condizer com as lentes de contacto coloridas, a ruiva levantou-se de um salto da cadeira. — Acho que te deviam pôr a tempo inteiro no horário diurno. Ninguém mais traz coisas boas para os colegas.

Por mais que Laura adorasse poder trabalhar só durante os turnos diurnos, sabia que isso seria injusto para com os outros zeladores de canil.

— Bolachas de açúcar? — exclamou Debbie, normalmente calma e reservada, sorrindo maliciosamente e agarrando numa bolacha antes que Jennifer a pudesse bater na tiragem. — Mmm... e têm cobertura! Obrigada, Laura.

Tucker e a sua equipa ficaram igualmente satisfeitos por receberem as bolachas. Tucker acabava de terminar uma operação e estava a vasculhar o frigorífico da ala norte à procura de qualquer coisa para comer quando Laura apareceu. Os seus olhos azuis, muito semelhantes aos de Isaiah, brilharam de interesse quando viram os pacotes nas mãos dela.

— Comida?Laura riu-se. Ao contrário de Isaiah, Tucker nunca se esquecia de comer.— Apenas umas bolachas que sobraram do Hallo-ween — disse ela,

estendendo-lhe um pacote. — Prove.Ele já tinha dado uma dentada numa bolacha e estava a mastigá-la quando

disse:— O que é que está a fazer aqui? Esta semana trabalha nos turnos da

noite...— Decidi fazer uma visita.— Teve mais problemas com o alarme?— Não, graças a Deus!— Isso é bom — disse ele. Olhou para a bolacha meia comida que tinha na

mão. — Uau! Estas são mesmo boas! Falhou a sua vocação, Laura. Deveria abrir uma pastelaria.

— É uma ideia...— Falando de vocações... — continuou ele, erguendo um dedo para a

impedir de se ir embora. — Tenho de falar consigo acerca de uma coisa. Na noite de segunda-feira a Laura baralhou um pouco as coisas ao alimentar os cães. Não teria importância se o golden retriever do canil quatro não estivesse com uma dieta especial. Ao comer a comida errada, ficou um bocado mal.

Laura conhecia o cão. Uma visita ao caixote do lixo de um vizinho deixara-o com problemas gástricos e intestinais agudos, necessitando de alimentação intravenosa nas primeiras vinte e quatro horas e hospitalização temporária. O animal tinha um problema crónico de hipotiroidismo que exigia medicação

apropriada e uma dieta leve, sem gorduras, para o manter sob controlo. Iria regressar em breve a casa.

— Eu dei-lhe a comida errada? — repetiu ela, incrédula.Tucker encolheu os ombros.— Era a primeira vez que você trabalhava de noite sozinha, e, com o alarme

a disparar e tudo o resto, sei que foi um turno difícil. Felizmente, a Susan deu pelo erro quando cá chegou às seis, e assim a trapalhada foi corrigida antes que tivesse ocorrido grande estrago. Só que... — interrompeu-se ele, sorrindo benevolamente. — A noite passada, a Laura fez tudo na perfeição. Estou certo que o continuará a fazer daqui para a frente. Só lhe peço é que não se volte a descuidar tanto. Está bem? Outros erros poderão não ser tão fáceis de corrigir.

Laura sentiu como se o seu estômago lhe caísse aos pés. Não conseguia acreditar que tivesse trocado as jaulas. Era sempre tão cuidadosa! Uma pessoa como ela tinha de o ser. Sendo esse o caso, como é que ela trocara a comida?

— Desculpe... — disse ela, com a voz sumida. — Não voltará a acontecer...Tucker acenou com a cabeça em concordância.— Isso. — O seu sorriso esfumou-se. — Porque não podemos permitir que

volte a acontecer. Está a perceber?Laura engoliu em seco e disse que sim com a cabeça. Da forma mais

simpática que podia, Tucker estava-lhe a dizer que ela seria despedida da próxima vez que tal acontecesse.

Laura ia de sobrolho franzido quando atravessou o curto corredor que levava ao bloco cirúrgico de Isaiah. Um segundo depois, quando entrou na grande sala e viu todas as caras familiares, foi como se tivesse regressado a casa após uma longa ausência.

Trish, de pé junto ao lavatório a lavar as mãos, começou a uivar como uma sirene logo que viu Laura. Descartando a sensação de desgraça eminente causada pela reprimenda de Tucker, Laura riu-se e revirou os olhos.

— Então já ouviste falar nisso...Trish teve um sorriso rasgado.— Quando vim para cá pela primeira vez, também fiz disparar o alarme. É

uma tradição aqui da clínica, uma espécie de ritual de iniciação, se quiseres. — Acabando de secar as mãos, ela voltou-se para encarar Laura. — E o que te traz aqui tão cedo?

— Tenho saudades dos meus bebés... — confessou Laura. — Os mal-cheirosos dormem a noite toda. Gostaria de passar um pouco de tempo com eles enquanto têm os olhos abertos.

— Ah.— Olá, Laura! — cumprimentou Belinda, fechando a porta de um armário e

sorrindo por cima do ombro. — Sentimos a tua falta. O iogurte já se foi todo e estamos reduzidos a um único tipo de refrigerante, as sanduíches também acabaram e a sopa está no fim.

Laura sorriu e ergueu o último pacote de bolachas.— Rações de emer-gência!— Ooh! — exclamou Belinda, agarrando no pacote; abriu o selo e cravou os

dentes numa bolacha de açúcar com cobertura de laranja. — Molinhos! Adoro-os assim!

— Não os comas todos — disse Trish, atirando o toalhete de papel para o lixo. — Eu também quero a minha parte.

Isaiah e Angela estavam de pé junto a uma mesa de operações no extremo oposto do bloco. Um lençol tapava o paciente, fazendo com que Laura não

conseguisse identificar que tipo de animal estava a ser operado. Ela acenou-lhes e dirigiu-se para a porta que dava para os canis.

— Laura! — chamou Isaiah.Ela voltou-se para olhar interrogativamente para ele.— Sim?Os olhos azuis dele estavam inusitadamente solenes por cima da máscara

cirúrgica que lhe cobria a metade inferior da sua face morena.— Viu o Tucker?Laura acenou com a cabeça.— Sim, mesmo agora. — Aquela sensação horrível de afundamento atacou-

lhe de novo o estômago. — Falámos.Isaiah sorriu, parecendo aliviado. O piscar de olhos familiar voltava-lhe

lentamente.— Polícia bom e polícia mau. Revezamo-nos. Só espero que ele não tenha

sido muito duro consigo.Caiu um silêncio na sala. Belinda e Trish ficaram inexplicavelmente

atarefadas. As faces de Laura tornaram-se rubras de vergonha. Por um mo-mento, ficou magoada com a falta de tacto de Isaiah. Ela pode ter feito asneira, mas ao menos ele podia discutir o assunto em privado.

Antes que a fúria criasse raízes, o sentido de justiça de Laura cortou-lhe o caminho. Não havia segredos na clínica. Decerto que todos naquela sala já sabiam da trapalhada que ela fizera com a comida dos cães.

— Não — respondeu ela. — O Tucker foi muito simpático. E peço desculpa por ter feito um erro.

— Dois erros — atalhou Belinda, embora sorrisse para suavizar o co-mentário. — Baralhaste os canis três e quatro, por isso houve dois cães que receberam a comida errada, e não apenas um. É por isso que aqui somos sempre tão cuidadosos. Pode acontecer a qualquer um.

Não, não a qualquer um, pensou Laura com amargura, só a uma atrasada mental como eu. Ainda lhe era difícil acreditar que trocara as jaulas, mas, se dois dos cães receberam a comida errada, não havia outra explicação. Lera mal os números do código nessa noite. O fiasco do alarme era testemunho disso. Contudo, não costumava confundir os três com os quatros. Não se pareciam nada uns com os outros, por mais que os rodássemos ou voltássemos ao contrário.

— Eu vou ter mais cuidado daqui para a frente — prometeu Laura. Olhou apreensivamente para Isaiah, cujos olhos ficaram de novo solenes. — Verdade — assegurou-lhe ela. — Não volta a acontecer.

Laura entrou nos canis. Quase de imediato, os cães começaram a latir de alegria. Inspirou profundamente, exalou devagar e abandonou-se ao prazer dos focinhos húmidos que a procuravam para lhe tocar, ao hálito canino. Ao deslocar-se de uma jaula para a seguinte, chegando finalmente ao canil três, olhou fixamente para os números, enormes, gordos, pintados a negro bem alto na parede de trás das baias de blocos de cimento. Ela tinha uma dificuldade extrema em ler correctamente alguns desses números, mas um três não fazia parte deles.

Uma hora depois, quando chegou a altura de Laura se ir embora, voltou a entrar no bloco operatório para ir buscar o casaco e a carteira. Belinda acabava de tirar um grande gato angorá de uma jaula, pegando-lhe pelo cachaço. Era evidente que o felino não gostou da forma como Belinda lhe pegou, pois começou de imediato a bufar e a agitar as patas no ar.

— Apanhei um bem vivaço! — exclamou Belinda.

— Trá-lo cá — disse-lhe Isaiah.Belinda apressou-se a colocar o gato na mesa de aço inoxidável. Mal as

patas do felino tocaram na superfície metálica, ele começou a lutar desespe-radamente para se tentar libertar, contorcendo-se, arranhando, uivando e fazendo tudo para morder. Assustada com a ferocidade do animal, Belinda largou-o e deu um salto para trás. Só a reacção pronta de Isaiah impediu que o gato saltasse da mesa. Lançou-lhe uma mão, voltou a agarrar o angorá pelo cachaço e ergueu-o bem alto no ar.

— Ó rapazinho — disse ele, tentando acalmá-lo. — Vamos ser amigos, está bem?

Na opinião de Laura, Belinda foi responsável pelo comportamento do gato. O pobrezinho estava num ambiente que lhe era estranho. Também fora fechado numa jaula, o que provavelmente era uma coisa a que não estava habituado. Depois, para piorar as coisas, a técnica não fizera qualquer esforço para acalmar o animal antes de lhe pegar.

Bufando e cuspindo, o felino tentou dar uma patada na cara de Isaiah. Este atirou a cabeça para trás mesmo a tempo.

— Ele já foi desunhado? — perguntou a Belinda.— É a primeira vez que ele cá vem, e ainda não temos a ficha dele —

respondeu Belinda, agarrando numa das patas da frente do gato. Pressionou um polegar contra as costas dos dedos do animal e disse: — Sim, parece-me que ele já não tem unhas.

— Preciso de um açaime — gritou Isaiah por cima do ombro para Trish. Para o gato, disse: — Olha, Abracinhos, podemos fazer isto a bem ou a mal. A escolha é tua.

Rhhaa! Foi a resposta do Abracinhos, rapidamente seguida de patadas maldosas mas fúteis contra a cara e o peito de Isaiah.

— O dono dele estava pedrado ou quê? — perguntou James do outro lado da sala. — Abracinhos não é um bom nome para ele. Que tal Exterminador?

Laura sorriu e aproximou-se da mesa. A bata azul de Belinda estava coberta com tanto pêlo branco que Laura ficou surpreendida por o Abracinhos ainda ter algum no corpo anafado. Antes de Isaiah conseguir adivinhar o que Laura se preparava para fazer, ela enroscou as mãos em redor do ventre do felino, puxou-o delicadamente para o soltar do aperto de Isaiah e encostou o gato aterrorizado contra o peito.

— Pobrezinho! — arrulhou ela.O Abracinhos rosnou e bufou, tentou inutilmente trepar para o ombro de

Laura para fugir e depois desistiu da luta.— Chh-hh — acalmou-o Laura, afagando-lhe o pêlo ao de leve. — Um

gatinho tão bonito. Sim, és mesmo bonito. Está tudo bem... — Respondendo ao tom suave dela, Abracinhos parou de se debater. — Pronto, estás a ver? — sussurrou-lhe ela. — Ninguém te vai fazer mal.

Sacudindo pêlo da sua camisa verde, Isaiah abanou a cabeça.— Isto é espantoso! Não acredito que ele não a esteja a morder.O gato encostou-se ao peito de Laura e meteu o focinho por baixo da gola

dela.— Ele está assustado — explicou ela. — Não podem tirá-lo assim da jaula e

come-çarem-lhe a fazer maldades. Alguém tem de o segurar primeiro durante um boca-dinho.

Belinda bufou.— Ao contrário de certas pessoas, eu tenho um horário a cumprir.Isaiah ergueu uma mão.

— Não, Belinda, ela tem razão — disse ele, estendendo a mão e tocando com a ponta de um dedo na cabeça do gato. — Não sou muito amigo de gatos, tenho de o confessar. — Também ele começou a afagar o pêlo do animal. — Mas trato montes deles. Tenho de desenvolver uma melhor relação com os bichanos.

— Ele é um querido... — disse Laura, esfregando o queixo contra a pelagem macia do gato. — Já percebi porque é que lhe chamaram Abracinhos. Ele é muito meigo quando não está assustado.

Isaiah deu uma risadinha.— De qualquer modo, ele está consigo.Laura mudou o grande gato de posição para o segurar com mais facilidade.

O Abracinhos começou a ronronar, o que fez Isaiah sorrir.— O que se passa com ele? — perguntou Laura.— Qualquer coisa que não está bem com o ouvido — disse Isaiah. — Até

aqui, não me consegui aproximar o suficiente para ver qual é o problema.Laura continuou a fazer festas ao gato e virou-o de modo a que Isaiah

pudesse ver um dos lados da cabeça do animal.— Agora pode ver...— Vá lá! — disse Belinda, impaciente. — Ele pode-se assanhar a qualquer

momento! É óbvio que tu nunca lidaste com gatos nem foste mordida por nenhum. Prefiro conservar os meus dedos todos, mas, se não pensas assim, é lá contigo.

Trish chegou nesse momento com o açaime para o gato, uma engenhoca de aspecto horrendo que apanhava todo o focinho do felino e era preso com correias cruzadas por detrás da cabeça do bicho. Laura não conseguia perceber como é que um gato podia sequer respirar com uma coisa daquelas. Olhou implorativamente para Isaiah.

— Eu seguro-o enquanto você olha — ofereceu-se ela. — Se tivermos cuidado em não o assustarmos, não creio que ele vá morder.

Isaiah semicerrou os olhos ao olhar para ela, ao mesmo tempo que tirava do bolso uma caneta-lanterna. Debruçando-se até ficar perto do gato, ele espreitou para dentro do ouvido. Laura virou com cuidado a cabeça do Abracinhos, de modo a que Isaiah pudesse observar melhor.

— E uma espiga de erva... — murmurou ele.— Oh-oh — comentou Belinda, dando a volta para ver. — Está muito

enterrada?Laura sabia por experiência própria como as espigas podiam ser traiçoeiras.

Com a forma de flechas, crescem na porta de longos caules herbáceos, ficando amarelo-acastanhadas quando secam durante o Verão. As espigas desprendem-se da planta ao menor toque ou lufada de vento e agarram-se às roupas e ao pêlo dos animais. Uma vez presas, a sua forma e a ponta aguçada permitem-lhes enterrarem-se. Os animais apanham-nas com frequência nas patas, orelhas, bocas e olhos. Muitos cavalos da zona usavam protecções de olhos enquanto andavam a pastar para os proteger das espigas.

— Nem por isso — respondeu Isaiah.— Ela trouxe-o logo que ele começou a abanar a cabeça — atalhou Trish.— Foi bom — retorquiu Isaiah. — A sacaninha só se iria enterrar mais.— Deve ser de um campo perto da casa — observou Belinda.Isaiah foi buscar umas pinças compridas. Quando voltou, um momento

depois, olhou Laura de esguelha.— Se o conseguir manter quieto, creio que poderei tirá-la com bastante

facilidade...

Laura acenou com a cabeça, e em breve acabava a tortura do Abracinhos. Laura ficou com o gato ao colo durante mais um bocado, antes de o voltar a pôr na jaula. Por detrás dela, ouviu Isaiah dar ordens para os cuidados continuados a dar ao bichano. Quando Laura se voltou, viu que Trish estava a tomar notas enquanto Isaiah lavava as mãos. Laura foi buscar a carteira. No momento em que passava a alça pelo ombro, Isaiah olhou em volta.

— Tem a certeza de que quer ser uma zeladora de canil? Os seus talentos estão a ser desperdiçados lá atrás...

— Nem mais — secundou Trish. — Davas uma técnica assistente fabulosa.— Oh, não — disse Laura, abanando a cabeça com veemência. — Não estou

talhada para isso. Lem-bram-se de mim, a mulher que baralhou a comida de cão?

Com a lembrança, o sorriso encorajador de Isaiah desvaneceu-se e os olhos ensombraram-se-lhe. Não disse nada, mas as palavras não eram necessárias. Esquecera-se claramente por um momento de que Laura fora admoestada. Mais um erro e seria despedida.

Capítulo Sete

— Que imagem queres que escolha? — perguntou Etta Parks.Espreitando por cima do ombro da sua avó, Laura semicerrou os olhos para

ver o pequeno ecrã do telemóvel. Batera à porta de Etta nessa manhã para que ela lhe programasse o número da clínica no móvel.

— Um cão ou um gato seria giro...Etta puxou um trago do seu cigarro Winston e expirou uma baforada de

fumo, a qual flutuou até à cara de Laura.— Usaste o cão para a Sra. Kessler e o gato para os Segais. Tens um balão

de festa, um copo de vinho... — Etta rolou o ecrã para ver mais opções — um livro, um bolo, uma impressora, um carro e uma chávena de café. Não há mais animais para escolher.

Por Laura ter tanta dificuldade em ler números e letras, comprara um telemóvel com símbolos que podiam ser atribuídos a pessoas a quem ela telefonasse com frequência. Assim, podia percorrer rapidamente a lista de contactos, reconhecer os nomes das pessoas pelas imagens que lhes estavam associadas e fazer telefonemas sem ter sempre de digitar os números.

— Escolhe o bolo. Isso dá.— O bolo? Para uma clínica veterinária?Laura confirmou.— Estou-lhes sempre a levar comida.— Seja então um bolo. — Com o cabelo prateado que lhe dava pelos ombros

apanhado por uma bandelete púrpura a condizer com a camisola berrantemente decorada, Etta dedicou-se a programar o telefone. — Que tipo de comida levas para lá?

— Muita coisa. Em casa estou sempre a fazer demasiada, e o meu con-gela-dor está a ficar cheio. O Isaiah esquece-se de comer, a não ser que tenha qualquer coisa à mão, e por isso posso livrar-me do que tenho a mais e alimentá-lo ao mesmo tempo.

— A cuidar dele, é? — sorriu Etta. — Parece-me muito íntimo.— Somos só amigos — respondeu Laura, pensando, enquanto falava, que

aquelas palavras se haviam tornado no seu mantra.Enquanto a sua avó pressionava os botões do telefone e resmungava

baixinho contra aquelas invenções modernas, Laura foi buscar uma bebida. Com as ancas encostadas aos armários, passeou o olhar pela cozinha familiar enquanto bebia lentamente pequenos golos de água. Aquela cozinha era para ela um aposento muito querido. Em criança, sentara-se muitas vezes à mesa oblonga com o avô Jim, partilhando um pequeno-almoço ainda o dia não despontara, antes de saírem para irem pescar para o lago. Ela também passara

muitos serões de verão naquela cozinha com a avó, a prepararem e a guardarem hortaliças colhidas na horta. Aquilo dava imenso trabalho, mas a avó sempre conseguira fazê-lo parecer divertido. A recordar-se desses dias, Laura como que desejou ser de novo criança.

Com o passar dos anos, a cozinha sofreu muitas transformações — novos apetrechos, diversos esquemas de cores — mas mantivera-se essencialmente na mesma. A janela do recanto de pequenos-almoços ostentava agora cortinas de Priscilla verde-lima a condizerem com os flocos de um verde mais escuro que salpicavam os novos balcões de fórmica e o padrão rodopiante da alcatifa de interior/exterior que a sua avó instalara recentemente de modo a não ter mais de usar a esfregona. Uma máquina de café Mr. Coffee castanha-escura assentava à esquerda do lava-loiças de aço inoxidável, com o seu bule meio cheio a desprender o rico aroma de café acabado de fazer. A porta do frigorífico estava tão coberta de bugigangas que mal se via a sua superfície branca. Muitos dos ímanes ostentavam dizeres que Laura tinha agora dificuldade em ler, mas estavam ali há tanto tempo que ela memorizara a maior parte deles.

Fala em dieta e morres. Deus abençoe esta casa. Não sou uma simples boa cozinheira; sou uma estupenda cozinheira. Laura sorriu quando o seu olhar recaiu sobre o seu íman preferido, que ela dera de presente à avó há alguns anos. Eu e tu, e tu e eu, é assim e sempre será. Oh, como aquilo era verdade! Passados todos esses anos, ali estava ela, de pé na cozinha da avó, um dos lugares onde mais gostava de estar.

— Está quase... — disse a avó.Ao olhar para ela, Laura sorriu para si própria. Mesmo aos setenta e seis

anos, Etta era uma mulher linda, esbelta, de feições delicadas. Muita gente afirmava que Laura se parecia com ela, mas Laura nunca vira a parecença. A tez das duas era semelhante, mas não ia além disso.

O telemóvel começou de repente a tocar nas mãos artríticas de Etta.— Meu Deus! — exclamou ela, sobressaltando-se tanto que quase deixava

cair o aparelho. — Detesto estas geringonças!Laura riu-se enquanto atravessava o aposento. Pegando no aparelho,

carregou no pequeno símbolo de um telefone verde para atender a chamada.— Está?— Viva, Laura — respondeu uma profunda voz masculina. — Fala Isaiah.O coração dela começou a bater um pouco mais depressa.— Olá...Longo silêncio. Depois, ele disse:— Esta manhã houve aqui um problemazito. Cheguei agora mesmo das

minhas visitas domiciliárias aos ranchos e acabaram de me contar. Acho que precisamos de falar. Pode vir até cá hoje para falar comigo?

O sorriso de Laura desvaneceu-se. A voz de Isaiah estava tensa, quase sombria.

— Claro. Que tipo de problema? Troquei outra vez a comida? — Laura franziu o sobrolho ao fazer a pergunta, pois fora ultracuidadosa na noite anterior, verificando e tornando a verificar o seu trabalho a cada uma das vezes. — Não acredito que tenha feito um erro.

— Falaremos nisso quando chegar cá.Laura estava a começar a ter uma premonição muito má. Isaiah também

parecia distante.

— Muito bem. A que horas lhe dá jeito?Outro silêncio.— Venha quando puder. Vou ficar por cá durante o resto do dia.Depois de terminar a chamada, Isaiah recostou-se na cadeira da sua

secretária e esfregou os olhos. Tucker, sentado a um canto da secretária, emitiu um suspiro audível, brincou com o agrafador durante um momento e depois disse:

— Temos de a mandar embora, Isaiah. É quase um milagre que o cão não tenha morrido.

Um brutal aperto emocional estrangulou a garganta de Isaiah.— Ela é tão cuidadosa, Tucker. Não posso acreditar que tenha deixado a

porta do canil destrancada.Tucker soltou um valente palavrão por entre dentes cerrados.— Raios, Isaiah, não vás por aí. Ela foi a única pessoa a estar cá ontem à

noite. Quem mais poderia ter feito isso?Isaiah não tinha qualquer explicação racional para o facto. Apenas sabia

que Laura era meticulosa naquilo que fazia.— Muito bem — argumentou ele. — Apenas por mera hipótese, vamos

admitir que ela deixou a porta aberta. Pode acontecer a qualquer um. Porque é que não nos limitamos a chamar-lhe a atenção e encerramos assim o assunto? Parece-me muito duro despedi-la por um erro que ela pode nunca mais cometer...

Tucker ergueu as mãos. Os seus olhos azuis chispavam de fúria.— Não viste o estado em que estava o cão! Havia tanto sangue que o canil

parecia um campo de batalha. Ele podia ter morrido, Isaiah. É um cão muito caro. Os donos poderiam ter-nos processado. Deixar uma porta de um canil destrancada não é um errozinho.

Isaiah concordou.— Eu estou ciente da gravidade, Tucker. Mas não me estás a compreender.

A Laura é simplesmente fabulosa com os animais. Penso que deveríamos trabalhar com ela e dar-lhe outra oportunidade.

— Quantas mais oportunidades? — perguntou Tucker, levantando-se. — Somos financeiramente responsáveis pelas broncas dela. — A cada palavra, ele falava mais alto. — Não nos podemos limitar a dar-lhe uma palmadinha na mão e arriscarmo-nos a que ela repita a asneira! Isso não faz sentido!

Isaiah ergueu-se da cadeira. Com os punhos apoiados na secretária, inclinou-se para a frente para olhar o irmão nos olhos.

— Fui eu quem decidiu contratá-la. Penso que devo ser eu a decidir quando a devo despedir. Já trabalhei com a rapariga. Conheço-a muito melhor do que tu.

— É isso que me preocupa. Estás caído por ela, ou coisa parecida?— Não, claro que não.— Então porquê esta relutância em nos protegermos? Usa a cabeça, mano,

e não me estou a referir à que está atrás da tua braguilha!— Que raio queres dizer com isso?— Ela é uma mulher atraente.— Temos várias mulheres atraentes a trabalhar aqui — fez notar Isaiah. —

Oponho-me a que se despeça qualquer uma delas se sentir que ela não o merece.

Tucker respirou fundo para se acalmar, meteu os dedos no cabelo para o alisar e ficou a olhar para o chão. Ao observá-lo, Isaiah teve de se interrogar se ele próprio seria também tão intimidante quando se irritava. Os músculos que

traçavam os ombros de Tucker estavam tensos, o seu queixo tremia e as suas grandes mãos cerravam os punhos de cada vez que ele baixava os braços.

— Muito bem — acedeu ele por fim, num tom que transmitia um pro fundo desagrado. — Tu trabalhaste com ela e eu não. Tens razão em dizeres que a conheces melhor do que eu. Deixo a coisa nas tuas mãos. Mas se volta a acontecer qualquer coisa, por mais insignificante que seja, ela vai para a rua, sem apelo nem agravo. Combinado?

Isaiah aquiesceu.— Combinado.Tucker abriu a porta e preparou-se para sair. De repente, rodou sobre si

próprio. Em voz baixa, para que não se pudesse ouvir na recepção, disse:— Mantém a cabeça no lugar, Isaiah. A Laura é uma querida, não há dúvida

que é bonita; mas traz imensos problemas. Não caias na asneira de te apaixonares por ela.

Isaiah abanou a cabeça.— Esse aviso é completamente desnecessário.De músculos tensos, Laura agarrou-se aos braços da cadeira enquanto

esperava que Isaiah deixasse de remexer nas coisas que estavam na sua se-cretária e lhe dissesse o que havia feito de mal. Era evidente que ele receava essa conversa. Parecia incapaz de a olhar nos olhos e não era nada dele fugir às questões.

Durante toda a vida, Laura perguntara a si própria por que razão as pessoas às vezes descreviam o silêncio como sendo ensurdecedor. Agora sabia a resposta. O gabinete estava num silêncio tão pesado que poderia jurar que ouvia o suor a sair-lhe dos poros.

Por fim, Isaiah endireitou-se e olhou para ela. Quando os olhos dele encontraram os dela, o seu olhar azul foi directo e implacável.

— A noite passada, você deixou a porta de um canil destrancada...O coração de Laura teve um baque.— Mas não pode ser...— O cão saiu — continuou ele, cortando-lhe a palavra. — Um labrador preto

que foi ontem submetido a uma cirurgia abdominal. Estava a ser alimentado por via intravenosa. Quando saiu da jaula, o saco de soro soltou-se do gancho, caiu ao chão e o cão arrastou-o atrás dele. A certa altura, ele saltou para cima de uns caixotes colocados por baixo de uma das janelas, provavelmente numa tentativa de fugir para o exterior, e o saco de soro ficou a um nível inferior ao do cateter, provocando um refluxo.

Laura não fazia ideia do que aquilo significava. Ele viu claramente a confusão que se espelhava na expressão dela, pois apressou-se a explicar:

— Isso significa que, em vez de se injectar o soro na veia do paciente, o sangue sai dela por efeito de sifão. Neste caso, graças a Deus, o cão deve ter saltado para cima dos caixotes mesmo antes de a Susan chegar. Perdera imenso sangue, tanto através do cateter como da incisão no abdómen, a qual deve ter rebentado os pontos; mas o animal não morreu. Ela chamou o Tucker, que fez uma transfusão ao cão, efectuou uma operação de emergência e, pela Graça de Deus, parece que ele se vai safar.

Laura estava tão aturdida que apenas conseguia abanar a cabeça.— Não... — conseguiu ela dizer por fim. — Não, isso não pode ser.Como se ela não tivesse dito nada, ele continuou:— Estou a arriscar o pêlo por não a despedir de imediato. Só há um motivo

que me leva a arriscar mantê-la cá: o facto de a Laura ser tão espantosa com

os animais. Acredito honestamente que é a melhor empregada de canil que alguma vez tivemos.

— Obrigada... — balbuciou ela.— Mas não podemos deixar que aconteçam coisas destas. O cão podia ter

morrido. Está ciente das consequências disso? Os donos poderiam termos processado e deixar-nos lisos.

— Sim, eu com-com-preendo — gaguejou Laura. Sentia a mente toldada, e o estômago tão revoltado que parecia ir vomitar. — Só que eu verifiquei todas as portas para me certi-ficar que estavam trancadas — disse ela, com voz sumida. — E a última coisa que faço mesmo antes de sair.

Ele voltou a recostar-se na cadeira. O músculo do seu maxilar encrespou-se pelo seu cerrar de dentes.

— Ontem à noite deve-se ter esquecido de o fazer — disse ele, abrindo as mãos. — Como isso aconteceu, não é importante. Temos de lidar aqui com o facto de que a coisa ocorreu no seu turno e de que um cão quase que ia morrendo. Reuni-me com o Tucker para discutirmos o que deveríamos fazer. Por recomendação minha, ele acordou em lhe dar outra oportunidade, subentendendo-se que a Laura será despedida se voltar a acontecer outra coisa qualquer. Está em jogo a nossa reputação como veterinários.

As lágrimas ardiam nos olhos de Laura. Uma dor atravessava-lhe o peito.— Talvez eu deva poupar a todos um monte de chatices e desistir agora

mesmo.Isaiah assentou os cotovelos na secretária, fechou as mãos e apoiou o

queixo nos nós dos dedos. Uma vez mais, os seus olhos não deram quartel a Laura.

— É isso que quer? — perguntou-lhe ele, com suavidade. — Desistir, simplesmente?

— Não, é claro que não. Adoro este trabalho. Mas não gosto de ser acusada de uma coisa que não fiz. Eu verifiquei aquelas portas, como sempre faço. Sei que não deixei nenhuma jaula aberta.

— Alguém o fez, e a Laura era o único alguém aqui...Laura ergueu-se da cadeira.— Tem a certeza?Com uma máscara de incredulidade e de espanto afivelada ao rosto, ele

ergueu os olhos para ela. Laura fechou as mãos em punhos frementes. As palavras amontoavam-se-lhe na base da garganta. Queria tanto defender-se, mas ele iria provavelmente pensar que ela perdera o que lhe restava do juízo.

— Ouça — disse ele em tom razoável — vamos inverter a questão. Pode jurar, ou seja, a Laura tem a certeza absoluta de que não podia ter deixado acidentalmente uma das portas destrancadas?

Laura quase que disse que sim, mas nesse preciso momento estava tão transtornada que a memória de toda a noite anterior não passava de um borrão indistinto na sua cabeça. Ela precisava de recapitular tudo o que fizera na noite anterior para ter a certeza absoluta.

— Te... tenho quase a certeza — acabou ela por dizer.— Quase? Isso não chega.Laura lembrava-se perfeitamente de percorrer a coxia central de uma ponta

à outra, verificando as portas de ambos os lados antes de sair da clínica. Teria havido algo que a distraísse? Poderia ter passado acidentalmente por uma das

portas sem experimentar o trinco? Ela estabelecera uma rotina durante o turno de dia, e seguia-a agora sempre à risca. As rotinas eram vitais para uma pessoa como ela, que tinha tendência a ser mais esquecida do que a maioria das outras pessoas.

— Espero que continue connosco, Laura — disse Isaiah com suavidade. — Lutei muito para lhe dar outra oportunidade. Será uma pena se desistir.

Naquele momento, ela estava demasiadamente perturbada para continuar a discutir o assunto, e por isso limitou-se a abanar afirmativamente a cabeça.

— Talvez — continuou ele — a Laura possa desenvolver alguns hábitos novos que impeçam que uma coisa como esta se repita.

Ele prosseguiu, sugerindo-lhe várias ideias, todas elas precauções de segurança que ela já tinha implementado. Quando ele parou de falar, ela sentia-se aturdida.

Quando Laura se levantou para sair do gabinete dele, tudo o que conseguiu dizer foi:

— Tenho muita pena do cão, Isaiah.— Todos nós temos.Eram quase sete horas quando Isaiah saiu da clínica nessa noite. Uma vaga

enxaqueca montara loja por detrás dos seus olhos, e a sua mente enxameava com fragmentos de diversas conversas que tivera ao telefone com colegas respeitados. Um dos pacientes de Isaiah, um chesapeake castrado, estava a morrer de doença auto-imune, e os tratamentos habituais, altas doses de antibióticos e de prednisona, não estavam a resultar. Estava na altura de dar tudo por tudo e tentar uma coisa nova: terapia de substituição hormonal.

Era difícil para Isaiah acreditar que injecções de testosterona pudessem salvar o chesapeake, quando falharam as abordagens mais tradicionais. Mas, caramba, comparado com Rodney Porter, director clínico do Centro de Pesquisa Veterinária do Leste do Oregon, Isaiah era ainda um aprendiz. Se Porter achava que a falta de hormonas naturais poderia enfraquecer o sistema imunitário, Isaiah iria tentar dar injecções de testosterona ao chesapeake.

Porque não? Um cansaço entranhado até aos ossos e uma pesada sensação de derrota tentavam Isaiah a experimentar um cocktail de testosterona nele próprio.

Ao caminhar para o seu Hummer através do ar gélido da noite, Isaiah carregou no comando à distância para destrancar as portas de trás do jipe, de modo a poder carregar alguns tomos de pesquisa nos assentos traseiros. Ia ser mais uma longa noite, pensou ele, com desânimo. Não iria ser capaz de dormir enquanto não conseguisse ler tudo sobre doenças auto-imunes a que pudesse deitar a mão.

Quando as trancas das portas do Hummer se abriram, acenderam-se as luzes das embaladeiras e a interior do tecto. A súbita iluminação aclarou o parque de estacionamento de resto imerso na escuridão. Isaiah ficou sur-preendido por ver outro carro estacionado do lado oposto ao mastodôntico Hummer. Seria porventura de alguém da empresa de limpezas a fazer horas extraordinárias? Ao se aproximar, ficou ainda mais surpreendido por ver que era o Mazda vermelho de Laura.

Depois de atirar os livros para dentro do Hummer, Isaiah olhou para o relógio, pensando que seria mais tarde do que julgava. Mas não, eram apenas sete horas. O turno de Laura só começava às nove. Que raio estaria ela ali a fazer tão cedo?

Voltando atrás, Isaiah entrou de novo no edifício e dirigiu-se aos canis. O instinto conduziu-o directamente à jaula do labrador negro. Encontrou Laura sentada dentro da jaula, sobre o cimento frio, com a enorme cabeça do cão aninhada no regaço. A sua expressão triste, os ombros descaídos, recordou-lhe a figura do anjinho perdido de um dos livros de histórias do seu sobrinho Garrett. Madeixas de cabelo douradas pendiam-lhe sobre a cara. Havia um olhar ferido nos seus grandes olhos cor de avelã.

O som dos passos dele nem sequer a fizeram erguer a vista.— Não está aqui desde que falámos, pois não?— Sim, estou — respondeu ela, em tom abafado.— Porquê? A Laura trabalha hoje no último turno da noite. Não se vai ter de

pé pelas duas da manhã — disse-lhe ele. E mais propensa a cometer outro erro, pensou.

Ela passou suavemente uma mão sobre as omoplatas do cão.— O Dusty quase que morreu. Ainda se está a sentir muito mal. Ficar aqui

sentada com ele é o mínimo que posso fazer.O coração dele foi surpreendido pelo tom monocórdico da voz dela, o qual

acentuava a forma entrecortada como falava. Como estava ali de pé há já vários segundos e ela ainda não olhara para ele, Isaiah abriu a porta e entrou na jaula. Apoiando as costas contra o cimento, Isaiah deixou-se escorregar ao longo da parede até ficar de cócoras.

— Bem — disse ele com suavidade —, estou a ver que ainda está zangada comigo. — Como ela continuava sem olhar para ele, tentou uma pilhéria para amenizar a tensão. — Ei, não é assim tão mau! Você ainda está na folha de pagamentos. O Dusty vai ficar bom. Antes que dê por isso, toda esta tra-palhada não passará de uma memória.

Ela ergueu finalmente o olhar para ele. Os seus olhos cor de avelã ardiam de ressentimento.

— Se eu tivesse mesmo deixado a porta aberta, não me importaria que me culpassem por isso. Nem sequer ficaria ressen-tida se fosse despedida. Só que não fui eu quem o fez.

Não era próprio da Laura negar com tanta teimosia a responsabilidade por uma coisa que era culpa dela com tanta evidência. Desde o início que se mostrara invulgarmente humilde e a duvidar da sua capacidade em efectuar este trabalho.

— Esta jaula foi deixada aberta — disse ele, em tom neutro. — A Laura era a única pessoa no edifício. Quem mais o poderia ter feito?

— Não sei. Só sei que verifico sempre as portas para me certi-ficar de que estão fechadas — disse ela, cessando o movimento da mão ainda assente sobre a omoplata do cão. — Eu não sou como as outras pessoas, Isaiah. — A voz dela tremeu ao pronunciar o nome dele. — Eu nem sequer consigo manter a conta das colheres de café quando o estou a fazer sem a ajuda dos meus feijões de contagem...

Ele ignorou cautelosamente aquilo, sem perceber bem o que a capacidade dela em fazer café tinha a ver com a situação. Estava prestes a perguntar-lhe quando ela acrescentou:

— Sabendo isso de mim, acha mesmo que eu viria para aqui, onde tudo o que faço é tão impor-tante, deixar o que quer que fosse confiado à memória? Sou mais cuidadosa do que as outras pessoas. Tenho de o ser.

Uma sensação de aperto atacou o estômago de Isaiah. Ele dissera quase exactamente o mesmo nessa manhã a Tucker.

Ela agitou a mão num movimento que abrangia todas as jaulas.

— Eu adoro estes cães. Nunca corro riscos com a segurança deles. Tenho uma rotina rígida e sigo-a sempre, sempre! De outro modo, poderia esquecer-me de qualquer coisa. — A laringe dela mexeu-se quando ela engoliu em seco. — Ontem à noite eu estava preocupada com o Dusty e fui ver como ele estava mesmo antes de sair.

— Não haverá a possibilidade de a Laura se ter esquecido acidentalmente de correr o trinco quando saiu da jaula? — sugeriu amigavelmente Isaiah.

— Não — respondeu ela com firmeza, olhando-o directamente nos olhos. — Quando falámos esta manhã, eu estava transtornada e não me conseguia lembrar bem dos porme-nores, mas agora consigo. — Ela elevou o seu pequeno queixo na direcção dele. — Verifiquei por duas vezes para me certificar de que o fecho estava corrido depois de eu ter saído da jaula.

Isaiah dobrou os joelhos para criar um apoio para os braços. Olhando para os olhos cheios de mágoa dela, não teve outra opção senão acreditar nela. Ela era quase ritualista nas suas pequenas rotinas. Com o tempo, foi-se apercebendo de que ela fazia exactamente as mesmas coisas pela mesma ordem, dia após dia. Por exemplo, quando saía da clínica, no fim do seu turno, ela seguia sempre um determinado padrão — ia primeiro verificar a reserva de comida ao entrar no bloco operatório, e depois ia buscar o casaco e a carteira antes de se despedir. Outras pessoas poderiam desviar-se deste padrão, dizendo primeiro adeus e verificando o frigorífico por último, mas Laura nunca alterava um padrão, sem dúvida por se poder esquecer de qualquer coisa importante se fizesse as coisas fora de sequência.

— Eu quero acreditar em si — confessou ele, com a voz embargada pelo pesar. — E se isso tivesse acontecido durante o dia, com outras pessoas nos canis, eu acreditaria em si. Mas estou com dificuldade em ultrapassar o facto de a Laura ter sido a única pessoa a estar aqui na noite passada.

Afloraram lágrimas aos olhos de Laura. Ela olhou fixamente para ele durante um longo, interminável momento, e depois desviou o olhar.

— O que foi? — perguntou ele, inclinando-se de lado para lhe ver a cara. — Você ia a dizer qualquer coisa. O que era?

— Vai pensar que sou maluca...— Não, não vou. Deite isso cá para fora.Os tendões da garganta dela ficaram tensos. Respirou fundo. Ao exalar,

balbuciou:— Creio que há alguém a meter-se cá durante a noite...Ela tinha razão; ele pensou que ela estava maluca.— Porquê?— Para que eu seja despedida.Aquilo era ainda mais louco. Tanto quanto ele soubesse, toda a gente na

clínica gostava de Laura.— Mas por que razão haveria alguém de querer que fosse despedida?

Desculpe, não é que não acredite em si, Laura, mas quem iria querer que perdesse o emprego?

Os lábios dela tremeram nos cantos.— Não sei. Só sei que há alguém que quer. Talvez uma pessoa que não

goste de mim por eu ter lesões cerebrais, e por ser fácil montar-me uma arma-dilha. Se a comida dos cães é trocada, sou eu que a devo ter trocado. Bem, grande novidade: toda a gente sabe que eu por vezes troco os algarismos ao lê-los, mas nunca confundo os meus três com os quatros.

Isaiah não percebeu novamente a ligação.

— O cão no canil q-quatro recebeu a ração que era para o c-cão do canil três — explicou ela, com a agitação a travar-lhe ainda mais a fala. — Um t-t-três é o mesmo não importa de que forma o viremos, e um q-quatro não se parece nada com um três, de pernas para o ar, invertido, t-t-tombado. — Ela parou de acariciar o Dusty para apontar para o enorme sete pintado a negro na parte de cima da parede da baia. — Não se trata de números pequenos ou difíceis de ler. Posso t-ter lesões cerebrais, Isaiah, mas não sou cega...

Isaiah olhou pensativamente para o sete, e depois voltou a dirigir o olhar para a fisionomia pálida dela.

— No i-início desta semana, quando o Tucker me deu um ralhete por eu ter su-suposta-mente baralhado a co-comida, perguntei a mim própria como é que eu poderia ter feito um erro tão e-estúpido. Sou sempre tão cuidadosa. Agora tenho quase a certeza de que entrou aqui alguém que trocou as malgas.

Normalmente, Isaiah era extremamente analítico, um homem que lidava apenas com factos e reunia dados cuidadosamente. Mas apesar de as alegações de Laura não lhe fazerem intelectualmente sentido, deu por si a acreditar nela. Ela não era pessoa para inventar uma coisa assim tão des-cabida, e não conseguia descortinar o que é que ela poderia ganhar com aquilo. Não perdera o emprego, portanto não era um estratagema para o recuperar. Ela era também suficientemente inteligente para se aperceber que alegações daquele teor poderiam voltar-se contra ela com facilidade, lançando ainda mais dúvidas sobre a sua credibilidade.

— Eu sabia que ia pensar que sou ma-maluca — sussurrou ela, em tom acusatório. — Bem, se pensa que isto é mau, vai mesmo pensar que sou d-doida varrida quando eu lhe contar o resto. Não creio que tenha sido eu a fazer d-disparar o alarme na noite de segunda-feira.

Isaiah fez deslizar as solas das suas botas para a frente e deixou o traseiro descair sobre o cimento. Perdido por cem, perdido por mil. Se conseguia acreditar que alguém se introduzira ali para trocar as malgas de comida e deixar uma porta aberta, não lhe era difícil dar mais um passo e acreditar que outra pessoa tenha feito disparar o alarme.

— Eu treinei-me com a Val a des-desligar o alarme nesse dia — apressou-se ela a dizer. — Ela disse-me para observar a luzinha na c-consola. Quando está vermelha, o alarme está ligado. Quando está verde, o alarme está desligado.

— Exactamente.— Na noite de segunda-feira era tudo ainda novidade para mim —

continuou ela. — Pensei que poderia ter feito qualquer coisa mal, apesar de a luz ter ficado nas cores certas. Agora tenho a certeza. Não fiz nada de errado. A luz nunca fica verde a não ser que o alarme esteja desligado, e nunca fica vermelha a não ser que o alarme seja ligado.

— Tem a certeza de que a luz ficou verde quando desarmou o sistema?Ela acenou afirmativa e veementemente com a cabeça.—E estava vermelha quando deixei a consola para me dirigir aos canis.

Estava mais ou menos a meio do armazém quando a sirene disparou.Se a luz tinha ficado vermelha quando ela deixou a consola, o alarme fora

efectivamente ligado.— A Laura alguma vez viu ou ouviu alguém no edifício durante a noite? —

perguntou ele.Ela olhou implorativamente para ele.

— Se eu responder a essa per-pergunta, vai pensar que eu sou d-doida?— Não — respondeu ele, com sinceridade.— Depois de o alarme ter disparado na noite de s-segunda-feira, estava eu

ao telefone com aquela senhora, poderia jurar que ouvi qualquer coisa a cair num dos ga-gabinetes...

— Qual deles?— Não tenho a certeza. Só sei que ouvi um grande es-estrondo. Nunca fui

ver o que era. Fiquei tão pertur-bada com tudo o resto que me esqueci disso até mais tarde.

Isaiah compreendia isso.— Houve mais qualquer outra coisa de estranho?— De noite, quando estava a trabalhar, ouvi barulhos. Por vezes eram

passos abafados, como os que podemos ouvir se estiver alguém noutra parte do edi-fício. Às vezes era o som ténue de coisas a serem arrastadas; rangidos e baques. Até hoje, repeti sempre para mim própria que estava tudo na minha cabeça. Agora estou certa de que não.

— Se a Laura voltou a ligar correctamente o alarme na noite de segun-da-feira, a única coisa que o poderia fazer disparar seria a abertura de uma porta ou de uma janela. Não temos detectores de movimento por causa dos animais.

Ela abanou a cabeça.— Eu estava a despir o casaco; nunca toquei numa porta ou numa janela.

Ele disparou sem mais nem menos.Isaiah olhou pensativamente para a parede.— Há duas consolas de alarme no edifício, uma à frente e outra nas

traseiras. Se alguém estivesse junto das portas da frente, a olhar para essa consola, saberia pela luz indicadora quando a Laura rearmou o alarme. Depois pode ter corrido para um dos gabinetes para abrir uma janela. Quando o alarme disparou, ele pode ter fechado a janela e permanecido no gabinete até a polícia vir e se ir embora.

Os olhos de Laura encheram-se de lágrimas.— Acredita em mim?— Não sei quem é mais doido, se eu ou a Laura, mas sim, acredito em si. Por

que razão iria mentir acerca de uma coisa destas, e com que finalidade?Ela fechou os olhos com força. Saíram-lhe lágrimas por baixo das pestanas

escuras, formando córregos brilhantes sobre as suas faces pálidas.— Ei! — chamou ele.Ela abriu os olhos e mostrou-lhe um sorriso trémulo.— Desculpe-me... Eu nunca pensei... — interrompeu-se, prendeu o lábio

inferior entre os dentes e voltou a abanar a cabeça. — Nunca pensei que pudesse acreditar em mim, é tudo.

— Pois bem, pensou mal — disse Isaiah, estendendo a mão para lhe limpar as lágrimas. Depois, voltou a puxar os pés para debaixo de si e ergueu-se. — Tudo o que me resta fazer é confirmar a sua história.

— Como é que consegue fazer isso?— Telefonando para a Harris Security — respondeu ele. Ao ver o olhar

interrogativo dela, Isaiah sorriu. — Ninguém pode entrar ou sair desta clínica depois de o alarme ter sido armado sem deixar um rasto electrónico. A consola envia um sinal para a Harris Security por uma linha telefónica segura sempre que o código de segurança é usado para activar ou desactivar o sistema.

— Ela faz isso? — perguntou Laura, com os olhos muito abertos. — Assim, vai mostrar se esteve aqui outra pessoa na noite de segunda?

Ele acenou com a cabeça.

—De certeza.Naquele momento, Isaiah sentiu que fizera bem em acreditar em Laura. Ela

não parecia estar assustada ou pouco à-vontade como uma pessoa que estivesse a mentir e se apercebesse de repente que o jogo acabara. Ela acreditava claramente que os registos de segurança a iriam vingar.

—Quer vir? — convidou ele. — Pode ficar a ouvir enquanto eu fizer a chamada.

Capítulo Oito

A casa de quinta vitoriana de Tucker estava inserida numa propriedade de dezasseis hectares situada na parte oriental da cidade. Alguns talhões do terreno eram arborizados e outros eram de pastagens, criando um equilíbrio perfeito para um veterinário atarefado que queria criar alguns cavalos mas não tinha tempo para cuidar de um rancho a sério. O jardim propriamente dito era delimitado por uma cerca de estacas de madeira brancas, debruadas a hera. Uma velha e amolgada caixa de correio montada sobre um poste erguia-se junto ao portão da frente.

Quando Tucker comprara a propriedade, sofrera muitos remoques do seu pai e dos seus irmãos. Perguntaram-lhe se aquilo era o seu lado feminino a despontar, por comprar uma casinha branca com uma cerca de madeira, e questionaram-se em voz alta se Tucker iria começar a servir-lhes chá em chávenas de porcelana quando eles o fossem visitar. Por fim, quando a mãe deles se afastou ao ponto de não os ouvir, Tucker ergueu todos os cinco dedos de uma mão e informou-os jocosamente que aquilo era um ramo de «vão-se f****», um para cada um deles. Isso pôs um ponto final na chacota.

Isaiah admirava secretamente a atitude do irmão. Não havia ninguém mais duro ou mais masculino que Tucker, mas ele não estava interessado em cultivar essa imagem. Ele era quem era e não se preocupava com o que outras pessoas pudessem pensar. Gostara desta casa e da sua localização. Agradavam-lhe torreões, alpendres trabalhados, frisos de casinha de chocolate e jardins à inglesa. Isaiah estava mais virado para madeiras envernizadas e linhas arquitecturais simples, mas cada um era livre de gostar de uma coisa ou de outra. Se o Tucker era feliz assim, era tudo o que interessava.

Ao avançar a pé pelo caminho de alpondra que levava aos degraus do terraço coberto, Isaiah encolheu os ombros para subir a gola do casaco mais para cima da nuca. Em Novembro, as temperaturas nocturnas no Oregon Central caem para valores negativos, cristalizando o ar com partículas de gelo e cobrindo de geada as agulhas dos pinheiros. Uma lua muito cheia banhava a paisagem numa luz prateada, fazendo com que as árvores parecessem mais cinzentas do que verdes.

Está demasiado frio para neve, pensou Isaiah ao subir os degraus para bater à porta da frente do irmão. Havia uma luz ténue a filtrar-se pelas janelas, revelando a Isaiah que Tucker estava em casa e ainda a pé.

Momentos depois, Tucker apareceu no grande vestíbulo de entrada, o qual abrangia uma escadaria central em curva, com corrimões pintados de verde-escuro. Através do vidro da porta em oval gravado em água-forte, a silhueta dele aparecia distorcida, criando um borrão cobre e azul onde o tronco nu se encontrava com a linha de cintura das jeans.

Abriu a porta de rompante.

— Isaiah? O que te traz aqui? — Abriu a porta dupla de par em par, esfregando o peito peludo quando o ar gelado volteou em redor dele. — Eu deixei-me dormir no sofá. Já passa das nove.

— Preciso de falar contigo.Isaiah conhecera ao longo dos anos diversos pares de gémeos idênticos, e

uma boa metade deles não achava que se parecessem muito um com o outro. Mas tal nunca fora o caso dele e do seu irmão. A sua tez, feições e constituições eram tão marcadamente semelhantes que por vezes ambos sentiam como se estivessem a olhar para um espelho. Para Isaiah, este era um desses momentos. Talvez fosse pelo brilho suave de um candeeiro aceso por detrás de Tucker, lançando a sua cara na penumbra. Qualquer que fosse a razão, Isaiah teve a sensação incómoda — mesmo se por um só momento — de estar a ter uma experiência fora-do-corpo.

Tucker recuou um passo para deixar entrar o irmão.— Sentiram todos a tua falta na festa...— Que festa?— A Terra chama Isaiah!... — disse Tucker, fechando a porta. — A festa de

aniversário do avô da Natalie, esta noite, às seis em ponto. Diz-te alguma coisa? Apareceram todos menos tu.

— Merda! — praguejou Isaiah, lembrando-se agora. Arranjara um presente e fora à festa do Sly, mas esquecera-se de ir à festa do avô da Natalie. — Eu até tenho um presente para ele; um caixote inteiro de vinho da Borgonha barato para ele ter debaixo da cama...

Tucker sorriu.— Deixa-o lá e pede desculpa. Com uma caixa de vinho como oferenda de

paz, ele desculpa-te quase tudo. — Depois, com um arrepio, Tucker perguntou: — De que é que me querias falar?

Isaiah tirou o chapéu.— Há um problema na clínica...— Merda. O que foi que aconteceu desta vez?— Na verdade não aconteceu mais nada. Acabo é de tomar conhecimento

de algumas informações que precisamos de discutir.— Esta noite?— Não pode esperar até amanhã.Praguejando entre dentes, Tucker percorreu descalço o vestíbulo em

direcção à biblioteca, situada à esquerda das escadas. Meteu a mão por detrás da ombreira da porta para ligar o interruptor que acendia o lustre de tecto, antes de entrarem na sala. O súbito fluxo de luz fez com que o soalho de madeira-de-lei reluzisse como vidro polido.

— Vejo pela tua cara que não são boas notícias — disse ele a Isaiah. — Na minha opinião, as más notícias a esta hora exigem uma bebida...

Aquilo pedia acção imediata, mas Isaiah conhecia bem o irmão e absteve-se de largar aquela bomba até o momento se apresentar propício. Atirou o chapéu para cima de um elegante canapé que não vira aquando da sua última visita.

— Uau! Estamos a ter classe, é? Mobiliário de estilo? E autêntico, ainda por cima?

— O papel de parede também — informou Tucker, dirigindo-se para um pequeno bar de mogno trabalhado à mão. — Gostei das rosas de chá. O que achas?

Dava a ideia de que uma mulher adquirira ali direitos de habitação, mas Isaiah limitou-se a acenar com a cabeça ao examinar as pequenas rosas que trepavam sobre um fundo espiralado de verde-hera.

— Bonito — acabou ele por dizer. O que era uma característica das coisas amaneiradas.

Tucker tirou dois copos de whisky de uma prateleira e despejou uma medida de whisky irlandês em cada um deles. Ele parecia demasiado grande, demasiado escuro e rude para andar a mexer num decantador de cristal.

— Cansei-me de improvisar e contratei uma decoradora de interiores.Isaiah passou um olhar espantado pela mobília de escritório em mogno que

ocupava um canto da sala. Havia até uma secretária com floreados por todo o tampo. Na última vez que ali estivera, um estirador barato servia de secretária, e havia apenas mais duas cadeiras de metal e um caixote de maçãs a servir de mesa de apoio. Atravessou a sala para se colocar em frente da lareira e esfregar as mãos.

— Porque é que as pessoas fazem isso? — perguntou Tucker.— Fazem o quê?— Aquecem as mãos numa lareira que está apagada.Isaiah olhou para baixo, e constatou que estava a estender as mãos para

um calor não existente.— Boa pergunta. Hábito, penso eu. Está um frio de rachar lá fora.A sorrir, Tucker abanou a cabeça.Isaiah observava uma pintura da natureza numa moldura oval, pendurada

por cima da lareira.— Isto é realmente um espanto, Tucker — disse ele, dando-se conta de que

estava a ser sincero. A casa tinha agora uma atmosfera acolhedora e caseira. — Talvez eu deva contratar um decorador. Estou na minha casa há seis meses, e ainda me estou a sentar em pufes para ver televisão.

— Isso não é forma de impressionares as miúdas — comentou Tucker. Depois de dar um whisky a Isaiah, Tucker deixou-se cair num cadeirão de orelhas colocado em ângulo frente à lareira. — As mulheres procuram homens bem-sucedidos na vida e com gostos refinados. — Um brilho matreiro assomou-lhe aos olhos azuis. — Para não mencionar que é incómodo como tudo seduzir uma mulher numa cadeira dobrável.

A imagem que veio à mente de Isaiah trouxe-lhe um sorriso aos lábios.— Imagino que sim.— O nome da miúda é Lisa Banning, se estás interessado.— Quem, a mulher que seduziste numa cadeira dobrável?— Não, miolos de açorda, a decoradora.Isaiah sentou-se frente ao irmão. Por mais elegante e estilizado que o

cadeirão de orelhas fosse, ele descobriu com agrado que o conforto não fora sacrificado em prol da aparência. O estofo era luxuosamente macio, e suficientemente generoso para acomodar o seu grande corpo.

— Talvez lhe telefone...Tucker bebericou um pouco do seu whisky. Depois de engolir e dar um

assobio apreciativo, acrescentou:— Então o que é que não pode esperar até amanhã?Isaiah recostou-se na cadeira, com o copo apoiado num joelho.— A Laura não deixou a porta do canil aberta ontem à noite. Fizemos mal

em tirarmos conclusões precipitadas.Tucker não respondeu de imediato. Agitou o whiskey no copo, com uma

expressão meditativa. Quando voltou a cruzar o olhar com o de Isaiah, todo o riso desaparecera dos seus olhos.

— Tens noção de como o que estás a dizer parece absurdo, Isaiah? Uma pessoa trabalha no turno da noite. A noite passada essa pessoa foi a Laura. Se

não foi ela a deixar a porta aberta, quem terá sido então? Um diabrete brincalhão?

Isaiah não se quis zangar.— Armaram-lhe uma cilada, Tucker. Creio que há alguém a tentar que ela

seja despedida.Tucker inclinou-se para a frente na cadeira.— Então, Isaiah, sê realista! Quem é que quereria fazer isso? Tanto quanto

sei, toda a gente na clínica gosta da Laura. Sei de fonte segura que nenhuma das minhas técnicas tem um desaguisado com a Laura. A Lena tece-lhe loas. Aquela zeladora de canil, a Danielle Prince, cujo cabelo muda de cor uma vez por mês, acha que ela é a melhor coisa que aconteceu desde a invenção das pipocas, pois a Laura nunca deixa pormenores de merda por acabar para o turno seguinte. A Tina acha que ela é uma santa. Repito-te, quem é que quereria que ela seja despedida?

— Ainda não tenho todas as respostas — respondeu Isaiah. — Só sei que lhe armaram uma cilada.

Tucker arqueou uma sobrancelha escura.— Não estamos aqui a falar de um cargo executivo. Ela é uma simples

zeladora de canil, pelo amor de Deus! Quem é que quereria o trabalho dela?Tendo o cuidado de não entornar a bebida, Isaiah mudou de posição na

cadeira para meter a mão no bolso do casaco. Tirou dele uma folha de papel dobrada.

— Perguntas bem — disse ele, passando o papel ao irmão. — Mas os factos não mentem. Vê isto.

— E isto é o quê? — perguntou Tucker, começando a ler o papel de fax. — Datas, horas? Não estou a perceber.

— Isso foi-me enviado por fax há bocado, pela pessoa do turno da noite da nossa empresa de segurança. Sempre que uma pessoa liga ou desliga o alarme da clínica, a Harris Security recebe um sinal via telefone, e fica registado num histórico do computador deles.

— Recordo-me de qualquer coisa acerca disso — disse Tucker, com um tom de enfado na voz. — E isto é importante porque...?

— Isso é o registo de toda a actividade do nosso alarme nesta semana. Se reparares, alguém desarmou e voltou a armar o sistema segunda-feira à noite, às oito, quase uma hora antes da Laura chegar lá. Repara também que, segundo esse registo, a Laura desarmou e rearmou correctamente o sistema pouco antes das nove. Menos de trinta segundos depois, o alarme disparou. Presta atenção à causa que está aí listada, por favor. Diz «violação de perímetro». Isso significa que o alarme foi devidamente rearmado e que alguém abriu uma porta ou possivelmente uma janela para o fazer disparar.

Tucker analisou as primeiras linhas da lista impressa.— Se ela desarmou e rearmou correctamente o sistema, por que raio foi ela

abrir uma porta exterior e fazer disparar o alarme?— Não foi ela. O alarme disparou quando ela estava a entrar nos canis.— Isso é o que ela diz...Uma imagem da cara doce de Laura passou pela mente de Isaiah.— Não a acuses de mentir, Tucker. Posso admitir que ela cometa um erro,

mas não que minta descaradamente.— Estás muito sensível, não estás?— Neste preciso momento, estou completa e perfeitamente lixado. Olha

para a maldita listagem. Fala por si. Havia já alguém no edifício quando a Laura lá chegou! — Passando a sua bebida para o braço do cadeirão, Isaiah

pousou uma bota sobre o joelho. — Pensa, Tucker. De noite, quando vais à clínica e tencionas demorar-te, que procedimento adoptas com o alarme?

— Destranco a porta — disse Tucker, em tom sarcástico. — Depois volto a trancá-la de imediato. Depois disso feito, corro para a consola, digito o nosso código de utilizador e desligo o sistema. Quando a luz passa a verde, reintroduzo o nosso código e rearmo o sistema carregando no três.

— E quando sais?— Repito todo esse processo para sair do edifício.Isaiah inclinou a cabeça na direcção da listagem.— Precisamente. Mesmo antes das oito da noite, uma hora bem medida

antes de a Laura entrar no edifício, alguém desarmou e rearmou o sistema. Não há registo disso voltar a ser feito antes de a Laura chegar.

— Isso não significa necessariamente que essa pessoa tivesse permanecido no edifício. Talvez fosse alguém que se tenha esquecido de qualquer coisa, Isaiah. Já desarmei o sistema e corri até ao meu gabinete para ir buscar um dossiê ou um livro de pesquisa médica antes de rearmar o sistema e sair.

—Conseguiste ir até ao teu gabinete e voltares à consola do alarme em menos de dez segundos? — contrapôs Isaiah.

Tucker olhou de novo para a listagem. Depois deu um assobio.—Raios, tens razão. Quem quer que tivesse entrado às oito rearmou o

alarme três segundos depois.Uma sensação fria percorreu a pele de Isaiah.— Exacto. Ninguém poderia ter entrado a correr para ir buscar qualquer

coisa e rearmado depois o alarme em menos de três segundos. O padrão que vês aí é congruente com o padrão que ocorre quando alguém entra no edifício à noite, tencionando demorar-se.

— Porque é que alguém iria demorar-se por lá a meio da noite se não estivesse de turno?

— Para fazer disparar o alarme depois de a Laura entrar no edifício e fazer com que ela parecesse uma imbecil incompetente.

Os olhos de Tucker escureceram até ficarem de um cinza tempestuoso.—Ela viu alguém no edifício?A pergunta indicou a Isaiah que Tucker estava a começar a acreditar nele.— Não, mas ouviu qualquer coisa a cair ao chão num dos gabinetes

enquanto estava a falar ao telefone. Infelizmente, no meio de toda aquela confusão, não deu muita atenção ao assunto e nunca foi investigar.

—Foi o meu pisa-papéis — sussurrou Tucker.—O teu quê?—O meu pisa-papéis — repetiu ele, mais alto. — Aquele grande touro de

cerâmica que a mãe me deu pelo Natal do ano passado. Na terça de manhã encontrei-o no chão, partido em mil pedaços. Pensei que tivesse sido alguém do pessoal da limpeza que o tivesse feito tombar da minha secretária e deixado ali os cacos para não se meter em sarilhos.

— É possível, creio eu. Mas o mais provável é que o estrondo que a Laura ouviu fosse o pisa-papéis a ser atirado ao chão.

Tucker voltou a percorrer com a vista a listagem.— A clínica esteve tão concorrida nessa noite quanto a Estação Central. Olha

todas as ocorrências por volta das dez menos um quarto.— Isso fui eu, a reprogramar a consola para dar à Laura um código de

utilizador só dela — esclareceu Isaiah, pousando o copo sobre o consolo da lareira e deixando o cadeirão para se pôr de cócoras ao lado do irmão. Bateu com o dedo no papel para apontar outras ocorrências importantes. — A polícia

saiu aqui. Isto é quando eu cheguei. Toda esta confusão foi um pouco depois, quando atribuí à Laura o seu número de utilizador.

— Estou a perceber-te — disse Tucker, em tom suave. Apontou para outras ocorrências mais abaixo. — Isto foi quando tu saíste?

Isaiah analisou o registo.— Dez e meia. Sim, isso fui eu — respondeu ele. Deslizou o dedo até outra

linha. — Olha para isto. Alguém desarmou e rearmou o sistema numa sequência rápida às onze e quarenta. Penso que foi quando o nosso misterioso disparador de alarme deixou finalmente o edifício. A Laura estava nessa altura a trabalhar nos canis ou na lavandaria, bem longe de qualquer das consolas do alarme, e portanto não poderia ter visto as luzes indicadoras a mudarem de cor. Ela nem sequer se apercebeu de que havia lá mais alguém. As gamelas da comida de cão das jaulas três e quatro foram provavelmente trocadas enquanto ela estava na lavandaria.

Tucker baixou o papel e fechou os olhos.— Dá-me um segundo para processar isto...— O que é que há a processar? — perguntou Isaiah. — É tão óbvio quanto o

nariz que tenho na cara, e esse é óbvio como um raio. Havia outra pessoa na clínica nessa noite, e também na noite passada. Não se trata apenas da palavra da Laura, que considero sagrada. As ocorrências do registo corroboram o que ela diz.

Tucker passou de novo a vista pela listagem.— Santo Cristo. Alguém entrou na clínica esta madrugada, depois de a

Laura ter saído. Aquele cão ia morrendo. Quem faria uma coisa destas?De momento, Isaiah sentia-se satisfeito com o reconhecimento de que

Laura estava ilibada de responsabilidades, mesmo na opinião de Tucker.— E uma boa pergunta! — disse ele. — E para a qual temos de arranjar uma

resposta bem depressa.Tucker recostou-se na cadeira, com a listagem pousada no colo.— Portanto a Laura não se esqueceu de trancar aquela porta, afinal.— Não — concordou Isaiah, com voz rouca. — Ela saiu do edifício hoje às

duas da manhã, exactamente no termo do turno dela. Pouco antes das cinco, entrou outra pessoa.

Tucker alisou a listagem sobre a coxa para verificar de novo as ocorrências.— Filho da mãe! Pobre cão! Isto dá-me ganas de matar o gajo! — desabafou

ele, lançando a Isaiah um olhar ardente. — Alguém deixou deliberadamente aquela jaula aberta e desprendeu o saco de soro do gancho, sabendo que provavelmente iria ocorrer um refluxo intravenoso.

— É o que eu acho.O músculo do maxilar de Tucker começou a pulsar.— Não sei o que pensas, mas estou convencido de que esta coisa foi

cuidadosamente orquestrada de modo a que a Susan chegasse menos de uma hora depois para salvar o cão.

— O objectivo não era matar o labrador, Tucker. Era tramar a Laura.— Mas quem poderá odiá-la a esse ponto?Isaiah só pôde abanar a cabeça.— Não faço ideia.Normalmente de um acobreado escuro, a face de Tucker tornara-se cor de

cinza.— Quem quer que tenha feito isto poderá enfrentar um processo-crime.— Temos primeiro de apanhar a pessoa. Mas receio que as nossas hipóteses

de o fazer sejam bastante ténues.

— Achas que é um homem... ou uma mulher?Isaiah encolheu os ombros.— Temos mais mulheres a trabalhar para nós do que homens, mas, quando

tento imaginar qual delas possa ser, o meu cérebro entra em curto-circuito. Por mais mal-humorada e agressiva que a Susan possa ser, é uma pessoa bondosa, e parece gostar realmente da Laura. A Trish também é uma querida. E a Belinda trabalhou a matar para conseguir o seu diploma de veterinária assistente, de tal modo que não creio que fosse pôr em risco o seu lugar.

— Se calhar poderia ser alguém da minha equipa — pensou Tucker alto. — Só que não consigo imaginar quem. Toda a gente na minha ala parece gostar da Laura e acha que ela está a fazer um excelente trabalho. — Tucker franziu ligeiramente a testa. — Não podemos pôr de parte a possibilidade de poder ser um dos homens da tua ala, o James e... como se chama o outro gajo?

— Mike. Mas nenhum deles vê a Laura com frequência.Tucker agitou de novo o whisky no copo.— Nunca subestimes um homem despeitado. A Laura é muito bonita e

simpática. Pode acontecer que um deles tenha uma queda por ela. O amor não correspondido pode levar pessoas que já tenham uns parafusos a menos a fazerem algumas coisas completamente loucas.

Isaiah assentiu, pensativo.— Suponho que seja verdade.Tucker inclinou-se para a frente.— Mas que raio vamos nós fazer, Isaiah? Podemos andar às voltas durante

um mês a tentar descobrir quem é que fez isto. Entretanto, o que é que vai impedir que isto volte a acontecer?

Isaiah, com o pensamento em Laura e em como era fácil um homem perder-se de amores por ela, sacudiu-se para acordar.

— Já tomei algumas medidas...— Que tipo de medidas?— Tomei a liberdade de alterar o nosso código de utilizador antes de sair da

clínica. O antigo já foi à vida. Se alguém entrar esta noite no edifício e tentar desarmar o sistema usando o código antigo, o alarme irá disparar.

— Boa ideia. Qual é o nosso novo número?— Da última vez, usámos os últimos quatro dígitos do meu número de

segurança social. Achei que seria muito arriscado se usássemos o teu, desta vez; seria muito fácil alguém adivinhá-lo. Em vez disso, combinei os últimos dois dígitos dos anos de nascimento do Pai e da Mãe.

— Quatro-dois-quatro-seis? — confirmou Tucker, com um aceno de cabeça. — Isso dá. Na clínica ninguém sabe quando é que eles nasceram. É claro que alguém pode vir a descobrir, mas para isso será preciso investigar bastante.

— Foi também o que eu pensei.— E quanto aos nossos empregados? Se o código antigo já não é válido,

como é que eles vão desligar o alarme para entrarem no edifício?— Atribuí a cada um deles um código de utilizador individual — disse Isaiah,

olhando para o relógio. — Temos de ligar à Susan para lhe darmos o dela, de modo a que ela possa abrir a clínica de manhã. Os outros receberão os deles amanhã. — Isaiah tirou outra folha de papel do bolso. — Fiz-te uma cópia.

Tucker aceitou a listagem.— Nunca deixas de me espantar.— Como é?

— Todo esse cérebro numa cabeça exactamente do mesmo tamanho que a minha — explicou Tucker, mostrando um rápido sorriso. — Estás sempre um passo à minha frente. Foi sempre assim durante todas as nossas vidas.

Na opinião de Isaiah, Tucker era tão inteligente quanto ele. Só que via tudo através de lentes mais amplas, enquanto Isaiah tinha tendência para se concentrar em pormenores. Quando era confrontado com um problema, não desistia enquanto não o conseguisse resolver.

— Pelo menos, nenhuma outra pessoa para além de mim, de ti e da Laura será capaz de entrar ou sair do edifício sem fazer disparar o alarme. E a partir de amanhã, quando atribuirmos os novos códigos de utilizador, toda a gente terá de deixar a sua «assinatura» para mexer no alarme.

— Podemos nunca vir a descobrir quem fez isto — disse Isaiah.Tucker acenou com a cabeça em assentimento.— O mais importante é os animais estarem seguros.E também o estava o emprego de Laura, pensou Isaiah, com uma sensação

de alívio ainda maior.Antes de seguir para casa, Isaiah passou pela clínica para informar Laura

acerca do seu encontro com Tucker. Quando entrou nos canis, não a viu em parte alguma. Avançou pela coxia central, olhando para dentro de cada uma das jaulas para se certificar de que ela não estava no interior com um canídeo a precisar de festas. Tudo o que viu foram cães, alguns a comerem alegremente de malgas acabadas de encher, outros a dormir em cobertas limpas. Nem mesmo Laura conseguiria limpar um canil suficientemente bem para que uma pessoa pudesse comer do chão, mas pouco faltava para isso. O cimento brilhava sob a luz fluorescente. Todo o lugar cheirava principalmente a detergente líquido com aroma de limão. A mulher era uma maravilha.

Quando Tucker chegou à jaula do chesapeake, abrandou até parar e ficou a olhar para o seu interior. O grande cão de pêlo avermelhado estava sobre as quatro patas. Nessa manhã, e depois de novo nessa mesma noite, quando Isaiah lhe administrou as injecções, o cão estivera quase comatoso.

— Raios partam!...Visivelmente abalado e fraco, Rocky tentou abanar a sua cauda farfalhuda e

avançou a cambalear para meter o focinho através da rede metálica.— Olá, pazinho... — disse Isaiah, com a alegria a percorrer-lhe o corpo. Abriu

a jaula e entrou. Quando pôs as mãos sobre o pêlo sedoso do animal, Rocky caiu exausto no chão e gemeu. — Ainda estás muito doentinho. — Isaiah verificou as gengivas do canídeo. — Mas já estás a recuperar alguma cor. Nem posso acreditar. Já pensava que te ias embora.

— Isaiah.A voz de Laura sobressaltou-o. Olhou por cima do ombro e sorriu.— Viva! — disse ele. Voltou a olhar para o cão, — Funcionou, Laura. Ele

estava a morrer. Agora, olha para ele!Ela entrou na jaula e agachou-se para se juntar a ele nas festas ao animal.— Reparei que ele parecia estar muito doente. O que se passa com ele?— Auto-imunidade. Nenhum dos tratamentos habituais resultou. Um colega

meu sugeriu que eu experimentasse injecções de testosterona. Ele diz que os animais castrados estão privados das suas hormonas naturais, e que isso pode-lhes afectar a saúde e o sistema imunitário — explicou Isaiah. De repente, lembrou-se de que estava a falar com uma mulher com lesões cerebrais, e interrompeu-se. — Desculpe, não a queria aborrecer com isto.

Os olhos dela brilharam de interesse.

— Não estou aborrecida. Desde há muito que acho que castrar cães e gatos pode ser mau para eles. Ficam tão gordos e moles! Não deve ser nada divertido para os animais.

— Essa não é uma teoria muito popular na medicina veterinária — res-pondeu Isaiah. — Tenho a certeza absoluta que não me ensinaram isso na escola de medicina veterinária, e nenhum colega com que eu tenha trabalhado alguma vez falou nisso. Bem pelo contrário.

Laura sentou-se ao lado do chesapeake. Naquela luz transbordante, ela parecia simultaneamente linda e fofa. Por cima da camisola de malha rosa, ela vestia uma velha camisa de flanela demasiado longa, ao ponto de quase a engolir. O cabelo dela estava em confuso desalinho, as madeixas douradas brilhantes a tentarem as pontas dos dedos dele para que as tocassem. A boca dela, de um rosa delicado, curvava-se docemente num sorriso de Madonna de um quadro renascentista.

— Isso não significa que todos os veterinários tivessem razão — disse ela, lançando-lhe um sorriso maroto que lhe fez covinhas na cara. — Quando castraram a minha mãe, ela passou um mau bocado.

Isaiah nunca ouvira alguém referir-se a uma histerectomia como «cas-tração», e quase que se riu. Mas lembrou-se de que Laura não conseguia dizer histerectomia e refreou a gargalhada. Apercebeu-se de que não eram as palavras que ela dizia que tinham importância. O que tinha importância era o facto de ela conseguir compreender a linha de pensamento dele, ser uma caixa de ressonância, e dar-lhe uma resposta inteligente.

— Continue — exortou ele. — O que é que aconteceu à sua mãe?Ela encolheu os ombros e franziu o nariz.— Não conseguiam acertar-lhe com as hormonas. Ganhou peso e ficou

neura. Chorava imenso. Aparecera-lhe pêlos sobre o lábio superior e no queixo. Até mesmo nos dedos dos pés! — descreveu ela, erguendo as sobrancelhas finamente arqueadas. — Foi muito mau. Quando final-mente lhe acertaram com a dose, ela melhorou e perdeu os bigodes. Se hormonas baralhadas puderam fazer tudo aquilo a ela, por que razão não seriam tão más para um cão ou um gato?

Isaiah concordou.— É um conceito que me é estranho, mas tem toda a razão. As hormonas

são importantes — disse Isaiah. As dele estavam nesse momento em ebulição. Ele queria beijá-la tão desesperadamente que deu por si a inclinar-se para ela até o ténue perfume de Laura lhe inebriar os sentidos. Não era um bom plano. Manter amizade com ela estava bem. Passar para além disso podia ser arrebatador, mas Laura poderia levar o caso a sério, e ele não estava pronto para uma relação séria.

Por isso, baixou o olhar para o cão.— Isto precisa de mais investigação. Graças a Deus que há veterinários

fabulosos que dedicam as suas carreiras a esse tema. O Rocky é capaz de se safar à justa, graças a eles. Talvez seja apenas sorte. Talvez não o seja. O que eu sei é que ele começou a recuperar desde que eu lhe dei as injecções de testosterona.

Laura passou a mão esbelta pela pelagem lustrosa do cão.— Deixe algum crédito também para si. Predispôs-se a aceitar o risco e a

dar-lhe as injecções.— Não estava a ver como que é que elas lhe poderiam fazer mal.

— E não fizeram. Ele está a ficar melhor — comentou ela, inclinando-se para a frente para olhar directamente nos olhos tristes do cão. — Não é, Rocky? E tudo porque Isaiah tentou uma coisa nova.

Isaiah apercebeu-se de que sabia bem falar assim com Laura. Partilhar as suas preocupações e receber um retorno amável e ponderado. Ela tinha algumas ideias interessantes. Talvez já não fosse mais capaz de dobrar a língua em torno de palavras longas, mas a inteligência dela estava tão viva como sempre.

— Passei por cá para lhe falar da conversa que tive com o Tucker.Os olhos dela escureceram.— O que é que ele disse?— Sente-se pessimamente por ter tirado conclusões precipitadas hoje de

manhã. Está também furioso como tudo. Quer descobrir quem deixou aberta a porta da jaula e desancá-lo.

A tensão que assentava sobre os ombros estreitos dela desvaneceu-se.— Ele acredita que não fui eu?— Claro que sim. Aqueles registos provam que não foi a Laura.Antes de sair, Isaiah fez a ronda à clínica para ter a certeza absoluta de que

ninguém estava escondido algures no edifício. Disparate. Nada fora feito directamente contra Laura. Ela estaria perfeitamente em segurança e ele não se deveria sentir preocupado. Só que estava. Deixar aberta a porta de um canil não é um acto abertamente hostil, mas o resultado fora-o, indubitavelmente. Por mais que Isaiah desse a volta àquilo, o perpetrante daquela acção tinha intenção de fazer mal a Laura. Quando Isaiah facturou isso na dor e no sofrimento de Dusty, um pobre cão indefeso, o sangue gelou-lhe nas veias.

A pessoa que deixara a jaula aberta era empregada na clínica. O que significava que essa pessoa sabia de antemão que as consequências das suas acções iriam infligir ao animal dor e até possivelmente a morte. Isso não era próprio de alguém com consciência, e Isaiah não conseguia afastar a preo-cupação de que a próxima partida pudesse ser dirigida mais directamente a Laura.

Se não fosse uma sobrecarga tão grande para Laura assisti-lo na cirurgia, Isaiah tê-la-ia tirado imediatamente do seu lugar no canil e começado a treiná-la para ser sua assistente. Ela fizera um trabalho fantástico quando toda a gente estava doente.

Isaiah não gostava, pura e simplesmente, da ideia de Laura ficar sozinha de noite na clínica. Para já não falar no facto de ele gostar de estar com ela e desejar poder trabalhar sempre com ela. Contudo, gostava também das outras técnicas. A Trish era uma boneca, Belinda tinha um sentido de humor cáustico e extraordinário e a Angela era uma maga com a anestesia. No fundo, formavam uma equipa fabulosa.

Só que não era tão divertido estar com qualquer uma delas como o era com Laura.

Capítulo Nove

Na segunda-feira seguinte, Laura voltou ao turno de dia. Apesar de os novos procedimentos do alarme terem sido implementados na sexta-feira anterior, ela ainda ouvia alguns queixumes referentes às mudanças. Durante o fim-de-semana, a Trish perdera o bocado de papel onde escrevera o seu código de utilizador, o que lhe valeu uma reprimenda de Isaiah. Por isso, ele convocou uma reunião do pessoal e insistiu para que comparecesse toda a gente que trabalhava no edifício, incluindo o pessoal de escritório. Era a primeira vez que Laura ia a uma reunião na clínica. Era estranho ver tanto os veterinários como os restantes empregados reunidos todos na mesma sala. A equipa de Tucker estava reunida num grupo, e o pessoal de Isaiah noutro. Só o pessoal dos canis trabalhava para ambos os médicos. Por a Laura ser a única zeladora de canil a trabalhar naquele turno, era a única a estar presente.

Isaiah iniciou o diálogo salientando a todos — não uma, mas duas vezes — que o código de segurança de cada pessoa era único e altamente confidencial.

— Aconselho vivamente que memorizem o vosso número — disse ele e que depois destruam o papel onde ele está escrito. Tratem-no como um código PIN do vosso cartão de multibanco. Guardem-no com a vossa vida.

Laura esperava que a coisa ficasse por ali, mas Isaiah surpreendeu-a. Passando rapidamente o olhar pensativo por ela, prosseguiu:

— Na manhã da última quinta-feira, foi encontrado um cão praticamente morto quando a Susan abriu a clínica. O animal quase que se esvaiu em sangue por a porta do seu canil ter sido deixada aberta.

Todos olharam para Laura. Esta sentia as faces arderem-lhe de humilhação. A sala ficou tão silenciosa que ela podia ouvir a respiração das pessoas que estavam à sua volta.

— Por a Laura ter trabalhado no turno da noite de quarta-feira, todos, incluindo o Tucker e eu, presumimos que fosse ela a responsável. Devemos-lhe todos um pedido de desculpas.

Tucker sorriu rasgadamente para Laura e tocou com a ponta de um dedo no sobrolho numa continência fingida.

— Da minha parte devo-lhe mesmo uma, Laura. Desculpe-me por eu ter tirado conclusões erradas.

Isaiah sorriu ligeiramente e continuou:— Por a Laura ter negado com tanta veemência toda a responsabilidade

neste caso, decidi verificar os registos do alarme com a empresa de segurança, para ver se outra pessoa entrou no edifício na noite de quarta-feira e, é claro, tinha mesmo entrado. Também descobrimos que não foi a única vez que alguém se introduziu no edifício enquanto a Laura estava a trabalhar. Não foi a Laura quem fez disparar o alarme na noite de segunda-feira. Provámos isso sem qualquer sombra de dúvida. Isso leva-nos a questionar se realmente foi a Laura quem trocou a comida dos cães nos canis três e quatro, nessa mesma

noite. Com toda a probabilidade, o nosso brincalhão trocou as malgas enquanto a Laura estava a trabalhar noutra parte do edifício.

James, que ultrapassava em quase uma cabeça a altura de todas as téc-nicas, lançou a Laura um olhar horrorizado. Belinda pousou uma mão no ombro de Laura e disse:

— Que coisa horrível! A Laura podia ter sido despedida!Tucker confirmou essa possibilidade acenando com a cabeça.— Em vez de nos centrarmos nisso, gostaria que nos concentrássemos na

prevenção. Isto não pode voltar a acontecer. — disse Tucker. Falou ainda durante vários minutos, concluindo com: — Se o Dusty tivesse morrido, a clínica podia apanhar com um processo judicial, o que iria afectar o posto de trabalho de todos. — E, estremecendo. — Incluindo o meu. Eu e o Isaiah es-tamos apenas a começar a ter chão firme debaixo dos pés. Não temos recursos para pagar uma grande indemnização e continuarmos de portas abertas.

— Mas decerto que têm um seguro para isso — observou Belinda.— E temos — atalhou Isaiah. — Mas há um plafond para cada pedido de

indemnização. — E, olhando para o irmão. — Sendo médicos veterinários há relativamente pouco tempo, optámos pelo pacote mais económico, com uma franquia bastante grande. Como nos temos todos vindo a aperceber ao trabalharmos aqui, as pessoas adoram os seus animais de estimação. Já ficam suficientemente perturbadas quando perdem um cão ou um gato devido a complicações inevitáveis ou a uma doença incurável. Imaginem a reacção se viessem a saber que um dos seus animais foi deliberadamente maltratado por uma pessoa nossa empregada.

— Era logo processo em cima! — comentou um dos técnicos de Tucker. — Se fosse comigo, era mesmo certo. Não fariam o mesmo?

— Creio que a maior parte dos donos pensaria, no mínimo, em nos processar — concordou Tucker. — E, na eventualidade de eles o fazerem, eu e o Isaiah teríamos de pagar muito mais do que o valor do animal. Prova-velmente também nos pediriam indemnização por perdas e danos morais, para já não falar de negligência médica. E o prémio do nosso seguro dispararia decerto para valores incomportáveis.

— E — acrescentou Tucker — também temos de pensar nas nossas reputações. São coisas como essas que fazem as notícias locais. As pessoas poderiam hesitar em trazer-nos os seus animais para tratamento. A nossa prática clínica sofreria com isso. Não há qualquer dúvida: Se aquele cão tivesse morrido, isso teria tido um efeito muito negativo sobre todos os que se encontram aqui nesta sala. E por isso que queremos tomar todas as pre-cauções possíveis para vos proteger e nos protegermos a nós até que essa pessoa seja apanhada.

— Por isso é que é importante que protejam o vosso código de segurança — continuou Isaiah, fazendo uma pausa para olhar cada um dos presentes nos olhos. — Se perderem o vosso número e ele cair nas mãos da pessoa errada, podem ver-se numa situação muito desagradável. Se o vosso código for usado para entrar no edifício e fazer mal a um animal, vão parecer culpados, e tanto eu como o Tucker não hesitaremos em apresentar queixa contra vocês.

— Estás-me a fazer sentir como uma criminosa — disse Trish com um riso amargo.

— Também me estou a sentir assim — coadjuvou James. — A maior parte de nós trabalha aqui já há algum tempo. Parece-me que já merecemos alguma confiança, ou não?

Isaiah sorriu.

— Cada um de vocês é, de uma forma única e especial, membro importante da equipa, quer trabalhem principalmente com o Tucker ou comigo, portanto peço-vos que não tomem isto como um ataque pessoal. Não estamos a apontar o dedo a ninguém. Estamos apenas a dar-vos um aviso sério, de modo a que não percam os vossos códigos e sejam assim inadvertidamente culpados por uma coisa que não fizeram.

Val levantou a voz.— Incomoda-me pensar que alguém deixou essa porta aberta. — E, depois,

olhando na direcção de Laura. — Por mais perturbante que foi pensar que a Laura poderia ter sido despedida, pelo menos eu sabia que ela não o fizera maldosamente. Que tipo de pessoa o faria? E por que razão, pelo amor de Deus, uma pessoa dessas terá vindo trabalhar para uma clínica veterinária, onde em princípio todos nós gostamos de animais?

— Não temos quaisquer respostas — respondeu amavelmente Tucker. Depois, acrescentou: — Por enquanto. — A voz dele retiniu com uma implícita promessa sombria. — Esperamos vir a saber a identidade da pessoa. Talvez vos possamos dizer mais alguma coisa nessa altura.

Por mais incómoda que a reunião fosse para Laura, ela podia andar de cabeça um pouco mais erguida uma vez ela terminada. Recebera um pedido de desculpas público de Tucker e de Isaiah e fora ilibada daquilo de que era acusada. Contudo, havia um senão. Deu por si a olhar nos olhos os seus co-legas de trabalho em alturas inesperadas, perguntando a si própria se aquela pessoa seria quem a tramara de forma tão ardilosa.

Com a Festa de Acção de Graças a aproximar-se rapidamente, Laura viu-se de novo encarregada da decoração da clínica para essa festividade, o que fez com que as duas semanas seguintes passassem como uma névoa indistinta. Para seu grande alívio, não aconteceu mais nada de especial na clínica durante esse tempo. Era quase como se a segurança mais apertada e as revelações feitas por Tucker e por Isaiah na reunião de pessoal tivessem assustado o brincalhão e feito com que ele — ou ela — recuasse.

Na segunda-feira anterior à Festa de Acção de Graças, quando a Val afixou o horário de trabalho para a festividade em ambos os blocos cirúrgicos, Laura estudou-o ansiosamente. Para o fim-de-semana de quatro dias que se aproximava, só o pessoal de escritório estaria isento de trabalhar algumas horas. Apesar de a clínica ficar fechada ao público, os animais hospitalizados iriam precisar de cuidados. Laura ficou feliz por saber que o seu turno para o fim-de-semana se resumia à manhã de sexta-feira, o que lhe libertava o resto do fim-de-semana prolongado. Poderia assim passar o Dia de Acção de Graças com os Coulter, como planeado.

Durante a semana de Acção de Graças, quando Laura não estava a tra-balhar na clínica, passava o tempo a decorar o seu apartamento com cores apropriadas à época e a cozinhar todo o tipo de guloseimas. Fez bolachas, biscoitos e tartes para levar para a clínica. Cozinhou tartes de maçã e de abóbora, guardando-as depois no congelador até as poder transportar para a casa dos Coulter, para o jantar de Acção de Graças.

Sem que Laura desse por isso, chegou a véspera do Dia de Acção de Graças. Acabara de colocar sobre o fogão uma caçarola de feijão com tomate, que preparara como acompanhamento da refeição festiva do dia seguinte, e estava a revistar o roupeiro, desesperadamente à procura de qualquer coisa para vestir, quando o telefone tocou. Resmungando, atirou-se sobre a cama para pegar no telefone sem fios.

— Está?

— Olá, Laura. É o James.Laura sorriu e rolou sobre a cama até ficar deitada de costas. Gostava de

James Masterson. Embora fosse técnico e trabalhasse principalmente com Isaiah, visitava com frequência os canis para tratar dos cães. Vinha sempre com guloseimas para lhes dar e passava alguns minutos com cada animal. Tinha um ar bondoso e gentil, que Laura considerava ser raro num rapaz novo.

— James! Olá. A que devo esta honra?— Eu, hum, eu... eu só... — interrompeu-se e engoliu audivelmente em seco.Normalmente, era Laura quem gaguejava. O sorriso dela desvaneceu-se,

para dar lugar a preocupação.— Estás bem?— Óptimo, estou óptimo... — respondeu ele, engolindo novamente em seco,

com o som de um plunc abafado a ser transmitido pela linha. — Olha, eu sei que estou a telefonar à última hora, e tu pro-provavelmente tens já planos, mas eu estava... bem... queria-te perguntar o que fazes amanhã. Os meus pais estão em Reno. Pensei que nos pudéssemos encontrar e, bem, darmos uma volta.

O coração de Laura bateu mais depressa. Há já muito tempo que não ouvia um rapaz gaguejar de nervosismo ao convidá-la para sair. O James? Ela achava que ele deveria estar nos vinte e poucos anos, o que o tornava demasiado novo para ela. Mesmo assim, era lisonjeiro saber que o rapaz tinha uma paixoneta por ela.

Não querendo ferir os sentimentos dele, Laura procurou a coisa certa para dizer.— Oh, James, eu adoraria sair contigo, mas já tenho planos para amanhã.

—Ah.Ela sentou-se e afastou o cabelo dos olhos.— Desculpa. Vou com a minha avó jantar a casa de uma pessoa amiga —

disse Laura, pensando ser melhor não dizer que a pessoa amiga era a mãe do patrão de ambos. — Esta é a minha primeira grande fes-tividade desde que os meus pais se mudaram. Sou o único membro da fa-mília que a avó tem na cidade, e eu tenho mesmo de passar o dia com ela.

— Oh — disse ele, parecendo abatido. — Bem, claro, vais então passar o dia com ela. Compreendo perfeitamente. Era só uma ideia. Sabes... vou enfrentar o dia sozinho. Pensei que estivesses numa situação semelhante e pudesses querer companhia.

Laura desejava de todo o coração poder convidar James para o jantar em casa dos Coulter, mas isso não competia a ela.

— Que pena! Ninguém deve passar o Dia de Acção de Graças sozinho.— Ah, bem, vou alugar alguns filmes e beber umas cervejas. Bem... — disse

ele, arrastando a voz no final.Laura disse rapidamente.— Muito obrigada por teres pensado em mim, James. Foi muito querido da

tua parte. Se eu não tivesse já planos, aceitaria com muito gosto.— Oh, bem, pois. Claro que pensei em ti. Trabalhamos juntos, e tudo o

mais...Laura franziu o sobrolho ao desligar o telefone. Incomodava-a saber que o

James ia passar o Dia de Acção de Graças sozinho. Foi até à cozinha para tirar o telemóvel da carteira. Carregando nas teclas para trazer os símbolos ao ecrã, rolou-o para baixo até ver o balão que a sua avó programara para Isaiah na mesma manhã que ela fora tramada na clínica. Laura nunca incomodara o seu patrão ligando-lhe para casa, mas sentia que aquilo era importante.

— Está? — A voz dele veio pela linha, profunda e sedosa.— Olá, Isaiah, é a Laura.— Laura! Ia agora mesmo telefonar-lhe.— Ia?— Sim, para confirmar para amanhã. Ainda está a tencionar ir?Laura encostou a anca ao armário.— Estou. Foi mais ou menos por isso que t'fonei. O James acaba de ligar

para ver se eu gos-taria de sair com ele amanhã.Silêncio. Depois, com a voz subitamente tensa, Isaiah disse:— Ai é?A mudança no tom de voz dele apanhou Laura de surpresa.— Sim. Os pais dele foram para Reno, e ele vai estar sozinho. Sinto-me mal

com isso.— Não sabia que você e o James eram assim tão chegados.— Somos apenas amigos. De todos os técnicos, é ele quem eu vejo mais.

Quando ele visita os canis, fica sempre um bocado.— Fica, não fica?Laura ergueu as sobrancelhas.— Isaiah, parece-me estar per-turbado. Está-me a escapar alguma coisa?Ele hesitou, e depois disse:— Na terça-feira à noite, quando me encontrei com o Tucker, debatemos a

possibilidade de que a pessoa que a tramou possa ser um homem que se julgue apaixonado por si... alguém que a Laura tenha inadvertidamente ignorado ou ofendido.

Sentindo os joelhos subitamente fracos, Laura foi até à mesa e deixou-se cair numa cadeira.

— O James?— Ele é homem, e sente obviamente qualquer coisa por si.— Vejo-o mais como um miúdo.— E exactamente isso. Ser tratado como um miúdo pode pôr o tipo

completamente lixado. Fere-lhe o ego. Está a compreender?Laura compreendia perfeitamente. Só que nunca detectara qualquer sinal

de raiva em James.— Não é normal que um homem convide uma mulher para passar o Dia de

Acção de Graças com ele a não ser que ande atrás dela — acrescentou ele.Laura lembrou-se da forma como James gaguejou quando lhe telefonou,

dando-lhe a impressão de que tinha um fraco por ela.— Sempre fui simpática para o James. Se ele tem um fraco por mim, como

você diz, não lhe dei qualquer motivo para que esteja zangado comigo.— Talvez a Laura não tenha sido suficientemente simpática na óptica dele

— contrapôs Isaiah. — Quem quer que tenha feito isto tem um parafuso a menos, querida. E isso não é coisa que se possa sempre detectar só por falar com um tipo. O que a Laura pode achar que se trata de um relacionamento de amizade com um colega de trabalho simpático pode ser para ele o romance do século. Se calhar, a certa altura ele estava a falar consigo e a Laura distraiu-se com qualquer coisa. Ou saiu do pé dele por ter trabalho a fazer. Não podemos saber o que origina uma crise num tarado.

O James, um tarado? Laura sentiu-se doente. Alguém estava determinado a tramá-la. Isso era um facto inegável. Mas, meu Deus, ela não queria que fosse o James. Contudo, quando pensava nisso, não conseguia pensar em ninguém da clínica que queria que fosse.

— Oh, Isaiah — suspirou ela, abalada. — E eu ia pre-cisa-mente per-guntar-lhe se ele podia também ser con-vidado para o jantar...

Isaiah suspirou, e depois ela ouviu o som dos passos dele, botas de co- wboy a soarem sobre ladrilho.

— Bem, penso que o podemos convidar. O facto de ele ter uma queda por si não o torna necessariamente culpado do que quer que seja. Só significa que tem de se andar de olho nele.

— Eu não queria é que ele jantasse sozinho...— Vou-lhe telefonar a convidá-lo para se juntar a nós — o som de água a

correr ouvia-se como fundo. — Quantos mais, melhor.— A sua mãe não se importa?Ele deu uma risadinha seca.— A casa vai estar tão apinhada de gente que provavelmente ela nem

sequer vai dar por isso. Os jantares festivos dos Coulter começam todos com a colocação caótica das cadeiras.

Laura esqueceu-se da sua preocupação com James e sorriu ao telefone.— Cadeiras? — repetiu ela.— Oh, sim. Comermos até ficarmos empanturrados é apenas uma das

muitas atracções. As cadeiras estão na primeira linha do programa. Lembre-se de que sou um de seis filhos, e de que eu e o Tucker somos os únicos que ainda não demos o nó e começámos a multiplicar-nos. A Bethany e o marido têm dois miúdos. O Jake e a mulher, a Molly, têm um e vem outro a caminho. Depois, há o Hank, a Carly e o bebé deles. O Zeke e a Natalie e os seus dois filhos somam mais quatro, e a mãe insiste sempre em convidar todo o clã Westfield.

— Quem são esses?— A família da mulher do Zeke. Depois, por insistência da mãe, o Tucker vai

trazer uma namorada. A sua avó e um tipo qualquer chamado Frank também lá vão estar. A Laura e eu constituímos outro casal. E, conhecendo a minha mãe como conheço, ela convidou os Kendricks, toda a miudagem deles, e metade dos trabalhadores do rancho do Zeke e do Hank, o Lazy J. — Isaiah fez uma pausa, murmurando números enquanto tentava calcular o total de pessoas. — Quantas pessoas faz isso?

— E está-me a perguntar a mim?Ele riu-se de novo.— Vai buscar os teus feijões, miúda!— Creio que são mais de vinte — disse ela. — É consigo.— Raios. Esqueci-me de contar a minha gente. Imagine sardinhas a

agitarem-se dentro de uma lata. A casa dos meus pais não é assim tão grande. Sempre me questionei como é que a minha mãe consegue encaixar tanta gente, mas o facto é que consegue sempre. Alugam mesas e cadeiras dobrá-veis, e ela arranja daquelas toalhas de mesa de plástico que parecem pano. Não montamos as mesas antes da hora da janta. Até essa altura, limitamo-nos a alinhar duas filas de cadeiras contra as paredes da sala. Logo que chegamos, lançamo-nos todos ao trabalho. Assim todos conseguem arranjar lugar para se sentar. É sempre uma enorme confusão, com toda a gente a falar ao mesmo tempo e os miúdos a correrem pelo labirinto, não batendo por pouco com a cabeça numa ou noutra perna de cadeira.

Parecia divertido para Laura, que gostara sempre das suas reuniões fa-miliares. Só a ideia de enfrentar um tão grande número de estranhos pôs-lhe as palmas das mãos a suar.

— O que devo vestir?

— Roupas.Ela resfolgou e depois corou pelo barulho que fizera.— Sabe o que quero dizer. E traje de cerimónia?— Vai ver um pouco de tudo, jeans, calças de treino, vestidos. Não se

preocupe com isso.— Eu não quero parecer deslocada...— Parece sempre estupenda, vista o que vestir. A sério, não é razão para se

preocupar.Laura estivera precisamente a procurar no seu armário qualquer coisa

adequada para vestir. Agora desejava ter ido comprar um novo conjunto — ou possivelmente alterar um na sua máquina de costura.

Caiu um silêncio na linha — o tipo de silêncio que ocorre quando duas pessoas se encontram ao telefone sem mais nada para dizerem uma à outra.

— Bem — disse ele, pigarreando. — Vou telefonar ao James a convidá-lo.Laura anuiu com a cabeça, e depois lembrou-se de que ele não a poderia

ver.— Se tiver a certeza de que a sua mãe não se importa, isso seria simpático.

Pelo menos, ele terá um sítio aonde ir.— Eu vou lá estar por volta do meio-dia. Se puder chegar lá a essa hora,

óptimo. Senão, a refeição propriamente dita só começará cerca das três e meia.

Laura não queria chegar imediatamente antes de a refeição ser servida. Parecia mal não confraternizar um pouco nem ajudar na cozinha.

— Ao meio-dia está bem...— Óptimo. Até lá, então. — Outro silêncio. Depois: — Durma bem. Não deixe

que os percevejos lhe mordam...Quando a conversa terminou, Laura voltou ao quarto para continuar a

busca no roupeiro. Acabara de desencantar três vestidos de Inverno e estava a tentar escolher um deles quando tocou outra vez.

Ela agarrou no telefone que estava sobre a cama, para onde o atirara.— Está?— Olá, Laura. É outra vez o Isaiah. Acabo de falar com o James. Recusou o

convite.— Recusou?— Terminantemente — respondeu Isaiah, pigarreando. — Tive a impressão

de que ele não ficou nada satisfeito por saber que a Laura vai passar o dia comigo.

— Não é nada disso...— Ambos sabemos isso, mas o James não sabe. O gajo precisa mesmo de

ser vigiado. Vou alertar o Tucker. O James pode ser o nosso homem.Laura não queria acreditar naquilo. O James não lhe parecia o tipo de

homem capaz de fazer mal a um animal. Parecia mesmo gostar dos cães e era sempre muito carinhoso para com eles. Era verdade que ele metia sempre conversa com ela quando ia aos canis. Era possível que ele estivesse a alimentar uma paixão por ela desde que Laura começou a trabalhar na clínica. Mas se ela alguma vez o deixou despeitado, ele nunca o demonstrou.

— Tenha cuidado com ele, okayl Só para estar de sobreaviso — disse Isaiah. — Se o James alguma vez aparecer na clínica quando a Laura lá estiver sozinha, telefone-me imediatamente, está bem?

Laura assegurou a Isaiah de que o faria. Depois de desligar, sentou-se na beira da cama, a olhar absorta para o chão. Talvez ela fosse apenas péssima juíza de caracteres, mas os seus instintos diziam-lhe que James era inocente.

Dobrado pela cintura, com uma perna esticada por detrás dele, Isaiah estava junto ao lava-loiças da cozinha, com os braços apoiados na borda da bacia. Olhava pensativamente para fora, para a noite, iluminada apenas pelas estrelas e por uma lua ainda no primeiro quarto. Não é nada disso, afirmou Laura quando ele lhe disse que James parecera agastado por eles irem passar o dia juntos. Intelectualmente, Isaiah estava absolutamente de acordo. Não era assim que as coisas se passavam entre eles — nem poderiam passar-se. Ele precisava de mais um par de anos para alicerçar a sua prática de clínica veterinária antes de se comprometer com uma mulher. Uma relação séria? Nem pensar. E, com uma pessoa como a Laura, uma relação séria era a única opção.

Então por que razão estava ele a antecipar o dia seguinte como um miúdo adolescente ansioso pela sua primeira saída com uma rapariga? E por que raio ele a encorajara a vir tão cedo? Bolas. Dois ou três jogos de damas ocupariam cerca de uma hora. Que raio iriam eles fazer com o resto do tempo?

Isaiah precisava de ter a cabeça fria no que a ela dizia respeito. Por outro lado, por mais bonita e querida que ela fosse, ele estava completamente desinteressado. Mas, curiosamente, quando a parte desinteressada dele não estava atenta, outra parte dele parecia trabalhar com uma finalidade contrária, fazendo-o pedir-lhe para que aparecesse cedo ao jantar da família. Não era coisa boa. Se ele não tivesse cuidado, poderia estar-lhe a transmitir a ideia errada.

Laura era uma querida. Ele não queria involuntariamente dar-lhe espe-ranças onde não havia nenhuma e acabar por a magoar.

No dia seguinte, passados dez minutos do meio-dia, Isaiah, que estivera a dispor as cadeiras com um ouvido atento à porta da frente, ouviu a campainha tocar. Teve de abrir caminho por entre a turba de familiares a transportarem cadeiras para chegar à porta. Então, quando a abriu, tudo o que conseguiu fazer foi ficar a olhar, extasiado. Com um casaco de lã cinzento dobrado num dos braços, Laura estava de pé no alpendre. Envergava um vestido cor de vinho escura, com decote em V e mangas compridas. Feito de malha de lã, o vestido era cintado, abrindo-se depois em pregas graciosas que pendiam até meio da tíbia, revelando um par de botas de couro preto brilhante que lhe realçavam os tornozelos finos e as pernas bem feitas. Uau.

— Olá! — disse ela, lançando-lhe um daqueles sorrisos deslumbrantes que lhe faziam covinhas nas faces. — Espero não ter vindo cedo demais. Disse para eu vir ao meio-dia, não foi?

Tudo o que Isaiah conseguiu fazer foi abanar a cabeça afirmativamente. Linda. Ela era linda de morrer. O suficiente para fazer com que a língua de um homem ficasse colada ao palato. Isaiah deu um passo atrás para a deixar entrar. Quando ela atravessou a soleira para a luz mais ténue do interior, ele ainda não conseguira tirar os olhos dela. Fazia-lhe lembrar um cálice de vinho atravessado pela luz de velas, com o medalhão dourado que trazia ao pescoço a reluzir contra o branco pérola da sua pele. Três dos seus irmãos casaram com mulheres belíssimas mas, na opinião de Isaiah, Laura metia-as a todas num canto.

Tem cuidado, maçarico, sussurrava-lhe uma vozinha dentro da cabeça. Pois de contrário ele iria apaixonar-se por esta rapariga — uma paixão completa, desabrida e irrevogável.

— Vem mesmo a horas — conseguiu por fim ele dizer.Ela estava a olhar, de olhos arregalados, para toda a gente na sala. Isaiah

seguiu-lhe o olhar e quase que estremeceu. A família dele aguentava-se bem

em doses reduzidas, mas quando se reuniam todos o resultado era bastante avassalador. O miúdo de Hank, agora com oito meses, estava aos berros, e Hank estava a praticar a «dança do bebé aos ombros» para o acalmar, enquanto a sua mulher, Carly, uma loirinha engraçada, esvoaçava-lhe an-siosamente em volta dos ombros. Zeke estava a atravessar o aposento com quatro cadeiras dobradas erguidas ao alto bem acima da sua cabeça morena, para evitar dar com elas em alguém. A sua mulher, Natalie, debitava entu-siasticamente o «Forever and Always», a canção favorita deles, enquanto dispunha as cadeiras numa fila muito arrumadinha. Jake, o irmão mais velho, tinha um braço sobre a sua mulher grávida, Molly, e estava a tentar, sem grande sucesso, dar um passo de valsa com ela sem pisar ninguém. O filho deles, Garrett, que faria três anos em Fevereiro, e o filho da Bethany, Sly, que faria quatro em Abril, estavam entretidos a bater à vez um no outro com um martelo de espuma, o que deviam achar muito divertido, a julgar pelas risadinhas e guinchos que soltavam. Para aumentar a confusão, Gramps, o avô de Natalie, um resmungão intratável com oitenta e cinco anos, que ainda por cima era surdo como uma porta, estava debruçado sobre os dois filhos dela, o Chad e a Rosie, que se encontravam sentados no chão em frente da televisão. Não parava de gritar:

— Playstation, foi o que vocês disseram? Quem diria!Ou:— Vejam-me só aquilo!Ou ainda:— O que é que eles irão inventar mais?— Desculpe — disse Isaiah. — A minha família é um pouco excêntrica. —

Depois, erguendo a voz até quase gritar, disse: — Ei, ouçam todos! Esta é a Laura. Tenham maneiras e apresentem-se!

Jake rodopiou a mulher até ambos pararem e apertou-a contra ele, com a sua grande mão assente de forma possessiva e com familiaridade provocante sobre a anca bem torneada dela. Molly, com o seu cabelo cor de âmbar a formar um halo de curtos caracóis em redor da cara, deu uma risadinha, deslocou a mão dele de novo para a sua cintura e roçou-se alegremente pelo ombro do marido.

— Olá, Laura, sê bem-vinda! — saudou ela, em voz alta. — Eu sou a Molly. Este grande trangalhadanças é o Jake, o irmão mais velho do Isaiah.

Hank mudou a posição do pequeno Hank que trazia aos ombros e olhou para Laura por cima da fralda do filho.

— Eu sou o Hank, o penúltimo da ninhada...Carly franziu os seus grandes olhos azuis para ver.— Olá, Laura, sou a Carly. Sou a mulher do Hank. Ainda não consigo ver

muito bem ao longe. Fui operada à vista há uns tempos e ainda não consigo focar...

— Terrível — atalhou Hank, cortando o discurso a Carly. — O que ela está a tentar dizer é para a Laura não ficar ofendida se ela a vir outra vez mais tarde e voltar a apresentar-se.

Carly riu-se e lançou uma série de beijos pelo ar na direcção do seu bebé berrão.

— Este é o pequeno Hank. Está agora a tentar partir os cristais da avó com os seus berros.

Ryan Kendrick, também a transportar cadeiras, depôs um carregamento delas contra uma parede, passou uma grande mão sobre o cabelo negro para o

alisar onde fora levantado pelo vento quando estivera no exterior e sorriu na direcção deles.

— Viva, Laura. Sou o Ryan, o marido da Bethany — disse ele, olhando em volta à procura da mulher. — Ela deve andar algures por aí...

— Estou aqui! — exclamou Bethany, atravessando a porta em arco, vinda da cozinha, na sua cadeira de rodas. — Olá, Laura. Vens mesmo a tempo. A mãe está a tentar mexer quatro tachos ao mesmo tempo, e eu não consigo chegar ao fogão para a ajudar.

Laura olhou para o casaco que trazia no braço e depois para Isaiah.— Trouxe comida. No banco de trás do meu carro — disse ela, atirando-lhe o

casaco para as mãos. — Não se importa de ma ir buscar?E de repente, sem mais nem menos, Isaiah perdeu-a de vista.Quando ele entrou na cozinha alguns minutos depois, trazendo uma

travessa com duas tartes, encontrou Laura ao fogão, com o seu bonito vestido cor-de-vinho já meio coberto por um dos aventais brancos bordados da sua mãe. Ela estava a mexer comida em panelas, a ajustar a temperatura dos bicos de gás e a rir-se com qualquer coisa que a mãe dele acabara de dizer.

— Oh, Laura, não devias ter-te incomodado! — gritou Mary quando viu as tartes. — Meu Deus, que lindas! — Depois, com um sorriso malicioso para Isaiah, disse: — Imagina! Uma rapariga moderna que sabe cozinhar! Que outras maravilhas nos esperarão? — Voltou então de novo a atenção para as sobremesas. — A minha abóbora ficou um pouquinho tostada demais este ano. A tua está perfeita, Laura.

O cheiro de peru e fiambre a assar fez o estômago de Isaiah emitir um ronco. Pousou a travessa e lançou a mão a um dos canapés dispostos num grande prato, ganhando com isso uma palmada na mão da parte da sua mãe.

— Não lhes toques! — ralhou Mary.— Mas estou com fome!Mary revirou os olhos, meteu-lhe um pequeno canapé na boca e depois

redispôs os outros de modo a preencher o lugar vago.— Arranja uma sanduíche. Estes são para os convivas.— E o que é que eu sou, presunto às fatias?Esta era uma pega que Mary tinha com todos os seus filhos a cada reunião

festiva desde que eram crianças.— Fora daqui! — resmungou ela. — Senão, ponho-te a trabalhar.Normalmente, Isaiah fugia a sete pés quando ouvia aquela ameaça, mas

hoje estava tentado a ficar. Olhou para a figura esbelta de Laura, que estava de costas para ele.

— O que posso fazer?Mary ergueu as sobrancelhas. Olhou ainda para Laura. Depois, lançou ao

filho outro sorriso malicioso.— Podes raspar a casca de uma laranja para o molho de arando, se

quiseres...Isaiah queria. Depois, ajudou Laura a cortar fruta para uma coisa chamada

ambrosia. A seguir, arranjou o peru fumado, que os seus pais compraram no talho completamente preparado e que iria ser servido morno, aquecido no microondas. Depois disso, despejou óleo na caçarola que estava no exterior, sobre o deck, e acendeu o fogareiro a propano sobre o qual ela estava assente, para o peru frito, um prato que fora acrescentado ao menu do jantar de Acção de Graças dos Coulter há um par de anos.

— Três perus? — exclamou Laura, espantada.Isaiah riu-se.

— Temos imensa gente para alimentar. Já alguma vez provou peru frito?— Não.— É delicioso — disse ele, beijando as pontas dos dedos. — Tão húmido e

saboroso que nem dá para acreditar nas nossas papilas gustativas. Também se cozinha bastante rápido, demora muito menos que assar um peru à moda antiga.

Cozinhar não era propriamente uma coisa de que ele gostasse mas, como acontecia sempre que estava com Laura, Isaiah teve satisfação em fazê-lo. Também tinha o benefício acrescido de poder surripiar bocadinhos de comida sem o perigo de ser apanhado. De quando em quando, Laura rearranjava os acepipes nas travessas para disfarçar o facto de ele andar a petiscar.

Aquilo funcionou até Bethany se juntar a eles na cozinha para dar de mamar à sua filha de sete meses, Chastity Ann. Quando ela viu Isaiah surripiar um ovo à la diable do frigorífico enquanto a mãe dele estava de costas, gritou em cantilena, suficientemente alto para acordar cobras em cinco condados:

— Mãe, o Isaiah está a roubar comida! — A acusação vinha da infância deles, e ela estragou o efeito por se começar a rir. — Disseste que ainda não podíamos petiscar nada, mas ele não está a fazer caso!

Mary lançou a Isaiah um olhar de reprovação.— Se eu não tiver acepipes suficientes para os meus convidados, nem sei o

que te faço!— Queixinhas! — disse Isaiah à irmã. Depois, voltou-se para a mãe e, numa

voz esganiçada de contralto, disse: — Mamã, faz a Betty parar de fazer queixinhas de mim!

Mary riu-se e revirou os olhos.— Graças a Deus que esses dias já lá vão!Laura, que estava debruçada sobre o fogão, endireitou-se, com as faces

afogueadas pelo calor, os olhos a brilharem.— Eles brigavam muito quando eram pequenos? — perguntou.— Muito? Com seis miúdos à trela, as guerras nunca tinham tréguas.— Fedelha! — disse Isaiah para a irmã, atravessando a cozinha para dar um

puxão ao cabelo escuro da irmã e depois inclinar-se para beijar os caracóis negros de Chastity. Agachando-se junto à cadeira de rodas, ele contemplou a sobrinha por um momento e depois sussurrou:

— Ela é tão bonita, Bethany Ann. — Em seguida, ergueu o olhar para a irmã. — A cópia perfeita da mamã dela.

Bethany, tapando por pudor o seio com uma toalha de mãos enquanto a bebé mamava, lançou um sorriso orgulhoso ao irmão.

— Ela não se parece assim tanto comigo. Acho que ela tem o nariz do pai.— Cala-me essa boca! — disse Ryan, entrando na cozinha. Debruçando-se

sobre o ombro da mulher, observou a filhinha bebé e depois disse em tom ditatorial: — Nenhuma filha minha terá a penca dos Kendrick!

— Eu gosto do teu nariz — protestou Bethany.— Pois, está bem... — replicou Ryan. — Não sou uma rapariga.— Facto pelo qual estou muito grata — gracejou Bethany.A campainha da porta tocou nesse preciso momento, e o resto da família

Kendrick entrou. Ryan saiu da cozinha para cumprimentar os seus pais, Keefe e Ann Kendrick, e depois o irmão mais velho, Rafe, um homem alto e magro com cabelo negro azeviche e pele escura que bem poderia passar por seu sósia. A mulher de Rafe, Maggie, uma morena baixinha e muito atraente, estava ao lado do marido. Flanqueando o casal, estavam os filhos, Jaimie, que fizera sete

anos em Setembro, e Amélia, que completara os cinco há apenas duas semanas.

Quando Isaiah estava a apresentar as pessoas a Laura, esta interrompeu-o para perguntar:

— Sabe a idade de cada uma das pessoas?Ele pensou um segundo no assunto e depois riu-se.— Lembra-se de todos aqueles presentes de aniversário que estou sempre a

comprar? Agora sabe porquê. É rara a semana em que não haja uma festa de aniversário.

A sala de estar estava agora tão cheia que parecia poder rebentar pelas costuras. Etta Parks, a avó de Laura, chegou de braço dado com um cavalheiro idoso mas de bom porte que ela apresentou como sendo Frank. Isaiah chegou à conclusão de que a sua mãe estava perfeitamente louca por ter convidado tanta gente. Levou Laura através da turba, até uma cadeira.

— A Laura é uma convidada — insistiu ele. — Já fez o suficiente na cozinha. Fique aqui e trave conhecimento com toda a gente.

Os olhos de Laura arregalaram-se quando passou revista à multidão.— Oh, eu não creio...Antes de Laura poder completar a objecção, a mulher de Jake, Molly, veio

sentar-se a seu lado.— Portanto você é a fabulosa zeladora de canil de quem tanto tenho ouvido

falar...— Oh, bem — disse Laura, corando. — Ouviu falar de mim?Molly riu-se e fez sinal a Maggie e a Natalie para que se juntassem a elas.

Quando Isaiah saiu da sala para ir ajudar a mãe na cozinha, Laura já estava profundamente embrenhada em conversa.

O jantar foi fabuloso. A sala fora esvaziada de toda a sua mobília no dia anterior, e, quando toda a carne estava quase pronta, os homens montaram dez mesas de um metro e oitenta, topo a topo, para acomodar os convidados. Logo que as mesas foram montadas, as mulheres lançaram-se ao trabalho, cobrindo-as com toalhas e colocando pratos, talheres e copos. Nada condizia. Todos os serviços de loiça que Mary Coulter possuía foram trazidos para a mesa, incluindo o serviço de porcelana do casamento da avó McBride, acrescidos de dois serviços de quarenta peças pertencentes a Ann Kendrick. Algumas pessoas ficaram com copos de vinho de plástico transparente em vez de cristal genuíno. Não havia sequer talheres que chegassem, e por isso toda a gente ficou apenas com um garfo.

Contudo, a comida era abundante e maravilhosamente preparada, e toda a gente se divertiu. Contaram-se anedotas, e todos se riram delas, quer tivessem ou não graça. Trocaram-se mexericos. As crianças pintaram a manta. Por mais do que uma vez durante a refeição, Isaiah olhou de soslaio para Laura a pedir-lhe desculpa por toda aquela confusão.

Ela sorriu-lhe e disse:— Adoro isto!Isaiah olhou em volta para todas aquelas caras, algumas delas tão co-

nhecidas suas quanto a sua própria cara, outras não. O Hank e o filho da Carly estavam sentados numa cadeira alta entre eles, forçando o casal a inclinar-se para a frente ou para trás para ouvir o que um deles dizia baixo ao outro. Zeke e a sua mulher, Natalie, pareciam colados um ao outro pelas ancas, ainda tão apaixonados que não tinham olhos para mais ninguém, à excepção dos seus filhos, os quais lhes exigiam ocasionalmente atenção. Jake e Molly, que eram o segundo casal há mais tempo casado, contentavam-se em fixarem

ocasionalmente os olhos um no outro, os olhares que passavam entre eles cheios de um amor profundo e fiel. Por andar de cadeira de rodas, Bethany ficou sentada numa extremidade da mesa, com o marido, Ryan, à sua direita e o filho à esquerda. Ryan tinha a filha sentada num joelho, dando-lhe a comer puré de batata e recheio entre duas garfadas dele.

A cada extremidade da mesa do centro, que acomodava todos os convivas mais idosos, sentavam-se os pais de Isaiah em lugares de honra, falando num tom mais alto do que o normal de modo a não excluir os seus convidados. Mary Coulter tinha o ar de uma doce matrona com o seu bonito vestido azul, enquanto cavaqueava alegremente com a avó de Laura, que se sentava à sua direita, e com Ann Kendrick, sentada à sua esquerda. No extremo oposto da mesa, Harv era uma versão mais velha dos seus filhos, um homem magro mas bem musculado, de pele morena, e com o cabelo grisalho — que outrora fora negro — a ficar completamente branco nas têmporas. Travava um debate aceso com o pai de Natalie, Pete, e com Keefe Kendrick, enquanto comia, só fazendo uma pausa de tempos em tempos para se repetir quando Gramps, o avô de Natalie, fazia uma concha com a mão por detrás do ouvido e berrava: «O que é que disseste?»

Família. Tudo se resumia a isso, pensou Isaiah, sentindo-se subitamente nostálgico. Os miúdos cresciam, apaixonavam-se, casavam-se e tinham filhos, até que muito em breve uma sala de estar de boas dimensões mal os poderia conter a todos. Não faltaria muito para que, após ele e o Tucker se casarem, tivessem de arrendar um pavilhão para celebrar as suas festividades. Mas seria óptimo, também. Não se tratava do ambiente, fosse ele luxuoso ou improvisado. Tratava-se do pintar a manta, dos avós surdos, das rivalidades de irmãos e das tribulações da vida quotidiana, as quais eram ultrapassadas ou toleradas porque, subjacente a tudo, o amor fazia com que as pequenas irritações parecessem bênçãos.

Por mais do que uma vez, Isaiah apanhou Laura a olhar para os bebés e para as crianças pequenas com um sorriso melancólico a curvar-lhe os lábios. Quando Isaiah seguiu o olhar dela, desejou sentir-se presunçoso e satisfeito consigo mesmo. Não tinha fraldas sujas para mudar. Deixaria para os irmãos esse prazer. Contudo, sentiu-se também estranhamente triste.

Era decerto devido à ocasião, tentou convencer-se Isaiah. Qualquer festividade ou reunião familiar podia fazer com que alguém se sentisse um pouco sentimental. Só que Isaiah sabia que não era apenas isso. Ao observar os seus irmãos casados, ao ver o amor e o orgulho estampados nas suas expressões quando olhavam para as suas mulheres e filhos, foi forçado a admitir, mesmo que só para si próprio, que estava a ficar cansado de ser solteiro. Logo que a sua clínica e a sua carreira estivessem seguras, teria de começar a pensar seriamente em assentar.

Nessa noite, quando a festa terminasse, o Jake, o Zeke e o Hank não sairiam sozinhos, e quando chegassem a casa não vagueariam solitários por divisões enormes e sem mobília, a ecoarem como túmulos. Em vez disso, cada um deles iria sair da festa com uma criança adormecida nos braços, levando com elas para casa uma parte do barulho, da confusão e do riso.

Isaiah olhou pensativamente para Laura, e a sensação que o tomara pela garganta quando ela chegara avassalou-o de novo. Tentou escorraçá-la e, não o conseguindo, ignorá-la desesperadamente. Mas era incapaz de tirar o olhar do lindo perfil de Laura. Querida. A palavra dava-lhe voltas à cabeça sempre que ele olhava para ela. Adorava a forma como ela se ria, um riso leve, musical e natural. Com o tempo, passou mesmo a gostar da forma como ela falava —

sempre tão devagar, a escolher cuidadosamente cada palavra. A cadência do discurso dela acalmava-o, talvez por o forçar também a abrandar o seu próprio ritmo.

Keefe Kendrick pôs-se de pé e bateu no seu copo de vinho de cristal com a ponta da faca.

— Antes que este maravilhoso jantar termine, gostaria de expressar os meus agradecimentos à Mary e ao Harv pela gentileza de terem aberto a sua casa a todos nós — disse ele, olhando em redor da sala. — Uma multidão e peras... Dar uma refeição a tanta gente não é tarefa fácil. — Sorriu e inclinou a cabeça para Mary. — Um jantar estupendo, Mary. Nem mesmo a minha Annie conseguiria fazer melhor, e ela é uma das melhores cozinheiras deste lado da Linha Divisória1.

Ann Kendrick corou e rejeitou o elogio fazendo beicinho e enxotando-o com um movimento da mão.

— Estás-me a dar graxa... — disse ela. — O que é que queres?Keefe sorriu e piscou-lhe o olho. Depois, virou-se para o seu anfitrião.— Infelizmente, uma mulher não pode exibir os seus dotes culinários a

tanta gente sem fazer um grande rombo na carteira do marido, portanto alguns dos agradecimentos têm de ir para o chato intratável com quem a Mary está casada. Obrigado, Harv. E agora, se não te importas, tenho de saber: onde raio foste desencantar a ideia de cozinhar um peru na fritadeira?

— Programas de culinária — informou-o Gramps. — Nunca vês televisão?Toda a gente se riu e secundou a apreciação de Keefe acerca da refeição.

Quando os elogios esmoreceram um pouco, Harv disse:— Já chega destas coisas suculentas! Mary, está na hora da sobremesa!Irromperam reclamações de todas as mesas, mas foram seguidos de risos e

de preferências declaradas em voz alta:— Tarte de abóbora para mim!— Podes ficar com a de abóbora. Eu quero é uma fatia dessa de noz-pecã!— Quero gelado na minha, por favor!Depois da refeição, Laura e a mãe de Isaiah foram banidas da cozinha, por

terem ambas trabalhado tanto na preparação do repasto. A namorada de Tucker, uma «pãozinho-sem-sal» alta e magra chamada Grace, que viera para o jantar com uma; jeans Wrangler justíssimas e uma camisa do Oeste com franjas, insistira em ajudar a arrumar e a lavar a loiça. Enquanto Ryan ficou a tomar conta do bebé, Bethany levantava os pratos e talheres das mesas, andando infatigavelmente de um lado para o outro na sua cadeira de rodas, indo das mesas para a cozinha com pilhas de loiça suja sobre o colo protegido por uma toalha. O pai de Isaiah e dois dos seus irmãos, Tucker e Jake, arregalaram as mangas para fazerem a parte que lhes competia.

— Daqui para fora! — gritou o pai a Isaiah, quando ele tentou entrar na cozinha. — Já ajudaste a cozinhar.

Isaiah não fizera assim tanto, mas aceitou o édito com gratidão e convidou Laura para darem uma volta a pé. Depois de a ajudar a vestir o casaco e de envergar o seu blusão, levou-a para a noite que descia.

— Ah, o silêncio! — exclamou ele apreciativamente quando chegaram ao alpendre da frente. O barulho não o incomodava particularmente mas, para

1 Possível referência à linha divisória disputada pelos Estados Unidos e pela Grã-Bretanha na primeira metade do século XIX, referente ao domínio das terras do Noroeste, junto ao rio Columbía, e que ficou conhecida como «a Questão do Oregon». Actualmente, essa região compreende, a sul da linha divisória, os estados americanos de Washington, Oregon, Idaho e parte de Montana, e a norte, as províncias canadianas da Columbia Britânica e de Alberta. (N. do T.)

alguém que não estava habituada a ele, parecia-lhe ser de boa educação dizê-lo.

Ela estremeceu de frio e levantou a gola do casaco. Ao longo de ambos os lados da rua, as casas com as janelas iluminadas criavam um fundo dourado e alegre para os carvalhos desnudados e nodosos que cresciam ao longo do separador relvado.

— Gosto daquele barulho todo — retorquiu ela com uma risada. — Com tanta gente, nunca nos aborrecemos.

— É verdade, mas com essa gente toda a falar ao mesmo tempo, fico com os ouvidos cansados passado um bocado.

Ao atravessarem o caminho de cimento que ia do alpendre ao passeio, ela levantou os olhos para o céu plúmbeo, rapidamente a escurecer para o breu.

— Creio que o Inverno já está aqui.— Receio bem que sim — respondeu Isaiah, correndo o fecho do blusão. No

crepúsculo agreste, os passos deles ecoavam de forma ríspida no cimento gelado, com as botas dela a marcarem um ritmo feminino, ligeiramente mais rápido do que o dele. Homem e mulher. O perfume dela chegava até ele, um odor leve e luminoso que lhe ia bem. Sempre que ele se atrevia a olhar para ela, não conseguia evitar que os seus olhos se perdessem na curva graciosa do seu maxilar e da suavidade de marfim da garganta dela que lhe emergia por cima da gola do casaco. — Não deve faltar muito para começar a nevar.

Pensando nas dificuldades de conduzir durante o Inverno, Isaiah ficou surpreendido quando ela disse, a sorrir sonhadoramente;

— Adoro a neve! Também gosta?Ao virarem à esquerda para o passeio, ele abrandou o passo para a

acompanhar.— Oh, sim — disse ele, com uma ponta de sarcasmo. — A neve é óptima.

Não há nada que valha termos de a raspar do pára-brisas às cinco da manhã; ou descobrir, sempre quando estou atrasado, é claro, que as portas estão geladas e não abrem. Escorregar nos degraus é também estupendo. Adoro.

Ela franziu o nariz.— Não seja um velho rabugento. E todas as coisas boas, o que é delas?O olhar irritado que ela lhe lançou trouxe-lhe um sorriso aos lábios.— Tais como?— Tais como ficar sentado à janela com uma caneca de sopa quente, a ver

os flocos de neve a cair...— Há isso... — concedeu ele.— E fazer uma pilha de bolas de neve para uma guerra de bolas de neve...Ele sorriu.— Gosta de guerras de bolas de neve?— E quem não gosta?Não, nem toda a gente gosta, pensou ele. Na verdade, não se conseguia

lembrar quando estivera pela última vez com uma mulher que gostasse sequer minimamente dessa actividade. Cabelo molhado, neve a escorrer pelo pescoço abaixo, levar com uma bola de neve em cheio na cara. A maior parte das mulheres maiores de dezoito anos estremecia de horror só com a ideia.

— E fazer anjos de neve — continuou ela. — Não nos podemos esquecer disso.

Isaiah podia imaginá-la deitada de costas na neve, a divertir-se alegre-mente a agitar os braços e as pernas para criar a imagem de um anjo na neve.

— Também é giro escorregar monte abaixo sobre sacos de lixo de plástico — disse ela.

Isaiah não se conseguia recordar quando deslizara por uma encosta coberta de neve pela última vez.

— Não deixe de fora os gelados de neve — atalhou ele. — Quando eu era miúdo, mal conseguia esperar pelo primeiro nevão. Os meus pais faziam-nos sempre esperar um bocado e só nos deixavam apanhar neve da camada de cima para haver a certeza de que não estava suja.

— Os meus também faziam isso — disse ela, revirando os olhos. — Como se a neve fosse alguma vez verda-deiramente limpa. Se eu tivesse filhos, não os faria esperar.

— Ah, deixe-se disso. A antecipação, a espera, era já metade do gozo. — Isaiah lembrava-se de estar com os irmãos e a irmã à janela da sala, de narizes colados à vidraça. — Pergunto a mim próprio se os gelados de neve ainda sabem bem...

— É claro que sim! — exclamou ela, lançando-lhe um olhar escandalizado. — Os gelados de neve são maravi-lhosos. Já não faz gelados de neve?

Isaiah deu uma risadinha.— Posso inferir daí que a Laura ainda os faz?Com os delicados nós dos dedos rosados pelo frio, ela apertou para si a

parte da frente do casaco e da gola.— Se era divertido quando eu era uma garota, decerto também o será

agora. Porque é que as pessoas pensam que têm de deixar de fazer todas as coisas boas quando crescem?

Era uma excelente pergunta e, sem dúvida alguma, uma das razões pelas quais ele tanto gostava da companhia de Laura. Ela lembrava-lhe que não devia levar sempre a vida tão a sério.

— É-me difícil agora encontrar tempo para esse tipo de coisas... — disse ele.— Arranje-o — disse ela, com os olhos a brilharem como lascas de âmbar

cristalino ao olhar para ele. — Uma vez por dia, to-dos os dias, deveríamos arranjar tempo para sermos de novo miúdos. Senão o fizermos, porquê preocu-parmo-nos? De que vale viver a vida se não nos divertirmos?

— Tem razão — disse ele, com suavidade. — Sei que tem razão. Só que é difícil pensar que há mais coisas na vida para além do trabalho.

Ela encolheu os ombros e suspirou, o hálito dela a sair dos seus lábios rosados num pequeno sopro de vapor.

— Faça um lembrete para si próprio — sugeriu. — Pendure-o no retrovisor — acrescentou, sorrindo-lhe. — Uma coisa simples, como «Diverte-te Uma Vez por Dia».

Isaiah estava mais inclinado a saborear aquele momento enquanto ele durasse. Era apenas um simples passeio num serão de Inverno mas, por qualquer razão, fazê-lo com Laura parecia torná-lo especial.

— Quando nevar, aposto que consigo fazer um boneco de neve melhor do que o seu! — brincou ele.

— Nam-nam! Sou eu quem faz os melhores bonecos de neve!— Nunca viu os meus.— Está combinado! — acordou ela com uma gargalhada. — O que é que

apostamos?Ainda a olhar para a cara dela, Isaiah esteve para propor que o vencedor

levasse um beijo do vencido. Dessa forma, sairia vencedor de qualquer modo. Mas, em vez disso, disparou:

— O vencido terá de cozinhar para a outra pessoa um jantar de sete pratos completo.

Ela aquiesceu.

— Muito bem — disse ela. Depois, franziu ligeiramente o sobrolho. — Eu desco-nhecia que sabia cozinhar...

— E não sei — respondeu ele, ostentando um sorriso de satisfação. — Portanto, se for esperta, é melhor que me deixe ganhar...

Ela recompensou-o com uma súbita gargalhada.— Não é justo!— Já concordou — retorquiu ele. — Agora não pode voltar atrás.Quando voltaram para a casa, tanto velhos como novos tinham-se

agrupado às mesas para jogarem. Ann e Keefe Kendrick eram parceiros contra os pais de Isaiah num jogo de pinocle1. Tucker e Grace, Hank e Carly e Zeke e Natalie estavam a jogar um turbulento jogo de cartas chamado spoons2. Noutra mesa, o jogo da canasta estava no auge, com Bethany e Ryan a jogarem contra os pais de Natalie, Pete e Naomi. O avô de Natalie estava sentado no chão, de pernas cruzadas, em frente da televisão de plasma, completamente absorvido num jogo de basebol de Playstation.

Isaiah abriu caminho por entre bebés a dormirem no chão em carrinhos forrados de cobertores, até descobrir duas cadeiras vagas onde ele e Laura pudessem jogar às damas. Acabaram por partilhar uma mesa com Jake e Molly, que estavam a jogar à pesca com todos os miúdos no extremo oposto. Confiante nas suas capacidades, Isaiah não se sentia preocupado com as distracções que crianças birrentas ou com risadinhas constantes pudessem provocar.

Trinta minutos depois, Laura tinha uma dama e Isaiah estava em sério perigo de levar uma tareia. Com o lábio inferior apanhado entre os dentes, ela lançou-lhe um olhar inocente:

— Desculpe... Eu disse-lhe que era boa nisto.— Não disse nada. Disse que gostava de jogar às damas. É diferente...Para piorar a derrota de Isaiah, a família dele reuniu-se à volta deles para

verem Laura a trucidá-lo.— Força, Laura! — incentivava Zeke. — Ele tem andado há anos a dar a

todos abadas nas damas. Já era tempo de levar uma surra.Isaiah lançou ao irmão um olhar de soslaio assassino.— Dás licença? Estás a interferir com a minha concentração.Tucker debruçou-se sobre o ombro de Laura para analisar o tabuleiro.— A concentração não te vai valer de nada, mano. Ela tem-te entalado e

bem...Isaiah lutou até ao fim. Quando Laura retirou alegremente do tabuleiro a

última peça dele, ele lançou-lhe um longo olhar perscrutador e disse:— A melhor de três.Ela olhou para o relógio de pulso.— Nem sequer pense em queixar-se de que se está a fazer tarde — avisou-a

Isaiah. — Está em jogo a minha reputação de campeão.— Aposto dez na Laura — disse Hank, em voz alta.— Eh lá! — exclamou Harv Coulter, metendo a mão no bolso traseiro das

calças para tirar a carteira. — Eu cubro essa aposta. Ela apenas teve sorte. Ninguém bate o Isaiah nas damas.

1 Variante norte-americana do besigue, que é jogado com dois baralhos de 48 cartas. (N. do T.)

2 Jogo de cartas de ritmo acelerado, originário da penitenciária americana de Leavenworth, em 1972. É jogado com um baralho de 52 cartas e, tal como o nome indica, um número de colheres (spoons) inferior em um ao número de jogadores. (N. do T.)

Ann Kendrick deu um toque com o cotovelo nas costelas do seu marido grande e espadaúdo. Keefe inclinou a cabeça morena para ouvir o que ela dizia. Momentos depois, abria a carteira. Ann mostrou uma nota de vinte dólares.

— Aposto o meu dinheiro na Laura. Nós, as raparigas, temos de nos manter unidas.

Bethany sorriu.— Estou contigo, a mamã também — disse ela, estendendo a mão para o

marido, Ryan. — Dinheiro, querido. Quero apostar na Laura.— Eu também! — gritou Etta Parks. — Dez dólares na minha neta!— Não posso acreditar nisto! — queixou-se Isaiah. — Até agora só uma

pessoa apostou em mim! — Depois, olhando para Tucker — Também vais ser um vira-casacas?

O jogo de damas seguinte foi o centro das atenções. Algumas pessoas ficaram de pé para terem melhor vista do tabuleiro. Outros, sentaram-se confortavelmente em cadeiras. Isaiah e Laura, que haviam começado o pri-meiro jogo a rirem-se, afivelaram durante o segundo uma expressão de solene e sombria atenção a cada jogada.

Quando o segundo jogo terminou, Isaiah estava a fazer votos de aperfeiçoar a sua arte de construir bonecos de neve. Caso contrário, podia bem ver-se obrigado a cozinhar um jantar de sete pratos para a sua adversária.

Isaiah lançou-lhe um olhar avaliador. Nunca como naquele momento ele apreciou tanto o brilho de inteligência que bailava nos olhos cor de avelã dela.

— Joga xadrez? — perguntou-lhe ele.Ela fez uma covinha na cara, comeu-lhe a última peça e disse:— Não muito. Não sou muito boa.Isaiah tinha uma imagem a preservar.— Quer fazer com que o terceiro jogo seja um pouco mais interessante? —

perguntou ele. — O vencedor será o campeão absoluto.Ela encolheu os ombros e anuiu com a cabeça. Isaiah correu a ir buscar o

jogo de xadrez.Mas a opção dele revelou-se um erro crasso. Uma hora e meia depois,

quando Laura disse «xeque-mate», ele ficou a olhar incrédulo para o tabuleiro, a murmurar:

— Não é possível. Pensei que você tivesse dito que não era boa nisto...Ela teve um sorriso matreiro e debruçou-se por cima do tabuleiro para lhe

segredar:— Menti...

Capítulo Dez

Na manhã após o Dia de Acção de Graças, Laura chegou à clínica dez minutos antes das seis. Depois de entrar no edifício, olhou para trás e de-sactivou o alarme. Então, no momento em que estava a reactivar o sistema, ouviu bater à porta. Sobressaltou-se, fez menção de responder ao apelo, mas depois pensou melhor. Com as mãos a tremer, introduziu o seu código pessoal e rearmou rapidamente o sistema. Só então é que se aproximou da porta das traseiras.

—Quem é? — perguntou ela.—Sou eu, o James. Podes deixar-me entrar por um segundo?O coração de Laura falhou uma batida. Isaiah pedira-lhe que telefonasse se

James alguma vez aparecesse por lá quando ela estivesse sozinha de turno. Meteu a mão na carteira à procura do telemóvel.

—Só preciso de te falar por um instante — insistiu ele.Apanhada em indecisão, Laura ficou a olhar para o telemóvel. James.

Apesar dos avisos de Isaiah, era-lhe difícil de acreditar que o jovem técnico tivesse alguma coisa que ver com o que se passara na clínica. O James poderia ter uma paixoneta por ela. Laura não discutia isso. Mas tal não significava necessariamente que fosse culpado de qualquer coisa mais. Com efeito, os seus instintos diziam-lhe precisamente o contrário.

Com um suspiro, ela deixou cair o telemóvel de novo na carteira.—Só um momento, James. Preciso de desarmar o alarme.Ela dirigiu-se à consola, desligou o alarme e depois voltou à porta e

destrancou-a. Quando esta se abriu, James apressou-se a entrar. Envergava um volumoso anorak azul. O seu cabelo castanho encaracolado estava des-penteado pelo vento agreste da manhã.

—Olá — disse ele, exibindo um sorriso tímido enquanto fechava a porta. — Deves estar a tentar imaginar que raio estou eu aqui a fazer...

Laura estava a pensar exactamente nisso. O sol ainda nem sequer nascera, e aquele era o dia de folga dele. A maior parte das pessoas quereria tirar partido disso e dormir até mais tarde. Ela estava provavelmente a ser in-sensata ao deixá-lo entrar no edifício, mas, quando lhe perscrutou os olhos, não viu neles nada de sinistro.

—E ainda bastante cedo — acabou ela por dizer.Ele virou-se e trancou a porta.—Sim, bem... — começou ele a dizer, cruzando os braços enquanto se

dirigia para ela. — Na verdade, é bom que seja cedo. Assim ninguém mais sabe que eu passei por aqui.

Por um mero instante, Laura sentiu-se pouco à-vontade. Mas antes que a sensação tivesse tempo de se firmar, James disse:

—Quanto à outra noite, e eu ter-te pedido para passares o Dia de Acção de Graças comigo... Quando Isaiah me ligou de seguida, quase que tive um ataque cardíaco.

—Verdade? Porquê?Ele suspirou e meteu os dedos pelo cabelo, com movimentos agitados.—Há aqui uma regra não escrita que diz que os empregados não devem

namorar. Pensei que ele me fosse despedir.—Oh, não — sussurrou Laura, com genuína consternação.—Oh, sim — assegurou-lhe James, acenando a cabeça e coçando o queixo.

— És muito bonita, Laura, e não podemos negar a química que existe entre nós. Pelo menos, eu senti-a. Mas não posso pôr o meu emprego em risco, de forma alguma. Espero que compreendas.

Laura não sabia o que dizer.—Eu gosto mesmo deste trabalho — apressou-se ele a dizer. — O Isaiah foi

impecável por me ter deixado estudar à parte para obter as minhas credenciais de técnico. No ano passado, ele até me deu tempo livre e pagou-me para que eu pudesse obter o meu certificado de raios-X. Na minha última entrevista, falámos em eu ir para a universidade no ano que vem, se calhar para me tornar um técnico de primeira, como a Belinda. Ele está disposto a reservar o meu lugar aqui na clínica enquanto eu estiver fora na faculdade e a ajudar-me a pagar as propinas. Isso seria mesmo fantástico para mim.

—Sim, seria mesmo — concordou Laura, sem estar minimamente sur-preendida ao ouvir da generosidade de Isaiah.

—Portanto, compreendes perfeitamente porque é que esta coisa entre nós tem de parar antes que nos comprometamos mais.

—Oh, sim, claro!Ele olhou-a profundamente nos olhos.—Creio que podia ser uma coisa mesmo especial entre nós, Laura. Palavra.

Mas quem pode ter a certeza? O meu futuro aqui na clínica é uma coisa assegurada. Tudo o que tenho de fazer é não me meter em sarilhos.

Laura esforçou-se para não sorrir.—Então é isso que deves fazer, James.Ele lançou-lhe outro olhar emotivo.—Quem me dera que pudesse ser de outro modo. Algumas pessoas daqui

namoraram sem que ninguém se apercebesse.—Tiveram sorte — apressou-se Laura a dizer. — Não, James, o risco é

demasiado grande para ti. Pões em risco todo o teu futuro. — Depois, acrescentou, engolindo em seco — Há coisas que não estão destinadas a acontecer.

—Sem dúvida. É só que... — ele interrompeu a frase a meio, e lançou-lhe outro olhar melancólico. — Se ao menos... Tu sabes...

Laura pousou uma mão sobre a manga do casaco dele.—Mas nós podemos ser amigos. Não há nenhuma lei que o proíba, pois

não?A tensão que pesava sobre os ombros de James desvaneceu-se, e ele sorriu.—Não, não há. A amizade é consentida...Devolvendo-lhe o sorriso, Laura disse:—Então será amizade.

Ele suspirou e esfregou a cara com uma mão. Depois, o seu olhar caiu penetrante sobre o dela.

—O Isaiah não suspeita de nada, pois não? Ele pareceu-me esquisito quando me telefonou.

—Não — assegurou-lhe ela. — O Isaiah não faz a menor ideia. E um segredo só nosso.

—Graças a Deus. Quando ele me ligou, comecei a suar frio. Estava em crer que ele nos tinha descoberto. Ele foi simpático e tudo o mais. Mas eu podia jurar que pressenti um toque de suspeita na voz dele.

Laura abanou a cabeça.—Não me parece. O Isaiah tem às vezes muita coisa em que pensar. Talvez

fosse isso.—Espero bem que sim — disse ele, inflando as bochechas ao expirar. —

Então estamos de acordo. Daqui para a frente, seremos amigos e nada mais.—Amigos e nada mais — repetiu Laura. Depois, espreitando o relógio,

Laura foi até à porta e destrancou-a. — Fora daqui. Já são quase seis. O alarme envia um sinal de cada vez que alguém digita um código. Não quero que o registo mostre que comecei a trabalhar tarde. Daria azo a perguntas. Assim, posso dizer que me esqueci de uma coisa no carro para explicar por que razão desarmei o sistema.

—Oh! — exclamou ele, virando-se para sair. Com a porta aberta, olhou para trás. — Obrigado por compreenderes, Laura.

—Não há problema. Fico feliz por teres vindo falar comigo.—Pareceu-me justo. A minha decisão afecta-te tanto a ti como a mim.Laura ainda estava a sorrir um momento depois, quando reactivou o

alarme. Isaiah estava certo num ponto: ela estivera envolvida no romance da vida de alguém. Só que não o soubera.

Um pouco antes das dez, Laura quase que saltou para fora da sua própria pele com o sobressalto causado pelo som de passos sobre o cimento, aproximando-se por detrás dela. Tentou desajeitadamente não deixar cair uma gamela de comida de cão e, rodopiando, espalmou a mão que tinha livre sobre a garganta, suspirando de alívio ao ver Isaiah de pé junto à porta da jaula.

—Desculpe — disse ele. — Não queria assustá-la.—Bem, assustou-me mesmo. O que está a fazer aqui?Ele colocou as mãos na anca. Nessa manhã, vestia um casaco de ganga,

aberto à frente para revelar uma camisa vermelha de xadrez cuidadosamente metida para dentro de um par de jeans Wrangler descoradas e com um cinto largo. O seu cabelo escuro assentava-lhe em ondas sedosas sobre a fronte alta, com algumas das madeixas tão compridas que lhe tocavam as sobrancelhas.

—Há algum tempo que a Laura não fica aqui sozinha. Só passei para ver se estava bem.

Laura não pode deixar de se sentir tocada pela gentileza dele.—Estou óptima.—Nenhum problema?Por um instante, ela achou por bem não lhe falar da visita matutina de

James, mas a honestidade era sempre a melhor política.—Não houve mesmo problema, a sério.

A expressão de Isaiah tornou-se mais preocupada.—O quê?—O James apareceu cá para falar comigo.O músculo do maxilar de Isaiah contraiu-se.—Pensei que tínhamos combinado que me telefonaria se ele aparecesse.—Desculpe... — disse Laura, não conseguindo pensar em muito mais para

sua defesa. Ter deixado o James entrar no edifício não fora a decisão mais acertada que ela tomara. — Tirei o telemóvel da carteira e quase que o fiz. Mas não consegui acreditar que ele consti-tuísse uma ameaça.

—E se estivesse enganada? Raios, Laura. Se o gajo é pirado da bola, pode passar de gatinho a tigre num abrir e fechar de olhos. Podia ser magoada e ficar aqui caída durante horas à espera de ajuda.

—Mas ele não é pirado. O meu instinto estava certo.Ela prosseguiu então a contar a conversa que tivera com James. Para o final

da história, os olhos de Isaiah brilhavam de riso.—Ele pensou que eu lhe telefonei naquela noite para o despedir?Laura confirmou com a cabeça.—Foi o que ele disse. Creio que foi por isso que não quis ir ao jantar a casa

dos seus pais. Ele estava convencido que o Isaiah andava de olho em nós.A boca rígida dele resvalou lentamente para um sorriso.—Bem, eu acertei numa coisa: ele julga-se apaixonado por si.Laura baixou-se para fazer uma festa de despedida ao cão antes de sair da

jaula.—Já não está. Para proteger o futuro dele, acordámos em ignorar os nossos

sentimentos e sermos apenas amigos.Isaiah deu uma risada abafada.—Um grande sacrifício para ambos, suponho.Laura lançou-lhe um olhar inocente.—Claro. Penso que o James se sente mal por ter posto o trabalho acima de

mim. Mas, tal como frisou, nós não somos uma coisa certa, e o trabalho é. Tive de aplaudir o bom senso dele. Está em jogo o futuro do rapaz.

Isaiah abanou a cabeça.—A Laura é uma querida, sabe? Muitas mulheres ter-lhe-iam dito que ele

estava a sonhar acordado e que se pusesse a milhas.Laura deixou tombar o fecho da jaula e abanou-o para se certificar de que

esta estava bem fechada.—Porquê fazer isso? Ele já queria sair.—Nem sequer considerando que a Laura nunca se apercebera de que ele

estava pelo beiço?Laura encolheu os ombros e sorriu.—Ele é um bom rapaz. Eu não quereria ferir-lhe os sentimentos.—Foi o que eu disse, uma querida — disse Isaiah, acompanhando-a

enquanto ela avançava pela coxia central. Olhando para o relógio, acrescentou — Já quase que terminou por aqui, não é verdade?

— Quase.— Que tal um almoço mais cedo?O convite apanhou-a de surpresa. Lançou-lhe um olhar interrogativo.

— Almoço?Ele afivelou um sorriso maroto que deu a Laura um lampejo de como ele

deveria ter sido giríssimo quando miúdo.— Sim, sabe, isto... — disse ele, fingindo levar comida à boca. — A

refeição que a maior parte das pessoas toma entre o pequeno-almoço e o jantar. Está com fome?

O bagel que Laura comera às cinco da manhã há muito que se evaporara.— Esfomeada.— Então, combinado? Há um restaurantezinho excelente na Cidade

Velha. Comida fabulosa, com vista para o rio. Podemos comer uma sopa quente e ver os flocos de neve a cair.

Os olhos de Laura arregalaram-se.— Está a nevar?— Esse é um dos inconvenientes de se trabalhar num grande edifício

sem muitas janelas. Pode até ocorrer uma tempestade de neve que nem nos apercebemos disso.

Enquanto navegava por entre o trânsito de arranca-pára para chegarem ao restaurante, Isaiah teve de se questionar acerca do que estava a fazer. Almoço? O que é que havia com Laura que o tornava tão idiota? Estava a nevar. Grande coisa. Só porque ela gostava daquelas coisas brancas e ele pensou nela quando as viu cair não significava forçosamente que ele teria de se sentar com a rapariga junto a uma janela e comer sopa ao almoço.

Ele tinha imperativamente de dominar o comportamento impulsivo que parecia apoderar-se dele sempre que estava junto dela. Não andava à procura de uma esposa, e uma esposa era aquilo que ele bem podia arranjar se não tivesse muito cuidado. Um almoço rápido, prometeu a si próprio. Depois levá-la-ia de regresso à clínica para que ela fosse buscar o carro, e desse momento em diante ele poria fim àquela loucura anles que da o metesse em sarilhos.

—Pare! — gritou ela de repente.O pé de Isaiah pressionou o pedal mesmo antes de ele tomar consciência

da palavra. Os travões com ABS do Hummer actuaram e depois largaram, quando o veículo entrou em derrapagem. Gelo. Vinha de mãos dadas com a neve. Ainda Isaiah se debatia para fazer parar o pesado SUV em segurança e Laura estava já a desapertar o cinto de segurança e a tentar abrir a porta do seu lado.

—Oh, meu Deus! — gritou ela. — Ele vai ser atropelado!Quem é que ia ser atropelado? Antes que Isaiah pudesse verbalizar a

pergunta, Laura saltou do veículo. Ainda estavam numa faixa de rodagem, e havia carros a deslocarem-se em ambas as direcções.

—Laura?Deus do Céu. O coração de Isaiah subiu-lhe direito à garganta quando ela

cambaleou, escorregando e deslizando sobre o gelo e a lama, ao contornar o pára-choques da frente do Hummer, vendo-se dela apenas o topo da sua cabeça loira.

—Laura!Ele abriu a porta do condutor com violência, tentando saltar para fora do

veículo, mas viu-se preso pelo cinto de segurança que se esquecera de abrir. Um carro derrapou até parar por detrás deles, ficando o pára-cho- ques frontal demasiadamente perto da traseira do Hummer para sossego de Isaiah.

—Laura! — voltou ele a gritar quando as suas botas entraram finalmente em contacto com o pavimento coberto de lama. Através dos flocos de neve que volteavam no ar, vislumbrou o brilho do cabelo dourado dela. Raios. Ela corria precisamente ao longo do centro da via, ignorando os automóveis que travavam e faziam piões para evitar atropelá-la. — Perdeu o juízo? Venha já para aqui!

Os gritos de Isaiah nem sequer fizeram Laura abrandar o passo. Deixando a porta do condutor aberta, ele arrancou numa corrida atrás dela, a gritar-lhe o nome a cada meia dúzia de passos. A frente dele, ela parou por fim, com as suas pernas esbeltas, moldadas em ganga, muito afastadas, os braços abertos para fazer parar o trânsito. Isaiah calçava botas de cowboy de sola de couro lisa, e ia caindo por diversas vezes enquanto corria rua acima atrás dela. Quando chegou ao pé de Laura, os carros que seguiam em ambas as direcções tinham-se imobilizado todos, e Laura estava a recolher nos braços um cão bebé um pouco avantajado.

—Mas que raio está você a tentar fazer? Matar-se? — gritou ele.—Oh, Isaiah, ele não é tão querido?Laura estava com o nariz quase a tocar no focinho do cãozinho. Antes que

Isaiah pudesse responder que o bicho era a criatura mais desengraçada em que alguma vez pusera a vista, já ela estava a fazer ruídos a imitar beijos.

—Mas você está doida? — voltou ele a gritar.Ela arregalou muito os olhos, com um ar incrédulo.—Ele estava prestes a ser atropelado. Tive de o salvar!Os condutores dos automóveis, que faziam longas filas em ambas as

direcções, começaram a buzinar. Isaiah agarrou o braço de Laura.—Temos de voltar para o jipe. Estamos a empatar o trânsito.Laura apertou os braços em volta do cãozinho. Uma segunda olhadela ao

focinho do bicho confirmou a primeira impressão de Isaiah: era o cachorrinho mais feio que alguma vez vira. Avantajado não o descrevia a metade. A coisa tinha patas do tamanho de panquecas, e a cabeça em forma de tijolo prometia ser gigantesca na idade adulta. Contudo, pior do que o tamanho incrível da cria, era a sua cor. Parecia ser parte dálmata, com orelhas de rottweiler plantadas no topo da cabeça e a pele solta e enrugada de um shar-pei, o suficiente para a sua classificação passar de feio a horrível. A pobre criatura era branca com manchas e pintas negras, só que essas manchas e pintas quase que se tocavam, criando um efeito geral azulado.

—Vamos — disse Isaiah, levando Laura de volta ao Hummer. Uma vez chegados, disse — Os carros estão agora parados. Já o pode soltar.

Os olhos dela ficaram redondos como pires.—Não posso fazer isso!Isaiah estava a começar a ter um péssimo pressentimento. Cruzou o olhar

dela por cima do capot do veículo.—Porquê? — perguntou ele, cautelosamente.— Bem, porque não\Ele detestava quando as mulheres diziam isso. Porque não. Que raio queria

isso dizer? Por experiência própria, Isaiah sabia que aquilo geralmente prenunciava problemas. A sua mãe usava esta táctica. Assim como a sua irmã, Bethany, e todas as suas cunhadas. Quando elas não tinham qualquer explicação racional para um problema, diziam sempre: «Bem, porque não», ou

«porque sim», dando a entender que nenhum macho da espécie poderia alguma vez compreender os meandros do raciocínio delas, porque, na sua opinião, todos os homens eram um pouco atrasados mentais.

—Laura — disse ele num tom que pretendia chamá-la à razão — o cão provavelmente pertence a alguém.

—Não, senhor. Não tem coleira.Oh, não. Através dos flocos de neve que flutuavam no ar, Isaiah olhou

longamente para o cão, ignorando o facto de os condutores estarem agora a recomeçar a buzinar. Ambos os olhos do animal pareciam ter levado um murro, metidos em duas grandes manchas negras. E as orelhas eram estranhamente assimétricas, uma parcialmente negra e caída para a frente, por cima do olho direito, e a outra cinzenta e a pender correctamente para o lado.

—A ausência de coleira não quer dizer nada num cachorrinho — tentou ele convencê-la. — Há pessoas que só põem uma coleira num cão quando ele é mais crescido.

—Ele tem as costelas todas saídas. Não o vou abandonar. Quase que foi morto — disse ela, olhando para Isaiah como se de repente ele se tivesse transformado num monstro, num desalmado assassino de cachorrinhos. — Como é que me pode pedir uma coisa dessas?

Oh, não. Isaiah olhou para os carros. Os da faixa contrária estavam agora a recomeçar a andar, e a rua era estreita. Ele teria de fechar a porta do Hummer para eles poderem passar. Suspirou, resignado com a ideia de que aquela discussão teria de ser continuada mais tarde.

—Então entre no carro — ordenou ele. — Estamos a empatar o trânsito.—Com o cãozinho?—Sim — respondeu ele, resignado — com o cãozinho.Quando os três ficaram instalados em segurança dentro do Hummer, Isaiah

seguiu lentamente rua acima. Laura repetia uma lengalenga em voz baixa para o bicho, dizendo qualquer coisa como «pobre bebé tristinho». As escovas do limpa-vidros faziam suich-uac, suich-uac, empurrando a neve que caía para pequenos montículos em ambos os lados do pára-brisas.

—Não pode ficar com ele, querida.—Claro que não posso. Mas posso encontrar um lar para o pobrezinho —

disse ela, fazendo mais ruidozinhos de beijos e roçando a face pela parte de cima da cabeça do animal. — Não é tão querido?

Isaiah estava justamente a pensar que ninguém no seu juízo perfeito iria adoptar aquele desgraçado. Ele seria a última pessoa a ter preconceitos baseados na linhagem de um cão, mas aquela cria era mesmo um caso grave de fealdade. Laura segurava-o como faria a um bebé, deitando-o de costas na cova do braço, colocando as suas partes baixas à vista. Um macho, sem sombra de dúvida. E ia ser um animal enorme. Geralmente, Isaiah conseguia olhar para um rafeiro e fazer uma boa avaliação das suas origens; mas esta cria era uma mixórdia com uma pelagem de retalhos. Parte mastim, possivelmente. Aquelas orelhas eram contudo decerto de rottweiler, e a pele solta e enrugada em redor do pescoço ainda apregoavam shar-pei. Um idiota qualquer esquecera-se de deixar a cancela fechada. Se calhar vários idiotas. Era também certo que havia uma generosa dose de sangue dálmata vertida na mixórdia.

—Bem — disse ele alegremente —, vamos deixá-lo na Sociedade Protectora antes de irmos almoçar. Que tal?

—Não! — gritou ela. — E se ninguém o quiser adoptar?Portanto, Isaiah pensou bem, ele não era o único a achar que o bicho não

era muito dotado de atractivos.—Um Adónis desses? Em dois dias pula fora da jaula...Laura empinou o queixo.—Ele não vai para o depósito.—Depósito? Minha querida, esse termo é arcaico — disse Isaiah, tentando

recordar-se vagamente quando passara a chamar querida a Laura.Pior ainda, parecia realmente apropriado. — Hoje em dia, os cães vadios são mantidos no bem-bom até serem adoptados. Têm cama e roupa lavada, tal como na clínica, e todos os voluntários que adoram mesmo os animais tomam conta deles. A Sociedade Protectora dos Animais até tem um site na Net. Tem fotografias e descrições de cada animal. Também anuncia na rádio. Lá, ele tem as melhores hipóteses de encontrar um bom lar. Eles filtram os candidatos a donos com muito cuidado.

—Acho que lhe devemos chamar Tristinho — disse ela. — Não é um nome giro? Foi quase a primeira coisa que eu disse quando o vi, que ele era um pobre bebé tristinho.

Isaiah rosnou para dentro. Sabia bem que se o expressasse abertamente teria sarilho.

—Querid... — começou por dizer, mas refreou-se e voltou atrás. — Laura — disse ele, com uma paciência exagerada. — Vamos pensar um pouco, está bem? — Quando olhou para ela, o brilho intenso de inteligência nos olhos de Laura fora substituído por perturbada confusão. Era óbvio que ela não estava na disposição para ser racional. — Onde é que o vai manter até lhe conseguir encontrar um lar?

Ela limitou-se a continuar a olhar para ele. Para ele. Isaiah voltou a dirigir o olhar para a estrada, viu que o semáforo acabava de cair vermelho e travou com tanta violência que o cachorro quase que foi catapultado dos braços de Laura contra o pára-brisas.

—Deus do Céu! — exclamou ele.—Não O deve invocar para isto — disse ela com ardor. — Só porque você

está irritado não o desculpa de invocar o Santo Nome de Deus em vão!—Desculpe — disse ele. Mas desde quando é que ela se transformou na

mãe dele? — E só que... — Só o quê? Que ele quase os ia matando a todos, incluindo o aparentemente satisfeito-consigo-mesmo Tristinho, por passar um sinal vermelho? — Não posso ter um cão, se é isso que está a pensar.

—Ele não é um cão.Verdade. Aquilo era uma versão pintalgada de Átila, o Huno.—Se não é um cão, então o que é?—Um cachorrinho pequenino...Pequenino não era uma palavra apropriada para descrever aquele cão.

Isaiah olhou de soslaio para uma das patorras do bicho, que pendia do braço de Laura.

—Bem, cachorrinho, cão, o que quer que seja, não posso ficar com ele. Tire isso já da cabeça.

Quarenta minutos depois, Isaiah estava a fazer uma cama para o Tristinho, na arrecadação metálica que lhe servia de oficina, por detrás da sua casa. Enquanto ajeitava uma almofada velha sobre um monte de toalhas e cobertores, deu por si a compreender o seu pai, pela primeira vez na vida. Por mais do que uma vez, vira o pai a travar uma guerra verbal com a sua mãe, e sempre a sair vencido. Considerando que a sua mãe não era muito maior do que uma minorca e que Harv Coulter era um homem possante e bem musculado com mais de um metro e oitenta de altura, Isaiah nunca compreendera a dinâmica que ocorria entre os seus pais durante uma discussão. Como é que um homem grande que nunca admitira o menor enxovalho da parte de quem quer que fosse, acabava sempre vencido num desentendimento com a sua mulher?

Agora Isaiah tinha uma pista. Não se conseguia lembrar de se oferecer para ter o Tristinho em sua casa, mas, de uma forma ou de outra, Laura levara-o a isso. Era qualquer coisa com os olhos dela. Ela olhara-o de certa forma, que em retrospectiva Isaiah poderia apenas descrever como patética, e a única coisa de que recordava depois era de estar a dizer «Bem, OK, mas só por um dia ou dois». E agora ali estava ele, a fazer a cama a um cachorro que não devia muito à beleza.

—Oh, doçura, vais gostar de estar aqui — estava Laura a dizer, naquela forma lenta e suave dela. — Vais ver. O Isaiah é veterinário. Vai tomar muito bem conta de ti.

O Tristinho emitiu um som lamentoso, meio ganido e meio rosnado. Quando Isaiah olhou por cima do ombro, viu que Laura estava agachada a fazer festas ao cão, que agora encontrava-se enrolado em cobertores, apoiado sobre o joelho dobrado dela.

—Não se vá já embora — disse Laura, erguendo os olhos. — Tenho medo que ele apanhe frio aqui.

Estava fora de questão para Isaiah meter um cachorrinho a largar cocôs e chichis dentro de casa.

—Ná. Ele vai ficar óptimo. Os cães têm uma resistência espantosa.—Mas ele não é um cão! É ainda um bebé!Também era um vigarista diplomado, pensou Isaiah. Mas isso não in-

teressava para o caso. Laura mordera o isco, o anzol, a linha e a cana do malandrete, e Isaiah não conseguia arranjar coragem para lhe dizer que não. Mas o que era aquilo? Nunca tivera qualquer problema em dizer não a uma mulher. Era uma palavra simples, o não, e podia ser expressa de várias formas criativas, dizendo simplesmente «Não» ou dizendo «Nem pensar, querida». Em situações prementes, ele chegara a dizer a uma mulher «Não e NÃO». Mas por qualquer razão, com Laura nem sequer a versão curta e directa conseguia tomar expressão nos seus lábios.

—Tem um cobertor eléctrico?Deus do Céu. Se continuasse assim, daqui a pouco aquele maldito rafeiro

estaria metido na sua cama, pensou Isaiah.—Não. Não é necessário nenhum cobertor eléctrico. Ele andava a vaguear

pelas ruas, Laura. Esta arrecadação é suficientemente quente. Para ele, é como se fosse um palácio.

—Oh, meu queridinho — sussurrou ela, num tom de dolorosa compaixão. — Quem me dera poder levar-te comigo para casa.

—Ele vai ficar bem, Laura. Tem imensa comida — disse Isaiah, apontando para o saco de granulado para cães bebés Science Diet1 que eles trouxeram da clínica. — Essa coisa não é barata, sabe. E a versão canina de um bife do lombo. E tem água e ossos para roer. Para já não falar de uma boa cama. Ele vai ficar muito bem aqui durante um par de dias. — Por mera precaução, Isaiah acrescentou — Ele só vai ficar aqui até você encontrar alguém que o adopte, não é verdade?

Laura acenou afirmativamente e beijou o topo da cabeça do cachorrinho.—Vais ficar bem, Tristinho. Vais ficar, sim...O Tristinho ganiu, esticando o pescoço o mais que podia para lamber a cara

de Laura. Isaiah endireitou-se e pôs as mãos nas ancas — uma pose típica de um macho do clã Coulter quando se sentia ultrapassado pelas circunstâncias. Ele vira o pai e todos os seus irmãos casados assumirem a mesma postura quando tentavam argumentar com as respectivas esposas.

—Eu não sei se consigo se passa o mesmo, mas eu estou cheio de fome. Deixemos o Tristinho a comer o almoço dele enquanto vamos comer o nosso.

Ronco, ganido, ronco. Isaiah poderia jurar que o cachorro avantajado e pintalgado tinha o QI de um membro da Mensa International2 e estava a ficar rapidamente convencido de que aquele canídeo em particular encarnara Romeu Montecchio numa vida anterior.

—Vamos, querida. Acordei em recolhê-lo por alguns dias. Aqui ele tem acomodações excelentes. Que mais é que você quer?

Ela lançou-lhe um olhar que o fez arrepender-se de ter perguntado.—Eu sentir-me-ia melhor se ele ficasse dentro de casa, onde está mais

quente. Ele é tão pequenino e indefeso. Que tipo de pessoa abandona um cachorrinho numa rua movimentada do centro?

Isaiah passou uma mão pelo cabelo.—Não sei por que razão as pessoas abandonam animais, ponto final. Ainda

mais se for uma cria, um cachorrinho — respondeu ele por fim.A anuência forçou Isaiah a dar mentalmente um passo atrás e tentar

analisar a sua reacção irracional relativamente àquele cachorrinho. Era um veterinário. Passava cada hora de cada dia a dedicar-se ao bem-estar de todo o tipo de animais. Então por que razão aquele cão bebé, que nunca fizera nada que merecesse aquele tipo de barbaridade, o fazia sentir-se tão irritado?

Em geral, Isaiah gostava de todos os animais à primeira vista, mas sentira uma antipatia imediata pelo Tristinho, decerto por Laura se ter posto estupidamente em perigo para o socorrer. Sempre que Isaiah se lembrava de como ela saíra disparada para o meio do trânsito, forçando inúmeros condutores a travar a fundo para evitarem bater-lhe, começava a fumegar. Pior ainda, sempre que se lembrava de como os carros faziam piões e derrapavam no gelo, sentia os testículos mirrarem até ficarem do tamanho de amendoins.

Muito bem, pensou ele, isto não tem a ver com o cão. Mas, se não tinha a ver com o cão, com que raio teria a ver? Com a Laura, supunha. E ao admitir isso, mesmo que para si próprio, deixava-se arrastar para locais onde tinha relutância em ir. Parecia-lhe muito mais seguro, em todos os sentidos, atribuir as culpas de todo aquele incidente ao cão. Pelo menos era muito menos complicado.1 «Dieta Científica». (N. do T.)

2 Clube internacional exclusivo para indivíduos com um quociente de inteligência próximo do máximo mensurável. (N. do T.)

—Ele aqui vai ficar muito bem por um bocado — prontificou-se ele a dizer. — Eu tirei o dia para folga. Depois de almoçarmos, venho a casa para ver como está.

Laura suspirou. Então, depois de ter olhado profundamente nos olhos do cachorrinho, a expressão dela tornou-se suave e luminosa.

—Ele é tão querido, não acha?Isaiah andou em volta do cão para o avaliar. Teria algo de giro, se calhar.

Por vezes, os bebés e as crias de animais eram tão feios que se tornavam paradoxalmente atraentes.

Depois de deixar Laura no parque de estacionamento da clínica, após o almoço, Isaiah dirigiu-se para casa para ver como estava o Tristinho, tal como prometera. Acabava de virar na Old Mill Road, onde ficava a sua casa, quando o seu pager apitou. Quando telefonou para ouvir a mensagem, fez inversão de marcha e voltou a toda a velocidade para a clínica. Um cão fizera uma incursão ao caixote do lixo dos donos e comeu os restos da carcaça de um peru embrulhada em papel de alumínio. Infelizmente, os donos suspeitavam que o animal engolira mais papel de alumínio do que peru.

Belinda veio até à clínica para assistir Isaiah na operação. As radiografias preliminares mostravam um bloqueio no intestino grosso, e por isso a operação foi mais complicada do que Isaiah esperava. Quando ele finalmente suturou o animal, Belinda lançou-lhe um sorriso convidativo.

—Que tal um hambúrguer? Está na hora de comermos, e estou esfomeada.O ambiente no MacDonald's era bastante seguro e, por Belinda ter sa-

crificado toda uma tarde para o ajudar, Isaiah teria gostado de lhe pagar o jantar para lhe mostrar o seu agradecimento.

—Desculpe, Belinda, mas tenho um jovem hóspede em casa e preciso de ir ver como é que ele está.

—Um hóspede? — espantou-se Belinda, com os olhos a brilharem de curiosidade. — Conta lá.

Isaiah descreveu o atormentado resgate do Tristinho. Era uma das poucas histórias que ele contava que não precisavam de floreados para serem interessantes.

—Oh, ele parece ser tão querido! — exclamou Belinda. — Tristinho. Que nome giro!

—É a única coisa que ele tem de giro — disse Isaiah, passando depois a descrever o cachorrinho. — Parece que lutou com um monstrengo qualquer e perdeu. Pobrezito. A Laura está convencida de que consegue arranjar quem fique com ele, mas não tenho bem a certeza.

Belinda sorriu.—Ora, o bicho não pode ser assim tão horroroso. E, se não se arranjar outra

coisa, a Laura pode ficar com ele.—Nem pensar. Mesmo que o senhorio dela aceitasse que tivesse um cão, a

casa da Laura não é de forma alguma adequada.—Já lá estiveste?—Sim, umas duas vezes — Isaiah visualizou as pequenas divisões atu-

lhadas de quinquilharias frágeis, e um Tristinho já crescido a atirá-las para o chão com a cauda. — Não tem jardim murado, e quase que não há espaço dentro de casa para nos virarmos. Nunca iria resultar.

O sorriso de Belinda desvaneceu-se.

—É pena. Deus queira que uma alma caridosa o recolha. Pobre bichinho.Uma hora depois, Isaiah descobria que o «pobre bichinho» tinha andado a

fazer uma razia na arrecadação, roendo tudo o que podia. Todo um pacote novo de toalhas de oficina, feitas de papel particularmente resistente e absorvente para limpar gorduras e óleo, não resistira aos dentes do canídeo.

O interior da construção parecia ter sido fortemente polvilhado de pape-linhos de Carnaval. Isaiah poderia limitar-se a encolher os ombros e a ir buscar o aspirador industrial para limpar a confusão, mas, quando pegou no aspirador cilíndrico, verificou que a mangueira tinha agora uma série de buracos. Pior ainda, o seu saco de esqui em nylon fora rasgado, e todos os fechos de velcro das suas botas de esqui de trezentos dólares tinham sido arrancados.

— Não! — gritou ele. — As minhas botas não!O Tristinho estava deitado na sua almofada, parecendo ao mesmo tempo

demasiado inocente e despreocupado. Isaiah avançou pesadamente na direcção dele.

—Seu sacaninha miserável e malandro! O que mais destruíste enquanto eu estive fora? Deixei-te ossos para roeres. Porque é que não afiaste os dentes neles?

A resposta do cachorro foi um rosnido fundo e alegre. Saltou da cama dele para atacar as calças de Isaiah. Logo que conseguiu ferrar os dentes afiados na ganga, apoiou-se nas quatro patas e recuou, arrastando o pé de Isaiah com ele.

—Larga! Estou zangado contigo! Larga, já disse!Por fim, Isaiah teve de pegar no cão para salvar as calças. Rosnando de

novo, o Tristinho começou de imediato a lamber a cara de Isaiah.—Ela devia ter-te chamado Resmungão. Melhor ainda, que tal Bafo de

Velcro? Assenta-te melhor. — Isaiah voltou-se para ver se os restantes objectos guardados na oficina estavam intactos, e ficou satisfeito por constatar que a sua grande tenda de campismo escapara à atenção do cão.

—Bem, isto arruma a questão. Vais ter de dormir na lavandaria até que a Laura te arranje casa.

Capítulo Onze

Isaiah acordou com uivos lúgubres, seguidos por uma rápida sucessão de ganidos agudos. Resmungou, voltou-se na cama para espreitar através da escuridão do quarto para os dígitos vermelhos luminosos do seu despertador e meteu a almofada por cima da cabeça. Duas da manhã? Era fim-de-semana, uma das suas poucas oportunidades para ter uma boa noite de sono, e aquele estuporzinho ingrato queria levantar-se às duas da manhã? Nem pensar.

Como se pressentisse que Isaiah tapara os ouvidos, Tristinho aumentou o volume um ponto. Iip, iip, iip, uivo. Os sons reverberavam pela casa vezes sem conta, tornando-se cada vez mais altos. Isaiah tentou ignorá-los. Tentou usar duas almofadas para bloquear o barulho, mas tudo o que conseguiu foi quase sufocar. Tentou até contar os ganidos como se estes fossem carneiros, numa tentativa de reconciliar o sono.

Por fim, afastou os cobertores com um puxão, saltou da cama e avançou furioso pela casa fora.

— Está bem, raios parta, ganhaste! — gritou ele ao abrir a porta da lavandaria. — Mas é só por um ou dois dias, estás a perceber? Logo que a Laura encontre uma casa para ti, sais daqui para fora!

No preciso momento em que Isaiah dizia isso, pisou em qualquer coisa fria e viscosa com o pé descalço.

—Filho da-da-da mãe!Já estava demasiadamente afastado da porta para acender a luz. A avaliar

pelo cheiro, estava de pé no meio de um campo de minas de cocó de cão. Foi a comida de cão, pensou ele, desalentado. Era frequente as crias terem diarreia quando mudavam bruscamente de dieta alimentar.

—Raios partam o bicho! — exclamou ele quando a porcaria se lhe meteu por entre os dedos dos pés.

Uma hora mais tarde, depois de a lavandaria ter sido lavada e de Isaiah e de o Tristinho terem tomado um duche, os dois aconchegaram-se na cama de Isaiah para um longo sono invernal. Como Isaiah esperava, esta era a única forma de ele conseguir dormir um bocado. Com um pouco de sorte, o Tristinho não iria ganir se se pudesse enroscar contra um corpo quente, e desta forma Isaiah acordaria se o cão quisesse ir lá fora fazer as suas necessidades. Enquanto os olhos de Isaiah se fechavam lentamente, murmurou com mau modo:

—Não te habitues a isto, parvo!O Tristinho emitiu uma rosnadela de alegria e enfiou o focinho húmido no

sovaco de Isaiah.Durante o resto da semana seguinte, Isaiah repetiu o mesmo refrão, ou fac-

símiles dele.

—Isto é apenas temporário. Um cão é a última coisa de que preciso ou que quero, percebeste?

Estas proclamações vinham geralmente na esteira de um acontecimento notável, tal como o da compra da primeira cama para o Tristinho, uma coisa enorme e curva, feita de almofadas de espuma forradas a pele de ovelha, ou após uma visita à loja de animais de estimação, onde Isaiah e o Tristinho podiam comprar brinquedos para cachorrinhos, passatempo esse que eles praticavam amiúde, depois de saírem da clínica ao fim da tarde. Ah, sim, o Tristinho acompanhava Isaiah ao trabalho. Era a única solução prática possível, disse Isaiah a si próprio. De outra forma, o Tristinho morderia tudo à excepção dos seus brinquedos, enquanto Isaiah estava ausente. Na clínica, o Tristinho podia andar de roda das pessoas, e não tinha muita coisa que pudesse estragar. Era também o lugar ideal para habituar um cachorrinho a estar dentro de casa, com soalhos indestrutíveis e montes de adultos atentos, prontos a levar o Tristinho ao exterior anles que ele se descuidasse.

—Não vou ficar com esse cão — dizia muitas vezes Isaiah a quem quisesse ouvir e, de início, estava a falar muito a sério.

Contudo, passada uma semana, começou a forjar-se uma ligação entre o homem e o cão. Na clínica, o Tristinho seguia os passos de Isaiah para onde quer que ele fosse, apenas deixando a companhia do seu relutante dono quando uma porta lhe era fechada no focinho. Em casa, Isaiah des cobriu que ter um cão por companhia fazia com que as grandes divisões vazias parecessem menos solitárias. O Tristinho apreciava particularmente os regressos a casa. A caminho da porta de entrada, ele retouçava por todo o jardim da frente, ainda tão curto de patas que por vezes desaparecia por completo nos montículos de neve. Depois, no momento em que Isaiah abria a porta, o cãozinho corria excitado pela casa fora, a rosnar e a ladrar enquanto descobria os seus brinquedos pelo cheiro.

Na segunda semana, Isaiah procurava Laura uma vez por dia para lhe perguntar:

—Então, já alguém respondeu ao anúncio?O anúncio a que Isaiah se referia era uma descrição do Tristinho em três

linhas, na secção de perdidos-e-achados do Central Oregon Bargain Shopper, um pequeno semanário com espaço barato para anúncios e que praticamente toda a gente lia.

—Não — respondia invariavelmente Laura. — Eu pergunto todos os dias à Val se alguém telefonou, e até agora nada. Não creio que alguém o venha reclamar.

Pelo final da semana, Isaiah chegou a uma decisão que não surpreendeu ninguém a não ser a ele.

—Cancele o anúncio — disse ele a Laura. — Ninguém vai reclamar o cão, e não me parece que lhe vá conseguir arranjar um lar. Fico eu com ele.

—A sério? — perguntou Laura, debatendo-se para não se rir, pois era claro para todos na clínica que Isaiah se apaixonara por aquele cachorro grande e desajeitado. — Tem a certeza, Isaiah? Os meus amigos, os Kesslers, ainda estão a pensar em ficarem com ele.

Isaiah franziu o sobrolho e depois abanou a cabeça.—Há montes de outros cães por aí abandonados a precisarem de um lar

que os acolha. O Tristinho assentou comigo. Seria uma crueldade desen- raizá-lo outra vez.

Laura sabia que era uma maldade, mas não conseguiu resistir a dizer:—Contudo, você acha que ele é feiíssimo. Não seria preferível arranjar um

cão de que gostasse?Isaiah franziu-lhe o sobrolho.—Está-se a divertir com isto, não está? Eu não gostava dele de início, e

agora você está a gozar-me. Um tipo pode mudar de ideias, ou não pode?—Claro que sim — disse Laura.Nesse preciso momento, o Tristinho entrou nos canis. Quando viu Isaiah,

desatou a correr pela coxia central, a latir e a rosnar de alegria e a abanar a cauda com tanta força que todo o seu corpo se bamboleava de um lado para o outro. Laura agachou-se para receber o cachorrinho.

—Ora bem, parece que vieste para ficar — disse ela, enquanto afagava a cabeça do animal. Depois, acrescentou para Isaiah: — Um cão mascote da clínica, em vez de um gato. Estou contente por ter resultado entre vocês. Ele precisava de um lar, e o Isaiah precisava de um cão para amar. Foi com certeza o destino.

—Talvez — disse Isaiah, agachando-se também.Ficaram em silêncio por um momento, fazendo festas ao cachorrinho que se

contorcia de satisfação entre os dois.—Eu não sabia que precisava de um cão, mas se calhar precisava mesmo.

Gosto sinceramente de o ter por perto. E estranho, na verdade, como é que as melhores coisas da minha vida são sempre as que acontecem quando eu menos as espero.

Laura recebeu na boca um beijo húmido do cãozinho. Riu-se e cuspilhou.— Yuck!O divertimento dela desvaneceu-se quando se deparou com o olhar de

Isaiah.—O que foi? — perguntou ela.—Nada. Estava só a pensar.—Em quê?Um brilho matreiro bailou-lhe nos olhos.—Isso é para eu saber e a Laura descobrir, creio eu.O que Isaiah não podia dizer a Laura, o que ele mal conseguia admitir para

si mesmo, é que ela era uma das coisas maravilhosas da sua vida que aconteceu quando ele menos esperava. Se não fosse a Laura, a clínica não estaria esplendorosa como estava, cheia de luzes e grinaldas de Natal. Se não fosse a Laura, não estaria planeada uma festa de Natal do pessoal. Se não fosse a Laura, o frigorífico e os armários ainda estariam vazios sempre que ele fosse à procura de comida. Se não fosse a Laura, ele poderia nunca ter arranjado um cão, por se considerar sempre demasiado ocupado para cuidar de um animal de estimação.

Se não fosse a Laura. Desde que a contratara nesse fim de tarde de Ou-tubro que ela tinha vindo sistematicamente a alterar o mundo dele. Toda a gente na clínica parecia rir-se agora muito mais, desde que ela andava por lá. As pausas para o café já não eram breves e desagradáveis, onde as pessoas bebericavam uma mistela amarga, desejando terem natas ou açúcar. Graças a Laura, estavam bem providos de condimentos e, para acompanhar o café, havia sempre bolachas, donuts e bolinhos de canela, todos eles com sabor a receita caseira. Isaiah já não se sentia tão exausto quando saía da clínica à

noite, porque agora comia merendas durante o dia de trabalho e já não exauria os seus níveis de energia a níveis tão criticamente baixos.

Laura. Quando Isaiah se tentava lembrar de como era a clínica antes da chegada dela, tinha dificuldade em recordar-se. A coisa mais estranha era aquela sensação de que ela sempre fizera parte da sua vida. Por esse mesmo motivo, sentia-se grandemente aliviado por não ter ocorrido mais nenhuma coisa desagradável na clínica enquanto ela estava de turno. Se alguém estivera a planear para que Laura fosse despedida — e Isaiah continuava a acreditar que seria esse o caso — então os procedimentos de segurança melhorados que adoptara, assim como os comentários francos que tanto ele como Tucker proferiram na reunião com o pessoal, devem ter desencorajado o perpetrante.

Pelo final de uma tarde de meados de Dezembro, Isaiah estava pronto a terminar o trabalho do dia quando uma cadela rottweiler grávida deu entrada de urgência na clínica. A cadela estivera em casa sozinha enquanto os donos estavam a trabalhar, e entrara em trabalho de parto. Como por vezes acontecia com as primeiras ninhadas, a rottweiler teve complicações e começou com uma hemorragia. Quando os donos chegaram a casa, a cadela estava às portas da morte. Logo que Isaiah a viu, soube que seria preciso um milagre para a salvar — gengivas descoradas, lábios frios, olhos baços.

—Cesariana! — berrou ele. — Belinda, Angela, preciso de vocês, rápido!Todos se apressaram a preparar a marquesa e, com uma velocidade

eficiente, Susan preparou a cadela. Contudo, no final, todo o trabalho foi em vão. O animal perdera demasiado sangue e morreu durante a operação.

Isaiah sentiu-se muito mal com isso. Era uma cadela muito bonita, uma puro-sangue com um pedigree fabuloso. Deixou as suas técnicas a tratarem das crias e dirigiu-se à sala de espera para falar com os donos da cadela, um casal que estava sentado a um canto, muito juntos. Isaiah presumiu que an-dassem pelos trinta e cinco anos, profissionais liberais, a julgar pela roupa que traziam, o homem com um sobretudo manchado de sangue, vestido sobre um fato cinzento de bom corte, a mulher com uma saia escura e um blazer. Estava a chorar sobre o ombro do marido, a dizer:

—Oh, meu Deus, espero que ela esteja bem. Minha pobrezinha, pobrezinha Phoebe!

—Boas noites — disse Isaiah, estendendo ao homem a mão direita. — Sou o Dr. Coulter.

O sujeito bateu ao de leve no ombro da mulher e afastou-a com carinho para se levantar e apertar a mão a Isaiah.

—Como é que ela está, doutor?Antes que Isaiah pudesse responder, a mulher gritou:—Ela entrou em trabalho de parto enquanto estávamos no emprego!—Ah — disse Isaiah. Ele podia ter dito que deixar a cadela sozinha perto do

seu termo fora uma irresponsabilidade, mas isso ainda iria piorar mais a situação. Aquelas pessoas aprenderam a lição da forma mais dura e fariam melhor da próxima vez. — Isso por vezes acontece.

A mulher aquiesceu e fungou.—Quando chegámos a casa, havia sangue por todo o lado. Tínhamos-lhe

feito a caminha para ela ter os filhos no nosso closet — disse ela, numa voz que se tornava aguda e débil. — Ela estava para ali caída como se estivesse morta.

A experiência ensinara a Isaiah que era melhor dar as más notícias de forma rápida e simples. Mas isso não lhe facilitava a tarefa de lhes dizer o que tinha de ser dito.

—Tenho muita pena, mas a Phoebe não conseguiu sobreviver.A mulher tapou a cara com as mãos. O homem emitiu um som estrangulado

e curvou a cabeça.—Fizemos todos os possíveis para a salvar — disse Isaiah. Sentia-se

sempre desamparado em momentos como aquele. — Mas chegámos tarde demais. Perdemo-la na mesa de operações.

—Eu nunca deveria tê-la deixado sozinha! — gritou a mulher, por entre soluços. — Oh, meu Deus, minha pobre Phoebe!

—Complicações como estas não são uma coisa que qualquer pessoa possa prever — disse Isaiah com gentileza. — E sempre fácil recriminarmo-nos depois de a coisa acontecer, mas isso só nos faz sentir pior. Aquilo em que agora se devem concentrar é no facto de a terem amado e feito os possíveis por lhe darem um bom lar. Nem todos os cães têm essa sorte.

O marido atalhou:—E isso, querida. Não comeces a culpar-te. Não tínhamos forma de saber

que ela iria ter problemas. — Depois, olhando para Isaiah. — Fizemos tudo para que ela se sentisse bem. Não fazíamos a menor ideia...

Isaiah anuiu com a cabeça.—Da próxima vez, já sabem por experiência que podem surgir compli-

cações. Mas não sabiam isso hoje de manhã — disse ele, esperando depois que os soluços da mulher acalmassem um pouco. Depois, continuou: — Não sei se isto servirá de consolação, mas conseguimos salvar os filhotes da Phoebe.

—Salvaram-nos? — perguntou a mulher, com os olhos iluminados de esperança.

Isaiah sorriu.—Ela deixou-vos treze lindos bebés. Só os vi de relance, antes de sair para

vir falar convosco, mas pareciam todos saudáveis.A mulher lançou ao marido um sorriso trémulo e lacrimoso.—Oh, Stanley, ouviste? Os bebés dela sobreviveram.Stanley abanou a cabeça.—A mãe deles morreu, Nan. Não podemos ficar com treze crias a tra-

balharmos os dois como trabalhamos.Isaiah levantou uma mão.—Há à venda fórmulas de leite para crias. Os cães recém-nascidos que

ficam órfãos dão-se geralmente muito bem com elas. Só têm de lhas dar no biberão de duas em duas horas.

—De duas em duas horas? — repetiu Nan. — Todo o dia e toda a noite?Isaiah confirmou.—Em casos como este, a maior parte das pessoas consegue o desmame

das crias em quatro semanas. Vai ser um mês bastante duro. Não vos vou mentir acerca disso. Mas a Phoebe era uma cadela linda. Em minha opinião, as crias dela poderão ser vendidas por muito dinheiro. Se calhar, considerando o retorno financeiro desse esforço, um de vós pode permitir-se a tirar um mês de folga.

Stanley abanou de novo a cabeça.

—Eu posso tirar uns dias em caso de emergência familiar, mas a morte de uma cadela não cai nessa categoria — disse ele. Depois, olhou para a mulher. — E tens uma exposição daqui a quinze dias. Não podes largar tudo agora.

Nan limpou a cara.—Tenho uma galeria ile arte.—Ah — disse Isaiah outra vez. Era a sua expressão favorita em ocasiões

como aquela, descomprometida, isenta de sentido. As pessoas podiam dar-lhe o significado que entendessem.

—Sabe como é — continuou Stanley, esfregando o sobrolho como se lhe doesse a cabeça. — A Nan está a dar agora tudo por tudo, vinte-e-quatro horas por dia, todos os dias, e eu sou um director de projecto, e estou a tentar cumprir um prazo. — Olhou então tristemente para a mulher. — Temos de ser práticos, querida. Não há forma alguma de o podermos fazer.

—O que estão a dizer? Que os devemos abater?Stanley olhou para Isaiah.—Haverá aqui alguém interessado em alimentar a biberão uma ninhada de

cachorrinhos? Tem razão quando diz que a Phoebe era uma cadela linda. Tinha linhagem de campeões alemães, e o cão também tinha uma genealogia igualmente notável. Dependendo da sua qualidade, as crias poderão vender-se, cada uma, a um preço que varia entre os mil e oitocentos e os dois mil e quinhentos dólares.

Isaiah não podia prometer nada.—Posso perguntar às minhas técnicas. Talvez uma delas esteja

interessada.—Em troca do melhor cão da ninhada, estamos dispostos a desistir de

todas as outras crias — disse ele, olhando depois para a mulher. — Não é, Nan? Alguém poderia fazer imenso dinheiro, e nós ficaríamos com um dos cachorrinhos da Phoebe.

A boca de Nan tremia, ao tentar sorrir.—Oh, sim, isso seria maravilhoso.Isaiah assentiu.—Vou passar a palavra. Talvez uma das minhas técnicas queira ficar com

eles. Senão, o que querem que eu faça?A expressão de Stan tornou-se sombria.—Se ninguém tiver interesse em os alimentar a biberão, não teremos outra

opção senão abatê-los.Nenhuma das técnicas ou dos técnicos tinha possibilidade de alimentar as

crias a biberão durante o mês seguinte. Isaiah não fazia ideia do que se passava na ala de Tucker, mas na sua toda a gente tinha uma razão para tornar tal empresa impossível. Trish chorou ao recusar a oferta, mas entre o seu emprego, um marido, dois miúdos e um par de airdales turbulentos, ela já mal chegava para as encomendas. Susan vivia com a mãe e não tinha espaço para treze cachorrinhos numa casa tão pequena. Belinda vivia num apartamento que não admitia animais de estimação, assim como Angela, James e Mike.

Isaiah pensou em criar ele próprio os cãezinhos, mas, quando analisou os aspectos práticos, constatou ser uma ideia louca. Nas primeiras duas semanas, as crias teriam de ser alimentadas a cada duas ou três horas, impossibilitando que fossem deixadas na clínica durante a noite. Havia um lapso de quatro

horas entre o fim do turno da noite e as seis horas da manhã, quando a clínica abria, e passaria ainda outra hora, senão mesmo mais, antes que alguém se pudesse dedicar às crias. Cães tão pequenos tinham de ser alimentados com frequência e regularidade. Isaiah teria de levar os cachorrinhos para casa todas as noites de modo a que não lhes faltasse uma mamada. O que aconteceria se ele fosse chamado de volta à clínica numa emergência? Não podia carregar treze cachorrinhos para onde quer que fosse.

Com o coração pesado, Isaiah preparou-se para anestesiar a ninhada. Acabara de encher uma seringa com anestésico, que seria injectado no co-ração de cada cria, quando Laura entrou na cirurgia. Isaiah ficou surpreendido por a ver. Eram quase seis da tarde. O turno da tarde dela terminara duas horas antes.

—Olá — saudou ela, ao atravessar a sala para fazer um inventário das provisões de comida, antes de sair.

—O que é que está a fazer aqui? — perguntou Isaiah, num tom um pouco mais áspero do que tencionava.

—Estive sentada ao pé do Rambo. A perna ainda lhe dói.O Rambo, um cão arraçado de pit buli, saltara de um terraço para o passeio

de cimento e fracturara uma perna da frente. Não era inédito que Laura ficasse ainda um bocado por ali quando um dos seus pacientes necessitava de um pouco mais de carinho mas, nesse dia, Isaiah desejava realmente que ela não o tivesse feito. Não iria ficar satisfeita se soubesse que treze cachorrinhos estavam prestes a ser abatidos. Ele já se sentia suficientemente mal com isso. Se ela desatasse a chorar — e era mais que certo que o faria — ele não estava seguro de ser capaz de fazer o que tinha de ser feito.

Seguiu-a com o olhar quando ela entrou num vestiário anexo. Quando ela saiu um momento depois, balançando a carteira enquanto vestia um casaco, descobriu os cães.

— Oh, que queridos!Isaiah não se incomodara a perguntar a Laura se ela estaria interessada em

alimentar as crias a biberão, pois sabia que o senhorio dela era muito rígido quanto a proibir animais no apartamento.

—Não olhes para eles — disse Trish a Laura, fungando audivelmente. — Só te vai partir o coração. O Isaiah vai ter de os pôr todos a dormir...

—Porquê? — perguntou Laura, com os olhos muito abertos de cons-ternação. Enquanto avançava pela sala na direcção de Isaiah, o olhar dela mantinha-se fixo nas crias negras que se contorciam sobre uma toalha. — O que é que eles têm?

—Nada — respondeu ele. — A mãe deles morreu. Os donos não os podem alimentar a biberão porque ambos trabalham. Durante os próximos quinze dias terão de ser alimentados de duas em duas horas, ou não sobrevivem. Depois disso, terá de ser de três em três horas, pelo menos, até serem desmamados.

Laura pousou uma mão esbelta sobre um dos cachorrinhos. Isaiah sabia, pela sua expressão, que ela estava a tentar pensar desesperadamente numa forma de resolver o problema.

—Esqueça, querida. Saltava a tampa ao seu senhorio — disse ele, pres-sionando o êmbolo da seringa com o polegar para fazer sair umas gotas de anestésico. — E mais uma dessas coisas. Todos as detestamos, mas é o lado negativo da medicina veterinária. Por vezes, danço nas nuvens quando saio daqui. Hoje, vou-me sentir capaz de morrer.

—Não — sussurrou Laura. O olhar dela cruzou-se com o dele, e ela repetiu a palavra, desta vez mais alto. — Não. — A laringe dela oscilou quando ela engoliu. — Não os pode matar, Isaiah. Dentro de três ou quatro semanas, eles estarão suficiente-mente crescidos para comerem comida normal.

Isaiah viu o coração dela a reluzir naqueles grandes olhos cor de avelã.—Minha querida, mas que mais posso eu fazer? — Minha querida? Mas de

onde é que isso veio? — Não os pode ter em sua casa. Ninguém mais o pode fazer, também. Treze cachorrinhos? Pense bem!

—Deixe-me telefonar à avó — disse ela, com voz trémula. — Talvez ela me deixe tê-los lá.

Isaiah suspirou e colocou a protecção na agulha da seringa.—Okay. Avance. Realmente não me apetece nada fazer isto.Laura voltou ao vestiário para fazer a chamada. Momentos depois, quando

ela voltou, Isaiah soube, sem ter de lhe perguntar, que a avó dela dissera que não. Os olhos de Laura estavam marejados de lágrimas. O queixo tremia-lhe. Veio até à mesa e pegou numa das crias minúsculas, de focinhito enrugado. Depois de roçar a face ao longo do pequeno corpito negro, ela voltou a pousar a cria sobre a toalha.

—Alcatifa nova — explicou ela, suavemente. — Interior/exterior na cozinha e nas casas de banho. Se eles saírem da caixa, estragam-lhe os tapetes.

Ela deu-lhe um último olhar agonizante, e depois saiu a correr da cirurgia. A porta fechou-se atrás dela com tal força que oscilou nas dobradiças. Isaiah seguiu-a pensativamente com o olhar, e depois voltou os olhos para as crias. Bolas! Detestava aquela parte do seu trabalho.

—Talvez alguém da Sociedade Protectora queira ficar com eles — sugeriu Trish com alegria forçada.

—Podíamos telefonar-lhes a perguntar — concordou Belinda.Angela atalhou com:—Se isso se revelar um beco sem saída, porque não telefonarmos a outros

veterinários? Tem de haver alguém por aí que queira ganhar dinheiro extra a fazer uma boa acção.

Isaiah foi até ao caixote de resíduos de risco biológico e meteu a seringa tapada pela abertura.

—Tenho uma ideia melhor. Trish, tira-me um cobertor do aquecedor e tapa-me as crias, se fazes favor? Não quero que elas gelem enquanto estou fora.

—Aonde vais? — perguntou ela.Isaiah sorriu misteriosamente.—Já volto.Laura estava prestes a entrar no seu carro quando um grito a fez parar.

Reconhecendo a voz de Isaiah, ela voltou-se para olhar para trás. A vestir apressadamente um casaco, ele avançava na direcção dela através do lusco-fusco, com a respiração a formar baforadas de vapor. Ela esperou enquanto ele percorria o parque de estacionamento coberto de gelo. Quando chegou ao pé dela, Isaiah parou e olhou durante um momento para o céu que escurecia.

—Tenho uma proposta a fazer-lhe — disse ele por fim.Laura atirou com a carteira para dentro do carro. Sentia-se desespera-

damente furiosa e estava a reter as lágrimas.—Como é?

Um sorriso indolente atravessou lentamente a boca dele, aprofundando as covas nas suas faces magras.

—Está pronta para uma ideia realmente louca? — Os olhos dele brilhavam como prata derretida na luz que se desvanecia, em surpreendente contraste com o seu cabelo e a sua pele, ambos morenos. — Que tal ficar em minha casa para tomar conta dos cachorrinhos até eles estarem desmamados?

Laura apreendeu as palavras, mas por um momento o seu significado pareceu dançar dentro do seu cérebro como pingos de água numa chapa em brasa.

—O quê?O sorriso dele alargou-se.—Eu disse-lhe que era uma ideia louca. Mas não o será assim tanto se

pensarmos um pouco nisso. Os meus soalhos são todos em madeira ou tijoleira. Uma ninhada de cachorrinhos não lhes pode fazer grande estrago.

—Você quer que eu fique em sua casa? — perguntou ela, incrédula.—Sim. Quando a mandei construir, dei tudo por tudo e fiz cinco quartos.

Um dia, que não será em breve, com certeza, espero casar-me e ter uma família, portanto espaço não me falta. O meu irmão Jake tem uma pequena piscina de plástico para miúdos no celeiro. São óptimas para meter uma ni-nhada de cães recém-nascidos. Só temos de lhe colocar dentro algumas toa-lhas a servirem de cama, e os bordos escorregadios impedem-nos de saírem. Quando eles crescerem, podemos comprar-lhes um desses canis portáteis de grade metálica e cobrir o chão com jornais.

Laura não sabia o que dizer.—Terá de os trazer consigo quando vier trabalhar — continuou ele. — Será

uma grande chatice, mas, logo que aqui chegar, pode metê-los num dos canis até à hora de sair. Pode até ser que consiga recrutar voluntários para os alimentar enquanto a Laura está a trabalhar.

Quase desde o início que Laura andava a lutar com os seus sentimentos em relação a este homem. Agora perdera a guerra. Ele tinha tão bom coração! Como podia ela não deixar de o amar? Ele era, sem sombra de dúvida, o homem mais bonito que alguma vez conhecera, e agora, ao fazer-lhe aquela proposta, convencera-a de que também era o mais caridoso. Ela queria lançar-lhe os braços à volta do pescoço e dar-lhe um grande, grande beijo.

Mas não era uma boa situação. Ficar em casa dele era receita quase certa para uma dor de alma. Por isso, ela debatia-se para controlar os seus sen-timentos para com Isaiah. Como é que ela esperava alguma vez conseguir isso se o via constantemente, não só no trabalho como agora também em casa? Iriam provavelmente partilhar a mesma mesa. Poderia mesmo haver ocasiões em que passariam um serão juntos a ver televisão. Ela seria como um amante de chocolate a viver numa fábrica de chocolate, permanentemente sujeita à tentação mas impossibilitada de satisfazer os seus desejos.

Se não fosse pelos cachorrinhos, Laura teria recusado a proposta. Mas como é que poderia alguma vez fazer isso quando havia treze vidinhas em jogo? Sim, é claro que ela tinha de proteger o seu coração, mas a que custo? Se olhar por ela significava que aquelas criaturinhas tinham de morrer, o preço era demasiado elevado.

—Vá lá — incitou-a ele, com uma risadinha — Não sou propriamente um estranho... E não há segundas intenções, prometo.

—Não estou preocupada com isso — respondeu Laura, respirando fundo. Se ao menos... Borboletas de medo atacaram-lhe o estômago. — É uma proposta encantadora, Isaiah. Como poderei dizer que não?

—Assim é que é — disse ele, batendo com o tacão da bota numa placa de gelo que se formara no chão, lançando lascas em todas as direcções. — Temos fórmula de leite para cães recém-nascidos aqui na clínica. Um de nós pode passar hoje à noite por um centro comercial e comprar biberões de bonecas. Até lá, podemos alimentá-los com uma seringa.

Os pensamentos de Laura andavam em círculos.—Terei de emalar algumas roupas. E o meu frigorífico! Não posso lá deixar

a comida a estragar-se.—Não há problema. Vá para casa. Faça o que tem a fazer. Vou passar por

casa do Jake para trazer a piscina e depois levo as crias para minha casa. Arranjamo-nos bem até você chegar. Vou instalá-las e alimentá-las. Depois de fazer tudo o que tem a fazer no seu apartamento, pode passar por um centro comercial e trazer alguns biberões de bonecas? — prosseguiu então a descrever o tipo de biberões de que eles precisavam. — Para facilitar o trabalho das refeições, traga treze biberões, se puder. Pago-lhos depois. Traga-me é o recibo.

—Não sei se consigo dar com a sua casa. No dia em que saímos com o Tristinho, não reparei no percurso.

Ele apontou para a clínica com um movimento de cabeça.—Eu desenho-lhe um mapa.Aquele serão foi dos mais atarefados de que Laura se recordava. Depois de

passar pelo seu apartamento para retirar comida do frigorífico e emalar objectos pessoais para a sua estadia em casa de Isaiah, dirigiu-se à cidade para comprar os biberões. Só que encontrar biberões de bonecas com tetinas maleáveis, adequadas à boca de um cãozinho recém-nascido, não era fácil. Por fim, ela encontrou algumas numa «loja dos trezentos», com a vantagem de serem baratos, e a desvantagem de ela ter tido de parar em cinco lojas antes de os encontrar.

Quando chegou à casa de Isaiah, já eram quase oito da noite. Ao estacionar no terreiro circular de acesso, ela olhou com assombro para a grande casa de toros de madeira, à noite tão diferente do que parecera durante o dia. Havia luz amarelo-manteiga a filtrar-se através das grandes janelas da frente, que se estendiam desde o chão até ao alto vértice da empena central. Havia empenas mais pequenas a flanqueá-la de cada um dos lados, ostentando janelas até ao chão que davam para varandas do segundo piso. Havia projectores de jardim colocados entre os arbustos que bordejavam a sapata de cimento da casa. A luz espalhava-se para cima a partir das plantas carregadas de neve, para banhar os troncos com uma luz cor de âmbar.

Laura acabava de sair do seu carro e empurrar o banco do condutor para a frente, de modo a tirar as coisas que trazia no assento traseiro, quando Isaiah e o Tristinho saíram da casa. O cachorrinho latiu de alegria e veio a rebolar pelos degraus abaixo para a saudar. O sorriso de Isaiah era igualmente hospitaleiro.

—Estava preocupado, não fosse você ter-se perdido! — disse ele, enquanto descia os degraus com bastante mais graciosidade do que o cãozinho.

—Não, o mapa era óptimo — disse Laura, pousando uma caixa de papelão no tejadilho do carro e curvando-se de novo para o interior do veículo, para

pegar numa enorme sacola cheia de roupa. — Levei foi mais tempo do que aquele com que contava. Tive dificuldade em encontrar os biberões. A maior parte das lojas já não os vende.

—As meninas já não brincam com bonecas bebés como antigamente. Encontrou alguns, espero.

Laura ergueu um saco.—Treze! O empregado certificou-se de que eu os contei bem. Penso que

dão.Ele pegou no saco e abriu-o na direcção da luz.—Mesmo em cheio. Estes dão lindamente.Com os braços carregados de pertences, Laura fechou a porta do carro com

um empurrão da anca.—Fui a cinco lojas antes de os encontrar.

Cinco? Meu Deus — disse ele, avançando até ao carro para pegar na caixa e na mala que estavam sobre o tejadilho do Mazda. — Deve estar estoirada!

—Um pouco.Trabalhando em tandem, começaram a transportar as coisas para casa, e a

depositá-las no interior logo á entrada. Enquanto andavam de cá para lá, falavam entrecortadamente. Ele disse-lhe que alimentara as crias com uma seringa e as pusera na piscina de plástico a dormirem um pouco.

—Liguei para os donos da mãe. Quando os cachorrinhos estiverem desmamados, eles querem escolher o melhor da ninhada. Você pode vender os outros e ficar com o dinheiro.

Quando Laura ouviu quanto poderia render cada cachorrinho, nem queria acreditar,

—Quanto é que disse?—Você ouviu-me — disse ele, com um sorriso. — Se eles sobreviverem

todos, e não vejo razão para que isso não aconteça, este esforço pode ser muito rentável.

Laura nem sequer pensara na recompensa monetária.—Eu não sabia que um cão pudesse custar assim tanto.—Ah, sim. Certas raças, pelo menos. Evidentemente, os pais tinham ambos

qualidade para exposição canina. Linhagem alemã, segundo disseram. Algumas das crias irão atingir um preço muito alto.

Quando acabaram de transportar tudo para dentro de casa, Isaiah fechou a porta da frente e fez um gesto com a mão, abrangendo toda a casa.

—Bem-vinda à minha humilde morada.Laura entrou na espaçosa sala de estar, que parecia ainda maior por estar

quase vazia. Um lustre de ferro forjado pendia da trave central do tecto de pinho nodoso. A sua luz suave combinava-se com a de um bom fogo a crepitar alegremente numa grande lareira de pedra rústica no extremo oposto da sala, para dar às paredes nuas um tom de âmbar. Havia dois pufes vermelho-vinho em frente da lareira. Uma grande televisão de plasma completava toda a mobília da enorme sala.

—E uma esplêndida casa — disse Laura. Vazia, mas bonita.Ela interrogou-se por que razão não teria ele nenhum sofá ou cadeiras

normais, mas, antes que pudesse pensar numa forma simpática de perguntar, ele disse:

—Estou sempre a pensar fazer alguma coisa quanto à mobília, mas parece que nunca arranjo tempo para isso.

—Oh — exclamou Laura, retendo um sorriso. Aquilo era mesmo à Isaiah, sempre a correr de uma tarefa para outra, sem nunca o seu dia ter horas suficientes. — Encontrar as coisas certas requer muito tempo, e não é coisa em que nos devamos apressar. Quando compramos um sofá e cadeiras, vamos ter de ficar com eles durante uns tempos.

—Exacto — disse ele, dando-lhe um olhar apreciativo. — A Laura seria boa nisso.

—Boa em quê?—A escolher a mobília. Pensei em contratar um decorador, mas, sempre

que começo a ligar, fico com receio e desligo o telefone.—Porquê?Ele suspirou e esfregou a nuca.—Não sei. A decoradora do Tucker fez um óptimo trabalho na casa dele. Só

que... — fez um gesto com a mão. — Receio que ela aboneque isto como fez à casa dele, e eu detesto isso. Quero que a minha casa reflicta a minha personalidade, e não a de outra pessoa qualquer. Sabe o que quero dizer...

Laura compreendia perfeitamente o que ele queria dizer. Não era caso para um qualquer decorador entrar por ali dentro e criar um ambiente espectacular de revista de decoração, com bugigangas delicadas a atravancarem cada superfície. Isaiah era um homem de trabalho, com um estilo de vida de ar livre. Precisava de mobília e de decorações que se adequassem à sua personalidade. Laura visualizou um sofá de couro e grandes poltronas, flanqueadas por mesas de madeira envelhecida — mobiliário rústico, confortável, em harmonia com o estilo da casa e do homem que nela habitava.

Ao avançar mais para o interior da sala, ela olhou para o mezzanino por cima dela. Adorou a balaustrada, feita de mais troncos, nenhum deles aplainado, de modo que cada pilar tinha curvaturas e nós naturais que lhe davam originalidade. Umas escadas à sua esquerda faziam ângulo contra a parede c davam ai esso ao piso superior.

—Há três quartos lá em cima e mais dois cá em baixo — explicou ele.— Eu gostaria muito de lhe poder oferecer qualquer quarto, mas só o quarto de hóspedes no rés-do-chão é que tem uma cama.

Laura não conseguiu conter uma risada. Estava feliz por saber que não iria dormir no chão.

—Aqui em baixo está óptimo.—E se calhar também é melhor — disse ele indicando com um gesto a

balaustrada por cima deles. — Se algum dos cachorrinhos se escapar da piscina de plástico ali em cima, daria um senhor tombo.

Laura estremeceu com a ideia.—Foi você que projectou a casa? — perguntou ela, voltando-se para ver

tudo.—Porque é que pergunta?—Porque é parecida consigo, de certa forma.Laura não tinha palavras melhores para o explicar, mas a casa lembrava-lhe

Isaiah: grande, atraente, sólida e honesta, não deixando de ser também imaginativa. Ela gostava dos assentos nos vãos das janelas, à direita da porta de entrada. Eram mais largos do que a maioria, e eram bastante fundos, dando

espaço suficiente para uma pessoa se reclinar. Com algumas almofadas fofas e de cores vivas, providenciariam aconchegantes áreas de leitura, com toda a luz natural que entraria pelas janelas durante o dia.

—Deixe-me pendurar-lhe o casaco — prontificou-se ele. — Depois vou-lhe mostrar a casa.

Quando Laura despiu o casaco para lho entregar, o Tristinho trepou-lhe pela perna a pedir festas.

—Olá, Tristinho! Oh, sim, também gosto muito de ti — disse Laura, coçando a cabeça do animal por detrás das orelhas. — És um querido. És, és.

—Ele é uma peste! — corrigiu-a Isaiah, enquanto fechava o roupeiro.— Se ficar farta dele, dê-lhe para trás.

—Eu nunca me farto de cães.Com uma última festa na cabeça do cão, Laura seguiu o seu empregador

para a sua primeira visita ao interior da casa. Por detrás da lareira de duas faces, havia uma espaçosa sala de jantar, desprovida de mobília. Para além dela, estava uma igualmente grande cozinha, separada da zona de estar por um comprido bar, onde se alinhava uma fila de bancos altos.

—Que cozinha tão bonita! — exclamou ela. — Até tem bancos de bar. Que simpático. Assim podemo-nos sentar enquanto comemos.

Ele franziu-lhe o sobrolho.—Continue a gozar e ainda a ponho a comprar a mobília e a decorar a casa.Laura quase que desejou que ele levasse avante a ameaça. Ela nunca

decorara uma casa acabada de estrear. Seria divertido — e um desafio.—Eu queria uma cozinha gourmet — explicou-lhe ele, enquanto lhe

mostrava a placa de fogão Viking a gás, os fornos duplos, um gigantesco fri-gorífico embutido Sub-Zero side-by-side e uma ilha de trabalho com montes de espaços de arrumação por baixo do balcão. — Topo de gama — disse ele com orgulho, ao mesmo tempo que lhe lançava um sorriso envergonhado — Pena eu não saber cozinhar...

Laura riu-se de novo. Perto de Isaiah, ela parecia fazer muito isso.—Talvez se possa inscrever num curso de culinária...Ele encolheu os ombros.—Pois, claro. Talvez nos meus tempos livres, não?—Talvez a sua futura mulher goste de cozinhar — aventou ela.Ele sorriu ao de leve.—Talvez...Ele conduziu-a a uma lavandaria de boas dimensões.—Máquina de lavar roupa, de secar... — disse ele, a sorrir, e pestanejou. —

Aqui temos o detergente. — Depois, abriu uma porta para lhe mostrar a garagem para três carros anexa à casa. — Enquanto se instala no seu quarto, eu meto-lhe o seu Mazda aqui na garagem — informou-a ele. — As previsões apontam para queda de neve hoje e amanhã.

—Verdade? — a expressão de Laura iluminou-se.—Pois... — confirmou ele, mostrando-se bem menos entusiasmado do que

ela. — Amanhã vou ter de limpar a neve da entrada, certo e sabido. Não faz sentido ter também de raspar a neve dos pára-brisas.

Laura seguiu-o de novo pela cozinha, fixando o olhar em Isaiah, que se mantinha de costas voltadas. Raramente o via sem uma bata. Observou o seu

cinto à moda do Oeste, onde o seu primeiro nome fora gravado no couro. Depois, admirou o movimento puramente masculino das ancas estreitas dele, enquanto andava. Tinha o andar de um homem que passara a maior parte da vida sobre uma sela.

—Tem cavalos? — perguntou ela.—Ainda não. Na Primavera que vem, conto arranjar um casal — respondeu

ele, olhando por cima do ombro. — Monta?Laura abanou a cabeça.—Há anos que não, e nem sequer montei muito.—Ora essa, não pode ser! Tenho de lhe dar lições de equitação. Há uns

percursos excelentes por aqui. Este terreno confina com terras do BLH1.Antes do seu acidente, Laura efectuara ocasionalmente estudos ecológicos

para esse departamento e para outras agências governamentais.—Milhares de hectares, sem casas. Vai adorar.Laura suspeitava de que ele tinha razão; ela iria mesmo adorar. Mas era aí

que residia todo o problema: ela adorava tudo o que dizia respeito a Isaiah Coulter, adorava estar com ele. Logo que os cachorrinhos fossem desmamados, ela teria de o evitar. Teria de deixar de aceitar convites de improviso para jantar fora com ele. Deixar de entregar gatinhos a velhotas tristes e solitárias. Deixar de ir à cirurgia durante as pausas para café, onde era certo cruzar-se com ele.

Ao passarem pelo fogão, ela viu uma panela com qualquer coisa sobre um dos bicos a gás. O cheiro a sopa de tomate escapava-se por debaixo da tampa de aço inoxidável, lembrando-lhe de que não jantara ainda. Isaiah conduziu-a de volta à parte da frente da casa, a uma porta posicionada por baixo da escada. Abriu os dois batentes e acendeu o candeeiro de tecto para iluminar um grande quarto. Quando Laura avançou para ficar ao lado dele na porta, ficou vivamente consciente da presença física de Isaiah — da sua altura e amplitude, do calor que ele irradiava do corpo e do odor fortemente masculino que exalava. Foi preciso apelar a toda a sua concentração para fixar a atenção no mobiliário do quarto, uma linda cama dita «de trenó», uma cómoda com espelho a condizer e um grande armário com gavetas onde ela podia guardar a sua roupa.

—Desculpe — disse ele. — Sei que está habituada a ter imensas coisas penduradas nas paredes.

—Está óptimo — assegurou-lhe ela. E estava. A cama tinha sido feita de lavado. Não tinha colcha, mas a manta de retalhos coloridos tinha um encanto muito próprio que ia lindamente com as paredes rústicas de troncos. Ela foi até à cama para experimentar o colchão. Quando se sentou na beira e deu um salto, as molas rangeram. — Confortável. Vou dormir como um bebé.

Nesse preciso momento, os seus olhares encontraram-se. Para Laura, o ar entre eles os dois pareceu ficar de repente carregado de electricidade. Ho-mem, mulher, cama a ranger. Ela pôs-se de pé tão depressa que ficou tonta.

Ele pigarreou, desviando o olhar.—Ali é a casa de banho — disse ele, apontando para uma porta. — Tem

uma banheira de hidromassagem e uma cabina de duche. Creio que estará à altura das suas necessidades.. — Voltou a pigarrear. — De qualquer modo, não teremos necessidade de disputarmos o mesmo chuveiro.

Sentindo-se aparvalhada, Laura foi até à porta para ver a casa de banho.1 Bureau of Land Management: agência norte-americana que administra os terrenos públicos. (N. do T.)

—Oh! — exclamou ela com deliciada surpresa, que contribuiu para dissipar a tensão. — Que bonita! — A banheira estava rodeada do que parecia ser um campo de ladrilhos verde-floresta. Por cima dela, o tecto apresentava uma clarabóia em cúpula de vidro, com alguns painéis de vitral vermelho-rubi e verde, e outros transparentes.

—Oh, Isaiah! — exclamou ela, imaginando plantas suspensas em redor da funda banheira, e como elas iriam medrar na luz tricolor que se derramaria pela clarabóia durante todo o dia. Com alguns toques decorativos, aquela poderia ser uma casa de banho digna da realeza. — Foi você quem projectou isto?

—Mais ou menos. Fiz um esquema do que queria e contratei um tipo para desenhar os planos.

—É linda! — Laura gostaria de poder dizer fabulosa sem ficar com a língua presa.

—Muito obrigado. A suíte principal é ainda mais agradável. Mas não é visitável enquanto eu não lhe der um jeito. Sou um grande bodegão.

—A casa parece-me limpa.—Mulher a dias...-Ah.Quando Laura saiu da casa de banho, reparou numa pequena piscina

infantil de plástico turquesa no chão, entre a cama e a parede.—Oh, os bebés! — exclamou ela em voz baixa.Ele veio para o lado dela.—O que eu não daria para poder dormir assim — disse ele, com uma

risadinha.Laura agachou-se para admirar os seus protegidos adormecidos, todos os

treze. Adorava os seus corpitos gordinhos, as cabecinhas maciças e os focinhitos achatados.

—Têm corações nas caudas!Ele riu-se de novo e agachou-se ao lado dela.—Costumam ter, nessas idades. Amanhã temos de os levar à clínica para

lhes amputar as caudas.Laura não pensara nisso.—Oh, ui! Temos de fazer isso já? Eles ainda são tão pequeninos...—E melhor fazê-lo já. Se esperarmos até eles serem mais crescidos, doer-

lhes-á muito mais.Laura não suportava pensar no assunto.—Parece tão cruel. Porque é que não os podemos deixar com as caudas

com que nasceram?—Poderíamos, creio eu... — respondeu Isaiah. Nesse preciso momento, o

Tristinho entrou de rompante no quarto. Isaiah apanhou o turbulento cachorrinho no momento em que este ia saltar para dentro da piscina de plástico. — Zona interdita, pazinho! Ainda são muito pequenos para brincarem contigo. — Isaiah afagou a cabeça do Tristinho. — O problema de não lhes cortarmos as caudas é que os rottweilers são cães enormes, e as suas caudas são muito fortes. Em adultos, deitam coisas ao chão e batem nas pernas das pessoas todas as vezes que abanam as caudas.

Laura não estava em crer que aquilo fosse assim tão terrível.

—Também não nos podemos esquecer que eles são puros-sangues muito caros. Os rottweilers normalmente têm as caudas amputadas. Parecerão esquisitos se não as tiverem.

Laura achava que nisso ele tinha razão. Cães com aparência estranha poderiam ter dificuldade em encontrar lugar num bom lar.

—Vai-lhes doer?Ele ponderou a questão.—Obviamente que nenhum cachorrinho me contou o que sentiu, mas não

creio que seja assim tão mau. Uma picada rápida, talvez. Aplicamos-Ihes quase de imediato uma pomada analgésica, e a maior parte das vezes eles adormecem logo de seguida.

Laura suspirou.—Eu não quero assistir — declarou ela, inclinando-se para a frente para

pegar num dos cãezinhos. A visão do focinhito franzido de desagrado fê-la rir-se. — Não é tão querido?

—Não é um «ele», é uma «ela»... — disse Isaiah, observando o focinhito enrugado que Laura virava para ele. — Mas é mesmo muito gira. E difícil olharmos para uma expressão dessas sem sorrirmos.

Com carinho, Laura devolveu a cadelita à companhia dos seus irmãos e irmãs.

—Obrigada por me deixar tê-los aqui, Isaiah. E muita bondade sua.Ele encolheu os ombros.—Estou tão contente por os salvar quanto a Laura, e a bondade é sua. Não

vai ser fácil dedicar-se ao projecto em que se meteu. Vai perder muitas horas de sono durante as próximas quatro semanas...

—Não me importo.—Eu sei que não — disse ele, passeando o olhar pela cara dela, como que a

querer memorizar cada linha e ângulo. — E é isso que a torna tão especial.Depois de Laura ter desfeito as malas e arrumado as roupas e demais

pertences, regressou à parte principal da casa. Isaiah estava atarefado na cozinha, a preparar qualquer coisa que enchia as salas com aromas de fazer crescer água na boca. Quando a viu sair do quarto, perguntou:

—Está com fome?Laura esfregou as mãos nas calças de ganga. Toda aquela situação punha-a

nervosa. Uma coisa era ver Isaiah na clínica e outra, completamente diferente, era ficar em casa dele.

—Esfomeada — confessou ela.—Não é nada de sofisticado, só tostas de queijo e sopa de lata.Laura içou uma anca para se sentar num dos bancos do bar.—Parece-me bom. Ainda não comi nada.—Também calculei que não. No caminho para cá parei numa loja. Temos

todos os ingredientes básicos: ovos, bacon, pão, alguma fruta e carne. Amanhã vou fazer mais umas compras. Quer cozinhar enquanto estiver cá, não é?

Laura não conseguia conceber comer fora durante um mês.—Sim, se não se importar.—Se não me importar? — riu-se ele. — Vou adorar. Importa-se de cozinhar

para os dois?

—Faço-o sempre, e às vezes para quatro. O que preciso é de um livro de receitas para uma pessoa — respondeu Laura, pousando um cotovelo no balcão do bar e apoiando o queixo na cova da mão. — Posso fazer as compras, se quiser.

—Não quero que faça despesa com a comida.—Porque não? Pelo menos, deixe-me pagar metade.Ele abanou a cabeça.—Nem pense. Dar-lhe cama e mesa poderá ser a minha contribuição por

salvar os cachorrinhos. Eu podia-lhe dar dinheiro para cobrir a mercearia, mas sei que pagar assim é complicado para si. Se tiver receio que eu não saiba escolher os produtos, pode vir comigo quando eu for às compras. Desse modo, pode arranjar o que precisa para cozinhar, e eu estarei lá para pagar a conta.

—Okay — concordou Laura, esperando que ele não falasse muito enquanto percorressem o supermercado. Ela já tinha dificuldades suficientes em se recordar de tudo o que precisava sem distracções adicionais. — Claro.

Com uma concha, Isaiah verteu a sopa para duas tigelas e depois voltou as tostas na grelha embutida. Enquanto ele trabalhava, Laura permitiu-se a efectuar outro estudo sub-reptício dele. As suas jeans Wrangler estavam largas do uso, e a fazerem balão no traseiro, mas a ganga abraçava-lhe as pernas compridas o suficiente para mostrar o contorno poderoso das suas coxas. Ele vestia uma camisa axadrezada verde, muito amarrotada mas elegantemente metida para dentro das calças, na sua cintura fina. O padrão geométrico e colorido da camisa atraía a vista para o seu peito, ombros e braços, os quais estavam igualmente bem recheados de músculos, que ondulavam por baixo do tecido sempre que ele se movia.

Ele levantou os olhos e apanhou-a a observá-lo. Por um momento des- confortavelmente longo, ele parou o que estava a fazer para fixar o seu olhar no dela. Depois, a sua boca firme fez um trejeito nos cantos, e ele voltou a sua atenção para a comida.

Momentos depois, Laura estava a molhar bocados da sua tosta de queijo na sopa. Fazia ruídos apreciativos enquanto comia.

—Desculpe. Sei que não é boa educação molhar o pão na sopa.—Força. Eu também gosto de molhar o meu — disse ele, com as bochechas

cheias, lançando-lhe um olhar provocador. — Mas não conte à minha mãe, está bem? Ela é picuinhas com as maneiras à mesa.

Laura riu-se.—Aha! Agora apanhei-lhe um ponto fraco!Caíram ambos num silêncio agradável, enquanto apreciavam a refeição. Ele

fazia barulho ao sorver a sopa da colher, o que ajudou Laura a descontrair e também a fazer um pouco de ruído. Quando ela deixou acidentalmente a sopa escorrer-lhe pelo queixo, ele sorriu e piscou-lhe o olho.

Arrumaram juntos a cozinha, uma tarefa que fez o coração de Laura saltar-lhe para a garganta quando ela se virou e esbarrou violentamente com a cara contra o peito dele.

—Eh lá! Você está bem? — disse ele, segurando-a pelos ombros e do-brando ligeiramente os joelhos para lhe olhar para a cara. — Isso deve ter doído!

Laura não sabia o que era pior, se a dor no nariz ou o formigueiro que sentia na pele onde as mãos grandes dele assentavam.

—Estou bem.—Quer gelo?—Não, não — disse ela, abanando a cabeça e cedendo ao impulso de

esfregar o nariz. — Não nos chocámos assim com tanta força.Quando os pratos estavam na máquina de lavar e os balcões limpos, eles

lavaram os biberões de brinquedo e encheram-nos com a fórmula morna. A operação de alimentar os cães bebés teve lugar na sala de estar, frente à lareira, com Isaiah sentado num dos pufes e Laura no outro. Sentaram-se de pernas cruzadas, cada um deles com uma das crias aninhada num dos braços.

—Nunca fiz isto — confessou-lhe ela.Ele riu-se.—Com treze bocas esfomeadas para alimentar, vai-se tornar perita num

abrir e fechar de olhos.Quando os dois primeiros cachorrinhos ficaram saciados, eles voltaram para

o quarto para a segunda vaga. Mas mal colocaram os primeiros cachorrinhos na banheira de plástico, Laura deu-se conta de que tinham um potencial problema.

—Oh-oh. Como é que vamos saber quais os que já alimentámos e quais os que ainda não? Eles são todos iguais!

Isaiah pareceu perplexo por um instante, mas depois a sua expressão desanuviou-se.

—A Laura está a falar com um gémeo idêntico. Eu e o Tucker parecemos iguais, mas qualquer pessoa que nos conheça sabe distinguir-nos, por nos comportarmos de forma tão diferente.

—E o que é que isso me ajuda com as crias?Ele sorriu.—Diferenças de comportamento, Sherlock. As crias que acabámos de

alimentar estão com sono. Está a ver? — disse ele, apontando para o par de bebés saciados. — Se se mexerem, estão com fome.

Laura riu-se e pegou num «mexilhão». Quando voltaram para junto da lareira, Isaiah disse:

—A novidade disto vai-se esfumar para mim por volta das três da manhã.—Não se preocupe; eu trouxe o meu despertador de corda. Posso lidar com

as mamadas nocturnas sem ajuda.—Estamos no fim-de-semana. Não me importo de me levantar.Laura não conseguia visualizar-se sentada ao lado dele num dos pufes

vestida apenas com uma camisa de noite.—Não, não. Eu queria fazer isto. Não vai ser assim tão custoso.Sucedeu que a primeira mamada do meio da noite viesse a ocorrer às duas

da manhã e não às três. Isaiah acordou em sobressalto com o som débil de uma voz feminina. Já tinha saltado da cama quando se lembrou dos cachorrinhos e da sua bonita hóspede. Pegou nas suas jeans que estavam à beira da cama e vestiu-as apressadamente. O Tristinho ergueu a cabeça da almofada e pestanejou, sonolento.

—Volta a dormir, pazinho. Não vale a pena levantares-te.O cãozito voltou-se a ajeitar na cama e fechou os olhos. Isaiah vestiu uma

camisa ao entrar na sala de estar. Não se incomodando a abotoá-la, seguiu o som doce da voz de Laura até ao quarto de hóspedes. A porta estava aberta de par em par, e a luz que vinha do interior espalhava-se pelo chão de madeira-

de-lei envernizada, formando um trapézio dourado. Esticando o pescoço, Isaiah espreitou pela ombreira da porta. De costas para esta, Laura estava debruçada sobre a piscina de plástico, arrulhando e falando para os cachorrinhos. Envergava uma camisa de noite de flanela que lhe daria decentemente pelos joelhos se ela estivesse direita.

Só que não estava.Isaiah recuou tão bruscamente que bateu com um dos lados da cabeça

contra a porta. Infelizmente, aquela visão fugidia das pernas nuas e esbeltas e do triângulo sombrio no seu vértice ficara marcada a fogo no seu cérebro. Uma parte recalcitrante da sua anatomia ficou dura como uma rocha.

Laura voltou-se, segurando um dos cachorrinhos numa das mãos. Com a vista desfocada pelo sono e o cabelo em desalinho devido à almofada, ela poderia passar por uma adolescente de doze anos se não fossem as curvas marcadamente femininas do seu corpo as quais, para consternação de Isaiah, se apresentavam em detalhe revelador sob a flanela macia e gasta. Com o fogo da lareira apagado, a temperatura ambiente da casa tornara-se gélida, e os bicos dos seios dela reagiram ao frio, tornando-se duros e erectos.

—Isaiah! — exclamou ela sem fôlego. — Assustou-me! O que foi essa pancada?

Fora a cabeça dele, a bater na madeira. Mas funcionara.— Bati à porta, para que soubesse que estou aqui. — Oh.

—Ouvi a sua voz. Pensei que poderia vir dar uma ajuda.—Não estou vestida — fez ela notar.Isaiah já reparara nisso, e de que maneira. Desde o primeiro momento que

pusera os olhos em Laura que andava a lutar para não se sentir fisicamente atraído por ela. Agora estava com dificuldade em se recordar porquê. Ela era linda, doce e fácil de lidar. Ele apreciava a sua companhia e gostava dela como pessoa. Que mais poderia um homem desejar?

Nada, constatou ele. Ela eia tudo o que ele alguma vez ambicionara, e mais ainda. Deus do Céu. Às duas da manhã era uma altura desgraçada para ter esta espécie de epifania. Precisava de uma chávena de café. Ou talvez precisasse que lhe examinassem a cabeça. Era um solteirão empedernido. Tinha a sua vida toda planeada, e nenhum dos seus planos para um futuro próximo incluíam uma mulher, por mais doce e maravilhosa que fosse.

—Você está bem? — perguntou ela.Raios, não, não estava nada bem. Acabara de ser atingido pela constatação

de que estava apaixonado por ela. Tinha vontade de apertar o pescoço à mãe dele. Isto era tudo culpa dela. Se não fossem os mexericos dela, ele nunca teria conhecido a Laura Townsend.

—Isaiah?Ele pestanejou e apurou o olhar. A imagem não mudara. A flanela nunca lhe

parecera tão atraente.—Estou óptimo — disse ele.—De certeza? Se calhar, devia voltar para a cama.Sozinho? Esfregou a cara com uma das mãos. Intervalo. Precisava de

pensar no assunto a fundo. Um chávena de café poderia aclarar-lhe as ideias. Sim, era isso. Estava entontecido pelo sono. Logo que acordasse, iria rir-se dele próprio. Isaiah Coulter apaixonado? Nem pensar, pelo menos durante os próximos cinco anos.

—Estou óptimo — voltou ele a dizer. Fazendo um gesto vago para trás dele, acrescentou: — Vou reacender a lareira enquanto você prepara a fórmula, está bem?

Dirigiu-se primeiro à cozinha para fazer um muito necessário bule de café. Depois preparou o fogo. Enquanto estava a soprar e a abanar, tentando fazer pegar os gravetos, Laura foi descalça até à cozinha. Ele ficou aliviado por ver que ela vestira um par de calças de treino cor-de-rosa, que iam lindamente com as rosas pequeninas da sua camisa de noite.

Ao menos, o bom-senso dela não tirara férias. Uma imagem torturante da parte de trás dela refulgiu de novo nos bastidores dos seus olhos, e todos os pensamentos foram curto-circuitados no cérebro. Ele desejava-a. O seu lado masculino não estava propriamente agradado por ela ter decidido ocultar aquelas pernas soberbas.

Café. Iria pensar com maior clareza — para não dizer com maior racio-nalidade — logo que metesse uma boa dose de cafeína nas veias. Apressou-se a ir à cozinha. Laura estava de pé junto ao lava-loiças, franzindo a testa de atenção enquanto preparava a fórmula. Ele encheu uma chávena de café e bebeu um grande trago, depois outro. O líquido estava tão quente que lhe queimou a língua.

Laura voltou-se para ele erguendo um biberão na mão. Ele sabia que estava perdido quando deu por si a estudar os ângulos e planos delicados da face dela, em vez de dar uma espreitadela furtiva aos seus seios soltos por baixo da flanela.

—Esta quantidade de água está bem? — perguntou ela.Isaiah forçou-se a verificar o nível da água.—Perfeita — assegurou-lhe ele; só que não estava a pensar nas proporções

da fórmula. Ela era perfeita. E ele estava apanhado quase desde o início. Todas aquelas vezes que ele pensara em arranjar formas de estar com ela. O seu pânico quando ela quase que fora despedida. A sua fúria para com Tucker por o irmão dar a entender que ela era uma mentirosa. Amara-a desde que a conhecera e só não tivera o bom senso de se aperceber disso.

Muito bem. Óptimo. Estar apaixonado não era uma sentença de morte. Recentemente, no Dia de Acção de Graças, brincara com a ideia de assentar dentro de dois ou três anos. Aquilo estava apenas a acontecer mais cedo do que ele esperava. Não havia problema. Sendo certo que andava bastante ocupado e que, por isso, arranjar tempo para passar com Laura não seria fácil. Mas isso não era um problema inultrapassável. Andava há meses a debater com o Tucker a ideia de arranjarem um par de sócios, de modo a que ambos pudessem dispor de mais tempo livre. Se avançassem com isso, cada um deles disporia de muito mais tempo para uma vida pessoal. Para além do facto de a sua mãe se ir vangloriar, ele não conseguia encontrar outro bom motivo para se abster de agir segundo os seus sentimentos. Não era como se ele se apaixonasse todos os dias da semana.

Problema. Esta era a primeira noite que Laura passava em sua casa. Se ele se atirasse a ela — bolas, se ele sequer se atrevesse a olhar para ela de forma imprópria — ela iria provavelmente pensar que ele era um crápula libidinoso que a conduzira àquela situação, esperando tê-la no papo.

—Tem a certeza de que está bem? — perguntou ela.Ele voltou bruscamente à realidade.—Estou óptimo. O café ajudou.

E ajudara mesmo. Agora conseguia pensar com maior clareza, e o facto de estar apaixonado por ela não parecia já tão alarmante. A sua principal preocupação, agora que o seu cérebro estava a trabalhar com todos os cilin-dros, era como proceder com ela. Devagar, decidiu ele. Se ele deixasse es-capar de repente que estava apaixonado por ela, arriscava-se a afugentá-la.

E ele não podia permitir que isso acontecesse.

Capítulo Doze

Ocorreram mais duas mamadas durante a noite e, pelas seis da manhã seguinte, quando Isaiah encarou a piscina de plástico, os devaneios românticos eram a última coisa que lhe passava pela cabeça. Treze cachorrinhos, por mais pequenos que fossem, conseguiam fazer muita porcaria quando eram alimentados de duas em duas horas. Depois de examinar as toalhas sujas através de olhos semicerrados de sono, achou que uma chávena de café deveria preceder a desagradável realidade da limpeza que teria de efectuar.

Isaiah ajudou Laura a dar de mamar aos cachorrinhos enquanto a máquina de café aquecia. O Tristinho contorceu-se e avançou a bambolear-se pelo meio dos pufes, cheirou o cachorrinho aninhado no braço de Isaiah e depois soltou uma rosnadela tristonha.

—Acho que ele está com ciúmes — disse Laura.Isaiah riu-se e segurou o biberão com o queixo enquanto fazia uma festa ao

Tristinho.—Gosto muito de ti, palerma! Nenhum outro cão te irá tirar o lugar no meu

afecto.O Tristinho emitiu um novo queixume, o que fez Laura dar uma gargalhada.—Ele já ouviu essa conversa mole antes...Isaiah sorriu, pensativo, e continuou a dar de mamar ao cãozinho. Conversa

mole? Ele não imaginava que experiência Laura tivera com homens antes do acidente que sofrera, mas era claramente bem versada nos seus estratagemas traiçoeiros. Tomara uma decisão sensata na noite anterior. A situação precisava mesmo de algum tempo.

Quando a última cria foi colocada de novo na sua cama, Isaiah traçou uma rota directa para a cozinha, pensando que Laura o iria seguir. Estava bem a meio da sua primeira caneca de café quando se apercebeu de que ela não tencionava ir ter com ele, e foi à sua procura. Encontrou-a na lavandaria, a cantarolar a música do Frosty the Snowman, enquanto passava por água as toalhas sujas de cocó de cachorrinho antes de as meter na máquina de lavar roupa. Ao contrário dele, ela não cedeu à tentação de beber uma chávena de café. Nem sequer se vestira. Tal como um soldadinho em missão, ela estava a cumprir o seu dever antes de dar atenção às suas necessidades pessoais.

—O que é que está a fazer?Com olhos ainda baços de sono, o cabelo espetado em todas as direcções

com uma cauda de galo a erguer-se no topo, Laura estava demasiado bonita para ser real quando se voltou para cruzar o olhar com o dele.

—Estou a cuidar dos cachorrinhos — respondeu ela, com a voz ainda rouca de sonolência. — E o que é que está a fazer?

Isaiah teve vontade de esconder a sua caneca por detrás das costas. Em vez disso, pousou-a no balcão e disse:

—A revezá-la. Vá, beba um café e tome um duche.—Mas isto é o meu trabalho.—O nosso trabalho — corrigiu-a ele. — Nunca foi minha intenção que a

Laura fizesse tudo.—Mas...—Não há mas — disse ele, erguendo uma mão — Eu queria salvar os

cachorrinhos tanto quanto a Laura. Só que não tinha forma de o conseguir fazer sozinho. Se trabalharmos juntos, nenhum de nós ficará sobrecarregado.

Ela sacudiu uma toalha uma última vez por baixo da torneira aberta.—Se me vai ajudar, então insisto para que partilhemos os lucros quando os

cãezinhos forem vendidos.Isaiah estava-se nas tintas para os lucros. Mas sabia que a Laura também

não estava muito preocupada com o lado financeiro da questão.—Negócio fechado — disse ele. — Você já lavou metade das toalhas. Deixe-

me lavar a outra metade.Ela aquiesceu, lavou as mãos e limpou-as a uma toalha limpa que pendia de

um gancho por cima do lavatório.—Eu voltei a forrar a piscina com toalhas limpas. Os cachorrinhos estão

todos a dormir pro-fundamente.—Boa. Isso dá-nos tempo de tomarmos um duche e de arranjarmos um

pequeno-almoço.Trinta minutos depois, Isaiah estava a sair da cabina de duche quando um

aroma delicioso lhe chegou às narinas. Apressou-se a vestir-se e a fazer a barba. Depois, seguiu o aroma através da casa e encontrou Laura de pé junto à sua placa de fogão Viking novinha em folha. Envergava um avental improvisado feito de um pano para louça, por cima de um par de jeans lavadas e de um casaco de malha verde. Isaiah não sabia se era dos aromas apetitosos que enchiam a cozinha ou da própria mulher, mas deu-lhe vontade de a comer. O Tristinho jazia aos pés dela, olhando-a em adoração.

—Não lhe está a dar de comer, pois não?Ela lançou-lhe um olhar inocente.—Credo, não! — disse ela. Mas, apesar de negar a acusação, deitou um

bocado de salsicha ao cãozito de pêlo sarapintado e pele enrugada. — Ele era capaz de se tornar um pedinchas...

E Isaiah não o censuraria. A comida nunca lhe cheirara tão bem.—Mmh! — disse ele, levantando as tampas que cobriam duas das fri-

gideiras, e viu bolinhos de batata numa delas e salsichas na outra. — O que é que está no forno?

—Biscoitos.—Caseiros? — Pergunta estúpida. Ele não tinha massa de biscoito no

frigorífico. — Morri e estou no Céu.—São só biscoitos simples, tipo bolinhos — disse ela, pegando numa

batedeira para bater uns ovos com leite. — Nada de especial.Este era o primeiro verdadeiro pequeno-almoço — a primeira refeição a

sério, com efeito — a ser cozinhado na sua cozinha topo de gama.

—Para mim, qualquer tipo de biscoitos é especial. O que é que posso fazer para ajudar?

Segundos depois, Isaiah estava a colocar toalhetes de papel a servirem de toalhas individuais sobre o balcão do bar e a retirar condimentos dos armários e do frigorífico. Crescia-lhe água na boca quando Laura serviu a refeição, biscoitos caseiros salpicados com manteiga e mel, bolinhos de batata, salsichas fritas no ponto e ovos mexidos bem fofos, tudo acompanhado de sumo de laranja.

Isaiah comeu como um cavalo. Depois, ele e o Tristinho ajudaram a limpar a cozinha. A tarefa do Tristinho consistia em ficar sobre as patas traseiras, com as patas da frente apoiadas na porta aberta da máquina de lavar louça, para lamber os pingos de gema de ovo e de gordura de salsicha no momento em que estes atingiam a superfície de aço inoxidável.

—Aquilo é nojento... — queixou-se Isaiah.—Ele não está a fazer mal nenhum — contrapôs Laura. — A lavagem vai

matar todos os micróbios.O Tristinho lançou a Isaiah um olhar presunçoso e começou a lamber os

dentes de um garfo. Quando a máquina de lavar louça começou a zumbir laboriosamente, era hora de dar novamente de mamar aos cachorrinhos. Laura soltou uma risadinha ao pegar num dos minúsculos rottweilers e meter-lhe a tetina de um biberão na boca.

—Ele é tão querido!Isaiah ficou satisfeito por ela ter acertado desta vez no género do cão.—São muito queridos — concordou ele.Na verdade, Isaiah achava que Laura é que era a querida ali. Levantara-se

de duas em duas horas, durante toda a noite, num horário que faria qualquer pessoa ficar rabugenta. Em vez disso, ela sentou-se num pufe, de pernas cruzadas, parecendo fresca como uma alface, bem desperta e pronta para tudo. Ninguém iria adivinhar que ela dormira aos bocados, num total de seis horas.

—Precisamos de ir comprar coisas a uma mercearia — disse ele, quando devolveram o último cachorrinho à sua cama feita de lavado.

—Isaiah, não tem de ir à clínica hoje?—Este fim-de-semana é a vez do Tucker trabalhar no sábado. Eu estou de

folga, a não ser que haja uma emergência fora de horas. Partilhamos tudo o que dê entrada aos domingos.

—Vamos ao Safeway? — perguntou ela alegremente.Isaiah não tinha preferência por qualquer loja em particular.—Claro, o Safeway está óptimo.—Perfeito. Conheço todos os corredores. Isso é impor-tante para uma

pessoa como eu.Quarenta minutos depois, Isaiah estava a bater o pé. Laura fazia as

compras com uma lentidão exasperante, retirando coisas das prateleiras para ficar a olhar para elas, mas raramente colocando um artigo no carrinho. Por fim, apercebeu-se de que ela tinha dificuldade em ler as etiquetas, e apressou as coisas ajudando-a a encontrar aquilo que ela precisava. Pouco depois, estavam a mover-se pelo supermercado a um ritmo mais rápido, com o carrinho cheio de comestíveis.

Ao passarem pela caixa, Isaiah deu por ela a olhar para a capa de um novo romance de mistério. Quando lhe perguntou se ela o queria comprar, Laura abanou a cabeça.

—Tenho de esperar até que eles saiam em cassete — disse ela, com ar tristonho.

Isaiah esperou que ela desviasse o olhar e meteu vários romances no carrinho. Enquanto Laura estivesse em sua casa, não havia razão para ele não lhos ler à noite.

Ao saírem do supermercado, Laura ficou a olhar saudosamente para as árvores de Natal que estavam alinhadas ao longo da fachada do edifício. Isaiah não tinha hábito de decorar a casa para o Natal. Quando queria ver iluminações natalícias, ia visitar os seus pais ou um dos seus irmãos casados. Sem confusões, sem maçadas. Quando terminava a quadra festiva, não tinha a trabalheira de desmontar uma árvore ou de arrumar montes de decorações.

Problema. Agora, ele tinha mais alguém na sua vida — alguém muito querido que suspirava por uma árvore de Natal. Depois de carregarem as compras na traseira do Hummer, Isaiah levou Laura de volta ao supermercado. Os olhos dela abriram-se de alegria quando ela se apercebeu de que ele queria comprar uma árvore.— Escolhe... — disse-lhe ele. Curiosamente, começava a tratá-la por tu.

Cinco minutos depois, estavam num viveiro de árvores do outro lado da cidade. Escolher uma árvore de Natal era para Laura um assunto sério. Ela andava em volta delas. Observava cada ramo com olhar crítico. Aquela árvore tinha um aspecto frágil. Outra tinha uma copa espigada demais. Isaiah começava a recear que nunca fossem encontrar uma árvore que agradasse a Laura, quando ela deu finalmente com um abeto que lhe agradava.

—O que achas? — perguntou-lhe ela.—E uma bela árvore — concordou ele, tão contente por ela ter encontrado

algo que lhe agradasse que teve ensejo de lhe beijar os ramos. — Vamos levá-la.

Ela franziu o sobrolho, indecisa.—Se calhar, devíamos ver mais algumas.Isaiah olhou para o relógio.—Temos de dar a mamada aos cãezinhos, lembra-te.Pressionada pelo tempo, Laura decidiu-se pelo abeto. Quando prendia o

abeto ao tejadilho do Hummer, Isaiah lembrou-se de que não tinha nada para pendurar nele. Depois de correrem para casa para guardarem a comida e darem de mamar aos cachorrinhos, voltaram à cidade para comprar luzes e enfeites. Isaiah detestara sempre fazer compras e tencionava pegar em al-gumas coisas — alguns fios de luzes, várias caixas de bolas e talvez uma ou outra grinalda. Mas, mais uma vez, Laura elevou a tarefa de comprar enfeites de Natal a um nível completamente diferente. Por Isaiah ter uma casa de troncos, nada mais serviria que não fosse rural.

Ela levou-o a uma loja especializada em decorações de Natal. Em vez de luzes vulgares, Isaiah comprou lâmpadas de balão à antiga. Em vez das habituais bolas de vidro espelhado, levou ornamentos feitos à mão — pais natais, ratinhos giríssimos vestidos como gente, cães, gatos, cavalos, vacas, anjos de todas as formas e tamanhos, e sabe Deus o que mais, com grinaldas que se pareciam com as fiadas de pipocas que ele e os irmãos penduravam na árvore há tantos e tantos anos.

Para sua surpresa, Isaiah estava a gostar de fazer aquilo. Havia cerca de vinte árvores de Natal já decoradas na loja, e todos os enfeites estavam para venda. Passou quase vinte minutos de volta de uma árvore enfeitada só com cães, à procura de um Tristinho em miniatura. Infelizmente, o cachorrinho rafeiro era único no género. Assim, decidiu-se por um dálmata, um shar-pei e um rottweiler, para representar a ascendência confusa do Tristinho.

A despesa final ultrapassava os trezentos dólares.—Oh, isso é muito! — exclamou Laura, quando o empregado lhes fez a

conta. — Vamos devolver algumas coisas.—Não, não vamos nada — disse Isaiah, entregando o seu cartão de crédito.

— Gosto disto tudo. E são coisas que vão durar anos, não é verdade?—Sim, mas...—Levamos tudo — disse Isaiah ao empregado.Quando regressaram a casa, voltaram a dar de mamar aos cachorrinhos e

depois levaram para dentro as compras. Isaiah montou a árvore em frente das janelas da sala de estar, enquanto Laura foi à cozinha.

—Não podemos enfeitar uma árvore sem um pouco do vinho generoso do meu avô Jim — disse ela por cima do ombro.

Quando Isaiah foi ter com ela alguns minutos depois, Laura já se tinha apoderado de uma garrafa de merlot de setenta dólares da garrafeira dele e tinha o conteúdo a aquecer numa panela. Ele não teve coragem de lhe dizer que ela acabara de abrir um vinho premiado do famoso Vale Willamette, do Oregon, que ele estava a guardar para uma ocasião especial. Só de a ver na sua cozinha já tornava a ocasião suficientemente especial para ele. Ela acrescentou ao vinho um pouco de sumo de laranja, paus de canela e outras especiarias. A mistela cheirava divinamente.

—Quando é que eu posso provar? — perguntou ele.—Precisa ainda de apurar mais um bocado — informou-o ela.Enquanto o vinho apurava, eles penduraram as luzes na árvore. Depois,

voltaram à cozinha para beberem canecas do vinho quente e especioso.—Mmh — exclamou Isaiah quando provou o vinho. — Isto é fabuloso,

Laura!Ela fez uma covinha na cara e aquiesceu.—Agora estamos prontos para enfeitar a árvore.Isaiah aprendia depressa. Não era permitida nenhuma colocação aleatória

dos ornamentos. Cada enfeite tinha de ser pendurado no lugar preciso.Mais tarde nessa noite, quando eles recuaram um pouco para admirarem o

projecto terminado, estavam já ambos um pouco tocados. Isaiah sentia-se satisfeito e feliz como há muito não acontecia. As luzes de Natal conjugavam-se com o rubor da lareira para encherem a sala de estar com uma calorosa alegria, fazendo-a assemelhar-se a um lar mais do que alguma vez parecera desde que ele se mudara para lá.

—É a árvore mais bo-nita que já vi... — murmurou Laura.—Linda — concordou ele, só que já não estava a admirar a árvore. Na luz

trémula, Laura parecia tão bela, com o cabelo a brilhar como ouro derretido, os olhos luminosos e a pele imaculada a irradiar luz. Ele nunca desejara tanto na vida beijar alguém. Infelizmente, não achava que fosse sensato por enquanto deixar-se levar pelo impulso. Com uma mulher — neste caso, a mulher — a escolha do momento era tudo. Por isso, limitou-se a dizer:

—Agora só preciso de alguma mobília.Ela olhou em redor, para a sala vazia.—Vais arranjá-la, a seu tempo.—Eu quero alguma agora — afirmou ele, forçando o pensamento a seguir

canais mais seguros, voltando-se para observar a sala. — Ajudas-me a escolhê-la, Laura?

—Eu?Ele não podia deixar de achar piada ao tom de incredulidade dela.—Sim, tu. Gosto deveras do teu apartamento. Faz-me lembrar a casa dos

meus pais. Pegaste num pequeno rectângulo de espaço habitável e transformaste-o num lar.

—Obrigada.O olhar dele foi ao encontro do dela.—Ajudas-me a tornar esta casa num lar, também.A expressão dela era de incredulidade; abanou a cabeça.—Por favor?—Eu não saberia por onde começar. Esta casa é tua. Deveria reflectir quem

tu és.—Conheces-me bastante bem — respondeu ele, fazendo um gesto que

abrangia o vazio em volta deles. — Agora que a árvore está montada, isto parece tão despido, tão vazio — disse ele. — É capaz de ser divertido. Diz que sim.

Ela esfregou os braços e rodou meia volta.—Quanto é que queres gastar?—O que for preciso. Eu ganho bastante dinheiro e, como podes constatar,

não gasto muito dele. Ajuda-me a estoirar alguns milhares.Ela riu-se e rodou mais uma vez para observar a sala.—Couro — disse ela com suavidade. — Precisas de um ambiente rústico de

rancho nesta casa. Gostas do ar livre. Os a-nimais são uma grande parte da tua vida. Não te sentirás em casa se a decoração for muito elaborada.

Isaiah concordou inteiramente. Só esperava que ela também satisfizesse o seu próprio gosto, para além do dele, já que, num dia futuro, se ele conseguisse o que almejava, a casa que ela iria criar seria para eles os dois.

Na semana seguinte, Laura estava de novo escalonada para o turno da noite, a começar segunda-feira. Isaiah prontificou-se a tratar dos cachorrinhos, de modo a que ela não tivesse de os levar consigo para a clínica, mas Laura declinou a oferta. Ele trabalhava muitas mais horas do que ela, e precisava de pelo menos oito horas de sono ininterrupto, enquanto que ela podia passar pelas brasas se necessário fosse. Laura comprou um grande cesto de vime para poder transportar os cachorrinhos e, uma vez no trabalho, dividia o seu tempo entre os seus afazeres habituais e dar de mamar aos cachorrinhos. Isso tornou o seu turno não só mais desgastante como também mais longo. Com os cachorrinhos para cuidar, ela verificou ser-lhe impossível completar todas as suas tarefas habituais no mesmo espaço de tempo.

Nessa semana, quando ela regressava a casa, geralmente pelas quatro da manhã, Isaiah já estava a dormir. Por vezes, o Tristinho saltava do quarto para a receber, mas, aparte isso, Laura passava uma meia hora sozinha a tentar descomprimir antes de se ir deitar. Quando se levantava, por volta do meio-dia, já Isaiah saíra há muito para o trabalho, e ela não o via até ele regressar

ao fim da tarde, alguns dias mais cedo do que outros, de modo a poderem ir juntos comprar mobílias.

Com as idas às compras a complicarem as horas do serão, Laura fez bom uso da panela eléctrica de Isaiah, preparando de antemão o jantar para ambos e deixando-o a apurar até eles regressarem. Isaiah parecia não se importar. Louvou-lhe a carne assada e a salada de legumes e serviu-se por três vezes de galinha com pãezinhos assados que ela fez.

O ritmo febril deveria ajudar Laura a evitar andar de cabeça no ar, mas aconteceu precisamente o inverso. Quando as mobílias começaram a chegar, ela deu por si a sentir-se proprietária dos aposentos, à medida que estes começavam a tomar forma. Laura, és uma parva, a teceres sonhos impossíveis. Aquela casa não era sua, e nunca viria a ser, assim como Isaiah não era o seu homem e nunca viria a ser. Mas ela não conseguia deixar de sonhar.

Ao tentar escolher a parede perfeita para pendurar uma paisagem de montanha, pintada por um artista local, ela sonhava. Ao preparar as refeições para meter na panela eléctrica, ela sonhava. Ao dar as boas-vindas a Isaiah, quando este regressava à noite a casa, ela sonhava. E desejava.

Convenceu-se de que aquilo era também por culpa dele. Ele tinha uma certa forma de lhe sorrir que a fazia sentir-se a pessoa mais especial do mun-do, e por vezes poderia jurar que via desejo nos olhos de Isaiah quando ele olhava para ela. E como é que ela iria controlar os seus sentimentos quando ele se estava a exceder em cortesia? Uma noite, depois do jantar, deu-lhe para lhe ler um livro em voz alta, até que fossem horas de ela ir para o trabalho. Mesmo depois de terem chegado um lindo sofá em couro e poltronas a condizer, eles continuavam a sentar-se junto à lareira, nos pufes.

Era agradável e um pouco íntimo demais para a paz de espírito de Laura, com o fogo a crepitar por detrás deles e as luzes da árvore de Natal a pulsarem cores quentes pela sala. A voz funda e sedosa de Isaiah envolvia-a numa carícia, trabalhando sobre os seus sentidos como um tóxico. Por vezes, ela esquecia-se de ouvir as palavras dele e perdia-se a imaginar como seria se ele de repente se voltasse e a beijasse.

Estava a apaixonar-se por ele. Correcção: estava há semanas apaixonada por ele. Laura estava sempre a dizer a si mesma para nunca deixar que ele se apercebesse. Isaiah era um patrão maravilhoso e um amigo ainda melhor. Se não fosse ele, os cachorrinhos que ela veio a amar seriam postos a dormir para sempre. Não podia de forma alguma abusar da bondade dele fazendo-o sentir-se culpado por não retribuir o afecto dela.

Não, disse a si própria com firmeza. A amizade era uma coisa belíssima, e ela tinha de se contentar com isso. O Natal estava à porta. Ela sempre adorara aquela época festiva e tentou focar-se nisso e apreciar cada momento. Durante a tarde, quando não estava a receber os homens das entregas das mobílias e a tentar decidir onde as colocar, entretinha-se muitas vezes na cozinha. Foi até ao seu apartamento buscar latas de bolachas de Natal vazias e encheu-as de guloseimas para colocar por baixo da árvore, bolachas e doces, bolos e barras de chocolate. Isaiah ainda estava demasiado magro. Ela gostava de o ver devorar os doces. Descobriu que ele adorava chocolate e fez-lhe uma fornada de quadradinhos defudge cremoso. Noutras tardes, ela ia até à cidade, entre as mamadas dos cachorrinhos, comprar coisas para a casa, tais como vasos, almofadas de sofá e tapetes bem coloridos para alegrarem os soalhos de madeira polida.

Pela quinta-feira, dezasseis de Dezembro, a casa de Isaiah começara a parecer-se com um lar. Laura estava a dar os toques finais a um arranjo de flores de seda quando o telefone tocou. Deu um último retoque às flores e pegou no telefone portátil que repousava sobre o balcão da cozinha.

—Está?—Olá, minha querida. Fala a Mary, a mãe do Isaiah.Laura estivera em contacto com a sua avó desde que viera para casa de

Isaiah, mas ainda não falara com Mary.—Mary — disse ela, com alegria genuína. — Que bom ouvi-la.—Como estão os cachorrinhos?—A crescer — respondeu Laura, com uma gargalhada. — Agora só tenho

de lhes dar de mamar de três em três horas. O que facilita as coisas.—Ah, bom — suspirou Mary. — Estive a pensar, querida. O Isaiah falou-lhe

no aniversário dele?Laura empoleirou-se num dos bancos de bar para admirar, do outro lado do

aposento, o arranjo floral que estava sobre a mesa da cozinha. O toque perfeito, pensou.

—Não — respondeu distraidamente ela — ele não me disse nada. Quando é que ele faz anos?

—Hoje.Laura deu um pulo no banco.—O quê?Mary riu-se.—Isso mesmo. Liguei esta manhã ao Tucker e surpreendi-o dando-lhe os

parabéns, mas o Isaiah estava fora em visitas domiciliárias, portanto ainda não consegui falar com ele. Dá-me a impressão de que ambos se esqueceram.

Laura não podia imaginar que alguém se pudesse esquecer do seu próprio aniversário.

—Está a brincar.—Isso queria eu. O Isaiah foi sempre o meu cabeça-no-ar, perdido nos seus

pensamentos e quase que alheado do que se passa à sua volta. Não me admiro de que ele se esqueça. Mas o Tucker? — disse ela, suspirando de novo. — Ah, bem, decerto é por estarem ambos tão ocupados.

Laura trouxera apenas um livro de receitas do seu apartamento. A sua avó passara o livro a pente fino, desenhando pequenos esquemas à margem de todas as receitas. Uma chávena meia cheia representava precisamente meia chávena, etc. Laura utilizava muito esse livro de receitas porque era menos provável que ela se enganasse na quantidade de um ingrediente com os esquemas ao lado a clarificarem as medidas. Só que ela não se conseguia recordar se a colecção incluía receitas de bolos. Regra geral, os bolos não eram o que mais gostava de fazer, porque se estragavam rapidamente e não se congelavam tão bem quanto outros alimentos. Mas ela tinha necessariamente de fazer um para os anos de Isaiah.

—De qualquer modo — dizia Mary —, que tal uma festa surpresa aqui em casa, hoje à noite? Jantar, seguido de bolo e de gelado. Só a família; e a Laura também, é claro. Acha que consegue convencer o meu filho a vir sem que ele se aperceba do que é?

Laura sorriu.—Sim, creio que o consigo fazer. Importa-se que eu leve os cachorrinhos?

Quando Laura informou Isaiah de que iam jantar nessa noite a casa dos pais dele, ele quase que gemeu. Ela estava a viver em sua casa há quase uma semana, e ele não fizera um único gesto que sugerisse que se estava a atirar a ela. Nessa noite, queria rectificar isso. Decerto que ela já estava ali agora há tempo suficiente para saber que ele não estaria simplesmente a tentar tirar partido de uma situação conveniente. Queria dizer-lhe o que sentia por ela, possivelmente até pedi-la em casamento, e deixar que a Mãe Natureza con-duzisse as coisas daí para a frente.

—Estou estoirado — disse ele, quando ela lhe disse que iam jantar a casa dos pais dele. — Não podemos deixar isso para outro dia?

—Não, desculpa. Eu e a tua mãe vamos fazer bolinhos de Natal.Isaiah pensou em todas as guloseimas que estavam debaixo da árvore e no

seu congelador. Dada a quantidade, ficaria a pesar mais de cento e trinta quilos se as comesse todas. Mas, quando olhou para os olhos implorantes de Laura, teve dificuldade em lhe negar o que quer que fosse. Suspirou. Se calhar, essa noite não seria a melhor altura para lhe declarar que a amava. Ela tinha de fazer o turno da noite. Se ele esperasse até à noite de sábado, teriam os dois todo o serão e toda a noite para estarem juntos.

—Okay — assentiu ele, com relutância. — Deixa-me só tomar um duche.—Despacha-te. Não quero chegar atrasada.

Sem que o soubesse, Isaiah levou o presente de aniversário que Laura lhe comprara para dentro da casa dos seus pais. Quando ele pegou na caixa de cartão para a tirar do assento traseiro do Hummer, pensou erradamente que ela contivesse coisas para decorar bolos e bolachas. Quase que teve um ataque cardíaco quando entrou na sala de estar dos seus pais, mergulhada na escuridão. Todas as luzes se acenderam de repente, e toda a sua família irrompeu da cozinha, a gritar: «Surpresa!»

Isaiah ficou boquiaberto a olhar para eles. Surpresa? Foi então que se lembrou. Era o dia dezasseis de Dezembro, o aniversário dele e do Tucker. Não podia acreditar que se tivessem esquecido. O seu irmão gémeo, que chegara antes dele, sorriu timidamente e encolheu os ombros.

—Tinha muito em que pensar; que mais posso eu dizer?Jake deu uma palmada amigável no ombro de Isaiah.—Feliz aniversário, maninho. Tens sido um chato desde que te conheço, há

trinta e quatro anos.Molly, a mulher de Jake, pôs-se em bicos de pés para abraçar Isaiah.—Palerma — segredou-lhe ela. Nunca ouvi dizer que a senilidade podia

aparecer em pessoas tão novas...Aquilo foi só o começo. A excepção de Tucker, todos na sua família se

sentiram compelidos a meter-se com Isaiah por ele se ter esquecido do seu próprio aniversário. Ele levou aquilo de bom humor. Tal como o seu irmão Tucker, tivera a cabeça ocupada com outros assuntos, nomeadamente com uma bonita loirinha de grandes olhos cor de avelã que o fazia ficar aparvalhado sempre que olhava para ela.

O jantar foi estupendo. A sua mãe preparara dois pratos principais, fettuccini com marisco para Tucker e costeleta de borrego desossada para Isaiah.

—Tive de preparar para cada um de vocês o vosso prato favorito — explicou ela.

—És uma maravilha, mãe — disse Isaiah.Tucker derrotou-o, dizendo:—És a melhor mãe do mundo.Quando Mary voltou costas, Tucker lançou a Isaiah um sorriso presunçoso e

disse em voz baixa:— Então, e agora quem é o gémeo número um, quem é?—Está bem, pronto — retorquiu Isaiah —, tu ficaste com o encanto e eu

com os miolos.Depois de o bolo e o gelado serem servidos, os cachorrinhos tinham de ser

alimentados, e toda a família participou no processo. O Sly e o Garrett entraram numa disputa acerca de quem ia dar o biberão ao décimo terceiro cachorrinho. Laura resolveu a questão deixando cada um deles dar de mamar à vez até o biberão ficar vazio. Ao vê-la lidar com as crianças, Isaiah soube, sem sombra de dúvida, que ela seria uma mãe fabulosa. Tudo o que lhe restava fazer era convencê-la a ter os seus bebés.

Quando os cachorrinhos foram todos devolvidos ao cesto de vime, Isaiah e Tucker sentaram-se no chão da sala, rodeados pelos seus entes queridos enquanto abriam os presentes. Isaiah recebeu uma agenda da sua mãe, um novo chapéu Stetson do seu pai, uma colecção de camisas e gravatas dos seus irmãos e duas embalagens de uma dúzia de peúgas de lã cinzentas para botas de montar da sua irmã.

—Assim, as tuas peúgas nunca ficarão desirmanadas — disse-lhe Be- thany, com um sorriso maroto.

Agora era Laura quem fazia a lavagem da roupa de Isaiah, e as suas peúgas estavam todas cuidadosamente dobradas aos pares. Ele olhou de soslaio para a pessoa em questão antes de abrir o presente que ela lhe trouxera. Era uma caixa pesada, embrulhada num papel alegre, e cúbica, com cerca de vinte centímetros de lado. O cartão desdobrável que trazia era da Hall- mark, com uma linda paisagem que incluía um cavalo e o seu cavaleiro à distância. Dentro, ela escrevera com esforço: Obirgado por serse tu. Amo-te smepre, Laura.

As lágrimas arderam nos olhos de Isaiah quando ele voltou a colocar o cartão no envelope. Em vez de o mostrar aos presentes, meteu-o por baixo da sua perna. Sete palavras simples, mas que significavam tudo para ele. Ele quase que a conseguia ver, sentada à mesa da cozinha, debruçada sobre o cartão, a esforçar-se para escrever cada letra.

Quando ele desembrulhou o presente, toda a sala ficou em silêncio. Isaiah ergueu lentamente da caixa a estatueta atarracada, de modo a que todos a pudessem ver. Esculpida à mão em lava do Monte de Santa Helena1, era uma cadela rottweiler, rodeada por uma ninhada de filhotes.

— Um pisa-papéis — disse Isaiah, com a voz embargada. Só que era muito mais do que isso, uma coisa para lhe recordar nos anos vindouros aquele tempo que tiveram juntos.

Quando Isaiah ergueu o olhar, viu o amor de Laura por ele a cintilar nos olhos, acompanhado pelo brilho de lágrimas. Sentiu-se como se uma mula lhe tivesse dado um coice em cheio no peito. Ela estava apaixonada por ele? Os seus pulmões contraíram-se. Apertou-se-lhe o estômago. O coração batia-lhe como um martelo pneumático contra os tímpanos. Ela amava-o. Toda a semana anterior ele andara a engendrar e a planear formas de a atrair aos seus braços e, afinal, ela fora sempre sua, pronta para ele a tomar. Como é que lhe escapara uma coisa dessas?

A resposta apareceu na mente de Isaiah quase antes de ele acabar de colocar a pergunta a si próprio. Laura acreditava piamente que a sua afasia a tornava indesejável. Sentiu um aperto na garganta enquanto reunia num monte os amachucados papéis de embrulho de todos os presentes. Laura. Ela escondera cuidadosamente os sentimentos que nutria por ele, sem dúvida convencida de que nunca seriam correspondidos. Ela considerava-se mercadoria defeituosa. A sua capacidade em ser uma esposa e uma mãe estava diminuída. Que homem no seu perfeito juízo iria querer uma mulher que não conseguia passar um cheque, que não conseguia escrever bem as palavras mais simples e que tinha dificuldades na fala?

Isaiah apertou a mão sobre um bocado de papel. Devia-se sentir exultante. A mulher que ele adorava de todo o coração amava-o tanto quanto ele a amava. Mas, em vez disso, sentia-se deprimido. Não era apenas o facto de ter reprimido a sua sexualidade, nunca a beijando ou sequer tocando nela para lhe dar a entender que a desejava. Também não conseguira fazê-la saber quão maravilhosa ele achava que ela era.

Depois de arrumarem toda a tralha, Isaiah saiu por um momento para o exterior para fazer um telefonema. Quando voltou a entrar em casa, não

1 Vulcão situado no estado americano de Washington, que teve uma violenta erupção a 18 de Maio de 1980, matando mais de 50 pessoas e milhares de animais, deixando um rasto de destruição de várias centenas de quilómetros quadrados. A última erupção foi a 10 de Julho de 2008. (N. do T.)

perdeu tempo e pegou logo nos seus presentes de aniversário, na sua linda convidada e nos cachorrinhos.

—Estou estoirado, mãe — disse ele, abraçando a mãe pelas costas, en- contrando-a a passar por água os pratos de sobremesa. — Importas-te que saiamos já? Quero ir para casa e atirar-me para a cama...

Mary voltou-se, ainda abraçada, para se pôr em bicos dos pés e beijar o filho na cara.

—De modo nenhum, querido — respondeu ela, afagando-lhe a cara. — Talvez em breve possas arranjar alguns sócios e deixares de estar sempre a trabalhar tanto.

Isaiah planeava fazer isso mais cedo do que a sua mãe imaginava. Não tencionava casar-se e deixar a esposa sozinha doze ou catorze horas por dia.

—Estou a tratar disso com o Tucker — disse ele, osculando-lhe gentilmente a testa. — Obrigado pela íesta-surpresa. Foi maravilhosa. E a costeleta estava divinal.

Quando Isaiah se voltou para ir embora, Mary tocou-lhe no braço.—Estou tão satisfeita por a Laura ter conseguido trazer-te cá sem estragar

a surpresa...A sua festa de aniversário não fora a única surpresa que Laura lhe fizera.

Ela amava-o. A constatação andava em círculos intermináveis na sua cabeça, tão inacreditável uma hora depois quanto o fora quando se revelara.

Estava decidido a esclarecer algumas coisas quando chegassem a casa. Pelo menos, Laura não se iria deitar nessa noite sem saber que ela era a mu-lher mais maravilhosa do mundo.

Depois de fazer o giro das despedidas, Isaiah carregou as suas prendas para o Hummer, e depois voltou para levar Laura e os cachorrinhos. Quando ficaram todos instalados no veículo, ele olhou para ela na obscuridade, tentando discernir a sua expressão à luz do candeeiro público que se filtrava obliquamente através do pára-brisas. Ela estava a sorrir, como sempre, só que agora ele reparou que ela evitava olhá-lo directamente nos olhos.Segundo o pai de Isaiah, os olhos eram as janelas da alma. Agora Isaiah constatava que também eram janelas do coração.

Isaiah seguiu em silêncio durante todo o percurso até casa, fazendo com que Laura se interrogasse se ele estaria zangado com ela por qualquer motivo. Quando entraram em casa, o Tristinho saltou pela perna de Isaiah acima, e depois fez o mesmo com Laura. Depois, começou a correr em redor deles, descrevendo oitos frenéticos, fazendo ruídos fundos com a garganta e abanando a cauda.

—Olá, Tristinho! — disse Laura, pousando no chão o cesto com os ca-chorrinhos, de modo a poder dar um pouco de atenção ao cão mais velho. O Tristinho tremeu de satisfação quando ela se agachou para o afagar. — Acho que ele sentiu a nossa falta — disse ela a Isaiah.

Isaiah colocou os presentes sobre o sofá e despiu o casaco. Depois de uma ida rápida ao armário da entrada, para o pendurar, ele voltou à sala para pôr mais lenha no fogo que morria na lareira. Com o Tristinho a seguir-lhe todos os passos, Laura levou os cachorrinhos para o quarto. Por ter de sair para o trabalho dentro de menos de uma hora, decidiu deixar os seus protegidos no seu cesto de vime. Lavara todos os biberões em casa da mãe de Isaiah. Deixou o saco com a fórmula e os utensílios para as mamadas no chão, junto ao cesto.

Sobressaltou-se quando se levantou e viu Isaiah de pé, junto à porta. Parecia pensativo, absorto, e tão belo que Laura sentiu a respiração pren- der-se-lhe no peito.

—Podes metê-los na piscina — disse-lhe ele. — Não vais trabalhar esta noite.

Laura lançou-lhe um olhar perplexo.—Mas eu...—Liguei à Ellie Kingston. Ela fica com o teu turno desta noite e com o de

amanhã.—Mas...—É o meu aniversário — lembrou-lhe ele. — Ter-te aqui durante as

próximas duas noites é o presente que ofereço a mim mesmo. Pago-te o salário habitual, se estás preocupada com o dinheiro.

—Não sejas pateta. Não preciso do dinheiro.—Óptimo. A Ellie precisa dessas horas. Para o Natal e essas coisas. Estás,

ao mesmo tempo, a fazer-lhe um favor e a tornares-me feliz.Laura desejava poder passar o resto da vida dela a fazê-lo feliz. Mas teria

de se contentar apenas com mais três semanas. No dia seguinte, os cachorrinhos teriam sete dias de vida. O tempo dela ali estava a passar a correr. Sem que viesse a dar por isso, em breve estaria a ir para casa, para o seu minúsculo apartamento.

—Vamos ler um bocado — sugeriu ele. — Vou ligar as luzes da árvore. Será um remate bonito para um serão maravilhoso.

Qualquer coisa nos olhos dele — uma intensidade na profundidade do azul que ela nunca vira antes — pô-la nervosa. Interrogou-se de novo se fizera ou dissera alguma coisa na festa que o tivesse melindrado. Antes que lhe pudesse perguntar, ele afastou-se da porta. Ela colocou os cachorrinhos na sua piscina de plástico e voltou à sala.

Isaiah já estava reclinado num dos pufes, com as costas apoiadas num dos pilares da lareira, as pernas longas estendidas e ligeiramente dobradas. Tinha no colo o romance policial que lhe andava a ler. A camisa de xadrez azul que vestia fazia-lhe sobressair a cor dos olhos.

Laura sentou-se cautelosamente no pufe ao lado dele. O Tristinho ati- rou-se de imediato para o seu colo. Ela aconchegou o cachorrinho avantajado contra o peito, afagando-lhe as orelhas enquanto observava Isaiah.

—Pronta? — perguntou-lhe ele, com voz rouca.Laura anuiu com a cabeça e recostou-se, tentando recordar-se do capítulo

que ele lhe lera na noite anterior. Um ladrão andara a vasculhar a casa do protagonista, à procura de uma pistola. A sugestão era a de que o assaltante tinha a intenção de matar. Era um romance estranho, na opinião de Laura. Ainda não fora cometido qualquer crime. Ela não sabia quem é que iria ser morto. Só sabia que o assaltante tencionava praticar o crime e culpar o herói.

Isaiah começou a ler, com voz profunda e sedosa, pronunciando per-feitamente cada palavra. Embalada pela história, Laura sentiu-se em breve totalmente descontraída. O Tristinho adormeceu com a cabeça aninhada entre os seios dela, a respiração dele a acrescentar mais uma camada de aconchego à noite invernosa.

Isaiah parou repentinamente de ler e pegou noutro livro que estava sobre a soleira da lareira. Quando ele o abriu na primeira página, Laura lançou-lhe um olhar interrogativo.

—Esta noite apetece-me ler-te uma coisa mais ligeira — explicou ele.— Importas-te?

Laura abanou a cabeça. Na verdade, estava a ficar impaciente com o mistério, à espera de que acontecesse qualquer coisa. Até então, fora só avo-lumar de tensão sem qualquer desfecho.

Isaiah pigarreou e começou a ler.—Ao relembrar essa tarde, não posso deixar de me questionar por que

razão eu não soube, no momento em que pousei os olhos nela, que ela era o amor da minha vida. — Voltou a pigarrear e enterrou-se mais no pufe. — Quando abri a porta do gabinete e a vi pela primeira vez, senti-me de imediato atraído por ela. Mas lancei as culpas a uma mera atracção física. Ela não passava de mais uma mulher bonita, disse para mim próprio. Mas depois, pouco a pouco, à medida que a fui conhecendo como pessoa, apercebi-me de que ela era muito, muito mais do que isso. Ela mudou literalmente a minha vida; primeiro apenas em pequenas coisas mas, com o tempo, essas pequenas coisas acumularam-se e tornaram-se imensas. Agora, amo-a tanto que entro em pânico com a simples ideia de a perder. Pior ainda, não sei bem como lhe dizer isto.

Isaiah fez uma pausa para olhar para ela. Laura enroscou-se no pufe macio.—Um romance? — perguntou ela, lançando-lhe um sorriso de agrado.

— Que simpático!Ele lançou-lhe um olhar longo e penetrante. Depois, voltou a pigarrear e

continuou a ler.—Pensei que poderia contentar-me em sermos simplesmente amigos. Os

melhores amigos, dir-se-ia. Só que agora quero e preciso de mais do que isso. Rezo para que ela também queira mais.

Ele parou de ler para virar a página. Laura reacomodou o Tristinho nos braços.

—Não está escrito na terceira pessoa — observou ela.Ele lançou-lhe outro olhar estranho, e depois voltou a atenção para a

página.—Não sei quando aconteceu. Quando me apaixonei por ela, quero eu dizer.

Pergunto agora a mim próprio se foi da primeira vez que vi a linda cara dela. Ou talvez fosse mais tarde, quando me comecei a aperceber da pessoa maravilhosa que ela é. Ela tem os olhos cor de avelã mais incríveis. Quando o meu olhar mergulha neles, sinto como se tivesse andado perdido toda a minha vida e tivesse finalmente encontrado o caminho de regresso a casa.

O coração de Laura teve um sobressalto. Olhos cor de avelã? Perscrutou o perfil moreno de Isaiah. Depois pensou, Volta à realidade, Laura. Estás a sonhar alto.

—Não importa como começou — continuou ele a ler. — Só sei que aconteceu. Ela enche a minha vida de risos, faz-me feliz de uma forma como ninguém mais o conseguiu, e por vezes penso que ela me compreende melhor do que eu a mim próprio. Ela sabia como eu estava dilacerado quando morreu o gato de uma velhota. Ela ouve-me quando eu preciso de desabafar e falar nos casos dos meus pacientes. Ela faz-me fudge porque sabe que eu adoro chocolate.

As lágrimas assomaram aos olhos de Laura. Ela não estava a imaginar aquilo. Ele estava mesmo a falar dela.

—Oh, Isaiah...Ele fechou lentamente o livro e os olhos deles encontraram-se.—Uma pieguice pegada, não é? Nunca pensei que teria dificuldade em

dizer a uma mulher que a amo. Mas sempre que tento dizer-te isso, bloqueio e as palavras não me ocorrem.

Ela mal o conseguia ver através das lágrimas que lhe marejavam os olhos.—Amas-me? — perguntou ela, num fio de voz.Ele limpou-lhe, carinhosamente, uma lágrima que lhe escorria pela cara.—Eu adoro-te, Laura. És a pessoa mais maravilhosa que alguma vez

conheci. Quero passar o resto da minha vida contigo — respondeu ele, fazendo depois um gesto a abarcar a sala onde estavam. — Eu gosto imenso desta casa. Agora, quero que vivas aqui comigo, não apenas durante umas semanas, mas sempre.

Ela abanou a cabeça.—Mas...—Por favor, não digas essa palavra. Sempre que dizes essa palavra, estás

prestes a acrescentar qualquer coisa muito pateta. Amo-te. A minha mãe encontrou-me finalmente a mulher perfeita, que Deus a abençoe. És linda, és inteligente, és espirituosa, e és a minha melhor amiga. Melhor ainda, como cozinheira, ninguém te bate.

Laura quase que se engasgou a rir.—Amas-me por eu cozinhar bem?Ele limpou-lhe outra lágrima da face.—Quando estás na cozinha, não estás só a cozinhar. Estás a preparar

oferendas.Era verdade, constatou ela. Quando cozinhava, ela pensava nas pessoas

que iriam saborear os seus pratos. Ela gostava especialmente de cozinhar para Isaiah, não só por ele precisar de alimento, mas também por ele apreciar tanto os pratos que ela lhe confeccionava.

Ele aflorou-lhe a maçã do rosto com a ponta dos dedos, e depois em-brenhou-os no cabelo dela.

—Então? — perguntou-lhe ele, com a voz rouca. — Até agora, tive um estupendo dia de anos. Vais torná-lo no mais memorável da minha vida dizendo-me que também me amas?

Laura teve de apelar a todo o seu autodomínio para não se lhe lançar nos braços.

—Eu tenho lesões cerebrais, Isaiah. Há uma centena de pequenas coisas que eu já não consigo fazer, coisas que se podem tornar muito irri-irri...

—Muito irresistíveis? — propôs ele.Ela riu-se de novo. Ele tinha um jeito de a fazer rir.—Sabes a palavra que eu quero dizer.—Irritantes — disse ele. — Mas, quanto a isso, estás enganada. Con-

trabalançamo-nos um ao outro, Laura. É verdade que há muitas coisas que já não consegues fazer, mas também há uma quantidade de coisas para as quais sou um desastre com patas. Juntos, somos dinamite.

—Precisas de uma pessoa que te possa ajudar na carreira.—Se calhar uma assistente de cirurgia?Ela sentiu o rosto a escaldar.

—Ou se calhar alguém que é espantosa com animais? — disse ele, inclinando-se mais para ela; tão perto que ela podia sentir o calor húmido da respiração dele nos lábios. — Amas-me, Laura?

Ela sentiu o coração apertar-se-lhe com um desejo tão intenso que lhe fez doer os ossos.

—Não quero ser um estorvo para ti...Ele pegou-lhe no queixo.—Amas-me? É uma pergunta muito simples...—Sim — disse ela por fim, num sopro de voz.Antes que a palavra tivesse saído completamente dos lábios dela, ele in-

clinou a sua cabeça morena e colocou a boca sobre a dela. Seda húmida. De início, o beijo foi tão suave quanto um suspiro, mas depois ele aprofundou-o, fazendo incursões exploratórias com a ponta da língua. Laura sentiu a cabeça a andar à roda. Não conseguia respirar. Fechando-lhe os punhos sobre a camisa, ela agarrou-se a ele enquanto lhe entregava a boca, entreabrindo os lábios num convite.

O Tristinho, apertado entre os dois, acordou de repente e meteu o nariz frio e húmido entre os queixos de ambos. Isaiah praguejou e apartou-se. Laura deixou-se cair no pufe, com a cabeça a andar à roda.

—Está na hora de ires um bocado lá para fora — disse Isaiah ao cachorrinho.

Levantou-se e dirigiu-se à porta da frente. Logo que o Tristinho foi corrido, ele regressou lentamente em direcção à lareira. Laura olhava-o, deslumbrada, consciente como nunca esteve da forte masculinidade dele — o ruído decidido das suas botas sobre a madeira a cada passo lento que ele dava, a forma como os seus ombros largos trabalhavam em harmonia com cada movimento das suas ancas estreitas e o jogo dos músculos das suas coxas sob a ganga desbotada. Os olhos dele ardiam de desejo, tornando-os azul cobalto escuro. Um tendão ao longo do maxilar inferior avolumava-se a cada cerrar de dentes.

Parou a meio metro dos pufes e começou a desabotoar a camisa.—Eu quero-te — disse ele, numa voz rouca de desejo. — Quero-te como

nunca quis outra pessoa.Aquilo era bom. Aquilo era óptimo. Só que ela precisava ainda de um pouco

mais de tempo para se preparar.—Isaiah — disse ela, com voz trémula. — Há só esta coisinha...Ele desabotoou mais um botão da camisa.—O que é? Diz, minha querida.Laura encolheu-se interiormente. Aos trinta e um anos de idade, era uma

coisa embaraçosa de admitir, especialmente considerando que ele obviamente já deveria ter estado com inúmeras mulheres.

—Eu nunca... fiz isto.A mão dele parou sobre um botão. O seu olhar saltou para o dela.—Nunca fizeste o quê?Laura endireitou-se no pufe e acenou com a mão.— Isto.Ela ouviu-o expirar, com um som semelhante ao de ar a sair de um balão

parcialmente esvaziado.—Nunca fizeste amor, é isso? — o tom da voz dele era de incredulidade.

Quando ela confirmou com a cabeça, ele deixou-se cair sobre o pufe ao lado

dela. De pernas dobradas, braços inertes apoiados sobre os joelhos levantados, Isaiah olhou-a sem querer acreditar. — Nem sequer uma única vez?

A cara de Laura tornou-se escarlate.—Bem, hum, creio que se pode dizer que não calhou. Eu andava muito

ocupada, primeiro com a faculdade, depois com o meu trabalho. — Aquilo soava tão mal, mesmo aos ouvidos dela. — Nunca tive tempo para isso...

Ele arqueou uma sobrancelha escura.—Estou a ver...Só que ele não estava a ver nada, porque ela estava a mentir com todos os

dentes da boca. Laura respirou fundo para ganhar coragem e desfechou:—Não, não é verdade. Eu não estava ocupada. Quero dizer... bem, eu

andava ocupada, sim. Mas não era essa a razão. — O calor abrasador da atrapalhação dela espalhou-se até lhe cobrir a cara e infiltrou-se-lhe por sobre o couro cabeludo. — Eu estava à espera de alguém muito especial. De ti, Isaiah. Sei-o agora. Só que nunca apareceste. E depois tive o acidente e ninguém mais me convidou para sair, e eu...

Ele tocou-lhe na boca com a ponta de um dedo.—Pára — ordenou-lhe ele com brandura. O olhar dele fixou-se no dela. —

Estás a tentar dizer-me que te estavas a guardar para o teu futuro marido?Ela anuiu com a cabeça, e desviou a cara para dizer:

— Eu sei que soa a anti-qua-do. Mas nunca pareceu certo com qualquer outra pessoa. — Ela interrompeu-se e encolheu os ombros. — Em minha defesa, devo dizer que não é assim tão esquisito. A Miss Amér-ica do ano passado também está à espera. E ninguém acha que ela é doida.

Isaiah suspirou e esfregou a cara com uma das mãos.—Minha querida, eu não acho que seja antiquado. Na verdade, penso que é

maravilhoso — disse ele, fazendo uma curta pausa. — Quem me dera poder dizer que também esperei.

Laura pensou nessa possibilidade por um momento. Por um lado, poderia ter sido bom se fosse a primeira vez para ambos, mas, por outro, havia que ter em conta os procedimentos.

—De certo modo, estou satisfeita por um de nós saber o que fazer...Ele soltou uma gargalhada surpreendida. E depois, como se fosse uma coisa

que estivesse habituado a fazer, passou os braços em volta dela e içou-a para o seu colo.

—Não te preocupes. Para o caso de eu me esquecer de qualquer dos passos, tenho um manual de instruções na minha mesinha-de-cabeceira.

Laura teve a sensação de que ele sabia todos os passos de cor, e isso magoou-a. Quando fizessem amor, pensaria ele nas mulheres com quem estivera e compará-la-ia negativamente com elas? Não se dava o caso de ela ter prática em agradar aos homens. Toda a sua experiência no assunto provinha de livros, filmes e do pouco que a sua irmã lhe contara.

Ela perscrutou-lhe os olhos azuis brilhantes.—Estiveste com muitas mulheres? — não resistiu em lhe perguntar.— Não é uma pergunta feliz — respondeu ele, torcendo a boca nos cantos

— O meu passado é apenas isso, passado. — Isaiah baixou a cabeça para mordiscar sedutoramente a boca de Laura. — Desde o instante em que te vi, esqueci de imediato todas as outras mulheres que alguma vez conheci. Não me consigo lembrar dos nomes delas, não me consigo lembrar de como elas

eram. És tudo para mim, Laura, o meu passado, o meu presente e, se Deus quiser, o meu futuro. Casas comigo?

No fundo dos fundos do seu coração, Laura sabia que ele só estava a dizer aquilo que ela precisava de ouvir. Mas significava muito para ela saber que ele se importava. Significava até mais o facto de ele a estar a pedir em casamento. Talvez ela não eclipsasse todas as outras mulheres na memória dele, mas a verdade é que, por algum motivo, ele a valorizava mais do que as outras. E isso bastava-lhe.

Sentiu-se como se fosse rebentar de felicidade.—Oh, sim, eu caso contigo, Isaiah, caso mesmo, mesmo!Ele então beijou-a, hesitante, a princípio, depois mais profundamente, os

seus lábios a parecerem seda húmida e morna sobre os dela. Laura sentiu a cabeça a andar à roda. Estrebuchou freneticamente para respirar. Os seus braços tremiam ao afagar o pescoço forte dele.

—Eu não sei o que fazer... — sussurrou ela, por entre beijos.Ele roçou os lábios pelo pescoço dela abaixo, pondo-lhe a pele em fogo.—Não precisas de fazer nada — assegurou-lhe ele. — Nada mesmo, minha

querida. Fica só comigo.Laura esperava que aquilo implicasse um pouco mais do que isso e estava

tensa e nervosa. Para sua surpresa, ele virou-se de lado, de frente para a lareira, e tirou-a do colo para a sentar entre as suas coxas abertas. Com as mãos cruzadas sobre a barriga dela, curvou-se para a frente, apoiando o queixo sobre a cabeça dela, e ficou ali, a olhar as chamas que dançavam na lareira. Fica só comigo. Ela pensara que aquele pedido fora um artifício de linguagem, um prelúdio enganador para carnes nuas e exigências ao seu corpo que ela se poderia sentir constrangida em conceder. Mas agora ele estava a recordar-lhe que nunca empregava artifícios de linguagem. Isaiah era tão franco e directo quanto era maravilhoso.

A sólida pressão dos seus braços mantinha-a firmemente encostada contra o peito dele. O calor que se desprendia de Isaiah esfumava as preocupações de Laura e em breve diluía a tensão que lhe mantinha a espinha hirta. Ela descontraiu sob a força robusta dele, com o olhar fixo nas chamas dançarinas. Estava intensamente consciente dele nesses momentos, atenta a cada inspiração e expiração, a cada batida do coração dele contra as suas omopla-tas, a cada mudança ligeira das pontas dos seus dedos sobre a sua cintura.

A atmosfera que desceu sobre ambos era inconcebivelmente terna, uma união de corpos e de corações, mas não da forma de que ela estava à espera. Isaiah. Era tão própria dele aquela forma de adivinhar os sentimentos dela e de conseguir aliviar-lhe a tensão. Outro homem poderia tê-la levado logo para o quarto e aproveitar-se do seu corpo, não se preocupando em lhe suavizar o procedimento.

Passaram-se minutos. Laura não fazia ideia de quantos, mas apenas de que decorrera o tempo suficiente para que o seu pânico inicial de irem fazer amor se dissipasse. Quando Isaiah mudou de posição para voltar as costas à sala e a voltou a sentar de lado no colo, ela soube que ele a tencionava beijar. E, desta vez, estava preparada.

Fica só comigo. As palavras vogaram suavemente pela mente dela en-quanto ele inclinava a sua cabeça morena na direcção da sua. Os lábios dele roçaram os dela com a suavidade de uma asa de borboleta. A respiração dela tornou-se ofegante. A antecipação levou-lhe as mãos aos ombros dele. E, por

fim, Isaiah tornou o beijo mais profundo, tomando-lhe a boca como um homem que acabava de encontrar alimento após meses de inanição.

Fogo da lareira e Isaiah Coulter. Na mente de Laura tornaram-se sinónimos, ambos geradores de calor, ambos brilhantes, mesmo quando ela fechava os olhos. Ele foi até ao quarto dele e voltou com um tapete de pele de ovelha, que estendeu no chão, em frente da lareira. Depois, fez amor com ela tal como costumava fazer todas as outras coisas, totalmente concentrado nos pormenores e dando completa atenção a cada um deles antes de prosseguir. Começou com a palma da mão dela, percorrendo cada linha e reentrância com os lábios e a ponta da língua. Laura nunca pensara que a palma da sua mão pudesse ser uma zona erógena, mas, com Isaiah a beijá-la tão ao de leve, a sensação disparou-lhe pelo braço acima, deu meia-volta e correu como um relâmpago para o âmago do seu corpo.

Quando ela estava a tremer com as réplicas, ele agarrou-lhe a bainha da camisola e despiu-lha pela cabeça com a mesma facilidade com que des-cascaria uma banana. Por um momento, Laura sentiu-se envergonhada. Já andara em público em biquíni, mas por qualquer razão um soutien parecia-lhe menos decente. Mas Isaiah já lhe segurava de novo a mão, e os seus lábios estavam a percorrer-lhe a face inferior do pulso com um rasto de beijos. Era-lhe difícil lembrar-se de que tinha seios enquanto ele estava a fazer coisas tão maravilhosas a outra parte do seu corpo. Em breve, Isaiah chegava à pele sensível do interior do cotovelo. Logo a seguir, estava no ombro — na clavícula — e depois na sua garganta. E de algum modo, por entre beijos e dentadinhas, ele conseguiu-lhe desapertar o soutien. Este pareceu desprender-se-lhe do corpo como a cobertura de chocolate de uma barra de snack com recheio no calor de meados de Agosto.

— Oh, meu Deus, és tão linda! — suspirou ele.Laura gemeu e contorceu-se subitamente quando ele lhe passou a língua

sobre o bico do seio. No instante seguinte, ele deitava-a sobre o tapete macio e, num abrir e fechar de olhos, ela viu-se aí imobilizada pelos mais de um metro e oitenta de músculos masculinos. Ele levou o bico do seio dela à boca. A sensação explodiu através dela, tão intensa que Laura não conseguia respirar; contudo não queria que ele parasse. No preciso momento em que ela pensava não conseguir aguentar mais, ele passou para o outro seio e levou-a de novo a mergulhar na vertigem das sensações.

No fundo do seu cérebro, Laura sabia que deveria fazer qualquer coisa. As mulheres dos filmes não se limitavam a ficar ali deitadas, gemebundas e frementes. Só que — oh, meu Deus — aquilo era tão delicioso. Ela não con-seguia pensar com clareza. Agarrou-lhe os cabelos com firmeza, de modo a que ele não se pudesse afastar. Oh, sim.

Numa espiral de delírio febril, Laura sentiu um puxar que lhe arrastava o corpo sobre a superfície macia do tapete. Depois, sentiu nas pernas o atrito da ganga a ser despida. Com dois fortes puxões, Isaiah libertou das jeans que tinha enroladas em volta dos tornozelos, assim como das cuecas e peúgas. Nua. Nunca estivera nua com um homem. Só que, de algum modo, ela não se sentia nua, possivelmente porque Isaiah estava por todo o lado — a sua boca, as suas mãos sólidas, a pressão de aço do seu corpo.

A mão dele encrespou-se sobre o montículo que se situava no vértice das coxas dela. Fez deslizar o seu dedo médio por entre as dobras. A coluna de Laura arqueou-se. As suas ancas elevaram-se. Ela soltou um grito sufocado, de surpresa.

—Calma — sussurrou-lhe ele. — Eu só quero... Está tudo bem, minha querida. Confia em mim.

Laura deu-se conta, por entre os assomos incríveis de sensações, que ele não acabara a frase. Mas isso não importava. Por vezes as acções falavam com mais clareza do que as palavras. Com pressão gradual, ele acariciou-a até ela se sentir como um vulcão prestes a entrar em erupção.

—Isaiah! — gritou ela.—Chh... Está tudo bem... Deixa fluir... — sussurrou-lhe ele.Como se ela tivesse escolha. Com a ponta de um dedo, ele tomara conta do

seu corpo. Ela não podia recuar. As suas ancas erguiam-se para ele como se tivessem vontade própria. As suas costas arqueavam-se. Ela sentia-se como um arco esticado ao máximo, prestes a disparar a sua flecha. Só que não acontecia nada. Ela cerrava os punhos sobre o tapete de pele de ovelha, por baixo dela. O seu corpo estremecia, levado ao limite, mas ela parecia não conseguir levá-lo a transpor aquela última crista.

Isaiah praguejou em voz baixa. No momento seguinte, a sua boca estava de novo no seio dela, e ele punha mais vigor nas carícias que lhe fazia no sexo. A combinação de sensações abalou o mundo de Laura. E, por fim, ela vogou por cima da crista da onda e sentiu-se como um bocado de vidro, a estilhaçar-se num milhão de cacos brilhantes a flutuarem depois em cintilante abandono através do negrume do espaço. Ela tinha muito vagamente a consciência de estar a arquejar, tentando respirar. Também estava levemente ciente de Isaiah a mexer-se a seu lado. Mas os sentidos dela estavam tão dispersos que não se conseguia concentrar nele com nitidez suficiente para ver o que ele estava a fazer.

—Estás bem? — murmurou ele.Laura forçou-se a abrir os olhos. Isaiah era um borrão bronzeado por cima

dela. Piscou os olhos para aclarar a visão. Olhos azuis, feições morenas, esculpidas a cinzel. Laura conseguiu esboçar um sorriso esquivo e um pastoso «Óptima, estou óptima».

—Ah, querida. Esta é a parte desagradável. Quase que desejo que tenhas deixado outra pessoa qualquer ter feito isto. Não quero fazer-te sofrer.

Laura abriu de novo muito os olhos. Sentiu algo a pressionar-lhe a sua abertura. Espera aí. Decididamente era algo grande. Não era um dedo. Antes que ela tivesse tempo para lhe pôr uma mão no meio do peito e dizer Vamos pensar um pouco nisto; não creio que consigas caber, ele forçou a entrada.

Laura sentiu como se tivesse sido penetrada por um taco de baseball. Dor. Oh, meu Deus. Isto seguramente não estava certo. Uma abertura estreita, um intruso volumoso. Onde é que ela fora buscar a ideia de que os pénis não eram mais grossos do que tampões?

—Estás bem?Laura estava a tremer com a dor e a reter a respiração. Como é que ela

poderia dizer que estava a morrer se os seus dentes não se descerravam?—Laura?A dor diminuiu um pouco. Ela pôde por fim respirar. Olhou para ele. Isaiah

estava apoiado nos braços esticados, que evidenciavam os músculos tensos. Estava absolutamente imóvel. Parecia tão belo com a luz das chamas a tingirem-lhe o corpo de âmbar. Laura recordava-se de andar a flutuar em delírio pelo espaço, e desejou voltar a esse estado.

—Dói! — conseguiu por fim dizer.

—Só por um minuto.Como é que ele sabia? Laura sentiu-se traída. Ele sabia que aquilo lhe ia

doer antes de o fazer. E quão longo era esse minuto? Ainda lhe doía, só que já não tanto. De qualquer modo, passara de insuportável a quase tolerável.

—Eu não gosto disto — disse ela. Estava no seu direito. Aquilo não tinha piada. — Quero parar.

O corpo dele estremecia. Os músculos dos seus ombros e dos seus braços erguiam-se-lhe sob a pele. E, de súbito, a sua face morena contorceu-se.

—Oh, merda! — disse ele.E, no instante seguinte, ele mexeu-se dentro dela — só um pouco, e a dor

foi desta vez mínima. Melhor ainda, quando ele esbarrou no fundo, Laura teve uma sugestão das deliciosas possibilidades. O seu interior ilu- minou-se com tanto brilho quanto a árvore de Natal. Ela enterrou-lhe os dedos nas costas, desejando que ele voltasse a entrar nela até ao fundo. Só que Isaiah estava erguido sobre ela como uma estátua, o seu corpo tenso e vibrante.

Então, ela ergueu as ancas para fazer ela própria o movimento.—Oh, meu Deus! — exclamou ele entre dentes.Laura gemeu de prazer e ergueu de novo as ancas.—Oh, Isaiah querido. Isso!Ele soltou um gemido agonizante e deixou-se cair sobre ela. Laura pes-

tanejou e contorceu-se para fazer sair o queixo por debaixo do ombro dele, de modo a poder respirar. Aquilo era tudo?

—Desculpa-me... — murmurou-lhe ele junto ao ouvido.Ele pedia-lhe desculpa? Estava precisamente a começar a ser divertido.—Terminámos, foi? — perguntou ela.—Oh, meu Deus — disse ele de novo.

Capítulo Treze

Isaiah ergueu a cara directamente para o fluxo de água quente, per-guntando a si próprio se alguém alguma vez se teria afogado no chuveiro. Parecia ser um final adequado para uma bronca total. Deus. Ele estragara tudo, não estragara? Agora sabia por que razão o seu pai o avisara para nunca se meter com virgens. Elas eram frágeis e complicadas, e, por mais que se tentasse, acabava-se sempre por as magoar.

Ele fechou os olhos e cerrou os dentes. Sentira a carne dela a rasgar-se. Ele amava-a tão desesperadamente, e sentira a carne dela a rasgar-se. Sempre que pensava nisso, sentia-se em agonia. Desde os seus anos de adolescência que ouvia tipos a gabarem-se de terem «rebentado a pipoca» a esta ou àquela rapariga, como se fosse o melhor sexo do mundo. Talvez fosse anormal, mas magoar alguém, especialmente se fosse a mulher que amava, não era para ele uma experiência agradável.

Deixou-se ficar por um bocado sob o chuveiro, na esperança de que a água quente lhe relaxasse os músculos tensos e lhe aclarasse as ideias. Quando finalmente saiu da cabina de duche, sentia-se ligeiramente melhor. Cada mulher à face da terra passava por aquilo uma vez. Ele conseguira quase não se mexer enquanto estava dentro dela. Daí a uns dois dias, qualquer ferimento que ele lhe tivesse causado estaria curado. Talvez pudessem então tentar de novo, eventualmente com mais sucesso. Da próxima vez, custasse o que custasse, ele estava decidido a tornar a coisa agradável para ela.

Alguns minutos depois, quando Isaiah entrou na sala de estar, encontrou Laura sentada num dos pufes, a dar de mamar aos cachorrinhos, como se nada tivesse acontecido. Olhou para ele, com um sorriso de arrependimento.

—Desculpa-me... — disse ela. — Não tinha intenção de estragar tudo.Isaiah acabou de abotoar a sua camisa vestida de lavado, de um azul

sólido, para estar de acordo com a sua disposição. Ao sentar-se ao lado dela, perguntou:

—Como te sentes?—Óptima — respondeu ela. Mudou o cachorrinho de posição nos braços e

recomeçou a dar-lhe de mamar. — Só doeu muito durante um minuto. Depois melhorou. Estou a sangrar um pouco, mas nada de grave.

Isaiah piscou os olhos. Sabia que era perfeitamente normal ocorrer algum sangramento. Também tinha consciência de que o hímen de uma mulher tinha de ser rompido, mais tarde ou mais cedo. Só que não queria de forma alguma ter sido o sujeito que teve a honra de o fazer.

—Talvez possamos fazer outra investida daqui a uns dois dias...Isaiah teve vontade de morder a língua no instante em que pronunciou

aquelas palavras. Outra investida? Se ela não saísse da sala a chorar, seria um milagre.

Em vez disso, ela sorriu, encolheu os ombros e disse:—Estava à espera que fosse mais cedo do que isso...Nem pensar.—Precisas de algum tempo para cicatrizares.—Não sinto que esteja ferida.—Estás a sangrar, não estás?Na ideia de Isaiah, aquilo arrumava a questão.

• • •

No dia seguinte, Laura foi deixada a deambular pela grande casa de troncos de madeira enquanto Isaiah estava no trabalho. Por mais de uma dúzia de vezes, ela ficou de pé junto aos pufes, a recordar o tempo que passaram juntos, e a imagem não melhorou com a repetição. Fora uma piegas, pedindo a Isaiah que parasse. Havia milhares de bebés a nascerem a cada ano e, a não ser que uma mulher recorresse a um banco de esperma, não tinha hipótese de engravidar sem fazer amor.

A perda da virgindade não fizera essas outras mulheres renunciar ao sexo, e ela também não o iria fazer. Isaiah queria esperar alguns dias? Ah. Ele ia ver.

Pelo final dessa tarde, Isaiah cancelou todas as marcações que não fossem de emergência e passou-as para segunda-feira, de modo a poder sair da clínica pelas cinco da tarde. Era a vez do Tucker assegurar de novo o turno de sábado. A não ser que entrasse uma chamada de emergência fora de horas, Isaiah poderia esperar ter todo o fim-de-semana de folga.

Quando chegou a casa trinta minutos depois, já havia escurecido por completo, e Laura não se encontrava em parte alguma. As luzes da árvore de Natal estavam ligadas, e na lareira crepitava um belo fogo a dar-lhe as boas-vindas. Com um sorriso, pendurou o casaco e seguiu o aroma que vinha da cozinha. A panela eléctrica estava sobre o balcão, com a tampa a erguer-se de quando em quando pela força do vapor, a deixar escapar um cheiro maravilhoso. Espreitou para o interior e viu grandes almôndegas a apurarem num molho vermelho. Esparguete. Caramba, ele adorava aquilo.

Incapaz de resistir, tirou uma colher de uma gaveta e pescou uma al-môndega do molho fervente. Fazendo uma concha com a mão por baixo da colher para não deixar pingar molho, começou a soprar a almôndega para a arrefecer. Quando achou que ela já estava a uma temperatura comestível, enterrou nela os dentes gulosos.

— Olá, grandalhão! — ronronou uma voz apaixonada algures por detrás dele.

Com a boca cheia com a almôndega, ele girou sobre os calcanhares. Laura estava de pé à entrada da cozinha, com um braço esbelto apoiado ao extremo da parede que dividia a casa de jantar formal da cozinha. Ela vestia — oh, valha-lhe Deus, Isaiah nunca vira uma coisa assim — um dra- pejamento cor de pêssego de um material transparente, com uma comprida franja na parte de baixo que lhe fazia saltar o olhar para as esbeltas coxas nuas de Laura. Por baixo, os seios dela estavam cobertos apenas por um pe- dacito de tecido cor de pêssego, pouco mais largo do que fio dental. No vértice entre as pernas dela, um T de renda negra servia-lhe de cuecas. Ela era a coisa mais

deslumbrante que ele vira em dias da vida. Os olhos de Laura desprendiam um convite ardente, e ela ali estava, de pé, com o corpo exposto de modo a fazer com que os olhos de um homem lhe saltassem da cabeça.

Apanhado completamente de surpresa, Isaiah respirou fundo. Asneira. Partículas da almôndega desceram-lhe pela traqueia. Engasgou-se — e depois não conseguia respirar. De início, não pensou que tivesse importância. Mas, depois de tossir e de se engasgar, verificou que continuava sem conseguir respirar. Correu para o lava-loiças e tossiu de novo.

—Oh, meu Deus! — exclamou Laura.Isaiah deu por si com Laura a dar-lhe fortes palmadas nas costas. Durante

vários segundos de agonia, cada um dos quais parecia durar uma eternidade, Isaiah pensou que ia morrer. Nunca sufocara antes. Pânico. Não conseguia respirar, não conseguia falar — e, para o fim, nem sequer conseguia tossir. Limitava-se a estar ali de pé, apoiado no lava-loiças, com o corpo agitado por espasmos convulsivos, a cabeça a latejar-lhe com uma horrível sensação de falta de ar, e pontos negros a dançarem-lhe à frente dos olhos.

Laura passou-lhe os braços em volta da cintura, com o seu pequeno punho fechado logo acima do diafragma.

—Dobra os joelhos! — gritou ela. — És demasiado alto!O quê?

—Os teus joelhos, Isaiah! Dobra os joelhos!As palavras dela conseguiram por fim atravessar o nevoeiro de pânico que

o dominava e penetrar-lhe no cérebro abalado. Ele dobrou as pernas, permitindo que ela tivesse mais apoio e liberdade de movimentos e, com uma força que ele não julgava possível nela, Laura passou-lhe os braços em volta do corpo, empurrando o punho fechado para cima com tal ímpeto que ele admirou-se por não lhe atingir a coluna vertebral a partir da frente. O ar foi forçado a sair-lhe violentamente dos pulmões, e um pequeno pedaço de almôndega saiu-lhe disparado pela boca.

O ar silvou a descer-lhe pela traqueia. Isaiah caiu sobre o lava-loiças, a arfar. Deus do Céu. Laura adejava junto ao seu ombro.

—Estás bem? Isaiah, responde-me, por favor! Estás bem?Ele só conseguiu confirmar acenando com a cabeça. Depois de inspirar por

mais algumas vezes, emitiu um fraco e rouco «Estou, estou bem».—Graças a Deus! Pensei que ias morrer.A tremer da experiência, Isaiah endireitou-se e afastou-se do lava-loiças.—Eu também — disse ele, lançando um último olhar à almôndega,

decidindo ali e naquele momento que nunca mais comeria uma almôndega. — Bolas. Isto nunca me aconteceu!

Ela deu-lhe uma palmadinha no braço. Ele pegou numa toalha e hu- medeceu-a para limpar a cara. Quando a sua visão se aclarou, Laura tinha desaparecido. Isaiah atirou a toalha para cima do balcão. Lembrando-se do véu de nada que ela vestia, sorriu ligeiramente e foi à procura dela.

Ela estava no quarto, a vestir uma camisola pela cabeça. Teve um curto vislumbre dos seios nus dela, antes da lã azul se tornar a única paisagem. Ela já tinha descartado o fio dental de renda negra e substituído por umas recatadas cuecas brancas.

Isaiah teve vontade de chorar.Laura franziu o nariz e pegou num par de jeans estendidas aos pés da

cama.

—Desculpa. Foi uma má ideia. Eu não queria fazer-te sufocar.Isaiah queria o véu das franjas cor de pêssego de volta.—Eu engasguei-me porque me apanhaste de surpresa. Eu não estava à

espera... — Isaiah não tinha palavras. — Estavas tão bonita!—E eu tirei-te o fôlego, não foi? — disse ela, rindo-se, enquanto enfiava um

pé delicado nas jeans. — A mulher da loja disse-me que aquilo te iria pôr louco por mim. Era velha. Eu devia ter encontrado alguém mais novo que soubesse do que os homens gostam.

Isaiah esperou até que ela metesse o outro pé nas jeans. Então, atravessou pressuroso o quarto e agarrou-a pela cintura numa placagem em voo, com a cama como alvo. Ela deu um grito e tentou equilibrar-se, mas com os tornozelos presos nas calças e o seu peso a actuar contra ela, Laura tombou como um pino de bowling. Isaiah seguiu-a na queda até ao colchão, amparando o seu peso com os braços para não a esmagar.

Ela pestanejou atrapalhada e olhou para ele através de madeixas soltas de cabelo louro.

—Tens a certeza de que estás bem?Ele nunca se sentira melhor. E ela não precisava das franjas para ser uma

brasa.—Esclarecimento: estavas ou não a tentar seduzir-me?Ela franziu de novo o nariz.—Eu estraguei tudo a noite passada. Por isso queria compensar.Já o tinha feito. Deus, como ele a amava. Inclinou-se para lhe mordiscar a

boca deliciosa.—Da próxima vez, presta atenção a duas coisas: não me apareças vestida

daquela maneira quando eu estiver de boca cheia; e também podes pensar em soltares um alerta. Um «Isaiah, segura-te!» poderia servir. Qualquer coisa que me previna que estás prestes a fazer-me saltar os olhos das órbitas.

—Gostaste daquilo?—Estavas uma visão de sonho. Se eu sair e voltar depois a entrar, ves- tes-

te outra vez assim para mim?—A disposição está um pouco estragada...A disposição dele estava perfeita.—Por favor?...Laura naquela coisa transparente cor de pêssego, de pé junto à árvore de

Natal... Em toda a sua vida, Isaiah nunca vira nada de tão belo, nunca sonhara que tal beleza podia existir. As luzes coloridas da árvore banhavam-na numa luminosidade alegre que acentuava as curvas do corpo dela. Tudo o que lhe faltava era uma fita com laço para ser a fantasia de Natal de qualquer homem.

—Amo-te — foi tudo o que ele conseguiu dizer.—Eu também te amo — respondeu ela, fazendo uma covinha na cara. —

Pára de olhares assim para mim! Estás-me a fazer sentir esquisita.Ele não queria isso. Isaiah teve a impressão de caminhar um quilómetro

para chegar até ela. A sua mão tremia ligeiramente quando lhe tocou no cabelo.

—Ah, Laura, és linda. Quase que tenho medo de te tocar.Ela soltou uma risadinha.—Não é essa a ideia. Isto deveria pôr-te louco por mim.

Missão cumprida. Isaiah puxou-a para os seus braços. Jurou que, desta vez, iria fazer com que fosse perfeito para ela.

Depois, Laura sentiu-se como se fosse uma poça de cera derretida. Jazia esparramada sobre um dos pufes, com um dos braços estendido para fora, o outro debruçado sobre o pescoço de Isaiah. Ele estava sobre ela, com a cara enterrada entre os seios dela. Laura não fazia ideia para onde fora parar a sua vestimenta sexy. No fundo, achava que fora um completo desperdício de dinheiro. Ele apenas a deixara com aquilo vestido por cerca de três segundos.

Mas, oh, fora uma maravilha. Levou a mão ao cabelo dele. As madeixas deslizavam-lhe por entre os dedos como frescos fios de seda. O coração dele ainda batia com força. Ela conseguia sentir cada batida violenta a vibrar junto ao seu umbigo.

—Estou muito, mesmo muito satisfeita que não tenhas sufocado...Ele soltou uma risadinha fraca e lambeu-lhe a curva do seio.—Também eu, Laura. Ah, és fabulosa! Amo-te tanto!Ela meteu o queixo para dentro. A luz das chamas, era-lhe estranhamente

excitante ver a cara morena dele pressionada contra a sua pele muito branca. Laura passou-lhe a mão pelas costas.

—Desta vez não doeu nada, nada mesmo...—Hum... — foi a única resposta dele.Aquilo não era exactamente o que ela esperara. Olhou pensativa para o

tecto com as traves expostas.—Isaiah?—Hum?Ela fez dançar as pontas dos dedos sobre as ancas nuas dele.— Se eu vestir outra vez aquilo, podemos repetir?Ele resmungou.— Deus do Céu, criei um monstro!Laura ergueu a cabeça, tentando ver-lhe a cara com maior clareza.— Não me desejas?Ele riu-se e ergueu-se num cotovelo.— Convence-me.Laura não sabia muito bem como o fazer. Mas estava decidida a dar o seu

melhor. No final, descobriu que Isaiah não precisava de muito encorajamento. Quase nenhum, com efeito.

Nessa noite, eles não dormiram entre as mamadas dos cachorrinhos. Pareciam duas crianças que tivessem sido largadas numa loja de doces, in-saciáveis no seu desejo um pelo outro. Quando raiou a aurora e a primeira luz pálida da manhã brilhou através das frestas dos cortinados do quarto, Isaiah estava tão exausto que mal se conseguia mexer. Laura estava por cima dele, como um cobertor demasiado curto, os dedinhos dos pés dela a pressionarem-lhe os tornozelos, o seu cabelo sedoso a brincar-lhe no queixo.

Apesar de estar esgotado, Isaiah desejava-a de novo. Ela sentia-se ma-ravilhosamente bem, fofa, nua e quentinha, com todo o corpo pressionado contra o dele. Mas Isaiah estava exausto. Mal conseguia mexer os dedos dos pés.

Com um suspiro, ele pegou num cobertor para se cobrirem. Laura me- xeu-se e contorceu-se para sair de cima dele, e depois enroscou o corpo ao abrigo

do dele, para se aquecer. Ele espalmou uma mão sobre o ventre dela, chegou-a ainda mais para si e adormeceu de exaustão.

Quando Isaiah voltou a abrir os olhos, Laura não estava ali, e o lençol a seu lado estava frio. Lançou os cobertores para trás, pôs-se de pé e pegou nas suas jeans. Enquanto saltitava para as puxar para cima, avançou para a porta.

— Laura?Ela não estava frente à lareira, a dar de mamar aos cachorrinhos. Isaiah

pegou em algumas achas que estavam no cesto e lançou-as para o fogo que esmorecia. Depois, foi à procura dela. Encontrou-a na lavandaria, a lavar toalhas. Vestia uma das camisas dele, em vez de uma camisa de noite. A bainha chegava-lhe quase à curva dos joelhos.

—Bom dia — disse ele.Ela sorriu-lhe por cima do ombro e esticou o pescoço para receber um beijo,

que ele lhe deu com gosto.—Como consegues estar tão activa? — perguntou-lhe ele. — Mal

dormimos...—Estou inebriada de paixão...—Eu também estou... Mas até o homem mais sexy do mundo precisa de

um pouco de alimento. Deixa-me acabar isso enquanto preparas um pequeno-almoço...

Ela lavou as mãos, deu-lhe outro beijo e correu para a cozinha. Por entre o barulho da água a correr, Isaiah poderia jurar que a ouvia cantar. Abanou a cabeça e soltou uma risadinha abafada.

—Graças a Deus que é de novo a vez do Tucker trabalhar ao sábado — disse ele, quando entrou na cozinha, alguns minutos depois. — Sinto-me como se me tivesse passado um tanque por cima.

Ela bocejou enquanto virava o bacon na frigideira.—Os cachorrinhos estão alimentados. Depois de comermos, podíamos

voltar para a cama.—Parece-me uma boa ideia.Meia hora depois, anicharam-se na cama de Laura, tão satisfeitos e so-

nolentos quanto os cachorrinhos na piscina de plástico. Isaiah pensou em fazer amor com ela antes de voltar a dormir mas, entre o pensamento e a acção, os seus olhos fecharam-se. No instante seguinte, estava em sono profundo.

Acordaram ao som de treze cachorrinhos esfomeados, a latirem e a ganirem. Laura amornou a fórmula enquanto Isaiah lavava os biberões.

—Tens a certeza de que queres ter filhos? — perguntou ele.Ela sorriu.—Sim, mas talvez não treze...Ficaram em casa nesse dia, satisfeitos com a companhia um do outro.

Fizeram amor continuamente, e nos intervalos viram dois filmes, jogaram às damas e prepararam refeições rápidas para manterem a energia. Isaiah nunca esperara uma felicidade daquelas. E Laura mal conseguia acreditar que todos os seus sonhos, os quais ela pensava nunca se virem a concretizar para uma mulher com afasia como ela, se estavam agora a tornar realidade.

De quando em quando, olhavam um para o outro e sorriam estupidamente.—Mal posso acreditar que me amas — dizia ela.—Creio que sou o homem mais felizardo do mundo — retorquia ele.

E muito em breve estavam de novo na cama, tão sequiosos um do outro quanto estiveram da primeira vez.

Pouco depois da meia-noite, o telefone de Isaiah tocou. Tinha havido um acidente de viação à saída norte de Crystal Falls. Um pastor alemão, que seguia na caixa de carga de uma carrinha pickup, fora projectado para fora do veículo.

—Queres que eu vá contigo? — ofereceu-se Laura.Isaiah adoraria que ela o assistisse, mas sabia que os ferimentos do cão

podiam ser graves, necessitando de uma longa intervenção cirúrgica.—Precisas de estar aqui com os cachorrinhos. Isto pode levar horas. Vou

telefonar à Belinda.Minutos depois, enquanto se afastava da casa, Isaiah viu pelo retrovisor as

silhuetas de Laura e do Tristinho no rectângulo de luz da porta. Como se pressentisse que ele olhava para trás, ela lançou-lhe um beijo.

—Oh, meu Deus — murmurou Isaiah quando viu os primeiros raios-X. — Haverá algum osso no corpo deste cão que não esteja partido?

Belinda estava de pé junto à marquesa. O pastor alemão encontrava-se já sob o efeito da anestesia, com um tubo metido na traqueia, a língua pendente.

—Ele está em muito mau estado — disse ela, com tristeza. — Achas que o conseguimos salvar?

Isaiah arregaçou as mangas e vestiu uma bata. Gostava de ter dormido mais nas últimas vinte e quatro horas. Normalmente, as agendas de fim-de-semana dele e do Tucker funcionavam bastante bem, prevendo que cada um deles cobrisse dois sábados por mês, de modo a que o outro pudesse ter dois fins-de-semana livres. O lado negativo disto era que aquele que não trabalhasse ao sábado tinha de assegurar quaisquer emergências que surgis-sem nessa noite.

—Não sei se o consigo salvar — respondeu Isaiah por fim. — Mas quero tentar. — Ao aproximar-se da marquesa, perguntou: — Mas que raio estava um cão-guia a fazer na traseira de uma carrinha?

Belinda encolheu os ombros.—Não fiquei a saber muitos pormenores. Pensei que tivesses obtido mais

informação quando falaste com a polícia.—Só soube que uma mulherzinha invisual veio de Chicago de avião para

ver a família. Não devia haver espaço dentro da cabina para o cão.—Imbecis — disse Belinda com ardor. — Com todas as leis sobre cintos de

segurança no Oregon e todas as mensagens de sensibilização na televisão, seria de crer que as pessoas compreendessem que até os cães precisam de um sistema de retenção.

Por um bom bocado, aquilo foi o fim de toda a conversa desnecessária. Isaiah concentrou-se intensamente no seu trabalho. Se o cão morresse, não se sabia quanto tempo decorreria até que a mulher cega pudesse arranjar outro cão-guia.

Pelas quatro da manhã, Isaiah estava tão cansado que a sua vista desfo-cava-se constantemente. Belinda fizera-lhe café suficientemente forte para pintar paredes, mas isso não ajudara.

—Fala comigo — disse-lhe ele. — Ajuda-me a manter-me acordado.Belinda aquiesceu, tagarelando sem parar acerca dos seus dias na uni-

versidade enquanto ambos operavam o paciente. Quando Isaiah pestanejou e voltou a bocejar, ela inclinou a cabeça interrogativamente.

—Parece-me que nunca te vi tão derreado — observou ela. — Está tudo bem em casa?

Isaiah reprimiu outro grande bocejo.—Eu e a Laura não dormimos muito a noite passada...—Oh, oh. Problemas com os cachorrinhos?Ele tentou reprimir um sorriso, mas não conseguiu.—Não, outra coisa...Belinda ocupou-se a endireitar os instrumentos. Passado um longo

momento, disse:—Estás apaixonado por ela, não estás?Isaiah começou por negá-lo, mas depois achou que não valia a pena. Tinha

uma vida para além da clínica, e a partir de agora Laura ia ser uma grande parte dela. Não seria capaz de esconder esse facto, e também não estava disposto a fazê-lo.

—Sim — admitiu ele. — Estou muito apaixonado por ela.Belinda sorriu.—Estou tão contente por ti, Isaiah. Se há alguém que mereça ser feliz, és

tu.—Obrigado.—E eu adoro a Laura — acrescentou ela. — Mas também todos nós a

adoramos, não é? Ela é tão querida. — Belinda sorriu e lançou-lhe um olhar pleno de curiosidade. — Estarei enganada em suspeitar que há casório a caminho?

—Falámos acerca disso. Mas não está ainda nada decidido.Duas horas depois, Isaiah suturou finalmente a última incisão. Os sinais

vitais do animal ainda se mantinham fortes. Era um bom sinal.—Toca as trombetas — disse Isaiah a Belinda. — Este rapaz tem de ser

mantido sob observação durante as próximas horas, e estamos ambos demasiado cansados para ficarmos aqui com ele. Vê se consegues apanhar um técnico que venha cá e fique com ele.

Já era de dia quando Isaiah chegou a casa. Quando entrou, viu Laura adormecida numa poltrona. Um xaile que a sua mãe fizera cobria-lhe os om-bros. Tinha as pernas dobradas sob ela e a cabeça tombada sobre o ombro.

Ele atravessou a sala em bicos de pés para a acordar com um beijo.—Bons dias, sol da minha vida...Enquanto falava, Isaiah apercebeu-se de que ela era realmente o sol da sua

vida. Ela iluminara todo o seu mundo.— Isaiah — disse ela, esfregando os olhos e sentando-se. — Que horas são?

—Quase sete.—Esperei por ti...Ela parecia estar tão cansada quanto ele se sentia.—Quando é que deste de mamar aos cachorrinhos?—Há cerca de uma hora.—Vamo-nos deitar no teu quarto. Assim poderemos ouvi-los quando eles

estiverem com fome.A caminho do quarto de hóspedes, Laura passou-lhe um braço pela cintura.—Deves estar exausto...

—Completamente estoirado, podes dizê-lo...—O cão ficou bem?Isaiah abanou a cabeça.—Fiz tudo o que podia. Agora Deus tem de fazer o resto.Às nove horas, os cachorrinhos serviram de despertador para acordar Laura

e tiraram momentaneamente Isaiah de um sono profundo.—Não te levantes — murmurou-lhe Laura. — Eu trato deles.Isaiah quis opor-se, mas não conseguiu manter os olhos abertos o tempo

suficiente para formar as palavras. Laura. Parecia terem passado apenas alguns minutos quando ela o abanou suavemente para o despertar por um momento e se debruçou sobre ele a sorrir.

—Telefonei para a clínica para saber do cão. A Lena disse-me que ele se está a aguentar bem.

—Qptimo, óptimo... — disse Isaiah, esforçando-se por sorrir; mas até o curvar dos lábios lhe exigiu um esforço desmesurado.

Quando Isaiah voltou finalmente à superfície, eram quase três da tarde. Laura ouviu-o a andar pelo quarto. Ela levara a piscina de plástico para a sala para não o incomodar durante as mamadas. Agora, estava ocupada a pôr de novo os cachorrinhos na piscina.

—O café foi acabado de fazer — disse ela, quando ele saiu do quarto.Ele apertara o cinto das calças, mas a camisa pendia-lhe aberta, mostrando

uma faixa de peito musculado e bronzeado, coberto de pêlo escuro. Pestanejou e olhou turvamente para um cachorrinho, no momento em que ele chegava à borda da piscina e caía de cabeça no chão.

—Mas que raio? Eles ainda não estão em idade de fazerem isto...Laura limitou-se a erguer as mãos.—Diz-lhes isso. De repente, parece que ganharam asas nas patas...Isaiah bocejou e dirigiu-se à cozinha. Quando regressou, trazia uma caneca

de café fumegante numa das suas grandes mãos e parecia estar um pouco mais acordado. Observou Laura a colocar de novo um cachorrinho na piscina, sorriu e abanou a cabeça.

—Está na hora de arranjarmos um canil portátil. Não podes passar o dia todo a fazer malabarismos com os cães.

Laura sabia que ele tinha razão. Mas isso não significava que ela não se estivesse a divertir.

—O Tristinho acha isto o máximo. Eles têm quase o tamanho necessário para poderem brincar com ele.

Isaiah sentou-se numa poltrona. Enquanto ele bebericava lentamente o café, Laura mordiscou o lábio inferior.

—Isaiah?—Hum?—Posso ficar com um?Laura revirou os olhos para ele.—Com um cachorrinho...Ele franziu o sobrolho.—O Tristinho vai ser um cão muito grande, Laura.—Eu sei. — Laura afagou o Tristinho, que estava deitado a dormir ao lado

dela. — Mas ele é teu. Eu quero um cão meu. — Laura pegou no pequeno

macho que lhe conquistara o coração. Não conseguia olhar para o focinhito enrugado dele sem sorrir. — Quero-lhe chamar Carquilhas...

—Carquilhas? Mas que raio de nome é esse? — perguntou Isaiah, ob-servando o cachorrinho. Depois, acabou por sorrir. — Ele tem realmente um focinhito encarquilhado. — Os olhos dele escureceram. — Laura, querida, os donos da mãe ficam com o melhor da ninhada. Há toda a probabilidade de escolherem esse. É um cachorrinho com muito bom aspecto.

O coração de Laura falhou uma batida.—Não o posso esconder?—Não estás a pensar que eles não saibam contar, pois não? Já sabem que

há treze cachorrinhos.Laura segurou o cachorrinho junto do coração. Ficou um momento

pensativa. Depois, a expressão dela iluminou-se e disse:—E se disséssemos que um deles morreu?Isaiah lançou para trás a sua cabeça morena e rebentou a rir.Tendo a manhã de segunda-feira decorrido sem incidentes e o pastor

alemão continuado a aguentar-se, Isaiah pôde finalmente respirar de alívio. Ligou para a polícia para lhes dar notícias do estado do cão, feliz por poder dizer que o cão-guia ia provavelmente ficar bem.

—Isso são óptimas notícias — disse do outro lado da linha uma mu- lher-polícia. — A dona tem estado inconsolável. Para ela, ele não é só um cão, mas o melhor amigo que ela tem em todo o mundo.

—Se ele era o seu melhor amigo, por que razão ela o deixou seguir na caixa aberta de uma carrinha em estradas cobertas de gelo? No Verão, em viagens curtas, ainda se compreende, mas no Inverno é completa loucura, quando o asfalto está escorregadio.

—Eu sei — concordou a mulher. — Acredite-me quando digo que ela nunca mais vai permitir que isso aconteça. Foi apenas uma dessas coisas, creio eu, uma carrinha de três lugares, e duas pessoas para a irem buscar ao aeroporto. Com três pessoas na cabina, não havia espaço para o cão. Ela achava que não havia mal em o deixar seguir atrás. Iam apenas percorrer uma curta distância.

—As estradas com gelo são perigosas mesmo em distâncias curtas — disse Isaiah, apercebendo-se nesse momento de que se estava a queixar à pessoa errada. — Desculpe-me. Isto por vezes é difícil. Vejo mais idiotas a entrarem-me pela porta dentro do que me apetece contar. Não é preciso ser-se um cientista aeroespacial para se cuidar devidamente de um animal de estimação. Tudo o que precisamos é de um pouco de bom senso.

A mulher emitiu um som de comiseração.— Nem me fale. O senhor vê os cães que foram projectados dos veículos.

Nós vemos os miúdos.Isaiah sentiu o estômago apertar-se-lhe só com a ideia. Manteve-se ao

telefone apenas o tempo suficiente para comunicar a factura da clínica à polícia.

Nessa terça-feira, Isaiah apercebeu-se de que só restavam três dias úteis antes do Natal. Estava a passar uma receita numa das salas de exame. Ao escrever a data, ocorreu-lhe de repente que aquele não era o dia vinte e um de um qualquer mês do ano, mas o dia vinte e um de Dezembro.

Laura já cumprira o seu turno da manhã e saíra com o resto do dia livre. Depois de voltar ao bloco operatório, Isaiah tirou o telemóvel do cinto, marcou o número de casa e andou de um lado para o outro até ela atender.

—Podes trazer os cachorrinhos para a clínica por volta das quatro? — perguntou ele, depois de ela atender a chamada.

—Porquê?—Porque vou contratar alguém para ficar aqui a tomar conta deles

enquanto formos fazer compras de Natal.—Ainda não acabaste de fazer as compras?Isaiah esfregou o ponto entre as sobrancelhas que lhe latejava sempre que

tinha os nervos em franja.—Acabar? Querida, eu ainda nem comecei!Longo silêncio.—Mas, Isaiah, estamos quase no Natal...—Eu sei. Não sei é onde tinha a cabeça. Pensei que ainda tinha muito

tempo. Importas-te de me ajudares?—Tens de comprar prendas para quantas pessoas?—Por alto, para cerca de trinta, não contando com todos os empregados

antigos do Lazy J. Cresci com a maior parte deles, e eles são quase família. E tu, é claro. Suponho que deverei também arranjar qualquer coisa para os teus pais e para a tua avó. E ainda para a tua irmã e para a família dela, creio. Provavelmente, contando tudo, deverá rondar as quarenta, talvez quarenta e cinco pessoas.

—É muito.—Eu sei — concordou ele, desconsolado. — Tenho uma família enorme, e

que cresce de ano para ano. — Suspirou. — Estava a pensar em levarmos o Hummer e deixarmos o teu carro aqui até amanhã.

—Mas não vamos ter de voltar para buscar os cachorrinhos?—Sim. Mas regressaremos ao trabalho amanhã de manhã por volta da

mesma hora. Para quê levares o teu carro de volta a casa e gastares gasolina? Ficará muito bem estacionado por detrás da clínica.

—Okay. Vemo-nos então às quatro.—Agradeço-te, querida. Vamos jantar fora. Achas bem?Quando Isaiah desligou o telefone, Belinda estava-se a rir e a abanar a

cabeça.—Esqueceste-te outra vez de ir às compras!Não era uma pergunta.—Na verdade não me esqueci. Pensava que poderia ir algum dia para a

semana.—Para a semana? — perguntou Belinda, erguendo as sobrancelhas es-

curas. — Em que planeta vives tu?Laura estava atrasada. Isaiah transferira todas as marcações que não podia

cancelar para a ala de Tucker e estivera à espera dela durante quase quinze minutos, espreitando por uma das janelas do canil. Quando por fim viu o carro dela entrar no parque de estacionamento, saiu pela porta do armazém e apressou-se a ir ao encontro dela.

—Desculpa — disse ela ao sair do carro. — Tive problemas com os cachorrinhos.

—Que tipo de problemas?

Ela parecia um pequeno esquimó feliz e contente, no seu anorak cor-de-rosa com capuz. A cara dela estava emoldurada em peliça artificial, de longos e fofos pêlos brancos, com madeixas de cabelo louro espetadas para fora.

—Eles não se mantinham no cesto. Fiz-me à estrada e, mal dei por mim, tinha um cachorrinho por baixo do pedal do travão.

Isaiah sentiu um baque no coração.—Podias ter tido um acidente.—Nem me fales. Não conseguia usar o travão. Tive de desligar o motor na

chave e deixar o carro rolar até parar.—Deus do Céu — disse Isaiah, curvando-se para espreitar através de uma

das janelas de trás. — Onde é que eles estão?—Na mala — disse ela, abrindo a tampa. Isaiah contornou a traseira do

carro. Havia cachorrinhos a saltar dentro do porta-bagagens como bonecos de caixas de surpresas.

—Ajuda-me! — gritou Laura, tentando agarrar os cachorrinhos antes que eles tombassem para fora do porta-bagagens e caíssem ao chão. — Não tenho mãos que cheguem para isto!

Isaiah não se conseguiu conter; desatou a rir. Mas o seu divertimento em breve se esvaiu quando lançou a mão a um cachorrinho que estava a cair do porta-bagagens para fora e quase que falhou. Antes que conseguisse meter o cão no cesto, outro tombou para fora.

—Meu Deus! Eles ainda são muito pequenos para fazerem isto. O que é que lhes estás a meter na fórmula?

Havia cachorrinhos a saltar para fora do cesto mais depressa do que eles os conseguiam meter dentro. Isaiah despiu o casaco e lançou-o sobre o cesto para formar uma tampa. Depois, ajudou a enfiar cachorrinhos para dentro do cesto e manteve o casaco esticado enquanto Laura apanhava os que faltavam. Quando colocaram todas as treze crias dentro do cesto, trabalharam os dois em tandem para os levar para o interior da clínica, com Laura a dançar em volta de Isaiah enquanto ele caminhava, para apanhar as pequenas bolas de pelo que tentavam escapar.

—Nunca me aconteceu uma destas! — desabafou Isaiah, sem fôlego, ao pousar o cesto no interior de uma jaula do canil. — E queres tu um destes monstrinhos? — Uma bola preta com patas tombou do cesto e bamboleou-se às cegas até bater na ponta da bota de Isaiah. Este estava com medo de se mexer, com receio de lhe pisar uma patinha. Baixou-se para pegar no animalzinho e viu o seu esforço recompensado com uma rosnadela. — O sacaninha! Acaba de me rosnar!

—Não lhe chames sacaninha. Esse é o Carquilhas.Isaiah voltou o cachorrinho para lhe olhar nos olhos leitosos.—Logo que me consigas ver bem, malandreco, vais perceber.Isaiah detestava fazer compras de Natal. O seu modo de operação habitual

era ir a um hipermercado e tirar coisas das prateleiras à medida que avançava através de uma secção: artigos domésticos para mulheres e secção de ferramentas para homens. No seu último giro, passava pela secção de brinquedos, para as crianças.

O primeiro problema surgiu quando ele se apercebeu de que não partilhava com Laura a mesma forma de escolher presentes. Ela olhou para ele em consternado desalento ao vê-lo pegar numa torradeira para a mãe dele.

—Isaiah, a tua mãe já tem uma torradeira.—Mas esta dá para fazer quatro torradas ao mesmo tempo...—Isso não tem nada a ver. Deves comprar para as pessoas coisas que elas

queiram... Ela não precisa de uma torradeira, e também não é um presente engra-çado.

—Ela adora torradeiras.Laura lançou-lhe um olhar de incredulidade e começou a bater o pé.—Não me digas que já lhe deste torradeiras...Isaiah não conseguia compreender o que havia de tão mau em comprar

uma torradeira a alguém. As pessoas comiam torradas, não era verdade? Se a sua mãe já tinha uma torradeira, esta ia de certeza avariar-se mais tarde ou mais cedo. Nessa altura, ela ficaria verdadeiramente satisfeita por ele ter pensado em lhe comprar uma nova.

—A questão é esta — disse ele. — Tenho quarenta e cinco pessoas a quem comprar presentes. Se ficar a esmifrar os miolos de cada vez que pegar num presente, vou passar aqui uma semana!

Laura voltou a colocar a torradeira na prateleira.—Se não encontrarmos nada melhor, voltaremos aqui para a vir buscar.Isaiah esteve quase para resmungar, mas limitou-se a segui-la diligen-

temente pela loja. Quando ela pegava numa coisa e a examinava por todos os lados, incluindo a parte de baixo, ele limitava-se a sorrir. Porque não? Raios, eles ainda tinham mais três dias para fazer as compras. Era canja.

Para sua surpresa, a forma de Laura fazer compras revelou-se divertida. Talvez fosse por a cabeça dele ter parado de doer, mas dar um pouco de atenção à escolha de um presente era recompensador. Encontraram um banco de cozinha para a mãe dele — uma coisa jeitosa desdobrável com um assento regulável de modo a que ela se pudesse sentar enquanto preparava refeições. Isaiah vira por mais do que uma vez, quando havia jantares em família, a sua mãe com os tornozelos inchados e a esfregar as costas por estar tanto tempo de pé. O banco era uma coisa que ela iria mesmo usar.

Depois disso, Laura conduziu Isaiah através do centro comercial, parando em lojas especializadas para passar os olhos e encontrar presentes adequados para todas as pessoas de que eles gostavam. Entre uma loja e outra, faziam corridas loucas através da noite invernosa para guardarem as compras no Hummer. Estava a nevar, o que tornava tudo perfeito.

No átrio do centro comercial, ela fez questão de darem a volta à gigantesca exposição natalícia, cheia de figuras animadas. Nesse ano, representava a oficina do Pai Natal no Pólo Norte. As renas baixavam as cabeças para comerem. Através de janelas com os vidros cobertos de neve artificial, podiam-se ver elfos do Pai Natal a trabalharem laboriosamente sob uma luz dourada para completarem os seus projectos antes da Véspera de Natal.

—Oh, Isaiah, olha para a Mãe Natal! — gritou Laura. — Não é querida?Isaiah inclinou-se para espreitar através do vidro embaciado pelo gelo e

pela neve artificiais e observar uma pequenina e engraçada Mãe Natal, apetrechada de óculos à avozinha, bochechas coradas, um vestido azul, um avental e sapatos pesadões. Com um sorriso rasgado no rosto, ela oferecia uma travessa a um Pai Natal muito feliz e satisfeito, que estava continuamente a pegar em bolachas e a dizer: «Ho, ho, ho! Muito obrigado, Mãe Natal!»

—Não seria óptimo que houvesse mesmo um Pai Natal, e que todos nós pudéssemos expressar um desejo e que ele o tornasse realidade? — perguntou Laura.

Ela olhou para Isaiah com os olhos a brilhar, e nesse momento ele aper-cebeu-se de que já recebera um fornecimento para toda a vida de desejos de Natal realizados. Ela era tudo o que ele alguma vez desejara, tudo o que ele alguma vez precisara e mais do que alguma vez sonhara; era todos os seus desejos condensados num único. Havia cânticos de Natal a serem tocados através do sistema sonoro do centro comercial — nesse instante eram o Sil- ver Bells — recordando-lhe que não possuía nenhuma aparelhagem estere-ofónica, e muito menos um CD de canções de Natal. Pior ainda, estivera tão concentrado no trabalho que ainda não arranjara uma prenda para Laura, ou sequer pensara no que ela poderia gostar.

Não gostou da imagem dele próprio que se lhe estava a formar na mente. Tornara-se num Scrooge dos tempos modernos, quase mecânico na forma como vivia a sua vida. Decerto que o seu trabalho era importante, e era óptimo ser-se-lhe dedicado, mas não à custa da exclusão de tudo o resto. Havia magia de Natal no ar. Em breve iriam celebrar o nascimento de Cristo. Era uma ocasião esplendorosa, uma época do ano que ele não queria mais voltar a ignorar.

—Há mesmo um Pai Natal — assegurou ele a Laura. — Se acreditares nele, é tão real quanto nós o somos. Basta que continues a repetir para ti mesma que há um Pai Natal.

Ela riu-se, fechou os olhos com força e disse:—Estou a formular o meu desejo de Natal...—O que é que pediste? — perguntou-lhe ele, quando ela abriu as pálpebras

pestanudas.—Não te posso dizer. Se o fizer, não se realiza...

No extremo oposto da cena do Pólo Norte, depararam com uma árvore de Natal para os pobres, decorada com envelopes. No topo da árvore, uma estrela de papel ostentava a mensagem ESCOLHA UMA FAMÍLIA. Normalmente, Isaiah passava por essas coisas sem lhes ligar minimamente. Já tinha família que chegasse para comprar presentes de Natal. Mas nessa noite não conseguiu passar sem parar. Ele tinha tanto, enquanto outros tinham tão pouco ou mesmo nada.

—Vamos dar um bom Natal a uma família pobre — sugeriu ele.Laura pareceu hesitante.—Não sei se tenho dinheiro suficiente. Quando pago com o meu cartão de

crédito, a senhora do banco diz-me quanto é que ainda me resta. Mas estamos quase no fim do mês, e portanto há algum tempo que ela não me diz nada.

Isaiah não conseguia imaginar como seria nunca saber ao certo quanto dinheiro gastara ou quanto lhe restava na conta.

—Eu pago tudo — garantiu-lhe ele. — Sou abençoado com os recursos suficientes para poder fazê-lo e nem sequer dar pela despesa. — Isaiah pegou nela pelos ombros e voltou-a para a árvore. — Vá, fecha os olhos e tira um envelope.

A mão tacteante de Laura pousou sobre um envelope vermelho que continha a descrição física de cinco pessoas, uma mãe e quatro crianças de diversas idades. Havia três raparigas, com seis, nove e onze anos, e um rapaz

de catorze. Cada uma das crianças escrevera uma lista com o que desejavam para o Natal, todas compostas de pedidos bastante modestos e alguns de índole tristemente prática, tais como botas para neve e luvas com isolamento térmico. Embora fossem fornecidas as medidas para o vestuário da mãe, ela apenas pedia cinco refeições prontas de peru, congeladas, uma lata de molho de arando, um pacote de pão e uma tarte de abóbora congelada.

—Oh, Isaiah — murmurou Laura com voz trémula, ao ler as listas em voz alta. — Eles não vão ter uma ceia de Natal...

—Oh, vão ter, vais ver — disse Isaiah, inclinando-se para a beijar, ali mesmo, à frente de Deus e de toda a gente. A boca dela encontrou-se com a dele, fremente. O sabor dela era tão quente e doce quanto o vinho generoso que ela preparara para a pequena cerimónia do enfeite da árvore de Natal, fazendo-o suspirar pelo lar e pela privacidade, de modo a poder fazer um trabalho de degustação mais completo. Não era possível. Afastou relutante-mente a cara da dela, sorrindo ao observar o ar deslumbrado e sonhador a desvanecer-se-lhe lentamente do olhar. — E essas crianças terão tudo o que pediram nas suas listas, e mais ainda. Vamos fazer de Pai Natal.

Isaiah pegou-lhe na mão.— Vamos, menina. Faz como um elfo. Estamos quase no Natal.A temida expedição para as compras de Natal veio a transformar-se num

dos serões mais maravilhosos da vida de Isaiah. Ele e Laura erraram pelas veredas de uma generosidade absurda ao fazerem compras para a sua família pobre, comprando um vestido, uma camisa de noite e um par de pantufas para a mãe, e tudo o que constava na lista das crianças, incluindo outras coisas — brinquedos, livros, material de belas-artes, equipamento desportivo e vestuário. Para assegurar a ceia, decidiram incluir um che- que-prenda de cem dólares de um supermercado local, de modo a que a mãe pudesse cozinhar uma verdadeira ceia de Natal com todos os acompanhamentos, ficando ainda a sobrar um pouco para comprarem guloseimas.

Para a sua irmã paraplégica, Bethany, encontraram um par de pantufas aquecidas a pilhas, para que ela pudesse manter os pés quentes nas frias noites de Inverno. Compraram uma lupa com uma luz acoplada, suspensa de um braço metálico articulado e ajustável que se fixava em quase todas as superfícies, para a mulher de Hank, Carly. Isaiah sabia que a sua cunhada passava todos os momentos livres a tentar treinar o seu córtex visual. Ser-lhe-ia muito mais fácil ler e folhear revistas com o auxílio de uma lupa.

A meio da sua ronda de compras, tanto Isaiah como Laura ficaram com fome. Entraram num restaurante de vinhos e queijos. Quando estavam sentados à mesa, Isaiah olhou por cima da chama da vela para a cara oval de Laura, pensando que ela era o melhor presente de Natal de todos. Contudo, ainda não fazia ideia do que lhe havia de comprar. Só sabia que lhe queria dar o mundo.

—Fazes ideia de quanto és maravilhosa? — perguntou-lhe ele.Ela meteu uma azeitona verde na boca e sorriu-lhe por entre o volume da

azeitona.—Não, mas és livre de mo dizeres.—És a coisa mais fabulosa que alguma vez me aconteceu na vida.Os olhos dela brilharam com lágrimas de alegria.—E tu és a melhor coisa que alguma vez aconteceu na minha...

—Amo-te tanto. Eu sempre detestei fazer compras de Natal, mas tu torna-las divertidas.

Ela serviu-se de outra azeitona do prato de couvert que estava entre eles.—Fico feliz. Fazer compras é como a maior parte das outras coisas.

Podemos achar isso uma estopada... ou transformá-lo numa arte.Isaiah nunca pensara nisso dessa forma, mas agora que ela o mencionava,

apercebeu-se de que ela abordava a maior parte das coisas dessa forma, entregando-se de coração a tudo o que fazia.

—És incrível, sabes? Não tens nenhuma lista de nomes, mas até agora ainda não te esqueceste de ninguém. Como é que consegues fazer isso?

—Posso ter problemas a ler e a escrever, Isaiah, mas a minha memória está óptima.

—Eu também tenho uma memória excelente, mas não sou organizado como tu. Por mais bolas que tenhas de equilibrar, pareces que nunca deixas cair uma. Trabalhas, tomas conta dos cachorrinhos, decoras e limpas a casa, lavas a roupa e ainda consegues ter um excelente jantar pronto todas as noites. Não sei como o consegues fazer. Acreditas que uma vez um cliente me tirou uma folha de amaciador de roupa que estava colada à parte de trás da minha camisa?

Ela riu-se com tanta vontade que teve de agarrar a barriga, fazendo-o pensar em como é que ela reagiria se ele lhe contasse da peúga que encon-trara pendurada na bainha das calças quando fora numa tarde ao banco. Quando o ataque de riso dela esmoreceu, ele estendeu o braço por sobre a mesa para lhe tocar na mão.

—Tu salvas vidas, Isaiah, não andas a fazer malabarismos com bolas. Esqueces-te de todas as coisas pequenas porque estás sempre preocupado com as grandes.

Ele suspirou.—É possível. Mas por vezes é frustrante. Farto-me de trabalhar, mas parece

que não consigo fazer mais nada como deve ser. Ir às compras, por exemplo — disse ele, voltando a mão para lhe apertar os dedos. — Obrigado por me ajudares a fazê-lo. Sinceramente não sei o que faria sem ti.

—Não te preocupes. Não tenciono deixar-te descobrir.

Capítulo Catorze

Ainda nevava quando Laura e Isaiah terminaram as compras de Natal e saíram do centro comercial.

—Salvaste-me a vida — disse-lhe Isaiah, ao saírem para o ar da noite. — Cheques-prenda de lojas especializadas. Já ofereci cheques destes, mas nunca de secções específicas de uma loja ou de lugares que só senhoras ou homens gostariam.

—Com tantas pessoas a presentear e tão pouco tempo, é um caso de «eles que escolham» — respondeu Laura, com uma gargalhada. — Seria mais simpático se pudéssemos escolher uma bonita prenda para cada pessoa, mas, não sendo possível, acho bem que deixemos que sejam eles a escolher, creio eu.

—Estou deliciado é por isto estar feito.Depois de arrumarem o resto das compras na traseira do Hummer, Laura

ergueu os braços e voltou a cara para o céu para apanhar flocos de neve na língua.

—Experimenta! — disse ela, com uma risada. — Nunca fizeste isto quando eras pequeno?

Isaiah sentiu-se idiota, mas achou que o decoro estava a ser demasiada-mente empolado e abriu a boca.

—Não há dois flocos iguais, sabes? — perguntou ela, pestanejando quando os pequenos mísseis brancos flutuantes lhe entravam nos olhos.

Isaiah baixou a cabeça para olhar para ela. Na luz suave de um candeeiro público próximo, ela parecia um anjo. Era decididamente única. Se ele tivesse de procurar durante todo um século, nunca encontraria outra pessoa exactamente como ela.

De regresso à clínica, Isaiah vasculhou um dos armazéns à procura de um canil metálico portátil. Isso consumiu-lhe quase uma hora, porque o objecto em causa estava atrás de uma pilha de caixas. Depois, tiveram de ir buscar os cachorrinhos e apresentá-los à sua nova cela.

—Eles daí não se escapam — disse Isaiah com uma gargalhada, quando viu um cachorrinho bater com o focinho contra a grade de arame. — Os teus dias de Houdini chegaram ao fim, Carquilhas.

—Quando eles crescerem, vão ter espaço suficiente ali dentro? — per-guntou Laura.

—Não, mas por agora serve — disse Isaiah, passando-lhe um braço em volta do pescoço e plantando-lhe um profundo beijo na boca macia. — Estou contente por ires para casa comigo. Tenho andado toda a noite a desejar meter as mãos por baixo desse anorak.

Os olhos dela quase que se fecharam.

—Prometes?Quando chegaram a casa, o Tristinho saiu disparado, passando por eles

como um pé-de-vento, na ânsia de ir para o exterior, quase fazendo com que Isaiah deixasse cair os pacotes que levava nos braços. Laura pousou no chão o canil de arame cheio de cachorrinhos e apressou-se a regressar ao Hummer, antecipando-se a Isaiah, para trazer outra braçada de presentes.

Quando todas as coisas foram trazidas para dentro de casa, ela sur-preendeu Isaiah ao correr para o exterior para brincar na neve com o Tristinho. Isaiah ficou a olhar para o monte de presentes que ainda tinham de ser embrulhados e pensou seriamente em começar a fazer isso de imediato. Mas o som do riso de Laura atraiu-o como um íman para o alpendre no exterior.

—Laura, já passa das nove. Não achas que já é tarde para andares a disparatar aqui fora?

Whop. Uma bola de neve atingiu-o em cheio na cara. Isaiah sacudiu a matéria branca da face e semicerrou os olhos.

— Já te disse que fui lançador dos Crystal Falls Comets durante quatro anos seguidos? — disse ele.

Ela afastou-se a dançar, desaparecendo na escuridão, e um momento depois uma outra bola de neve acertava no peito dele. Isaiah apercebeu-se de que estava em séria desvantagem, se continuasse de pé na luz. Saltou do alpendre, apanhou uma mão-cheia de neve e saltou no encalço dela.

—Se queres guerra, menina, vais ter guerra!Ela riu-se e deitou-lhe a língua de fora. Isaiah atirou a bola num lance

perfeito, atingindo-a na cara com uma bola de neve mal compactada. Ela cuspilhou, e lançou-se num mergulho em direcção a um montículo de neve para arranjar mais munições.

Meia hora depois, estavam ambos encharcados com neve derretida, e o Tristinho estava exausto de correr de um lado para o outro, tentando apanhar bolas que se lhe derretiam na boca. Isaiah sentou-se pesadamente nos degraus do alpendre, e Laura veio-se sentar ao lado dele. Ficaram juntos a olhar para a escuridão da noite e para os flocos de neve que tombavam lentamente.

— Isto é lindo — murmurou ele.—Sim — concordou ela, desviando o olhar por um momento. E depois pôs-

se de pé num salto. — Ainda não fizemos gelados de neve!—Estás a brincar! São quase dez horas.—Qual é o problema? Transformas-te numa abóbora à meia-noite?Ele pôs-se de pé e seguiu-a para dentro de casa. Ela já estava a tirar uma

tigela de uma prateleira.—Queres ir buscar a neve enquanto eu preparo as outras coisas?O que ele queria era fazer amor apaixonadamente com ela em cima da

mesa da cozinha. Mas uma olhadela aos olhos cor de avelã dela, que bailavam à luz fluorescente da cozinha, disse-lhe que o gelado de neve teria de vir primeiro. Assim, ele regressou à sala para ir buscar a aparelhagem portátil e os CD que comprara. Se iam fazer gelado, iriam ouvir canções de Natal enquanto trabalhavam.

Isaiah e Laura chegaram à clínica pouco antes das seis da manhã seguinte. Ao virar para o parque de estacionamento, o coração de Isaiah su-biu-lhe à garganta. Parecia haver luzes da polícia a voltear por todo o lado, criando um

efeito espiralado de azul e vermelho sobre a neve caída de fresco. Na escuridão que antecede a aurora, era uma visão assustadora.

—Oh, meu Deus! Aconteceu qualquer coisa! — exclamou Laura.Isaiah meteu o Hummer à bruta num lugar de estacionamento, colocou a

alavanca da caixa automática na posição de parqueamento e desligou a ignição. Ele e Laura saltaram do veículo quase em simultâneo. Quando chegaram à porta das traseiras, encontraram um agente da polícia a guardá-la.

—Desculpe, o senhor não pode entrar.Isaiah agarrou no braço de Laura. Mesmo através da manga do anorak, ele

conseguia senti-la a tremer.—O senhor sabe se os cães e os gatos estão bem? — perguntou ela com

voz sumida.—Os animais estão óptimos — assegurou-lhe o agente. — Estavam à

procura de drogas.—Drogas? — repetiu Isaiah, incrédulo. Era verdade que a clínica possuía

uma grande reserva de narcóticos. Praticamente todas as clínicas os tinham. Também sabia que não era raro as clínicas veterinárias serem assaltadas por toxicodependentes. Mas estavam em Crystal Falls, no meio do estado de Oregon, e não numa grande cidade. — Assaltaram a clínica à procura de drogas?

—Sim senhor. O senhor é um dos proprietários?— Isaiah Coulter. Eu e o meu irmão Tucker somos os proprietários da

clínica. Se alguém entrou nela por arrombamento, porque é que não fomos notificados pela empresa de segurança?

—O alarme não disparou — respondeu o polícia, tirando um bloco de notas da algibeira. — Coulter, não é? Diga-me outra vez o seu primeiro nome.

Isaiah deu a informação.—Como é que alguém pôde entrar no edifício sem fazer disparar o alarme?

— perguntou ele ao polícia.—Parece trabalho de alguém da clínica. O perpetrante utilizou um código

de segurança para desligar o sistema. Um dos seus empregados — respondeu o polícia, olhando para as suas notas —, uma senhora chamada Susan Strong, ligou para nós quando chegou aqui para abrir a clínica há uns minutos.

A polícia estava no interior à procura de impressões digitais, e passaram mais de trinta minutos até Isaiah e Laura poderem entrar no edifício. Quando Isaiah viu o armário dos estupefacientes, quase não conseguiu acreditar nos seus olhos. As fechaduras haviam sido rebentadas e as prateleiras estavam quase vazias.

—Raios! — murmurou ele para Laura. — Há alguém que vai ficar pe- drado por seis meses...

Laura estava a tremer, mesmo com o casaco vestido. Isaiah passou-lhe um braço pelos ombros e chegou-a para si.

—Não te preocupes, minha querida. O armário pode ser arranjado, e os medicamentos podem ser substituídos.

—A primeira coisa em que pensei foi nos cães — murmurou ela. — Que eles pudessem estar feridos.

—Eu sei, mas eles estão bem.

Por cima da cabeça de Laura, Isaiah viu um agente da polícia aparecer à porta do laboratório da farmácia. O homem olhou para Laura, tirou o boné e meteu-o debaixo do braço.

—Desculpe-me, Dr. Coulter?Isaiah afastou gentilmente Laura.—Sim?O homem olhou para o bloco que tinha na mão.—Tem uma mulher de nome Laura Townsend a trabalhar para si?Pela segunda vez, em menos de uma hora, o coração de Isaiah deu um

pulo.—Porque pergunta?—Acabámos de encontrar o automóvel dela no parque de estacionamento.

As drogas roubadas estão no porta-bagagens.Isaiah olhou para Laura. A cara dela ficara pálida como o leite.—Eu sou Laura Townsend — disse ela, com voz trémula.O agente olhou para ela espantado. Depois, semicerrou os olhos.—Pode-me então explicar como é que as substâncias de uso regula-

mentado foram parar à mala do seu carro, Menina Townsend?—Não.Isaiah deu um passo em frente para colocar Laura ligeiramente por detrás

dele.—Espere um pouco, com a breca! A Laura não esteve metida nisto. Sei que

não esteve. Ela esteve comigo toda a noite! — disse Isaiah, passando a relatar rapidamente os acontecimentos da tarde anterior. — Deixámos aqui o carro dela. Ela nem sequer tinha meio de transporte para regressar.

O polícia olhou para Laura. Depois, lançou um olhar penetrante a Isaiah.—Seria possível falarmos a sós, doutor?A irritação subiu dentro de Isaiah.—Não, raios, não é possível! Não tenho segredos para ela.—Deixa estar, Isaiah — disse Laura, tocando-lhe na mão. — Vou para os

canis.Laura estava assustada. Por um lado, sabia que era um disparate. As

pessoas não são presas por aquilo que não fizeram. Mas outra parte dela não tinha tanta certeza. As drogas foram encontradas na mala do seu carro. Não fazia a menor ideia de como terão lá ido parar. Mas não era essa a questão. A polícia lidava com factos, e naquele preciso momento todos os indícios apontavam directamente para ela.

Ela ocupou-se a trabalhar — a mudar cobertores, a encher malgas de comida e de água. Mesmo assim, era como se tivesse passado uma eternidade até que Isaiah aparecesse na coxia central. Bastou que Laura olhasse para ele para saber que estava metida em grandes sarilhos. Os olhos azuis dele esta-vam repletos de angústia. A sua boca firme cerrava-se numa linha soturna.

—Então? — disse ela, saindo de um canil para ir ao encontro dele. — Não me faças esperar; morro de angústia.

Ele pousou-lhe as mãos grandes sobre os ombros.—Antes de mais, Laura, quero que saibas que já contratei um advogado.—Um quê?—Um advogado — respondeu ele, inclinando a sua cabeça morena para

encostar a fronte à dela. — O roubo de estupefacientes é um crime grave.

O coração de Laura estava a bater com tanta força que parecia poder partir-lhe uma costela.

—Mas eu não fiz nada de mal!—Eu sei. E a polícia vai-se aperceber disso em breve — disse ele, aper-

tando-lhe os braços. — Ah, Laura... O código de segurança que usaram para entrar no edifício foi o teu.

Laura sentiu o sangue gelar-se-lhe nas veias.—Mas eu nem sequer o cheguei a escrever! E não disse a nin-guém os

meus números.—Mesmo assim, houve alguém que lhe deitou a mão. — Isaiah beijou-a na

fronte. — Eu tenho uma cópia dos códigos de toda a gente nos meus ficheiros. Assim como o Tucker. Ambos mantemos os nossos armários de arquivo fechados à chave. Mas é bem possível que um de nós não tenha sido suficientemente cuidadoso com as nossas chaves.

Laura cerrou os punhos sobre as mangas da camisa dele.—O... o que é que isto quer dizer, Isaiah? Não vais deixar que eles me

prendam, pois não? Sabes que não fui eu...—É claro que sei que não foste tu, querida. Mas um delito que envolva

substâncias de uso regulamentado, especialmente em grandes quantidades como estas, é considerado crime. De que tipo, não sei. Não me interesso muito por esse tipo de coisas. Só sei que está fora das minhas mãos. A coisa foi encontrada no teu porta-bagagens, pelo amor de Deus! Tresanda a armadilha, mas como é que alguém conseguiu abrir a mala do teu carro sem as chaves? Não há indícios de arrombamento.

Laura só conseguia abanar a cabeça.—Eu vou deslindar isto até ao fim, juro-te — prometeu-lhe ele. — E já

telefonei para o melhor advogado da cidade. O Zeke contratou-o há algum tempo. Ele parece um cadáver ressuscitado, mas é fino como um coral. Eles não te vão reter na prisão, prometo-te.

—Reter-me? — exclamou Laura, incrédula. O seu cérebro estava em curto-circuito. Mal conseguia apreender o sentido do que ele estava a dizer. — Oh, Isaiah... Não deixes que eles me prendam! Eu estava contigo; não tinha o carro. Tu sabes que não fui eu!

—Eu sei, Laura, mas eles não sabem. Eu disse-lhes que estiveste comigo, e eles perguntaram-me se eu estive acordado a noite toda e se podia jurar que nunca saíste de casa. Eu disse-lhes que estavas sem carro, e eles perguntaram-me se eu tinha a certeza absoluta de que não usaste o meu.

—Mas por que razão iria usar o teu e deixar as drogas no meu? Não faz sentido!

—Não, não faz, e, logo que os chuis tiverem oportunidade de passar isto a pente fino, estou certo de que se irão aperceber disso.

Um agente da polícia apareceu por detrás de Isaiah. Pigarreou.—Menina Townsend? — disse ele, com delicadeza. — Desculpe, mas vai ter

de vir comigo.Isaiah beijou-a de novo na fronte. Depois, afastou-se. Laura lançou-lhe um

olhar aflito.—Confia em mim — disse ele.E depois o polícia tirou um par de algemas do cinto. Ao colocá-las nos

pulsos de Laura, o homem leu-lhe os direitos.

Ser detida não era tão assustador quanto Laura esperava; não era nada parecido com o que ela via na televisão. Os agentes policiais foram correctos. Não lhe deram encontrões para que ela andasse, ou lhe puxaram os braços violentamente para cima, atrás das costas, para lhe causar dor. Embora estivesse algemada e sentada nos bancos traseiros de um carro-patrulha, por detrás de uma rede de arame forte, sentia-se quase como que a dar um passeio de domingo.

Uma vez na esquadra, a coisa tornou-se um pouco mais feia. Ela foi levada até junto de uma secretária e obrigada a sentar-se numa cadeira. O homem que a interrogou gostava de empregar acrónimos, e Laura não conseguia compreender metade do que ele dizia. Pior do que isso, ele perguntava basicamente as mesmas coisas vezes sem conta, o que constituía um sinal claro para Laura de que o homem não acreditava em nenhuma das suas respostas. Numa hora, Laura ficou entorpecida. Em duas, mal conseguia dizer o seu próprio nome.

—No que é que andas? — perguntou o homem.Laura não fazia a mínima ideia do que é que ele queria dizer.—Des-desculpe?—O que é que estás a tomar?Laura apercebeu-se de que ele pensava que ela estava sob a influência de

uma droga qualquer e desatou a rir. O sujeito não achou graça nenhuma. Quanto mais ele se irritava, mais engraçado aquilo parecia a Laura. Em breve, não conseguia parar de rir.

O advogado que Isaiah contratara chegou a tempo de salvar o dia. Era esquelético e velho, com um nome que não entrava na cabeça de Laura, mas sabia mexer os cordelinhos. Em poucas palavras, explicou a razão do falar sincopado de Laura, e o chui ultrapassou a irritação. Cerca de uma hora depois, Laura foi informada de que se podia ir embora. Ajudaram-na a levantar-se, as algemas foram-lhe retiradas dos pulsos e o advogado acompanhou-a até à saída.

Isaiah andava de um lado para o outro no átrio da esquadra, junto às portas de entrada. Quando viu Laura, veio a correr ao encontro dela. Ela estava demasiadamente entorpecida para fazer o que quer que fosse para além de se encostar a ele quando Isaiah lhe passou um braço em redor.

Os dois homens entabularam uma conversa por cima da cabeça dela ao saírem do edifício. Laura ouvia as palavras, mas o seu significado escapava- lhe. Fiança, acusações, crime, substâncias regulamentadas. Tudo o que ela desejava naquele momento era meter-se na cama, puxar os cobertores para cima da cabeça e não ouvir nada durante um bocado.

No passeio, Isaiah parou para apertar a mão do advogado.—Agradeço-lhe a sua resposta pronta.O advogado deu uma palmadinha no ombro de Laura.—A irmã do Sr. Coulter está casada com o Ryan Kendrick. Qualquer amigo

do clã Kendrick é meu amigo. Não se preocupe, Menina Townsend. Vamos resolver isto num instante.

Laura deixou Isaiah conduzi-la até ao Hummer. Ficou satisfeita quando ele a agarrou pela cintura e a içou para o assento. Sentia as pernas como se fossem esparguete cozido. Alguns minutos depois, ao conduzir através da cidade, ele estendeu o braço para lhe apertar a mão.

—Já reorganizámos o horário, querida. Os teus turnos estão cobertos até ver. Não tens de te preocupar com nada até isto ficar resolvido.

Laura pensou nos cães do canil. Iria sentir saudades por não estar com eles todos os dias.

—Ainda estou em sarilhos? — perguntou ela. Sabia que devia fazer perguntas mais específicas. Teria ele percebido como é que alguém lhe abrira a mala sem as chaves? Teria ele descoberto como é que alguém obtivera o seu código de segurança? Teria a polícia outros suspeitos? A saída dela teria sido sob fiança? E se fosse esse o caso, o que é que isso significava? Mas o seu cérebro ficara em sobrecarga. — Achas que é provável que eles ainda me venham buscar e meter na prisão?

—Espero bem que não — respondeu ele, olhando por um momento para ela. — Transferimos todas as emergências para outro colega veterinário, cancelámos todas as consultas e fechámos a clínica pelo resto do dia. — Isaiah olhou para o relógio e depois para o espelho retrovisor lateral. — O Tucker vai ter a minha casa dentro de uma hora. Vamos até ao fundo desta questão, Laura. Dou-te a minha palavra de honra.

Laura confiava em Isaiah Coulter mais do que em qualquer outra pessoa. Mas também compreendia que ele não conseguia tirar respostas de um chapéu, por artes mágicas. Em resumo, ela ainda estava em sérios apuros e, a não ser que algo acontecesse para lançar suspeitas sobre outra pessoa, havia toda a possibilidade de ela ir para a cadeia.

Curiosamente, a perspectiva não a aterrorizava por completo. Talvez não conseguisse falar muito bem sob tensão, mas isso não significava que ela fosse uma absoluta ignorante das leis. Um procurador tinha de provar a culpa. Quando este caso fosse a tribunal, qualquer advogado digno desse nome veria logo que havia nele buracos suficientemente grandes para acomodar um camião TIR. Ela estivera com Isaiah. Não dispunha do carro. Não tinha antecedentes criminais. As análises de sangue demonstrariam que ela nunca tomara drogas. Pelo final do dia, Laura sentiu-se confiante de que iria triunfar.

Só rezava para que não fosse forçada a triunfar a partir de uma cela de prisão.

Quando chegaram a casa, Laura deixou que Isaiah a mimasse. Estava bem fisicamente, mas o seu cérebro danificado precisava de descanso. Ele sentou-a na borda da cama e descalçou-lhe os sapatos. Depois, afastou os cobertores de modo a que ela se pudesse deitar. Alguns minutos depois, trouxe a aparelhagem portátil para junto dela, meteu um CD de Natal, regulou o aparelho para um volume baixo e calmante e serviu-lhe uma chávena de tisana de ervas a escaldar.

—Obrigada, Isaiah. Desculpa-me por ficar aparvalhada... Daqui a pouco já fico melhor.

Ele debruçou-se sobre ela para a beijar na face.—Vá, nada de pedidos de desculpa... Ser-se preso assusta como o raio.Ela lançou-lhe um olhar interrogativo.— Já foste preso?—Uma vez, na faculdade. As acusações não pegaram.Enquanto dava de mamar aos cachorrinhos, Isaiah fez-lhe o que ela

suspeitou ser um relato ligeiramente ficcionado do incidente.—Havia aquela espécie de grade a dividir a sala. De qualquer modo, dois

sujeitos que eu e o Tucker sabíamos que estavam bastante pedrados, sabe Deus porquê, decidiram destruir a treliça.

Laura sorveu um pouco da tisana.

—Não estavas metido nisso?—Claro que não — respondeu ele, dirigindo-se à pequena jaula para pegar

noutro cachorrinho. Ao sentar-se aos pés da cama, acrescentou — Nem o Tucker estava. O problema era o seguinte: quando temos mais de um metro e noventa, destacamo-nos na multidão. Estávamos perto dos gajos que armaram a barraca. Um de nós — não me lembro agora se fui eu ou o Tucker — tentou fazê-los parar. Do outro lado da sala, o grandalhão do barman pensou que tivéssemos sido nós a destruir aquilo. — Isaiah acabou de dar de mamar ao último cachorrinho. — Foi a única experiência que tive de ser acusado injustamente e algemado. Não é coisa que deseje repetir.

Laura estava a começar a sentir-se um pouco melhor e conseguiu esboçar um sorriso.

—Nem eu.—E não vais — garantiu-lhe ele. A campainha da porta tocou nesse preciso

momento. Ele estava agachado junto da jaula dos cachorrinhos e pôs-se de pé. — Aí está o Tucker. — Isaiah apontou um dedo a Laura. — Tu descansa. Percebido? Pelo menos uma hora. Deixa que o teu cérebro se desfragmente.

—Às suas ordens!Laura acabava de resvalar para o sono quando ouviu vozes exaltadas. O

seu primeiro pensamento foi o de que a polícia viera buscá-la. Isaiah pra-guejava. Por sobre a suave música natalícia, ele parecia estar muito trans-tornado. Por muito que agradasse a Laura o esforço que ele fazia para a defender, não queria que ele arranjasse problemas com a polícia.

Saltou da cama e atravessou o quarto descalça. Para sua surpresa, não estava ninguém na sala. Seguindo o som das vozes, ela avançou hesitante na direcção da cozinha. Ao contornar a grande lareira de pedra rústica que dividia a sala da casa de jantar, apercebeu-se de que afinal não era Isaiah quem estava a falar tão alto mas sim Tucker. Laura estacou. Um momento depois, constatou em primeira mão que o velho ditado era verdadeiro: os bisbilhoteiros nunca ouviam nada de bom acerca de si próprios.

—Estás doido, Isaiah? — perguntava Tucker num grito contido, cia ramente controlado para não ser ouvido para além do aposento. — Não me digas que pretendes mesmo casar com a sujeita. Sê esperto. Dá uma volta com ela, espera que a novidade se dissipe e depois dá-lhe com os pés.

—Tucker, fazes-me o favor de ao menos desta vez não te meteres nisto? Trata-se da minha vida. O que eu escolher fazer com ela é uma coisa que só a mim diz respeito.

—Não quando estás prestes a deitar fora o teu futuro. A Laura é querida. Serei a primeira pessoa a admili-lo. E é inegável que é bonita. Mas, pelo amor de Deus, Isaiah, usa a cabeça! Ela é uma desadaptada com lesões cerebrais que não consegue pronunciar palavras de três sílabas ou distribuir comida de cão sem fazer merda.

—Ela não fez merda com a comida de cão.—Será que te ouves? — perguntou Tucker, num tom mais calmo. — Eu não

quero mal à Laura. Sabes isso. Gosto mesmo muito dela. Mas ela não é mulher para ti.

—Desculpa, mas não é a mim que compete decidir isso?Laura levou uma mão à cintura, sentindo-se nauseada.—Agora tudo parece uma maravilha — retorquiu Tucker —, mas, se casares

com a sujeita, virá o dia em que te arrependerás até de a teres conhecido. Ela

é incapaz de te estimular intelectualmente, Isaiah. E de certeza que não está à altura de ser a tua ajudante na clínica.

Isaiah tentou atalhar com qualquer coisa, mas Tucker cortou-lhe a palavra.—Deixas-me acabar?Isaiah resmungou qualquer coisa, que Laura não conseguiu perceber. Mas

não tinha dificuldade em ouvir Tucker.—Se casares com ela e fores suficientemente estúpido para terem filhos —

despejou ele —, quem é que os irá ajudar na leitura, ou nos trabalhos de casa, de matemática, por exemplo? Vais ser tu, não tenhas dúvidas. A Laura nem sequer consegue escrever o raio de uma lista de mercearia. Vais ter de ganhar o pão e ainda cozê-lo.

—A Laura é uma cozinheira maravilhosa.—Bolas, sabes que não me estou a referir a isso! Se casares com alguém

como ela, terás de estar sempre a compensar todas as suas deficiências.—Nós vamos limando as arestas — disse Isaiah.—Arestas? Isaiah, tens um futuro brilhante como veterinário. Com a mulher

certa a teu lado, o céu é o limite. A Laura não é essa mulher. Quando o encanto se desvanecer, do que é que vais falar com ela? É mais que certo que não vais poder ter uma conversa intelectual com ela. Quando houver actos oficiais em que tenhas de estar presente, o que vais fazer? Vesti-la como uma bonequinha de porcelana e dizer-lhe para manter a boca fechada durante toda a noite?

Laura estremeceu.—Não estou propriamente a tentar subir numa carreira executiva... —

contrapôs Isaiah.—Pois, isso dizes tu, e por enquanto é verdade. Mas se decidires mais tarde

enveredar pelo campo da investigação ou dar aulas na universidade? Queres ter uma amostra das teias negras da política, mano? Visita qualquer universidade ou centro de investigação científica do país. Uma esposa linda, inteligente, bem-sucedida e que saiba comportar-se socialmente é um trunfo valioso nesse universo e, acredita-me, a Laura nunca o será.

Laura sentiu como se o seu coração estivesse a partir-se. Oh, Deus. Quando era mais nova, diria que «as palavras insultuosas escorregam sobre a carapaça da minha indiferença», ou qualquer outra coisa do género. Mas não era verdade. As palavras podem infligir feridas mais profundas do que as da carne. O pior é que ela não podia rebater nada do que Tucker dissera. Ela era na verdade uma desadaptada com lesões cerebrais, uma mulher que estava condenada a limpar retretes e a passear cães para sobreviver, até ter encontrado Isaiah.

E o resto era também verdade. Isaiah tinha um futuro brilhante à sua frente, e precisava de uma mulher inteligente e encantadora que o pudesse complementar e ajudá-lo a atingir todos os seus objectivos. Laura recordava-se da noite em que ele falara com ela acerca do chesapeake com uma doença auto-imune, e da forma respeitosa como se referira ao seu colega que devotara a sua carreira à investigação. Isaiah não lhe dissera que desejava seguir os passos desse colega mas, em retrospectiva, quando se recordou do olhar dele, Laura soube que a aspiração estava lá. Ela simplesmente não a vira, talvez porque não a quisesse ver.

Receosa de que Isaiah ou Tucker se virassem e a vissem na sala de jantar, Laura retirou-se para o seu quarto e fechou silenciosamente a porta. Sem

lágrimas para verter, sentou-se na beira da cama e ficou de olhos fixos no chão com olhar vazio. Antes do seu acidente, ela poderia ter sido a mulher de que Isaiah precisava. Mas, com toda a honestidade, sabia que agora já não era capaz disso. Ela amava-o, sim, e desejava de todo o coração poder ter mais para lhe oferecer. Mas não tinha.

Isaiah casaria com ela. Laura sabia isso. Ele era um homem meigo, atencioso e maravilhoso, e no seu íntimo achava que ambos poderiam fazer com que um casamento desse certo. Mas a que custo para ele? Ela não queria ser uma âncora que o retivesse e impedisse de realizar os seus sonhos.

Por vezes, uma mulher tinha de amar suficientemente um homem para se afastar.

Isaiah recusava-se a deixar-se irritar por Tucker. Sabia que o seu irmão estava bem-intencionado. Do ponto de vista de Tucker, Isaiah estaria a co-meter um erro desastroso se se casasse com Laura. Sem o véu da paixão a toldar-lhe a mente, ele estava a tentar fazer com que Isaiah visse isso.

—Muito bem — disse Isaiah num tom calmo. — Já te deixei dizer o que tinhas a dizer. Deixas-me agora falar?

Tucker fez um gesto largo com a mão e encostou a anca contra o balcão.—Claro.Isaiah colocou-se frente ao irmão, com as ancas encostadas à ilha da

cozinha.—Eu amo a Laura Townsend.— Isso é a tua pila a falar.—Porque é que não te calas e ouves? Durante toda a minha vida, toda a

gente me incitou a parar e a cheirar as malditas rosas. «Não leves a vida tão a sério, Isaiah!» «Tira o nariz desse livro, Isaiah.» «Precisas de arranjar uma esposa, Isaiah.» Patati, patata... Só que tanto eu como a minha pila nunca encontrámos uma mulher com quem ambos quiséssemos estar.

Tucker puxou a orelha.—Muito bem, estou-te a ouvir.—Não, não me ouves. Nunca estiveste apaixonado. É como se eu estivesse

a falar em grego — ripostou Isaiah, acenando com a mão na direcção da sala. — Aquela rapariga ali mudou toda a minha vida. O sexo é óptimo. Não o nego. Mas só descobri isso há bem pouco tempo e, por mais maravilhosos que sejam os aspectos físicos, não é isso que eu adoro nela. Nunca se tratou disso.

—Então do que é que se trata?—Trata-se de ver os flocos de neve a cair, raios! Trata-se de me sentar

junto à lareira à noite com ela, a ler-lhe um romance, em vez de me debruçar sobre um calhamaço de medicina. Trata-se de ter alguém que me ouve. Dizes que a Laura não consegue ter uma conversa intelectual comigo? Enganas-te. A inteligência dela não foi afectada pela afasia. Ela é provavelmente mais inteligente do que tu. E isso sem mencionar o facto de que o grau académico dela é igual ao teu. Não me interessa se ela fala comigo empregando palavras de duas sílabas. É o que ela tem a dizer que conta.

Tucker aquiesceu com a cabeça, a fronte franzida e pensativa.—Trata-se de eu arranjar um cachorrinho meu, e tê-lo a receber-me à porta

com alegria todas as noites, como se eu fosse o sol e a lua. Trata-se de me rir até que me doam as costas. Trata-se de ter uma vida, Tucker, uma vida separada da do meu trabalho, que seja realmente importante para mim e que me faça sentir realizado. Trata-se de ter alguém aqui que faça com que vir

para casa valha a pena. Quando aquela rapariga que ali está sorri, sinto-me como se o sol tivesse irrompido das nuvens num dia encoberto.

Tucker vagueou em redor da mesa e deixou-se cair numa cadeira.—Merda.—É isso mesmo, merda. Pensei que tivesses vindo aqui para me ajudares a

destrinçar um pouco a confusão da clínica. Em vez disso, disparas-me com as minhas opções de vida. Como se as tuas fossem estupendas. Só és três minutos mais velho do que eu. Creio conhecer bem a minha própria mente. — Isaiah fez um gesto na direcção da sala. — Se ela te ouviu; se tu a fizeste chorar; arranco-te cada uma das lágrimas que ela verter do teu maldito couro!

—Desculpa — disse Tucker, de nau humor. — Não fazia ideia de que a amavas assim tanto, ou que ela te faria tão feliz. — Passou uma mão sobre a cara. — Talvez ela seja tudo quanto precisas numa mulher, afinal.

—Ámen — concluiu Isaiah, laiçando ao irmão um olhar ígneo. — Agora, a não ser que queiras que a tua futura cunhada passe um tempo na prisa, é melhor que dediques a tua cabeça a outras preocupações. A Laura esteve comigo a noite passada, na minha cama, nos meus braços. Dormi um bocado, é verdade, mas sei que elanunca saiu do pé de mim. Há alguém na clínica a tentar tramá-la. Precisamos de descobrir quem é esse estupor e como é que conseguiu fazer aquilo.

Uma hora e meia depois, Isaiah encontrava-se sentado à mesa da cozinha, debruçado sobre uma lista. Possibilidades. Tanto ele como Tucker deram voltas à cabeça, tentando des:obrir suspeitos, qualquer pessoa da clínica que pudesse querer ver-se livn de Laura, por qualquer motivo. Até ali, o James era o candidato mais provável que tinham. Mas os instintos de Isaiah diziam-lhe para procurar noutro lado. Segundo Laura, o rapaz era inofensivo. E Isaiah precisava de coníar nos seus instintos.

Isaiah estava outra vez a rever alista de empregados quando alguém tocou à campainha da porta. Ele não estava à espera de ninguém. Perguntou a si mesmo se o Tucker teria voltado itrás. Quando passou pela sala, Laura saiu do quarto. Ele pensara que ela es:ava a dormir, e portanto grande foi a sua surpresa quando viu que ela estava com o anorak vestido.

—Vais a algum lado? — perguntou-lhe ele, a rir.—Sim — respondeu ela, com voz abafada. — É a minha avó. Liguei-lhe para

que me viesse buscar.Foi então que Isaiah reparou nasacola dela colocada junto à porta do

quarto. Sentiu um aperto no estômago. Os olhos dela. Nunca vira tal dor. O Tucker. Isaiah compreendeu nesse momento que Laura ouvira a conversa deles.

—Laura, por favor não ligues ao meu irmão. Ele disse o que tinha a dizer. Eu esclareci-o. Agora está tudo resolvido.

Evitando o olhar dele, ela passoi por Isaiah para atender à porta. Etta estava no alpendre. Parecia muito bela para uma mulher da sua idade, elegantemente vestida com um casaco castanho de camurça sobre um fato caqui, o cabelo prateado enrolado numa pilha de caracóis no cimo da cabeça. Lançou a Isaiah um olhar triste e depois sorriu para a sua neta.

—Olá, querida — disse ela, enquanto dava um abraço a Laura. — Vim o mais depressa que pude...

Isaiah avançou até junto das duas mulheres.

—Etta, isto é tudo um grande mal-entendido — disse ele, dando a Laura um olhar significativo. — Só precisamos de esclarecer o assunto... Como dois adultos.

Laura não mordeu o isco. Com efeito, Isaiah teve a terrível sensação de que ela nem sequer o ouvira.

—Deixa-me só ir buscar as minhas coisas, avó. É um minuto.Fiel à sua palavra, Laura regressou passados alguns segundos, com a alça

da carteira passada por cima do ombro, uma trouxa de roupa debaixo de um dos braços e a sacola na outra mão. Antes de sair para o alpendre com a sua avó, ela virou-se para Isaiah.

—Liguei à Trish. Ela diz que vem cá buscar os cachorrinhos. Dentro de duas semanas, estarão prontos para seguir, e agora já não precisam de ser alimentados com tanta frequência. E ela pode ficar com o dinheiro que eles renderem.

A boca de Isaiah ficara tão seca como o pó da estrada. Ela queria mesmo deixá-lo.

—E o Carquilhas?O Tristinho saltou para o alpendre, soltando um latido de satisfação. Laura

nem sequer olhou para o cachorrinho.—As coisas mudaram. Afinal, já não posso ficar com o Carquilhas. Tenho a

certeza de que a Trish encontrará um bom lar para ele.—Laura — chamou Isaiah, seguindo-a até ao alpendre. Lançou um olhar

implorativo a Etta, o que fez com que a senhora se apressasse a descer os degraus em direcção ao carro, que ela deixara com o motor a trabalhar no acesso circular. — Não me faças isto, por favor, Laura. Eu amo-te.

Ela encolheu os ombros e tentou sorrir.— Isso passa...—Não, raios, não passa nada! O Tucker é uma besta. Não deixes que o que

ele disse arruine tudo entre nós.Um brilho nos olhos dela revelou a Isaiah que Laura estava a conter as

lágrimas. Queria tomá-la nos braços, mas tinha um tremendo pressentimento de que ela o repeliria se ele o tentasse. Se o seu pai lhe ensinara alguma coisa foi a de nunca utilizar a força contra uma mulher. A única solução para aquele problema era sentarem-se os dois e conversarem.

— Isto nunca iria resultar — disse ela, com voz trémula. — Estou contente por ter acabado assim. Ainda podemos ser amigos. Nenhum de nós está zangado com o outro. É uma boa altura para eu me ir embora.

—E eu devo deixar-te ir, assim, sem mais nem menos? Não me parece.—A decisão é minha — respondeu ela, pestanejando para sacudir as

lágrimas que lhe turvavam a vista, olhando-o depois nos olhos com uma fir-meza que lhe revelou que ela o dizia com toda a convicção. — Não telefones. Não apareças. Acabou.

—E eu não tenho uma palavra a dizer no assunto?—Não.Ela voltou-se e desceu apressadamente os degraus. Na adolescência, Isaiah

tivera alguns desgostos de amor. Na altura, pensava que era o fim do mundo, pelo menos do dele. Agora apercebia-se de que não sabia o que era uma dor a sério.

Vieram-lhe lágrimas aos olhos. Isso enfureceu-o. Nunca iria rastejar atrás de uma mulher. Se ela estava disposta a deitar tudo a perder por causa de alguns comentários tresloucados feitos pelo seu irmão, não seria certamente ele que lhe iria implorar para ficar.

—Então, óptimo! — gritou ele. — Queres-te ir embora? Vai! Mas não te iludas, querida. Não vou ficar aqui a remoer o passado, à espera que a tua cabeça assente! Não és a única mulher à face da Terra!

Ela nunca olhou para trás. Limitou-se a atirar as coisas dela para dentro do carro da avó, entrou nele e fechou a porta com força. O Chrysler rolou sobre a neve gelada até à estrada. Isaiah ficou a ver os farolins traseiros a afastarem-se, com os olhos a arder. Quando o carro branco desapareceu da sua vista, sentou-se pesadamente, atordoado, nos degraus. O Tristinho rastejou até ficar com metade do corpo sobre o colo dele e choramingou, quase como se pressentisse que havia algo de horrivelmente errado.

Isaiah pegou no Tristinho, enterrou a cara no pêlo do cãozinho e chorou como uma criança.

Capítulo Quinze

—Fica esta noite em minha casa — disse Etta, em tom persuasivo, ao entrarem na cidade.

Laura só queria ir para casa para poder chorar à vontade sem audiência.—Não, obrigada, avó. Preciso de estar sozinha por um bocado.—Tretas! — disse Etta, não virando para a rua do apartamento de Laura. —

Não tens comida em casa.—Tenho coisas no congelador — replicou Laura, não conseguindo imaginar-

se a comer o que quer que fosse. — Vou às compras logo de manhã, para trazer leite e ovos.

—Sim, talvez vás. Mas esta noite vais fazer a vontade à velhota. Quero falar contigo.

Laura pressentiu o que aí vinha.—Se estás à espera de me convenceres de que isto é um erro, poupa as

palavras.Quando chegaram a casa da avó, Etta fez com que Laura se sentasse numa

cadeira, à mesa da cozinha, fez um bule de chá e colocou bolachas num prato.—Sentir-te-ás melhor com um pouco de comida no estômago — insistiu ela.Laura mordiscou obedientemente uma bolacha. Normalmente, ela adorava

as bolachas e os biscoitos caseiros da avó, mas naquele momento as suas papilas gustativas pareciam estar anestesiadas.

—Ora bem — disse Etta, agarrando a sua requintada chávena com friso de rosas nas mãos nodosas —, fala comigo. Estavas feliz como tudo, e agora sentes-te desfeita. Tem de haver uma razão.

O telemóvel de Laura tocou nesse preciso momento. Ela procurou na carteira, encontrou o aparelho e olhou com ar sombrio para o balão que estava no ecrã.

— Isaiah? — perguntou-lhe a avó quando Laura deixou cair o telefone para dentro da carteira sem atender.

—Não quero falar com ele — respondeu Laura. Receava poder perder a sua determinação se o fizesse. — É melhor assim. Rápido e limpo.

Etta suspirou e bebeu um gole de chá.—Deves ter razão. Homens. No fim, são todos uns canalhas.Laura não conseguia acreditar que a sua avó tivesse dito uma coisa

daquelas.—O Isaiah não é um canalha.Etta pousou a chávena no pires.

—Bem — admitiu ela —, há algumas excepções. O meu Jim era uma delas. — Olhou para Laura de soslaio. — E talvez o teu Isaiah também seja. Se assim é, porque é que o estás a deixar?

Laura contou-lhe a conversa que ouvira entre Isaiah e o irmão.—O Tucker tinha montes de razão nalguns aspectos.—Tais como?Laura sentiu um aperto na garganta.—Não posso estar à vontade em jantares de cerimónia ou de recolha de

fundos, avó. O Isaiah pode querer um dia dar aulas na universidade, ou fazer investigação. Vai precisar de subsídios para isso. É tudo um jogo poli-tico, e só os melhores jogadores conseguem o que querem. Tem de se falar e actuar.

Etta aquiesceu.— Imagino que sim. Mas quem diz que não podes? És uma pessoa adorável,

Laura.—Não consigo falar muito bem.—Neste momento estás a falar lindamente. Devagar, é certo, com uma

pequena hesitação entre cada palavra, mas que mal se nota.Laura recordou-se da pergunta inocente de Rosie: Tens um problema na

fala? Os familiares de Laura gostavam dela. Ela sentia-se feliz por isso, e agradecida. Mas eles desculpavam-lhe muita coisa que as outras pessoas não estariam dispostas ou não podiam deixar passar.

—Eu não quero ser um estorvo para o Isaiah — disse Laura, indo ao encontro do olhar da avó. — Diz-me que não o vou ser, avó. Diz-me que vou conseguir ombrear com as mulheres de professores em grandes uni-ver-sidades im-portantes onde a po-lítica é a chave de tudo. Diz-me isso, e telefono logo ao Isaiah a dizer-lhe que me enganei.

Etta ficou sentada durante um longo momento, a olhar para Laura. Depois, os seus olhos húmidos encheram-se de lágrimas e ela abanou a cabeça.

Era essa a resposta de que Laura precisava.Laura telefonou aos pais. Foi o seu pai quem atendeu. Debatendo-se para

manter a voz estável, Laura disse:—Olá, papá...—Laurinha? Como é que está a minha menina?Laura sorriu por entre lágrimas, contente por ouvir a voz funda do pai.— Já estive melhor.—Oh, oh. Isso não me soa bem. Correu alguma coisa mal com o emprego?Tão brevemente quanto possível, Laura contou ao pai tudo o que acon-

tecera. Mike Townsend ficou calado por um momento quando Laura parou de falar.

—Se ele te ama, Laura, não vai dar importância a nenhuma dessas tricas da universidade ou da investigação.

Mas aquilo tinha importância para Laura, e ela receava que um dia também viesse a ter grande importância para Isaiah.

—Não foi bem por isso que eu telefonei. Estou com um problema, como lhe disse. Podias mandar-me algum dinheiro para eu pagar a um advogado? Eu devolvo-to. Só que não posso neste preciso momento.

—De quanto é que precisas? — perguntou Mike.Laura suspirou.—Não sei. Uns dois mil dólares devem chegar por enquanto.

—Faço-te a transferência amanhã.Laura fechou os olhos com força.—Quando esta trapalhada se esclarecer, gostaria de me mudar para aí,

papá.—Para a Florida, queres tu dizer?—Devem precisar aí de imensas mulheres-a-dias — disse ela com um riso

trémulo. — Com todas essas mulheres reformadas que só pensam em boa vida e ir a festas.

—Precisam e muito — concordou o pai. — E também há imensos cães para passear.

—Estou farta de toda esta neve — mentiu Laura. — Aí em baixo, poderei aquecer-me um bocado ao sol. Talvez até tente voltar a nadar.

Laura não disse ao pai que havia outro motivo ponderoso pelo qual ela queria ir para a Florida. Estava a quase seis mil e quinhentos quilómetros de Isaiah Coulter. Ela não conseguia suportar a ideia de se cruzar com ele na cidade. Só o ver à distância partir-lhe-ia o coração. Era melhor efectuar uma ruptura completa e nunca mais olhar para trás.

—Sabes que gostaríamos muito de te ter connosco, queridinha.Laura pensou em todos os suplementos alimentares para o cérebro que a

sua mãe a iria obrigar a tomar e quase que se encolheu. Ela adorava os pais. Mas uma distânciazinha como zona tampão era sempre muito agradável.

Isaiah mal conseguiu dormir nessa noite. Apesar de Trish ter vindo a sua casa para recolher os cachorrinhos, ele continuava a acordar de três em três horas, em ponto, e ali ficava deitado, a ouvir o silêncio. Tentara telefonar a Laura por diversas vezes antes de se deitar. Ela não lhe estava a atender as chamadas.

Na manhã seguinte, estava com os olhos inchados e exausto quando chegou à clínica, às seis da manhã. Susan já a abrira, o que era normal num dia de semana. Isaiah grunhiu-lhe um «bom-dia» ao passar por ela nos canis. Quando entrou no bloco operatório, espantou-se por ver Belinda.

—Chegou aqui muito cedo — disse ele, enquanto pendurava o casaco num cabide e tirava o seu novo chapéu Stetson.

—Pensei em vir mais cedo para me certificar de que estava tudo em ordem para arrancar — disse ela. — Afinal, os roubos não acontecem todos os dias.

Isaiah foi até ao lavatório para lavar as mãos. Depois, consultou as mar-cações na sua agenda. O mundo não parara de girar. Tinha três operações marcadas para o final da manhã, uma tarde que estava cheia de marcações de consultas e outras duas operações para o fim da tarde. Foi ver o cão-guia. O pastor alemão parecia desperto e alegre por o ver.

—Viva, compincha! — disse Isaiah, ao agachar-se para examinar as gengivas do cão. — Está com bom aspecto — comentou ele, tentando mostrar-se alegre, como era seu hábito, mas de algum modo não conseguiu esboçar um sorriso convincente. Sentia tanto a falta de Laura! Tinham passado pouco mais de doze horas desde que ele a vira, mas sentia como se não a visse há um ano. — Vais ter alta em breve, rapazola.

O pastor alemão ganiu e tocou com o focinho na mão de Isaiah, a pedir festas. Isaiah acedeu por um momento e depois pôs-se de pé. Indepen-dentemente do que acontecera na sua vida pessoal, ele tinha um trabalho a executar. A primeira coisa que fazia todas as manhãs na clínica era dar um giro pelos canis para ver os seus pacientes. Não podia negligenciar as suas

responsabilidades só porque as coisas não lhe estavam a correr bem na sua vida privada. Aqueles animais dependiam dele.

—Quais são as novidades da Laura? — perguntou Belinda.—Ainda não tenho notícias.Belinda encostou o ombro às jaulas, tão próxima dele que as costas do

pulso de Isaiah roçaram-lhe o seio quando ele estendeu o braço para examinar um gato que fora castrado e ao qual tinham sido tiradas as garras dois dias antes.

—Este bichano deveria ter ido para casa ontem — observou Isaiah.Belinda agarrou-lhe o pulso e levou-o de novo contra o peito.—Mmm... Isso soube bem.Isaiah já fora apanhado de surpresa algumas vezes, mas o comportamento

dela atingiu-o como se tivesse levado um encontrão. Ao fechar a jaula, Isaiah tentou retirar o braço. Belinda tombou sobre ele como se Isaiah a tivesse puxado para si. Os seios dela esmagaram-se contra o peito dele. Ela girou as ancas sedutoramente contra a pélvis dele. Isaiah ficou a olhar estupidamente para os olhos castanhos dela a perguntar a si mesmo que raio fizera ele para ter desencadeado aquilo.

—A Laura não está cá. Eu estou — disse ela, com voz rouca. — Com toda a probabilidade, ela vai parar à cadeia. Por roubo e posse de droga. — Belinda fez estalar a língua. — Coisa grave, essa. E crime, não é? Se tencionas casar com ela, vais ter de esperar muito tempo — continuou ela, pressionando de novo as ancas contra ele. — Um homem tem necessidades. Adorava cuidar das tuas.

O corpo de Isaiah não estava ligado ao cérebro. Quando ela se esfregou por ele, aconteceram coisas. Não se tratava de desejo. Não se tratava de emoção. Raios, ele acordou com uma erecção quando precisava de urinar.

—Belinda, eu...—Falas demais — sussurrou-lhe ela.Antes que Isaiah adivinhasse o que ela tencionava fazer, Belinda lançou-lhe

os braços em volta do pescoço. No instante seguinte, a língua dela estava na sua boca. Tentou afastá-la dele. Ela agarrava-se como uma sanguessuga. Por fim, Isaiah conseguiu virar a cara para um dos lados.

— Isto não está a acontecer — resmungou ele.Ela esfregou os seios contra ele.—Tu desejas-me. Sinto-o! Estás duro como uma rocha e a pulsar de desejo

por mim.Ele estava com uma semi-erecção, uma reacção puramente anatómica a

um estímulo não solicitado.—Não, Belinda, desculpa... — disse-lhe ele. Desprendeu-lhe os braços e

afastou-a dele com firmeza. — És uma mulher bonita, mas...Ela vestia uma camisola de malha justa, com fecho éclair. Levou a mão à

lingueta. Com um puxão súbito para baixo, pôs os seios à mostra. Não trazia soutien. A brincar com os mamilos para os endurecer, sorriu e disse:

— Imagina a tua boca sobre eles, Isaiah. Imagina enterrares-te em mim. Já estou excitada... e molhada. Podíamos fazê-lo em cima da marquesa, ou sobre uma das caixas num dos armazéns.

Ele não conseguia acreditar que aquilo estava a acontecer.—Veste-te. A Susan pode entrar.

—Pensas que ela nunca viu duas pessoas a fazer amor? — disse ela, revirando os olhos. — Hum, se calhar não. Ela é um autêntico calhau.

Isaiah afastou-se.—Fecha a camisola. Não estou interessado.Silêncio. Isaiah dirigiu-se ao balcão. Tinha as mãos a tremer quando passou

revista às fichas dos pacientes para actualizar as suas notas. Mas não conseguia perceber o sentido do que nelas estava escrito.

—Seu filho da puta! — gritou ela. — És um impotente, uma merda de homem!

A pulsar de desejo por ela num segundo e impotente no seguinte? Aquilo era interessante. Isaiah atirou com a caneta e voltou-se para a encarar.

De faces rubras e a tremer de raiva, ela apontou o queixo para ele.—Eu amo-te! — gritou ela, e a declaração desapaixonada agitou-lhe os

seios. — Eu é que sou a pessoa certa para ti! Não percebes? Mas ignoras-me e vais a correr de língua de fora atrás dessa zeladora de canil estúpida e atrasada mental!

A mente de Isaiah gelou quando compreendeu.—Oh, meu Deus — murmurou ele. — Afinal foste tu.Belinda atravessou furiosa a sala, cerrou o punho e ergueu-o. Isaiah

apanhou-lhe ambos os pulsos um momento antes de ela lhe dar com o punho na boca.

—Foste sempre tu — disse ele, ainda incrédulo. — Imaginaste que pudéssemos ficar juntos. Quando a Laura apareceu, ficaste com ciúmes e começaste a tentar livrar-te dela.

Belinda lançou a cabeça para trás e cuspiu-lhe na cara. Isaiah pestanejou. Nunca na vida se sentira tão tentado a bater numa mulher. Mas esse não era a forma de agir dos Coulter, e ele não estava disposto a comprometer os seus princípios com sujeitas daquela laia.

—Roubaste as drogas e colocaste-as no carro da Laura — acusou-a ele. — Conseguiste deitar a mão ao código de segurança dela. Tudo o que te interessava era correr com ela daqui.

—Prova-o, cretino!Ela libertou com um safanão os pulsos e correu para sair da sala, com os

seios nus a oscilarem. Isaiah foi-lhe na peugada.—Mais devagar, menina! Tens de responder a algumas perguntas e

esclarecer uma questãozinha com a polícia.—Vai-te foder!Isaiah seguiu-a pelo corredor. Estava tentado em a agarrar pelo braço mas,

se o fizesse, ela iria decerto debater-se. Era uma mulher bem constituída. Sendo homem, ele estava em desvantagem porque não podia ripostar. Pensou que provavelmente a poderia dominar, mas havia o risco de a magoar. O melhor seria deixar a polícia lidar com ela.

Chegaram ao átrio de entrada. Val, a única empregada de escritório que chegava cedo, estava de pé junto do fax. Voltou-se quando Belinda contornou o balcão da recepção e entrou no espaço das recepcionistas. Belinda rompeu prontamente em lágrimas, o que tomou Isaiah totalmente de surpresa.

—Ajuda-me! — gritou ela, agachando-se atrás de Val como que a procurar protecção. — Oh, meu Deus, Val! Não o deixes chegar ao pé de mim! Ele ten-tentou vio-violar-me! Estávamos no bloco ope-operatório, e, de re-repente, ele saltou-me em ci-cima! Olha, olha para ele! Ainda se lhe vê a erecção!

Isaiah quase que levou uma mão à virilha para a tapar. Oh, merda! Seria a sua palavra contra a dela. Quem é que iria acreditar nele?

Val olhou longamente para Isaiah. Depois, passou o olhar pelos seios nus de Belinda.

—Tretas! — disse a gestora de recursos. — Estou cá desde que esta clínica abriu. Já passaram por aqui muitas raparigas bem bonitas, querida. E nenhuma delas teve qualquer problema.

—Mas aconteceu! — gritou Belinda.—Só se tivesse sido em sonhos...Belinda emitiu um som gutural e animalesco com a garganta, e, no instante

seguinte, a máquina de fax foi-se espatifar no chão.—Ei! — gritou Isaiah quando a mulher enlouquecida se dirigiu para os

ficheiros da clínica. — Pára com isso, Belinda! Que raio estás tu a fazer? Isso é informação vital de centenas de animais!

Quando ele lhe agarrou o braço para a impedir de arrancar as pastas de arquivo das prateleiras e as atirar ao chão, ela voltou-se num ápice e atacou-o com punhos, unhas e dentes. Isaiah não lhe queria bater mas, bolas, estava tentado.

—Belinda, pára! — gritou-lhe ele.Ela continuava a debater-se. Isaiah apanhou com o punho direito dela num

olho, com o esquerdo no nariz. Os murros não o magoaram verdadeiramente mas, mesmo assim, Isaiah cruzou os braços sobre a cabeça e dobrou-se pela cintura para proteger a cara.

A mulher perdera a cabeça por completo. Isaiah nunca vira ninguém assim.—Val, chama a polícia! — pediu ele.Mas, em vez de correr para o telefone, Val aproximou-se e disse:—Belinda?Quando Belinda parou de bater em Isaiah o tempo suficiente para olhar por

cima do ombro, a longilínea gestora de recursos sorriu docemente e, de súbito, atingiu Belinda em cheio na cara com um punho fechado. A técnica caiu de joelhos como uma saca de cimento molhado.

—O meu nariz! O meu nariz! — gritava Belinda.Val estava pronta a bater-lhe de novo.—Ele não pode ripostar, sua vadiazeca traiçoeira, mas eu estou mais do

que disposta a fazê-lo! Queres bater-te num combate ou dois comigo, querida? Vá lá, alegra-me o dia!

Belinda debateu-se para se libertar. Isaiah já estava a lançar a mão ao telefone quando a técnica se conseguiu pôr de pé e saiu a correr do edifício. Val arrancou atrás dela, mas Isaiah agarrou-a pelo braço.

—Deixa-a ir — disse ele. — A polícia trata dela.Val suspirou e sacudiu o pó das mãos nas calças.—Que pena. Precisamente quando eu lhe estava a tomar o gosto!Uma hora depois, Isaiah estava sentado no seu gabinete com um agente da

polícia com ares de avô que lhe fizera dúzias de perguntas e tomara copiosas notas. Isaiah gostou do sujeito. Tinha cabelo grisalho, uma tez afogueada e inteligentes olhos azuis.

—Isto não é uma mera fixação — rematou Isaiah —, mas sim uma obsessão doentia. Nunca encorajei a Belinda. Ela é que meteu, sei lá como, na cabeça que nós tínhamos um futuro juntos.

—Acontece — disse o agente Keenan. — As pessoas pensam que são sempre os homens. Estão muito enganadas. — Fechou o bloco e meteu a ca-neta na algibeira. — As suas teorias acerca do roubo das drogas fazem sentido. Se o senhor e a Menina Townsend se esqueceram de trancar o carro dela na tarde de anteontem, quando estavam a tentar lidar com os cachorrinhos, terá sido fácil para a Menina Baxter entrar no veículo, accionar a alavanca para abrir a bagageira, colocar nela as drogas e depois trancar todas as portas. Quanto ao código de segurança da Menina Townsend, se o senhor ou o seu irmão tiverem o hábito de deixar as chaves da clínica no bolso de um casaco ou na gaveta de uma secretária, qualquer pessoa poderia ter pegado nelas e passado em revista os vossos ficheiros.

—A Laura está então ilibada?Keenan sorriu.—Pressinto que gosta dessa senhora...Isaiah anuiu.—Pode dizer-se que sim.O agente pôs-se de pé.—Ela ainda não está totalmente ilibada, mas estou-me a inclinar

fortemente nessa direcção. Deixe-me fazer uma verificação dos eventuais antecedentes da Menina Baxter. Os homens e as mulheres que se tornam obsessivos em relação a membros do sexo oposto geralmente têm um historial de tal comportamento.

—Quanto tempo acha que isso possa levar?—Com a informação que o senhor me deu, creio que possa ter alguma

coisa para amanhã. A verificação completa de antecedentes deverá levar muito mais tempo.

—Vai telefonar para a universidade que ela frequentou?—E a todos os empregadores que ela listou na candidatura para o emprego

— disse Keenan, ajeitando o boné na cabeça. — Da próxima vez, tenha o cuidado de confirmar pessoalmente as referências que lhe dão antes de contratar alguém, Dr. Coulter. Nestes dias que correm, nunca se sabe que tipo de gente nos aparece.

Isaiah não podia discordar. Estava com falta de pessoal quando Belinda se candidatou para um lugar na clínica. Tinha boas qualificações. Ele passara por cima de todas os procedimentos preliminares e contratara-a de imediato.

—Daqui para a frente terei mais cuidado, posso-lhe garantir!Depois de o agente Keenan sair, Isaiah tentou novamente telefonar a

Laura. O telefone tocou e tocou. Por fim, arrancou a gravação com a voz dela, tão sincopada e doce que quase que lhe fez vir as lágrimas aos olhos. Desejava ter ao menos falado com ela. Era evidente que ela lhe estava a barrar todas as chamadas, e quando um balão lhe aparecia no visor, ela sabia que não devia atender.

Ele pensou em ir até ao apartamento dela, mas uma espreitadela ao relógio fê-lo pôr-se de pé num salto. Tinha uma operação marcada para daí a dez minutos. O amor teria de esperar.

Por volta das quatro e meia dessa tarde, Isaiah acabava de castrar um jovem labrador quando Val apareceu no bloco operatório.

—O agente Keenan está ao telefone — disse ela.Isaiah levou os braços dobrados atrás para aliviar uma tensão que tinha

entre as omoplatas.

—Já acabei por aqui. Atendo no meu gabinete — disse ele, olhando para Susan, que estivera toda a tarde a substituir Belinda. — Podes continuar a partir daqui, sem mim?

A robusta loura aquiesceu. Isaiah tirou as luvas cirúrgicas, deitou-as num receptáculo e despiu a bata, atirando-a para um cesto de roupa suja ao abrir a porta para sair.

Keenan foi direito ao assunto quando Isaiah pegou no telefone.—Bingo — disse ele. — A Belinda Baxter tem uma história feia.Tirando o estetoscópio do pescoço e atirando-o para cima da secretária,

Isaiah disse:—Depois do que vi esta manhã, não estou surpreendido. O que é que há

com ela?—Universidade do Colorado, 1993. A Menina Baxter acusou um atleta de a

ter violado quando saíram juntos. Na audiência preliminar, a versão dela foi contradita por várias testemunhas oculares fidedigna, tanto homens como mulheres. Alegaram que ela tinha uma fixação pelo tipo e que retaliou quando ele lhe disse que não estava interessado.

—Merda.—No ano seguinte, ela achava que estava apaixonada por um professor.

Quando ele rejeitou os avanços dela, a sujeita ficou furiosa e acusou-o de a ter forçado a fazer sexo com ele em troca da passagem na cadeira. Mais uma vez, a história dela não se aguentou.

—Não posso acreditar nisto — disse Isaiah, com ar abatido.—Em resumo — continuou Keenan —, a senhora tem um parafuso a menos.

Estamos a tentar localizá-la para a interrogarmos. Infelizmente, parece ter deixado o apartamento dela. Pensamos que tenha saído da cidade.

Isaiah tinha esperanças de que ela se tivesse efectivamente ido embora e nunca mais voltasse. Se nunca mais visse Belinda, melhor seria.

—Quer isso dizer que a Laura já não é suspeita?—Com base no pouco que descobri, estou convencido de que a Menina

Townsend foi vítima de uma cilada. Vou ligar para ela logo que acabe de falar consigo, para lhe dar as notícias.

—Se não for contra os procedimentos, pode protelar um pouco essa chamada? — perguntou Isaiah. — Eu gostaria de lhe dar pessoalmente as notícias, se achar bem.

Keenan riu-se.—Dou-lhe duas horas...—Agradeço — disse Isaiah. — E uma coisa mais, agente Keenan... Obrigado

por tudo o que fez.—Estou apenas a fazer o meu trabalho, rapaz.Por o Mazda Laura estar apreendido, a avó dela levou-a de carro a uma

mercearia, e Laura estava a reaprovisionar o seu frigorífico com comida quando alguém bateu à porta. Ela estacou, com uma jarra de leite na mão. Desde manhã cedo que esperava que Isaiah aparecesse. Mas era mesmo dele esperar até acabar o trabalho desse dia na clínica.

A ideia fez-lhe doer o coração. Algumas mulheres podem sentir-se ofendidas ao serem preteridas a favor de um molhe de cães e de gatos, mas ela não era uma delas. Uma das primeiras coisas de que gostou em Isaiah foi a sua devoção aos animais que estavam ao seu cuidado.

Laura meteu apressadamente o leite no frigorífico e dirigiu-se para a porta da frente. Não o podia andar a evitar para sempre. Isaiah telefonara-lhe pelo menos umas dez vezes. Conhecendo-o como ela o conhecia, ele não era pessoa para parar até que ela falasse com ele. Laura sentia-se mais forte nessa manhã, menos propensa a ceder a pressões. Por mais que ele dissesse que a amava, ela estava disposta a manter-se fiel à sua palavra, não porque isso lhe fosse fácil, mas porque a sua decisão em terminar a relação se revelaria melhor para ele no futuro.

Antes de abrir a porta, respirou fundo para ganhar coragem. Ficou es-pantada por ver Belinda no patamar. Laura estava prestes a cumprimentá-la e a convidá-la a entrar quando reparou no olhar tresloucado de Belinda e no sangue seco por baixo do nariz. Uma fracção de segundo depois, viu a grande faca de talho que a técnica segurava com força numa das mãos.

Laura reagiu rapidamente, lançando todo o seu peso contra a porta para a fechar, mas Belinda foi mais rápida e tinha a vantagem do seu maior peso. Laura foi atirada para trás e desequilibrada quando Belinda forçou violentamente a entrada. Antes de Laura se conseguir reequilibrar, a morena estava sobre ela.

Durante a reabilitação, Laura praticara tai chi para a ajudar a manter-se calma, melhorar o seu equilíbrio e fortalecer o lado direito do seu corpo, que ficara fragilizado. Uma técnica particular, denominada tui shou, ensi-nara-lhe a defender-se de forma não agressiva, utilizando o peso e a inércia para derrubar um opositor.

Quando Belinda brandiu a faca de talhante num movimento descendente, aquele treino de tui shou salvou a vida a Laura. Ela apanhou o pulso de Belinda, deslocou o seu peso e lançou a outra mulher em desequilíbrio. Belinda tombou no soalho. Laura tentou correr para o exterior para gritar por socorro mas, para seu horror, Belinda pôs-se de pé num salto, interceptou-lhe o percurso e atirou-se de novo a ela.

—Cabra! — rosnou Belinda. — Não te vais achar tão bonita quando eu tiver acabado contigo!

Laura dobrou os joelhos e saltou sobre os dedos dos pés, executando uma dança macabra com a lâmina da faca que Belinda brandia na mão, atirando-se para o lado, saltando para trás, por vezes evitando uma facada letal por poucos centímetros.

—Não... faças... isso — conseguiu ela articular. — Por favor... não.Belinda soltou uma gargalhada demente e atirou-se de novo a Laura. Laura

desviou-se, mas desta vez não foi suficientemente rápida. Belinda grunhiu e tentou apunhalá-la num movimento descendente. Laura aparou o golpe com um forte encontrão dirigido para cima, que desviou a facada da outra mulher. Antes que Belinda se recompusesse e pudesse voltar a tentar esfaquear Laura, esta projectou-se contra a técnica, atingindo-a no diafragma com o ombro.

Belinda bufou aflita e espantada, cambaleando para trás e perdendo o equilíbrio. O tombo para trás lançou-a através da porta aberta. Laura não esperou para ver onde ou como a mulher caíra. Atirou-se contra a porta para a fechar bruscamente, correu os trincos de segurança e disparou em busca da carteira para pegar no seu telemóvel.

Durante um terrível momento, não se conseguia recordar do símbolo que a avó lhe programara para a polícia. Em pânico, à espera que Belinda rebentasse a qualquer momento com uma das janelas e lhe voltasse a entrar em casa,

percorreu freneticamente a lista de endereços. Balão, cavalo, bolo, cão, gato. Oh, Deus. E foi então que a viu. Uma estrela, para representar um distintivo.

Com as mãos a tremer tão violentamente que mal podia controlar os dedos, Laura carregou no botão com o telefonezinho verde para fazer a chamada.

Isaiah parou o Hummer num pião de neve e gelo quando viu os carros da polícia estacionados em cima do passeio, em frente ao apartamento de garagem de Laura. As luzes rotativas azuis e vermelhas giravam sobre os tejadilhos. Havia homens fardados a correrem de um lado para o outro do jardim da frente. Por um terrível momento, ele pensou que a forma amarfa-nhada de uma mulher que jazia na neve fosse a de Laura.

—Mãe do Céu! — exclamou Isaiah, deixando o Hummer no meio da rua. — Laura?

Saltou por cima da berma e da faixa de relva coberta de neve para ir aterrar no passeio gelado. Ainda corria quando viu que a mulher tinha cabelo escuro. Abrandou o passo, com o olhar incrédulo fixo no corpo inerte. Belinda? Olhou para cima e viu a balustrada partida.

—O que é que aconteceu? — perguntou ele a um agente da polícia que vestia um pesado casaco azul acolchoado e um boné com orelheiras. — A senhora que aqui mora está bem?

—Está óptima. Creio que está lá em cima.Isaiah subiu as escadas exteriores três degraus à vez. Quando chegou ao

patamar, viu Laura de pé na soleira da porta, a falar com um polícia. Parecia estar um pouco abalada, mas de resto em bom estado, somente tiritava de frio.

—Vem uma ambulância a caminho — estava o polícia a dizer.—Eu... não... queria... magoá-la — disse Laura. Olhou para trás do polícia e

viu Isaiah ali de pé. Os olhos dela disseram-lhe tudo o que ele precisava de saber. — Isaiah? — exclamou ela.

Ele empurrou o polícia para passar e tomá-la nos braços.—Mas que diabo se passou?Laura pendurou-se-lhe ao pescoço. Estava a tremer tão violentamente que

os tremores se transmitiram a ele. Aos soluços, ela relatou-lhe o incidente. O polícia forneceu os pormenores que lhe faltavam. Isaiah espreitou pela borda do patamar. Tudo o que agora conseguia ver de Belinda era o seu cabelo escuro espalhado sobre a neve, pois fora tapada com um cobertor. Ele sabia que era maldoso da sua parte, mas achou que ela mereceu o castigo.

—Ela está morta? — perguntou ao polícia?—Não. Pensamos que tenha uma lesão no pescoço. Os paramédicos já vêm

aí.Isaiah cingiu Laura pela cintura com mais firmeza e levou-a para dentro do

apartamento. Todos os discursos que ensaiara teriam de esperar.Uma hora mais tarde, Laura estava enroscada num canto do canapé, a

beber uma segunda chávena de chá a pequenos goles. Isaiah estava sentado à frente dela, num cadeirão de braços. Há muito que Belinda fora levada para o hospital de ambulância, e, poucos minutos antes, a polícia telefonara a informar que as lesões dela eram mínimas. A neve amortecera-lhe a queda. Ela apenas perdera os sentidos. Logo que os médicos lhe dessem alta, ela seria levada para a esquadra e confrontada com uma série de acusações, das quais a menor não era decerto a de tentativa de homicídio.

Agora Laura teve tempo para pôr a cabeça em ordem. As suas mãos já não tremiam. Os seus pensamentos clarificaram-se. Era altura de Isaiah se ir embora, mas ele estava ali, sentado na sua cadeira como se tivesse criado raízes, tão belo que até doía.

Laura sabia que lhe devia dizer para se ir embora. Só que isso era-lhe muito mais difícil de fazer do que alguma vez pensara que seria.

—Eu agora estou bem, Isaiah.Ele sorriu ligeiramente, abanando a cabeça.— Isso é bom.Laura pôs a chávena de lado e desdobrou as pernas para se sentar mais

para a frente.—Eu gostaria que te fosses embora agora...—Não me mintas, Laura. És péssima nisso. — disse Isaiah, inclinando-se

também para a frente, o que deu a Laura vontade de recuar. — Amas-me. Sou o tipo de quem estavas à espera, lembras-te? Tens trinta e um anos e nunca dormiste com nenhum outro homem. Isso é, só por si, bastante revelador. Como é que podes esperar que eu vire as costas a isso?

Laura passou uma mão sobre os olhos. Iria fazê-lo, disse para si própria. Por ele, iria dizer as palavras que o afastariam para sempre da sua vida.

— Já estava na altura de eu ter um pouco de sexo, não achas? — disse ela, pondo-se de pé. Por um horrível instante, sentiu-se um pouco tonta. Mas a sua cabeça em breve se desanuviou. Dirigiu-se à cozinha para continuar a arrumar as compras da mercearia. — Tenho coisas a fazer, Isaiah. Acabou. Precisamos ambos de seguir os nossos caminhos.

—Tens toda a razão — disse ele, pondo-se de pé e dirigindo-se lentamente para ela. — Precisamos de seguir os nossos caminhos... juntos. A festa de Natal é hoje à noite. Não vou sem ti. E a véspera e o dia de Natal? Sem os partilhar contigo, não terão qualquer significado para mim.

Laura sentia como se o seu peito estivesse a ser apertado por um torniquete.

—Vai-te embora, por favor. Não te quero aqui.—Não posso fazer isso. Amo-te, Laura.Ela arriscou olhar para ele. Erro crasso. Ele era tão belo — alto e moreno,

com o cabelo despenteado pelo vento. Vestia uma camisa verde com colarinho de abotoar. As mangas estavam arregaçadas para revelarem os seus antebraços fortes e bronzeados. A larga fivela do seu cinto à cowboy brilhava-lhe na cintura magra, anunciando as suas longas pernas de músculos poderosos e uma postura masculina de fazer o coração de qualquer mulher bater descompassadamente.

—Eu sei que ouviste a diatribe do Tucker ontem à noite — disse-lhe ele com suavidade. — Mas é óbvio que não ouviste o tempo suficiente para saberes o que eu tive a dizer. Amo-te tanto, Laura. Sinceramente, não creio que consiga enfrentar a vida sem ti. O Tucker saiu de lá a perceber isso, satisfeito por saber que em breve serias a sua cunhada.

Laura abanou a cabeça.—Ele tinha razão desde o início. Precisas de uma pessoa inteligente,

cativante e bem-sucedida. Uma pessoa que te possa ajudar a rea-lizares todo o teu poten-cial. Se enveredares pela investigação, precisarás de uma mulher que possa cativar certas pessoas de modo a que elas te subsi-diem. — A caixa dos ovos caiu-lhe das mãos. A esferovite atingiu o ladrilho com um estampido.

Laura soube, sem olhar, que acabara de partir todos os ovos e fechou os olhos de frustração. Quando se baixou para pegar na caixa, gemas e claras escorriam para o chão, formando poças viscosas. — Eu já não sou nenhuma dessas coisas.

—Esquece a investigação. Estou interessado nessa área da medicina veterinária, confesso. Mas o que realmente me dá ânimo, o que faz com que tudo valha a pena, é trabalhar directamente com os animais e pô-los bem. Nunca seria feliz num laboratório e nunca quereria ensinar numa universidade precisamente pela mesma razão.

O coração de Laura encheu-se de esperança.—Quanto ao meu potencial, sou perfeitamente capaz de o realizar por mim

mesmo, sem a ajuda de uma esposa. Não quer isto dizer que rejeitarei alguma eventual ajuda. Só que isso terá de vir da mulher certa, de alguém que goste tanto de animais quanto eu, de alguém que ainda consiga sorrir enquanto está a sujar as mãos, de alguém que compreenda quando chego a casa preocupado com um paciente e que partilhe comigo essa preocupação.

Laura engoliu em seco e debateu-se para respirar, tentando limpar às cegas os ovos partidos com papel de cozinha. Por fim, desistiu e lançou a bola de papel viscosa no caixote do lixo.

—Receio que, mais tarde ou mais cedo, te estrague a vida...—Mas que vida? Laura, tu és a mulher que eu acabo de descrever. Gostas

tanto desses malditos cachorrinhos que tenho medo que queiras ficar com todos os treze, e que eu te ame tanto que o permita.

Aquilo fez-lhe voltar a cabeça.—Recordas-te de mim, daquele tipo que nunca se lembrava de comer? Tu

dás-me estabilidade, concentração — disse Isaiah, dando um passo na direcção dela. — Fazes ideia de há quanto tempo eu não lia um romance ou via um filme, antes de tu apareceres? Anos!

—Então tens de alterar isso.—Estou a tentar, mas preciso da tua ajuda.A sinceridade que emanava da voz dele fê-la perscrutar-lhe o olhar.—Contigo — continuou ele — reparo em coisas que nunca repararia: o

cheiro que paira no ar depois de nevar, que não há dois flocos de neve iguais, quão doce é o hálito de um cachorrinho. — As lágrimas brilharam-lhe nos olhos. — Queres mesmo que eu volte aos meus velhos hábitos? Esqueço-me de comer. As minhas peúgas nunca irão condizer. Vou para o trabalho com uma folha de amaciador de roupa colada à parte de trás do meu colarinho e visto uma camisa às riscas vermelhas com uma gravata roxa às pintas para ir receber o prémio do Veterinário do Ano...

As lágrimas também assomaram aos olhos de Laura, apesar de um sorriso lhe aflorar aos lábios. Ela sabia que aquilo iria acontecer. Isaiah era o cúmulo da preocupação e da distracção.

Isaiah reparou no ligeiro sorriso que emergiu na boca dela. Era tudo o que ele precisava de ver. Antes que ela pudesse protestar, ele atravessara a cozinha e tomava-a nos braços.

—Eu amo-te. Preciso de ti na minha vida. Que mais tenho eu de dizer, que mais tenho eu de fazer para que tu compreendas isso?

Laura inclinou a cabeça para trás para lhe perscrutar a face morena, e naquele momento não precisou de mais para se convencer. Viu o amor dele por ela reflectido nos seus olhos.

—Disseste que casarias comigo — disse ele com ardor. — Estou a contar que mantenhas o que disseste. Quero que sejas a mãe dos meus bebés. Quero envelhecer a teu lado. Falas no meu potencial e na realização dos meus sonhos? Mas o que é isso se tudo o que faço é trabalhar e nunca aprecio o milagre quotidiano de estar simplesmente vivo?

—Oh, Isaiah — disse ela, com voz embargada. — Eu também te amo.—Eu sei que sim — murmurou-lhe ele.E então beijou-a. Um beijo doce e hesitante, que em breve se tornava

profundo e sedento. Laura era incapaz de resistir à atracção deliciosa da boca dele. Ela lançou-lhe os braços em redor do pescoço e pôs-se em bicos dos pés, aceitando o que deveria ter sempre sabido — que o lugar dela era exactamente aquele, nos braços dele.

Epílogo

8 de Janeiro de 2005

A rolha saltou da garrafa e o champanhe francês jorrou como um géi- ser, encharcando a manga do casaco do fato escuro de Jake. Ele riu-se e debruçou-se por cima da mesa da casa de jantar de Isaiah para encher os copos de cristal dos noivos.

Laura e Isaiah entrelaçaram os braços, olharam profundamente nos olhos um do outro e beberam juntos o seu primeiro golo de champanhe como marido e mulher. Laura estava quase tonta de felicidade. Tudo no seu mundo estava precisamente no devido lugar. Depois do seu acidente, acreditara que a sua vida ficara destruída. Agora, perdida nos olhos azuis rutilantes do seu marido, compreendia que tivera de perder a sua vida para a encontrar de verdade. E, talvez, de uma forma muito diversa, o mesmo tenha acontecido com ele.

No decorrer das duas semanas anteriores, ambos chegaram à compreensão de tantas coisas, nomeadamente de que a felicidade não residia em ter sucesso ou dinheiro, ou um futuro brilhante. Estava presente no agora, hoje, e em como eles viviam cada momento.

Tendo isso em vista, escolheram não desperdiçar nenhum dos momentos que passavam juntos e planearam um rápido casamento numa pequena igreja, convidando apenas as pessoas de quem eles gostavam para testemunharem os seus votos. Devido ao facto de os pais de Laura estarem reformados e viverem de um rendimento fixo, ela tratara pessoalmente de todos os pormenores — fazendo o seu próprio vestido de noiva, fazendo os seus próprios arranjos de flores e telefonando simplesmente às pessoas para as convidar. Natalie, a mulher de Zeke, providenciara a música e, melhor do que tudo, compusera especialmente uma canção para Isaiah e Laura, de que eles se iriam recordar com carinho durante toda a vida. Para o copo-de-água toda a gente trouxe os seus pratos preferidos, de modo que houve imensa comida, servida como em família, com muito pouca confusão.

—Saúde! — gritou Hank.O pai de Laura ergueu o copo e voltou-se para ela e para Isaiah. Laura

estava à espera que ele entoasse a estafada lengalenga de ter perdido a sua filhinha e de ter ganho um filho. Em vez disso, ele piscou-lhe o olho e disse:

—Para a noiva e para o noivo. Que vivam felizes em pacífica harmonia até que a morte os separe. Se contudo, por mero acaso, nem tudo correr bem, tenho um pedido importante a fazer-te, Laura. Se vieres a correr para casa da tua mãe, por favor não tragas os catorze cães!

Como se aproveitasse a deixa, o Tristinho entrou aos saltos na sala e latiu alegremente. Todos os treze cachorrinhos rottweiler entraram a bambolear-se

atrás dele. Toda a gente rebentou a rir. É claro que Laura não tencionava ficar com todos os cães, só com o Carquilhas, mas mesmo assim estava feliz por ter cachorrinhos a correrem de um lado para o outro na sua festa de casamento. O Carquilhas agarrou-se à perna da calça do pai dela, deu uma rosnadela brincalhona e firmou as suas rijas pernitas no chão para puxar com toda a sua força. Porque não começarem o primeiro dia da sua vida juntos da forma como que tencionavam continuar, com animais a terem um papel importante?

—Quem é que os soltou? — perguntou Isaiah.O filho de Jake, Garrett, deslizou sobre o soalho de madeira envernizada até

parar, olhou culpadamente para a mãe, Molly, e acusou:—Foi o Sly!Isaiah deu uma risadinha e passou um braço em redor da cintura de Laura.—Eis um rebento típico da velha cepa dos Coulter: deitar as culpas ao

outro.Molly e Carly começaram a tentar apanhar os cachorrinhos. Bethany seguia-

as na cadeira de rodas, pronta a segurar os pequenos cativos felpudos no seu regaço enquanto as cunhadas capturavam os restantes. Tucker e Ryan foram ajudá-las.

—Agora sabes porque é que eles fizeram o copo-de-água na casa deles, mãe — disse Tucker, olhando por cima do ombro para piscar o olho a Mary. — Cachorrinhos mijões e a tua alcatifa não se dão bem juntos. Podes agradecer à tua boa estrela.

Mary olhou para a avó de Laura, Etta, e sorriu. Estava na verdade a agradecer à sua boa estrela, mas por uma razão completamente diferente da que Tucker pensava. Ver a felicidade nos olhos de Laura e de Isaiah quando olhavam um para o outro era suficiente para aquecer o coração de qualquer mãe, especialmente por saber que fora em parte o seu plano de casamenteira que os reunira. Isaiah estava descontraído. Laura irradiava felicidade. Eram perfeitos um para o outro.

Mas, afinal, Mary não soubera sempre isso?Sorrindo de presunçosa satisfação, Mary voltou o olhar para Tucker.

Ocorreu-lhe nesse momento que ele era o seu único filho ainda solteiro. Suspirou. Ele fora sempre o seu filho mais difícil, a fazer sempre o oposto do que ela queria ou esperava que ele fizesse.

Mary Coulter franziu ligeiramente o sobrolho. A atitude cavalheiresca de Tucker para com as mulheres fazia com que fosse difícil encontrar-lhe uma consorte, mas ela sentia-se à altura do desafio. Ele precisava de uma rapariga plena de genica — isso seria um atributo imprescindível —, uma pessoa tão bela quanto ele era formoso, com fibra suficiente para emparelhar com ele e lhe ripostar à altura.

Por sorte, Mary até conhecia uma jovem com quatro irmãos mais velhos que poderia ser um partido ideal para o seu filho voluntarioso e teimoso.

Ah, sim, pensou ela enquanto bebia um pequeno golo de champanhe. Podia ali haver algumas possibilidades muito interessantes.

FIM