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Como a grande maioria das mulheres das aldeias e cidades do Afeganistão antes dos violentos conflitos bélicos - desde a invasão Soviética nos anos 70 até aos actuais bombardeamentos dos Estados Unidos - Shirin-Gol, a eroína desta epopeia do povo Afegão, cresceu e viveu no ambiente tradicional duma pequena aldeia nas encostas do Indocuche como a nona criança de uma pobre família de agricultores. Um percurso igual ao de milhares e milhares de mulheres e famílias Afegãs nos últimos trinta anos. Diferente, contudo, porque Shirin-Gol teve o privilégio de frequentar a escola em Cabul durante a sua ocupação Soviética. Como mulher que sabe ler e escrever, que sonha ser médica e se tornou consciente da sua condição feminina numa sociedade hostil, transmite-nos um olhar lúcido sobre o sofrimento do seu povo, e em especial, das mulheres. Ao longo deste caminho terrível, encontra outras mulheres, contra a estrita proibição do poder Talibã, continuam a entreajudar-se, continuam a trabalhar na clandestinidade e a lutar pela sua dignidade como seres humanos. DEUS VEIO AO AFEGANISTÃO E CHOROU SIBASHAKIB A história de Shirin-Gol Tradução de MARIA Nóvon Titulo original: NACH AFGHANISTAN KOMMT GOTT NUR NOCH ZUM WEINEN - DIE GESCHICHTE DER SHIRIN-GOL Capa: DESIGN TEAM MONCHEN Fotos da capa: dpa/AFP e AP Photo/John McConnico

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Como a grande maioria das mulheres das aldeias e cidades do Afeganistão antes dos violentos conflitos bélicos - desde a invasão Soviética nos anos 70 até aos actuais bombardeamentos dos Estados Unidos - Shirin-Gol, a eroína desta epopeia do povo Afegão, cresceu e viveu no ambiente tradicional duma pequena aldeia nas encostas do Indocuche como a nona criança de uma pobre família de agricultores. Um percurso igual ao de milhares e milhares de mulheres e famílias Afegãs nos últimos trinta anos. Diferente, contudo, porque Shirin-Gol teve o privilégio de frequentar a escola em Cabul durante a sua ocupação Soviética. Como mulher que sabe ler e escrever, que sonha ser médica e se tornou consciente da sua condição feminina numa sociedade hostil, transmite-nos um olhar lúcido sobre o sofrimento do seu povo, e em especial, das mulheres. Ao longo deste caminho terrível, encontra outras mulheres, contra a estrita proibição do poder Talibã, continuam a entreajudar-se, continuam a trabalhar na clandestinidade e a lutar pela sua dignidade como seres humanos.

DEUS VEIO AO AFEGANISTÃO E CHOROU

SIBASHAKIB

A história de Shirin-Gol

Tradução de MARIA Nóvon Titulo original: NACH AFGHANISTAN KOMMT GOTT NUR NOCH ZUM WEINEN - DIE GESCHICHTE DER SHIRIN-GOL Capa: DESIGN TEAM MONCHEN

Fotos da capa: dpa/AFP e AP Photo/John McConnico

A escrita dos nomes corresponde à pronúncia local e não se regula pela escrita ocidental.

9 789724 227818 Copyright (c) 2001 by C. Bertelsmann Verlag, Munique Impresso e encadernado para Círculo de Leitores por Grafiasa - Indústria Gráfica, SA, Rio Tinto em Outubro de 2002 Número de edição: 5852 Depósito legal número 182 510/02

À minha mãe. Aos livres. Aos que não são livres.

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"A paz não pode ser mantida à força. Só pode ser alcançada pela compreensão." ALBERT EINSTEIN

Houve muitas guerras, muitos mortos. Para que haja paz, Aybanu sacrificou-se. Fez-se mulher do chefe dos mongóis. Tens uma mensagem? Sim, diz Aybanu.

Sim, espalhai esta palavra. As mulheres devem criar os filhos no ódio à guerra. O mundo foi arrasado pela mão dos heróis. Cabe-nos a nós erguê-lo de novo! Canta a alegria, canta a tristeza Tanto quanto a vista alcança, mundo arrasado. Abençoados aqueles que o construírem de novo. Abençoados aqueles que o fizerem florescer! BAHRAM BEYZAIE Escritor, Realizador

COMO TUDO ACONTECEU

-Como te chamas? - Shirin-Gol. -Esta é tua filha? -Bale. É. - E este? - Bale. -Este também? - Bale. - Estes dois rapazes? Quer dizer que são irmãos? -São, são os meus filhos Navid e Nabi. Dei-os à luz, aos dois. Apesar de ter as suas dúvidas, o funcionário Malek carimba o papel fino, húmido e pastoso do suor das mãos de Shirin-Gol. - Vai ali atrás - ordena Malek, dando-se ares de importante. - Mostra aos meus colegas este papel e diz-lhes que foi o senhor Malek que te mandou. Assim não haverá problemas e dão-te os teus sacos de trigo. Um para o teu marido, um para ti e um para cada um dos teus filhos. Percebeste? Um saco para cada um. O rosto da mulher está completamente velado, e a rede fina que tem à frente dos olhos não deixa entrever a menor expressão do seu olhar. Mas, apesar de não ter rosto, sente-se nela a cólera, a vergonha, a humilhação. Embora não sabendo se me está a ver, sorrio, mostro-lhe a minha solidariedade. Deve saber que não me sinto ligada a Malek e sim a ela. - Viste? - pergunta Malek, como se fôssemos velhos amigos, parentes ou cunhados. Comporta-se como se fôssemos aliados, confidentes. Ele e eu de um lado, e as pessoas que nos rodeiam, do outro. Recuo um passo, sem olhar para ele. Malek sabe muito bem que é só por sorte que não está do outro lado do destino, onde é preciso pedir trigo. Onde é necessário um carimbo, uma autorização, a piedade de um compatriota. Desta vez. Desta vez tem sorte. Desta vez tem trabalho e, portanto, faz parte de uma meia dúzia de privilegiados. 9 Houve muitas guerras, muitos mortos. Para que haja paz, Aybanu sacrificou-se. Fez-se mulher do chefe dos mongóis. Tens uma mensagem? Sim, diz Aybanu.

Sim, espalhai esta palavra. As mulheres devem criar os filhos no ódio à guerra. O mundo foi arrasado pela mão dos heróis. Cabe-nos a nós erguê-lo de novo! Canta a alegria, canta a

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tristeza Tanto quanto a vista alcança, mundo arrasado. Abençoados aqueles que o construírem de novo. Abençoados aqueles que o fizerem florescer! BAHRAM BEYZAIE Escritor, Realizador COMO TUDO ACONTECEU

-Como te chamas? - Shirin-Gol. -Esta é tua filha? -Bale. É. - E este? - Bale. -Este também? - Bale. - Estes dois rapazes? Quer dizer que são irmãos? -São, são os meus filhos Navid e Nabi. Dei-os à luz, aos dois. Apesar de ter as suas dúvidas, o funcionário Malek carimba o papel fino, húmido e pastoso do suor das mãos de Shirin-Gol. - Vai ali atrás - ordena Malek, dando-se ares de importante. - Mostra aos meus colegas este papel e diz-lhes que foi o senhor Malek que te mandou. Assim não haverá problemas e dão-te os teus sacos de trigo. Um para o teu marido, um para ti e um para cada um dos teus filhos. Percebeste? Um saco para cada um. O rosto da mulher está completamente velado, e a rede fina que tem à frente dos olhos não deixa entrever a menor expressão do seu olhar. Mas, apesar de não ter rosto, sente-se nela a cólera, a vergonha, a humilhação. Embora não sabendo se me está a ver, sorrio, mostro-lhe a minha solidariedade. Deve saber que não me sinto ligada a Malek e sim a ela. - Viste? - pergunta Malek, como se fôssemos velhos amigos, parentes ou cunhados. Comporta-se como se fôssemos aliados, confidentes. Ele e eu de um lado, e as pessoas que nos rodeiam, do outro. Recuo um passo, sem olhar para ele. Malek sabe muito bem que é só por sorte que não está do outro lado do destino, onde é preciso pedir trigo. Onde é necessário um carimbo, uma autorização, apieda de de um compatriota. Desta vez. Desta vez tem sorte. Desta vez tem trabalho e, portanto, faz parte de uma meia dúzia de privilegiados. 9 Desde que as Nações Unidas montaram este campo de passagem para os refugiados afegãos regressados do Irão, ganha todos os meses cerca de sessenta dólares, com os quais alimenta a sua família e a do irmão. Sobretudo porque, pelo menos uma vez por semana, um ou outro saco de trigo, que serve para aliviar o.regresso a casa dos refugiados, não encontra o seu verdadeiro dono e Malek vende-o por bom dinheiro.

- Viste?- repete com petulância. - Vi - respondo laconicamente, como se não estivesse interessada no destino de Shirin-Gol, a mulher do papel húmido, com quatro filhos que parecem ter mães e pais diferentes. Malek fica desiludido e o seu olhar lascivo cede a uma obstinação quase infantil. Posso imaginar o tema da conversa de Malek comigo, enquanto os seus compatriotas esperam pelo carimbo, agachados ao sol no chão arenoso, formando uma fila que parece não ter fim. Talvez queira explicar-me que Shirin-Gol só pediu as crianças emprestadas para receber mais farinha do que a que lhe cabe. Depois, abandoná-las-á na estrada e ele, Malek, terá de as ir recolher e acomodar. Ou então vai contar-me que Shirin-Gol, à semelhança de muitas outras mulheres afegãs, vende o corpo e fica grávida de homens diferentes. - Senhor Malek - adianto-me eu -, por favor, desculpe-me. Está muito calor e muito vento para mim, vou procurar um sítio à sombra. Muito obrigada por me ter deixado vê-lo trabalhar. -Mas ainda não viu nada - protesta Malek. - Eu volto mais tarde - minto, desaparecendo entre as tendas de plástico azul. Não quero que Malek perceba onde estou e com quem falo. É o que eu temia. Nem sinais das crianças que parecem ter mães e pais

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diferentes, e não vi os sapatos de Shirin-Gol. Os sapatos das mulheres são a única forma de as reconhecer. Um véu azul, plissado, tapa as mulheres dos pés à cabeça, fá-las a todas iguais, desumaniza-as. Como hei-de encontrar Shirin-Gol? Aqui formigam as burkas azuis, que o vento ora empurra contra os corpos magros, ora enfuna como se fossem balões, como se as mulheres fossem elevar-se e pairar no céu. Tento sempre reconhecer rostos humanos por entre as redes de malha apertada que' cobrem os olhos dos fantasmas vivos. Indecisa, paro no meio das muitas túnicas que me rodeiam e olho em frente. Não posso mais! Há um mês e meio que estou de novo no Afeganistão. Sinto-me cansada, esgotada. O vento constante, poeirento, e o ar seco aquecido pelo sol dificultam até a própria respiração. Sou uma cobarde. E depois? Não quero ouvir mais histórias de gente que perdeu tudo, tudo, até o medo, a fome, a dor, a miséria, a pobreza, as doenças e o clarão de esperança de que ainda talvez tudo melhore. Talvez devesse desaparecer simplesmente algures nas sombras. Talvez devesse procurar uma tenda vazia, deitar-me e dormir. Mas também podia entrar num dos camiões vazios que vão carregar mais refugiados à fronteira. E ainda hoje à noite poderia estar de novo na minha pátria, no Irão, onde nasci e cresci. Daí, poderia regressar, por fim, ao meu confortável e luxuoso mundo ocidental. Incapaz de dar sequer mais um passo, como se o corpo fosse de chumbo, estou parada ao sol implacável, olhando simplesmente em frente, quando uma tunica azul me grita. - La-elah-ha-el-allah. Que queres de mim? São meus filhos. Deixa-me em paz, em nome de Deus. Os meus sentidos reagem com lentidão, ouço-me falar a mim própria. Desculpe. Não consigo dizer mais nada, a língua cola-se-me ao céu da boca. Fito a túnica que tenho à frente, até conseguir falar de novo. Estou só aqui... Não trabalho para as Nações Unidas nem para nenhuma organização de ajuda humanitária. Só estou aqui porque... Porque o quê? Porque quero ver a vossa miséria, filmá-la e escrever sobre ela? Porque nós, que vivemos no Ocidente, só vislumbramos o nosso coração quando vemos o distante sofrimento do mundo? Porque acho que talvez vos ajudasse se alguém contasse como é terrível a vida que levais? Especialmente quando o vosso Deus vos mandou para o mundo na forma de raparigas? Porque eu... - Sentes-te bem? - pergunta o véu. Uma mão sai lá de baixo, levanta-me a manga e pousa-se no meu braço. Não pode ser, penso. Estou no meio do deserto a ver centenas, milhares de pessoas serem empilhadas como gado nas áreas de carga dos camiões, e esta mulher pergunta-me se me sinto bem! Vejo as pessoas vindo de uma pátria que nunca foi delas para regressarem a outra que também nunca terão. Mulheres, crianças, homens que do mundo só sabem o que é estar sempre em fuga. Gente que enterrou filhas e filhos, pais, mães, maridos, esposas, irmãos, irmãs. Gente que não tem casa nem um sítio para se sentar, para comer, para dormir. Rapariguinhas e rapazinhos que só têm um braço, uma perna, ou então nem braços nem pernas. Gente magra e fraca, doente, subalimentada, só pele e osso. Homens que mataram outros homens e que já viram a morte à sua frente. Mulheres que prefeririam morrer a ter de suportar a morte de mais um filho. - Foi o que pensei - diz Shirin-Gol num tom de voz tranquilo, que pousa no meu coração como veludo macio. - O quê? Ainda não estou em mim. O que é que pensaste? - Que não pertences a nenhuma organização de ajuda humanitária. Falas a nossa língua. Quem és? Que fazes aqui? 10 11

A mão forte de Shirin-Gol continua pousada no meu braço. Agacha-se e puxa-me consigo para o solo arenoso. - Estou a escrever um livro - digo, procurando através da rede de malha apertada os olhos da mulher que o véu esconde. Mentalmente, preparo as explicações do costume. "Um livro sobre o Afeganistão, sobre nós?", troçam as pessoas. Um

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livro sobre um país onde não há nada senão fome e miséria, guerras e mortos? O que é que há para escrever? Quem quer ler um livro assim? - Eu também sei ler - diz Shirin-Gol em vez disso. - Dantes, quando os Russos estavam aqui, andei na escola e aprendi a ler. Além dos livros da escola, li mais três livros e meio. O primeiro comprei-o eu. O segundo deu-mo a minha professora. O terceiro era só meio livro. Encontrei-o nos escombros bombardeados da capital. Foi pena nunca ter encontrado a outra metade. Gostaria de ter lido a história até ao fim, era uma história tão bonita, de uma rapariga que... ora!, já não sei. E o outro foi-me oferecido pela minha amiga, a única amiga a sério que tive na vida. Era médica. Conheci-a numa das muitas aldeias onde vivemos, e trabalhei para ela. O véu de Shirin-Gol fita-me, e tenho a sensação de que me lê, como a um livro. Que não precisa das minhas palavras para me compreender. Por fim, retira a mão do meu braço. Na minha pele fica uma marca húmida. Não a limpo, deixo que o sol a seque. - Um livro - diz Shirin-Gol sem mexer a cabeça tapada. Sorrio para o tecido azul. - Queres que te conte a minha história para o teu livro? - pergunta o véu. - Gostavas? A sua pergunta soa como um aviso, tem alguma coisa de ameaçador. Enquanto não sei porque é que não digo que sim, porque é que, em vez disso, o meu olhar contempla os camiões que ao longe trazem do Irão os afegãos que regressam cobertos de pó, largando-os no meio das tendas de plástico azul, enquanto os meus pensamentos não têm princípio nem fim, Shirin-Gol pega-me no queixo com a mão, vira-me o rosto para si, obriga-me a fitar novamente a cabeça velada e volta a perguntar: - Gostavas? Só anos mais tarde perceberei que Shirin-Gol já sabia que, ao dizer que sim naquela manhã e ao entregar-me a ela e à sua história, ficaríamos ligadas por muito tempo. Talvez para sempre. - Sim, gostava - digo, sorrindo e pousando a minha mão na sua, que continua a prender-me o rosto.

Ainda bem que disse que sim. Shirin-Gol é diferente das outras mulheres que durante todos estes 12 anos encontrei no Afeganistão. Shirin-Gol é como uma árvore. Como um choupo vigoroso e esbelto que resiste a vendavais e tempestades, que tudo vê, tudo compreende, tudo sabe, tudo conta. Não conheço nenhuma outra mulher afegã que se tenha disposto a falar com tanta sinceridade e seriedade sobre a sua vida, e não apenas sobre as relações com o seu marido. Shirin-Gol fala com exactidão e em pormenor de tudo aquilo de que se consegue lembrar, como se quisesse certificar-se de que, quando morrer, pelos menos a sua história ficará. Se faço perguntas ou não, pouco lhe importa. Shirin-Gol tem um ritmo próprio para contar a história da sua vida. As palavras de Shirin-Gol são como o tempo: ora varrem tudo à sua frente feitas vendaval, ora pousam no peito qual brisa suave e terna; às vezes aquecem o coração frio como o sol brando da Primavera, e outras queimam qual implacável sol do deserto; pequeno arrepio, arrefecem a alma; chuva pesada, caem formando uma torrente que arranca tudo o que lhes aparece no caminho. A história de Shirin-Gol não é invulgar, é a história normal da loucura que milhares de mulheres e pessoas no Afeganistão viveram e ainda vivem, precisamente assim ou de uma forma parecida. O campo onde nos encontramos pela primeira vez, as cidades, as aldeias e o país inteiro estão cheios de mulheres, crianças e homens que, como Shirin-Gol, acreditam continuamente que há esperança, continuamente partem de onde vivem e continuamente acreditam que a vida vai melhorar. Ao princípio, parece sempre que tudo vai melhorar. CAPITULO 1 UMA DOCE FLOR E UMA IRMÃ COM UM SINAL NA CARA

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No Afeganistão, quase todos os nomes têm um significado. O de Shirin-Gol quer dizer "Doce Flor". Pretender que no momento do seu nascimento a mãe teria visto uma doce flor, cheirado o perfume de uma doce flor ou apenas pensado numa doce flor, seria uma invenção que não passaria de puro romantismo social da fantasia ocidental. Provavelmente, a mãe de Shirin-Gol, como todas as mães deste mundo, suportou dores fortes por altura do nascimento da sua quinta rapariga e nono filho e, provavelmente, matutou naquele momento como havia de amamentar mais uma filha com aquele corpo enfraquecido e os seios flácidos. E, provavelmente, alegrou-se quando tirou a criança do seu corpo e viu que se tratava apenas de uma rapariga, pois se Shirin-Gol houvesse sido um rapaz, teria precisado de mais leite, de mais atenções. A mãe teria de andar mais com ele ao colo; dar uma festa e matar uma ovelha para comemorar o seu nascimento; arranjar dinheiro para a circuncisão e mandá-lo aprender o Alcorão com o mullah. Não, Alá é bom e desta vez só lhe mandou uma filha. Na verdade, o Senhor sempre foi bom para a mãe de Shirin-Gol. O primeiro filho que lhe pôs na barriga foi um rapaz, para que o marido pudesse sentir-se um verdadeiro homem e não ser obrigado a bater-lhe, divorciar-se dela ou levá-la outra vez para casa do pai. Por uma questão de segurança, e para que tudo fosse como deve ser, depois do primeiro filho, Deus mandou-lhe outro rapaz. E o terceiro filho também foi homem. O Senhor pensou depois na mãe de Shirin-Gol e deu-lhe três filhas, umas a seguir às outras. Recebeu assim, por fim, ajuda para cuidar do marido e dos três filhos, lavrar o campo, cozer o pão, remendar roupa, olhar pelas ovelhas, ordenhar as vacas, cozinhar, tecer tapetes e tudo o que tem a ver com trabalho. 15

Os dois filhos seguintes foram outra vez rapazes. O pai de Shirin-Gol matou uma ovelha por cada um deles, e ambos tiveram de ser circuncidados, mas, pelo menos, não foram obrigados a ir ao mullah, porque os três filhos mais velhos já haviam aprendido o Alcorão. E no ano seguinte ao nascimento dos dois irmãos já não tão importantes, Shirin-Gol vem finalmente ao mundo. Para o pai, não é bom nem mau. Para a mãe, é bom.

Shirin-Gol é uma criança sossegada e leva uma vida boa. Durante a infância, deixam-na quase sempre em paz. Senta-se à sombra, no solo arenoso da esquina do casebre de lama, a observar o pai, a mãe e as irmãs e irmãos mais velhos lavrando o campozito, ordenhando as poucas ovelhas, dando de beber ao burro, varrendo o pó da casa, tecendo tapetes, cozinhando, cozendo pão, melhor ou pior conseguindo todos os dias o sustento da família. Todas as manhãs, a irmã-do-sinal-na-cara senta Shirin-Gol na esquina da casa. A pequena recebe um pedaço de pão e não tem mais nada que fazer senão estar o mais sossegada possível, simplesmente a` observar, a aprender o que é importante na vida de uma rapariga: não dar nas vistas, trabalhar e obedecer às ordens dos rapazes e dos homens. Quando tem cerca de dois anos, Shirin-Gol levanta-se pela primeira vez sozinha, afasta-se do seu canto em frente do casebre, dá uns passinhos, aproxima-se da irmã-do-sinal-na-cara,

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agachada a lavar roupa, acocora-se ao seu lado, chapinha com a mão na barrela, ouve um raspanete, faz chichi no chão e a irmã-do-sinal-na-cara volta a levá-la e a sentá-la no seu lugar. Vendo tudo isto, Deus volta a lembrar-se nesse momento da mãe de Shirin-Gol, e repara que há dois anos que se esquece de lhe pôr um filho novo no ventre. O bom Deus apressa-se por isso a recuperar o tempo perdido, e ainda Shirin-Gol não fez três anos quando lhe pousam dois irmãos de uma vez no regaço de menina. Daqui em diante, passa os dias a olhar pelos gémeos. Agora, que só raramente levanta a cabeça, já não vê o que a mãe e as irmãs mais velhas, o pai e os irmãos mais velhos fazem todo o dia.

A pequena Shirin-Gol só torna a erguer o olhar, para observar o que se passa no mundo à sua volta, no dia em que os gémeos dão os primeiros passos sem ela precisar de lhes dar a mão. Um corre da direita para a esquerda e o outro da esquerda para a direita, batem com a cabeça um no outro, caem e começam a chorar, olhando suplicantemente para a sua irmã Shirin-Gol. Explode então ali muito perto um míssil, o primeiro, mas nem por sombras o último que Shirin-Gol vai ouvir na vida. Os gémeos calam-se, cambaleiam cheios de medo até à irmã, enterram as cabeças nas suas saias de menina. A mãe olha assustada, os irmãos mais velhos fogem do campo a correr, as irmãs mais velhas gritam, o pai faz um ar preocupado e diz, mais para si próprio: - Então é verdade. Os Russos chegaram. - Os Russos? Quem são os russos? Os nossos vizinhos? Que querem de nós? Se não temos nada! - protesta a mãe alto e bom som. O pai olha para os filhos e diz: - Temos de ir para as montanhas. Em tempos, foram os Ingleses que ocuparam o nosso país e mandaram nos nossos destinos, agora são os Russos que o querem fazer. Em tempos, foram os Ingleses que cobiçaram as nossas mulheres e as nossas filhas; agora são os Russos. Em tempos, foram os ingleses que profanaram e sujaram o nosso país e a nossa religião, que nos interditaram e nos despojaram, que nos roubaram a liberdade e mancharam o solo da nossa pátria; agora são os Russos. Não temos outro caminho, é tempo de nos juntarmos aos mujaedines, de lutarmos contra os Russos e, se preciso for, de os combater até à última gota do nosso sangue. Até ao último dia. São as últimas palavras do pai de que Shirin-Gol se recorda. O pai perfila-se com os irmãos mais velhos, reza, dá a cada um dos filhos uma arma e munições, desaparece da vida de Shirin-Gol e do casebre de lama e deixa muito espaço livre. Para comer, para tomar conta dos gémeos, para catar piolhos do cabelo dos gémeos, para fiar lã, para remendar roupa, para tecer tapetes, para partir açúcar em quadradinhos pequenos, para moer cereais, para se sentarem juntos a falar da guerra, dos feridos, dos mortos, dos Russos, e para estender as esteiras e as mantas à noite. Shirin-Gol e os gémeos já não dormem no canto atrás da lareira, têm mais para comer e podem conversar mais. Só os tiros, a passagem dos mísseis e as explosões das bombas lembram os irmãos e o pai, que ainda aparecem de vez em quando, ficando pouco tempo e desaparecendo logo a seguir.

Shirin-Gol está no campo a apanhar as últimas e enfezadas katchalou (batatas), quando passa por ela um homem apressado. Leva ao ombro um outro homem, coberto de sangue. O que leva o ferido ao ombro pára e vira-se para ela. Ao reconhecer um dos irmãos mais velhos, Shirin-Gol sorri. Sem lhe devolver o sorriso, o irmão pergunta-lhe: - Porque é que não tens a

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cabeça coberta? - Depois afasta-se e desaparece atrás do casebre de lama. A mãe de Shirin-Gol sai do casebre, sem cor no rosto. Madar. Mãe. Madar-sem-cor-no-rosto pára em frente do casebre, com ambas as mãos segurando o cântaro de barro à frente da barriga, e diz muitas pala 16 17 vras curtas que Shirin-Gol não consegue ouvir, porque madar-sem-cor-no-rosto também perdeu a voz. Shirin-Gol fica especada a observar madar-sem-cor-no-rosto-e-sem-voz-na-boca, pensando se fora o ferido que roubara a cor do rosto de madar e a voz da sua boca, ou se teria sido ela própria que as arrumara a um canto e se esquecera de as ir buscar. Enquanto Shirin-Gol assim matuta, madar-sem-cor-no-rosto-e-sem-voz-na-boca atira ao chão o cântaro de barro, que se parte e se fragmenta em mil e um cacos de barro. Foi-se a cor. Foi-se a voz. Foi-se o cântaro. Shirin-Gol pega nas mãos dos gémeos, vira-se sem olhar outra vez para malar-sem-cor-no-rosto-e-sem-voz-na-boca-e-sem-cântaro-de-barro-na-mão, e volta ao campo e às enfezadas katchalou, que se acham debaixo da terra e fazem muito bem, porque está fresquinho e porque não há lá nenhuma mãe a quebrar cântaros de barro. De noite chegam mais homens, conhecidos e desconhecidos, o pai e os outros irmãos mais velhos. Shirin-Gol ouve-os cavando a terra por trás do casebre, vem cá fora e vê o ferido que o irmão carregara às costas a ser colocado no buraco, que é novamente tapado. Os homens choram, põem as armas e as Kalachnikovs ao ombro e tornam a desaparecer na escuridão da noite. Na manhã seguinte, só a mãe de Shirin-Gol continua agachada junto do buraco tapado. Tem um véu preto na cabeça, balança o corpo de um lado para o outro como se tivesse dores, lamenta-se e geme e nem sequer pára quando Shirin-Gol lhe leva um chá acabado de fazer. Shirin-Gol agradece a Deus por madar ter recuperado a voz e faz uma rápida oração, pedindo-Lhe que ela também tenha recuperado a cor do rosto e que não tenha tapado a cabeça com o lenço preto por haver perdido também os olhos, o nariz e a boca. Mas se tivesse perdido a boca, então não poderia gemer, pensa Shirin-Gol, decidindo fazer de conta que não viu madar-sem-cor-no-rosto-e-sem-voz-na-boca-e-sem-cântaro-de-barro-na-mão no dia anterior. - O que foi? - pergunta a rapariguinha, pondo tanta despreocupação na voz quanta a que Deus quis que tivesse. - O que há-de ser? - soluça madar, tirando o véu da cabeça para beber um gole de chá. Shirin-Gol vê nesse momento com os seus próprios olhos que madar perdeu a cor do cabelo durante a noite. Shirin-Gol percebe então que Deus matou o ferido que está no buraco precisamente para isso, para que madar perdesse a cor do rosto, a voz da boca, o cântaro de barro e a cor do cabelo e para que o coração materno se partisse e o cabelo materno ficasse branco. Shirin-Gol ainda não entende qual é a relação, mas, quanto mais o Sol caminha para se pôr a leste ao fim do dia, melhor Shirin-Gol vai percebendo o que é que o homem do buraco tem a ver com os cabelos subitamente brancos da mãe. O homem que chegou às costas do irmão, o homem que agora jaz no buraco atrás do casebre, é um mártir caído em nome do Profeta, do Alcorão e do Islão. Shirin-Gol já ouviu falar muito em mártires, mas sempre acreditou que eles vivessem pessoalmente ao lado de Deus e, portanto, no Paraíso, não em buracos feitos na terra. Mas agora viu com os seus próprios olhos: no buraco atrás do casebre jaz um mártir em pessoa. Um shahid. Shirin-Gol também percebe que este shahid, que não será o último da sua vida, foi um homem de carne e osso que ela conhecia, que aliás até era da sua família, melhor dizendo, um dos seus irmãos, o segundo filho que Deus deu à sua mãe e o primeiro que lhe tirava e chamava para Si. E era precisamente por esta razão que a mãe tinha dores tão horríveis, que talvez morresse, precisamente por esta e mais nenhuma razão que ficara com o cabelo branco de um dia para o outro. Shirin-Gol dá a mão aos gémeos, agacha-se junto do buraco que foi escavado no solo e faz o que a mãe e todos os outros fazem: reza, não

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compreende, fecha os olhos e pergunta a Deus porquê. Primeiro, dá às mães filhos que lhes crescem no coração, filhos a quem elas se habituam. Depois, deixa que os filhos pequenos fiquem filhos grandes, envia os Russos à sua pátria e os filhos para a montanha, onde morrem e se transformam em shahid, despedaçando o coração das mães... e tudo isto só para elas ficarem com o cabelo branco? Seria muito mais simples se não lhes enviasse filhos nenhuns e lhes desse logo o cabelo branco. E se já tem na ideia fazer o mesmo com Shirin-Gol, quando ela for grande e mãe, é melhor que deixe tudo como está, porque ela não quer nem ter o trabalho que os rapazes dão, pois afinal já sabe, pelos gémeos, as despesas e a atenção de que necessitam e a responsabilidade que significam, nem de suportar as dores, no caso de Deus tencionar deixar morrer os seus filhos para fazer deles shahid. E, claro, que não quer nem o cabelo branco nem os olhos inchados de tantas lágrimas. "Os caminhos de Deus são insondáveis", diz agora todos os dias a irmã mais velha de Shirin-Gol. Ao décimo quarto dia depois da morte do irmão, pinta os lábios de vermelho e os olhos de preto e desce à aldeia. - Onde vais? Porque pintas os lábios? Porque não andas de véu? Que vão as pessoas dizer? Vão falar de ti pelas costas. Estás a emporcalhar a honra do nosso pai, dos nossos irmãos vivos e do nosso irmão mártir morto. Em nome do Profeta e do Islão, trazes vergonha e infelicidade sobre nós. Shirin-Gol diz isto e tudo o mais em que aprendeu a acreditar e a 18 19

obedecer, mas a irmã não lhe dá ouvidos, vai à cidade e regressa, apenas na manhã seguinte, com quatro Kalachnikovs, uma caixa de granadas de mão e outra de munições, quatro pares de calças, quatro capacetes e um cavalo, que lhe transportou isto tudo. - Quantos foram?- pergunta a mãe. - Quatro - diz a irmã, baixando o olhar. - Também quero ir - exclama Shirin-Gol quando, duas semanas depois, a irmã mais velha e a irmã a seguir pintam os lábios e voltam à aldeia. - Não, isso é que não queres - diz a mais velha, tirando uma faca da saia, encostando-a ao peito de Shirin-Gol e olhando-a bem de frente. - Ou achas que és capaz de abrir a barriga dos soldados russos? - Também quero ir - repete Shirin-Gol quando, semanas depois, as duas irmãs mais velhas e agora também a irmã-do-sinal-na-cara descem outra vez à aldeia, enquanto ela não faz mais nada senão ir para o campo, varrer o chão do casebre, cozinhar, lavar o sangue da roupa das irmãs, tomar conta dos gémeos e consolá-los quando batem com a cabeça um contra o outro. - Vais ter de ir mais dia menos dia - diz a irmã-do-sinal-na-cara, fitando Shirin-Gol nos olhos, engolindo as lágrimas, beijando-a na testa, tapando o rosto com o véu e desaparecendo a caminho da aldeia. - Mas eu quero ir agora - choraminga Shirin-Gol, que se agacha junto da bacia, quando as irmãs regressam à noite e atiram as roupas ensanguentadas para a barrela, fazendo saltar água e espuma e salpicando Shirin-Gol. As irmãs não ligam a Shirin-Gol, suspiram de cansaço e agacham-se a separar e a esconder as Kalachnikovs, munições, granadas de mão, minas, botas, capacetes e tudo o que tiraram aos soldados russos. - Desta vez foram só dois - diz uma irmã. -Andam mais cautelosos - diz outra. - Espalhou-se por aí que é perigoso ir às aldeias violar mulheres afegãs. Alá seja louvado. Têm medo. Medo? Os soldados russos? Os inimigos da Pátria, do Profeta, do Alcorão, do Islão e da liberdade? Os que transformaram o irmão num shahid no buraco da terra? Os homens fardados, de botas pesadas, com as armas e as minas, têm medo das irmãs? Patranhas que as irmãs contam só para se darem ares de importantes e encherem Shirin-Gol de inveja! Shirin-Gol segue as irmãs às escondidas. Vê tudo com os próprios olhos. Mas só anos depois compreenderá que não eram patranhas.

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Os irmãos, o pai e os outros homens da aldeia estão na montanha a lutar contra os Russos e os soldados do Governo. Outros soldados russos chegam às aldeias, pilham, saqueiam, roubam e raptam mulheres e também rapariguinhas. Os soldados, ainda uns rapazolas de dezoito, dezanove, vinte anos, não fazem ideia do que é a vida, a guerra, matar e, muito menos, ser morto. Matar. Ser morto. Ainda há dois dias estavam nas suas casernas do Cazaquistão, Leninegrado, Mongólia e Usbequistão, depois de terem bebido borshch por canecas de alumínio e escrito cartas às mães e às raparigas que lhes prometeram esperar até eles acabarem a tropa, regressarem a casa e casarem com elas. A ordem chega de repente, como sempre: calçar as botas, pôr o equipamento de assalto às costas, amarrar bem as Kalachnikovs, as munições e o capacete, entrar no avião, com as botas a bater no chão, voar na escuridão, não ver nada, acreditar que vão para a Sibéria juntar carvão ou outra coisa qualquer. Desembarcam. Sem saber onde estão. Montanha a toda a volta, impiedosamente pedregosa, inimaginavelmente alta. O maciço do Indocuche, coberto de neve, rasga o céu. Quanto é sete mil metros? Quem são os mujaedines? Quantos se entricheiraram na montanha, que nos fizeram, porque é que os matamos, porque é que são inimigos do povo soviético, do socialismo? Quantos inimigos já matámos, quantos ainda teremos de matar, quanto tempo mais ficaremos, porque é que a carta para a mãe não pode ser enviada? O haxixe e o ópio calam as perguntas, o medo, a fome. As raparigas afegás, de cabelos escuros e sedosos, olhos como carvão, dentes grandes e brancos como pérolas e lábios macios como ameixas, despertam o desejo e apaziguam os corações tristes dos jovens russos. O que não recebem de boa vontade, conseguem-no à força. Comida afegã, vestuário, dinheiro, mulheres e adolescentes afegãs, a honra dos homens afegãos, dos pais, dos filhos, a dignidade e o orgulho da nação, a fé e a confiança em Deus. Os rapazes russos de uniforme obedecem às ordens, dominam o medo, levam a cabo rituais de guerra, enchem-se de coragem, dão provas de poder, força, superioridade. Caem sobre as aldeias, raptam mulheres, violam, cortam seios, abrem barrigas, atiram fetos para a areia com um estalido. Separam cabeças de crianças de corpos de crianças, beijam bocas de raparigas, lambem ventres de raparigas, arrebatam seios de raparigas, satisfazem os membros de jovens russos nas rachas virgens das adolescentes afegãs. Professores, camponeses, sapateiros, açougueiros, padeiros, comerciantes e estudantes juntam-se aos combatentes da liberdade, vão para as montanhas, matam, são mortos, põem minas, até eles próprios pisarem uma, e esfaqueiam soldados russos, até eles próprios serem esfaqueados.

"Tirar a camisa", dizem os Afegãos quando dão um golpe em volta da cintura dos Russos e lhes puxam a pele por cima da cabeça, pondo-os depois ao sol, deixando a sua carne russa

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vermelha e nua à mercê das moscas afegãs. No Cazaquistão, Leninegrado, Mongólia e Usbequistão, a mãe russa sente um baque no coração e, duas semanas mais tarde, chega uma carta, um oficial, dois soldados, um caixão de zinco. Proibido abrir. A guerra permite tudo o que a fé e a tradição, os valores centenários e a moral individual proíbem, permite o que só pode ser castigado com a morte. Honestas adolescentes afegãs, sem' véu e de lábios vermelhos, reúnem-se ali ao canto do casebre afegão que os Russos tomaram e onde fumam haxixe, perdendo a cabeça e não desejando mais nada, a não ser as raparigas que casquinam e cochicham, com os seus olhos de carvão e os corpos que nunca nenhum homem viu nem tocou. Escondida, Shirin-Gol vê-o com os seus próprios olhos e ouve-o com os seus próprios ouvidos, mas custa-lhe a acreditar. Perturbados rapazes russos fitam as irmãs descobertas com os seus olhos azuis, babam-se, lambem os lábios ávidos de desejo, estendem as mãos, pousam-nas nos seios das irmãs, abraçam as ancas das irmãs, beijam o pescoço das irmãs, puxam para si os traseiros das irmãs, gemem cada vez mais alto, dizem palavras numa língua que Shirin-Gol não percebe. Um grito, não de prazer mas de morte. Um russo fardado e esfaqueado jaz aos pés da irmã, enrosca-se, torce-se, debate-se, tenta tirar a faca da barriga, faltam-lhe as forças, puxa a saia da irmã com a mão ensaguentada, suplica misericórdia com os olhos russos azuis e obtém-na. E, no entanto, é só um homem, cuja mãe espera pelo filho algures neste mundo maldito, diz a irmã, limpando as lágrimas dos olhos afegãos, curvando-se para o moribundo, puxando-lhe a faca da barriga e libertando-o dos seus tormentos: cortando-lhe a garganta com um gesto rápido. Pela liberdade, pela honra, pela fé e para que todos eles permaneçam vivos. Vinte e tal anos depois, estas imagens ainda não desapareceram: continuam a pesar, vermelhas de sangue, no coração de Shirin-Gol, e não a deixam esquecer. A irmã-do-sinal-na-cara desde sempre que tem djin, espíritos maus, no corpo. Está sentada muito sossegada a falar, a comer, a cozinhar, a lavar ou só a cismar, e de repente começa a respirar com dificuldade, a gritar e a chorar, fica com espuma amarela na boca, range tanto os dentes que os faz estalar e arranca o cabelo. Mais uma que a guerra enlouqueceu, dizem as pessoas. 22 O pai de Shirin-Gol também sabia o que as filhas faziam pela honra, a pátria, o Profeta, o Alcorão e o Islão. Falava cada vez menos, de ano para ano, até que ficou calado, sem falar mais nada. Nunca mais e a ninguém. Nunca mais olhou ninguém de frente: nem as filhas, nem os filhos, nem a mulher.

CAPITULO 2 UMA MULHER NUA, UMA LETRA E UM BOCADINHO DE LIBERDADE

Os gémeos ainda fazem chichi nas calças, ainda mamam leite da mãe, ainda se aninham nas saias de menina de Shirin-Gol, ainda é preciso meter-lhes o pão na boca, mas falam há muito tempo, dizem palavras e frases inteiras, pão, água, fome, Shirin-Gol, dá, deixa-me, não, anda, vai, cansado, colo e muitas palavras mais, quando a vida de Shirin-Gol dá uma reviravolta. Já o

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Sol lança os seus primeiros raios no cume que domina a aldeia, já se calam na montanha as armas dos irmãos e do pai mujaedines e dos Russos, já cacareja a galinha, um dos gémeos aconchega o corpo pequeno, adormecido e robusto, ao da irmã, e o outro pousa-lhe amorosamente a mãozinha na face, quando uma explosão ensurdecedora estilhaça o sono de Shirin-Gol e o silêncio do nascer do dia. No momento seguinte, o céu fervilha e vibra com o zumbido de enormes pássaros de ferro que Shirin-Gol nunca viu na vida. - Deus mandou-nos estes monstros voadores - diz a mãe - para nos castigar pelos nossos pecados. - Que pecados? - pergunta Shirin-Gol. -Todos os pecados - responde a mãe. - Não são pássaros nem pecados - dizem os irmãos mais velhos -, são os helicópteros dos Russos e chamam-se Antonov. - Antonov - murmura Shirin-Gol - é um nome bonito. Que pena terem um ar tão velhaco e mau! Do seu casebre, que fica fora da aldeia, Shirin-Gol vê os monstros maus, cuspidores de fogo, sobrevoando a aldeia e afastando-se, dando meia volta, regressando, voando cada vez mais baixo, metendo mãos à obra, cuspindo paus, fazendo muito barulho e provocando incêndios. Em menos tempo do que o que dura uma oração, todos os casebres de lama 24

estão reduzidos a escombros, e mais de metade das pessoas da aldeia transformou-se em mártires. Shirin-Gol, os gémeos, a mãe, o irmão que saiu da barriga da mãe pouco antes de Shirin-Gol, e as três irmãs mais velhas arrebanham tudo o que podem transportar e fogem para a montanha, de onde vêem os Russos a entrar por um lado da aldeia com blindados, camiões, jipes e a pé, matando tudo o que ainda mexe, seja gente ou animal, pegando fogo a tudo e voltando a sair pelo outro. Shirin-Gol, os gémeos e o resto da família escavam um buraco no chão, escondendo as Kalachnikovs, espingardas, minas, capacetes e o resto que tem de ficar ali. Shirin-Gol pensa se as espingardas e tudo o que tem de ficar ali também serão agora mártires, mas não encontra nenhuma resposta; apressa-se para não ficar para trás e encaminha-se com os outros rumo ao Norte, na direcção de Cabul, a capital. Onde é Cabul? Porquê Cabul? Porque não para sul? Porque não para oeste, para leste ou outra vez para a aldeia? Porque não construir outra vez os casebres? Porquê? Porquê isto, porquê aquilo? - Cala-te - ordenam o irmão, o pai e a mãe, quando Shirin-Gol faz perguntas. - Calem-se - ordena Shirin-Gol, logo que os gémeos fazem perguntas. Barulho, ruído e asfalto, casas de pedra, altas como montanhas, pessoas apressadas, automóveis que cospem fumo negro, ar malcheiroso, árvores sujas, mulheres sem véu, raparigas de braços nus, rapazes que dizem "pacóvios da montanha" referindo-se a Shirin-Gol e à família. Ao pai de Shirin-Gol, que é mais mirrado e baixo do que era na montanha natal e que baixa o olhar, envergonhado. Aos irmãos de Shirin-Gol, que apanham pedras que depois deixam cair. Às irmãs de Shirin-Gol, que espreitam furtivamente por trás dos véus. À mãe de Shirin-Gol, que, por causa disso, lhes dá uma palmada na nuca. Cabul, a capital. Administração russa. Shirin-Gol acha que não pode confiar nos seus próprios olhos. Mas vê claramente à sua frente: uma mulher, uma mulher afegã, com o cabelo apanhado e tantas cores na cara que parece uma noiva, sentada sem véu à frente do pai. A pele e a carne dos braços, pernas e pescoço nus estão ali para quem quiser ver. Não baixa o olhar, fita de frente o pai de Shirin-Gol, fala-lhe abertamente, até se lhe podem ver os dentes e a língua, e faz-lhe mil e uma perguntas que não lhe dizem respeito. Perguntas respondidas com mentiras. Profissão? Camponês. Não, nunca lutei nas montanhas. Mujaedines? O que é isso? Russos? Boas pessoas. Estão aqui para ajudar o nosso país. Dinheiro? Não, nenhum. Posses? Nenhumas. 25

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As únicas palavras verdadeiras que o pai diz neste dia é que nem ele nem a mulher nem nenhum dos seus filhos sabe ler ou escrever. A mulher nua dá ao pai mirrado um papel e diz-lhe que as leis do novo Governo mandam que todos os homens, e portanto também o pai e os irmãos de Shirin-Gol, se apresentem imediatamente no próximo posto de comando para serem integrados ao serviço do glorioso exército. Que o primeiro dever de qualquer afegão patriota é defender o seu país contra os inimigos do Estado e os guerrilheiros da resistência. E mais, que é dever de qualquer afegão, homem ou mulher, velho ou novo, inscrever-se no amado e honrado Partido do Povo, recentemente formado. E mais, que as leis do novo Governo mandam que quem quiser alojamento, ou uma tenda, terá de mandar os filhos à escola; quem quiser comer, terá de mandar os filhos à escola. Em resumo, quem não quiser ir para a cadeia terá de ingressar no exército e no partido, mandar os filhos à escola e, além disso, proibir a mulher e as filhas de aparecerem em público com o corpo coberto. Shirin-Gol fica tonta por trás do véu e pensa que ainda bem que a mulher nua não lhe pode ver o rosto, porque então é que iria mesmo para a cadeia. Shirin-Gol fica na expectativa do que o pai vai responder às palavras infiéis e desavergonhadas da mulher nua. Mas o pai não diz nada, levanta-se da cadeira, fá-la tombar, porque não está acostumado a cadeiras, e prepara-se para partir. Só. Sem sequer castigar a mulher nua com uma única censura pelo seu descaramento infiel. E então acontece uma coisa, a qual Shirin-Gol pensa que só pode ter imaginado ou talvez sonhado. A mulher nua levanta-se, estende a mão, olha o pai de frente e mantém a mão estendida até o pai estender por seu lado a sua, tocando brevemente nas pontas dos dedos da mulher nua. Shirin-Gol solta um gritinho, leva uma palmada na nuca dada pela mãe, e apressa-se a tapar os gémeos com o véu para que ao menos os seus olhos inocentes não vejam as coisas incríveis que ali se passam. Mas é tarde de mais: já viram tudo e guardarão ainda durante muito tempo na lembrança a mulher nua, de quem falarão muitas vezes. - Escola? - diz o pai quando voltam à rua barulhenta, suja, cheia e malcheirosa. Cospe e a sua saliva não se afunda, fica no solo duro e cinzento que se chama asfalto. Enquanto Shirin-Gol observa a saliva do pai para ver o que acontece, este exclama: - Exército? Nunca. Regressarei à montanha e as minhas filhas não irão à escola, que é obra do demónio. Estes infiéis querem desonrar-nos. As raparigas que vão à escola ficam desnorteadas, ficam curiosas, sabem de mais, ficam insaciáveis, querem coisas, ficam esquisitas. E que homem quer desposar uma mulher assim? E no fundo, que Alá seja minha testemunha, o que estes infiéis querem é desviar-nos do caminho da virtude, encher-nos a cabeça destes disparates, destruir a nossa dignidade e a nossa fé e transformar as nossas filhas naquilo que é esta, esta, esta... - o pai não acha a palavra certa, mas continua a falar, dizendo: - As minhas filhas hão-de ser como ela? Esta... - o pai encontra finalmente a palavra: Como esta PROSTITUTA?! Nunca!

.- Infâmia e vergonha, cem vezes vergonha, que Deus amaldiçoe todos os infiéis - murmura Shirin-Gol debaixo do véu, quase agoniada com a ideia de ter de ir à escola para ficar como a mulher nua. Afinal o que é a escola? É uma prostituta? Shirin-Gol morde os lábios, fecha os olhos, pede a Deus que a salve de destino tão terrível. Quer dizer alguma coisa, talvez "Prefiro

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morrer a ser como a mulher nua", ou "Também regresso à montanha e mato Russos", mas tem tento na língua, porque o pai está tão irritado que, provavelmente, ainda leva por se atrever a levantar a sua voz de menina e a dizer o que pensa em público, sem ninguém lhe ter perguntado nada.

Shirin-Gol, os gémeos e o resto da família são levados para uma casa de pedra, com as paredes e o chão lisos e frios; quando se aperta um bo tão que há na parede acende-se uma bola no tecto que dá mais luz do que quatro candeeiros a petróleo. A sala tem duas portas: uma dá para a rua e a outra para um quartinho muito pequeno com um buraco no chão. Para seu horror, é-lhe explicado que este buraco serve para fazer as suas necessidades. Shirin-Gol tem pena das pessoas que vivem na cidade. É verdadeiramente incrível: as mulheres andam nuas, ou quase nuas, de um lado para o outro, as ruas são tão duras que fazem doer os pés, o cuspo dos homens fica à superfície, cheira mal, há muito barulho e, ainda por cima, as pessoas são obrigadas a fazer as suas necessidades dentro de casa, onde se dorme, se come e se passam os dias e as noites? Shirin-Gol não larga as mãos dos gémeos: fica à porta, esperando voltar para a montanha. Mas em vez de ir, a mãe estende as mantas no chão frio e duro, as irmãs acendem uma pequena fogueira, os irmãos vão lá fora buscar água com a chaleira, alguém faz chá, alguém desembrulha o pão seco, todos comem, a mãe arruma tudo a um canto, deitam-se um atrás do outro, todos dormem. De noite, Shirin-Gol tem um sonho. Sonha que os irmãos se enganaram e que os helicópteros dos Russos não são helicópteros e sim lindíssimos pássaros Antonov, que não lançam paus que cospem fogo. Os pássaros Antonov têm nas grandes barrigas ovelhinhas pequeninas que. oferecem a Shirin-Gol e que largam no campo em frente do casebre. Pequenas ovelhas brancas, de pêlo macio e aveludado que faz cócegas quando Shirin-Gol as abraça. Pequenas ovelhas brancas que crescem e ficam ovelhas

grandes, que dão leite. Leite com que as irmãs podem fazer queijo. Leite que Shirin-Gol pode beber. Pequenas ovelhinhas brancas que se podem comer. "Que pena ter sido só um sonho!", pensa Shirin-Gol ao acordar.

No terceiro ou quarto dia na capital, aparece um homem de farda que fala com o pai à porta. Passados quatro dias, aparece novamente um homem fardado que, desta vez não fala com o pai: grita atrás da porta. À noite, Shirin-Gol, meia a dormir, ouve vozes sussurradas. De manhã, quando acorda, não vê os irmãos mais velhos, não vê o pai, não vê as irmãs mais velhas e até a irmã-do-sinal-na-cara desapareceu. Voltaram todos à montanha para fazer aquilo de que Shirin-Gol nunca deve falar com ninguém, a menos que queira que a mãe lhe arranque a língua, e o bom Deus lhe tire a vista. Batem à porta e Shirin-Gol estremece. Uma mulher de uniforme entra, fala com a mãe, senta-se no chão ao pé de Shirin-Gol, da mãe e dos gémeos, sorri, dá a mão aos gémeos, diz a Shirin-Gol para a seguir, despede-se delicadamente da mãe e

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sai para a rua com os três irmãos. A mulher de uniforme não está tão nua como a mulher nua do primeiro dia. Mas também não se encontra tão vestida como a mãe, as irmãs, a própria Shirin-Gol e todas as outras mulheres que até ao momento passaram pela sua vida. Mesmo assim, a mulher meia nua, ao menos, tapa o cabelo com um lenço, não traz a cara pintada, tem os braços cobertos, a saia cobre-lhe os joelhos, usa meias e sapatos rasos, anda com a cabeça baixa, não olha de frente para nenhum homem que vai na rua, desvia os olhos, como deve ser, e dá um passo para o lado quando os vê vir na sua direcção. Quando mira Shirin-Gol e os gémeos, sorri sempre, o que é bom, porque, pelo menos assim, Shirin-Gol e os gémeos não têm tanto medo. A mulher meia nua do sorriso bonito chama-se Fauzieh, é professora e Shirin-Gol vai passar a vê-la todos os dias, a partir de agora. - Esta é a vossa escola - diz Fauzieh -, esta é a vossa sala, estes são os vossos colegas, podem ficar com os sapatos, tira o véu, senta-te ali naquele lugar vazio, não, no chão não, ali no banco, isto é um caderno, isto é um livro, isto é um lápis, isto é uma letra.

- Sh: o princípio do teu nome. - P-á-t-r-i-a. - R-ú-s-s-i-a. - Sh-i-r-i-n-G-o-l, Doce Flor. - G-u-e-r-r-a. - M-u-j-a-e-d-i-n, não, combatentes da liberdade não, combatentes da resistência. Inimigos do povo, inimigos do partido e do venerável Governo. - Vivemos em Cabul, a capital do Afeganistão. Cabul tem três mil e quinhentos anos. Os Ingleses tentaram conquistar o nosso país durante mais de cento e cinquenta anos, tentaram uma e outra vez e uma e outra vez foram expulsos da nossa pátria por homens e mulheres de coragem. Agora, os Russos, povo que ama a liberdade, vieram ajudar-nos. - Este retrato mostra o nosso amado Presidente e pai da nossa admirável pátria. Shirin-Gol endireita-se, abre a boca, quer falar, cala-se e pensa: "O meu pai chama-se... S-i-l-ê-n-c-i-o. M-e-n-t-i-r-a. M-e-d-o. R-ú-s-s-i-a. M-u-l-h-e-r-n-u-a.

Shirin-Gol nunca, em circunstância nenhuma, será como a mulher nua do primeiro dia e as muitas outras mulheres nuas que, desde então, vê na rua, mas pior do que ser uma mulher nua seria não ir à escola e ir parar à cadeia. Shirin-Gol tenta por isso cumprir o melhor possível as instruções de Fauzieh e obedecer à professora, de modo a não ter de ir para a cadeia. Porque isso sabe muito bem: na cadeia arrancam às pessoas as línguas e as unhas, furam os braços e as pernas com varas quentes, cortam os dedos, partem os ossos dos braços e das pernas, trespassam a barriga, quebram os dentes e arrancam os olhos. Sempre que tem tempo livre, Shirin-Gol senta-se em qualquer lado, quase sempre à frente da porta do quarto onde vive com os gémeos e a mãe, e lê, escreve, treina palavras e frases. No quarto ao lado vive uma outra rapariga com a mãe e o resto dos irmãos e das irmãs, sem pai e irmãos mais velhos, que também voltaram para a montanha. Mas também não pode falar disso, para a mãe não lhe arrancar a língua e Deus não lhe tirar a vista. A rapariga chama-se Malalai e, pelos vistos, não se importa nada que a mãe lhe arranque a língua e que Deus lhe tire a vista, porque faz o que é proibido, contando a Shirin-Gol que o pai e os irmãos mais velhos regressaram à montanha para lutar ao lado dos mujaedines. Contra os malditos Russos e o maldito Governo-fantoche de Taraki e todos os presidentes seguintes, que têm nomes diferentes mas querem sempre o mesmo: trair e oferecer de bandeja a pátria amada aos Russos. - Como é que sabes

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isso tudo e onde é que vais arranjar coragem para falar assim? Não tens medo? - pergunta Shirin-Gol de olhos esbugalhados

- Não, sou valente. Até me chamo Malalai - responde a rapariga, endireitando o corpo magro como se quisesse mostrar a Shirin-Gol os seios pequenos, em botão. Depois pergunta: - Sabes quem foi Malalai? Shirin-Gol abana a cabeça e olha para o chão. - Foi uma heroína - explica Malalai. - Uma heroína afegã. E é importante que saibamos quem foi. Shirin-Gol torna a não dizer nada, só baixa a cabeça. - Malalai matou o rei desumano - diz Malalai, fazendo uma pausa e saboreando o efeito das suas importantes palavras. Shirin-Gol levanta os olhos, observa Malalai e nem acredita no que a rapariga lhe conta. Uma mulher que matou um homem, um rei? - Porque é que o fez? - pergunta Shirin-Gol. - E como é que o fez? Malalai está satisfeita. - Olha - responde - não foi fácil, mas era uma mulher valente e forte, mais valente do que todos os homens e todos os guerreiros e mais forte do que o rei desumano. Malalai aponta para a colina do outro lado do canal e pergunta: - Estás a ver a muralha? Shirin-Gol contempla a muralha e pensa porque será que só hoje vê pela primeira vez uma muralha tão comprida, que serpenteia até ao alto da colina. Malalai abre o livro da escola e diz: -Aqui, olha. Está aqui escrito. A história da corajosa Malalai. - Não sei ler - diz Shirin-Gol envergonhada, voltando a olhar para o chão. -Não faz mal - diz Malalai -, vais aprender. Se quiseres, posso ler-te a história de Malalai. Shirin-Gol quer e Malalai lê. "O rei desumano receia os seus inimigos, que são muitos, e quer proteger-se deles. Ordena por isso a todos os homens de Cabul que construam uma muralha alta e larga à volta da cidade, para sua protecção. E dá instruções aos seus soldados para que matem qualquer homem que deixe cair ao chão nem que seja um punhado de barro. Malalai, que se tinha casado na noite anterior, veste de manhã as roupas do seu marido e apresenta-se na muralha em seu lugar." - Mas porquê? - pergunta Shirin-Gol. - Porque o marido estava muito cansado - responde Malalai. - Estava cansado porquê? - pergunta Shirin-Gol. - É evidente - responde Malalai -, era o noivo e estava cansado por causa da noite de núpcias. Shirin-Gol prefere não perguntar porque é que o noivo estava cansado e a noiva não. "O rei desumano", continua Malalai a ler, "vai todos os dias à muralha ver como os homens estão a trabalhar, se são diligentes e se são suficientemente rápidos a construí-la. Quando chega à colina, na manhã em que Malalai constrói a muralha em lugar do marido e, apesar das roupas de homem, percebe que ela é uma mulher, fica espantado e põe-se a gritar, perguntando o que é que uma fraca mulher de mãos impuras está a fazer ali na sua muralha. Malalai, a Corajosa, enfrenta o rei desumano e pergunta-lhe: "Então estes homens são mais do que nós, mulheres? São tão fracos e cobardes como nós. Se fossem valentes, aceitariam as tuas inustiças e desumanidades sem se defenderem de ti?" Os homens ouvem o que Malalai diz e sentem-se ultrajados. Nunca nenhuma mulher os humilhou assim. É coisa que os homens de Cabul não podem admitir. Querem demonstrar que, de modo algum, são fracos e cobardes como Malalai diz. Então tomam coragem, caem sobre o rei, matam-no e enterram-no debaixo da sua muralha de lama. A muralha de lama de Cabul." Está um rei enterrado debaixo da muralha? Onde? Em que sítio da muralha? O que aconteceu a Malalai? Porque é que, apesar de tudo, os homens construíram a muralha até ao fim? Shirin-Gol nem sabe qual das suas mil e uma perguntas deve fazer em primeiro lugar. Nem se há-de acreditar na sua vizinha. Como há-de saber se tudo aquilo está realmente escrito no livro? Pode ser que Malalai tenha inventado a história da valente Malalai, que matou o rei, só para se dar ares de importante. Mas

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inventada ou não, Shirin-Gol acha a história de Malalai bonita e lamenta que não tenha havido na história do Afeganistão nenhuma heroína chamada Shirin-Gol. - Tu és assim tão corajosa como a heroína? - pergunta Shirin-Gol, pasmada. - Claro que sim - responde Malalai, que talvez um dia também seja heroína e mate um rei desumano. Voltando a endireitar-se para mostrar os seios de rapariga, diz: - Todas as Malalai são corajosas. - Tens sorte - diz Shirin-Gol.

Malalai já está há uns meses na cidade, gosta de ir à escola, gosta de aprender palavras e gosta de aprender a escrever, a ler e a fazer contas. De manhã, bate à porta de Shirin-Gol com um sorriso alegre, chama-a e aos gémeos, dá-lhes a mão e caminha com eles para a escola. Isto é, Maialai saltita mais do que caminha, passando por desconhecidos, mulheres, homens, soldados, tanques, camiões. Passando pelo canal, que cintila e brilha ao sol, por vendedores que apregoam a sua mercadoria, por lojas com tecidos coloridos, por homens que fazem chaleiras, batendo no metal que tilinta como mil canções. Passando por lojas cheias de sacos de arroz, trigo, lentilhas, feijão. Passando por homens que vendem ervas aromáticas

frescas e em pó, de todas as cores e cheiros, que põem a cabeça de Shirin-Gol a andar à roda. Passando por veículos cujos sinos e guizos tilintam. Passando por coloridas carroças de cores vivas. Passando por cavalos que relincham e erguem orgulhosamente a cabeça. Passando por automóveis que buzinam. Passando por pombas que debicam o chão à procura de grãos de milho e que levantam voo quando Shirin-Gol, os gémeos e Malalai se aproximam. Passando por tudo e mais alguma coisa que, em breve, também para Shirin-Gol, serão quadros conhecidos e amados. Durante os anos que passa na cidade, Shirin-Gol aprende a compreender que ainda é uma criança, e que da vida de uma criança fazem parte muitas coisas que até ao momento não conhecia. As mais importantes são: brincar, não só com raparigas mas também com rapazes, poder falar sem lhe terem perguntado nada, correr, saltar, andar sem véu, não ter de passar a vida com os irmãos pela mão, ao colo, pendurados nas saias, cantar, ser pateta, gritar. Shirin-Gol gosta de poder ser criança e adoraria permanecer assim toda a vida. C-r-i-a-n-ç-a, R-a-p-a-r-i-g-a, escreve Malalai. C-r-i-a-n-ç-a, R-a-p-a-r-i-g-a, escreve Shirin-Gol. L-i-b-e-r-d-a-d-e, escreve Malalai. L-i-b-e-r-d-a-d-e, escreve Shirin-Gol, que acha a palavra especialmente bonita e a escolhe para sua preferida. Shirin-Gol aprende que um mais um são dois e dois mais dois, quatro. Aprende que o dinheiro tem valor e que podem comprar-se coisas com ele. Aprende que existem países que ficam muito, muito longe, muito mais longe do que ela consegue imaginar. Shirin-Gol põe-se de pé à frente da turma, canta uma canção com a sua voz bonita, profunda e cheia, enquanto as outras raparigas e rapazes aplaudem. Shirin-Gol desenha uma palavra no quadro: o giz arranha, range, fazendo a sua pele arrepiar-se e ficar cheia de divertidas e minúsculas bolinhas. Shirin-Gol mergulha o trapo em água para limpar o quadro. Shirin-Gol abre o caderno e escreve palavras numa página vazia, branca como um lírio. Shirin-Gol recita um poema no qual louva a Pátria, o Partido e o Pai do país e da nação, prendem-lhe uma medalha ao peito e as outras

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crianças aplaudem. Shirin-Gol aprende que há sempre um homem, o chefe do país, que jura dar a todos a liberdade, o qual, primeiro, se chamava Mohammad Taraki, depois Babrak Karmal, depois Hafizulla Amin... ou chamava-se primeiro Karmal e depois Amin? A seguir, chamava-se Haji Mohammad Chamkani, depois Mohammad Najibullah. Seja como for, existe sempre um homem que jura trazer a liberdade. - Anda - diz Malalai, sorrindo -, vamos ao lago. - Vamos? Vamos, quem? 32 -Os rapazes, eu e tu. Pela primeira vez na vida, Shirin-Gol sai para algum lugar sem os gémeos... Pela primeira vez na vida, não diz à mãe onde vai. Pela primeira vez na vida, mente à mãe. Pela primeira vez na vida, entra num carro que se chama táxi. Pela primeira vez na vida, senta-se ao lado de um homem que não é seu irmão nem seu pai. Deitada de costas, Shirin-Gol brinca com os pés nus na água do lago. Contempla o céu azul, trauteia uma canção, cala-se, ouve o silêncio, sente a mão do jovem perto da sua, sente o coração de adolescente batendo-lhe por todo o corpo de adolescente, a respiração de adolescente acelerando-lhe, o sangue disparando-se-lhe para o ventre e a cabeça, os seios de adolescente endurecendo. Shirin-Col tem a cabeça descoberta, pousada ao lado da do rapaz, examina-lhe os olhos bonitos, escuros e quentes, murmura o seus nome, sobressalta-se ao ouvir a própria voz, dá um salto, ri baixinho, corre para a água, a saia fica molhada, as pernas ficam molhadas, refresca as mãos, leva-as à boca em concha, bebe água fresca do lago. Mais tarde, não é o rapaz que Shirin-Gol recorda e sim o lago, o azul, o ar rarefeito e fresco, o espectáculo da água calma com a montanha à distâcia, o canto das aves, o ar frio debaixo das árvores, o sabor da água fresca do lago na boca, passando-lhe pela garganta e chegando-lhe ao estômago, refrescando-a por dentro. Shirin-Gol recorda o vento que lhe revolve o cabelo, sabendo como este momento é único, precioso e proíbido. Tudo isto e muito mais permanece na lembrança de Shirin-Gol. E também ainda sabe o que pensou nessa altura: Deus viu-me e foi contar ao meu irmão tudo o que se passou nessa tande. Que estive neste lago com um rapaz e que o meu ventre se arrepiou e contraiu. Que estive descalça e que arregacei as mangas. Que me deitei, estendi e estirei no prado, perante os olhos de um desconhecido. Que molhei as saias e as pernas. Deus viu todas estas coisas e contou tudo ao meu irmão, pois, de contrário, não há explicação para o que se passou no dia seguinte.

CAPITULO 3 MORAD E LUZ-DO-SOL

Shirin-Gol tenta subtrair-se ao olhar de censura e desconfiança da mãe, veste o uniforme da escola o mais depressa que pode, ao contrário de todas as manhãs não faz as tranças de novo, tapa a cabeça sem refilar, rejeita o chá quente com açúcar, mais o pão seco da véspera que lhe cola a língua ao céu-da-boca, corre para a porta, abre-a com ímpeto, ralha com os gémeos para se despacharem, calça os sapatos à pressa, dobra-se para os apertar. O sangue corre-lhe para a cabeça, lembra-se do lago e do jovem, da sensação desconhecida, maravilhosa e proibida, envergonha-se, levanta o rosto afogueado e encontra o olhar de um homem que se parece com os que ficaram na montanha a lutar por... por quê? De momento, Shirin-Gol não se recorda. - Como te chamas? - pergunta o homem, sorrindo para o rosto corado de Shirin-Gol. - Shirin-Gol. O homem sorri e pergunta amavelmente: - Para onde vais? - Para nenhures -

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responde Shirin-Gol, que também sorri. - Onde é nenhures? - pergunta o desconhecido. - Na escola - diz Shirin-Gol, arrependida por não ter feito as tran ças de novo. O homem só a contempla sem dizer nada. Shirin-Gol não sabe porquê, mas gosta dele. - Quem és? - pergunta ela, fitando os bonitos olhos cor de mel que lembram a ternura e a delicadeza do Inverno na montanha natal. - Morad. - Morad, quer dizer "Desejo", é um nome bonito. Qual é o teu desejo e a tua ambição? Que queres? - indaga Shirin-Gol. Nada - responde Morad, sorrindo. - Nada não há - replica Shirin-Gol. Ri à socapa, vira-se assustada para a mãe, que não percebe que ela ri à socapa, e pergunta: - Que queres de mim? Quem te disse que quero alguma coisa de ti? - pergunta Morad. - Sei. - Foi o teu irmão que me mandou. Mais sangue acode ao rosto de Shirin-Gol, pondo-a tonta. Os joelhos vergam-se-lhe e pensa "Mais um shahid?" - O meu irmão? - murmura assustada. - Cala-te. Não digas nada. Não aqui à frente da mãe e das crianças. Os gémeos estão um à direita e outro à esquerda de Shirin-Gol. Ob servam o desconhecido, lançam olhares de interrogação à irmã, puxam-lhe a saia. - Vamos - dizem. - Vão indo - diz Shirin-Gol, empurrando-os para fora. - Eu já vou. -Não - protestam os dois -, tens de vir connosco. -Não - insiste Shirin-Gol -, vão indo que eu já vos apanho. - Não - teimam os gémeos sem arredar pé. - Anda comigo. Shirin-Gol empurra Morad para a rua, dá a mão aos gémeos, como todas as manhãs, e põem-se os quatro a caminho lado a lado. Nem Shirin-Gol nem Morad despregam os olhos um do outro por um só momento. - Espera aqui - pede Shirin-Gol a Morad quando chegam à escola. Leva os gémeos para dentro e regressa sozinha. -Vamos - diz Morad. - O que aconteceu? Morreu alguém? Está alguém ferido? Muito mal? Diz depressa. Fala. - Não - tranquiliza-a Morad -, não é nada de mal, não te preocupes. A mensagem que trago é de alegria. Com a ponta do lenço que lhe cobre a cabeça, Shirin-Gol limpa o suor da testa, respira de alívio, segue atrás de Morad e espera que ele tenha dito a verdade. Perto do bazar, Shirin-Gol já não pode mais. - Sinto-me mal, tenho de me sentar, diz lá porque é que o meu irmão te mandou. Morad tira um lenço do bolso, bate com ele numa pedra da calçada para lhe tirar o pó, estende o lenço sobre a pedra, diz a Shirin-Gol para se sentar, agacha-se à sua frente, fita-a demoradamente, acaricia-lhe as costas da mão, mexendo os dedos como se fosse uma borboleta, e repete alegremente, sempre com um bonito sorriso nos lábios cheios: - Foi o teu irmão que me mandou. 34 35 - Já disseste isso - impacienta-se Shirin-Gol,observando a mão, como se os dedos do desconhecido tivessem deixado lá a sua marca. A marca de Morad nas costas da sua mão -Eu e o teu irmão combatemos juntos -começa Morad, com o peito inchado. - Lutámos na unidade comandada pelo corajoso Massoud, Massoud, o Leão do Panj-Shir, do de di Cinco Leões. - Sim - interrompe Shirin-Gol -, ulgunaunidade unidade hão-de lutar. - Eu e o teu irmão ficámos amigos - ontin Morad. - Combatemos lado a lado durante uns anos, mas depoi eu dre que não queria lutar mais e que quem usar-me. Eu e o teu irmãopgimàs cartas e ele perdeu. Como não tinha dinheiro para me pagar, dim-me que, já que eu quem casar, tinha muitas irmãs. E que em vez de receia o duheiro, podia casar com uma delas. Perguntei-lhe qual das irmãs prefeia e d: disse-me que gostava mais da Doce Flor. Então, eu disse-lhe que rasam com a Doce Flor - Ele gosta mais de mim? Não sabia -dir 5ónn-Gol sem olhar para Morad, desenhando palavras no pó da rua oro d dcdo: ga~t a-m-a-i-s. - É verdade - responde Morad, apagado áinidamente com o pé os gatafunhos escritos no chão. - E agora vim ara casar contigo - Não sei se quero casar - protesta Skrin4ol, observando Morad. - O teu irmão assim decidiu - replìcaMont continuando a sorrir. Shirin-Gol cala-se e olha para o pó da estiai. - Deram-me o nome de um mullah. Dssersme que não leva muito caro. Ele pode casar-nos. Não é longe daqui Vamos lá agora. -Agora_? -Agora

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ou mais tarde, qual é a diferença? - Nenhuma - responde Shirin-Gol. -Absolutamente nenhuma_ Duas bom depois, Shirin-Cdl e Moradcstãontra vez sentados algures nas proximmidades do bazar, Shirin-Col áesenlndo outra vez palavras na poeira da nua, Morad outra vez sorrio a quando fala: tudo como era há duas horas, só que agora Shirin-Gol e Mend são casados. Shirin-Col pensa de novo- *Não há diferença. Absolutimeii nenhuma.* - O que é que o meu irmão te Contou mai - pergunta -0 teu irmão disse que tu és a mais forradas irmãs. M-a-i-s-f-o-r-t-e, escreve Shirin-Gol na poeirada rua - Também te, disse que desobedeci e que, apesar da proibição do meu pai, ando na escola? - Não, isso não me disse - responde Xorad, pe, pela primeira vez, não sorri. - Isto são palavras, v&? M-o-r-a-d_ - Então sabes ler e escrever-? - Bale Albatah. Sim. Claro. - Não sabia - diz Morad, examinando os gatafu tipos escritos na poeira da rua. Diz-se que as raparigas que sabem ler e escrCver são atrevidas e refilonas. Diz-se que quanto mais uma rapariga sabe mais exigente é. As pessoas dizem que as raparigas que andam na escola não se dão por satisfeitas com nada nem com ninguém. Diz-se que estas raparigas não respeitam o marido e que não se pode confiar nas rapariga que andaram na escola. Shirin-Gol observa Morad, sorri e diz: -Dantes pensava que se não fosse à escola me metiam na cadeia. E que ia ser uma mulher nua. -Mulher nua? Quem é? Shirin-Gol pensa, fita Morad e responde: - E... ora, que sei eu? Não é ninguém. - N-i-n-g--u-é-m, desenha ela na poeira da rua. - Os homens não querem mulheres mais espertas do que eles - co menta Morad, olhando para a rua, até ao fim do bazar -Agora já não me queres? - pergunta Shirin-Gol, apagando com o pé a palavra "n-i-n-g-ume-m" do pó da rua. -Agora já somos marido e mulher - responde Morad, voltando a sorrir. - Vamos deixar tudo como está. Veremos o que acontece. - Isso. Vamos deixar tudo como está e veremos o que acontece - repete Shirin-Gol.

Dois dias mais tarde, Shirin-Gol e Morad mudam-se para um quarto próprio. Contas feitas, a vida depois do casamento não é melhor nem pior do que antes. Morad é amigo de Shirin-Gol, que, apesar de tudo, agora já não é obrigada a passar a vida com os gémeos nem a ouvir a mãe queixar-se da vida desgraçada que leva, da injustiça do destino, das inúmeras doenças e preocupações. - Com que dinheiro vamos viver? - pergunta Shirin-Gol a Morad. - Isso não é pergunta que uma mulher faça ao marido - responde Morad. - Tens medo das minhas perguntas? - Não se trata de ter medo e sim de honra. Se me perguntas como vamos viver, é como se dissesses que receias que eu não possa sustentar-nos. - Podes sustentar-nos? -Vou procurar trabalho, não te preocupes - responde Morad. - Ganhar dinheiro é um problema dos homens. - Quero voltar à escola - diz Shirin-Gol. - Não pode ser - responde Morad.- Agora és uma mulher casada. 37 Que vão pensar os vizinhos? Desde o princípio que foi um erro andares na escola. Não vês onde é que isso te levou? A escola e esses disparates todos que tens na cabeça estragaram-te. - Quero ser médica - diz Shirin-Gol, sem tirar os olhos do marido. Morad sorri ternamente, acende um cigarro, fecha os olhos e dormita Shirin-Gol senta-se ao lado de Morad, pousa-lhe a mão no braço, trauteia uma canção, pensa, cala-se, volta a cantar, cala-se, fala com voz suave e profunda. Morad abre os olhos, não diz nada, solta o fumo do cigarro para o quarto, olha ternamente para Shirin-Gol, ora com o seu bonito sorriso, ora sem sorrir, escutando-a apenas. - Dantes, na montanha - diz Shirin-Gol -, comia no meu canto à frente do casebre, e tinha a certeza de que o mundo era tão grande ou tão pequeno como o que eu via com estes dois olhos. Tudo o que conhe cia era o casebre, o terreiro em frente, o meu alguidar, as galinhas, as duas grandes árvores de um lado, o verde, o roçagar das folhas ao

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vento. Do outro lado, via o princípio do caminho, as moitas, a grande pedra onde a minha mãe se sentava, a estaca onde se prendiam o burro, a vaca e a ove lha e, à distância, o pico da montanha. No meu grande pequeno mundo viviam a minha mãe, o meu pai, os meus irmãos e irmãs e, pouco depois de eu ter começado a pensar, pouco depois de eu ter começado a perceber tudo, os gémeos chegaram à minha vida. "Não sei quando, reparei que os meus irmãos e o meu pai deixavam o meu mundo todos os dias que Deus nos dá e só regressavam à noite. Fui, por isso, compreendendo que havia outros lugares neste mundo, para lá do meu casebre e do terreiro em frente. "Devagarinho, passo a passo, aventurei-me neste mundo e descobri os campos verdes, amarelos e castanhos, o vale e o pequeno caminho de areia. Vi que as montanhas não são só picos, que são muito mais largas em baixo do que em cima e que existem muitos mais picos, além do único que via do meu canto, à frente do casebre. Vi a grande estrada de areia, a aldeia, o deserto, outras pessoas, desconhecidos, amigos, parentes. "Depois vieram os Russos, e percebi que existe outra terra para além` do Afeganistão. Viemos então para a capital. Ao princípio, tremia de medo deste mundo terrivelmente grande e barulhento, cheio de estrondos e maus cheiros, cheio de pessoas que eu não conhecia, que estavam sempre com pressa e que não se olhavam nos olhos. Shirin-Gol ri. -Tremia de medo da mulher nua, com medo de me tornar como ela, medo de ir presa. O tempo passou, conheci russos e aprendi que são pessoas como tu e eu. Aprendi que as pessoas não são boas ou más por rezarem cinco vezes por dia, nem por taparem a cara. Conheci mulheres mais fortes e espertas do que todos os homens que passaram na minha vi da. Aprendi que as mulheres não são menos do que os homens e que podem fazer tudo o que os homens fazem. Tens a cabeça cheia de disparates russos - diz Morad, sorrindo e soltando o fumo do cigarro. Shirin-Gol observa o seu marido-de-há-uns-dias, sorri como ele e responde: ? Pensa o que quiseres. Que diferença faz. O importante é que o que vi e aprendi está na minha cabeça e não gostaria de voltar a renunciar a tudo. Já não posso renunciar. Está aqui. Gravou-se indelevelmente no meu cérebro. Mesmo que quisesse, já não conseguiria apagá-lo. Há ainda tanta coisa no mundo que não conheço e gostaria de conhecer! Quero ver, quero cheirar, ouvir. Quero pisar solos que ainda não conheço. Quero ouvir vozes que não ouvi. Olhar os olhos de desconhecidos. Gostaria de falar outras línguas, cheirar o ar de outras terras. Morad observa a sua esposa-de-há-dias e vê as centelhas da vida nos seus olhos. Estende-se, pousa a mão na dela, repara que a respiração se lhe acelera, nota que está a acontecer-lhe qualquer coisa que não consegue controlar, que alguma coisa bem dentro dele, uma parte dele que já não conhece, de que só se lembra da infância vagamente, indefinidamente, desperta para a vida, dá-lhe voltas na cabeça, percorre-lhe o estômago e fá-lo tremer de medo, de medo, mas também de desejo. - Morad, tornei-me tua mulher porque o meu irmão assim o quis. - Shirin-Gol fita os bonitos olhos cor de mel de Morad, que lembram os Invernos brandos e ternos da montanha natal, e diz em voz baixa, cheia de um amor que ela própria não sabe de onde vem: - Morad, gosto de ti. Gosto de ti, não porque alguém assim o decidiu, mas porque quero. Vi nos teus olhos bondade e inteligência. Por favor, Morad, não digas que não. Gostaria de voltar para a escola, mas gostaria de o fazer com o teu acordo. Morad não diz nada. - Morad, gostas de mim? - Bale. -Porque é que gostas de mim? Morad encolhe os ombros. - Porque sou como sou. E sou como sou, porque vi e aprendi tudo o que vi e aprendi. Porque ando na escola. Porque arde em mim esta ansiedade. Porque deixei o meu canto à frente do casebre. Porque vim da montanha. Porque quero ser médica. Morad, tu combateste nas montanhas, ajudando e servindo o nosso país. Eu gostaria de ser médica para também o ajudar e servir. -Quero ir

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dormir - diz Morad. _ Vais pensar em tudo o que te disse? 38 39 - Bale. - Amanhã falamos mais? - pergunta Shirin-Gol. - Bale. Shirin-Gol tira o lenço da cabeça, baixa a chama da lamparina, sopra para a apagar, deita-se ao lado do marido-de-há-uns-dias, pousa-lhe a mão no ombro, descansa a cabeça no seu coração de homem, levanta a coxa, encosta-a à barriga de Morad, fecha os olhos, sorri na escuridão e diz, - Pronto, amanhã falamos e logo veremos. Durante a noite, ouvem-se violentas pancadas na porta. Shirin-Gol vai abrir. Quatro homens fardados e armados querem levar Morad, que tem de ir para a tropa. Shirin-Gol mente. Morad não está. Os soldados em purram-na para o lado, fazem barulho, arrancam Morad da cama, arrastam-no para fora e dizem a Shirin-Gol: -A partir de hoje, o teu marido é soldado do glorioso exército da nossa pátria. Vai para o Norte combater os mujaedines. Não esperes por ele. Só voltarás a vê-lo daqui a um ano. "Graças a Deus que é no Norte", pensa Shirin-Gol. "Pelo menos não terá de lutar contra os meus e os seus irmãos, contra o meu e o seu pai." Na manhã seguinte, Shirin-Gol veste o uniforme, faz as tranças de novo, amarra o lenço à cabeça, vai para a escola, senta-se no seu lugar, não diz que, entretanto, se casou, que, entretanto, foi feita mulher, aprende o que pode, lê o que pode, escreve, faz contas, é passada para a classe seguinte, o seu ventre aumenta, e a mãe tira-lhe uma criança do corpo. É uma menina. Shirin-Gol chama-lhe a sua luz do Sol, Nur Aftab. Quatro dias depois do nascimento da sua primeira filha, Shirin-Gol volta para a escola. Um ano mais tarde, quando a filha já sabe correr e diz as primeiras palavras, a porta abre-se e Morad entra. Abraça Shirin-Gol, beija a filha na testa, senta-se a um canto, bebe chá, olha o vazio, chora, agita se, não quer ser consolado, soluça, gagueja palavras, acalma-se, abraça Shirin-Gol uma e outra vez, encostando a cabeça ao seu ombro forte e robusto de menina-mulher. - Fala - diz Shirin-Gol em voz doce e profunda. - Que te fizeram? Que aconteceu?? Procura palavras para me contar, diz-mas, partilha-as comigo. Se me deres metade da tua dor, só terás de carregar metade do sofrimento. Morad contempla a sua jovem mulher, enxuga as lágrimas dos seus olhos de homem e comenta: - O teu irmão não mentiu. Tu és forte. - Pois sou - responde Shirin-Gol - Podes contar comigo. Agora e para sempre. -Foste à escola? Fui. - Ouve-me bem. Tenho de voltar daqui a dois dias. Quero que me prometas uma coisa. - Diz o que queres de mim para eu saber se pode ser ou não - diz Shírin-Gol. ___já pensei - declara Morad. - O quê? -Vais ser médica. Médica, ou o que o teu coração quiser. - Porquê? - Minha Doce Flor, meu coração, minha rainha, porque estavas certa. A única razão por que o nosso Governo pôde trair-nos, a nós e ao nosso país, e vender-nos aos Russos, a nossa miséria, esta guerra... tudo isto só pôde acontecer porque somos ignorantes, porque não entendemos nada, não percebemos nada, não sabemos ler nem escrever, porque acreditamos em toda a gente que nos aparece à frente com belos discursos e uma folha na mão, dizendo: "A partir de hoje a lei é esta." Somos um povo de cegos. Qualquer um pode fazer de nós o que muito bem entender: atirar-nos a um poço, abandonar-nos simplesmente à nossa sorte, guiar-nos pelo caminho errado ou até matar-nos. Quem vê, percebe onde está, pode decidir se quer ficar aqui ou ir para ali e vê o caminho por onde vai. Tinhas razão, minha Doce Flor. Sempre tiveste razão. Para mim, é tarde de mais, mas quero que tu e os meus filhos aprendam a ler e a escrever. Quero que aprendam a decidir por si próprios o que é bom e o que é mau, quem mente e quem fala verdade, quem é inimigo e quem é amigo. - Falas com inteligência - diz Shirin-Gol, beijando a testa de Morad. Depois de dois dias e duas noites durante os quais Shirin-Gol e Morad se amam como nunca antes se amaram e nunca mais se amarão, um jipe russo vai buscar Morad, que regressa às montanhas do Norte do país para combater os seus compatriotas, os mujaedines, os seus irmãos de fé, sob as ordens de um

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comando russo. Numa guerra que nem ele nem eles quiseram, que nem ele nem eles começaram. Por uma vitória que nem um nem os outros alguma vez terão. Por um objectivo que não conhecem nem entendem. Numa guerra que ainda continua. Shirin-Gol chora durante dois dias e duas noites pelo décimo quinto, décimo sexto ou talvez apenas décimo quarto (quem sabe exactamente quantos!) ano da sua vida, que não foi vida nenhuma, pelo marido que aprendeu a amar e que não sabe se voltará a ver, pela filha, que não conhece o pai. Ao terceiro dia, Shirin-Gol lava os olhos inchados, veste o uniforme, faz as tranças de novo, tapa a cabeça, leva a filha a casa da mãe, vai para a escola, senta-se no seu lugar, lê, escreve, faz contas e tem mil e uma dúvi das que não exprime. 40 41 Para quem foi e é boa esta guerra? Quando serão suficientes os soldados mortos, esfolados, esquartejados? Quem conta às mães, às mulheres e às filhas dos soldados as suas últimas palavras? Quem dá a mão aos mori_ bundos? Quem dá a mão às mães, mulheres, filhas de luto? Quem vence? E quanto vale o que o vencedor vai ganhar? Há guerras em todos os países desta Terra? Em todos os países desta Terra morrem filhos que se tornam mártires, despedaçando o coração das mães e fazendo-lhes crescer cabelos brancos? - Shirin-Gol, perdeste o teu sorriso de felicidade - diz Fauzieh, professora. - A tua vivacidade, o brilho inocente dos teus olhos e a alegria, as tuas perguntas e a tua curiosidade. Tornaste-te mulher. CAPITULO 4 UMA CAPITULAÇÃO E A RETIRADA DOS RUSSOS Shirin-Gol, Malalai, os gémeos, outras raparigas e rapazes, mulheres, homens, crianças, aleijados, manetas, pernetas, doidos, esfomeados amontoam-se à beira da estrada, com um cravo vermelho numa mão e na outra uma bandeirinha de papel que abana ao vento e faz claque-claque, como se as pessoas batessem palmas baixinho e muito depressa. Enormes, gigantescos tanques russos passam a matraquear, com pesadas correias que fazem estremecer a estrada debaixo dos pés de Shirin-Gol. Camiões russos estrondeiam e cospem um fumo preto para o cabelo descoberto de Shirin-Gol; música russa zumbe-lhe nos ouvidos. Os olhos cansados e azuis dos soldados russos observam-nos, as mãos dos soldados russos apanham os cravos vermelhos, os soldados russos acenam com pequenas bandeiras russas. O glorioso exército do país vizinho, amante da paz, capitula e abandona a pátria de Shirin-Gol. Durante dez anos, Russos, Georgianos e Cazaques dispararam mísseis, lançaram bombas, enterraram minas, atacaram aldeias. Durante dez anos, mataram e foram mortos por Afegãos. Durante dez anos, mães e mulheres russas e afegãs choraram os filhos, maridos, irmãos e pais. Durante dez anos, Shirin-Gol pensou que os Russos nunca mais partiriam, que a guerra nunca mais acabaria.

CAPÍTULO 5 OS MUJAEDINES, UMA GUERRA ENTRE IRMAOS E MAIS UMA FUGA - Não quero sair daqui - grita Shirin-Gol. - Quero ficar aqui à espera do pai dos meus dois filhos e ser médica. - Olha de frente a madar, que lhe dá a segunda bofetada. Shirin-Gol cala-se e junta as coisas todas. Mas não as suas, as da filha e do filho. - Não podes ficar, é a guerra - grita a mãe. - Mãe tapada e ignorante! Os Russos partiram, a guerra acabou. - Menina tapada e sabida, que não faz ideia do que é a vida Pensas que o que viveste nestes dez anos é guerra? Nas montanhas havia guerra. Nas aldeias havia guerra. No deserto havia guerra. Mas a capital foi poupada até agora. Minha pobre menina pequena, pensas que a guerra acabou? Pois é agora que começa. Anda. Fá-lo por amor dos teus dois filhos pequenos e inocentes. Não sejas tapada, pequena Doce Flor, junta as tuas coisas. Vamos. Sozinha não consigo. Preciso de ti. - Para que precisas de mim? Para onde queres ir? - pergunta Shirin-Gol à mãe. - Se houver

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guerra aqui na capital, então também haverá nas montanhas e em todo o lado. - Deus do Céu, Justiceiro, que fizeste connosco? - grita a mãe, arrancando os cabelos. - Que desígnios são os Teus? Que será de nós? Shirin-Gol toma a mãe nos braços e acaricia-lhe suavemente as costas com mão firme. - Madar. Querida, pobre madar. Tem calma. Eu estou aqui. Deus é grande. Ele olhará por nós. Tudo correrá bem. A guerra acabou. Acredita em mim. Tu não compreendes. Sempre estiveste aqui entre as tuas quatro paredes. Mas toda a gente o sabe lá fora. Os Russos partiram. Agora somos livres. A vida vai começar. A guerra acabou. Shirin-Gol torna a arrumar as coisas da mãe nos seus lugares, os gémeos vestem os uniformes, vão para a escola, a filha de Shirin-Gol senta -se a um canto do quarto com o irmão ao colo, Shirin-Gol põe panos molhados na testa febril da mãe, trauteia uma melodia, sorri e admira-se por as armas não se calarem lá fora. Agor que a guerra acabou. ia seguinte, nos outros e duram muitos mais, a porta do quar to permanece fechada. Os gémeos já não vão à escola e Shirin-Gol tam bém mão. Batem à porta. São os vizinhos a pedir chá, trigo, pão. As lojas fecharam. Ouvem-se tiros, mais do que nunca. Mas na escuridão da noite, voltam a bater. A valente Malali esgueira-se para dentro e diz: - Vamos sair da capital logo que seja possível. A ignorante mãe de Shirin-Gol, que nada conhece além das quatro paredes do seu quarto, que, desde que está em Cabul, só saiu quatro vezes à rua, que não sabe ler nem escrever, já o dissera. É só agora que a guerra começa em Cabul, a capital. De um lado das ruas, combatem uns mujaedines, do outro lado, outros. Toda a gente luta contra toda a gente. Hekmatiar contra Gulbuddin, Ahmad Shah Massoud contra Dostum, um irmão muçulmano contra o outro. Mortes nas ruas, ataques de mísseis, minas, tanques e outra vez gente estripada, fetos arrancados que rebentam no chão. De novo mulheres violadas, de novo véus, de novo tudo o que Shirin-Gol já viu e muito mais, só que desta vez é na capital, desta vez é mais cruel, desta. vez são Afegãos, desta vez a guerra é sua. Guerra entre irmãos. Aquilo que os Russos não destruíram, fazem os senhores afegãos da guerra desaparecer no meio dos escombros e da cinza. Combatem anos a fio até que um dia chega à cidade uma nova força, o movimento dos talibãs. Entretanto, Najibullah, o antigo e temido dirigente da polícia secreta, é o último presidente fiel aos Russos. Juntamente com o irmão, entrincheira-se no edifício das Nações Unidas. Os talibãs obrigam-nos a sair, espancam-nos, insultam-nos, arrastam-nos pela cidade. Depois de lhes cuspirem em cima, Najibullah e o irmão são executados publicamente e os seus cadáveres exibidos por toda a cidade. Na manhã seguinte, as pessoas vêem os corpos do seu presidente e do irmão pendurados no poste de uma rua. Shirin-Gol tem sorte. Como já não está em Cabul há muito tempo, não é obrigada a assistir a isto tudo.

Shirin-Gol, a filha Nur-Aftab, o primeiro filho, Nasser, os gémeos, a mãe de Shirin-Gol, a vizinha Malalai com a mãe, as irmãs e os irmãos, outras raparigas e suas mães, irmãos e irmãs arrebanham os bens que conseguem transportar e fogem para onde muitos dos seus conterrâneos foram: para o Paquistão. De automóvel, camioneta, carroça, burro, camelo. Shirin-Gol, a filha, o filho, os gémeos e a mãe vão a pé. Fogem das bombas e dos mis 44 45 seis que Afegãos lançam contra Afegãos. Numa guerra terrível e fratricida entre Ahmad Shah Massoud, Hekmatiar, Dostum, Khalili, Gilani e todos os outros nomes dos dirigentes dos diferentes grupos de mujaedines. As mulheres, crianças e homens fogem ao desemprego, à fome, às minas, aos tiros, para serem roubados e violentados. Durante o dia, os helicópteros percorrem os céus, disparando sobre tudo o que mexe. Durante o dia, os mujaedines cobram

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portagens, deitando a mão a dinheiro, ovelhas, cobertas, comida, rapazes em idade de combater, mulheres, adolescentes. - Deixem-nos em paz - grita Shirin-Gol. - O meu pai e os meus irmãos também são mujaedines. - Onde é que estão? - perguntam os salteadores. -Na montanha. - Que montanha? - Estão a combater. - De que lado? - Do lado da Pátria, do Profeta, do Alcorão e do Islão. Os homens riem, pegam no que querem e desaparecem. Dias e semanas a fio vagueiam por desertos e aldeias, sobem montanhas, descem aos vales e atravessam ribeiros secos e campos minados. Sempre a esconder-se das patrulhas dos mujaedines, sempre a serem apanhados, sempre a terem de pagar. Uma vez, um deles quer dinheiro, mas depois diz que quer Shirin-Gol. A mãe pergunta: - A minha filha? Queres a minha filha? Fica com ela. Dou-ta. Ela é doida. Está doente. Até me fazes um favor. Toma - diz a mãe de Shirin-Gol, empurrando-a com tanta força que ela cai aos pés do mujaedine. Shirin-Gol deixa-se ficar no chão, fala alto, grita, engalfinha as mãos nas calças do mujaedine e finge que quer trepar por ele acima. Enojado e assustado, o mujaedine afasta Shirin-Gol com um pontapé, cospe, enrola-se no seu patu e desaparece. A mãe de Shirin-Gol ajoelha-se no chão ao lado da filha, toma-a nos braços, mas não diz nada: só a aperta bem junto ao coração. A partir daqui, o pequeno êxodo de mulheres e crianças só se movimenta à noite. Na décima segunda noite, Shirin-Gol deixa de contar os dias e as noites. Na décima quarta noite, deixa de ter forças para continuar. Na décima quinta, mesmo assim, arrasta-se com os filhos. E nas noites seguintes também. Percorrem as mesmas estradas, os mesmos carreiros e caminhos de centenas, milhares, milhões de afegãos. Desde há mais de duas décadas até hoje. Os mesmos caminhos pelos quais reis e guerreiros conduziram 46 os seus exércitos. Dario, rei dos Persas. Alexandre, rei dos Gregos. Os Mongóis, os Ingleses, os Russos, os Americanos estiveram aqui, Bin Laden esteve aqui, a KGB, a CIA e, agora, Shirin-Gol e a família. É a estrada que vai de Cabul a Jalalabad, seguindo depois, em meandros íngremes e apertados, para as regiões livres das tribos, as Áreas Tribais, atravessando o lendário desfiladeiro de Khyber até ao Paquistão. Quanto mais se aproximam da fronteira, mais movimentada se torna a estrada. À direita e à esquerda, automóveis, camiões, veículos militares, destroços de blindados. Cada vez mais gente sobe as colinas. Os comerciantes montaram as suas tendas à frente da fronteira. Homens sentados atrás de balcões de vidro, empilhando moedas que trocam a taxas de câmbio altíssimas. Outros, agachados à frente de contentores velhos, vendem cordas, pneus, sucata, ferro-velho, tampões, carroçarias, portas de automóveis, vidro, madeira, traves, armas. Shirin-Gol já não sabe como imaginava uma fronteira. Se calhar, pensava que uma fronteira era uma casa grande e limpa, onde entramos, nos oferecem um chá e somos calorosamente saudados e recebidos pelas pessoas do outro país. Ou que uma fronteira era um muro muito grande e alto, com uma porta. Se calhar, pensava que uma fronteira era uma cancela. Seja como for, o que não pensava era que uma fronteira fossem duas pequenas torres com um portão no meio. Mas agora, que está à frente dela, até acha que na verdade é muito prático fazer de um portão fronteira, pois pode abrir-se e fechar-se, passar-se para um lado e para o outro. Shirin-Gol alisa o véu e as saias, mete o cabelo debaixo do lenço, alisa as roupas dos filhos, endireita-se e prepara-se para atravessar uma fronteira pela primeira vez na vida. À direita e à esquerda do portão estão homens sem barba, de pele escura, bonitos uniformes e bonés, que usam inclinados na cabeça. Estão de botas e têm um bastão na mão, com que batem em toda a gente que atravessa o portão, mandando as pessoas despacharem-se. Shirin-Gol pára um momento a observar os seus compatriotas, que atravessam a barreira e saem do outro lado o mais depressa possível, para não apanharem. Mas, aparentemente, não faz

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diferença andar depressa ou devagar. Na verdade, qualquer um que atravesse o portão apanha. -Não tenham medo - diz a mãe de Shirin-Gol aos filhos e aos netos. - No fundo, são boas pessoas. Só cumprem o seu dever. Vão ver que não dói. Vejam como os bastões são fininhos. E vocês não são nenhuns cobardolas. Já passámos por pior. Vamos conseguir. -Não quero ir para o Paquistão - diz Shirin-Gol. - Então para onde? - pergunta a mãe. Os soldados de pele escura e corpo magro, mais magro e pequeno do 47 que o dos homens que Shirin-Gol viu até agora na vida, batem em Shirin-Gol, na filha, no filho, nos gémeos e na mãe: têm de se despachar a entregar o dinheiro, desimpedir o caminho. Um dos homens agarra o traseiro de Shirin-Gol e lambe os beiços. Um outro ri, puxa-a para si, pisa-a, empurra-a - Tapa a cara com o véu - vocifera o mais insolente dos gémeos. Shirin-Gol obedece. Do lado paquistanês da fronteira há tanta gente e tanto barulho como do lado afegão. Shirin-Gol, os filhos, a mãe e os gémeos ficam por ali, saltando para o lado de modo a não serem atropelados. Pessoas, compatriotas, afegãos insultam-nos, mandam-nos sair do caminho. Um soldado faz assobiar o seu chicote no ar. Uma menina-mulher da idade de Shirin-Gol, com duas filhas mais ou menos da idade dos filhos de Shirin-Gol, pára e pergunta: -Como te chamas? - Shirin-Gol. -Estes são teus filhos? -São, e esta é a minha mãe e estes os meus irmãos - responde Shirin-Gol. -Anda para aqui, Shirin-Gol. Se ficares aí no caminho, ainda te batem ou és atropelada por algum carro. Anda, senta-te aqui ao meu lado, à sombra. É a primeira vez que estás aqui? - pergunta a menina-mulher. - É. -Tira o hejab para eu te poder ver - diz a menina-mulher. - Agora já não estás no Afeganistão. Aqui ninguém te pode obrigar a tapar a cara. - Eu sei - responde Shirin-Gol, empurrando o lenço para trás, com o rosto iluminado por um sorriso. - Está aqui tanta gente! - exclama. - Nunca na vida vi tanta gente, tantos camiões e carros. Nem sequer na capital - Eu já estive muitas vezes aqui - diz a menina-mulher, cruzando uma perna por cima da outra. - Regressei sempre a casa, mas depois passava-se alguma coisa e tinha de voltar a fugir. Do Afeganistão para o Paquistão e outra vez do Paquistão para o Afeganistão. Shirin-Gol imita a menina-mulher e cruza as pernas, mas a mãe dá-lhe um safanão de lado, e ela volta a pôr uma perna por baixo da outra. A menina-mulher lança a cabeça para trás, ri e diz: - A primeira vez que fugi, foi dos Russos. Era ainda uma garotinha. Depois disseram-nos que a vida em Cabul não era má, e regressámos. Em seguida, os Russos mataram o meu pai e voltámos a fugir para aqui. Depois casei-me, e o meu marido disse-me que Íamos voltar a casa, mas pisou uma mina, ficou aleijado e morreu ao fim de umas semanas. Depois fugi outra vez para aqui e o pai do meu marido tomou-me para sua mulher, mas era tão velho que dali a pouco também morreu- A primeira esposa do meu segando marido, que tinha sido minha sogra e ao lado da qual fui segunda esposa quando o meu sogro me tomou por mulher, não quis que eu ficasse na casa dela_ Deu-me em casamento ao seu filho mais novo, irmão do meu primeiro marido e filho do segundo. Era comandante dos mujaedines, levou-me de novo para o Afeganistão e partiu para a frente. Depois a nossa aldeia foi atacada, foi tudo destruído e tive de fugir outra vez. Esperei pelo meu marido, mas ele não voltou. E quando já não tinha nada para comer, voltei a fugir para o Paquistão. A velha que já tinha sido minha sogra e que agora voltou a ser não me quis receber em casa, nem a mim nem às minhas filhas. Só ficou com o meu filho, mas comigo e com as minhas filhas não. Por isso, vim para a fronteira. À distância de cem passos da minha pátria e de uma vida inteira, fico agachada esperando todos os dias que o meu marido volte e me encontre. - De que vives? - pergunta Shirin-Gol. -Faço umas coisitas para não morrermos de fome- O que é umas coisitas? - pergunta Shirin-Gol. -Umas coisitas é umas coisitas - diz a menina-mulher. - Ganhas dinheiro que chegue com umas coisitas? - pergunta

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Shirin-Gol. A menina-mulher ri tanto que Shirin-Gol vê-lhe a língua, os dentes e a pequena língua que lhe salta de trás para diante na garganta. - Olha para mim - diz a menina-mulher. - Sou bonita, sou jovem e aqui na fronteira há muitos funcionários paquistaneses e muitos homens afegãos. Homens que há muito tempo não têm um corpo de mulher, a quem cresce água na boca quando vêem o meu. Por junto, ganho o suficiente e, às vezes, até mais. Shirin-Gol abre a boca para dizer qualquer coisa, mas a saliva invade-lhe a garganta, fica presa, e ela engasga-se e tosse. A menina-mulher observa Shirin-Gol. Já sem rir, pergunta: - Que hei-de fazer? Morrer à fome e deixar as minhas filhas morrerem à fome? Deixar-nos morrer? Shirin-Gol baixa o olhar e não diz nada. Tem os olhos pregados nos pés nus de uma rapariga que passa por elas. A pequena leva à cabeça uma enorme chapa de ferro e o cabelo sujo esvoaça-lhe em todas as direcções. Tem as roupas em farrapos e, enquanto caminha, chucha no dedo e observa-os um a um com os seus olhos escuros, nem tristes nem alegres: a menina-mulher, Shirin-Gol, Nur-Aftab, o pequeno Nasser, a mãe de Shirin-Gol, os gémeos. Continua a andar. 48 49 A menina-mulher senta as duas filhas ao lado de Shirin-Gol, beija-as na testa e diz: - Fiquem aqui com a tia. Venho jàpar - Não responde Shirin-Gol. - Isto não é lugar para ninguém ficar. - Por amor de Deus, não é realmente lugar onde se fique diz a mãe de Shirin-Gol. - O que é que as pessoas andam a acarretar? pergunta o gémeo mais tímido. - Parece ferro-velho e lixo replica o gémeo mais atrevido.

Mas as pessoas não são parvas - diz Shirin-Gol. Porque é que haviam de andar a acarretar - Não responde Shirin-Gol. - Isto não é lugar para ninguém ficar. - Por amor de Deus, não é realmente lugar onde se fique diz a mãe de Shirin-Gol. - O que é que as pessoas andam a acarretar? pergunta o gémeo mais tímido. - Parece ferro-velho e lixo replica o gémeo mais atrevido.

Mas as pessoas não são parvas - diz Shirin-Gol. Porque é que haviam de andar a acarretar ferro-velho e lixo?

É contrabando explica a menina-mulher, que volta a aparecer tão de repente como desaparecera. - Contrabando? pergunta Shirin-Gol. A menina-mulher ri e repete: -Contrabando. O que uma pessoa consegue transportar não paga direitos de alfândega. As pessoas trazem petróleo, gasolina, peças de automóveis e de tanques, pneus, ópio, galinhas, rádios, cabos, dinheiro, trigo, arroz, fruta, tudo o que conseguem acarretar do Afeganistão para aqui, para o Paquistão, para vender. Vendem aos comerciantes, que depois vendem a outros. Conheço um homem que compra tudo o que é de ferro para, em seguida, vender a um outro que derrete tudo e faz ferro novo. - Quanto é que se consegue por uma chapa como aquela que a ra pariga do vestido verde levava à cabeça? - pergunta Shirin-Gol. - Se fizeres aquilo todo o dia - responde a menina-mulher , a noite tens dinheiro para comprar dois ou três pães e uma caneca de chá. - É triste - comenta Shirin-Gol. -Não é triste, é bom. Há muitas pessoas que se sustentam com este trabalho, e estamos muito agradecidos aos funcionários paquistaneses por nos deixarem passar diz a menina-mulher, olhando para o portão, onde naquele momento uma rapariguinha passa a correr, apanhando com a fina chibata de um soldado no traseiro pequeno. Desvia o traseiro, faz balançar o pesado fardo que traz à cabeça com gestos experientes avança. - Quem é a rapariga? pergunta Nur-Aftab. - Uma afegã como tu e eu - responde a menina-mulher. - O que é que tem à cabeça? - pergunta Nur-Aftab. Por muito que se esforce, Shirin-Gol não consegue perceber o que é que a pequena

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leva à cabeça. - Não sei o que é, mas seja o que for é muito pesado - replica Shirin-Gol. - É bonito - comenta Nur Aftab, que depois exclama: Já sei! É o quarto crescente. Shirin-Gol sorri, acaricia a cabeça da filha e diz: - Sim, talvez seja a Lua. A mãe de Shirin-Gol intervém: - É uma menina pequena e magra, com um vestido fininho, colorido e a esvoaçar. Traz à cabeça um monstro enorme, pesado, e vem do Afeganistão, como nós, para o Paquistão, como nós.

Que história bonita! - exclama Nur-Aftab. Conta mais. -Não é nenhuma história - protesta a avó , nem é bonita. -Mesmo assim conta - pede Nur-Aftab. Shirin-Gol senta a filha no colo, sorri e conta: - Bem, acho que tens razão. É o quarto crescente. Um dia, a Lua não tinha nada que fazer e estava muito aborrecida. Por isso, foi até à borda do céu, que é muito grande e nunca mais acaba. Na verdade, só queria debruçar-se na borda do céu para ver os homens, mas escorregou e caiu na Terra. Aquela menina ali encontrou-a, teve pena, pegou nela, pô-la à cabeça e agora leva-a outra vez para a borda do céu, de modo que a Lua possa subir e iluminar-nos hoje à noite. A ti e ao Nasser, aos gémeos, à avó, à nossa nova amiga e às suas filhas, ao seu filho, ao marido e a todas as pessoas, boas crentes e não crentes, que vivem nesta terra de Deus. - Da próxima vez que a Lua cair, vou procurá-la e levá-la outra vez para a borda do céu - grita Nur-Aftab. Nur-Aftab salta do colo da mãe, pega numa das trouxas que trouxeram do Afeganistão, põe-na à cabeça e dança com ela à frente da família, da menina-mulher e das suas filhas. Um camião muito carregado aproxima-se com grande barulho, lançando o seu fumo preto e malcheiroso para a cabeça e o corpo de Shirin-Gol. Quando passa por ela, com os seus enormes pneus pretos, grandes como um homem, Shirin-Gol percebe que o quarto crescente que a rapariguinha levava à cabeça, era um guarda-lamas. O guarda-lamas de ferro de um camião. 50 51 O camião transporta mantas, cadeiras, mesas, sacos enormes, gali_ nhas, crianças, mulheres e homens que regressam ao Afeganistão. Uma mulher com uma lata em cima do lenço da cabeça pára à frente de Shirin-Gol e estende a mão. Shirin-Gol olha para o lenço e sorri. - Podes ajudar-me? Tens dinheiro? - pergunta a mulher. Shirin-Gol abana a cabeça • menina-mulher tira uma moeda do bolso e dá-lha. A mulher afasta se. - Tu és rica? - pergunta Shirin-Gol. Sem se rir, a menina-mulher diz: -Aqui ninguém é rico. Todos se ajudam uns aos outros. Hoje aju do-a eu, amanhã alguém me ajudará a mim. - Que Deus te abençoe - diz Shirin-Gol. - A história que tu contaste era bonita - continua a menina -mulher. - Sabes mais? Shirin-Gol fecha os olhos, pensa, abre-os outra vez e diz: - Estão a ver aquelas mulheres com as burkas azuis, brancas, cor de laranja e verdes? Estão a ver como passam por nós, muito orgulhosas e direitas, com fardos tão pesados à cabeça? - Sim, sim, sim - grita Nur-Aftab, saltitando de um lado para o outro. - Fala mais baixo, não as assustes. Senta-te e ouve - diz Shirin-Gol, voltando a sentar a filha ao colo. - Estão a vê-las? São rainhas e princesas. Têm sangue azul, são orgulhosas e vivem bem. E estão a ir de um dos seus palácios para outro. - O que é que levam à cabeça? - cochicha Nur-Aftab. - Não sabes? - pergunta Shirin-Gol. Nur-Aftab abana a cabeça e olha ansiosamente para a mãe. - São os seus tesouros. - Porque é que não têm criados para lhes levar os tesouros? - pergunta Nur-Aftab. Shirin-Gol reflecte e diz. - Como são rainhas e princesas justas, querem ser elas a transportar os fardos, para os criados também poderem descansar de vez em quando. Além disso, como o peso que têm na cabeça as faz andar muito direitas, não perdem o seu porte orgulhoso. - E aquele velho ali? - grita Nur-Aftab, apontando para um homem de barba branca, arrastando um saco enorme e muito pesado que o faz curvar as costas. - É um rei? -Não sei - responde Shirin-Gol. - E os rapazes de boné reluzente na cabeça e caixotes às costas? - pergunta Nur Aftab. - São príncipes? 52 Não

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sei - responde Shirin-Gol. Porque é que os homens levam os fardos às costas e as mulheres ~ - pergunta Nur-Aftab. _Não sei - responde Shirin-Gol. para terem as mãos livres e poderem dar a mão aos filhos - diz a mãe de Shirin-Gol. Quando Shirin-Gol vai a dizer alguma coisa, ouve-se de repente uma grande balbúrdia no portão. Um bando de crianças andrajosas berra, chora e tenta esquivar-se à fúria, aos bastões e às bastonadas dos funcionários da alfandega. Os garotos levantam as mãos para proteger as cabeças piolhosas, correm, atiram-se para a frente. Parecem pequenos esqueletos exaustos, deixando-se cair, esgotados, ao lado do portão, entre a sucata. Sem saber porquê, a menina-mulher começa a chorar. Sem saberem porquê, Shirin-Gol, a mãe e os filhos calam-se observando as mulheres, crianças e homens transportando os seus fardos. Reparam na menina que é metade de Nur-Aftab e que leva à cabeça um tubo retorcido de ferro. Observam a peça de um motor, pesada e suja de óleo, às costas de um rapazinho também sujo de óleo da cabeça aos pés. Vêem-no cambaleando já sem forças, com os joelhos curvados, pousando continuamente o seu fardo para que o peso não lhe quebre os ossos. Olham as crianças sem nome, sem idade, sem desejos, sem passado, sem futuro. Observam as crianças para quem a vida significa apenas escapar ilesos ao atravessar a fronteira e regressar. Por um pedaço de pão pequeno como as suas mãos, transportam uma nova peça suja e pesada à cabeça, ou nas costas dobradas, ou arrastam-na com cordas pelo chão. Ao portão, esperam que o funcionário desvie o olhar, fazem votos para que ele não esteja só a fazer de conta e desatam a correr. Observam o rapaz de muletas, o estropiado que, tal como centenas de milhares de afegãos, pisou uma mina que lhe dilacerou a perna e lhe arrancou o braço. O maneta e perneta de muletas atou uma corda à volta da cintura e arrasta atrás de si dois bidões de petróleo, gasolina ou outra coisa qualquer, mas agora apanha do funcionário, porque não se despacha e está a atrapalhar a circulação. -Não são príncipes nem rainhas - diz a mãe de Shirin-Gol. - Eu sei - responde Nur-Aftab, passando o lábio inferior sobre o superior, fitando a avó e repetindo: - Eu sei, mas é mais bonito pensar que são rainhas e princesas. - Tu e os teus filhos cheiram a fome - diz a menina-mulher. Shirin-Gol cala-se. A menina-mulher volta a pôr-se em pé de um salto e desaparece. - Devíamos ir embora. Ela não é boa companhia para nós - diz a mãe de Shirin-Gol. 53 - É boa pessoa - responde Shirin-Gol. - Preferia estar morta e ver os meus filhos mortos a vender o meu corpo... - A mãe não diz mais nada, puxa o véu para o rosto e fica olhar na direcção do portão. Quando a menina-mulher regressa, traz duas canecas de chá, um b lo folhado e um iogurte para cada um e até açúcar para o chá. -Ainda têm muito caminho à frente - diz ela. - Tomem isto, por favor. Comam o mais que puderem e vão-se embora para não atravessarem as Áreas Tribais de noite. Os soldados paquistaneses têm postos na estrada e não vos vão deixar passar. O melhor é irem pela montanha, pelo território das tribos livres, onde os Paquistaneses não mandam nada. Shirin-Gol e a menina-mulher abraçam-se, beijam-se e cada uma delas deseja à outra uma vida longa, com saúde e paz. Logo que se afastam da região fronteiriça, Shirin-Gol e a família seguem os conselhos da menina-mulher e saem da estrada de asfalto. Tal como a menina-mulher dissera, é fácil encontrar o caminho, há compatriotas por todo o lado. À sua frente, atrás de si, tão longe quanto a vista alcança. À distância, parecem minúsculas formigas coloridas caminhando em fila indiana. Algumas ultrapassam-nos, outras ficam para trás. Algumas transportam fardos pesados, outras vão de mãos vazias e roupas esfarrapadas. Algumas levam crianças, outras estão sozinhas. Abaixo do carreiro, a estrada de asfalto serpenteia por colinas e montanhas, subindo até ao lendário desfiladeiro de Khyber. Nas Áreas Tribais, perto da cidade de Peshawar, na fronteira paquis tanesa, Shirin-Gol, a mãe, os filhos e

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os gémeos caminham ao longo de muros compridos e altos atrás dos quais se erguem casas senhoriais, verdadeiros palácios onde vive gente saudável, saciada e rica, que não conhece o cheiro da fome. São traficantes de droga, dizem as pessoas Homens que traficam ópio têm tanto dinheiro que já nem conseguem contá-lo. Um deles ter-se-i oferecido ao presidente do Paquistão para pagar as dívidas do país, se este lhe concedesse asilo, a si e à sua família. Dizem as pessoas que o oferecimento do rico traficante de droga agradara ao presidente paquistanês, que, no entanto, não pudera aceitá-lo porque o seu amigo, o presidente americano, fora contra a proposta. O traficante de droga construíra por isso o seu palácio nas Áreas Tribais, uma região que não pertence verdadeiramente nem ao Paquistão nem ao Afeganistão e onde nenhum presidente, nenhum governo, nem nenhum rei mete o bedelho. Os ricos fazem o que muito bem lhes apetece. Aqui, ou se é senhor de si ou se trabalha para algum senhor como guarda, contrabandista ou qualquer coisa do género. Cada homem anda com uma, duas ou mais armas. Nas lojas do bazar fabrica-se e vende-se todo o tipo de armas. Noutras pesam-se e preparam-se doses de ópio e heroína para venda. E por todo o lado se consome ópio e haxixe. Shirín-Gol gosta do cheiro que sai dos quiosques e tendas, misturando-se com o do borrego grelhado das lojas de kebab, insinuando-se-lhe por baixo Vamos descansar - diz. Acocora-se no passeio em frente de uma loja, fecha os olhos e inspira profundamente aquele cheiro, que lhe cai no estômago vazio. -0, que é que querem daqui? Desapareçam! - grita-lhes um rapaz a. E pouco mais velho do que os gémeos. Agachado no chão em frente da sua mesa de trabalho, gesticula com uma pistola de bonita coronha de madrepérola. - Por favor, irmão, estou cansada e os meus filhos também, a minha mãe está doente e os meus irmãos esgotados. Temos sede. - E também têm fome? - pergunta o rapaz da loja. Shirin-Gol observa o rapaz através da rede que tem à frente dos olhos e faz que sim com a cabeça. O rapaz pousa a pistola de coronha de madrepérola no chão, pega na muleta que tem pousada ao lado, apoia-se nela e sai da loja. O coto balança-lhe no corpo como um pedaço de carne morta. O perneta agacha-se ao lado de Shirin-Gol e diz: -Entrem. Na loja podem tirar os véus da cara e descansar. De qualquer maneira, são horas da oração e eu já ia comprar alguma coisa para comer. Sejam meus convidados. -Não queremos incomodar. És muito bondoso - diz Shirin-Gol. - Deixa-nos só descansar aqui um bocadinho. Já vamos embora. -Não incomodam nada. Será um prazer. Façam favor, entrem - insiste o rapaz. - Façam favor. Aqui fora é muito perigoso. Deviam ter ficado na montanha. Daqui a pouco escurece. Entrem, façam favor. -Vamos entrar, madar - suplica Nur-Aftab, levantando-se, entrando na loja, sem esperar pela resposta da mãe, e agachando-se no chão ao lado da pistola com a coronha de madrepérola. O rapaz ergue-se, empurra os gémeos para a loja, pega em Nasser ao colo, leva-o para dentro e senta-o no chão ao lado da irmã. Depois coxeia para a loja de kebab, do outro lado da rua, compra peixe grelhado, arroz e pão, estende uma toalha de plástico no chão da loja, distribui a comida, agacha-se e diz: - Que Deus tenha sempre misericórdia de nós. Comam, por favor, chega para todos. - Foi Deus que te enviou - agradece Shirin-Gol, afastando o véu Para trás e sentando-se de costas para a estrada. 55

O jovem cala-se, observa longamente Shirin-Gol, acabando por di zer. - A minha irmã e os dois filhos, que são da idade dos teus, a minha mãe e os meus irmãos mais novos também andam fugidos. Ninguém sabe onde estão. Deus permita que também encontrem uma alma bondosa que tenha pena deles e os ajude. O jovem, agachado no chão, apoia-se sobre a perna sã,

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enquanto o toco da outra parece uma pequena almofada à sua frente. Contempla Shirin-Gol, pega numa mão cheia de arroz, arranca um pedaço de carne leva tudo à boca, mastiga, e continua a fitar Shirin-Gol. - Pressinto que estão vivos. -Estão de certeza vivos - responde Shirin-Gol. - Fazes-me uma pistola? - pergunta Nasser. - Não. As pistolas não são coisas boas - replica o perneta.. - As pistolas matam pessoas. - Foi uma pistola que matou a tua perna? - pergunta Nasser, levando à boca um grande naco de carne. - Não, foi um míssil - responde o perneta. - Foi um míssil que matou a minha perna. Andávamos fugidos no deserto, era de noite, de repente caiu um míssil, as pessoas gritaram e correram em todas as direcções; subitamente ficou tudo cheio de mujaedines. Capturaram a minha irmã, os filhos e a minha mãe, arrastaram-nos para os jipes e levaram-nos. Chamei-os e gritei que também queria ir, mas não me ouviram. - E o que é que fizeste? - pergunta o gémeo mais acanhado. - Depois levantei-me, mas caí logo outra vez, e vi que caíra, porque a perna me fora arrancada, agora só tinha uma. Como me ensinaram na escola, atei logo o toco com a camisa. O professor tinha-nos dito que, quando pisássemos uma mina ou fôssemos atingidos por um míssil que nos arrancasse um braço ou uma perna, tínhamos de atar logo o toco para não perdermos o sangue todo. Fiz isso, mas depois perdi os sentidos. - E depois? - pergunta o mais atrevido dos gémeos. - Tive sorte - explica o perneta. - Um homem encontrou-me, trouxe-me às costas durante muitos dias e noites, sempre a lavar-me a ferida. Por fim, chegámos ao Paquistão e fui ao médico, que ainda me cortou mais um bocado da perna, porque disse que estava a apodrecer: Depois coseu o resto. - Doeu muito? - indaga o gémeo mais acanhado. - Já nem me lembro - responde o perneta. - E depois? O que aconteceu? - pergunta o gémeo atrevido- O homem que me encontrou e que me carregou às costas é muito 56 bom Contou-me que o filho tinha morrido num ataque de mísseis e propôs-me, se eu quisesse, vir viver com ele para lhe fazer pistolas. Pagou ao médico dava-me de comer todos os dias. Desde então, vivo aqui com ele e faço-lhe pistolas. Quanto tempo andaste na escola? - pergunta Shirin-Gol. Dois anos. Eu também andei na escola. Na escola russa. - Quando a guerra acabar, volto para a escola - diz o perneta. Eu também - concorda Shirin-Gol. - Também vou voltar para a escola- Quero ser médica. - In xa íllãh - diz o perneta - In xa íllah - responde Shirin-Gol. "Torkham", lê Shirin-Gol, na manhã seguinte, numa tabuleta colo cada à esquerda do portão da fronteira entre o Paquistão e as Áreas Tribais. -- Sabes ler? - pergunta uma afegã que observa Shirin-GoL - Bale - responde Shirin-GoL - O que é que diz? - pergunta a mulher Shirin-Gol lê em voz alta, com clareza: ATENÇAO Proibida a passagem a estrangeiros Por decreto governamental Bem-vindo ao desfiladeiro de Khyber Mantenha se à esquerda - E que mais? - pergunta a mulher. - Mais nada. É só - diz Shirin-Gol. -Está bem - remara a mulher, pegando na mão de dois dos seis ou oito filhos, com os quais já passou a fronteira, e afasta-se. Shirin-Gol cisma no que será Torkam, mas não percebe. Lembra gham a pa lavra persa que significa luto, dor -Vamos a andar - berra um polícia, fustigando tanto o ar com o seu bastão que este até assobia. Salam, somos visitantes - explica Shirin-Gol. - Vocês são mas é refugiados. Ponham-se a andar" - Onde é que está o teu pai? - pergunta um compatriota quando Vão registar-se no campo de refugiados paquistanês. - No Afeganistão - responde Shirin-Gol - Não te perguntei nada - atira o homem. - Tu deves ser mais 56 57 uma das que caiu nas mãos dos infiéis russos e que perdeu a vergonha e a decência numa das suas escolas. Vergonha, vergonha, mil vezes vergonha - pragueja o compatriota, cuspindo um escarro verde-amarelado, que cai na areia aos pés de Shirin-Gol, onde se afunda e seca. Shirin-Gol quer falar. A mãe bate-lhe com a mão aberta na nuca. Shirin-Gol cala-se. - O meu pai está no Afeganistão - apressa-se o mais atrevido

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dos gémeos a explicar. - A fazer o quê? -A combater. - De que lado? - Do lado dos mujaedines. - Que mujaedines? - Isso não sei. -Allah-o-akbar - exclama o compatriota, zangado. - Combate do lado certo - acrescenta o gémeo. - Está nas montanhas a combater com os meus irmãos. - E com as minhas irmãs, que lutam lado a lado com os meus irmãos e o meu pai - diz Shirin-Gol. O gémeo atrevido lança um olhar encolerizado a Shirin-Gol e continua: - O meu pai e os meus irmãos combatem pela Pátria, o Profeta, o Alcorão e o Islão. - Toca a andar - berra o conterrâneo. - Vá, vá, vá! Mexe-te! Toma este papel, leva as ssia-ssar ali para trás e vai receber a vossa tenda. E não se esqueçam de que os Russos já se foram embora. Tatuam. E também não se esqueçam de que, apesar de este pedaço de terra se chamar Paquistão, isso não interessa nada, porque os Ingleses traíram-nos, roubaram-nos e ofereceram-nos aos Paquistaneses, mas isto é solo afegão, pertence-nos, vamos conquistá-lo outra vez, é a nossa terra, e aqui a lei é a do Islão e do Profeta. Somos Afegãos, Afegãos crentes. Respeitamos e obedecemos ao Islão e ao Profeta e amamos a nossa pátria. As leis vigentes aqui são as nossas e mais nenhuma. Olhando para o gémeo atrevido, o compatriota diz: - A partir de agora, és tu o responsável, entendido? Que as ssia-ssar da tua família não levantem a voz em público. Não é decente. Percebes? - Sim, senhor. Percebo. - É? Percebes? Então diz-me outra vez o que é que tens de fazer, nariz ranhoso. - Levar as cabeças-pretas as que têm a cabeça preta, as ssia-ssar, para algum lado. - E quem são as ssia-ssar? - Não sei, senhor. Não percebo, senhor - diz o gémeo atrevido. -Allah-o-akbar - brada o compatriota. - Estás a ver? Também tens a cabeça cheia de obscenidades russas. Tens de as esquecer. Vamos tratar disso. Tu e o teu irmão vão para a escola corânica. Com este papel, vais amanhã ao madraçal inscrever-te junto do mullah. E tu, meu idiota, o que achas que são ssia-ssar? - Não sei - responde o gémeo acanhado a meia-voz, encolhendo os ombros. - São as mulheres que ainda não têm cabelos brancos - continua o compatriota berrando. - Aquelas que ainda têm os caracóis bonitos e pretos e que nos mostram a cabeça a mim, a ti e aos nossos semelhantes, não nos deixando pensar com clareza. Para que enfraqueçamos e o inimigo e o demónio nos vençam. Percebido? São tentações do demónio. Percebido? - Percebido, senhor. - O gémeo atrevido vira-se para a irmã e berra-lhe no mesmo tom do compatriota: - Ssia-ssar. Cabeça-preta. É o que tu és. Agora quem manda sou eu. O compatriota ri de satisfação, cospe e dá uma palmada afectuosa na ,cabeça do gémeo atrevido. A caminho da tenda, Shirin-Gol puxa a orelha ao gémeo atrevido e descompõe-no: - Que nem te passe pela cabeça dar ouvidos àquele mullah fedorento e mal-educado. Nem hoje nem daqui a cem anos. Quem diz o que se faz e o que não se faz continuo a ser eu, percebes? Posso ser ssia-ssar, mas vejo, falo, respondo, pergunto e dou-te na cara se for preciso. E faço-o quando quiser, percebes? - Percebo - diz o gémeo atrevido ajuizadamente, rindo para o véu atrás do qual se esconde a irmã. A tenda distribuída a Shirin-Gol, à filha, ao filho, aos gémeos e à mãe é de plástico e do mesmo azul das cúpulas das mesquitas mais bonitas. - Fecha a porta da tenda - ordena o gémeo atrevido. -Isto não é nenhuma porta, seu ranhoso. E se não deixarmos a tenda aberta, morremos de calor. - Mas os homens desconhecidos podem ver-te. - Que homens? Não vejo homens nenhuns. Só cobardes que fugi ram da sua pátria para não terem de lutar. Ouve-se um estalo. Pela primeira vez na vida, o gémeo atrevido ousa dar uma bofetada à sua querida irmã mais velha. Shirin-Gol atira-se a ele, torce-lhe os braços atrás das costas, bate-lhe na nuca e no traseiro, empurra-o para um canto e adverte: 58 59

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-Atreve-te a fazer isso outra vez e... - E o quê? - pragueja o gémeo atrevido. - Quem manda aqui sou eu. Com todo o sangue do corpo a subir-lhe à cabeça, Shirin-Gol arranca o véu, põe-se à frente do irmão e grita: -Ai sim? És tu que mandas? Então mexe-te. Vai arranjar alguma coisa para comermos. Temos fome. - Está bem - responde o gémeo atrevido, desaparecendo. Logo que ele sai, Shirin-Gol volta a pôr o véu e também vem cá fora. Entre as tendas, cheira a urina e a fezes. Há água suja e malcheirosa por tudo o que é sítio. Por todo o lado, correm crianças que, em vez de calças, camisas e túnicas, só têm farrapos no corpo pequeno. Crianças com os narizes a correr, chorando, sentadas por ali com indiferença. As mães, agachadas ao seu lado, têm os braços magros pousados nos joelhos, a cabeça apoiada nas mãos e o olhar no vazio. - Tu também vais esquecer o orgulho - diz uma mulher, agachada em frente da sua tenda, quando Shirin-Gol passa por ela.

.Perderam o orgulho e a dignidade., pensa Shirin-Gol, baixando a cabeça e continuando a caminhar. -Que queres daqui? - grita de repente uma voz histérica de uma tenda. Shirin-Gol assusta-se e vira-se. Uma jovem da sua idade sai a correr da tenda, pega-lhe no braço e empurra-a para diante. - Desculpa, por favor - diz a rapariga. - É o meu pai. Endoideceu. Só fica normal se tiver ópio ou morfina, mas eu não tenho dinheiro. Não sei como hei-de fazer.

.ópio? Morfina? O que é isso?", pensa Shirin-Gol de si para si, continuando a andar o mais depressa possível. No caminho de regresso à tenda, há barulho e uma grande vozearia. Homens, mulheres e crianças correm de encontro uns aos outros, empurram-se, acotovelam-se e discutem. Um homem, que dizem ser um guarda, bate à esquerda e à direita com um bastão, berra e escorraça as pessoas. Parece que alguém tentou roubar o dinheiro de outro alguém e estabeleceu-se a confusão. Shirin-Gol pergunta a uma mulher onde pode arranjar alguma coisa para comer. Ela olha para Shirin-Gol, indica o caminho com a cabeça, dizendo: - Precisas de um cartão, de contrário não te dão nada. Shirin-Gol quer perguntar à mulher onde há cartões, mas esta contínua a andar. No centro de distribuição da comida, centenas de pessoas com tachos, tigelas e chávenas empurram-se e acotovelam-se. Homens com bastões berram e batem. Shirin-Gol encolhe-se, avança, empurra, é empurrada, puxada, arrastada, até alcançar por fim a porta atrás da qual está supostamente a comida. Numa espécie de estrado encontram-se três panelas enormes, tão grandes que cada uma poderia levar três pessoas. Atrás de cada uma delas, um homem mexe o caldo com uma concha gigantesca. Quem está na fila levanta a tigela e os homens tiram colheradas de caldo vermelho que vertem nas tigelas, chávenas, baldes ou no que quer que seja que as pessoas lhes estendam - Onde é que está a tua tigela? - berra um homem. - Ou queres que te despeje a sopa na saia? -Onde é que está o teu cartão? - berra um outro homem. Shirin-Gol tenta dizer alguma coisa, mas não consegue abrir a boca e, no momento seguinte, já alguém a empurrou para o outro lado da estreita passagem com o estrado e as três panelas, onde é de novo arrastada para fora por outra porta. A mulher que entrou à frente de Shirin-Gol no centro de distribuição da comida e que viu tudo, esclarece-a: - Precisas de cartões de racionamento. Pergunta aos teus vizinhos, que estão aqui há mais tempo. Eles explicam-te tudo. Shirin-Gol já não sabe como imaginava um campo de refugiados. Se calhar, pensava que era um sítio agradável, onde havia gente que tratava dos refugiados, que os acolhia, os consolava e lhes dizia que ia tudo ficar bem. Se calhar, pensava que era um lugar limpo, onde cada família tinha um casebre ou um quarto, onde existiam ruas que eram varridas, onde existiam escolas, médicos, enfermeiras. Se calhar, pensava que nos campos de refugiados as pessoas recebiam tudo o que perderam na guerra, roupas, camas,

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cobertores, panelas, sapatos, pentes, cadernos, livros e tudo do que precisam as pessoas que fugiram da sua pátria. Em todo o caso, não tinha pensado que um campo de refugiados fosse um sítio onde se grita e se cospe, um sítio onde se seja forçado a viver numa tenda cheia de buracos, com rasgões, que cheira mal e não tem chão, obrigando as pessoas a sentar-se e a dormir na terra nua. Em todo o caso, não tinha pensado que nos campos de refugiados não havia comida, água, alimentação ou panelas, a não ser que se pagasse, a não ser que uma or ganização humanitária registasse as pessoas e lhes desse um cartão-de alimentação, um cartão-de-cobertores, um cartão-de-colchões, um car tão-de-panelas, um cartão-de-médico, um cartão-sabe-se-lá-de-que-mais. Shirin-Gol tem sorte. Como os gémeos têm de ir às aulas do Alco), recebem cobertores, colchões e cartões para um saco de batatas. 60 61 "Há-de haver no campo uma mulher que se ocupe dos recém-chegados", dizem as pessoas. Shirin-Gol tem sorte e encontra a mulher, que lhe dá um tacho, uma chávena e um pouco de banha. - Porque é que fazes isto? - pergunta Shirin-Gol. - Não tens quase nada para ti. -Cada um ajuda como pode, e quando um dia tiveres tanto que possas ajudar os outros, talvez eu vá precisar de ti - diz a mulher. - Se quiseres, anda ter comigo amanhã. Todos os dias dou a volta ao campo. Há muitas mulheres desgostosas com os maridos ou com a família, por causa dos nervos. Os homens, sem trabalho, passam o dia sentados sem fazer nada e, portanto, ficam deprimidos ou metem-se em confusões. - Como é que posso ajudar? - pergunta Shirin-Gol. - É muito fácil - diz a mulher -, muito fácil. Basta ouvi-las. Mais nada. Assim, ajudamos as outras mulheres, mas também a nós próprias. Vais ver. Quando ajudamos os outros, parece-nos que a nossa vida não é desperdiçada, que serve para alguma coisa. - Se calhar, venho - concorda Shirin-Gol, agradecendo o tacho, a chávena e a banha. - Não tens nenhum homem na tenda? - murmura um compatriota, quando Shirin-Gol mete o cartão de racionamento na ranhura. - Vai-te embora e manda o teu irmão para aqui - diz-lhe um outro, quando Shirin-Gol se põe na fila para a água. - Puxa o véu para a cara - ordena-lhe um outro, quando Shirin -Gol se senta ao sol em frente da tenda, desenhando palavras na areia. - Tenho sede - lamenta-se a filha, Nur-Aftab. - Tenho calor - choraminga o filho, Nasser. - Onde está a comida? Temos fome - gritam os gémeos, quando regressam à tenda vindos de aprender o Alcorão com os seus professores paquistaneses e árabes. - Quero morrer - diz a mãe. Shirin-Gol faz ouvidos de mercador, senta-se num canto da quente tenda de plástico, fecha os olhos e só ouve e só vê quando lhe falam directamente: "Shirin-Gol, faz isto, faz aquilo, vem aqui, vai ali." De noite, tem um sonho. Sonha que o. Afeganistão é governado por um homem justo. Não é rei, nem russo e não é mujaedine nem talibã. É apenas um homem bom que quer o bem das pessoas. O bondoso senhor envia os seus mensageiros a todo o país, dando a saber a todas as mulheres e raparigas que não precisam de tapar mais o rosto com o véu, que dali em diante podem andar sem hejab. Depois manda a cada uma delas o suficiente para comerem até ao fim da vida; elas, os seus filhos, 62 maridos, irmãos e pais, combatentes nas montanhas, mas que agora já não precisam de combater. "É pena que tenha sido só um sonho", pensa Shirin-Gol ao acordar. Quando Shirin-Gol deixa de fazer olhos e ouvidos de mercador, não se passaram dias, semanas ou meses. Um homem parado à frente da tenda fala com o gémeo atrevido. - Shirin-Gol, anda cá - chama este. - Depressa, despacha-te. ,~.O teu marido, Morad, está aqui. CAPITULO 6 UM ACIDENTE E UM CONTRABANDISTA GENEROSO Morad arranja trabalho como contrabandista. Passa todos os dias a fronteira para o Afeganistão, para as Áreas Tribais, onde nem o Governo do Afeganistão nem o do Paquistão metem o bedelho Quer estejam no poder, no Afeganistão, reis afegios, os Ingleses, os Rumos ou o Governo comunista, e quer mande no

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Ga vrno do Paquisrão um dê~ 25 Ã Tnlía ou um ~~ cienici, n~ a aomq~O mantém no poder, sempre por che6 de tribo independen Morad contrabandeia med menoos, drogas e armas para as Aras Tnbais,. E contrabandeia das Áreas Tribais fiigonfoos, bicic atas, televisores" tom, compmadotes, cassetes de vídeo e por gravar, vídeos e creras úteis, que pr a felicidade que o mundo oci dental teu, para oferecer aos pobres desta tara As são desc~das no puno de Carachi ou noutro Ligar q!uaLguer, metidas em camiões que atravessam o Paquism nano ao Afega e às Ares Troais, desrame postas 3s com de Mo ad e às de cento e milhares de outras contrabandistas e aradas com firmeza aos seus cDrpos, pua que a pra cai não se perca nos caminhos , rngn=es e pedregosos, que têm de percorrer a pé de volta ao Pagnisrõo. A distancia, Morad e os outros parecem milhares de formigas pequenas e coloridas, subindo e descendo a montanha durante todo o dia com as saras carme as Como a mercadoria não fica no Paquistão, o comerciante não rem de ~ taxas a . Uma lei que vem do tempo dos Ingleses dica que as mercas que entram no Paquistão a pé, por caminhos e estradas que não ~ de tara batida nem asbh>das, não pagam taxas. Os produtos vem do Japão, Inglaterra, F~ Coreia, BuWra, Alemanha, 64 EUA e de todo o mundo. Os Paquistaneses não têm nada contra o facto de os Afegãos tomarem conta deste negócio. Pelo contrário, até agradecem. Os Paquistaneses não só adoram poder comprar artigos baratos de todo o mundo, como nunca iriam, por si, às Areas Tribais, trepando montanhas e arriscando a vida. Além disso, alugam por bom dinheiro as lojas e quiosques onde os Afegãos vendem o contrabando. Para Morad, o pior é contrabandear frigoríficos e o melhor cigarros, que são leves; e depois ninguém repara se ele perder um ou outro maço no caminho e se o fumar, trocar ou vender. Entretanto, Shirin-Gol passa o dia inteiro no campo de refugiados, juntamente com a filha Nur-Aftab e o filho Nasser, que a ama acima de tudo. Por cada dia que Deus lhe envia, dá mil beijos aos filhos, lança-lhes mil e um olhares cheios de amor. E sempre que os olha, envia-lhes um sorriso. Os filhos hão-de viver bem, não conhecerão nem a fome nem o medo, os seus olhos não hão-de ver a guerra, os seus ouvidos não ouvirão nenhuma explosão, não hão-de ficar sentados num canto a tomar conta dos irmãos. Aprenderão a ler e a escrever e, um dia, irão servir a pátria, construir o país, conduzi-lo para um futuro feliz e ser o orgulho da mãe e do pai. À noite, quando Morad adormece, Shirin-Gol tira-lhe furtivamente umas moedas e esconde-as. De dia, enquanto Morad está na montanha a fazer contrabando de frigoríficos, videos, bicicletas ou cigarros, as crianças das tendas vizinhas reúnem-se na de Shirin-Gol, que lhes ensina a ler e a escrever, fazer contas e pintar, que canta e brinca com elas, contando-lhes o que Fauzieh lhe contou a ela, quando era uma garotinha acabada de chegar da montanha com medo de vir a ser uma mulher nua. Os pais das crianças pagam a Shirin-Gol o que podem: algum dinheiro, banha, chá, arroz e o mais que podem dispensar. Mas a escola secreta dá para o torto, porque o mullah malcheiroso, e o autodenominado director do campo, os seus lacaios e a sua Kalachnikov, que não tem autorização para possuir oficialmente, mas que, na verdade, tem sempre à mão, não querem nem que as raparigas andem em público, nem que vão à escola, nem que as mulheres trabalhem. Insultam Shirin-Gol, agitam os bastões, acertam-lhe com eles propositadamente por acaso. Berram a Morad, injuriam-no, batem-lhe propositadamente com os bastões nas costas e na cabeça, cospem-lhe aos pés e ralham-lhe por não saber tomar conta da mulher. - Ela faz o que quer - gritam os homens a Morad. - Anda a vadiar pelo meio das pessoas e não tem decência nem dignidade. A tua mulher desonra os riesh-ssefid, os velhos de barba branca, os anciãos e os 64 65 outros homens do campo. Amansa-a e trá-la melhor debaixo de olho, se não queres que as pessoas comecem a pensar que não és um homem a sério, Shirin-Gol só

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quer enfiar-se por um buraco. Envergonha-se, aflige-se, censura-se, a consciência atormenta-a. Já tinha obrigação de saber. E agora com que cara ficará o seu pobre Morad? Como um garotinho. O mullah malcheiroso e o autodenominado director do campo trataram-no como um rapazola. À frente deles, de cabeça baixa, Morad contempla os pés descalços. A sua expressão transforma o coração de Shirin-Gol em papel, que num instante se rasga em dois. Debaixo do véu, crispa a mão na coxa e soluça baixinho. Preferia estar morta a ver e a saber a vergonha que o seu Morad passa neste momento. À frente dos homens, dos vizinhos, do filho, da filha e também de si própria. Porque não o pôs ao corrente? Porque não lhe disse que queria ensinar crianças? Se ele lhe ralhasse ou até batesse, seria bem feito. Sabia muito bem que não estava certo; devia ter-lhe pedido. Ele diria que não, e o caso estaria arrumado. Ou então diria que não, falariam mais sobre o assunto, e ela convencê-lo-ia como sempre o convencera de tudo. Assim, pelo menos, já estaria ao corrente. Agora, o resultado é aquele. Morad está profundamente magoado, ofendido e humilhado, e a culpa é dela. O mullah malcheiroso e o autodenominado director do campo já se foram embora há muito, mas Morad continua calado, sentado a um canto da tenda de plástico azul. Passa a manhã inteira, o meio-dia inteiro e a tarde inteira a fumar qualquer coisa. - O que é isso? - pergunta Shirin-Gol. Morad não olha para ela. - Remédio - murmura, calando-se e continuando a fumar. A tenda está cheia de fumo e do cheiro do remédio. Um fumo doce e pesado, que entorpece os sentidos de Shirin-Gol. A filha e o filho também já estão um tanto fora de si. Passados uns dias, o mullah malcheiroso e o autodenominado director do campo vêm novamente ter com Morad, trazendo uma carta para a sua mulher lhes ler. Visto que sabe ler e escrever e que este facto já não se pode apagar, Shirin-Gol deve, dali em diante, ler-lhes e escrever-lhes cartas. Não receberá dinheiro, mas, uma vez por outra, dar-lhe-ão farinha, banha, arroz ou um saco de chá. E deve calar-se, não dizer a ninguém, absolutamente a ninguém, que é leitora e escrivã do mullah e do director do campo. "É uma bênção de Deus", pensa Shirin-Gol, que todos os dias Lhe agradece. Agradece-Lhe a Sua misericórdia, a Sua bondade e a saúde das crianças, do marido e de si própria. Agradece-Lhe por nem as crianças nem ela nem Morad terem pisado nenhuma mina e perdido um braço ou 66 uma perna. Agradece-Lhe a banha, o arroz, o chá, a farinha e o pequeno muro de lama que ergue devagar, juntamente com o seu Morad, em volta da tenda de plástico azul. Agradece-Lhe, porque o muro irá crescer, terá uma porta, uma janela e um tecto; então, poderá finalmente tirar a tenda que está por baixo e ficar com um lar a sério. Venderá a tenda e com o dinheiro comprará lã e tintas. Fiará, cozerá as tintas, tingirá a lã e tecerá um pequeno tapete, que venderá. Comprará comida: banha, chá, arroz, farinha. Shirin-Gol agradece a Deus as mãos sãs, habilidosas, desembaraçadas e fortes que Ele lhe deu, com as quais cozinha, cuida dos filhos, cose a roupa, lava, trabalha no campo, tece a lã para fazer tapetes, acalma o corpo cansado do seu Morad, pega nos filhos e lhes afaga as costas quando os embala para dormirem. Shirin-Gol agradece a Deus o comprador, que arranja na cidade, para o seu tapete, agradecendo também a carta que recebe de um dos irmãos que está na montanha, na qual lhe diz que ele e o resto da família estão bem, Deus seja louvado, e que continuam a combater, embora, às vezes, já não saibam quem dispara sobre eles e sobre quem, por sua vez, disparam. Mas disparam, em nome do Profeta, do Islão e do Alcorão. Shirin-Gol agradece ao seu Deus por tudo, tudo o que tem e por todos os que continuam vivos. Num dia como qualquer outro, em que tudo é como sempre foi e, no entanto, diferente, Shirin-Gol sente o estômago puxando e repuxando, doendo e ardendo. Sente-se muito mal, tem calor, depois fica outra vez gelada, anda tudo à volta na sua cabeça, as crianças choram,

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não há água no campo, o lume não arde e, quando por fim começa a bruxulear, cheira mal, o ar está pesado, húmido e fedorento. Baratas de costas brilhantes trepam pelas pernas dos filhos, ratos roem as provisões já de si escassas, o vizinho vocifera e pragueja, os filhos do vizinho choramingam, gritam, choram, a mulher do vizinho endoidece e anda aos berros, arranca as roupas do corpo e abre a coxa com a faca. Shirin-Gol não agradece ao seu Deus este dia nem tudo o que traz consigo. Pragueja e amaldiçoa o dia, a sua vida, o destino, a hora em que nasceu, a guerra que continua a grassar na pátria, o Paquistão que continua a ser-lhe estranho, o campo fedorento e tudo o que lhe acontece e não acontece naquela vida desgraçada. Então acontece. Morad é transportado para o casebre por dois homens. Um segura-lhe nos braços e outro nas pernas. Já quase não tem vida no corpo. Geme com dores, está meio inconsciente, tem a perna esmagada, o braço em sangue, o peito em sangue, a cabeça em sangue. Morad-em-sangue. 67 Escorregou na montanha com um frigorífico de contrabando atado às costas e foi caindo aos trambolhões, rebolando, umas vezes ficando ele por cima e outras vezes o frigorífico, até que parou no vale, ele por cima e frigorífico amolgado por baixo. E tudo só porque neste dia Shirin-Gol não quis agradecer ao seu Deus. Tem de se chamar o médico, Morad-erra-sangue precisa de medica mentos, tem de ir para o hospital, a perna, o braço, o peito, as costas, está tudo desfeito, tem de ser tudo cosido e engessado. Shirin-Gol pede dinheiro a toda a gente que conhece: à mãe, aos vizi nhos, ao mullahh malcheiroso, ao autodenominado director do campo. Quem quer e pode dá-lhe alguma coisa. Ela há-de pagar. Como? Isso ain da não sabe. Leva o dinheiro ao hospital, mas não chega. De que há-de viver? Como há-de sustentar os filhos? Pagar os medicamentos, o médico,o hospital, o táxi, a comida para Morad-em-sangue? De noite, Shirin-Gol tem um sonho. Sonha que as tendas de plástico nem são tendas nem de plástico. São casebres de lama. E sonha que a urina e as fezes não são urina nem fezes. Em vez disso, há em cada esquina do campo pequenas lojas com fruta, carne e arroz. Cada um pode servir-se tantas vezes e quanto quiser. E por todo o campo cheira a água de rosas, a doces e a pão acabado de cozer. É pena que tenha sido só um sonho", pensa Shirin-Gol quando acorda. Os últimos feijões, também eles comidos pelo bicho, o último arroz, a última farinha acabaram. As barrigas da filha e do filho roncam de fome. A própria Shirin-Gol fica tonta e vê tudo preto à frente dos olhos, quando se levanta. A fome escava-lhe um buraco no estômago. As crianças começam a chuchar e a roer os dedos. Shirin-Gol pede aos vizinhos, anda pelo campo de mão estendida por baixo do véu; dão-lhe umas moedas que nem sequer chegam para um pão. Um homem pára e pergunta-lhe se tem fome. - Tenho, meu senhor. Que Deus o proteja se puder ajudar-me. - O que é que eu ganho com isso? - pergunta o homem. Shirin-Gol não percebe o que o homem quer dizer. Esta é tua filha? - pergunta o homem, estendendo a mão para a pequena. Assustada, Shirin-Gol puxa a filha para si, foge e pragueja contra o homem, gritando-lhe: - Infiel, tem vergonha! Não tens mãe nem pai, não tens vergonha nem decência? O homem ri, cospe um escarro verde-amarelado, começa a andar, enquanto diz: - O orgulho há-de passar-te, como passa e passará a todas. Na manhã seguinte, tremendo de fome, Shirin-Gol dá a mão aos filhos, também esfomeados. Por um momento, parece-lhe que são os gémeos e ela a rapariguinha, a irmã mais velha de outros tempos. No bazar de Peshawar, procura durante toda a manhã o contrabandista para quem Morad trabalha, e finalmente encontra-o. Shirin-Gol tem sorte. O paquistanês apieda-se dela. Também tem filhos, também é pai. Mostra-se delicado, amável e atencioso, oferece um chá e alguma coisa para comer a Shirin-Gol e aos filhos, dá-lhe dinheiro, deseja as melhoras do seu Morad e até lhes paga uma carroça para os levar de volta ao campo.

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Passam duas semanas. O condutor da carroça volta ao campo, trazendo arroz, banha, farinha e uma peça de seda bonita e boa, como Shirin-Gol nunca viu nem nunca teve nas mãos. Tudo um presente do amável e generoso contrabandista. Comem o arroz, a banha, a farinha e Shirin-Gol faz comida que leva a Morad, ao hospital. Quanto à seda, vende-a por bom dinheiro, compra medicamentos e paga ao médico. Passa mais uma semana. O condutor da carroça volta a aparecer, mas desta vez de mãos a abanar. O piedoso sahib gostaria de falar pessoalmente com Shirin-Gol, que dá a mão aos filhos e segue atrás do homem, passando por tendas de plástico azul, casebres de lama meio construídos, casebres de lama já construídos, crianças a chorar, poças de água malcheirosa, lojinhas, mães apáticas, mulheres doidas atrás dos véus, pais embriagados, filhos sujos, com piolhos nas cabeças, bocas sujas, calças urinadas, pés descalços e imundos, pele queimada, feridas com pus. A entrada do campo de refugiados, Shirin-Gol sobe para a carroça, que a leva, através da cidade barulhenta e malcheirosa, até ao bazar barulhento e malcheiroso, passando por homens que cospem, homens sujíssimos, homens de olhar lascivo, homens com uma grande barriga. Passando por homens que cospem escarros verde-amarelados, homens que massajam e coçam os pénis quando Shirin-Gol, com os filhos ao colo, passa por eles e por muitos outros, a caminho da casa do contrabandista generoso. Shirin-Gol desce da carroça e é conduzida a uma sala fresca com ventilação, como nunca na vida viu nem nunca mais voltará a ver. Senta-se nas almofadas, nas esteiras bonitas, limpas e macias, dispostas em volta das paredes limpas, caiadas de cores castanho-esverdeadas; espera, avisa os filhos para se sentarem quietos e não comerem muitos dos doces que lhes ofereceram. O silêncio, o ar fresco, as almofadas macias, o cheiro da água de rosas na taça de barro, o roncar baixo e regular da ventilação e as limonadas com gelo acalmam Shirin-Gol e as crianças. 69 Os pequenos começam a adormecer. Shirin-Gol pousa uma mão em cada um deles, acaricia-os, dá palmadinhas suaves nas costas pequenas e frágeis, de pele de pergaminho, canta em voz baixa e profunda uma melodia que lhe vem do coração, sorri, sente-se feliz e agradece ao seu Deus este momento de tranquilidade e paz. Devagarinho, para não perturbar o seu sossego, o contrabandista generoso entra na sala, fazendo sinal a Shirin-Gol para não se levantar. Que continue a cantar e não acorde as crianças para não estragar aquele instante. Descalça os sapatos, avança de mansinho, senta-se na almofada ao lado de Shirin-Gol, fita demoradamente o véu que canta, espreita, goza o momento, transforma-se ele próprio em criança, sorri, desfia as contas do seu tasbíh ao ritmo da melodia dela. O criado traz mais limonada gelada, biscoitos, melancia vermelha e sumarenta, além de uma caixa. - Para ti diz o contrabandista generoso, pousando a caixa no regaço de Shirin-Gol, abrindo a tampa e tocando-lhe ao de leve na barriga. Shirin-Gol pensa que foi por acaso, mas estremece, nem diz nada nem se afasta do desconhecido. As crianças estão deitadas no seu colo, não quer perturbar-lhes o sono, o homem é simpático, há muito dinheiro na caixa e não quer fazê-lo zangar. E, quem sabe?, provavelmente só imaginou a mão dele na sua barriga. E então o que acontece depois? Se calhar continua a ser só imaginação. Se calhar, o homem não tem más intenções. Shirin-Gol cala-se. Talvez seja melhor assim. Para Shirin-Gol. Para as crianças. E também para Morad. Com cuidado, com muito cuidado, suavemente, devagar, o contrabandista generoso pega com dois dedos na ponta do véu de Shirin-Gol, puxa-o lentamente para cima, põe-lhe o rosto a descoberto, observa-a, enxuga-lhe as lágrimas com as mãos escuras, beija-a na testa, beija os olhos chorosos, a boca húmida, enfia a língua entre os bonitos dentes brancos de pérola, na boca que sabe a limonada gelada, chupa, lambe, respira pesadamente, põe a caixa de lado, levanta-se, encaminha-se para a

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porta, fecha-a à chave, regressa e tira cuidadosamente, docemente, a menina do regaço de Shirin-Gol, que solta um gritinho baixo e abafado. O homem sorri cheio de amor, pousa a pequena nas almofadas do outro lado da sala faz o mesmo ao rapaz, regressa, ajoelha-se em frente dela, mostra-lhe a caixa e pergunta:

Queres o dinheiro?

Tenho outro remédio? - replica Shirin-Gol.

Tens - responde o contrabandista generoso em voz bondosa e suave. - Podes fazer como muitas das tuas compatriotas e procurar a Sorte lá fora. No bazar há muitos compatriotas meus que não hesitariam em aceitar-te. -Eu sei - diz Shirin-Gol. - O teu marido não pode trabalhar. Não ganha, por isso, dinheiro. Tu contraíste dívidas. Muitas dívidas. Se não aceitares o meu dinheiro hoje, terás de aceitar amanhã o de muitos outros homens. Por ti e, mais tarde ou mais cedo, também pelo corpo da tua filha e do teu filho. -Eu sei - diz Shirin-Gol. - E então também já não te quererei continua o homem, acariciando ao de leve os lábios de Shirin-Gol. -Eu sei diz Shirin-Gol, limpando as lágrimas do rosto. - És mais bonita do que eu pensava - observa o contrabandista generoso. Shirin-Gol não diz nada. O homem pousa uma não no seio de Shirin-Gol, aperta-o, fricciona-o, com a outra mão desaperta-lhe o primeiro botão do vestido, o segundo e todos os outros, pega-lhe nos seios-de-mãe, nus, macios, brancos e cheios, aperta-os, massaja-os, acaricia-os, lambe-os, beija-os, mordisca-os, leva-lhe a mão à orla do vestido, puxa-lhe o comprido tonban e as bombachas para baixo, levanta-lhe as saias, enfia-lhe o membro duro no corpo, mexe-se para dentro e para fora até este latejar, geme baixinho para as crianças não acordarem, empurra com mais força, crispa os dedos escuros nas ancas de Shirin-Gol, segura-a, treme, ejacula, descansa o corpo aliviado em cima do corpo-de-mãe de Shirin-Gol, susse a, suspira de satisfação. - Canta - ordena, fechando os olhos e escutando a voz soluçante.

Shirin-Gol deixou que acontecesse. Sentada no chão da tenda, embala o corpo para trás e para diante, como se ouvisse música, e olha os filhos adormecidos sem os ver. - Por ti, minha filha - murmura. - Foi por ti que o fiz. Por ti, meu filho. Por ti, meu Morad. Por mim, para que continuemos vivos. Os anos transformam-se em pássaros, que se reúnem em bando e voam para longe. O Inverno e o Verão vêm e vão. Mas as imagens que lembram esta vergonha são claras e nítidas como no primeiro dia. Parede caiada de verde. Sabor a limonada gelada na boca. Deus não ajuda Shirin-Gol. Não lhe tira estas imagens de desonra e de vergonha da cabeça. Gravou-lhas na memória e não a liberta delas. E não a consola saber que muitas centenas, milhares de afegãs fizeram o mesmo que ela. Nem a consola saber que existe no Paquistão um mercado onde as Afegãs são oferecidas e vendidas como gado. Muitas das raparigas têm treze, doze, onze ou até nove anos de idade. Os homens agarram-nas, apalpam-lhes os seios ainda em botão, os traseiros e entre as pernas, riem, babam-se, examinam-lhes as bocas, metem-lhes os dedos lá dentro. Os preços são regateados. O dinheiro passa de mão em mão. As pessoas são vendidas e compradas. Shirin-Gol sabe isto tudo. Sabe que não está sozinha na sua vergonha, Tudo isto sabe Shirin-Gol. E sabe que a única saída para esta vergonha a morte. Sabe-o. Só não sabe o que há-de fazer aos filhos. CAPITULO 7 MAIS UMA FILHA E MAIS UMA FUGA Desde o seu terceiro parto, da sua segunda filha, a quem dá o nome

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de Nafass, ,Respiração", Shirin-Gol lembra-se, todos os dias que Deus lhe dá, do contrabandista generoso. Parede caiada de verde. Sabor a limonada gelada na boca. Nafass tem os ossos mais frágeis, o cabelo mais escuro, mais liso e mais maleável e a pele mais escura do que os irmãos. Parece-se com o pai, o contrabandista generoso. "A tua filha paquistanesa é bonita", dizem as pessoas, olhando para Shirin-Gol com ar de provocação, esperando por uma explicação, falando nas suas costas, apontando-a com o dedo, insultando-a. Polícias, soldados, funcionários, homens como Malek perguntam-lhe com ar atrevido se a menina não será também sua filha. Ao vé-la, Morad soube que não era sua, mas nunca, nem uma única vez, disse fosse o que fosse. Outros homens cujas mulheres puseram no mundo filhos paquistaneses partiram-lhes os dentes e esfaquearam-nas, expulsaram-nas e mataram-nas a elas e às crianças. Morad sai do hospital, arrasta o corpo doente e ferido até um canto do casebre. senta-se, fita a lata com a banha e observa a mulher abrindo o saco do arroz, aquecendo água numa panela de metal a sério, acendendo o lume com lenha a sério e cozendo feijões e batatas que não têm bicho nem buracos. Morad contempla o ventre volumoso e grávido da sua Shirin-Gol, suspira e diz: -Alá seja louvado! Ainda existem tementes a Deus que não esquecem os pobres e os necessitados. - Deus seja louvado responde ela. Shirin-Gol pousa a mão na barriga grávida, põe sal na água a ferver, tira de uma trouxa um maço de cigarros americanos de contrabando, rasga o invólucro que atira para o lume, dá o maço a Morad, volta para junto do lume, tira água da bacia, lava as mãos com sabão a sério, agacha-se no chão em frente da panela e vai mexendo até a água borbulhar e ferver em cachão. Mexe o arroz com uma colher a sério, para que este não se pegue no fundo da panela, coa a espuma e sacode-a para a pedra sobre a qual está a panela. O lume assobia furiosamente quando a espuma da água do arroz lhe cai em cima. Shirin-Gol empurra a panela para que o fumo e o vapor não lhe ardam nos olhos. Descasca uma cebola a sério, tem lágrimas nos olhos, corta uma beringela fresca, verdadeira, fica com os dedos pretos da casca estaladiça e diz, sem olhar para Morad: - O teu patrão, que Deus lhe conserve sempre a bondade, manda-me chamar uma vez por semana. Vou à cidade e volto sempre carregada de presentes. Até já nos deu roupas para as crianças. Manda-te cumprimentos, deseja-te as melhoras e diz que podes começar a trabalhar logo que ficares bom. Diz que não te preocupes, porque há-de olhar sempre por nós enquanto puder. E que digas se precisares de alguma coisa, porque ta dará, desde que isso esteja na sua mão. O lume assobia furiosamente. Shirin-Gol vira a cabeça para trás. Morad cala-se. mulher do nosso vizinho {urdji Nabi desapareceu continua Shirin-Gol. - Há vinte dias, foi de manhã à cidade para rezar. Mas À noite não voltou. Morad cala-se.

O hadji e outros homens procuraram-na durante catorze dias acabaram por lhe encontrar o corpo. Tinha uma corda à volta do pescoço, Diz-se que foi um desconhecido que violou a pobre inocente e que, em vez de lhe pagar, a estrangulou e a deixou na sargeta. Morad cala-se. -Agora, o coitado do marido, o hadji, não sabe como há-de alimentar aquelas crianças sem mãe. - Quando voltas à cidade? - pergunta Morad.

Hoje responde Shirin-Gol, fungando para conter as lágrimas. - Diz-lhe que tenho dores que quero aliviar. Diz-lhe que preciso de opio. - Está bem replica Shirin-Gol em voz nem baixa nem alta, mexendo o arroz para este não se pegar ao fundo da panela. Passam dias, semanas, meses, mais de um ano. Morad praticamente não sai do casebre. Sentado durante todo o dia no seu canto, dormita, suporta as dores, observa a sua Shirin-Gol,

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a filha, o filho, a segunda de pele escura, que dá os primeiros passos e diz as primeiras palavras. Fuma. Ópio. Todos os dias, duas vezes, três vezes, tantas vezes que em breve nem ele nem Shirin-Gol sabem quantas. Morad fica com a cabeça pesada e o olhar aquoso. Língua-de-ópio. Olhar-de-ópio. Morad quase nunca fala e dali a pouco deixa de pensar. Já não percebe se está sozinho no casebre, se Shirin-Gol se encontra ao seu lado, se os filhos ficam com ele ou uns com os outros ou, até, se alguém diz alguma coisa. Só dá sinal de si quando Shirin-Gol trauteia uma canção com a sua voz profunda e doce. Então sorri, fecha os olhos e desaparece num mundo mais bonito do que o canto do casebre no campo de refugiados paquistanês. Num mundo que até é mais bonito do que o seu mundo-de-ópio. Parece que nada nem ninguém pode, nem quer, arrancar Morad ao seu ópio, até que um dia os vizinhos lhe entram a correr pelo casebre, gritando: - Morad, Morad, acorda, a tua mulher foi presa pela polícia paquistanesa. Os homens empurram Morad, levam-no à esquadra, guiam-lhe a mão quando tem de assinar um papel para lhe darem a mulher, empurram-no de regresso ao campo, sentam-no no seu canto, onde a parede já está muito lisa e reluzente de ele tanto se encostar, abanam a cabeça, lamentam-no e afastam-se. Depois sentam Shirin-Gol no outro canto do casebre, onde ela se agacha com os braços em volta das pernas, fazendo-se pequenina, embalando o corpo profanado, aviltado, ferido, espancado e usado por desconhecidos, e fitando a parede nua com olhos de louca, sem dizer nada. Louca. Nur-Aftab, Nasser e Nafass choramingam, têm fome, querem comer, a filha pequena de pele escura quer mamar, as crianças urinam nas saias e nas calças, o ranho escorre-lhes do nariz, as moscas alimentam-se dos cantos dos seus olhos, e a sujidade entranha-se-lhes na pele, mas Shirin-Gol já não vê nada nem sai do seu canto, quando o homem da carroça vem buscá-la para a levar ao contrabandista generoso. Morad fica com frio, treme, a espuma escorre-lhe da boca, a cabeça zumbe-lhe, martela-lhe, palpita-lhe, anda-lhe à roda e parece tanto que vai rebentar que ele espeta a faca na coxa e no braço. Os ossos quase lhe estouram, a pele ameaça rasgar-se. Grita, berra, geme, chora, mas Shirin-Gol continua agachada no seu canto sem gemer, sem chorar, em breve sem pronunciar um único som, sem se mexer, só agachada. Depois cai para o lado. Simplesmente cai. Encolhida como está, cai para o lado e deixa-se ficar na mesma posição. Babara, uma compatriota, vizinha, amiga, uma boa alma, precisamente uma mulher que necessita de ajuda, precisamente uma mulher que traz tanta mágoa no peito que este ameaça rebentar-lhe, precisamente uma mulher que é de lamentar, tem piedade, senta Shirin-Gol, molha-lhe os lábios, leva-lhe água à boca, lava-lhe o rosto, as mãos e os pés, cozinha um caldo, coze arroz, dá de comer às crianças e põe um prato de comida à frente de Morad. Babara manda as crianças lá para fora, enxota Morad e abraça Shirin -Gol, esfrega-lhe as costas contraídas, afaga-lhe docemente a cabeça, em bala-a, canta-lhe uma canção e fica com ela. Com cuidado, como se Shirin-Gol fosse de vidro, Babara tira-lhe a roupa, lava-a, lava-lhe o cabelo, penteia-o, faz duas tranças, lava-lhe o cor po, esfrega-lho, beija-lhe a testa, fala-lhe em voz doce, conta-lhe a sua desgraça, leva-lhe chá com açúcar à boca, mete-lhe arroz na boca. Fica con ela até que uma lágrima lhe humedece os olhos secos, lhe escorre pela face, passa por cima dos lábios, desce pelo pescoço e cai na saia lavada, para aí desaparecer. Como se tivesse passado todos aqueles dias apenas à espera dessa lágri ma, Shirin-Gol começa a falar e só se cala depois de contar tudo o que lhe aconteceu no dia em que perdeu o juízo. Shirin-Gol estava no bazar, onde fora comprar ópio para Morad quando um polícia paquistanês lhe bateu com o bastão na cabeça coberta com tanta força que ela cambaleou, viu tudo preto, caiu e não conseguia levantar-se outra vez. Os compatriotas reuniram-se imediatamente à sua volta,

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berrando, gritando que a polícia odiava os Afegãos e as mulheres, que só batia nos fracos e desarmados. Shirin-Gol só queria levantar-se e fugir. Estava envergonhada, não queria que houvesse barulho, nem que as pessoas se juntassem por sua causa, mas tinha a cabeça a andar à roda. Escorregou, desequilibrou-se, ouvindo vozes de todos os lados, endireitou-se, voltou a cair ao chão, bateu com a cabeça na borda do passeio, e a mão tombou-lhe na água suja que corria na valeta. Os compatriotas chamaram-na para que voltasse a si. Queriam ajudá-la a levantar-se, mas eram só homens desconhecidos, e não fica bem um homem tocar numa mulher que não conhece. Os polícias paquistaneses bateram nos homens e enxotaram-nos. Dois polícias agarraram em Shirin-Gol pelos braços e pelas pernas, e o terceiro abriu caminho à bastonada. Atiraram-na para dentro do carro e atravessaram a cidade com a intenção de a largarem do outro lado. De repente, um deles levantou-lhe o véu e observou-lhe o rosto. Shirin-Gol voltou a si e tapou o rosto com as mãos, mas o polícia afastou-lhas, tocou-lhe nos lábios, levantou-lhe a saia, desapertou as calças e entrou dentro dela, rindo de satisfação. Shirin-Gol passou o tempo todo fitando-lhe o dente de ouro e sentindo-lhe o hálito malcheiroso. Ao princípio, os outros dois polícias não repararam no primeiro, mas depois também baixaram as calças, penetrando igualmente em Shirin-Gol um a seguir ao outro. Depois de se terem satisfeito, atiraram-na para a valeta e foram-se embora. Um professor paquistanês que morava nas redondezas encontrou Shi rin_Gol, chamou a mulher, ajudaram-na a levantar-se e levaram-na a apresentar queixa à polícia. Em vez disso, foi presa. Ninguém acreditou nela. Em vez disso, insultaram-na, troçaram dela e humilharam-na. Shirin-Gol e Babara já ouviram muitas histórias destas, já choraram muito por causa do destino das suas irmãs, mulheres abandonadas, esquecidas por Deus e pelo mundo, sozinhas e entregues à injustiça da guerra, da fome e dos caprichos dos homens. Shirin-Gol e Babara abraçam-se com força, choram, sabendo que aquelas não serão as últimas lágrimas que chorarão. Tal como em todas as noites desde que foi violada pelos polícias paquistaneses, Shirin-Gol não consegue dormir. Imagens terríveis, barulhos, dor, uma vergonha infinita, a sensação de que estão a levantar-lhe as saias, mãos de homens desconhecidos na pele, o dente de ouro, o hálito malcheiroso, fazem-na levantar-se estremunhada uma e outra vez. Gritos baixos e abafados saltam-lhe da garganta. Shirin-Gol leva as mãos à boca para não gritar alto, esfrega os olhos, fita a escuridão do casebre, treme e chora. Passam quatro, seis ou oito dias, há faúlhas no ar, as vozes das pessoas são duras e cortantes como facas, cada palavra rasga, estala e provoca uma pequena explosão. Shirin-Gol leva a mão ao coração para que este não lhe salte do corpo. Respira com dificuldade. O ar só lhe vai até à garganta e volta logo a sair. - Onde está Morad? - pergunta. Nur-Aftab encolhe os ombros. - Pergunta aos vizinhos diz Shirin-Gol. Nur-Aftab corre lá para fora, regressa ao casebre e encolhe os ombros. - O gato comeu-te a língua? O que foi? Fala comigo, sua atrevida. Nur-Aftab fita a mãe, passa o lábio superior sobre o inferior, baixa o olhar e murmura timidamente: -Ninguém sabe onde ele está. Shirin-Gol puxa a filha para o chão, beija-a, olha-a de frente e diz: - Meu pequeno sol, infelizmente a tua mãe perdeu o juízo. - Eu sei - responde a filha, afastando do rosto uma madeixa de cabelo brilhante e preto como breu. - Eu sei que perdeste o juízo - repete. Morad regressa ao fim da tarde. Esconde qualquer coisa. Não olha para os filhos nem para Shirin-Gol. Nem fala nem ouve quando lhe falam. - Shirin-Gol, Shirin-Gol, anda cá - chama Babara. - Está toda a gente a falar nisso. Shirin-Gol baixa o olhar. - Nisso o qué? - pergunta, só para ganhar tempo. - Os três polícias... - começa Babara, levando a mão à boca e abafando o resto das palavras na garganta.

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Os três polícias? O que é que têm esses filhos de um cão? - pergunta Shirin-Gol. - Mortos. Estão mortos - diz Babara, fechando os olhos como se os mortos tivessem acabado de lhe aparecer à frente. Mortos? Quem...? - Ninguém sabe quem os matou - replica Babara. - O bazar está a ser revirado de cima a baixo, interrogam toda a gente e fecharam as tendas e as lojas de muitos afegãos. Shirin-Gol e Morad não falam até à noite. Shirin-Gol estende as esteiras e os cobertores, deita as crianças e, como todas as noites, vai sentar-se à frente do casebre, observando as muitas tendas e os casebres acabados e por acabar do campo de refugiados. Ouve as vozes das pessoas do campo baixando, sendo cada vez menos, até tudo ficar em silêncio. O tinir dos tachos e das panelas vai diminuindo e desaparece. Shirin-Gol ouve a cidade, que não fica longe, fazendo cada vez menos barulho, calando-se também. Aqui e ali um bebé choramingando silêncio da noite, alguém tossi baixinho, ouve-se urinar e gemer ali muito perto. O ar torna-se límpido e puro, a poeira e o fedor desaparecem, levando consigo o cheiro a gordura e a óleo rançoso, o pivete a lixo amontoado ao sol, a urina estagnada e aquecida pelo sol. Shirin-Gol abre o frasquinho que o contrabandista lhe ofereceu, despeja umas gotas de água de rosas na mão, esfrega as mãos, leva-as ao nariz, aspira o seu perfume, encosta a cabeça ao poste da entrada, onde ainda não há nenhuma porta, fecha os olhos e finalmente dormita. Quando volta a abri-los, não sabe se está a sonhar ou acordada. Lá ao longe, onde fica a cidade, o céu está em chamas. Labaredas gigantescas, tantas que parece que metade da cidade vai arder, saltam e dançam vestidas de amarelo e vermelho. O vento traz para o campo o fedor a plástico queimado, a madeira queimada e a tudo queimado. Shirin-Gol levanta-se. Aparecem alguns vizinhos cochichando e soltando gritos assustados. Vê-se cada vez mais gente à frente dos casebres e das tendas, olhando o incêndio, rezando a Deus ou permanecendo em silêncio. No dia seguinte, um sábado, todos sabem. O bazar afegão de Peshawar ardeu. Ardeu completamente de cima a baixo. Não ficou nada, nadinha. Todas as tendas, todos os quiosques, todas as lojas, meias, camisas, calças, cigarros, papel, canetas, ganchos de cabelo, temperos, arroz, roupas, véus, burkas, capuzes, cintos, brinquedos, tudo, tudo ardeu, até a grande árvore que havia ao lado do bazar. As pessoas vão até ao que restou dela com baldes e tachos, arrancando a madeira queimada, transformada agora em carvão, que vão usar para acender o lume. -Foi um acto de vingança - dizem outros.

Vingança pelos três polícias mortos. Fosse o que fosse, foi uma sexta-feira negra, na qual muitos afegãos voltaram a perder o seu sustento, conquistado com tanto esforço. - Devíamos ir-nos embora - diz Morad em voz rouca, quando Shirin-Gol regressa ao casebre vinda do camião-cisterna, já não parece louca. - Eu sei - responde Shirin-Gol, observando os olhos do seu Morad, que voltou a acordar da sua névoa de ópio, que demorou tanto, tanto tempo a passar. Morad-de-ópio já não é Morad-de-ópio. -já não tremes - diz ela. -já não tremo - responde ele. -já não tens espuma na boca - comenta Shirin-Gol. - Já não tenho espuma na boca - confirma ele, olhando para Shirin-Gol, pegando-lhe na mão e dizendo: - Pensava que estavas louca e que não tinhas visto a espuma, as tremuras e o medo.

Estava louca diz Shirin-Gol -, mas vi as tuas tremuras, o teu medo e a tua espuma na boca. Ouvi os teus gritos e o teu choro e vi a tua dor, mas estava louca e não podia ajudar. - Eu é que tinha o dever de ajudar desabafa Morad, baixando os olhos, sem conseguir dizer mais nada. Uma lágrima desliza-lhe para a garganta e embarga-lhe a voz. - Tu sempre me ajudaste e agora continuas a ajudar-me - responde Shirin-Gol. Afagando o cabelo de Morad,

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parece-lhe que está a acariciar a cabeça de um dos gémeos. Morad ergue o rosto, pega na mão da mulher e beija-a. Pela primeira vez desde que veio do hospital olha Shirin-Gol nos olhos cheios de mágoa e diz: -Fiz o que devia e o que podia e sempre farei o que puder. - Eu sei replica Shirin-Gol, tocando-lhe docemente nos lábios. Que Deus perdoe e tire o peso da culpa dos ombros de quem matou os três polícias. Seja ele quem for. CAPÍTULO 8 UMA MONTANHA E UMA MULHER-DE-PEDRA Shirin-Gol oferece ou vende tudo o que não consegue transportar consigo e volta para o Afeganistão. Juntamente com a filha Nur-Aftah e o filho Nasser, cujo pai é Morad, com a filha paquistanesa, cujo pai é o contrabandista generoso, com o filho paquistanês que tem na barriga, cujo pai é um dos três violadores paquistaneses, e com Morad, que trata como seus filhos todas as crianças que Shirin-Gol deu e ainda dará à luz. À montanha onde Shirin-Gol nasceu, e onde Morad combateu muitos anos ao lado dos irmãos dela até não querer combater mais e jogou cartas e ganhou, recebendo Shirin-Gol por mulher em vez do dinheiro, a essa não podem regressar. Ainda por lá andam mujaedines combatendo outros mujaedines. E também ainda há guerra nas cidades do país, Cabul, Mazar. Kandahar, Herat e Jalalabad. - Vamos para a montanha Branca da Luz - diz Shirin-Gol. -Onde é? - pergunta Morad. - Sei lá! - responde Shirin-Gol. Quando, há muito, as crianças se recusam a andar mais, quando não sabem onde estão, nem há quanto tempo partiram, quantas vezes subiram e desceram, há quantos dias não vêem uma aldeia nem encontram vivalma e Morad pensa que a mulher voltou a perder o juízo, Shirin-Gol quer continuar a avançar. - Se amanhã não encontrarmos nenhum sítio onde possamos ficar morreremos em menos de quatro dias - diz Morad. A noite é a mais fria que apanham nas montanhas. O ar parece feito de pequeníssimas lascas de gelo. O lume não aquece. As camisas, calças vestidos de algodão fino e colorido esvoaçam ao vento, fustigando-lhes os corpos magros. As crianças enfiam as cabeças entre os ombros. Bafejam ar quente nas mãos vermelhas e azuis por causa do frio. Os dedos ficam húmidos e forma-se uma camada de gelo. Seis pequenas mãos de gelo. Três pequenos narizes de gelo. Três pequenas bocas de gelo. Shirin-Gol morre mil mortes ao ver os filhos quase sem vida, pois já só batem os dentes sem choramingar, cerrando os olhos em pequenas fendas contra o vento frio e cortante, que fere como uma faca. Umas vezes ficam entorpecidos, outras voltam a abrir os olhos, procurando desesperadamente a mãe. Shirin-Gol e Morad estendem os plásticos e os cobertores finos ao pé da fogueira e deitam as crianças. Nur-Aftab, Nasser e Nafass encolhem uns contra os outros os seus pequeninos corpos escanzelados, de pele de pergaminho. Agarram-se uns aos outros rígidos de medo. Apertam-se. Formam um novelo de pernas e braços tenros, quebradiços e magros. Formam um novelo com três cabeças. Shirin-Gol encosta-lhes o ventre grávido. Morad junta os cobertores e os plásticos, enrola-os à volta da família e ata bem as pontas. Depois, desaparece na escuridão gelada, desenterra arbustos e espinheiros, faz uma segunda fogueira, vigia-as às duas, mantendo-se vivo a si e à família. U vento cortante transforma-se em tempestade. As estrelas desaparecem atrás das nuvens. Cai neve. Fica tudo branco. As rochas, a montanha, o novelo de gente debaixo do plástico e também Morad e as duas fogueiras. Quando os primeiros raios de sol ultrapassam o cume, Morad vê nuvens de fumo do outro lado da montanha. Oito nuvens de fumo saindo de oito chaminés. Uma aldeia. Fica a quatro ou mais dias de marcha de uma cidade, algures no Norte do Afeganistão, algures no infinito Indocuche, no meio de nenhures, tão longe de tudo e de todos que até a guerra teve dificuldade em encontrar o caminho. A aldeia tem oito casebres encostados à montanha, todos parecidos uns com os outros. Os casebres assentam não no chão, mas em montinhos de pedra, e cada um tem uma porta, duas

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janelas e uma chaminé comprida com três aberturas pequenas e uma grande. Excepto quando neva, as pessoas passam a vida a juntar lenha e tudo o que arde em pilhas que arrumam debaixo dos casebres. No Inverno, içam-na por buracos abertos no chão, vigiam as suas fogueiras e mantêm-se vivas. Em cada um dos oito casebres de pernas e chaminés compridas vivem oito e mais pessoas. Todos os habitantes da aldeia pertencem aos Hazara, considerados fortes, resistentes, trabalhadores e asseados. Muitos dizem que os Hazara descendem dos Chineses por causa dos seus rostos largos, asiáticos e quase sem barba, dos olhos amendoados e do nariz largo, mas outros dizem que é dos Mongóis. 80 81 Os habitantes dos oito casebres não sabem porque é que, há muitas gerações, os pais dos seus pais vieram para a montanha, construíram os seus casebres e aqui ficaram. - Porque é que vivem no meio da montanha, sozinhos e abandonados por tudo e todos? Porque é que não descem para o vale, onde vive mais gente e não cai tanta neve? - pergunta Shirin-Gol. - Porque é que vieste até aqui? perguntam-lhe. As pessoas mostram-se simpáticas mas desconfiadas, têm medo, são tímidas e reservadas. Até que reparam que Shirin-Gol, os filhos e Morad não querem fazer mal, estão exaustos e precisam de ajuda e de um sítio para viver. Até há dois, três, quatro ou sabe-se lá quantos anos, e na verdade tanto faz, viveu um mullah no casebre para onde Shirin-Gol e a família vão morar. O mullah rezou pelas pessoas que as mães puseram no mundo ou que Deus chamou a si. Fez ta-vis para as pessoas e pendurou-lhes os amuletos ao pescoço. Casou homens e mulheres. Abençoou ovelhas, cabras e burros quando nasceram e foram mortos, quando adoeceram e voltaram a ficar bons. Como todos os outros mullahs, tornou-se mullah porque supostamente aprendera o Alcorão e até sabia ler e escrever. Pelo menos fora o que afirmara, mas ninguém podia provar nem uma coisa nem outra, pois nunca nenhum dos aldeões aprendera a ler ou a escrever. Como, se a aldeia fica a dias de distância das outras aldeias, da cidade e das outras pessoas que também não sabem ler nem escrever? Ninguém sabe de onde veio o mullah, quantos anos aqui viveu nem quem foram os seus professores. Porque é que veio sozinho e sozinho ficou. Ninguém sabe se tinha uma mãe que lhe sentiu a falta, um pai para quem trabalhou, irmãos, irmãs. Ninguém sabe porque é que nunca tomou mulher, embora muitos pais lhe tivessem dado as suas filhas de bom grado, porque é que não deixou filhos, porquê isto, porquê aquilo. O certo que estivera lá. O certo é que oferecera os seus serviços. O certo é que os aldeões não o tinham tratado mal e têm a consciência tranquila perante Deus. Al-hamn-do-allah. Todos gostavam dele e todos o tinham chorado quando morrera. Por isso, todos acham bem que agora haja outra vez na aldeia alguém que sabe ler e escrever e que tem mais inteligência do que todos os aldeões juntos. Ainda bem que o casebre do mullah está vazio e que Shirin-Gol e a família podem mudar-se para lá. É pena que seja só uma mulher. Ainda bem que a aldeia é tão pequena, que todos são do mesmo sangue e aparentados uns com os outros, que se compreendem e conhecem e que, por outro lado, lhes é indiferente se ela é homem ou mulher. Ainda bem que é uma 82 mulher, pois, se fosse um homem, quem sabe, talvez tentasse apoderar-se da aldeia. É pena que já seja casada e tenha filhos, porque senão um dos homens da aldeia podia desposá-la, de modo a que ela tivesse de ficar para sempre e nunca mais partir, a não ser que Deus a chamasse para Si. Ainda bem que é casada, porque assim não há discussões por causa dela. É pena ser pobre e não rei- nada, porque agora os aldeões têm de a sustentar a ela, aos filhos e ao marido. Ainda bem que não tem nada, porque assim tanto ela, como o marido e os filhos têm de trabalhar como os outros. É pena que o unndlah tenha queimado os seus livros antes de morrer e que Shirin-Gol não tenha nenhum onde possa ler que ervas e medicamentos são bons para as maleitas e doenças.

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Ainda bem que pelo menos um deles vai uma vez por ano à cidade, pois,_ assim, da próxima pode trazer um livro. E Primavera. O ar já não parece feito de vidro muito fino e quebradiço. Os campos estão de um verde suculento e garrido, tenros, cheios de vida e cobertos de restolho, que pica, arranha, estala e quebra debaixo dos pés descalços. O Sol brilha intensamente. A neve dos picos das montanhas está baça e densa. A água dos ribeiros corre límpida, fresca e viva. As vacas, ovelhas, cabras, burras e éguas têm crias. Pequenas flores brancas, cor-de-rosa e amarelas crescem entre os penedos. As árvores rebentam, vestem-se de folhas e dão frutos. As pessoas arrumam as peles e os cobertores pesados, arregaçam as mangas; enquanto o Sol brilha sentam-se mais cá fora, sob o céu, do que dentro dos casebres escuros feitos de lama. Encostam-se às paredes e às compridas pernas dos casebres, põem-se ao sol, cada vez mais intenso, com as mãos protegendo os olhos, triturando mais lama com a qual retocam as paredes cobertas de fuligem dos seus casebres. Sorriem, conversam, vão para os campos, semeiam o solo, ordenham o gado, arejam os currais, arrumam os depósitos, põem cobertores, esteiras e almofadas ao sol, trauteiam cantigas e dormem à noite debaixo do céu límpido, iluminado por infindáveis estrelas. Ou seja, as pessoas fazem tudo o que as suas mães e os seus pais já faziam todos os anos quando o Inverno abandona a aldeia, a montanha, os campos e também os ossos e os corações dos homens. Shirin-Gol estica o mais que pode para o céu o corpo escondido por véus e lenços para pedir a sua protecção, apesar de sentir todo o corpo humilhado, aviltado, violado e engravidado. É como se quisesse desatar e rebentar os dolorosos nós que os anos lhe teceram na alma e no corpo. Ergue-se até ficar nas pontas dos pés e tocar com os dedos nos huri, os anjos, que só ela e mais ninguém vê. Shirin-Gol arregaça o tonban, entra no ribeiro, a água brinca-lhe em redor dos pés, sente-se alegre como outrora... quando? Como nunca. Pela primeira vez na vida, Shirin-Gol não sente peso nos ombros, não sente o corpo de chumbo, não sente a vida ameaçada. 82 83 "Junta as pernas, as raparigas não se sentam por aí de pernas abertas. Senão vem o lobo e conte-te tudo", ralhava a irmã-do-sinal-na-cara cem vezes, mil vezes, à pequena Shirin-Gol. "Junta as pernas", censurava, mordendo o lábio inferior e lançando um olhar ameaçador a Shirin-Gol. Shirin-Gol teve sempre as pernas juntas. Sempre. Mesmo assim, foi violada. "Está calada, as raparigas ajuizadas estão caladas, senão vem o pássaro, voa-te para a boca e tu sufocas", dizia-lhe a mãe. "Diz à pequena para baixar o olhar, senão habitua-se e, quando for mais velha, olha de frente para os homens que não conhece", dizia o pai à mãe. "Puxa o lenço para a testa, põe o véu, tapa os pés, baixa os olhos, não fales quando os teus irmãos estão a falar, dá-me o lugar, sai-me da frente, faz isto e não faças aquilo porque és uma rapariga. Ou queres que as pessoas pensem que és kharab, que te apontem o dedo e que o bom nome da nossa família fique de rastos?" "A pequena é muito rebelde", diziam as pessoas, e a mãe de Shirin-Gol dava-lhe uma palmada na nuca. ,,A pequena fala muito>>, diziam as pessoas, e o irmão batia-lhe na boca.

Shirin-Gol senta-se com as outras mulheres à sombra dos casebres, bebe chá, tagarela, carda lã, fia, tece tapetes com as mulheres, canta, marca o ritmo da canção num prato de lata, cose uma camisinha para o filho que traz na barriga, amassa soro de leite, entalha um pente, penteia o cabelo dos filhos e de todas as crianças da aldeia, agachadas como sapinhos numa longa fila, e que se aproximam uma a seguir à outra, pedindo que a tia também lhes alise o cabelo, lhes faça tranças ou puxinhos e lhes tire alguma pulga ou piolho. Um pouco mais acima, onde o pequeno regato nasce das rochas, Shirin-Gol deita-se de costas, estica para o

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céu o ventre volumoso com o filho dos violadores, abre as pernas e os braços, fecha os olhos, dormita e sonha com um tempo que não conhece o medo, um sítio que não viu a guerra, uma vida como a que vive naquele instante. - Anda depressa chama Nur-Aftab. - Abine, Ahine, a filha do nosso vizinho está a morrer. Quer tirar o filho que tem na barriga mas não consegue. Shirin-Gol puxa o véu, pega na foice afiada com que apanhou o trigo e a erva, arrancou o matagal e cortou o pescoço à galinha e corre atrás da filha para casa do vizinho, onde a sua filha Abine está a morrer, porque não consegue tirar o filho da barriga. -Ajuda-nos - implora a mãe de Abine. -Não sou parteira nem médica - diz Shirin-Gol, olhando as mu lheres e apercebendo-se de que nenhuma delas sabe o que é uma parteira ou uma médica. - Não sou curandeira nem mullah.

Tu vens da cidade, sabes ler o Alcorão, viste o mundo, ajuda a minha filha, senão ela morre. - O que é que ler o Alcorão tem a ver com isto? Até agora, deram os vossos filhos à luz sozinhas - tenta Shirin-Gol desculpar-se. Tem medo de se meter, porque se acontece alguma desgraça a Abine ou à criança, vão dizer que a culpa é dela. graciosa Ahine está deitada no colchão, no chão. Tem doze, talvez treze anos. Ao lado dela, o seu primeiro filho tem a mão na boca, chora e soluça. Abine tem o rosto branco e a testa coberta de frias pérolas de suor. Só se lhe vê o branco dos olhos. As pálpebras tremem-lhe. Os braços jazem-lhe inertes no chão, como se não lhe pertencessem. A sua barriga é uma bola que espreita para o tecto. Tem as saias molhadas da água que lhe escorreu do corpo. Abine não se mexe. Parece morta. Vai morrer sussurra Shirin-Gol, baixinho. A mãe de Abine grita, chora, arranca os cabelos brancos, atira-se para o chão, beija as mãos meio mortas da filha grávida. A porta escancara-se e o marido e o pai de Abine entram no casebre. - Se Deus a quiser chamar para Si e ela tiver de morrer, então morrerá diz o pai. - Mas Shirin-Gol-jaez, querida irmã, tu também transportas uma pequena vida dentro de ti. Por favor, não te culpes e, pelo menos, tenta salvar a minha filha e o bebé que tem no ventre. - Bismi-allah, à vossa responsabilidade - responde Shirin-Gol, arregaçando as mangas, pegando no primeiro filho de Abine, pondo-o nos braços do pai da rapariga e mandando-o para fora de casa. Quando o marido de Abine também tenta sair, ela agarra-o com força, olha-o nos olhos e ordena: Tu ficas. O pobre rapaz abre a boca, procurando palavras que não encontra, recua e procura libertar-se da mão de ferro de Shirin-Gol. Ela empurra o jovem marido para junto da meia morta e diz: - Aperta-lhe a barriga. Shirin-Gol esbofeteia a grávida, pousa-lhe panos húmidos no pescoço e na testa, mete-lhe cobertores e almofadas debaixo das pernas, pede mais água e panos limpos. As mulheres devem acender incenso, abrir a porta e a janela para entrar ar puro, massajar os pés de Abine e esfregar-lhe as mãos. Sem ela própria saber como, Shirin-Gol consegue trazer Abine de novo à vida. - Levantem-lhe as saias - pede Shirin-Gol às mulheres. - Abre as Pernas, pequena Abine. Não, não é pecado eu ver o teu corpo nu. Não, não é pecado o teu marido estar aqui. Até é bom. Não, não tenhas sharm, 84 85 vergonha. É o teu marido. A criança que tens na barriga também é filha dele. Não, o teu sangue não é impuro. O sangue é sagrado, o sangue mantém-nos vivos. Tragam água - ordena às mulheres. - Não, esta água não, está suja. Acendam o lume. Tragam água fresca da fonte e fervam-na, precisamos de água quente e limpa. Fervam os panos, pousem a foice no lume e fervam-na. Não, com as mãos sujas não, lavem as mãos. Abine faz força. O seu jovem marido aperta-lhe a barriga e segura-lhe a perna. A mãe de Abine reza orações umas atrás das outras. Shirin-Gol enfia os dedos dentro de Abine para puxar a criança, mas a cabeça é grande de mais. Até agora, as únicas crianças que Shirin-

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Gol ajudou a nascer foram as suas. Tirava o tonban, arregaçava as saias, punha-se a um canto, acocorava-se e se houvesse pedras por perto enfiava-as debaixo dos pés. Fazia o que todas as mães do mundo fazem quando os filhos vêm ao mundo. Sofria, esperava, rezava, praguejava, chorava e rangia os dentes. Quando o pequeno ser lhe saía do corpo, cortava-lhe o cordão umbilical com a foice e atava-o com um fio. Esperava que a placenta saísse, limpava o bebé do sangue e das águas da mãe, beijava-o, embrulhava-o nas suas saias ou em panos e desejava-lhe uma longa vida. Para o nascimento de Nasser, Morad levara-lhe dois tijolos grandes iguais. No de Nur-Aftab, escavara um buraco na areia para ficar com mais espaço debaixo de si. Deixara a placenta no buraco, tapara-a com terra e pusera-lhe uma pedra em cima. Pronto. Khaiass e taram. Mas Shirin-Gol não sabe o que há-de fazer numa situação destas. Agachadas à sua volta, as mulheres esperam que faça um milagre. Observam-lhe todos os movimentos, espreitam-lhe cada gesto, escutam-lhe as palavras e obedecem a cada ordem sua. Sentada junto da cabeça de Abine, Bibi-Deljan, a mais velha da aldeia, mexe os lábios e desfia as contas do tasbih, primeiro para um lado, depois para o outro. Mãos de veias azuis como regatos na montanha desfiam as contas. Bibi-Deljan não tem um bocadinho de pele lisa, tudo nela são pequenas rugas e sulcos. Rugas e sulcos que parecem as arestas afiadas e com rochedos onde vive. Bibi-Deljan o ser-de-pedra. Pedra-de-mulher. Mulher-de-pedra. Direita. Hirta. Imóvel. Cabeça-de-pedra. Costas-de-pedra. Pernas-de-pedra. Braços-de-pedra. Para além dos lábios emudecidos e dos dedos nodosos com os quais desfia as contas do tasbih, primeiro para um lado, depois para o outro, nada mais se mexe em Bibi-Deljan, sentada sem despregar os olhos de Shirin-Gol. É como se quisesse estender um fio invisível entre si e Shirin-Gol. Como se por meio deste fio fosse entrar na cabeça, na alma, no sangue, nos braços, nas pernas e em cada cabelo de Shirin-Gol. Como se fosse enviar-lhe por aquele fio tão fino tudo o que os seus olhos já viram e cada pensamento que já teve. É como se todas as vozes e barulhos do casebre fossem desaparecer. Como se as cores fossem desaparecer. Primeiro, o rosto da mãe de Abine perde os olhos, o nariz, as orelhas e a boca transforma-se num buraco negro. Depois, todos os outros rostos perdem os olhos, o nariz, as orelhas e todas as bocas se transformam em buracos negros. SÓ o rosto da mulher-de-pedra tem ainda olhos, nariz, orelhas e boca. Uma boca que se mexe, emudecida. Silêncio. Shirin-Gol fecha os olhos e tenta que a cabeça não lhe ande à roda. Perde todas as palavras, os pensamentos. Só um é que não. Só encontra um único pensamento na cabeça a andar à roda. Já não há olhos nem ouvidos e apenas buracos negros onde dantes estavam bocas. "Podia ir-nme embora do casebre", pensa Shirin-Gol. "Ninguém repararia. Não devo imiscuir-me nos assuntos de Deus." - É por vontade de Deus que estás aqui a ajudar - diz Bibi-Deljan calmamente, em voz baixa. A mãe de Abine volta a ter olhos, nariz, orelhas, boca. Solta um pequeno grito asfixiado, como se tivesse visto um fantasma. Leva uma mão à boca e crispa a outra na saia. f.a-elah-ha-el-allah - exclama. Há dois Invernos e dois Verões que Bibi-Deljan não fala. Agora, recuperou a voz aqui, onde a minha filha morre. Bibi-Deljan, a mulher-de-pedra emudecida, recuperou a fala. A mãe de Abine recuperou a boca e a voz estridente. A mulher-de-pedra não tira os olhos de Shirin-Gol e continua a desfiar as contas do tasbih, primeiro para um lado e depois para o outro. Milhares de pequenas gotas de suor deslizam pelo corpo de Shirin-Gol, que estremece. Falta-lhe o ar, não sabe o que fazer das mãos. Espreita entre as pernas da menina-mulher de Abine, vê a cabeça do bebé, mete um dedo e apalpa o nariz tenro, as orelhas, a boca. Tenta agarrar na cabeça, mas não consegue puxar a criança. Mulher-de-pedra. Mulher-de-pedra. Clique. Clique. Desfiando as contas do tasbih. - Dêem-me a foice diz Shirin-Gol. - A foice? - grita a mãe de Abine. - A foice é para

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cortar o cordão umbilical e a criança ainda não saiu. Para que queres a foice, em nome de Deus? - Sei lá - geme Shirin-Gol. Mas temos de tirar-lhe a criança do corpo. A mãe de Abine cala-se. Shirin-Gol faz passar cuidadosamente a ponta da foice pela cabeça escorregadia da criança, murmura bisrni-allah e faz uma incisão de dois dedos. Sangue. Sangue espesso e vermelho escorre pela lâmina e pelos dedos 86 87 de Shirin-Gol. A mulher-de-pedra não se mexe, continua a desfiar as contas umas a seguir às outras, primeiro para um lado, depois para o outro. Clique. Clique. A mulher-de-pedra não tira os olhos de Shirin-Gol. A mãe de Abinc solta gritos estridentes. Shirin-Gol reprime um vómito. Sente tonturas. Os joelhos dobram-se-lhe. Reúne as suas forças, põe uma mão no volumoso ventre de Abine, empurra, faz força; com a outra mão puxa o bebé para fora, pousa o cordão umbilical na foice, murmura outra vez bismi-allal,, dá um puxão, enrola o trapo limpo em volta do cordão cortado e dá umas palmadas nas costas do recém-nascido, para que este limpe os pulmões e respire pela primeira vez. Shirin-Gol põe a criança nos braços do pai, tenta enfiar a agulha, treme e entrega a linha e a agulha à mãe de Abine, que está como enlouquecida, pois não compreende nada. O jovem pai pega na agulha e na linha, enfia-a e murmura: - Isto é assunto de mulheres. Mete um trapo entre os dentes de Abine e lança a Shirin-Gol um olhar que não é um sorriso nem uma ameaça. Antes compreensão, gratidão. Vai em frente diz-lhe. -Deus está contigo. ,,Deus está comigo", pensa Shirin-Gol, espetando a agulha de um lado da ferida, puxando a linha, espetando do outro lado, puxando a linha, dando um nó e não sabendo como sabe o que há-de fazer. É como se cosesse couro, como se remendasse um sapato. Espeta, puxa, espeta, puxa, dá outro nó, um terceiro, um quarto. Abine já não está consciente, e ninguém sabe se alguma vez voltará a recuperar os sentidos. Shirin-Gol fica com ela a noite toda. A mulher-de-pedra também. Continua a desfiar as contas do tasbib, primeiro para um lado, depois para o outro. O jovem marido também não arreda pé de junto da sua esposa-menina. Já o Sol lança os seus primeiros raios sobre o cume da montanha à qual se encostam os oito casebres de lama, já relincha o pequeno potro que há dois dias caiu da barriga da mãe para a terra, já cacareja a primeira galinha, já o bebé chora, já o jovem pai lhe afaga a fina pele de pergaminho, já lhe enfia o dedo lavado na boca para que possa mamar, quando Abine abre os olhos, sorri, contempla o marido, contempla a filha recém-nascida, contempla Shirin-Gol e murmura em voz fraca de menina-mulher: - Boa irmã, que Deus te dê uma vida longa e cheia de saúde. Ainda demora até Abine recuperar as forças, poder levantar-se e fazer tudo o que dantes fazia. Ainda demora até Abine ficar boa e voltar a ser o que era antes do nascimento da filha. Mas tal como tudo volta a ser como sempre foi, depois do nascimento da criança também tudo é diferente do que sempre foi. E todos sabem que isso não tem nada a ver com o nascimento nem com a criança, mas com Shirin-Gol. Se é verdade que não viu assim muitas mulheres na vida, também é certo que Abine conhece todas as mulheres e raparigas da aldeia, e sabe que nenhuma é como Shirin-Gol. Shirin-Gol é inteligente. Shirin-Gol tem resposta para as perguntas de toda a gente, seja homem ou mulher. Até para as perguntas a que os homens só sabem encolher os ombros. Abine não tem dúvidas de que Shirin-Gol é uma santa, uma enviada de Deus. Abine passa cada minuto que tem livre com Shirin-Gol, observando-a, escutando cada palavra sua, gravando tudo na memória, imitando-lhe os gestos, fazendo-lhe mil e uma perguntas. Sem que Shirin-Gol o queira ou sequer repare nisso, Abine faz tudo o que Shirin-Gol faz: vai ao ribeiro quando Shirin-Gol lá vai, cozinha como ela cozinha e coze pão como ela coze. Tal como Shirin-Gol, Abine lava as mãos antes de mexer na massa, antes de dar de comer à filha, antes de preparar as refeições. Como Shirin-Gol, Abine não deixa as moscas

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pousarem na comida. Tal como Shirin-Gol lhe ensinou, Abinc diz que, quando a mosca pousa no esterco, este fica-lhe agarrado às patas, e quando depois pousa na nossa comida, o esterco fica na comida. Mas o esterco não é bom para nós e faz-nos ficar doentes. Tal como Shirin-Gol o fez antes dela, Abine começa a desenhar palavras na areia. Como Shirin-Gol, começa a dizer não. Ao princípio, o seu jovem marido ri-se, contente por a sua pequena Abine estar viva. Mais tarde, zanga-se com ela e tenta bater-lhe, quando ela lhe responde. Mas em vez de se encolher, Abine prende-lhe a mão no ar, olha-o nos olhos e diz: - Quem ama outra pessoa, não lhe bate. Diz-me o que queres. Se eu puder dar, dá-to-ei, mas se não puder, não adianta bater-me, porque não to darei. O jovem marido baixa o olhar, respondendo: -Tenho medo de ti. - Porquê' - pergunta Abine. -Porque já não me obedeces. - A Shirin-Gol disse que no Alcorão está escrito que o marido deve honrar e respeitar a esposa - replica ela. - É o que eu faço - diz o jovem. Mas deves obedecer-me. Es minha mulher. O teu pai passou para mim a sua responsabilidade por ti e o direito que Deus lhe deu de decidir o teu destino. Se não queres obedecer-me mais, vou levar-te outra vez para casa dele. Abinc cala-se e baixa o olhar. A Primavera já passou, o Verão vem e também parte, o Outono chega, as folhas das árvores ficam amarelas e depois castanhas, perdem a vida e caem. A filha de Abine cresce, medra, grita, come, mama no seio da mãe, Abine cala-se. Uma outra mulher da aldeia dá à luz. A mulher-de-pedra põe nas mãos de Shirin-Gol o tasbih, que ela ainda hoje traz ao pescoço, despede-se e vai para os seus penedos na montanha. Morre. Transforma-se em pedra. Vai para junto do seu Deus. Shirin-Gol dá à luz o seu quarto filho, cujo pai é um dos três violadores paquistaneses. É pequeno, gracioso, tem as perninhas e os bracinhos magros e vigorosos, pés pequenos, dedos minúsculos, mãos irrequietas e pele escura como pergaminho castanho. O cabelo liso e de veludo é escuro como o breu. Os olhos parecem carvões brilhantes. Tem os lábios tenros e cheios. - Meu rapazinho paquistanês - sussurra-lhe Shirin-Gol, fazendo-lhe tantas cócegas no ouvido minúsculo que a criança estende os braços e treme como varas verdes. - Que os teus olhos inocentes possam ver só o Bem e não o Mal deste mundo. Vou chamar-te Nabi. Shirin-Gol lava o sangue, as águas do seu pequeno corpo, beija-lhe a testa, beija-lhe a barriga, os olhos e as mãos, os pés e os braços, pedindo a Deus que lhe dê força e coragem para não amar Nabi nem mais nem menos do que os seus outros três filhos. A neve cai de mansinho no cume da montanha, entregando o seu ar fresco e o seu frio aos braços do vento, que desce à aldeia e sussurra aos habitantes dos oito casebres de lama que o Inverno está a caminho. Dois rapazolas da aldeia dão-se ar de importantes, põem-se à frente de Nasser, semicerram os olhos, espreitam o céu e o pico mais alto e dizem: - Vai cair tanta neve que ficaremos com as nossas casas completamente tapadas. Nasser observa a chaminé do seu casebre e grita: - Não há assim tanta neve no mundo. - Isso é que há - respondem os outros rapazes. O atrevido Nasser atira uma pedra, tenta acertar no cume da montanha e diz: - Então escavemos buracos na neve e limpemos os caminhos. - Não se consegue limpar tanta neve - dizem os outros. - O meu pai consegue - teima Nasser, de peito inchado. - Não consegue nada. - Consegue. Se viu tanto mundo, há-de conseguir escavar um buraco na neve. Mas os outros rapazes sabem que a neve cai nos caminhos, endurece e não é possível limpá-la. - Porque é que não construímos um telheiro por cima dos caminhos- pergunta Shirin-Gol. - Se ligarmos as entradas das casas umas às outras, a neve não pode cair nos caminhos. Os homens observam Shirin-Gol, entreolham-se e encolhem os ombros. Quando a neve chega, cobre tudo e todos. Cada arbusto, cada árvore, cada penedo está coberto. Tudo, tudo fica branco. As pessoas deixam de poder sair de casa. A neve tapa todas as fendas e rachas, o vento e o frio

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ficam de fora e no casebre está quentinho e aconchegado. Morad sobe todos os dias a um escadote de madeira, que coloca por baixo da abertura da chaminé, e abre orifícios na neve com um pau comprido para que o ar fresco entre em casa e o fumo da lareira possa sair. As crianças divertem-se com os raios fininhos de sol que incidem no casebre como dardos. Divertem-se abrindo o buraco do chão e içando mais lenha para a lareira ou descendo a alimentar a cabra e as galinhas. Um dia, dois, três, quatro, então querem sair para o sol, brincar com as outras crianças, ir ao regato, trepar aos penedos. Porque é que não se pode? O Sol desapareceu? Para sempre? As outras pessoas também estão enterradas nas suas casas? Quando se vai embora a neve? Estamos mortos? Somos shahid? Mártires-da-neve? Porque não estamos noutra aldeia onde não haja neve? Ao fim de uns tantos dias, diz Shirin-Gol: Vamos jogar a um jogo, o jogo dos nomes. - Com carvão, escreve o seu nome na parede. - O meu nome fala de flores docinhas, de borboletas e abelhas que as beijam, depois transportam o pólen para alimentar os filhos e fazer mel, que em seguida nós comemos. -A seguir sou eu - grita o atrevido Nasser, escrevendo o seu nome por baixo do da mãe e mirando em volta com os grandes olhos cheios de satisfação.

Tens de dizer o que é que o teu nome significa - observa Nur-Aftab. Nasser espeta o lábio inferior para a frente, fita a mãe e pede: -Diz tu. - Nasser é um amigo generoso que está sempre pronto a ajudar-te. - Shirin-Gol agarra Nasser, puxa-o para o seu regaço e faz-lhe tantas cócegas que o põe a rir. - Dust. Sou o amigo. O amigo de todos grita ele. - E agora a Nur-Aftab - diz Shirin-Gol, sorrindo para a filha. - O meu nome é fácil, toda a gente sabe o que quer dizer e não tem graça - resmunga Nur-Afrab. -Assim não vale - grita Nasser. - Tens de o escrever e de dizer e que significa. Nur-,gftah escreve o seu nome na parede de lama com um ar aborrecido, dizendo: - O meu nome significa Luz do Sol e por isso adoeço e fico com o coração apertado quando não o vejo. - Não ficas nada - diz Shirin-Gol. - Agora tu, Morad. - Mas eu não sou criança. - Eu também não - responde Shirin-Gol. M-o-r-a-t, escreve Morad devagar, arranhando a parede de lama. - Errado, errado, errado - grita o atrevido Nasser, apagando o com a mão e escrevendo d em seu lugar. Nur-Aftab cala-se com vergonha da ignorância do pai e olha para a portinhola que tapa a janela como se estivesse aberta, como se através dela conseguisse ver a montanha e as cabras-monteses que procuram alimento entre os penedos. - V - diz Nasser. - De que fala o teu nome? - Deixa-me em paz - murmura Morad. -Não - diz Shirin-Gol. Morad cala-se, A vergonha da filha é un dardo que lhe perfura o peito, como o pau comprido que espeta na neve através da chaminé.

De noite, Shirin-Gol não consegue dormir. Chegando-se a Morad, comenta: -já nem sequer sei se é de dia ou de noite. Quantas mais histórias terei de inventar? Quantas mais canções teremos de cantar? Quantas mais palavras teremos de escrever? As paredes já estão cheias de palavras e desenhos. - Quando chegar a Primavera, vou amassar mais lama para cobrir as paredes - diz Morad. -já não suporto a escuridão - sussurra Shirin-Gol. - Já não posso mais, estou sem forças. O dedo de Morad encontra os lábios de Shirin-Gol, que acaricia de mansinho. A respiração dela acelera-se. O sangue dispara-lhe no corpo. O coração aquece-lhe. Morad afaga-lhe o pescoço, o ombro, o braço, o seio, o ventre. E pela primeira vez desde... Shirin-Gol não sabe desde quando, mas depois lembra-se... desde o acidente com o frigorífico, Morad mete-lhe o desejo dentro do corpo. Shirin-Gol pousa a nuca, acaricia os braços e as

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costas de Morad, sente-lhe o hálito no pescoço, ouve-lhe os gemidos, a satisfação, o orgulho e ouve também o assobiar das brasas na lareira. -A neve está a derreter grita o irrequieto Nasser na escuridão, acordando com o seu vozeirão Nur-Aftab, Nafass e o pequeno Nabi.

Que fizeste nos dias escuros de Inverno? - pergunta Abine. - Dormi, dormi e tornei a dormir - ri Shirin-Gol, mostrando os dentes brancos como pérolas. - E quando não estávamos a dormir cantávamos, cozinhávamos, comíamos, brincávamos e escrevíamos, escrevíamos e tornávamos a escrever. As paredes estão todas cheias de palavras e desenho. E beijávamos, beijávamos e tornávamos a beijar - grita o atrevido Nascer, apontando com o dedo para a mãe e depois para o pai e continuando: Esta beijava este. - Devíamos construir um telheiro por cima das nossas portas - diz o vizinho, pai de Abine. - Assim, no próximo Inverno podemos ir a casa uns dos outros e não nos sentiremos tão sozinhos. - É uma boa decisão - responde Shirin-Gol. As crianças atiram punhados de bota contra os pilares que os homens constroem para o telheiro, deixando as marcas das mãos e dos dedos por todo o lado. Abine e Nur-Afrab desenham nomes na lama húmida e constroem, perto das entradas dos casebres, casinhotos para os sapatos, do tamanho de quatro galinhas. Nasser e Nafass moldam figurinhas e colocam-nas em cima dos casinhotos, para que os sapatos não se sintam sozinhos. Ainda a Primavera não chegou ao fim e já todos os caminhos têm pilares e telheiros.

Shirin-Gol jarn>, dizem os homens "anda beber um chá connosco e contar-nos quem são os Russos. Porque vieram para a nossa terra? Que presente mandou o chefe deles ao nosso? Porque lutaram contra os nossos irmãos? Porque se foram outra vez embora? Quando foram? Quanto é dez anos? Conseguiram aquilo que queriam? Quem luta agora contra quem? Não são todos afcgãos? Não são todos muçulmanos? Irmãos e irmãs?" Chega o Verão, os frutos estão maduros e grandes nas árvores, os cachos de uvas pendem sumarentos das videiras, as cerejas vermelhas quase rebentam, e os tomates carnudos cheiram bem. As mulheres estendem uma toalha entre os ramos das amoreiras, desdobram mantas no chão, trazem cestos de tomates, feijões, ervilhas e ervas, partem, escarafuncham, cortam em pedaços e põem os frutos, os legumes e as ervas a secar. Provisões para o Inverno. Despensa de Inverno. - Que bonito! - exclama Shirin-Gol. - O que? O que é bonito? - perguntam as mulheres. -Vocês. Vocês são bonitas. Os frutos. As toalhas. Cortar. Descascar. Secar. - É a nossa vida - dizem as mulheres. -Já ninguém sabe nada desta vida nos sítios onde vivi até agora comenta Shirin-Gol. - É uma sabedoria que as guerras destruíram. Os campos estão arrasados_ os camponeses partiram para a guerra, e as pes 92 93

soas passam a vida a fugir. Já ninguém sabe trabalhar os campos, criar ovelhas e vacas e preparar provisões. As mulheres riem e respondem:

Então deviam vir todos para cá, para lhes mostrarmos e lembrarmos como se faz. Não nos esquecemos de nada. Fazemos tudo tal e qual como as nossas mães e as mães das nossas mães nos ensinaram. Podes contar-nos como vivem as outras mulheres da nossa terra. - Não há muito para contar - diz Shirin-Gol. - As mulheres do Afeganistão nunca tiveram muito, mas desde que os Russos vieram para cá, desde que os mujaedines travam a sua guerra

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e desde que os talibãs chegaram ao Poder, as mulheres perderam os seus últimos direitos e a sua última liberdade. Perderam tudo. A honra, a dignidade, a sabedoria. As mulheres já não riem, nem cortam, nem descascam. - Nós não perdemos nada, mas também é certo que não ganhámo> nada diz Abine. A nossa vida é sempre igual. - Mas vivemos em paz. Com sossego - contrapõe uma outra mulher.

Que lindo sossego! - exclama uma terceira. - O sossego do medo. Temos medo. Até os nossos homens têm medo. De tudo e de todos Dos desconhecidos. Das pessoas da cidade. - Continua - pede Abine. - Fala-nos do resto do mundo.

Não conheço o resto do mundo - responde Shirin-Gol. - Fala-nos das terras que conheces - pedem as mulheres. - Antes de a guerra ter destruído tudo, havia muita gente da cidade que tinha electricidade - conta Shirin-Gol. Quem tem electricidade, consegue fazer mais luz do que quatro candeias com uma bolinha tão pequena que cabe na minha mão. - Isso é bruxaria - murmura uma mulher. - Cala-te! Deixa a Shirin-Gol falar diz Abine. - Na cidade, as mulheres não morrem quando dão à luz. E as crian ças não morrem de diarreia, febres ou tísica. Existem sítios onde até vol tam a coser braços arrancados.

La-elaha-el-allah - exclamam as mulheres, incrédulas. -As pessoas constroem automóveis e aviões.

O que são automóveis e aviões? perguntam as mulheres. - Para que servem? Essas pessoas têm um profeta? Um Deus? O nosso Alá conhece o Deus delas? - Somos todos criaturas de Deus, que nos ama a todos - responde Shirin-Gol. - Tanto homens como mulheres. Al-hamn-do-allah. Shirin-Gol lembra-se da sua professora Fauzich, a mulher meia nua_ de sorriso bonito, da escola russa, e de uma história que ela lhe contou: - A ave precisa das duas asas para voar. O mundo é como uma ave. Tand,en, precisa das duas asas. Precisa das mulheres e dos homens para não parar. - Mas nós não somos aves nem podemos voar - diz uma mulher. - Eu sou uma ave - sussurra Abine. - Ave com duas asas. Uma para as mulheres e outra para os homens.

- Shirin-Gol-jan - dizem os homens. - Tu poes as nossas mulhe res kharab, estrága-las. - Kharab. Como um fruto que apodrece. hharab. Como uma janela que se parte. Os homens dizem: - O mullah, que Deus tenha a sua alma, nunca falou de nada seme lhante. - O mullah era um homem - diz Shirin-Gol. O Verão parte, o Inverno chega, nascem crianças, Deus chama algumas pessoas para Si. Constrói-se um nono casebre encostado à montanha para Abine, o seu marido e filhos. A barriga de Abine volta a aumentar e volta a acontecer isto e aquilo. Umas vezes, as pessoas discutem, outras estão de bem. Umas vezes querem tirar a toalha de entre as amoreiras, para que as mulheres não se reúnam aí, outras não. Umas vezes, as mulheres obedecem aos maridos, outras não. Umas vezes querem ouvir o que Shirin-Gol tem a dizer disto ou daquilo, outras não querem que a Estranha se imiscua nos seus assuntos. Umas vezes, Shirin-Gol diz: "Não tenho notícias de nada nem de ninguém e não quero continuar aqui." Outras vezes diz: "Pelo menos aqui há paz e os meus filhos têm de comer e um tecto para se abrigar." O filho paquistanês de Shirin-Gol, Nahi, já se aguenta nas suas próprias pernas, já anda, já diz as primeiras palavras: "Nabi." "Quero." "O Nabi está cansado." "O Nabi quer fazer

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chichi." "Fome." "Madar. Pedar." <~Dá." "Deixa-eme." Shirin-Gol está no regato a lavar Nabi, Nur-Aftab vai ter com a mãe, quando se dá um grande estrondo no céu. Um vento tão forte, que parece um vendaval, faz ir tudo pelos ares. As roupas voam, as galinhas abrigam-se na segurança dos casinhotos para os sapatos, os burros zurram muito alto, as pessoas correm de um lado para o outro, as mulheres gritam, as raparigas protegem a cabeça com os braços, as crianças caem por terra. Olham para o céu e vêem um pássaro tão grande, monstruoso, negro, barulhento e mau como nunca viram. O pássaro-monstro negro e enorme sobrevoa uma vez a aldeia. Depois outra. Devagar. Com cuidado. Mais baixo. Pára no ar. Com os seus olhos assustadores, que faíscam e cintilam ao sol como se fossem cuspir fogo, 94 95 observa os casebres e as pessoas que correm em todas as direcções O monstro levanta a cabeça devagar, devagarinho, dá meia volta, mostra cauda às pessoas e volta a desaparecer atrás do pico da montanha. Deus castiga-nos pelos nossos pecados - gritam as raparigas. - O Dia do juízo aproxima-se - berram as mulheres. - O que havemos de fazer? - perguntam os homens. - Pegamos nas nossas fisgas e defendemo-nos - dizem os rapazes -Aquilo era um helicóptero, seu burro - grita o atrevido Nasser, quem a mãe lança um olhar zangado. Shirin-Gol pousa a mão no ombro do rapaz a quem Nasser chamoi burro e diz baixinho: - Não és nada burro. - Depois eleva a voz: - Mas aquilo não era nenhum pássaro e sim um helicóptero. Vão voltar continua Shirin-Gol. - Vão voltar com os seus pássaros de ferro, cuspindo fogo, disparando contra nós e arrasando tudo. -As nossas casinhas para os sapatos também? -As nossas casinhas para os sapatos também. -As nossas palavras na lama também?

As nossas palavras, as nossas casas, os nossos telheiros sobre os minhos, as nossas fontes, os nossos campos, as nossas provisões, as nossas amoreiras. Tudo. E depois virão com facas e armas e matarão tudo o que ainda tiver vida.

Quem mandou o pássaro de ferro? - A guerra.

Porquê? Que fizemos? - Nada - grita Shirin-Gol. - Não é preciso fazer nada para a guerra vir. Se ela quiser vir, vem. Não interessa quem somos nem o que fizemos. Parem de fazer perguntas e juntem as vossas coisas. Temos de nos apressar, temos de fugir. "Shirin-Gol jant", dizem os homens "falaste-nos do mundo, ajudaste as nossas crianças a nascer, foste para nós uma irmã que estimámos e respeitámos e deste-nos palavras e os telheiros dos caminhos. Mas não vais fazer-nos arredar pé. A nossa vida é aqui. Nascemos neste torrão. Fazemos parte desta montanha, destes penedos. Somos como estas pedras, que nem que quisesses conseguirias arrastar contigo. Sentir-nos-íamos perdidos em qualquer outro lugar deste mundo. Se a vontade de Deus for que a nossa vida acabe aqui, é a Sua vontade, e aceitaremos o nosso destino. Quem sabe, talvez a guerra pense duas vezes e perceba que aqui não há nada que lhe interesse, e que nós não fazemos mal a nada nem a ninguém. Deus misericordioso. Talvez a guerra nos deixe em paz." Guerra em paz. Paz guerreira. Guerra pacífica. Por mais que Shirin-Gol peça e implore, as pessoas não querem partir. 96 Ficarão, mesmo que este seja o último dia das suas vidas, aquele em que Deus as mandará para o céu. Shirin-Gol junta tudo o que serão capazes de transportar. Morad, Nur- Aftab, Nasser, Nafass, Nabi e ela própria apertam mãos, abraçam e beijam quem é próprio abraçar e beijar e apressam-se a abandonar a aldeia. Ainda o Sol não desapareceu atrás do cume quando Shirin-Gol, Morad e as crianças chegam à montanha em frente, onde tinham passado a última noite ao relento, antes de chegarem à aldeia com os oito casebres. As pessoas ainda não estão assim

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tão pequenas que Shirin-Gol não consiga vê-las. As vozes não estão assim tão distantes que Shirin-Gol não consiga ouvi-las. Eis ali Abine, pegando no filho ao colo e avançando para o último casebre. Eis ali Abine, levando a mão à boca e gritando: "Que Deus te acompanhe, Shirin-Gol." Quando Shirin-Gol vai responder, o pássaro de ferro negro aparece a pairar sobre a montanha. Primeiro sem fazer barulho. Surge então um segundo pássaro. Pairam os dois, vibrando baixinho, e depois, gritando e guinchando, sobrevoam uma vez a aldeia, inclinam as cabeças, mergulham e disparam, uma vez, duas, três, quatro. Shirin-Gol deixa de as contar. Ela e Morad abrigam as crianças atrás de um penedo, levam as mãos aos ouvidos, fecham os olhos, apertam os corpos cheios de medo um contra o outro e esperam. Até voltar a fazer-se silêncio nas montanhas. Shirin-Gol não precisa de espreitar para saber o que aconteceu. Quem são os homens sentados nos helicópteros (porque serão sempre homens?), em nome de quem combatem... combatem? Não. Disparam. Contra pessoas desarmadas. Inocentes. Sela em nome de quem for que disparam, pousam os helicópteros e assaltam a aldeia com facas e Kakielmikovs. Incendeiam tudo. Põem minas. Para que nunca mais ninguém possa viver nos casebres. Matam toda a gente que ainda vive. "Também Abine e o filho. Que trespassam. Esventram. 96 97 CAPÍTULO 9 AZADINE E UMA PEQUENA INSUBMISSÃO

Não quero ir para lado nenhum - grita Nur-Aftab à mãe. Que vida é esta? Arrastas-nos da cidade para o campo, depois outra vez para a cidade e andamos dias e noites por desertos e montanhas. Ora quase secamos e ardemos, ora quase gelamos e morremos de frio. Arrastas-nos para uma porcaria de um campo de refugiados malcheiroso no Paquistão, onde primeiro endoidece o nosso pai e depois tu. A seguir, levas-nos para as montanhas, para uma aldeia que até hoje nem sequer sabes onde fica. Uma aldeia onde fazemos amigos que estão todos mortos. Andamos rasgo da direita para a esquerda e de cima para baixo que, daqui a pouco, posso dizer que já pisei cada torrãozinho desta terra. Agora estou aqui numa aldeia de onde até os espíritos dos mortos, que Deus proteja as suas almas!, fogem. Madar, por favor. -Madar-jan. Não posso mais. Não quero mais. Já não tenho forças. Não quero habituar-me a outras pessoas para depois ter de as abandonar, para ser obrigada a ver alguém chegar e matá-las. Já vi nesta minha curta vida o suficiente para sete longas vidas. Aconteça o que acontecer, fico aqui. - Aqui? Aqui onde? pergunta Shirin-Gol. - Aqui é nenhures, Aqui não há nada nem ninguém. Ninguém que conheçamos. O rosto de Nur Aftab está branco como a pequena nuvem que se agarra ao céu. Branco. Sem cor. Perdeu a cor. A filha-sem-cor-no-rosto tem lágrimas. Lágrimas que lhe escorrem pela pele como um aguaceiro de Primavera. Fala em voz rouca, como se um pequeno trovão se lhe tivess alojado na garganta.

Então onde é que há alguém que conheçamos e em quem confiemos? - grita ela, batendo com o pé descalço no solo duro e seco, dando um murro na carcaça do que era um casebre. Esse alguém não está em lado nenhum. - Olha à tua volta. Estamos no meio do deserto. No meio de nada. Não há aqui árvores nem arbustos. Só terra estalada e amarela, com fendas tão grandes que é preciso ter cuidado para não cair nelas. Não há gente, campos, nem aldeias. Nada para comer. A nossa água está a acabar. Não temos nenhum tecto para nos abrigarmos. O sol vai queimar-nos e de nós só restará o suficiente para alimentar os abutres e as moscas. Não vês as pedras pintadas de vermelho por todo o lado? Aqui está tudo minado. Nem um cão quer viver aqui. Quanto mais as pessoas! - Eu fico - grita Nur-Aftab, - Se tiver de ser, morrerei aqui. Serei um cão. Shirin-Gol agacha-se, pousa os braços nos joelhos e deixa escapar da garganta um riso profundo e bonito, que voa até à filha nas asas da aragem ligeira.

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Com os braços cruzados no peito, o lábio superior fincado sobre o inferior e as costas apoiadas à carcaça do casebre, Nur-Aftab observa os pés descalços. - Anda cá - diz Shirin-Gol, levantando-se e abraçando a filha, cerca de uma cabeça mais baixa do que ela. Depois senta-se no chão, puxa-a para o regaço, beija-a, afaga-lhe o cabelo e continua: - Minha linda Luz-do-Sol. Não diz mais nada. Só: - Minha linda Luz-do-Sol. - Mas para onde queres ir? - pergunta Nur-Aftab. Shirin-Gol não sabe. Tentando não perder a calma nem o sorriso, reflecte e acaricia as costas da filha como se quisesse massajá-las com um bálsamo. -Para o Irão - diz Shirin-Gol, sem saber de onde lhe vem esta ideia. - Para o Irão. -Para o Irão? resmunga Nur-Aftab. - Mas isso é outro país. Mais outra terra. Temos de passar novamente uma fronteira. Não quero voltar para um campo de refugiados. - Descansa que não voltamos já - afirma Shirin-Gol. - Não temos dinheiro para a viagem, nem conhecemos o caminho. Primeiro, vamos até à próxima aldeia, depois eu e o teu pai tentaremos ganhar dinheiro, o que levará tempo, semanas ou até meses. Só então partiremos para o Irão, onde a vida será boa, vais ver. Poderás ir à escola. Aprenderás muitas coisas. Terás um emprego. Nur-Aftab observa a mãe com ar desconfiado: - Um emprego? - Sim responde Shirin-Gol. - No Irão, as mulheres e as raparigas podem ter empregos. Podem ser tudo o que quiserem. - Eu quero voar - declara Nur-Aftab. Aviões. Quero transportar as Pessoas de avião de um lado para o outro. Bombas, não. Pessoas. - É um emprego bonito diz Shirin-Gol. Agachada no chão entre a carcaça de um casebre, naquilo que foi uma aldeia, a meio caminho entre nenhures e algures, Shirin-Gol sabe que, pe 98 99 la primeira vez na vida, fez à filha uma promessa que provavelmente nunca poderá cumprir. A vida será boa. Shirin-Gol, Morad e os quatro filhos têm sorte. Na tarde do quarto dia, chegam a uma aldeia onde podem ficar. Não é muito pequena nem muito grande. Os estranhos não são imediatamente considerados uma ameaça pelos seus habitantes. Não vive aqui muita gente que deixe os recem-chegados entregues à sua sorte. Logo na primeira tarde, o dono da casa de chá oferece a Morad uma caneca de chá acabado de fazer e põe à sua disposição um quartinho, nas traseiras do seu estabelecimento, onde pode ir morar com a família. -Não temos dinheiro diz Morad. -Não faz mal - responde o dono da casa de chá. - Nesta época do ano não falta trabalho para quem esteja disposto a levantar-se cedo e fazer pela vida. Podes ir trabalhar e ganhar dinheiro; depois pagas a renda do quarto. A guerra grassa por todo o lado. Não há trabalho em parte nenhuma. A vida está parada em todas as cidades e aldeias por onde passaram. Mas agora tem à frente um homem a dizer-lhe que há trabalho, enquanto distribui chá fresco por pequenas canecas que acaba de encher com água quente, preocupando-se em ver se todos os fregueses estão servidos. Já Morad vai a agradecer, já se prepara para perguntar que trabalho já sorri e abre a boca, quando o atrevido Nasser, que até ao momento osteve escondido atrás do pai, de boca calada, exclama: - O meu pai pode fazer qualquer trabalho. Foi mujaedine. Combateu na montanha. Depois foi contrabandista. -Ai sim? Contrabandista? Isso é bom - diz o dono da casa de chá com indiferença. - Também temos trabalho para os contrabandistas, A resposta do homem agrada tanto ao atrevido Nasser que o pequeno enchendo-se de coragem, espreita por trás do corpo protector do pai, enche o peito de ar e declara:

Também quero ser contrabandista.

Ai sim? Também queres ser contrabandista?

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Quero - afirma Nasser em voz mais forte. - Quando for grande como este aqui. - E aponta para o pai. Morad volta a fechar a boca meio aberta, perde o seu meio sorriso pousa a mão na cabeça do filho e puxa-o para si. - E até lá? Queres começar a trabalhar aqui na minha casa de chá? Podias servir chá aos homens, lavar os copos e os pires, enxotar as moscas partir o açúcar em cubos pequenos, varrer os tapetes e sei lá que mais. Podias fazer tudo o que fazia o rapaz que foi meu ajudante até ter decidido ir trabalhar para o campo. Nas.ser observa o dono da casa de chá de olhos esbugalhados, examina-se a si próprio como se quisesse ver se será suficientemente crescido e estará em condições de assumir um trabalho cheio de responsabilidades, fita o pai, vê a sua expressão severa, não diz nada e volta a desaparecer atrás das costas protectoras de Morad. - Está bem - ri o dono da casa de chá. Vocês acabam de chegar. Se quiseres, volta cá amanhã para falarmos. - Virando-se para Morad: - Toma, irmão, tens aqui esta caneca, pão e um bocado de arroz. O quarto não é grande, mas sempre é melhor do que dormir na rua. É só dares a volta aqui à casa de chá. Não tem nada que enganar. - Que diferença faz o tipo de trabalho que é? pergunta Morad. - Faz muita - responde Shirin-Gol tapando os filhos, que, sabe Deus desde quando, voltam a dormir em colchões, com as cabeças pousadas em almofadas e aconchegados em cobertores. - Pode ser que te mandem matar pessoas ou que vás para a guerra, e, nesse caso, tu próprio serás morto mais cedo ou mais tarde.

Agora vamos dormir - sugere Morad. - Amanhã vou falar com ele e logo se verá. -Acho bem - diz Shirin-Gol. Amanhã logo se verá.

Vista à luz do dia, a aldeia ainda é mais pequena, bonita e agradável do que parecia na escuridão da noite anterior. Na verdade, é só uma rua de areia. Numa ponta fica a entrada e a saída da aldeia. Na outra, a passagem é barrada por um grande portão de ferro. O portão azul-claro tem a tinta estalada em muitos sítios, ou porque dispararam contra ele ou por outra coisa qualquer, parecendo piquinhos e feridas abertas. Atrás do portão esconde-se um jardim grande e quase redondo, sobre o qual velhas árvores lançam as suas sombras frescas. À direita e à esquerda da maior das árvores, que cresce no meio do jardim, erguem-se duas casas idênticas e simples. Numa delas vive o governador da aldeia e a outra é a cadeia. A única cadeia que Shirin-Gol viu até agora fica em Cabul. No tempo dos Russos, os seus inimigos eram aí fechados, torturados e assassinados. Mas fosse quem fosse que era lá fechado, torturado e assassinado, Cabul é a capital e, tanto quanto Shirin-Gol sabe, uma capital em condições precisa de uma cadeia em condições. Mas para que quer uma cadeia esta aldeia pequenina onde todos se conhecem? - Porque precisamos - explicam as pessoas. - Para quê? -Porque sim. Passa-se muito tempo até Bahadur, a quarta esposa do segundo comandante mujaedine mais importante, explicar a Shirin-Gol a razão por que uma aldeia assim tão pequena precisa de ter uma cadeia. 100 101

- A razão são os americanos - diz Bahadur. - Um dia, chegou à aldeia um americano num jipe bonito e branco, com mais dois jipes bonitos e brancos atrás. O americano, os seus acompanhantes e o tradutor atravessaram a aldeia com grande pompa e um ar muito colorido por causa das roupas que traziam, falaram com todos os homens possíveis e imaginários,

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beberam chá por todo o lado, inspeccionaram os campos de papoilas, observaram os homens a fazer incisões nas cápsulas para extrair o ópio e perguntaram quanto ganham os donos dos campos e quanto ganham os trabalhadores. Os americanos andaram de loja em loja a perguntar quanto custa isto e aquilo e depois foram-se embora. Passados uns dias, o americano voltou com uma mensagem do seu Governo. Tínhamos de cultivar muito menos papoilas e de produzir muito menos ópio, O americano disse que o seu Governo até nos pagaria por isso, mas só quando construíssemos uma cadeia onde pudéssemos prender os homens que, apesar de tudo, continuassem a cultivar muitas papoilas ou a produzir muito ópio. E como nos ofereceu muito dinheiro, transformámos logo em cadeia a segunda casa do jardim do governador, onde até essa altura vivia o mullah, que se mudou para outra casa da aldeia. E pronto. Tamaa,n, e khalass. "É esta a história da cadeia - continua Bahadur. O que nunca entendemos bem é o interesse que o americano, que se chamava Dan ou Dun ou Don, e o seu Governo tinham em que cultivássemos menos papoilas e produzíssemos menos ópio. Contou-nos que no país dele e noutros países do mundo há muita gente que adoece e morre por causa do ópio. Perguntámos-lhe, vezes sem conta, porque é que tinha vindo até tão longe dar-nos dinheiro, em vez de proibir as pessoas do seu país de comprar ópio. Dissemos ao americano, que, de resto, era muito simpático e elegante, que os nossos campos estão minados e que já não podemos cultivar algodão, arroz e trigo como dantes. Que só conseguimos sobreviver se cultivarmos papoilas. Dissemos-lhe que leva muito tempo, que custa muito dinheiro e vidas desminar os campos. Só podemos transportar o trigo em camiões. Mas o ópio mete-se no bolso e vai-se vendi-lo a pé. Afirmamos-lhe que, mesmo assim, tínhamos muito prazer em aceitar o seu dinheiro e em arranjar uma cadeia, na qual, de vez em quando, poderíamos prender um ou outro homem da nossa aldeia. Dissemos isto tudo ao Don, ou lá como é que ele se chamava. Mas não tenho a certeza se o americano nos percebeu - diz Bahadur com uma expressão pensativa, "Seja como for, ficámos com a nossa cadeia. Por acaso até tem dado jeito, porque às vezes o nosso chefe recebe a visita de parentes, de outros chefes ou de pessoas importantes, que são instaladas na segunda casa. Claro, não lhes dizemos que, na realidade, aquilo é a nossa cadeia. E quando não temos visitas importantes na aldeia, os homens às vezes também se servem da segunda casa. Se, por exemplo, um homem não quer dormir na sua casa porque discutiu com a mulher ou simplesmente porque quer estar em paz e o deixem sozinho, vai dormir umas quantas noites para a cadeia. Ao princípio, Shirin-Gol pensa que Bahadur inventou aquela história toda só para se fazer de importante, mas depois ela e Morad ouvem a mesma explicação de outras pessoas da aldeia e começam a acreditar. Dali a pouco, Shirin-Gol, os filhos e Morad estão a contar esta mesma história aos visitantes e recém-chegados como se eles próprios tivessem assistido ao ar pomposo de Don ou Dun ou Dan ao entrar na aldeia. Na ponta da rua onde fica a casa-cadeia do chefe, mesmo antes de se chegar ao portão azul-claro com os picos, dois caminhos mais estreitos saem em ângulo recto da rua principal de areia. Se as pessoas fossem pássaros e pudessem observar a aldeia de cima, veriam que as ruas parecem um homem deitado no chão, com as pernas muito juntas e os braços abertos. Os pés do homem seriam a entrada e a saída da aldeia, os braços os dois caminhos mais estreitos que saem da rua maior, e a cabeça, • jardim redondo com a casa do chefe e a cadeia. O quarto das traseiras da casa de chá onde vivem Shirin-Gol, Morad, Nur-Aftab, Nasser, Nafiss • Nabi fica à direita do umbigo do homem. O quarto não é grande nem pequeno. À frente, tem uma janela à altura dos joelhos com um parapeito largo. Junto às outras três paredes estão colchões, esteiras e mantas no chão, de dia para sentar e à

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noite para dormir. No meio, o solo está coberto por esteiras de plástico. Esteiras de um verde-amarelado luminoso e acolhedor, que parecem sorrir durante todo o dia. Shirin-Gol espeta um prego na parede com a ajuda de uma pedra pesada e pendura nele o seu véu. Num recanto da parede há um espelho, uma imagem colorida de um homem montado a cavalo, espetando a sua lança num dragão, e uma lata velha e vazia. Mais nada. O melhor do quarto é o terreiro que tem à frente, suficientemente grande para se poder ir para lá beber o chá de manhã ou dormir nas noites quentes. Shirin-Gol, as crianças e Morad habituam-se a chamar terraço a este terreiro, o que talvez seja exagerado, mas é dito com muito amor. Shirin-Gol varre todos os dias o pó do chão de terra do terraço e, de tanto em tanto tempo, as crianças arrastam os colchões, as mantas, as almofadas • as sorridentes esteiras de plástico para o sol. No meio de uma grande balbúrdia, algazarra e vozearia, batem-lhes com paus para lhes tirar o pó, enquanto Nasser lava o quarto com a água da mangueira. Nasser adora a sua mangueira de plástico. É a primeira mangueira da sua vida.

Depois de os mujaedines expulsarem os Russos da aldeia, diversos comandantes, que até ao momento tinham combatido lado a lado, começa 103 ram a travar uma luta fratricida pelo poder. O chefe actual e os seus homens foram os mais fortes e expulsaram ou mataram todos os outros. Até ao momento, nunca nenhum dos outros comandantes ousou sequer aproximar-se da aldeia. Isto é bom para as pessoas, que limparam a aldeia de minas, reconstruíram os seus casebres, lojas e tendas e começaram a desminar os campos.

O terraço de Shirin-Gol dá para um campo de papoilas, o que significa que Shirin-Gol, Morad e as crianças têm a vista mais bonita que é possível imaginar nesta terra de Deus. A um passo da porta de vidro e da janela do seu casebre crescem fragrantes papoilas brancas, lilases e cor-de-rosa. Estas coloridas flores crescem em volta de toda a aldeia. Pequenos campos quadrados, triangulares ou compridos e estreitos, pertencentes a este ou àquele, são rodeados por muros baixinhos de pedra ou lama, eles próprios cobertos de plantas e flores. À tarde, as mulheres sentam-se nos pequenos muros à sombra das árvores, tagarelam e alegram-se com as cores, a fragrância e o esplendor dos campos de flores. Entretanto, os homens sentam-se na casa de chá, discutem, trocam, fazem negócios, ajustam coisas importantes e sem importância, fumam cachimbos de água, bebem um chá a seguir ao outro, dando-se por muito felizes por o seu corajoso comandante, a quem de resto pagam muito bem, travar a guerra por si, impedindo os outros comandantes dos mujacdines de entrarem na aldeia. Tudo o que as pessoas sabem da guerra são os tiros e as explosões que ouvem à distância. O dono da casa de chá montou o samovar numa mesa, à frente. Mesmo ao lado da casa de chá, o irmão do amável dono da casa de chá ergueu um botequim debaixo de um telhado de verga, parecido com o telhado de verga do seu irmão. Prepara kebabs de carne num grelhados e coze arroz numa panela, ao ar livre. Depois, vende porções aos homens que passam o dia sentados na casa de chá do irmão, desfiando as contas do ttubib, primeiro para um lado, depois para o outro, e fazendo sabe-se lá mais o quê antes de o dia acabar e regressarem aos seus casebres, para junto das mulheres e dos filhos. Contas feitas, os cem ou talvez cento e cinquenta habitantes da aldeia parecem satisfeitos com a sua vida. Dá a impressão de que as pessoas nunca têm pressa de ir seja onde

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for. A maioria enterrou e escondeu tão profundamente na memória as imagens da guerra contra os Russos que quase ninguém fala disso. A maioria agradece a Deus cada novo dia que Ele lhes dá. Ninguém é inimigo de ninguém e só muito raramente alguém trapaceia alguém. Porque, ao que parece. ninguém tem fome e todos ganham o suficiente para sobreviver. Nem muito, nem muito pouco. Os mais ricos possuem campos onde cultivam papoilas. Os menos ricos têm lojas onde vendem tudo o que os ricos e os meio ricos podem comprar. Panelas, pratos, frigideiras, linhas, agulhas, roupas, rádios, pilhas para os rádios, arroz, banha, chá, trigo, frutos secos, tecidos brilhantes para vestidos de casamento e tecidos não brilhantes para outros vestidos, sapatos que vêm do Paquistão, mantas coloridas, almofadas e esteiras de dormir que fazem com a lã das suas ovelhas. Os ainda menos ricos reparam nas suas tendas os rádios do Paquistão, os relógios e as armas dos homens mais ricos. Remendam sapatos, cosem vestidos, camisas, calças e carapuços e rapam o cabelo e a barba aos rapazes e aos homens. Trabalham nos campos de papoilas dos ricos ou nas lojas, tendas e oficinas dos meio ricos. Depois há ainda uma meia dúzia de pessoas que não tem nada para vender, mas que, no entanto, não é pobre. Pertencem a este grupo o mul/ah, o chefe da aldeia, o professor da escola dos rapazes e os traficantes que, de vez em quando, vão à aldeia buscar ópio para venderem no Paquistão ou no Irão. E depois há Azadine. Azadine andou na escola em Cabul, no tempo do rei, e estudou em Cabul, no tempo da guerra contra os Russos. Teve de interromper os estudos quando os mujaedines começaram a sua luta fratricida e, portanto, as universidades foram fechadas. Azadine fugiu primeiro para o Paquistão, depois para o Irão, onde acabou o curso, regressando a Cabul. Por causa da guerra, mas também porque o irmão deixou entretanto de lá morar, ela não podia continuar sozinha na cidade. Azadine regressou à aldeia, na qual o pai nasceu e cresceu e onde ainda hoje vivem uma tia e um tio. Todos estão satisfeitos por ela ter voltado. A maioria estima-a e respeita-a, apesar de ser mulher. Não só por Azadine ser uma boa médica, mas também porque é uma pessoa boa e generosa, que trata os que têm dinheiro para pagar, mas que também cuida de todos os que vão ter com ela. "Deus é grande", diz Azadine. <,Velará para que eu tenha sempre o suficiente para comer e viver." Além dos habitantes da sua aldeia, Azadine trata as pessoas de muitas outras aldeias e das montanhas e vales em redor. Algumas delas viajam durante dois ou três dias. Chegam a pé, de burro ou a cavalo. A maior parte dos doentes que vem dos vales, montanhas e aldeias distantes só pode pagar muito pouco ou mesmo nada. A maior parte nem sequer tem dinheiro para ir à cidade mais próxima comprar os medicamentos que Azadine receita. Quando ela própria tem algum dinheiro excedente, oferece-o aos Seus doentes mais pobres, ajuda-os com alimentos, roupas e por aí fora. 105 Como Azadine é uma das pessoas de coração maior de toda a região, ate se tolera que viva sozinha e seja solteira. De vez em quando, o mullah bate-lhe à porta e insiste para que finalmente se case. Afinal de contas, Deus não vê com bons olhos que uma mulher viva sem marido, sem alguém que a proteja. Em vez de lhe dar ouvidos, Azadine escuta o coração do mullah, dá-lhe pancadinhas nos pulmões, toma-lhe o pulso e aconselha-o a não fumar muito ópio, a dar um passeio, pelo menos uma vez por dia, e a não forçar os pais da aldeia a casarem as suas filhas adolescentes, que depois darão à luz crianças fracas e doentes.

As pessoas têm de fazer filhos - diz o mullah, tentando justificar sua política de propaganda infantil, ou melhor, política de propaganda juvenil. - Os filhos ainda acabam por ser úteis aos pais, yek rouz be dardes-houn michore. - Faz que sim com a cabeça como a

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concordar com as suas próprias palavras, fita Azadine e sabe que ela não acredita em nenhuma palavra dele. Nem numa única.

- É uma mulher possuída pelo demónio - conta o mullah à mulher, revoltando-se por ouvir na própria voz uma certa nota de respeito pela médica. Por muito desprezo que tente pôr nas palavras, este respeito está sempre lá. O mullah não faz a mínima ideia de onde vem esta nota indesejável e incómoda. Azadine não liga nem aos conselhos bons e maus nem às notas respeitosas ou desrespeitadoras. Assim como assim, Azadine gosta da aldeia e das pessoas. De todas. Sobretudo das mulheres. Sobretudo quando são diferentes de todas as outras mulheres da aldeia. Shirin-Gol está agachada no terraço a lavar roupa no alguidar de zinco, quando Azadine aparece à esquina. Shirin-Gol assusta-se tanto ao vê-la que o coração dá-lhe um salto e começa a palpitar-lhe desenfreadamente dentro do peito. Desde que ouviu dizer que há uma médica na aldeia Shirin-Gol matuta como há-de fazer para a encontrar. Shirin-Gol levanta-se, enxuga as nãos na saia, estende a mão para cumprimentar a médica e vê como esta lhe treme de excitação. Só ligeiramente. Mas treme. Azadine sorri, e os seus dentes brancos e grandes brilham ao sol como as papoilas brancas. Aperta vigorosamente a mão de Shirin-Gol, puxa-a para si e abraça-a como a uma amiga. Nenhuma diz nada. Apertam-se simplesmente nos braços uma da outra. Engolem lágrimas. É como se fossem duas irmãs a abraçar-se. - Que a paz esteja contigo diz Shirin-Gol. - E contigo também - responde Azadine. Agacham-se as duas no chão, sem pressa de falarem uma com a outra. "Azadine tem um aspecto completamente diferente da maioria das mulheres" pensa Shirin-Gol. A pele é mais lisa, as sobrancelhas mais pequenas, o nariz mais fino e os olhos mais vivos do que os de muitas outras mulheres. O seu corpo parece mais leve, tranquilo e seguro. Só passado um bom bocado Azadine começa a falar: - Diz-se que viveste em Cabul e no Paquistão. Diz-se que ensinas os teus filhos a ler e a escrever. É verdade que sabes ler e escrever? - É verdade - confirma Shirin-Gol. -Até que enfim que encontro uma mulher com quem posso entender-me - desabafa Azadine. Shirin-Gol engasga-se com a emoção e diz: - Es a primeira mulher médica que vejo. -Vim aqui - continua Azadine , porque queria ver-te, conhecer-te e dar-te as boas-vindas à nossa aldeia. E também vim porque queria pedir-te para me ajudares.

Eu? A ti? Como posso eu ajudar-te? - Sei lá - responde Azadine. - Só não quero continuar sozinha. Podes escrever-me as listas dos doentes, organizar ficheiros e apontar receitas. O importante é vires ao consultório passar algum tempo comigo. - Listas? Ficheiros? Receitas? Não percebo nada disso. - Mas podes aprender. - Eu também queria ser médica - confessa Shirin-Gol. -Aparece no consultório - diz Azadine. - Vou ensinar-te tudo o que sei. - O que vão dizer as pessoas se eu sair de casa sem o meu marido e se trabalhar e ganhar dinheiro? Não conheço ninguém e ninguém me conhece. Vou ser censurada. Vão dizer que sou uma... uma... sei lá! - Uma mulher perdida? - pergunta Azadine. - Que disparate! Temos de deixar de orientar a nossa vida pelo que os outros dizem.

Falas como a minha professora da escola russa. -Aparece no meu consultório. Vou convidar umas quantas mulheres e dizer-lhes que trabalhas para mim. Depois, elas contam aos maridos; em breve, toda a aldeia ficará a saber que tu sais de casa para trabalhar comigo. As mulheres da aldeia estão cheias de curiosidade pela recém-chegada. Contam a Shirin-Gol mil e uma histórias, fazendo-lhe mil e uma perguntas: "De onde és? Onde nasceste? Quem é o teu pai? Onde está ele agora Tens irmãos? Sabias que a Azadine tem um remédio

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mágico? Temos de tomar todos os dias a uma determinada hora e nunca podemos esquecernos, mas desde que o tomemos sempre não ficamos grávidas. Sabias que a Azadine não tem marido? Ela já te contou porque é que ainda não se casou? 107 - Diz-nos - incitam as mulheres. - Mas já contei tantas vezes! Vocês nunca se cansam? - Não, não, não - repetem as mulheres em coro, como adolescen tes. - Conta, conta, conta. Azadine sorri e os seus olhos adquirem a forma de bonitas amêndoas, - Porque não preciso de nenhum homem - diz. - Porque ganho ~, meu próprio dinheiro. Porque saio sozinha à rua. Porque não quero nin_ guém que pense que me possui. Porque faço compras sozinha. Porque sou eu e só eu que decido quando durmo, quando trabalho e se durmo ou trabalho. Porque posso decidir sozinha quando vou comer ou, até, se quero comer. E porque me sinto muito bem sozinha.

Mas que farás se um dia, que Deus te proteja de tal destino!, se um dia um, dois ou três homens saltarem por cima do muro para o teu pátio te roubarem todos os teus haveres e se apoderarem até de ti própria - Eles que venham responde Azadine. - Pego na arma do meu pai e mato-os a todos. Todos. Um a seguir ao outro. - E que farás se a arma do teu pai não estiver à mão e não puderes matar os homens? - perguntam as mulheres. Azadine responde:

Pergunto ao primeiro se quer acompanhar-me à minha sala de tratamentos, para podermos ficar sozinhos e em paz. Depois dou-lhe uma injecção que o põe sem sentidos. - E porque não uma injecção que o mate? - inquirem as mulheres, - Talvez também o mate - diz Azadine. - E que farás com o segundo?

Digo ao segundo que escondi o dinheiro e as coisas de valor no balde do poço, e quando ele se debruçar para chegar ao balde empurro-o para o poço com um grande pontapé no traseiro. - E com o terceiro? O terceiro? - indagam as mulheres de olhos esbugalhados. - O terceiro? O terceiro é o mais bonito. O mais novo. O mais forte de todos. Tem uns olhos que brilham como brasas. O cabelo parece de seda. Músculos de pantera. Meigo como um gatinho. É por isso que o guardo para o fim. O terceiro? Acho que... não... tenho a certeza de que lhe poupo a vida. Fico com ele para mim. As mulheres riem à socapa, satisfeitas. Shirin-Gol não sabe o que há-de pensar da história da médica. - Deixo os trabalhos pesados para o Belo e talvez... - Nesta altura, Azadine faz uma pausa; as mulheres casquinam, riem e levam a mão a frente da boca. Azadine olha em volta e continua: - Talvez lhe permita entrar no meu quarto de vez em quando. As mulheres falam ao mesmo tempo, riem, casquinam, batem nas coxas umas das outras, dobram-se e torcem-se de riso, caem nos braços umas das outras. - E depois que fazes com ele? - querem saber. - Vá, conta, conta. Que fazes com o mais bonito, mais novo e mais forte? Que fazes com ele? - Faço com ele o que me apetecer - responde Azadine, pondo as mulheres a rir ainda mais. Shirin-Gol também ri. E pensa: "É a primeira vez na minha vida que rio alto." E sem saber porquê, de resto mais para si própria, diz: -Isso é insubmissão. - O quê? Shirin-Gol cala-se. -Diz lá outra vez - pede Azadine. Shirin-Gol baixa o olhar, não quer abrir a boca, mas as mulheres su plicam-lhe, tocam-lhe e incitam-na, então arranja coragem para repetir o que disse. - Isso é insubmissão murmura. As mulheres calam-se, entreolham-se, fitam Shirin-Gol, observam Aza dine. Riem. -A Shirin-Gol tem razão - diz Azadine. - Isto é, de facto, insub missão. Que diriam os vossos maridos e pais se vos vissem agora aqui de caras vermelhas, afogueadas, e cabelos em desalinho, rindo de histórias cone homens desconhecidos e bonitos? As mulheres calam-se. Por fim, a segunda

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mulher do amável dono da casa de chá, que só fala quando a primeira mulher do amável dono da casa de chá não está pre sente, diz em voz alta e destemida:

O meu marido diria que sou uma mulher perdida. - O meu também, o meu também - dizem as outras mulheres em coro. Shirin-Gol cala-se, pois não sabe porque disse o que disse. ,"A Azadine tem uma ajudante nova", dizem as pessoas da aldeia. "É a mulher daquele que chegou agora, o Morad." "A ajudante da Azadine tem muito jeito", dizem as mulheres. Há muito quem não veja com bons olhos que de repente apareça na aldeia mais uma mulher que sai sozinha à rua. Sem o marido. Que anda de um lado para o outro. Que em breve conhece toda a gente. Que fala com toda a gente. Que não baixa os olhos. Que trabalha. Como se fosse um homem. Não vêem isso com bons olhos. Mas, no fundo, a maioria não tem nada contra o facto de Azadine dispor agora de uma ajudante. Shirin-Gol é uma mulher competente, cheia de compaixão pelos seus semelhantes. E podendo contar com ela, a médica vê e trata muito mais doentes por dia do que antes. 108 109 Shirin-Gol passa a maior parte do tempo a ouvir as mulheres e as ado_ lescentes contarem-lhe a sua vida. As mulheres fazem-lhe perguntas, cujas respostas sabem melhor do que ninguém. Falam apenas para falar com alguem. Falam de maridos que lhes batem. Falam da primeira, segunda, terceira mulher dos seus maridos, que as maltratam. Contam que há semanas e meses não saem de casa nem respiram ar puro. As mulheres dizem que a ida ao médico, mesmo assim acompanhadas pelo marido, filho, pai, irmão ou tio, é a única oportunidade que têm de sair de casa. As mulheres agacham-se à frente de Shirin-Gol, começam a contar e não se calam mais. Ao princípio, muitas confessam que prefeririam estar mortas. No fim, quando têm de regressar à sua vida, dizem: "Deus seja louvado por nos ter enviado uma irmã como tu. Agora o meu coração está mais leve. Quanto mais histórias e sonhos as mulheres lhe contam, mais Shirin-Gol percebe a prisão que também é a sua própria vida. Shirin-Gol sonha com uma vida melhor. Com uma vida livre. Com uma vida noutra terra, o Irão. Shirin-Gol acredita que, no Irão, as suas filhas e filhos não serão tratados da mesma maneira. Acredita que, no Irão, os seus filhos poderão ir à escola e aprender uma profissão. Acredita que Morad poderia arranjar lá um emprego. Acredita que os Iranianos gostam dos Afegãos e os tratam bem. Shirin-Gol acredita que poderia ter uma vida em condições no Irão. Acredita e sonha. Sonha e acredita. "O Irão está em paz", pensa Shirin-Gol. "Não há nem guerra nem imnas, nem fome nem casas destruídas. Há jardins com árvores de fruta, padeiros e vendedores de legumes, escolas e ruas."

Mas aqui é a tua terra - contrapõe Azadine. - Aqui estás com os teus compatriotas. Aqui tens trabalho, e os teus filhos, sossego e paz. Aqui também tens uma vida. O que te falta? Que procuras? De que precisas? Shirin-Gol olha a médica e suspira profundamente. Como se tivesse grilhões apertando-lhe o peito. Como se o seu corpo fosse de chumbo. - Que sei eu? Não me falta nada e falta-me tudo. Os meus compatriotas estão aqui, mas são todos desconhecidos. Eu e os meus filhos temos tudo o que necessitamos para sobreviver. E, no entanto, não temos nada do que é preciso para uma vida digna. Eu tenho trabalho, mas o meu marido não, o que o põe doente e o torna insuportável. Um homem deve trabalhar. Os meus filhos têm sossego e paz, mas que será deles' Não tarda, crescem e têm de ir à sua própria vida. Que hão-de fazer? De que hão-de viver? As minhas filhas não podem ir à escola nem aprender uma profissão. Os meus filhos podem, mas o professor falta dia sim dia não, porque tem de trabalhar noutro lado para ganhar dinheiro. Sei lá! - diz Shirin-Gol. - Estás a ser mal-agradecida - diz Morad. - Temos tudo o que precisamos. Temos uma casa. A nossa

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casa tem portas e janelas. Até temos um pequeno terraço à trente da casa. As pessoas são simpáticas connosco. O nosso filho anda na escola e trabalha na casa de chá. Tu trabalhas. E eu também arranjei trabalho. - O quê? - É verdade - diz Morad. - Arranjei trabalho. A partir de amanhã cedo vou para o campo de papoilas. - Deus seja louvado! exclama Shirin-Gol, mexendo o arroz que coze e fervilha na panela, formando grandes bolhas que rebentam e assobiam quando transbordam do tacho e caem no lume. - Deus seja louvado! - repete Shirin-Gol, esperando que os grilhões que sente à volta do peito se soltem, afrouxem, desapareçam, e que o chumbo se dissipe do seu corpo. - Deus seja louvado! repete Shirin-Gol, admirada por tanto os grilhões como o chumbo continuarem no mesmo sítio, enquanto mexe e arroz e observa as bolhas a transbordar e a cair no lume. Morad agacha-se ao lado de Shirin-Gol, perto do lume e da panela do arroz, contempla as bolhas quentes durante algum tempo e diz: - De qualquer maneira, não temos dinheiro para a viagem até ao Irão. E muito menos para começar lá uma vida nova. Por agora, vamos ficar aqui a viver a nossa vida o melhor que pudermos, e depois logo se verá. - Está bem - responde Shirim-Gol. -Vimos ficar e depois logo se verá. As fragrantes e vivas papoilas brancas, lilases e cor-de-rosa, perdem as pétalas tenras, ficando apenas com umas cabeças despidas, amarelo-acastanhadas e ligeiramente maiores do que ovos grandes de galinha, que em cima parecem cortadas e com uma coroa. Como rainhas com as suas coroas. As pétalas compridas das papoilas pendem secas, cor de areia, quais braços inertes e mortos, dos caules robustos e peludos que dão pelo peito de um homem. Com as suas cabeças coroadas semelhantes a madeira, perfilam-se como soldados descarnados, horríveis e mortos. De manhã cedo, antes de o Sol se mostrar no céu, Morad atira o cobertor para trás, levanta-se, passa por cima de Shirin-Gol e do novelo dos filhos adormecidos, vai ao terraço lavar a cara com água fria da mangueira de plástico, não se enxuga, só se sacode, treme de frio, tira o casaco do prego da parede, engole e sente na boca o sabor e o cheiro do sono e vai até à outra ponta do campo, onde o seu novo patrão já o espera. É o homem amável a quem pertence a casa de chá, o quarto onde vive Shirin-GGol e a família e também o pequeno campo em frente, onde as papoilas se perfilam como soldados mortos. 111 O trabalho de Morad não é nem difícil nem fácil. Anda de planta em planta com três lâminas minúsculas espetadas num pedaço de madeira do tamanho de uma mão e atadas com um cordel. Com cuidado, faz três, quatro ou cinco incisões rápidas, nem muito superficiais nem muito profundas, na cápsula abaulada, e o leite branco jorra como sangue de uma ferida. Logo que deixa de sair leite do golpe, Morad raspa para uma folha a massa pegajosa que, entretanto, fica negro-acastanhada. Durante dias, faz novas incisões em volta das cápsulas, de onde sai mais leite branco, que fica castanho. Morad raspa-o e recolhe-o na folha. O seu monte vai aumentando até as cápsulas ficarem secas e já não restar nada da sua preciosa seiva. Todos os dias Morad junta nas folhas uma mancheia desta substância. Passadas umas semanas, já tem um ou dois quilos. É ópio puro, pelo qual o traficante paquistanês paga ao amável dono da casa de chá mais de quinhentos dólares por quilo. Um ou dois quilos. ópio puro. No Paquistão, o traficante recebe por ele mais de mil e duzentos dólares. Ópio que é transformado em heroína e vendido na América e na Europa. "Cultivamos papoilas", dizem as pessoas da aldeia "porque é a única coisa que nos dá o suficiente para podermos alimentar as nossas famílias. O que os outros depois fazem com o ópio, é coisa que não está nas nossas mãos." Depois de as papoilas perderem a sua beleza branca, lilás e cor-de-rosa • largarem o seu precioso leite, as mulheres cortam as cápsulas secas, abrem-lhes buracos e retiram-lhes as minúsculas bolinhas pretas. Elas e os filhos comem logo uma parte, usam outra para a comida

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e guardam a maioria. As crianças, ou melhor, os rapazes, esperam ansiosamente esta época do ano. Os empregados da casa de chá, engraxadores, pastores, aprendizes de alfaiate e vendedores de gasolina não param de ir espreitar os campos para ver se os homens e os rapazes mais velhos continuam a recolher leite, ou se as cápsulas estão finalmente secas, a fim de poderem surripiar uma ou duas antes de serem usadas como material combustível. Os rapazes partem as cápsulas e fazem-lhe pequenos buracos. Entornam para a boca as minúsculas bolinhas pretas, que fazem estalar entre os dentes. As suas línguas parecem ter milhares de piquinhos pretos. Os jovens enfiam duas cápsulas de papoilas nas pontas de um pau e constroem um eixo com duas rodas. No meio do eixo espetam uma vara comprida, com a qual conduzem os seus veículos. Fazem corridas e percorrem desenfreadamente a aldeia com os seus automóveis. As suas irmãs e as outras raparigas ficam paradas à porta de casa ou em orla dos campos, onde agora só se perfilam os caules secos das papoilas. quais soldados mortos e decapitados. As raparigas, envergonhadas, tapam a boca com as mãos, soltam risadinhas e observam com inveja as brincadeiras dos rapazes. Os olhos das adolescentes brilham tão misteriosamente que o sangue dispara no coração dos jovens da aldeia. As mães batem na nuca das filhas com a mão aberta e enxotam-nas para dentro de casa, soltando gritos estridentes. - Porque é que vocês deixam os traficantes de ópio ficarem com os lucros? pergunta Morad ao amável dono da casa de chá. - Porque não levam vocês próprios o ópio para o Paquistão? Podiam ganhar muito mais dinheiro. - Nós somos apenas camponeses pequenos e insignificantes. Não conhecemos ninguém e ninguém nos conhece - responde o amável dono da casa de chá. Os traficantes percorrem o caminho todo até aqui para comprarem o nosso ópio. Sabem que vamos fornecê-los. Confiam em nós e nós neles. Temos os nossos rendimentos e as coisas até nem correm mal para nós. - É verdade que não correm mal diz Morad. - Mas podiam correr melhor se fossem vocês a vender o ópio. - Sabes melhor do que ninguém começa o amável dono da casa de chá - que todas as semanas ou meses nos bate alguém à porta a querer convencer-nos de que as coisas deviam mudar. De que seria melhor as coisas não ficarem como estão. Tínhamos um rei que foi deposto pelo seu próprio cunhado, que queria mudar as coisas. Os Ingleses queriam melhorar as coisas na nossa terra. Os Russos vieram para nos salvar, sabe-se lá de quê. Os Americanos armaram e treinaram os mujaedines, mais uma vez para mudar sabe-se lá o quê, de modo a tudo ser melhor. Os mujaedines levam a guerra a todo o lado em nome de um Islão melhor. Uns comandantes matam outros comandantes porque querem o melhor para nós. Em Kandahar, no Sul do nosso país, surgiu um novo movimento, chamado Talibã, que luta por um Islão melhor. - O amável dono da casa de chá oferece a Morad um chá e diz ainda: - Não, caro Morad, sei que tens boas intenções, mas enquanto as coisas estiverem bem, deixa-as ficar como estão. - Está bem - responde Morad. Se o melhor para vocês é as coisas estarem como estão, então vamos deixá-las ficar assim. Quatro dias mais tarde, Morad está de novo sentado na casa de chá. Entram quatro homens, sentam-se junto de Morad, mandam vir chá acabado de fazer, encostam-se às almofadas, pedem cachimbos de água, saboreiam o chá quente, absorvem o fumo dos cachimbos de água através dos compridos tubos, fazendo a água dos cachimbos borbulhar e fervilhar, sol- 112 113 tam um fumo espesso, observam Morad longamente, sem dizer nada, bebem e fumam até que um deles pergunta: - Quanto pensas que podemos receber por um dos nossos pacotes de ópio, se o vendermos no Paquistão? Sem reflectir muito, sem suspirar, sem olhar primeiro em volta cone um ar entendido, sem aspirar o tubo do cachimbo de água, sem beber um gole de chá e sem saber

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como sabe o que diz, Morad responde: - O dobro. Passados mais quatro dias, um dos quatro homens aparece em casa de Morad com um grande montão de ópio. - Quando é que podes partir para o Paquistão? pergunta. - Em breve - responde Morad. - És o único ou os outros também querem que eu venda o ópio deles? - Não sei... - diz o homem. -Vamos ver - observa Morad. - Seja o que for que consiga por isto, quero um terço para mim. -Tu és um bom homem - diz o outro. - Confio em ti. Que Deus te acompanhe e te proteja. - Que Deus te dê uma vida longa - responde Morad, pousando) o ópio no nicho do quarto, ao lado da lata a que chamam lata-do-Irão, onde Shirin-Gol guarda o dinheiro que ela e o marido ganham. Passam mais quatro dias. De manhã cedo, antes de o Sol se mostrar no céu, Morad atira o cobertor para trás, levanta-se, passa por cima de Shirin-Gol e do novelo dos filhos adormecidos, vai ao terraço lavar a cara com água fria da mangueira de plástico, não se enxuga, só se sacode, treme de frio, pega no ópio e em mais dois quilos que outros dois proprietários de campos de papoilas lhe deram, embrulha-os num patu que pendura a tiracolo, tira o casaco do prego da parede, sai do quarto, dá a volta à casa de chá, engole e sente na boca o sabor e o cheiro do sono. Morad observa a rua de areia até ao portão de ferro azul-claro, vira à esquerda, na direcção da entrada e da saída da aldeia, deixa-a para trás e mete pelo caminho arenoso que atravessa desertos, montanhas e vales até ao Paquistão. Há muito que Shirin-Gol deixou de pensar em ir para o Irão. Tudo o que resta do seu sonho de ir para o Irão é a lata-do-Irão. Os sonhos do Irão, os dias, as semanas e os meses de Shirin-Gol chegam, passam a voar e ficam para trás. Já Shirin-Gol se acostuma ao novo trabalho de Morad e a que ele a deixe multas vezes sozinha, a si e às crianças; já se acostuma a não se preocupar nem a passar a vida a pensar nos perigos, nos salteadores, nas minas e na guerra quando Morad sai para ir vender o ópio; já Shirin-Gol e Aza` dine combinam com o chefe e o mullah da aldeia fundar uma escola feminina para que de futuro também haja médicas, parteiras e professoras; já Shirin-Gol se alegra por as filhas, Nur-Aftab e Nafass, poderem ir à escola; já Shirin-Gol se acostuma a que o seu filho Nasser seja o primeiro a levantar-se de manhã cedinho para pôr o samovar a funcionar, varrer os tapetes, bater as almofadas e servir os homens; já se acostuma a que ela, os filhos e Morad deixem de ser estranhos na aldeia; já conta a história do americano que chegou à aldeia com ar pomposo como se tivesse assistido a tudo; já se acostuma a ser uma mulher insubmissa; já se acostuma a tudo isto, àquilo e àqueloutro, quando chegam uma manhã à aldeia quatro carrinhas brilhantes e novinhas em folha, com letras árabes e uma bandeira branca no tejadilho, fazendo rodopiar o pó da estrada. No meio de uma grande pompa, saltam da área de carga homem jovens, de túnicas bonitas e bem alimentados, que dizem: - Somos soldados do novo movimento Talibã. Viemos para vos libertar e vos trazer a paz. Em nome do Islão. Em nome do Profeta, salla/ho-aleihe-wa-aalehi-wa-sallam, que Ele e os Seus antepassados sejam louvados. Em nome do Alcorão. Em nome do chefe dos talibãs, o maior de todos os mullahs, o mullah Ornar. 115 CAPÍTULO 10 UM SACRIFICIO E UM CASAMENTO - Sim - diz Shirin-Gol, observando a filha - o rapaz tem olhos bonitos. Sim, é bem-parecido. Sim, é um homem simpático. Tem poder. Tem dinheiro. Sim. Sim. Sim. Mas é talibã. Nur-Aftab não olha para a mãe. Não a ouve. A rapariga anda de cabeça perdida. Tem a pele do rosto tão esticada como se fosse rasgar-se a qualquer momento. Os lábios inchados. A respiração pesada. Falar é difícil. Pensar é difícil. Os olhos febris. O coração febril. Quente. Inchado .Febril. - Sim, é talibã - acaba por dizer. - O que é que tem de mal ser talibã? - O que é que tem de bom ser talibã? - Os talibãs querem a paz para nós e para a nossa terra. Querem libertar-nos. - Linda paz! - ralha Shirin-Gol. - Que a paz deles se lhes espete na garganta e os

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sufoque. Conheço de ginjeira esses muçulmanos de meia-tigela. Os meus próprios irmãos caíram nas mãos deles. Que Deus os proteja e permita que nenhum deles se tenha tornado talibã. Nur-Aftab não ouve. Não vê. -Ainda és muito nova e inocente, não sabes nada da vida nem das pessoas. Só vês a beleza desse rapaz e mais nada. Abre os olhos. Nur-Aftab não ouve. Não vê. - Desde que estão no Poder, os talibãs já tiraram os campos a os proprietários. O teu pai perdeu o emprego, porque os talibãs proibiram cultura do ópio. Isto para serem só eles a ter o negócio nas mãos Nur-Aftab não ouve nem vê. - Mais nenhuma mulher pode sair à rua sozinha e sem mahran. Eu não e tu também não. Todas as mulheres têm de se tapar da cabeça aos pés. O teu bonito talibã proibiu-me de trabalhar. De que vamos viver ? Nur-Aftab olha para a mãe. Não diz nada. 116 - Procuraram a casa mais bonita da aldeia e mudaram-se para a residência do chefe. Nem sequer deixaram o pobre chefe e a família morar na cadeia. O teu bonito talibã e os amigos tiraram as armas a todos os homens da aldeia. Nur-Aftab diz: - Os talibãs trazem a paz. Em tempo de paz, não são precisas armas. - Estivesse quem estivesse no Poder, o rei, os Ingleses ou os Russos, os homens sempre tiveram armas neste nosso país. Por muito má que a vida tenha sido para nós, tanto em tempos de guerra como em tempos de tranquilidade e paz, sempre houve mulheres na nossa terra que resistiram a todas as tradições, a todas as pressões da sociedade, aos pais e a todos os que se lhes meteram no caminho. Desde que os talibãs tomaram o Poder, até proibiram Azadine de fazer o seu trabalho como até agora. Já não pode ir visitar os doentes a casa. Já não pode ir às montanhas ajudar as pessoas. Não pode tratar homens. Só mulheres, que chegam a casa dela acompanhadas por um mahram. As mulheres das aldeias e vales distantes, que vinham ter connosco, já não podem meter-se ao caminho sozinhas. Se mesmo assim se atreverem, elas e os maridos são presos e espancados. Que há-de fazer esta gente? Quem vai às compras ao bazar na nossa vez? Até proibiram as crianças de brincar. Os teus irmãos nem sequer podem pôr a voar os papagaios que construíram. Já não podem fazer carrinhos de papoilas. As raparigas estão proibidas de andar na escola. A televisão é proibida. A música é proibida. - E depois? - teima Nur-Aftab. - De qualquer maneira, não tínhamos televisão nem música nem tempo para brincar. Também não havia nenhuma escola para raparigas antes dos talibãs. E tu e a Azadine eram as únicas mulheres que se atreviam a trabalhar. E depois? Agora fazem o mesmo que as outras. - Nur-Aftab, tu perdeste o juízo. Não compreendes? Dantes, não tínhamos essas coisas simplesmente porque havia guerra, porque somos pobres e não temos instrução nem conhecimentos. Mas não era proibido. Até tínhamos começado a organizar uma escola para raparigas, porque lutámos por ela e convencemos o chefe e os homens da aldeia de que é uma coisa boa. Mas agora é proibido. Proibido por lei. E somos presas, se não cumprirmos as leis dos talibãs. - Então temos de respeitar as leis - diz Nur-Aftab. - Assim, não somos presas. Shirin-Gol observa a filha e sabe que Nur-Aftab já não vê nada, não ouve nada, não compreende nada, qualquer conversa é inútil. Só tem olhos para o jovem talibã de cabelo comprido e escuro que brilha ao Sol. Para o jovem talibã de túnica comprida e branca que, com o porte ligeiro de um príncipe, atravessa a aldeia como um anjo. Para o jovem talibã 117 cujos olhos escuros procuram incessantemente a sua Luz-do-Sol. A filha de Shirin-Gol, Nur-Aftab. Sentada em frente de Shirin-Gol, Nur-Aftab olha através da mãe e da parede do quarto para a casa de chá, onde o jovem talibã está agachado, encostado à parede, com uma mão pousada no joelho e segurando na outra uma delicada flor que Nur-Aftab arrancou de entre as pedras e ofereceu ao seu talibã, apesar de ser proibido. O jovem talibã senta-se na casa de chá porque é aqui que está mais próximo do seu sol, porque tem as costas encostadas à parede

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atrás da qual ela vive, dorme e não pensa em nada a não ser nele. O jovem talibã tem um sorriso nos lábios e os olhos fechados, porque não quer ver nada. Só quer ter uma imagem na cabeça; o rosto de huri de Nur-Aftab, a sua Luz-do-Sol, a sua adorada. Maomé, o Profeta de todos os muçulmanos, sallalho-aleihe-wa-aalehi-wa-sallam, louvado seja Ele e os Seus antepassados, decretou que, quando o coração de um jovem transborda de amor por uma adolescente virgem e bate com mais força por ela, que nunca os olhos de nenhum outro homem viram, que nunca a mão de nenhum homem tocou, que não pertence a nenhum outro homem, então, aquele cujo desejo é possuí-la deve tomá-la por esposa, sustentá-la, respeitá-la e protegê-la dos olhares e dos abusos de estranhos. Shirin-Gol observa a filha e sabe que ela já não é meia criança: é meia mulher. Sabe que nenhum poder deste mundo, nem o amor, o calor, a protecção e a segurança da mãe poderão vencer a filha.

Vamos deixá-lo vir cá - diz Morad. - E logo veremos. -Está bem - diz Shirin-Gol. - Ele que venha. Logo veremos. - O meu avó caiu na guerra contra os Ingleses. O meu pai caiu na guerra contra os Russos. Tal como os meus irmãos mais velhos. A minha irmã mais velha foi atingida por uma explosão. Os mujaedines violaram-me uma outra irmã e a filha. Esta irmã apunhalou-se a si e à filha, porque não suportava viver com esta vergonha e recuperou assim a sua honra A11-hamn-do-allah. A única pessoa que me resta é o meu venerado professor, o xeque, que foi meu mestre no madraçal. Sou sozinho no mundo e não tenho ninguém que possa falar por mim. Por isso, tive de vir eu próprio pedir-te que me dês a tua filha por esposa - diz o jovem talibã. Agachado em frente de Shirin-Gol, contempla as sorridentes esteiras de plástico, cala-se e fica imóvel. Shirin-Gol examina-lhe os lábios cheios e bonitos, os olhos escuros, a pele macia, as feições suaves, o comportamento tranquilo e a segurança. Então pergunta: - Onde está a tua mãe? - O desgosto matou-a - responde o talibã sem erguer o olhar para Shirin-Gol. - O meu tio levou-me para o Paquistão, onde vivi num campo. Tive de frequentar um madraçal, onde aprendi o Alcorão com sábios religiosos árabes e paquistaneses. A dada altura, enrolaram-me este turbante preto à volta da cabeça e disseram-me: "Agora és um talibã." "Um talibã" , pensa Shirin-Gol. "Aquele que pede." -Que pedes tu, talibã? pergunta. - O que todos os talibãs pedem. O caminho da verdade. -- O caminho da verdade para onde? - Para Deus. Sou um talibã. Um talibã. - És um talibã. Na verdade, estás proibido de falar comigo. Eu sou uma mulher. - Há excepções. - Quando te apetece? Quando te convém? O talibã cala-se. - Também posso ser talibã? - Podes. Qualquer um pode ser talibã. - Quero ser talibã da liberdade. O talibã cala-se. - Liberdade - repete Shirin-Gol. - Disseram-me no madraçal que iam mandar-me para a nossa amada terra para trazer a liberdade ao meu povo. - Que liberdade é essa que proíbe que metade da população saia de casa? Disseram-me que devia libertar o nosso país juntamente com os meus irmãos de fé. Os meus professores disseram que o nosso país foi posto a ferro e fogo, primeiro pelos Russos com a sua guerra e depois pelos mujaedines com a sua guerra fratricida. Disseram que as pessoas eram prisioneiras nas suas próprias casas, que não podiam nem trabalhar nem fazer os seus negócios. Disseram que os mujaedines roubam as pessoas. Disseram que os mujaedines violam as mulheres. Disseram que as pessoas esperavam que os talibãs as salvassem e lhes trouxessem a paz e a verdadeira fé. - Porque não olhas para mim quando falas comigo? pergunta Shirin-Gol. Eu podia ser tua mãe. Estás aqui a dizer que queres casar com a minha filha. - Não trazes nenhum hejab - responde o talibã. - É-me proibido olhar para o rosto de uma mulher desconhecida. - É o mesmo rosto que viu a guerra de que tu só ouviste falar. -

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De que eu fugi diz o talibã. - E o mesmo rosto que viu a fome, a morte e a doença. É o meu rosto, e sou eu que decido quem pode e não pode vê-lo. A ti dou-te licença para o veres - diz Shirin-Gol, sem conseguir esconder o desprezo na voz. 118 119

- Não nos cabe a nós, mortais, modificar as leis de Deus - respon_ de o jovem talibã. Sereno. Composto. Seguro daquilo que diz. Convencido das leis que tem na cabeça.

- A lei de Deus diz que devo tapar o cabelo, não a cara. Olha para mim quando falas comigo. O jovem talibã cala-se, reflecte, levanta a cabeça, observa Shirin-Gol com os seus olhos calmos, suaves, quentes, quase ternos, respira tranquilamente, volta a baixar o olhar e diz: - Que diferença te faz se olho ou não para ti? - Uma grande diferença - replica Shirin-Gol. - Muito grande. Quero ver os olhos do homem que me proíbe de sair à rua, que me obriga a tapar a cara em público e que me impede de trabalhar. Quero ver os olhos do homem que proíbe as crianças de brincarem e as raparigas de irem à escola. Quero ver os olhos do homem que veio aqui para tomar a minha filha por esposa.

- Não me cabe a mim permitir-te ou proibir-te seja o que for - diz o talibã. - Eu e os meus irmãos muçulmanos viemos para vos trazer a paz. Viemos para vos trazer o verdadeiro Islão e velar para que a palavra de Deus seja cumprida. As guerras, o sofrimento, as vítimas e os mortos que viste com os teus próprios olhos foram o castigo de Deus por nós, Afegãos, termos esquecido o que é um verdadeiro muçulmano. Por termos perdido a nossa verdadeira fé. Por termos esquecido o bem, a riqueza e a paz do verdadeiro Islão. Shirin-Gol tem dificuldade em dominar-se e continuar a falar com delicadeza:

O que é que o verdadeiro Islão tem a ver com o facto de eu traba lhar? - pergunta. O que é que o verdadeiro Islão e a paz na nossa terra tem a ver com o facto de eu ser condenada a ficar presa dentro das quatro paredes do meu quarto? O que é que isso tem a ver seja com o que for? A quem aproveita ou prejudica que as nossas filhas andem na escola? O que vocês estão a fazer não tem nada, absolutamente nada, a ver com o Islão. - É o Islão que aprendi. O Islão que os meus professores me ensinaram. O verdadeiro Islão, tal como está escrito no sagrado Alcorão. O Islão que nem tu nem eu podemos ou devemos pôr em dúvida. São as palavras do Profeta, a que todos os crentes devem obedecer e que ninguém pode modificar ou pôr em dúvida. Shirin-Gol está irritada e com a respiração alterada. Sente uma cólera tão grande que enche o quarto todo. - Permite-me uma pergunta, por favor - diz o jovem talibã no meio da cólera, da ira e do desespero, erguendo o olhar, fitando Shirin-Gol e permanecendo perfeitamente impassível. O olhar e a voz conti- 120 nuam-lhe quentes, quase ternos. - Os meus irmãos de fé são recebidos calorosamente e de braços abertos em todas as outras localidades, aldeias e vilas onde chegam. As pessoas alegram-se por, finalmente, lhes trazermos a paz, por finalmente poderem voltar a viajar de cidade para cidade sem serem roubadas ou enganadas pelos salteadores, e sem terem de dar dinheiro, ovelhas e até as filhas e as mulheres a um qualquer comandante dos inujaedines, de tantos em tantos quilómetros. Alegram-se por as armas se calarem e poderem retomar os seus afazeres, sempre que nós aparecemos. por poderem voltar a ter lojas nos bazares e finalmente ganharem dinheiro ao fim de tantos anos. Quando aparecemos, as pessoas ficam aliviadas por poderem dormir a noite toda sem medo de que os mísseis lhes caiam na cabeça. Quando aparecemos, as pessoas sabem o bem supremo que é a paz e a tranquilidade. E por fim sabem que, depois de todos

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estes anos de irreligiosidade, lhes trazemos a verdadeira fé. Até o chefe e comandante da vossa aldeia se aliou ao nosso movimento. Os homens da vossa aldeia entregaram-nos as suas armas. Os nossos dirigentes não são contra as escolas, nem sequer de raparigas. Vamos reconstruir as escolas, logo que a guerra acabar e quando tivermos o país todo controlado. O nosso dirigente diz que vamos criar escolas separadas para as raparigas, para também elas poderem estudar. - O jovem talibã baixa os olhos antes de continuar a falar: Não compreendo porque estás contra nós e o nosso santo movimento. - O talibã parece triste quando diz: Não compreendo porque estás contra mim. Shirin-Gol reflecte longamente, procurando a resposta acertada. Reencontra por fim a paz e um pouco da suavidade da sua voz e responde: - Cresceste num campo no Paquistão, sem pai, sem mãe, e por isso tens a minha compaixão. Só regressaste há uns meses à tua terra natal. Não conheces o Afeganistão nem a sua capital. Não conheces as pessoas nem as suas histórias, desgraças, sofrimentos e alegrias. Não conheces os Russos, nem os mujaedines, nem as guerras. Tudo o que conheces são as palavras do teu professor. Sem querer, sem saber e sem perceber porque o faz, o jovem talibã olha Shirin-Gol de frente enquanto ela fala. Olha-a de frente. Mas não porque ela quer. Porque ele quer. Shirin-Gol fita longamente o jovem antes de lhe perguntar: -Acreditas no teu chefe? Acreditas mesmo que ele algum dia vai construir escolas para raparigas? Que vai autorizar as mulheres a estudarem, a irem para a universidade e a serem médicas ou outra coisa qual quer? E quando é que pensas que controlarão o país inteiro? Quanto tempo demorará até a paz reinar em todo o lado e vocês fazerem tudo aquilo que hoje nos prometem? Pensas que os mujaedines, o Ahrnad Shah Massoud, o Dostum e sei lá mais quem se vão render assim de mão beijada 121 Pensas que o Irão, a Índia, a França, o Usbequistão e os outros países que apoiam os mujaedines e o governo do Rabbani vão aceitar tudo sem mais nem menos? Só porque vocês chegam e dizem que querem conquistar o país inteiro? O rapaz fita Shirin-Gol, dizendo: - Fazes-me muitas perguntas, mas eu não sei responder-te a nenhu_ ma delas. -Tu e os teus irmãos de fé pretendem ser os nossos guias. E nós pretendemos respostas. - Não tens papas na língua - diz o jovem talibã, que depois de reflectir, continua: - Só o Todo-Poderoso, só Deus omnisciente sabe quando a guerra terminará, quando o movimento dos talibãs terá o domínio de todo o país, quando isto e quando aquilo. O jovem talibã endireita-se para continuar a falar e observa Shirin-Gol, quando a luz do Sol, que entra no quarto pela janela, escurece de repente e uma sombra vai cair sobre o jovem. Silenciosa, suave, dura o tempo de fechar e abrir os olhos quatro vezes. Sombra silenciosa e suave, envolvendo o jovem talibã, abraçando-o, acariciando-o, tocando-lhe, afagando-o. Shirin-Gol e o jovem talibã olham ao mesmo tempo para fora e vêem que é a sombra de Nur-Aftab. Luz-do-Sol está no terraço projectando uma sombra sobre o jovem de olhos escuros que brilham e cintilam como carvões em brasa, sempre à procura da sua Luz-do-Sol. Da sua Nur-Aftab. Brilho triste. Cheio de melancolia. Com a cabeça destapada, proibida, Nur-Aftab espreita para dentro. Não pára a espreitar mais que um momento, antes de seguir em frente e de o sol voltar a iluminar o jovem talibã. Um momento breve. Mas suficientemente longo. O olhar de Nur-Aftab mergulha nos olhos do rapaz. E o olhar do rapaz nos olhos de Nur-Aftab. Afunda-se. Desaparece. Perde-se. Perdido. Perdido. Coração perdido. Dois corações perdidos. Para sempre. Para a eternidade.

A valentia, perguntas e dúvidas de Shirin-Gol juntam-se em bando, transformam-se em aves, levantam voo e saem pela janela. Simorgh. Trinta aves. Voam. Para fora. Para longe. O jovem

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treme. A sua voz treme. Diz: -Vou cuidar dela, respeitá-la, venerá-la, protegê-la e defendê-la contra tudo e todos, nem que seja com a minha própria vida. Isto diz o talibã, olhando depois para o tasbih que tem na mão pousada imóvel no regaço. Enche novamente o peito de ar, como se fosse a última vez. A seguir cala-se. Não diz mais nada. A sua solidão e tristeza, dignidade, sinceridade, bondade, calor, o amor que tem nas palavras e na voz tocam o coração de Shirin-Gol. -Ela ainda é uma criança - diz Shirin-Gol. O talibã não levanta a cabeça, não olha para Shirin-Gol, não fala e parece não respirar. Limita-se a ficar sentado, cabisbaixo. Imóvel. Calado. Tudo continua a ser como tem sido toda a tarde, desde que o jovem talibã apareceu para tomar Nur-Aftab por esposa. Shirin-Gol e o jovem mal se mexeram, estão sentados como sempre estiveram. No entanto, tudo está diferente do que ainda agora foi.

Simorgh não volta. Os dias transformam-se em Simorgh, em trinta aves à procura da mais bela de todas as aves. Reúnem-se em bando e voam para longe. Desaparecem. Shirin-Gol senta-se umas vezes no quarto e outras no terraço. Cozinha, lava roupa, olha a-distância, na direcção onde suspeita ficar o Irão. Shirin-Gol suspira, escolhe e lava o arroz, lava as hortaliças que o jovem talibã mandou oferecer-lhe. Shirin-Gol arrasta os colchões e almofadas, cobertores e esteiras para o terraço, bate-lhes para o pó sair e continua a bater, mesmo quando o pó já saiu todo há muito tempo. Shirin-Gol lava o chão do quarto com água da mangueira de plástico e continua a lavar mesmo quando este já brilha há muito tempo. Shirin-Gol agacha-se a contemplar as cápsulas das papoilas, que se perfilam como soldados mortos, sangrando leite branco. Leite que fica castanho. O Sol nasce no céu, dá a volta ao quarto e ao terraço, põe-se, dá lugar às estrelas e à Lua, volta no dia seguinte, torna a desaparecer. Agachado num canto do quarto, Morad fuma em silêncio. Nur-Aftab agacha-se no murinho que rodeia o campo. Não come, não bebe, não fala. Só suspira e observa o solo arenoso que tem debaixo dos pés. Agachado no terraço, Nasser atira pedras, não acerta em nada nem em ninguém, mas continua a atirar. Permanece agachado até tombar como um saco e ficar deitado na poeira, de olhos arregalados. Nafass e Nabi agacham-se no chão. É uma sorte terem à sua volta todos os irmãos, o pai e a mãe. Uma sorte, porque o mundo já não é tão grande que todos possam desaparecer nele de manhã e só voltar a surgir à noite. Felizes-infelizes. -já não temos arroz - diz Shirin-Gol. - Nem farinha. Nem açúcar, chá. Banha. Não temos mais lenha. Não posso acender o lume. Morad fuma em silêncio. Nur-Aftab suspira. Nasser arregala os olhos. Os dois pequenos chucham no dedo. Sorriem. Ninguém lhes devolve o sorriso. Simorgh foi-se embora. Não volta.

- Em nome de Deus - diz Morad. - Vamos consentir. Eles que casem. Aceitamos o dinheiro que nos dá por ela e logo veremos. 122 123 -Está bem - responde Shirin-Gol. - Eles que casem. Aceitamos o dinheiro e logo veremos. Logo se verá. - Tens de ir tu falar com ele e comunicar-lhe a nossa decisão. Eu estou doente - diz Morad. - Não posso ir. -Eu sei - replica Shirin-Gol. De manhãzinha cedo, levanta-se, lava o rosto com água da mangueira de plástico, embrulha-se no véu, tapa a cara, dá a volta ao quarto até à casa de chá, vira à direita e percorre a rua de areia até ao portão de ferro azul-claro cuja tinta está estalada em muitos sítios, ou porque dispararam contra ele ou por outra coisa qualquer; parecem piquinhos e feridas abertas.

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Shirin-Gol bate com uma pedra no portão de ferro, atrás do qual, dantes, ficava a casa-prisão do chefe, que agora é a casa dos talibãs. O nascer da manhã, ainda sem sol, ecoa e retumba. Shirin-Gol assusta-se e deixa cair a pedra. Com um arrastar de pés e o chlap-chlap de chinelas de plástico, um jovem estremunhado, mais ou menos da idade de Nasser, abre o portão azul, recua apavorado e certifica-se de que não está enganado, que, de facto, tem uma mulher sozinha à frente. O rapaz inclina-se o mais que pode para ela e sussurra-lhe atrás da mão levantada: -Não podes andar sozinha na rua. Vai para casa. Se os talibãs te vêem arranjas um sarilho. Shirin-Gol conhece o rapaz. Antes de os talibãs chegarem à aldeia, ia à escola de manhã, como todos os outros rapazes, e à tarde trabalhava. Sarvar era ajudante do alfaiate. Sarvar, que fazes aqui? - pergunta Shirin-Gol, levantando o véu para trás e assustando ainda mais o jovem. -Não podes mostrar a cara - murmura o rapaz, tão perturbado que até lhe saltam da boca bolinhas brancas de saliva.

Que fazes aqui? repete Shirin-Gol, pousando a mão no peito do rapaz. -Nada - responde ele. - Trabalho aqui. -Aqui? Para os talibãs? Que tipo de trabalho? -Abro a porta quando batem, lavo os copos do chá, enxoto as aio eas, arrumo os sapatos quando os homens os descalçam e vão para o quar to, eu... Está bem - interrompe Shirin-Gol. - E porque é que não vais dormir a casa, logo que acabas o trabalho?

As pessoas já não têm dinheiro para comprar coisas novas. Fiquei sem trabalho, e os talibãs disseram ao meu pai que sou bonito. Deram-lhe dinheiro, disseram-lhe que queriam que eu ficasse aqui dia e noite. O meu pai aceitou o dinheiro e mandou-me ficar aqui, a fazer tudo o que os talibãs quisessem. 124 Um peso estranho, que não sabe de onde nem porque vem, um peso como se tivesse engolido chumbo líquido, cai no ventre de Shirin-Gol. Encosta-se ao portão de ferro azul-claro para não cair, deixa-se escorregar, agacha-se, pousa a cabeça nos joelhos, tenta afastar os terríveis pensamentos e imagens que lhe surgem na cabeça, sabe-se lá vindos de onde. Pensamentos e imagens de homens adultos agarrando o rapazinho, acariciando-o, puxando-o para si à noite, deitando-o ao lado deles, abraçando-o, apertando-o, afagando-o.

Shirin-Gol, Shirin-Gol, não te sentes bem? - pergunta o rapaz com a voz límpida como um sino. - Queres um copo de água? -Não, meu rapaz. Não é nada. Senta-te ao pé de mim. Conta-me. Como é a vida com os talibãs? - É boa - diz o jovem. - É boa porquê? - Porque tenho o suficiente para comer. - Isso é bom - observa Shirin-Gol. - E porque os talibãs gostam de mim; são muito amáveis e simpáticos comigo. O nó que Shirin-Gol tem no ventre aperta e empurra, torna-se cada vez mais pesado, sobe-lhe à garganta, sufoca-a e está prestes a saltar-lhe pela boca. Shirin-Gol levanta-se, já sem saber porque veio, afaga a cabeça rapada do jovem, regressa a casa pela rua ainda sem gente, entra no quarto, pendura o véu no prego da parede, deita-se debaixo do cobertor e ali fica. Acordada. Mãos de homem pousando num corpo de rapaz. Um homem satisfaz o seu desejo. Desejo de homem.

Já o Sol aparece sobre o outeiro; já canta o primeiro galo da aldeia; o primeiro burro zurra; já tudo o que a luz do Sol toca se mexe e se espreguiça; já Nur-Aftah se senta de novo no marinho que rodeia o campo olha com ar mortiço para o solo arenoso que tem debaixo dos pés; já Nasser atira outra vez uma pedra e não acerta em nada nem em ninguém; Morad se

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vira no sono e já Shirin-Gol despeja a água do alguidar onde lavou a cara de Nafass e Nabi, quando o jovem talibã dobra a esquina, fita Nur-Aftah, sorri com tanta ternura e amor que ela quase se esquece de respirar,levando a mão à boca, a impedir que o êxtase lhe salte cá para fora. O talibã passa por ela, vai agachar-se junto de Shirin-Gol, observa-a, sorri e diz: - Estiveste lá em casa hoje de manhã. Que querias? - Nada - responde Shirin-Gol secamente, sem olhar para o talibã. 124 125 -Não estás a olhar para mim - diz o talibã. - As tuas leis proíbem-te de estar aqui na minha casa. Eu e a minha filha não temos hejab. - Eu vou-me embora, mas só quando souber porque foste a nossa casa. - Fosse qual fosse a razão, deixou de existir e já a esqueci. - Trago dinheiro diz o jovem talibã. - Os tempos correm difíceis e ninguém tem que chegue. Cada um deve ajudar no que lhe for possível. - Não quero o teu dinheiro, porque não te poderei dar aquilo que um dia me vais cobrar por ele - diz Shirin-Gol. -Aquilo que eu gostaria de ter - declara o talibã, pousando um maço de notas à frente de Shirin-Gol, levantando-se e repetindo: - O que eu quero, não posso comprá-lo com dinheiro. Antes de partir, ainda rouba um sorriso acanhado a Nur-Aftab e desaparece, dá a volta à casa de chá, vira à direita, sobe a rua até ao portão azul, agacha-se à sua frente e não faz nada durante todo o dia, a não ser observar a rua que desce para a aldeia. - Porque o mandaste embora? - pergunta Morad. - Talvez este talibã seja um talibã bom. Pode ser que entre os talibãs também haja bons e maus. Se calhar, está a ser sincero quando fala do Islão e do seu Deus, Traz-nos dinheiro, traz-nos alimentos, é educado e não nos obriga a dar-lhe a nossa filha em casamento. Não te denuncia, quando te sentas em frente dele sem bejab. Obedece, quando lhe dizes que te olhe de frente e também o faz se lhe dizes para ir ou vir. - Não vou dar a minha filha a nenhum homem que anda com rapazinhos afirma Shirin-Gol. - Se calhar, estás enganada - diz Morad. - Se calhar, o melhor para Nur-Aftab é que nós lha dêmos em casamento. Se calhar, vai ter uma vida boa com ele.

Se calhar, o melhor para nós é que ponhas os pés na terra, que façamos as trouxas e que vamos para algum lado onde não haja guerra nem talibãs que fazem dos rapazinhos pequenos os seus brinquedos. - Com que dinheiro? - pergunta Morad.

Com o que vamos ganhar. Temos de trabalhar até conseguirmos dinheiro que chegue grita Shirin-Gol, atirando com tanta força para o alguidar o vestido molhado que está a lavar, que a água salta e a salpica.

Os dias voltam a juntar-se em bando e a voar. Como trinta aves a procura da mais bonita e mais magnífica de todas as aves, Simorgh; 0s dias reúnem-se em bando e saem a voar. Volta a acontecer isto e aquilo. 126 Não volta a acontecer nada e volta a acontecer tudo. Entretanto, os talibãs metem-se cada vez mais, e cada vez com menos escrupulos, na vida das pessoas. À saída da aldeia, onde ficariam os pés do homem, se as pessoas fossem pássaros e pudessem ver a aldeia de cima, os talibãs erguem uma barreira, sentam ao lado o mecãnico, que dantes arranjava os rádios, e o antigo alfaiate de mulheres, metem-lhes na mão uma Kalachnikov e um aparelho de rádio e dizem-lhes para não deixarem entrar nem sair ninguém, a não ser que tenham autorização dos talibãs. Os talibãs fecham a escola dos rapazes e fazem uma mesquita e uma escola alcorânica. Para rapazes. Ordenam a todos os homens que deixem crescer a barba, rapem o cabelo ou o deixem ficar muito comprido. Percorrem a aldeia com vergastas

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fininhas, batendo nos rapazes que brincam com papagaios de papel. Mas também lhes batem, apenas porque estão ali perto. Insultam as mulheres e as adolescentes que se atrevem a sair de casa sem uma companhia masculina, e exigem saber se a mulher precisa mesmo de sair de casa, até quando está acompanhada por um homem. Nenhum dos talibãs que chegou à aldeia era casado. Entretanto, cada um deles tomou por mulher uma rapariga da aldeia. O seu chefe, que não conseguia decidir-se, até casou com duas. São irmãs, filhas do mullah, que está feliz com o casamento porque, apesar de tudo, o talibã é um homem religioso, influente e poderoso: nunca deixará faltar nada às filhas, que ficarão sempre juntas e nunca estarão sozinhas. Além do rapazinho que pouco mais velho é que Nasser, os talibãs empregaram outros rapazinhos da aldeia como criados, moços de recados ou enxotadores de moscas, os quais admiram, abraçam e sabe-se lá que mais. Todos os talibãs levaram para as suas casas mulheres e rapazinhos. Todos menos um. Aquele que desde o primeiro dia se apaixonou e cujo amor foi retribuído por Nur-Aftab. Shirin-Gol já diz: "Talvez ele seja um talibã bom, talvez seja diferente dos outros talibãs." Quando Morad responde: "Talvez seja", e aspira longamente o cachimbo de água que o jovem talibã lhe ofereceu, um outro talibã dobra a esquina e aparece na varanda, vê o rosto descoberto de Shirin-Gol, vira-lhe as costas, dá-lhe tempo para se tapar, agacha-se à frente de Shirin-Gol e de Morad, pousa-lhes um maço de notas aos pés e diz num tom atrevido, fedorento e mal-educado: - Isto chega pela vossa filha? A mulher com quem casei ainda é uma criança e não pode dar-me nenhum filho. Tenho de arranjar outra. Agachado no meio da névoa do seu cachimbo de água, Morad não diz nada. Shirin-Gol só tem vontade de pegar na foice pousada ao seu lado no chão, de a encostar à garganta do talibã e de o degolar. Endireita-se e abre a boca para dizer qualquer coisa, quando o jovem talibã bondoso e terno aparece, pousa a mão no ombro do Fedorento e diz: 126 127 - Irmão, a filha desta irmã já me está prometida. Tens sorte por seres meu irmão de fé e eu te respeitar, pois, de contrário, teria de te matar agora para lavar a minha honra e a da minha noiva. O Fedorento levanta-se, examinando o seu irmão de fé, com a túnica branca e comprida que o faz parecer um anjo. O olhar fedorento passeia uma vez de cima para baixo, outra, de baixo para cima e fica preso nos seus olhos. O Fedorento cospe um escarro, que aterra no chão duro de terra batida do terraço e que deixa no solo uma mancha obscena durante dias, semanas, para sempre. E isto, embora Shirin-Gol o empurre para o campo com a água da mangueira, fazendo-o parecer um peixe debatendo_ -se na margem, arrastando-se de novo para o rio, porque ninguém o es_ ventra e o põe a assar no lume. O Fedorento sabia que o seu escarro deixaria para sempre uma mancha obscena? Levou o dinheiro, mas deixou o escarro e a mancha obscena. Para sempre. E as suas últimas palavras obscenas também. Ultimas e fedorentas palavras de talibã:

- O xeque não viverá eternamente para pousar sobre ti e a tua noiva a sua mão protectora. Como nem Nur-Aftab nem o jovem talibã têm parentes, o remédio é festejarem o casamento entre estranhos. Dantes dizia-se que dava azar. Dantes. Quando ainda não havia guerra, quando as pessoas viviam em paz e as famílias e os clãs permaneciam juntos no mesmo sítio, na mesma aldeia, no mesmo acampamento. Dantes, quando os pais ainda eram pais, tinham uma palavra a dizer e decidiam quem casava com quem e quem não casava. Dantes, quando as mães ainda eram mães, e as noivas dos filhos as serviam como se elas fossem rainhas. Dantes, quando os pais ainda tinham dinheiro e podiam dar dotes às filhas. Dantes, quando o noivo tinha um pai que podia dar-lhe um casebre, um quarto ou uma tenda onde vivia com a sua

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mulher e lhe dava netos. Dantes, quando as pessoas tinham ovelhas e carneiros que matavam por altura do casamento e podiam distribuir pelos necessitados, para lhes dar sorte. Dantes, quando tudo era diferente. Dantes. Quando era dantes? Terá havido mesmo um dantes? Se calhar, as pessoas estão a mentir. Se calhar, nunca houve nenhum dantes. Uma vez que já não existe dantes, sempre é melhor festejar com estranhos do que não festejar, segundo dizem as pessoas. Assim, um dia antes da noite de núpcias, as mulheres vão ter com Nur-Aftab, apertam-se no quarto e no terraço e bebem chá, oferecido pelo amável dono da casa de chá. Quem pode, traz um presente. Um frasco de kajal, com o qual Nur-Aftab pinta de preto a parte de cima e de baixo dos olhos. Pólen para as maçãs do rosto. Água de rosas, para que cheire bem. Tecidos lustrosos para o vestido de casamento e outros para os dias que virão, assim Deus o permita, igualmente felizes e alegres da sua vida. Lã para a manta de Inverno. Tecidos para esteiras e almofadas. Nur-Aftab até recebe de presente um pequeno anel de ouro. Uma outra mulher oferece uma taça cheia de doces feitos por ela própria. Uma outra oferece-lhe fios coloridos, que ainda nessa noite entrelaçam e prendem no cabelo lavado de Nur-Aftab, juntamente com um ta-vis, para dar sorte. Azadine oferece-lhe um pacotinho que Nur Aftab só deve abrir mais tarde, quando estiver sozinha. São centenas, milhares de pílulas anticonceptivas. A mulher do mullah, que ainda uns meses antes levou as filhas à casa do noivo, um dos outros talibãs, oferece a Nur-Aftab duas taças de barro. Cada mulher traz o que pode e de que não precisa absolutamente. E como se trata de um casamento, ainda por cima de um talibã, as mulheres até têm autorização para cantar umas canções e bater palmas. De vez em quando, uma ou outra não aguenta mais, levanta-se e começa a dançar. Atrás do portão azul-claro, na outra ponta da rua, passa-se a mesma coisa. Os rapazinhos da aldeia correm de un lado para o outro, enchendo de limonada e chá os copos vazios dos homens que vieram desejar felicidades e trazer os seus presentes ao noivo. O alfaiate oferece uma túnica nova, branca e comprida. Uns homens oferecem uns gramas de ópio. A maioria oferece dinheiro ao jovem talibã. À medida que o Sol se põe e desaparece por trás do outeiro, as mulheres cantarolam e batem cada vez mais depressa nos pratos e nos tachos, dançam desenfreadamente, cantam, gritam e batem tantas palmas que Nur Aftab, sentada no terraço no meio das mulheres, das adolescentes e da algazarra toda, até se sente tonta. A mulher do mullah levanta-se e estende o braço a acalmar as outras mulheres e raparigas. Todas se calam. Sete adolescentes, que tal como Nur-Aftab são castas e ainda virgens, mexem a panela com a hena até o pó se desfazer. Mergulham sete pauzinhos fininhos no tacho com a pasta vermelha. Dantes tinham de ser sete virgens felizes. Mas na aldeia inteira não há sete pessoas felizes, quanto mais sete virgens felizes! É a guerra. O principal é que são virgens. Sete mãos de virgens, que não são felizes nem infelizes, pintam com sete pauzinhos embebidos em hena as plantas dos pés, as palmas e as costas das nãos, o rosto, o pescoço, os braços e as pernas de Nur-Aftab, o que a enche de cócegas e a arrepia tanto que a pele se lhe enruga e fica cheia de piquinhos por todo o corpo. Ri cheia de cócegas, e a mãe sente os olhos marejados de lágrimas ao ver a felicidade da filha. Lágrimas-de-alegria-de-mãe. Lágrimas-de-alegria. Alegria-luto. Enquanto as sete virgens, que não são felizes nem infelizes, pintam as mãos e os pés de Nur-Aftab, a mulher do mullah desfia as contas do seu 128 129 tasbih, primeiro para um lado e depois para o outro, murmurando inaudi_ velmente algumas palavras que afirma serem da Sura tal e tal do sa r.ido Alcorão. E diz continuamente: "Que a hena te arrefeça o sangue, a noiva não deve ir para a casa do seu marido com o sangue quente, nem deve passar de adolescente a mulher com o sangue quente. Assim o fizeram os nossos antepassados, assim o

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fazemos nós hoje, e que Deus proteja e dê uma vida longa a todas as Suas criaturas que são, que foram e que ainda virão.> Ao mesmo tempo, atrás do portão de ferro azul-claro que parece cheio de feridas abertas, sete adolescentes homens, que provavelmente nunca tocaram em nenhuma mulher, pintam com hena vermelha as plantas dos pés, as palmas das mãos, a testa e o pescoço do jovem talibã. O mullah desfia as contas do tasbih, primeiro para um lado e depois para o outro, murmura baixinho, tão baixinho que os talibãs não conseguem ouvi-lo, afirmando que se trata da Sura tal e tal do sagrado Alcorão. - O meu irmão, o talibã mais velho, deve rezar uma oração - pede o jovem noivo, sorrindo de felicidade. O talibã mais velho, o chefe de todos os talibãs que chegaram à aldeia há tanto e tanto tempo, apanha a camisa, o patu, as calças, a comprida cauda do turbante e o resto dos tecidos que traz pendurados, levanta-se majestosamente, senta-se à frente do noivo, empertiga-se, dá-se ares de importante, murmura baixinho por entre dentes para que o mullah não possa ouvi-lo, afirmando que se trata da Sura tal e tal do sagrado Alcorão, • que Deus e o Profeta, sallalho-aleihe-t{ a-allrzlehi-te>a-salla~aa, louvado seja Ele e os Seus antepassados, abençoem o seu irmão de fé comtínua vida de abundância e muitos filhos robustos e saudáveis.

De noite, Nur-Aftab não consegue dormir. Pela primeira vez desde que se conhece, não dorme ao lado da mãe, da irmã, do irmão, de uma amiga do campo de refugiados. Está deitada sozinha no terraço, sob o céu de Deus, que nesta noite o ornamentou especialmente para Nur-Aftab com milhares de estrelas lindíssimas e uma Lua muito bela e doce. Nur-Aftab levanta a mão ao luar e observa as flores, arabescos e palavras que • sete virgens e a mãe pintaram e escreveram. Nur-Aftab estica-se, espreguiça-se e sabe, sem saber como sabe mas sabendo, que o seu amado, o seu herói, pahlen,'an, adorado, que amanhã será seu marido, está deitado como ela sob o céu de Deus, levantando igualmente a mão pintada de he na vermelha para a Lua, igualmente sabendo que ela não está longe, que suspira por ele e que pensa nele. Nur-Aftab brinca com o huri, o anjo da noite escura que só ela e mais ninguém vê, e trauteia uma canção de amor. Shirin-Gol afasta o cobertor' vai ter com a filha à varanda, deita-se ao seu lado, abraça a sua menina e diz: - Tens sorte em te casares com um homem que amas e que te ama. - Eu sei - sussurra Nur-Aftab. - Gostaria que tudo fosse diferente. Gostaria que os teus olhos não tivessem visto a guerra e que o teu coração fosse leve. Gostaria... que sei eu! Gostaria de tanta coisa! -Eu sei - diz Nur-Aftab.

Na manhã seguinte muito cedinho, quando o Sol já lança os seus primeiros raios sobre a montanha, as sete virgens, que não são felizes nem infelizes, e algumas mulheres felizes-infelizes, infelizes e felizes, regressam e juntam-se no terraço atrás do quarto de Shirin-Gol. Cada uma delas tem uma agulha e linhas, algumas trazem contas, uma moeda, uma concha, faiscantes palhetas. Cosem as saias, dobram o tecido em pregas e prendem-nas. Uma prega, quatro pregas, mil pregas. Quantas mais pregas, mais felicidade, saúde e riqueza. Quanto mais riqueza, mais filhos. Duas virgens felizes-infelizes, mas sorridentes, cosem a manga direita do vestido de casamento de Nur-Afrab, Duas virgens felizes-infelizes que dançam cone os olhos, cosem a manga esquerda do vestido de casamento de Nur-Aftab. O pequeno terraço entre o quarto e o campo de papoilas transforma-se numa nuvem. Uma nuvem de tecidos verdes,

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amarelos, vermelhos e cor de laranja, que reluzem, brilham, se avolumam, cingindo os corpos das mulheres e das virgens que os cosem. O jovem noivo pagou os tecidos, dizem as mulheres. A filha da Shirin-Gol tem sorte por ir casar com um homem tão bom. Vai ser feliz com ele. É rico, tem uma boa posição e o seu xeque árabe prefere-o a todos os outros discípulos. A mulher do mullah até sabe que o professor dos talibãs o trata como um filho e o fez um dos seus herdeiros. Sentadas por entre os tecidos, as mulheres cosem o vestido de casamento de Nur-Aftab, bebem chá, contam tudo o que sabem ou que julgam saber, alegram-se por saírem finalmente dos seus casebres e quartos, por se sentarem juntas a falar, juntas a rir ou simplesmente juntas. As mulheres e as adolescentes entusiasmam-se cada vez mais com a grande sorte que tiveram, cone os tecidos maravilhosos, o vestido de casamento e as histórias do jovem e rico talibã. Algumas mulheres embalam o corpo ao som da música, outras perdem o domínio e a compostura, começando a cantar e a marcar o ritmo em pires e copos. A primeira começa baixinho, a, Segunda segue-a e, de repente, estão todas a cantar, a marcar o ritmo, a rir. As adolescentes e as mulheres olham continuamente por cima do ombro, temendo que alguém apareça e lhes chame mulheres perdidas, kharab. Que alguém apareça e as veja a dançar. A sua reputação ficaria des truída. 130 131 Adolescentes perdidas. Adolescentes achadas. Adolescentes-prostitutas, As adolescentes bem-comportadas sentam-se sossegadas. Baixam os olhos. Se precisam absolutamente de os levantar, fazem-no com decoro As adolescentes decentes não levantam a voz. Quando não podem evitá-lo e precisam mesmo de falar, fazem-no em voz baixa, empregando o menor número possível de palavras. As adolescentes bem-comportadas andam de boca fechada para que não se lhes veja o interior da boca nem a língua. As adolescentes decentes respiram sem fazer ruído e movimentam-se devagar. As adolescentes decentes não saltam, não pulam e não correm para não romperem o hímen. As adolescentes bem-comportadas e decentes não se envergonham a si próprias, às suas mães e, sobretudo, aos seus pais, As adolescentes virtuosas são ciosas da sua reputação. As adolescentes bem_ -comportadas não dançam nos casamentos. As adolescentes decentes têm sempre medo de poderem parecer indecentes. Adolescente bem-comportada. Adolescente sossegada. Virgem decente. Virgem infeliz. Um ponto, outro e mais outro. Não falar, não fazer isto, não fazer aquilo, um ponto, outro e mais outro. Ao princípio da tarde, o vestido está pronto. As mulheres prendem as agulhas nas suas blusas e vestidos. As agulhas parecem distintivos fininhos que trazem ao peito. A virgem tal e tal recebe um distintivo pela manga esquerda. Uma meia manga esquerda. Uma agulha ao peito. Umas mulheres passam pela cabeça de Nur-Aftab o colorido e lustroso vestido-nuvem de casamento, puxam-no e apertam-lho ao corpo. Se as pessoas fossem pássaros e pudessem observar a aldeia de cima, a aldeia que parece um homem deitado no chão com as pernas muito juntas e os braços abertos, então, à direita do sítio onde ficaria o umbigo, veriam uma nuvenzinha de tecido verde-amarelo-vermelho-laranja e no meio a pequena Nur-Aftab, que se confunde com uma princesa. Uma nuvenzinha verde-amarela-vermelha-laranja que deixou de pensar, que talvez um dia viaje de avião.

Ela ainda é uma criança murmura Shirin-Gol, crispando a mão no braço de Azadine.

Mas é uma criança esperta responde Azadine. Acentuando to a palavra esperta. - Tem fé - diz Azadine. - Vai correr tudo bem, O rapaz ama-a muito. É diferente dos outros homens. É como uma jovem pantera ferida. Chegou ao Paquistão ainda em criança,

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sem pai nem mãe, sem nada a não ser fome na barriga e raiva no coração. Foi levado para um campo de refugiados onde caiu nas mãos de homens fanáticos. Nas mãos de homens que lhe fizeram uma lavagem ao cérebro em nome da religião, que o transformaram no que é hoje. Quem sabe? Talvez o amor e a inteligência da tua filha o ajudem a recuperar a capacidade de raciocinar que lhe roubaram no madraçal - remata Azadine. - Veremos - diz Shirin-Gol, mais para si própria. - Logo se verá.

O irmão do amável dono da casa de chá enfiou carne fresca de borrep em todos os seus espetos. Em vez de uma, fez duas panelas de arroz perfumado, para que nenhum dos convidados fique com fome. Alguém arranjou algures, e dispôs numa taça, romãs enormes, gordas, cor de fogo e suculentas, que parecem sangrar quando se cortam. Do outro lado da rua, as adolescentes levam as mãos às bocas sorridentes, olham de soslaio para os frutos vermelhos e só desejam que os seus irmãos mordam uma ou outra romã e trinquem os grãos vermelhos, fazendo-os estalar entre os dentes, deixando escorrer o sumo agridoce pela garganta. Nenhuma delas sabe quem começou primeiro, nem se é verdade o que se diz dos poderes mágicos do fruto. Mas agora, de pé do outro lado da rua, com os seus lenços coloridos e saias largas, casquinando, escondendo a boca com a mão, olhando de soslaio e espreitando um rapaz que se aproxima da taça, todas sabem que a romã vermelha e estaladiça, que percorreu o longo caminho de Kandahar até aqui, é o fruto do amor. Quem conseguir comer romã antes de a noiva virgem ser feita mulher, terá a felicidade de lhe caber em sorte um marido bondoso, generoso, apaixonado e bonito, mais forte e bonito do que todos os heróis de todos os mitos e histórias de encantar. Alguém arranjou algures, e dispôs numa taça, pistácios grandes e suculentos. Outro alguém arranjou algures flores, que dispôs numa taça com água. As mulheres desfizeram hena num prato, para que os convidados possam molhar nela os dedos e pintar um sinal vermelho na testa, nas faces, no queixo ou nas palmas das mãos. Os presentes e o dinheiro para os noivos estão numa bandeja de metal amarelo. Se fosse dantes, as pessoas teriam tocado, dançado, batido palmas, cantado e rido. As mulheres teriam cantarolado atrás da mão levantada, para que não se lhes visse a língua. Hoje, a alegria é silenciosa, ninguém canta, ninguém dança, ninguém cantarola, e as mulheres têm o rosto escondido pelos véus. Agachadas na estrada arenosa atrás de um toldo castanho, separadas dos homens e dos rapazes, bebem chá, inspiram o aroma da carne e do arroz, mal conseguem esperar para os provar e espreitam os homens agachados na casa de chá, bebendo chá, fumando cachimbos de água, fazendo-a borbulhar e fervilhar, falando baixinho, para que ninguém os ouça, de tempos melhores, de como era dantes. Dos tempos em que não eram obrigados a deixar crescer a barba. Dos tempos em que a guerra com os Russos já tinha acabado, em que o seu comandante defendia a aldeia dos outros mujaedines, em que vendiam ópio e tinham esperança num futuro melhor. Dantes. 132 133 Ao contrário dos homens, as mulheres não são unânimes a afirmar que a vida antes da tomada do Poder pelos talibãs era melhor, ou que é melhor agora, desde que os homens de grandes barbas, túnicas compridas turbantes pretos e muitas proibições e leis chegaram à aldeia.

Desde que os talibãs chegaram - diz a mulher do amável dono da casa de chá -, já não precisamos de passar a noite alerta nas nossas ruas pátios e até na casa de chá. Os nossos filhos e maridos podem dormir em paz. Desde que os talibãs chegaram, o meu marido

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passa os serões com os filhos, e se querem saber... - a mulher do amável dono da casa de chá faz uma pausa, olha em redor, inclina-se para a frente, baixa a voz e continua atrás da mão levantada: -... Se querem saber, desde essa altura até passa mais tempo em casa. De um modo geral, já não temos sossego. Toda a gente passa a vida a ir daqui para ali, a fazer isto ou aquilo, mas ele passa a vida a querer deitar-se comigo. Se continuar assim, vou pedir-lhe que tome outra mulher, uma jovem ainda cheia de forças. A mulher do alfaiate diz-se satisfeita por os talibãs estarem na aldeia impondo a calma e a ordena. E afirma:

É que, desde então, o meu marido pode meter ao bolso tudo o que ganha. Nenhum comandante lhe estende a mão e ninguém lhe fica com uma parte do que lhe custou tanto a ganhar. - E nós sofremos as consequências , atira a mulher do dono daquele que ainda é o maior campo de papoilas. - Primeiro, tiraram-nos um décimo e depois dois décimos do nosso campo e das sementes, e o meu marido diz que não vão dar-se por satisfeitos durante muito tempo. - Mas o nosso comandante também impunha a ordem - contrapõe Zuhra, a irmã da mulher do alfaiate de homens. - É verdade que havia tiros por todo o lado. É verdade que tínhamos de montar guarda, mas o certo é que podíamos sair à rua. -Tu também não podias sair à rua, dantes - resmunga a mulher do alfaiate, olhando em redor para se certificar de que todas ouviram o que já sabem há muito tempo. E continua, rezingando para a irmã: - O teu marido já não te deixava andar na rua, antes de os talibãs chegarem à aldeia. Nem sequer podias ir à minha casa, a casa da tua própria irmã. - Mas é diferente - diz Zuhra. Dantes, ele era o único homem que me proibia isto ou aquilo. Agora são muitos, ainda por cima absolutamente desconhecidos, imundos e ignorantes. Isso é verdade - concorda a mulher do dono daquele que ainda é o maior campo de papoilas. - São ignorantes, terrivelmente ignorantes. Nunca os destinos do nosso país e da nossa gente foram conduzidos por homens que não sabem ler nem escrever nem nada de nada. - Que pensas disto tudo? - pergunta Zuhra à médica, sentada em silêncio ao lado de Shirin-Gol, que dá a mão a Nur-Aftab. Azadine suspira, pensa, levanta as sobrancelhas, torna a suspirar e diz: - Muitos deles ainda são quase crianças e outros são meio homens. Percebem que são diferentes dos seus próprios compatriotas. Alguns nem sequer falam bem a nossa língua. Não sabem onde fica Kandahar, nem onde estão as seculares estátuas de Buda. Não sabem que Mohammad Zahir Shah foi o nosso último rei, derrubado por Daud Kahn, sangue do seu sangue e carne da sua carne. Os talibãs estão perdidos. Desorientados e perdidos. -Falas bem diz Zuhra , mas que pensas agora? Eles são um bem ou um mal para nós? - Acabaram de tomar o Poder - responde Azadine. - Eles próprios ainda não sabem bem o que querem, nem como hão-de governar o povo afegão. O futuro dirá se são um bem ou um mal para nós. Zuhra, a irmã, a mulher do alfaiate, a mulher do homem a quem ainda pertencem os maiores campos de papoilas, a mulher do amável dono da casa de chá, a segunda mulher do amável dono da casa de chá, que nunca fala quando a primeira mulher está por perto, e todas as outras mulheres aprovam com a cabeça e levantam os olhos para o céu, como se Deus pairasse por cima delas e lhes fosse desvendar o que o futuro lhes reserva. E uma a seguir à outra suspiram, erguem as sobrancelhas, pensam, mordem o lábio inferior e não se sentem tão felizes como poderiam e deveriam estar num dia assim, em que se festeja um casamento. Shirin-Gol, que afinal de contas é a mãe da noiva, também não ri, não se sente feliz, nem um sorriso tem no rosto. - Quando temos um convidado, sorrimos-lhe para que não tenha de ver uma cara feia, desolada ou triste - diz a mulher do mullah. - Para que não pense que talvez seja ele a razão do rosto

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desolado e da tristeza. Por isso sorrimos quando um hóspede vem à nossa casa. E, por isso, também sorrimos quando uma noiva é conduzida à casa do seu prometido. Não estejamos, pois, desoladas. Vamos rir. Sorrir. Mostrar-nos alegres. Façamo-lo pela noiva. Já sopra uma leva brisa. Já despertam as primeiras aves nocturnas, sacudindo a delicada penugem. Já desaparece o Sol atrás do outeiro. Já Nabi abre as pernas no meio da rua de areia para urinar. Já Nur-Aftab pensa que parece uma nuvenzinha verde-amarela-vermelha-laranja no meio dos muitos tecidos coloridos e lustrosos que se avolumam à sua volta. Já pensa que não quer estar mais tempo sentada em silêncio. Já acontece tudo isto e muito mais, quando uns rapazes correm até ao pano estendido entre a casa de chá e o casebre ao lado, atrás do qual as mulheres e as adolescentes estão agachadas a beber chá e a tagarelar. Os rapazes saltam para cima e Para baixo e gritam: 134 135 - Vem aí o noivo! Vem aí o noivo! Nur-Aftab fica com a respiração presa na garganta, o coração dá-lhe um pulo dentro do peito, baixa a cabeça velada e crispa a mão na coxa. Do outro lado do pano, os homens levantam-se e um deles vai buscar o cavalo enfeitado com coloridos penachos de tecido, contas, flores e sininhos. Morad carrega um burro que pertence ao amável dono da casa de chá com os presentes, o dinheiro, umas quantas romãs, uns quantos pistácios e tudo o mais que quer oferecer à filha e ao noivo pela primeira noite que passam juntos e pelo resto da sua vida conjugal. O jovem talibã põe_ -se de pé e é obrigado a apoiar-se a uma das traves de madeira onde assenta o arejado telhado de verga da casa de chá, porque tem os joelhos a tremer. Sorri, baixa o olhar envergonhado, pega nas rédeas do colorido cavalo, guia-o à volta do pano e olha a sua prometida, agachada no tapete estendido sobre o chão, ao lado de Shirin-Gol. As saias garridas e os muitos véus coloridos que lhe escondem o rosto, que não o deixam ver-lhe os olhos bonitos, brilhantes e negros como carvão, não conseguem impedir que o amor que sente por ele se desprenda dos véus, voe pelo ar, lhe pouse no coração e lhe prometa uma ternura que só teve uma vez na vida. Das trevas da sua memória, cujos vestígios os anos riscaram e apagaram, surgem de repente imagens, emoções, cheiros, cores e formas que não sabia trazer dentro de si. De pé em frente da montanha de tecidos garridos e lustrosos, o jovem talibã só consegue pensar no seio materno que o aconchegava e o alimentava quando era muito pequeno. Já sabia andar, já tinha sapatos nos pés, já tinha dentes, já dizia bem as primeiras palavras, quando soube, sem saber como soube, que o calor do seio materno seria a única lembrança que lhe ficaria da raie, a única coisa que perseguiria durante toda a vida. Com as rédeas do colorido cavalo na mão, o jovem talibã sabe que Deus está consigo, que lhe enviou esta mulher para que recordasse a felicidade dos dias da sua infância. E como se neste momento percebesse que o seu objectivo não era a fé nem a religião, não era o Profeta nem o livro sagrado. O seu objectivo era esta mulher que Deus lhe enviou. Shirin-Gol e Azadine põem-se de pé e as outras mulheres imitam-lias. Só Nur-Aftab permanece sentada. Treme, cambaleia e quase tomba para o lado, quando o jovem noivo se aproxima dela, se debruça, se inclina para os tecidos coloridos e lustrosos, lhe encontra o braço, lhe encontra a cintura e a ajuda a levantar-se. Nur-Aftab tropeça, apoia-se nele, aspira através dos véus a água de rosas da sua pele, sente-lhe a respiração, contempla-lhe os olhos cor de mel e ouve-lhe a voz, que sussurra tão baixinho que só ela ouve:

Minha Luz-do-Sol. O jovem talibã acompanha a sua colorida noiva ao colorido cavalo e iça-a para o dorso do animal como se ela fosse uma pena. Sabe que devia ir ao seu lado a pé, mas não o faz: como se não tivesse peso, ergue igualmente o corpo robusto e jovem para cima do cavalo e, sem ligar aos olhares cépticos e incrédulos dos homens, senta-se atrás

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da noiva e encosta o peito que ameaça rebentar-lhe de felicidade e medo às suas costas delicadas e bonitas. Une-se a ela, treme com ela e, ao pegar nas rédeas, toca-lhe na barriga, fazendo-a estremecer e recuar ainda para mais junto dele. De cada vez que finca os tacões nos flancos do cavalo, comprime a bacia e o membro agora rígido contra as coxas virgens de Nur-Aftab, o que ninguém vê por causa dos muitos tecidos que se avolumam à sua frente e que também o envolvem como uma nuvenzinha colorida. Tonto de perturbação e de desejo. Desejo que o jovem talibã só conheceu até agora quando se sentava ou dormia no madraçal muito perto de algum outro rapaz. Desejo que pensava só nascer entre rapazes e homens. Desejo que, de repente, soube nunca ter tido a ver com rapazes ou homens, mas sempre com a sua Nur-Aftab, mesmo quando ainda não a conhecia. O jovem talibã puxa a cabeça do cavalo na direcção do portão de ferro azul-claro que parece crivado de feridas abertas. O cavalo com os noivos é seguido por Morad, que conduz o pequeno burro; Nasser, que não sabe se há-de estar contente por a irmã já não ir dormir no quarto, dando-lhe assim mais espaço, ou se há-de ficar triste por já não ter ninguém com quem atirar pedras e contar estrelas à noite; os dois alfaiates; o amável dono da casa de chá, que matuta se não teria sido melhor a filha do seu amigo ser a sua terceira mulher em vez de pertencer agora a este talibã; os donos dos campos de papoilas; o chefe da aldeia; o mullah e os outros talibãs. Atrás deles vão Shirin-Gol, Azadine, a primeira e a segunda mulher do amável dono da casa de chá, as quatro mulheres dos dois alfaiates, a mulher do chefe e todas as outras mulheres cujos maridos lhes deram autorização para vir ao casamento. Em lugar de se dirigir ao portão azul-claro com as feridas, o jovem talibã vira o cavalo para a ruela da direita e sussurra ao ouvido de Nur-Aftab: - Construí uma casinha só para nós. Não é tão bonita como aquela onde vivi até hoje com os meus irmãos de fé, mas aqui podemos ficar sozinhos, sem ninguém nos incomodar. Nur-Aftab está tão trémula, tão excitada e com o coração a bater-lhe tanto dentro do peito que mal ouve as palavras do jovem talibã. O noivo salta do cavalo, guia-o até à porta do novo casebre, ajuda a desmontar a sua noiva, que lhe cai nos braços como uma nuvenzinha colorida, acompanha-a ao casebre, pega nos presentes que Morad lhe estende, entra, fecha a porta e pára a olhar a nuvem colorida que esconde Nur 136 137 -Aftab. Devagar e sem tirar os olhos da noiva, pousa os presentes no chão. Depois, aproximando-se, tira-lhe os véus lustrosos e brilhantes da cabeça e do rosto, como se descascasse uma cebola. A cada véu que ele lhe tira, Nur-Aftab vê mais claramente o rosto do jovem talibã e sente-lhe melhor a respiração, o calor da pele e os dedos delicados tocando-lhe a face. Olham-se pela primeira vez nos olhos, sem receio, sem medo e sem proibições. Nur-Aftab está pela primeira vez sozinha com um homem, sem a mãe, o pai ou os irmãos. Vai dormir pela primeira vez sem Shirin-Gol, Morad, Nasser, Nafass e o pequeno Nabi.

Não tenhas medo - sussurra o jovem talibã, beijando-a ao de leve nos olhos de noiva pintados de verde e azul.

Não tenho - responde Nur-Aftab num tom de voz terno e quen_ te, firme e cheio de amor. UM NOVO PAÍS E UM CORAÇÃO DE PAPEL

- Tenho medo - diz Morad. - Tenho medo da viagem, medo da fronteira, dos Iranianos, medo do país e da sua gente. - Desta vez não podes ter medo - diz Shirin-Gol -, porque desta vez

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quem tem medo sou eu. Tenho medo de tudo o que te faz medo a ti. Mas tenho ainda mais medo de ficar aqui. Tenho medo de gastar o dinheiro todo que o jovem talibã nos deu pela nossa filha, de ficarmos sem nada para viver e de não termos mais ninguém que nos ajude. Shirin-Gol observa o seu Morad e lembra-se da primeira vez que ele lhe apareceu à frente. Dantes, quando ainda tinha sapatos, sapatos de plástico preto com atacadores, dantes, quando ainda andava na escola, dantes, quando ralhava com os irmãos gémeos para se despacharem. Dantes. Dantes, quando se baixara para apertar os sapatos e o sangue lhe subira à cabeça ao lembrar-se do lago, do jovem, dos olhares e das sensações proibidas, da emoção desconhecida. Dantes, quando se sentira envergonhada, tivera remorsos e esperara que a mãe não reparasse. Dantes, quando levantara o rosto afogueado e vira um homem parecido com os que tinham ficado nas montanhas lutando por... por quê? Fora coisa de que dantes Shirin-Gol nunca mais se lembrara. - Dissemos que só dávamos a nossa filha ao talibã porque queríamos ir para o Irão. Vamos tentar, Morad. Morad cala-se. Shirin-Gol suspira e diz: - \ Vamos tentar. Logo se verá. Morad alisa a barba decretada pelos talibãs, suspira e diz: -Está bem. Vamos tentar e logo se verá. Shirin-Gol junta as coisas que podem transportar com eles e leva o resto à filha, Nur-Aftab. Shirin-Gol, Morad, Nasser, Nafass e Nabi despedem-se de Nur-Aftab e do seu jovem marido, do amável dono da casa de chá, de Azadine, do 139 mullah, do chefe e de todas as outras mulheres, crianças e homens da aldeia com quem travaram amizade, percorrem a rua até à entrada e saída da aldeia, onde estariam os pés do homem, se as pessoas fossem pássaros e pudessem ver a aldeia de cima, e onde os talibãs estenderam uma corda, sentaram o antigo mecânico e o antigo alfaiate de mulheres, metendo-lhes uma Kaiachnikov e um aparelho de rádio nas mãos, ordenando-lhes que não deixassem ninguém entrar ou sair da aldeia, a não ser que tivessem autorização. - Onde vão? - pergunta o antigo alfaiate de mulheres, cofiando amorosamente a barba, tão comprida que lhe chega à barriga. Ao ver o antigo alfaiate de mulheres, Nasser leva a mão à boca e solta uma risadinha. Desde que a irmã casou e já não a tem ao lado todos os dias, horas e segundos, Nasser habituou-se a rir com a mão na boca, como ela. A enfiar a cabeça entre os ombros, como ela. A não andar agarrado às saias da mãe ou às calças do pai, como ela. Como a sua querida e saudosa irmã, Nasser habituou-se a baixar o olhar para o chão. Como se assim pudesse evitar que ela desaparecesse completamente da sua vida. - O Nasser tem o riso da Nur-Aftab - diz Shirin-Gol, engolindo as lágrimas, afagando amorosamente a cabeça do rapaz e beijando-o. - O Nasser é a Nur-Aftab - diz o pequeno Nabi. - Quero a minha irmã - declara. Uma irmã que de repente desapareceu da sua vida. Nasser perdeu a irmã. Nasser faz coisas que eram tarefas de Nur-Aftab. Nasser lava o rahinho do pequeno Nabi, quando este chega do buraquinho atrás do campo com as calças desapertadas. - O Nasser transformou-se na Nur-Aftab - grita o pequeno Nabi. Escondido agora ao pé-coxinho atrás do pai, Nasser solta risadinhas com a mão na boca e, se bem que olhe para o chão, por outro lado também espreita o antigo alfaiate das mulheres, que cofia amorosamente sua barba. - De que estás a rir? - pergunta o homem, continuando a afagar a barba. O seu eterno cofiar e a simpatia com que faz a pergunta provocam ainda mais risadinhas em Nasser que, apontando com o dedo para a barba do antigo alfaiate das mulheres, explica: - Os talibãs dizem que se deve fechar a mão sobre a barba, e ela ser tão comprida que ainda apareça pelo outro lado, mas a tua é quatro vezes maior. O homem acena com a ponta da barba como se fosse um lenç uma bandeira e diz: - O melhor é jogar pelo seguro. - Depois, abraça Morad: - Vais fazer-nos falta, irmão. Para onde vão? 140 - Para onde os caminhos de Deus nos levarem - responde Morad,afagando o gorro

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assente na cabeça rapada e brilhante de Nasser. - Para onde os homens não usam barba? - pergunta o antigo alfaiate das mulheres. - E para onde as mulheres podem andar sem véu, mexer-se livremente e trabalhar - responde o véu de Shirin-Gol, sorrindo. Um sorriso que ninguém pode ver. O antigo alfaiate das mulheres baixa a corda que barra o caminho, abraça Morad uma segunda vez e diz: - Que Deus vos acompanhe. Quando encontrarem esse lugar onde os homens não são obrigados a usar barba e as mulheres podem trabalhar e não têm de esconder a cara, não se esqueçam de nós. Rezem para que também encontremos o caminho. - Que Deus vos dê uma vida longa e com saúde - diz Morad, abraçando igualmente o antigo mecânico de rádios.

Shirin-Gol, as crianças e Morad já estão há horas a caminho, quando Morad mete a mão no bolso e os seus dedos sentem qualquer coisa que um dos homens aí deve ter metido às escondidas. É um bocado de ópio. Shirin-Gol e ele matutam sobre qual dos homens seria: o seu genro, o jovem talibã, o amável dono da casa de chá, o antigo alfaiate das mulheres ou o antigo mecânico de rádios? - Fosse quem fosse, que Deus o proteja a ele e à sua família - diz Shirin-Gol. - O dinheiro que vai render-nos pagar-nos-á o pão e o chá até à fronteira. - Leva-o tu. O meu bolso não é seguro. Pode ter algum buraco ou poderei deixá-lo cair sem dar por isso - diz Morad. Nada nesta fuga é diferente de todas as outras vezes em que Shirin-Gol fugiu de algures para outro algures. O sol queima durante o dia, de noite o frio é de rachar, as crianças resmungam, passam a vida a perguntar onde vamos, quando chegamos e porque não ficámos no nosso quarto, até que por fim desistem, não fazem mais perguntas, calam-se e continuam simplesmente a andar. Shirin-Gol já não sabe há quantos dias e noites caminham, arrastando os seus haveres e as crianças. Shirin-Gol já não sabe quantas vezes mentiu ao ser interrogada nas barreiras dos talibãs. Não, para o Irão não, para a montanha ter com a minha família, não, não sei ler nem escrever, não, nunca trabalhei, não, não, não, sim, sim, sim. Shirin-Gol já não sabe porque foge, para onde foge, de onde veio ou para onde vai. Esqueceu, varreu-se-lhe. Para trás? Para onde? O vento apagou as pegadas, o sol queimou e extinguiu a memória, e as noites frias transformaram a vontade em gelo, que o sol do dia derreteu e dissipou. Perdidos. 140 141 Em frente? Para onde? Porquê? Tanto faz. Um pé descalço à frente do outro. O caminho tinha fome, como os filhos, e comeu os sapatos. Morad recuperou o ópio e fumou-o. As crianças perderam a esperança, a vontad e o brilho dos olhos. Em frente. Um pé descalço à frente do outro.

Mashad, a primeira cidade do Irão, está cheia. Cheia de irmãs e irmãos afcgãos, que chegam e que partem. Cheia de fome, desemprego, luto. Milhares, milhões de afegãos. Longa vida ao Irão! -Isto não é sítio bom para nós diz Shirin-Gol.- Vamos continuar e logo se verá. -Vamos continuar e logo se verá - concorda Morad. Mais dias, mais caminhos, casas bonitas, nenhuma guerra, estradas a sério, asfalto, nenhuns escombros, letreiros, carros, nenhumas minas, autocarros, camiões, comerciantes, lojas, pessoas sem farrapos no corpo e com sapatos, pessoas com carne e gordura nos ossos e vida nos olhos, mulheres com olhos, nariz, boca e pele, mulheres sem véus no rosto, um mundo novo, uma nova esperança, uma vida nova... mais uma.

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Isfahan é um bom lugar. Calor, paz, um casebre vazio, vizinhos simpáticos que dão as coisas velhas dos filhos e até dispensam algumas a Shirin-Gol e a Morad. Um amável vendedor de gelados que, em sinal de boas-vindas, oferece às crianças gelados vermelhos, verdes, amarelos, aguados e pegajosos, aos quais, ao princípio, não sabem que fazer, limitando-se a ficar com eles nas mãos e deixando-os pingar para o chão e por cima das roupas que lhes deram. Pessoas que oferecem trabalho, pessoas que dão restos de comida e até dinheiro. Uma grande e majestosa mesquita azul num grande jardim bonito e majestoso, muitos palácios e jardins antigos, antiquíssimos, luxuosos e sumptuosos, o bazar coberto e magnífico, trabalho, escolas, alunos, alunas, professoras, mulheres nas ruas, nas lojas, no bazar, por todo o lado. U casebre vazio não é grande nem pequeno. Pertence a um afegão que regressa à pátria. Deixa lá os colchões, os cobertores e as almofadas, nem por muito nem por pouco dinheiro. A renda não é uma ninharia, mas também não é alta. Shirin-Gol tem sorte. Pode ir limpar as casas dos iranianos ricos, que gostam dela porque a afegã é limpa, séria e atenciosa, porque mostra uns dentes parecidos com pérolas quando sorri, porque tem os olhos muito pretos cheios de bondade e porque é cheia de amor que pega ao colo as crianças que não são suas, consolando-as com voz doce. Porque parecia um anjo enviado por Deus. Mulher-anjo que Deus enviou do Afeganistão. Nasser vende gelados amarelos, verdes e vermelhos para o amável vendedor de gelados, e Morad trabalha na construção civil, mas só pode fazer trabalhos leves porque teve o acidente com o frigorífico. As crianças vão à escola e até Morad aprende a ler e a escrever. Shirin-Gol sonha voltar a trabalhar para uma médica, entretanto, limpa, lava roupa, toma conta dos filhos dos outros, cose os vestidos e as calças dos iranianos, aceita todos os trabalhos que lhe dêem dinheiro, volta a ficar grávida e dá aos próximos dois filhos os nomes de Navid e Nassim. Shirin-Gol tece um tapete, cozinha, varre, limpa, lava, vai comprar legumes sem véu a tapar-lhe o rosto, só com um lenço que lhe esconde o cabelo, vai comprar arroz, vai ao padeiro, senta-se no beco à frente da porta do seu casebre, conversa com as outras mulheres e agradece a Deus a sua nova vida, que não é fácil, mas que é cem vezes melhor do que na pátria. E pensa: "Desta vez vai correr tudo bem. Agora é que vai ser. Deus é bondoso e misericordioso." Todos os dias Morad traz para casa um sorriso, beija os filhos, ri para a mulher e às vezes faz-lhe uma pequena carícia ou dá-lhe um pequeno abraço, se as crianças não estiverem por perto até um beijo, um grande abraço e um grande sorriso, que só lhe pertence a ela. Morad já não treme, já não tem medo, recupera o orgulho e a dignidade, reencontra o homem dentro de si. À noite, dorme no casebre ao lado da sua Shirin-Gol e dos filhos, brinca com eles, lança-os ao ar, fá-los girar, molda-lhes uma bola com jornais velhos, atira-a e apanha-a, põe as crianças a rir. À sexta-feira, vai à mesquita com Nasser e Nahi, reza e agradece a Deus tudo o que Ele lhe deu, os filhos e a sua Shirin-Gol. Depois da mesquita, Shirin-Gol, as crianças e MMorad levam a bola de jornal e uma manta para junto do rio, estendem-na, dormitam, brincam, comem, deixam-se ficar simplesmente deitados a contemplar o céu azul iraniano e tornam a agradecer ao seu Deus. - Matriculei-me - anuncia Morad. - Matriculaste-te? - pergunta Shirin-Gol, sorrindo e mostrando os dentes bonitos, fortes e brancos, que reluzem como pérolas. - Matriculei-me responde Morad, sorrindo e mostrando os dentes já não tão bonitos, já não tão fortes, os quais o ópio acastanhou e amareleceu. - Matriculei-me no curso de alfabetização. Vou aprender a ler e a escrever, pode ser que arranje um emprego decente para não ter de me matar a trabalhar como um... um

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quê? Como um burro - remata Nlotad, rindo que nem um perdido e limpando dos olhos as lágrimas de riso. Lágrimas de riso que Shirin-Gol e Morad têm frequentemente nos Olhos no Irão, ao princípio. Ao princípio, quando tudo e todos no Irão são bons para Shirin-Gol e a família. 142 143 Um dia, Nasser chega a casa e diz: - O amável vendedor de gelados não quer vender mais gelados. Vai remodelar o carrinho dos gelados, transformar a caixa dos gelados numa arrecadação, arrancar as fotografias dos gelados e vender brinquedos. Quer que eu o ajude no seu novo negócio e vai pagar-me mais. Ao princípio, Shirin-Gol fica contente pelo filho e pelo dinheiro a mais, mas depois começa a andar preocupada. Nasser tem uns 12 ou 14 anos, já não é meio criança e sim meio homem. A partir de agora, esteja calor ou um frio de rachar, percorre centenas de quilómetros no país desconhecido, viajando de Isfahan, no Sul, até aos portos do golfo Pérsico e Bandar-Ahhas, onde compra brinquedos que chegam em contentores da Europa, EUA, países árabes, China e por aí fora. Na verdade, destinam-se às lojas e aos armazéns, mas é frequente um ou outro caixote cair durante o descarregamento dos navios, muitas vezes até na água. Às vezes, os estivadores que descarregam os navios roubam as mercadorias e vendem-nas. Outras vezes, é o dono da mercadoria que a vende directamente no porto, para não ter de pagar taxas alfandegárias. Seja como for, Nasser compra brinquedos baratos e transporta-os, sabe-se lá como, para Isfahan, onde são vendidos pelo antigo e amável vendedor de gelados, que agora é ainda mais amável, mas que em vez de gelados vende brinquedos. Nasser não é como os outros rapazes e homens, que chegam ao porto, escolhem um caixote disto e outro daquilo, pagam e desaparecem com a mercadoria. Nasser faz as coisas com calma. Ajoelha-se à frente da mercadoria, tira cuidadosamente do caixote os artigos embrulhados em papel transparente, abre-os devagarinho com dois dedos para não estragar o papel e poder usá-lo de novo, examina o brinquedo com muito amor e atenção, vira-o e revira-o, observa-o à luz e toma-lhe o peso. Experimenta e estuda cada boneca, cada carrinho, cada bola e cada brinquedo colorido com o qual nunca brincou na vida. Fecha os olhos, apalpa os carrinhos como um cego, acaricia as janelas e as portas pequeninas, aperta as bonecas, tacteia o tecido das suas roupas e cheira-lhes o cabelo, abana as bolas e segura-as junto ao ouvido, escuta o som produzido pelos pequenos tambores coloridos de latão, experimentando cada peça antes de tirar o dinheiro do bolso, pagar e transportar os brinquedos para Isfthan. O antigo vendedor de gelados e actual vendedor de brinquedos decora amorosamente o antigo carrinho de gelados, que agora é um carrinho de brinquedos, pendurando-lhe em cima e dos lados bonecas, miniaturas de automóveis, balões, figurinhas, animais, colares e pulseiras de plástico. Ele e Nasser apregoam as suas mercadorias à vez, para atrair as crianças e os pais das crianças. - Brinquedos novos e bonitos! 144 - Únicos em todo o Irão ! -Isfahan é meio mundo e os nossos brinquedos, vëm de todo o mundo ! -Brinquedos novos e bonitos! Ao acentuarem muito o i e o é de brinquedos, parece que vão cantar. Uma canção que lembra uma melodia trauteada por Shirin-Gol à noite para que os pequenos irmãos, e quem mais a ouça, durmam em paz e não tenham maus sonhos.

Uma vez, o irmão mais velho traz à sua irmã paquistanesa uma boneca duas vezes maior do que as suas mãos, com uma pele branca e limpa, belíssimos olhos azuis, cabelo como ouro e um vestido cor-de-rosa tão curtinho que se lhe vêem as calcinhas e as pernas nuas. Nafass fita a boneca e diz baixinho: - Para mim' - Apertando o plástico contra o peito, fecha os olhos, cheira o cabelo perfumado, espreita por baixo do vestido curto, engole em seco e exclama: -

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Precisa de um tonban, para não se envergonhar por ter as pernas nuas e toda a gente poder ver! Nafass não quer nem pode acreditar que haja no mundo mulheres de cabelo dourado que mostram o corpo nu. Shirin-Gol ri-se com o espanto e a indignação da filha, pega na boneca branca com as calcinhas cor-de-rosa e diz: -Está bem, vamos fazer-lhe um tonban. Shirin-Gol afaga amorosamente o cabelo sedoso do filho que já não é meio rapaz e sim meio homem, pega-lhe no braço, embora ele se defenda, porque afinal já não é nenhuma criança, puxa-o para o chão, onde está agachada, abraça-o e diz: - És um verdadeiro Nasser, um companheiro, um amigo para a tua irmã e a tua mãe. Há... há quanto tempo: Shirin-Gol já não sabe. Seja como for, numa altura ou noutra, Shirin-Gol teve a certeza de que o seu Nasser acabaria a escola, continuaria a estudar, aprenderia uma profissão, seria engenheiro, médico ou uma coisa assim importante, ganharia dinheiro, constituiria família e seria mais feliz do que ela e Morad. Nasser gosta de escrever, fazer contas, ler, por perguntas, procurar respostas. Gosta de ser o primeiro de todos os rapazes, até dos rapazes persas, a responder, recebendo a melhor nota, um vinte, por ter acertado. Com o peito inchado de orgulho e um sorriso de orelha a orelha, Nasser volta a sentar-se, esperando a próxima pergunta como um gato espreita um rato: "Eu, eu, eu, senhor professor." O professor sorri, aponta o dedo para ele, Nasser prepara-se, engole em seco, lançando a cabeça para a frente, responde à pergunta e os seus olhos brilham. 144 145 Uma manhã, quando, como todos os dias, Nasser é o primeiro a che_ gar à escola com a fralda da camisa, oferecida e velha mas muito asseada, impecavelmente metida nas calças, oferecidas, velhas e usadas mas passadas a ferro, o professor vai ter com ele, pigarreia, não o olha de frente, procura as palavras, fala depressa e de uma vez só, gira nos calcanhares e afasta-se. - Nasser - diz o professor , meu querido e bom aluno, tenho ordens para não deixar entrar mais nenhum rapaz afegão na aula. Khalass e tamam. Assim mesmo. Nasser fica muito tempo parado, envergando a camisa branca e as calças velhas e passadas a ferro, com o caderno e o livro na mão. Não consegue mexer-se nem sequer mover a cabeça, virá-la, levantá-la, baixá-la ou atirá-la para a frente de modo a engolir em seco. Tem a cabeça exactamente no sítio onde estava, quando o senhor professor parou à sua frente sem o olhar e falou depressa e de uma vez só. Tem as pernas, os braços, o pescoço, o estómago, a cabeça, as mãos, os pés e as costas hirtos e rígidos, tensos e mortos como os pilares de lama que o pai e os outros homens da aldeia da montanha construíram para os telheiros. Nasser só consegue mexer os olhos e observar os outros rapazes que passam por ele, um a seguir ao outro, encaminhando-se para a sala de aulas. Espreita para a sala através da janela. Vê os rapazes a sentarem-se. Vê o professor abrindo o livro, lendo, levantando a cabeça e mexendo a boca, sem que nenhum dos alunos se ofereça para lhe responder. Vê um dos rapazes olhando para o pátio onde Nasser está pregado, a seguir um segundo e depois a turma inteira. Vê o professor olhando e fazendo-lhe sinal para se ir embora, aproximando-se da janela, abrindo-a e dizendo: - Vai para casa. Não vale a pena. À noite, vendo que Nasser não chega a casa, Shirin-Gol aperta o lenço na cabeça, pergunta aos vizinhos, ao padeiro, ao vendedor de gelados, mas ninguém viu Nasser. Por fim, Shirin-Gol vai à escola e encontra o filho. Está parado, envergando a camisa branca e as calças passadas a ferro, com o caderno e o livro na mão, e não ouve a mãe chamá-lo. Shirin-Gol passa-lhe o braço pelos ombros, toma-lhe o rosto nas mãos, observa-o cheia de amor, cinge-lhe o corpo magro que lhe provoca a mesma sensação de antigamente, quando Nasser tinha metade do tamanho que tem hoje, afaga-lhe as costas rígidas e tensas, massaja-lhe os braços, embala-o e canta-lhe como se quisesse adormecê-lo, até que Nasser estremece de repente, parecendo despertar de um sono muito,

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muito profundo. - O que aconteceu, meu querido, meu filho crescido? O que te fizeram? - pergunta Shirin-Gol, sem saber porque lhe tremem as palavras. Nasser observa a mãe com os seus bonitos olhos escuros, atira a cabeça para a frente, engole a saliva que tem na boca desde a manhã e diz: -- Nada. - Nada? - Nada. _-- Isso é bom diz Shirin-Gol, tirando o caderno e o livro da mão rígida do filho, passando-lhe o braço pelos ombros e levando-o para casa. Nasser percorre todo o caminho calado. Nada. O caminho todo, a noite, o dia seguinte e o outro e a semana inteira. Calado debaixo do cobertor, não vë nada, não ouve nada, mal come, mal bebe. Está mudo. Mudo. Nada. Quando volta a levantar-se e a correr, quando volta a sentar-se e a sorrir, se os irmãos mais novos se precipitam para ele e o atiram ao chão, quando volta a comer e a beber, Shirin-Gol pousa a mão robusta nas costas de Nasser, como o fez muitas vezes ao dia desde que o filho se transformou em pedra, e diz: - Fala-me do Nada. Desabafa para que a tua alma fique mais leve. Agachado no chão, ao lado da mãe, com a cabeça pousada de lado nos joelhos, Nasser olha para ela, procura as palavras e abre a boca, mas não consegue pronunciá-las. Sem parar de acariciar as costas de Nasser, Shirin-Gol observa-o, sorri, beija-o e examina-o outra vez. Nasser torna a abrir a boca. Por fim, os sons saltam-lhe à garganta. Como se não tivesse estado mudo toda a semana, como se não tivesse estado doente toda a semana, como se tudo sempre tivesse continuado igual ao que sempre fora, como se não tivesse havido o grande Nada, o rapaz engole em seco e diz: - Não sou afegão. - E repete: Não sou afegão. Ao princípio, quando Shirin-Gol chegou ao Irão, o país acolhia bem os afegãos. Muito bem. Tão bem que não existia nenhum Nada grande e mudo. Ao princípio, quando Shirin-Gol chegou ao Irão, os seus filhos podiam ir à escola sem pagar nada. Agora, os afegãos precisam de autorização para tudo. Autorização para estudar, autorização para frequentar a universidade, autorização para comprar, autorização para investigar, autorização médica, autorização para viajar, autorização para exportar, autorização para trabalhar, autorização hospitalar, autorização para autorizar. Autorizações que só se conseguem quando se entrou legalmente no país e se está na posse de documentos legais que o confirmem. - Não sei o que hei-de fazer diz Shirin-Gol ao funcionário iraniano a quem vai pedir uma autorização médica. O que é emigração legal? Para isso preciso de documentos. E onde vou arranjá-los? Vou ter 147 com os Russos, com os mujaedines, com os talibãs ou lá com quem estiver agora no Poder no meu país, com aqueles que nos transformam a vida num inferno, e digo-lhes: "Vocês fazem-me sofrer tanto que quero fugir para o Irão e, por isso, queiram ter a bondade de me dar os meus papéis Nós nem sequer tínhamos sapatos nos pés quando chegámos ao Irão! O funcionário iraniano observa Shirin-Gol, olha para os outros afegãos que estão em fila atrás dela e que também querem uma autorização para isto ou aquilo, baixa a cabeça, carimba a folha húmida e mole de tanto lhe pegarem e murmura: - Ainda perco o emprego por vossa causa. - Que Deus te proteja e permita que tenhas sempre um bom trabalho com o qual possas alimentar-te e aos teus filhos e que te dê uma vida longa. - Está bem, está bem. Que Deus também te proteja e aos teus filhos - responde o homem, fazendo sinal ao próximo afegão para se aproximar da mesa. Shirin-Gol sai toda contente para a rua, puxa o lenço que está sempre a escorregar, dá a mão aos filhos, espera que o trãnsito da rua de quatro faixas, que ainda lhe faz medo, abrande um pouco, corre para o outro lado, pára um momento a endireitar novamente o lenço de cabeça e sente, de repente, uma dor aguda nas costas, como se alguém lhe tivesse espetado uma espada entre a omoplata e a coluna. Num primeiro momento, a dor entorpece-lhe os sentidos. Depois, sem conseguir conter as lágrimas, cerra os dentes, cai de joelhos, vira-se e vê quatro rapazes parados um pouco mais à

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frente. Um deles tem uma fisga na mão. Todos os quatro a fitam assustados e de olhos esbugalhados, como se lhes tivesse aparecido o décimo terceiro profeta. Nasser não percebe imediatamente o que se passa com a mãe. Só quando a vê no chão do passeio, olhando para os quatro rapazes com a mão nas costas, compreende que eles lhe atiraram uma pedra com a fisga. Os olhos de Nasser enchem-se de sangue. Precipita-se para os jovens, vai de encontro a dois deles, bate à esquerda e à direita, acerta no terceiro e no quarto e engalfinha-se com os outros dois. Os rapazes recompõem-se rapidamente e põem-se a andar em menos tempo do que o necessário para dizer quatro bismi-allah. Nasser está cheio de nódoas negras, tem o nariz a sangrar e o rosto, as mãos e os braços esgadanhados. Shirin-Gol abraça o seu filho meio homem, consola-o, limpa-lhe o sangue e as lágrimas da face, estanca-lhe o sangue do nariz e tenta acalmar os outros filhos, que, entretanto, começaram todos a chorar. Juntam-se pessoas que lhe dão lenços de papel macio e dinheiro, consolando-a. Uma mulher oferece-se para a levar a casa de carro. Chega um polícia, que pede a direcção a Shirin-Gol e lhe diz para descrever os rapazes. Todos falam ao mesmo tempo, mas cada um tem a sua opinião. Umas pessoas dizem que provavelmente são apenas rapazolas, que os pais mandam de manhã para a rua e que passam o dia inteiro entregues a si próprios. É evidente que, se ninguém lhes dá atenção, acabam por parecer animais sem nada na cabeça. Uma outra mulher aperta o nó do lenço e diz: - Mas desculpe, querida irmã, em que mundo vive? Antes de continuar a falar, olhe em volta. Claro que as crianças do nosso país vivem na rua, entregues a si próprias. Afinal de contas, os pais e as mães têm de trabalhar de sol a sol para, à noite, poderem dar um pedaço de pão seco aos filhos. Um homem comenta: - Sabe-se lá o que os Afegãos fizeram aos miúdos que, se calhar, só queriam vingar-se! Uma mulher, que até agora esteve calada, fala em voz tão baixa que os outros calam-se para perceber o que ela diz: - Provavelmente, a mulher e os filhos não fizeram nada a ninguém. Provavelmente, estavam só à mão. Mas seja como for, é indiferente que a mulher e os filhos tenham feito alguma coisa ou não. São hóspedes no nosso país, e não é atirando pedras nem com actos de vingança que se resolvem os problemas. As pessoas calam-se. Depois, como se alguém lhes tivesse dado o sinal, recomeçam a falar todas ao mesmo tempo. Shirin-Gol agradece à mulher do automóvel, à dos lenços de papel macio e à que disse que Shirin-Gol é hóspede no seu país e que não é a atirar pedras que se resolvem os problemas. Depois, dá a mão aos filhos e encaminha-se para casa em vez de ir ao médico. Toca constantemente no sítio das costas onde foi atingida com a pedra e constantemente afaga com amor os arranhões e as feridas de Nasser, dizendo: - Agora pareces um mujaedine que acaba de chegar da frente. - Nunca irei para a guerra - afirma Nasser. - A guerra é para os parvos. Só quem não sabe ler nem escrever e não percebe nada de nada acredita que a guerra lhe resolve os problemas. - Criança inteligente, meu rapazinho inteligente - diz Shirin-Gol, continuando a afagar-lhe a cabeça e as costas, a puxá-lo para si e a beijá-lo. Quando Morad chega a casa e vê o rosto ferido do filho, empalidece, fica branco, os joelhos dobram-se-lhe e tem de se agachar imediatamente para não tombar de lado como um saco de batatas que já não está cheio e que, portanto, não se aguenta sozinho. Morad fica agachado com o rosto branco e os joelhos a tremer, olhando o seu rapaz sem dizer nada. 148 149 Shirin-Gol e Nasser contam-lhe o que aconteceu. Não se queixam nem se lamentam. Parece que não falam de uma coisa que viveram e que lhes fez mal, mas sim de um episódio que viram por acaso, de passagem. - Então uma mulher deu-me um lenço de papel macio e molhou-o com água da sua garrafa, para eu poder limpar as feridas do Nasser e estancar-lhe o sangue do nariz conta Shirin-Gol. - A mulher também me meteu um lenço de papel macio na mão, mas eu não quis

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sujá-lo diz Nasser. Prefiro guardá-lo. Meti-o no bolso das calças - continua o rapaz, dando palmadinhas no bolso das calças e olhando para o pai, como que à espera que este o elogie pelo seu heroísmo por não ter sujado o precioso lenço de papel. Mas como o pai permanece calado, Nasser explica: - Ainda posso vir a precisar absolutamente dele. Nessa altura, vou ficar contente por ainda o ter. Nasser conserva o lenço de papel macio durante muito tempo. Passa a vida a tirá-lo do bolso, a dobrá-lo e a desdobrá-lo, a tapar o rosto com ele e a deixá-lo cair para o chão como uma nuvem. Nenhum dos irmãos mais novos tem autorização, sequer, para tocar no lenço de papel macio, quanto mais brincar com ele! Desde que as vizinhas iranianas souberam que Shirin-Gol levou com uma pedra e que o seu filho mais velho foi espancado pelos rapazes que lhe acertaram com uma Fisga, levam-lhe ainda mais vestidos, calças e sapatos usados, de que já não precisam, e até alimentos. Uma das mulheres leva-lhe um envelope, dizendo que o marido lhe deu dinheiro para Morad reparar o buraco do telhado, substituir as vidraças partidas e preparar o casebre para o Inverno. Até o padeiro tem pena de Shirin-Gol e, sobretudo, de Nasser, que durante muito tempo parece ter vindo da guerra. Enquanto as feridas do rapaz não saram, oferece-lhe todos os dias um pão quente saído do forno. - É para ti diz-lhe. - Cozido especialmente para ti. Estás a ver este N ? Escrevi-o eu na massa. Nasser adora os pães quentes saídos do forno, com o N em cima e começa a achar que, afinal, não é assim tão mau ser espancado, pois, desde então, o seu mundo é muito melhor do que antes. Já não precisa de correr quando tem de ir aqui ou ali ou fazer compras ou trabalhar e toda a gente tem pena, gestos simpáticos, palavras simpáticas, um presente, um pão quente com um N. Às vezes, deita-se no colchão, aninha-se numa bola e fica simplesmente a olhar o vazio ou dorme uma soneca. A mãe leva-lhe chá, acaricia-o e amima-o. Toda a gente é amável com ele. Tudo é sereno. Macio-como-um-lenço-de-papel. Tudo é tranquilo e abençoado. Parece dantes, quando era pequenino e tudo era diferente e muito melhor. Dantes. Mas, por fim, as feridas saram. Nasser volta a correr e a apressar-se 150 quando quer ir aqui ou ali, trabalhar ou fazer compras, tem de voltar a ser um rapaz crescido e sensato, já não lhe oferecem pão quente, com um N, acabado de sair do forno, e deixa de receber olhares de simpatia dos vizinhos ou mãos carinhosas na cabeça e nos ombros. Já ninguém lhe dá nada. O mundo de Nasser volta a ser como era antes do que se passou com os rapazes da fisga, o espancamento injusto e cobarde. Pelo menos, é o que pensa ao princípio. Nasser pensa que o seu mundo voltou a ser o mesmo dantes. Mas bem vistas as coisas, repara... e não é só ele, pois os irmãos, Morad e Shirin-Gol também reparam, que já nada é como era, que tudo é diferente. Shirin-Gol sabe que isso não tem nada a ver nem com pedras, nem com fisgas, nem com bandos de rapazes que os pais mandam de manhã para a rua e que não têm nada que fazer e, portanto, metem-se com as outras pessoas e atiram pedras, nem com o facto de os quatro rapazes terem espancado Nasser. Shirin-Gol sabe que tudo isto não tem nada a ver com o resto. Já nada é como era. Tudo é diferente. Os Iranianos já não são tão calorosos. Tão bondosos. Tão amáveis. Ao princípio, quando Shirin-Gol, os filhos e Morad chegaram ao Irão, os donos das lojas pediam o mesmo dinheiro tanto aos afegãos como aos iranianos. Entretanto, os afegãos passaram a pagar três ou quatro vezes mais. Ao princípio, quando iam ao padeiro, todos os que estavam na fila compravam o seu pão, fossem afegãos ou iranianos. Entretanto, os donos de muitas lojas passaram a não vender aos afegãos que estão na fila, dizendo: "O nosso pão é subsidiado pelo Estado. Como vocês não são Iranianos, não tem direito ao nosso pão." Ao princípio, os afegãos não eram culpados por todos os roubos. Ao princípio, nenhum iraniano insultava ou ofendia nenhum afegão. Mais tarde, os

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Iranianos habituaram-se a dizer palavrões e os afegãos a ouvi-los. Em breve, tudo está como se nunca tivesse sido diferente e sempre tivesse sido assim. Em breve, é como se os afegãos sempre tivessem sido ultrajados e insultados no Irão. As vizinhas de Shirin-Gol não se mostram tão prontas a ajudar e solidárias como ao princípio. Já não há visitas, nem calças e vestidos usados. Shirin-Gol já não vai tantas vezes à rua. As crianças já não têm tanta vontade de brincar no beco, em frente do casebre. Morad não arranja tra balho. É impossível fazer seja o que for com um aleijado", dizem os construtores. Entretanto, Nasser fala tão bem o dialecto de Isfahan que as pessoas acreditam nele quando diz: <Sou iraniano." Compram-lhe tudo e pagam sem resmungar. Nasser põe-se à sua frente com o corte de cabelo persa as calças e a túnica persas oferecidas e passadas a ferro, observa-as com o olhos felizes-tristes parecidos com dois carvões e diz: 150 151 - O meu pai morreu e a minha mãe é velha, doente, já não vive muito tempo. Compre este brinquedo tão bonito e ajude um pobre com_ patriota a não morrer de fome. O antigo vendedor de gelados e actual vendedor de brinquedos, co_ menta: - Deus não deve ver com bons olhos que renegues a tua pátria, o teu pai e a tua mãe. Nasser faz que sim com a cabeça, não protesta e responde: - É melhor assim. Em voz baixa, de cabeça inclinada, sem olhar o amável vendedor de brinquedos, murmura: - É melhor assim. Ao princípio, quando chegaram ao Irão, Morad estava todos os dias na rua trabalhando ou procurando trabalho. Entretanto, queixa-se cada vez mais de dores que, afirma, têm a ver com as sequelas provocadas pelo acidente com o frigorífico. - Não posso trabalhar", diz. Passa os dias e as noites deitado a tossir, a gemer, a dormir e raramente sai de casa. -já não vais ganhar dinheiro? - pergunta Nafass. -Estou doente - responde Morad. - Quando estiver bom, vou outra vez ganhar dinheiro. -Porque é que estás doente? pergunta-lhe a filha. Morad pensa e diz:

Porque tive um acidente.

Que acidente?

Um muito grave. - Grave? - Muito grave. - Conta, conta pede Nafass, que ainda não tinha nascido quando o pai sofreu o acidente cone o frigorífico. - Conta - pede Nasser, que era muito pequeno e já não se lembra de ver o pai sentado a um canto do campo de refugiados paquistanês, sem ver nem ouvir ninguém. - Conta - pede Nabi, que ainda não tinha nascido. - Conta - pede até o pequeno Navid, que nasceu no Irão e não sabe onde é o Paquistão, o que são contrabandistas, um caminho estreito ou um frigorífico, nem percebe porque é que os homens atam frigoríficos às costas e rolam com eles pela montanha abaixo. As crianças sentam-se, de olhos esbugalhados, à frente do pai e escutam atemorizadas o relato do terrível acontecimento responsável por o pai já não sair do casebre, não poder trabalhar, não ganhar dinheiro e não trazer comida para casa. E porque é que tudo é diferente do princípio, quando vieram para o Irão. Fixam cada palavra, cada gesto, para não se esquecerem de nada, quando amanhã e nos dias seguintes explicarem vezes sem conta, uns aos outros e às outras crianças, porque é que as coisas são como são. 152 "O meu pai não é nenhum papa-açorda", dizem Nasser, Nafass e Nabi, contando às outras crianças da velha a história do acidente com o frigorífico. 'Nenhum papa-açorda", palra Navid, imitando os irmãos. "Está doente,, dizem Nasser, Nafass e Nabi. "Doente", palra Navid, imitando-os. - Desceu por um caminho arenoso, estreito e íngreme com um frigorífico enorme atado às costas", dizem Nasser, Nafass e Nabi. "Escorregou e caiu aos trambolhões. Umas vezes estava ele por cima,

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outras o frigorífico. Só pararam de rolar e de dar cambalhotas no vale. O frigorífico continuava atado a ele como um bebé às costas da mãe. O meu pai por cima e o frigorífico debaixo dele,, dizem Nasser, Nafass e Nabi, de peito inchado e fazendo-se de importantes. "Mentiroso", dizem as crianças da viela. Nafass grita, furiosa, com vontade de bater nas crianças que chamam mentiroso ao seu pai, e só não o faz porque Nasser a empurra para dentro de casa. No meio do casebre, de lágrimas nos olhos, Nafass, a filha paquistanesa de Shirin-Gol, cujo pai é o amável contrabandista, não sabe como há-de descarregar a cólera e a raiva. Vendo o pai doente e fraco, deitado debaixo do cobertor, tossindo e gemendo, dormindo e ressonando, Nafass cerra as mãos delicadas, esmurra o ar e grita: - A história do acidente com o frigorífico é uma mentira. - Não é mentira nenhuma - diz Shirin-Gol, olhando para a filha e pensando: "Minha pobre filha. Se soubesses! Deves o teu nascimento e a tua vida ao acidente com o frigorífico." - Ninguém é suficientemente forte para andar com um frigorífico às costas - grita Nafass. - O teu pai era - diz Shirin-Gol, beijando a filha paquistanesa na testa. -Ele é fraco - teima Nafass, com a certeza de ter razão. - Ele nem sequer pode comigo - grita Nafass. - E eu sou muito mais leve do que um frigorífico. - Dantes, o teu pai era um homem muito forte responde Shirin-Gol. - E verdade que hoje já não tem tanta força, mas sente mais amor pela tua irmã Nur-Aftab, que ficou no Afeganistão, pelos teus irmãos Nasser, Nabi. Navid e Nassim e por ti. - Porque é que eu sou diferente? - pergunta Nafass. - Es diferente como? - replica Shirin-Gol. -A minha pele é escura, assim como a do Nabi. - Então temos de te lavar a ti e ao Nabi - responde Shirin-Gol, puxando a filha para o regaço. Nafass gosta da brincadeira. - Isto não é sujo, não é sujo - exclama, cuspindo no braço e esfregando a pele. - Olha, olha, não é sujo, estou limpa. 153 -Então o que é? - pergunta Shirin-Gol. Nafass solta uma risadinha, encolhe os ombros, tapa a boca paquista_ nesa com as mãos delicadas e diz:

Nasci no Paquistão. Como o sol é muito quente, as pessoas que nascem lá ficam com a pele escura. Deitado, Morad observa Shirin-Gol e a filha paquistanesa de pele es_ cura e semicerra os olhos, através de cujas fendas vê tudo desfocado e embaciado. As formas e as cores confundem-se, perdem a nitidez e os con_ tornos. - O importante é o coração das pessoas, e não se elas são grandes ou pequenas, escuras ou claras diz ele. O importante é que as suas intenções sejam boas. Nafass aponta com o dedo para o pai e pergunta à mãe: As intenções dele são boas? - Sempre, minha pequena. As intenções do teu pai sempre foram continuam a ser boas. Morad dorme até meio do dia, não se lava, não come, sente-se muito mal, tosse, senta-se, anda todo curvado como um velho, semicerra os olhos, através de cujas fendas o mundo perde os contornos, as formas, e as cores se confundem e ficam menos nítidas. - É o ópio diz Nasser. O ópio queima-lhe buracos no cérebro. -Como sabes que ele fuma ópio? pergunta Shirin-Gol ao flho. -Sei muito mais do que pensas. - Isso sei eu. - Porque é que ele nos faz isto? - O que nos faz não é nada - responde Shirin-Gol. - Quem sofre mais é ele. Eu sei.

Morad, isto não pode continuar diz Shirin-Gol, quando as crianças estão a dormir. - Os poucos tomar que ganho a lavar roupa, tomar conta de crianças e trabalhar a dias não chegam nem para comer nem para pagar a renda.

Então e o rapaz? - pergunta Morad. - Ele também ganha dinheiro. O rapaz? Morad, o rapaz é um rapaz, o nosso rapaz, o nosso flho. Não tem obrigação de nos sustentar. Trabalha mais de doze horas por dia e faz o que pode. Já alguma vez lhe perguntaste como se

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sente, quando atravessa o país de lés a lés completamente sozinho? Já alguma vez te perguntaste porque é que ele anda há um ano com as mesmas calças e não usa outras? 154 Morad cala-se. -Há um ano que não cresce. É por isso que anda sempre com as mesmas calças. Não precisa de novas, simplesmente porque já não cresce. Morad cala-se. - Não temos sequer dinheiro para os kefrn, onde possam embrulhar-nos logo que a fome nos matar e nos quiserem enterrar. - Que queres que faça? - pergunta Morad. - Não há trabalho. Shirin-Gol cala-se. - Não há trabalho repete Morad. E muito menos para os afegãos. Que queres que faça? - O que puderes responde Shirin-Gol. Faz o que puderes. É-me indiferente como, mas preciso de ter alguma coisa decente para dar de comer aos meus filhos. - Alguma coisa para comer>, pensa Shirin-Gol. Alguma coisa decente. Como uma mulher decente. Comida decente, mulher decente. Morad dorme, geme, lamenta-se, tosse e cospe durante mais quatro dias e quatro noites. Quando acorda, treme, encolhe a cabeça entre os ombros e agacha-se no seu canto. Ainda passam quatro dias até ele se levantar, despir as calças fedorentas e a túnica banhada em medo e suor, mergulhá-las na barrela e lavá-las. No terceiro e quarto dias seguintes, Morad faz a barba desgrenhada e pegajosa devido à espuma que lhe saiu da boca, corta o cabelo, penteia-se e apara as unhas debruadas de negro. Clique. Clique. Pelo ar voam as unhas dos pés de Morad, grandes, feias e debruadas de negro. Os dias voltam a reunir-se em bando e a voar. Como trinta aves à procura da mais bela e magnífica de todas as aves, Simorgh, reúnem-se em bando e voam para longe. Sem dizer uma palavra, Morad também voa para longe. veste as calças e a túnica que ele próprio lavou, dirige-se à porta, não se vira, olha a viela de um lado para o outro, desce a viela e desaparece. Só volta de manhã. Despe as calças e a túnica que tresandam a fumo e pendura-as junto da janela aberta, para que o vento lhes arranque o fedor a cigarro e voe com ele para longe. Como trinta aves. Sobre todos os lagos, montanhas e vales. Morad fita Shirin-Gol ainda sem dizer nada, pousa um maço de notas iranianas no parapeito da janela, deita-se debaixo do cobertor e diz: -Amanhã trago mais. Nas quatro noites seguintes, Morad veste as calças e a túnica, dirige-se à porta, olha a viela de um lado para o outro, desce a viela e desaparece. Só volta de manhã. Quatro vezes pendura as calças e a túnica à janela. Quatro vezes lança o fedor a cigarro ao vento. Quatro vezes pousa um maço de notas iranianas no parapeito. Quatro vezes diz: 155 -Trago mais. Quatro vezes pergunta Shirin-Gol: - Onde arranjaste o dinheiro? - Mas, na verdade, não quer saber. Quatro vezes Morad sabe que ela, na verdade, não quer saber, e cala-se. - Quando as pessoas passam necessidades, fazem as coisas mais estranhas - diz o vendedor do baghalli, pesando o arroz, embrulhando as hortaliças em papel velho de jornal, levando a Shirin-Gol mais dinheiro do que vale o que ela comprou e vai dizendo: - Que Deus esteja contigo. - O teu marido está outra vez de pé - comenta a vizinha. - Isso é bom. Pode voltar a cuidar da mulher e dos filhos. Deus permita que tenha cuidado em tudo o que faz. Quando o proprietário vai receber as rendas atrasadas e aumentadas, pergunta: -Se consegue ganhar tanto, porque é que não o fez mais cedo? As outras crianças correm atrás de Nabi e Navid e gritam: - O teu pai é um ghomarbaz. Vão mandá-lo para a cadeia. - Não podem mandar o meu pai para a cadeia - diz Navid à mãe, chorando e soluçando tanto que o coração de Shirin-Gol se faz papel e se rasga em dois pedaços com um leve roçagar. Um pedaço pequeno de coração de papel e um pedaço grande de coração de papel. Dois corações de papel desiguais. CAPÍTUL 12 ALGUMA COISA DECENTE PARA AS CRIANÇAS COMEREM E UMA CADEIA

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Morad-que-passa-necessidades volta a cuidar dos filhos e da mulher, mas metem-no na cadeia. Um homem denunciou Morad. Que homem? Quem é o homem? Alguém conhece este homem? De onde é que Morad o conhece? O que é que o homem denunciou? O que fez Morad? Porque é que Morad não disse nada? Porque é que Shirin-Gol não quis saber nada? Porque é que as pessoas sabem tudo e Shirin-Gol nada? Porque é que Shirin-Gol não sabia que Morad jogava às cartas? Porque e que não sabia que o jogo é proibido no Irão? Especialmente para afcgãos que ganham e são denunciados. Ao menos, o homem agora envergonha-se por ter denunciado Morad? Por o pai de cinco filhos estar preso, a mulher e as crianças andarem outra vez sem dinheiro e terem perdido a sua dignidade e bom nome? Perdeu. O homem perdeu a jogar às cartas. Morad ganhou a jogar às cartas. Shirin-Gol perdeu o marido. A mãe-sem-cor-no-rosto perdeu a cor no rosto. Perdeu o bom nome Perdeu a dignidade. Há pessoas que nunca perdem nada na vida. Nada. Outras perdem. Sempre. Tudo. Há muitas pessoas que não são presas uma única vez na vida. Morad está preso. Há muitas pessoas que nunca na sua vida visitam ninguém na cadeia Shirin-Gol vai à cadeia visitar Morad. Nasser, Nafass, Nabi, Navid e Nassim vão visitar Morad à cadeia Morad passa quarenta dias e quarenta noites na cadeia. 157 Shirin-Gol, Nasser, Nafass, Nabi, Navid e Nassim vão quatro vezes á cadeia visitar Morad.

Disseste-me que te era indiferente o que eu fizesse. Disseste que precisavas de ter alguma coisa decente para os teus filhos comerem diz Morad. O teus de teus filhos. Grande, pesado, frio. Shirin-Gol cala-se. Indiferente, alguma coisa decente para os teus filhos comerem. O teus de teus filhos. Grande, pesado e frio. Quarenta dias. Quarenta noites. Indiferente, alguma coisa decente pa_ ra os teus filhos comerem. Com um grande teus. Morad regressa a casa, mergulha na barrela as calças e a túnica que tresandam a cadeia, lava-as com as suas próprias mãos e pendura-as junto da janela aberta, para que o vento lhes arranque o último fedor a cadeia e voe com ele para longe, sobre todos os lagos, montanhas e vales. De noite, o fedor da cadeia solta-se da boca, cabelo e pele de Morad, espalha-se pelo quarto todo como o vapor nos banhos públicos, pousa no cabelo, cobertor, rosto e pele de Shirin-Gol e rasteja-lhe para dentro do nariz e da boca, assenta na pele de rapaz de Nasser e Nabi, na pele de pergaminho de Navid e Nassim, rasteja para dentro de todas as bocas e narizes, baixa sobre todos os corações e faz-se peganhento... um escarro. Um escarro que não afunda no asfalto da cidade. Um escarro na areia, aos pés de Shirin-Gol. Um escarro no terraço. Um escarro em seis corações. Morad não espera pelo Sol nem pela primeira luz que este projecta no casebre, através da janela. Veste as calças e a túnica que ele próprio lavou, dirige-se à porta, olha a escuridão da viela de um lado para o outro, engole em seco, sente na boca o sabor e o cheiro da cadeia, desce a viela escura e deixa com Shirin-Gol o fedor a cadeia, as asas invisíveis da sua voz fria. Indiferente, alguma coisa decente para os teus filhos comerem. Com um grande teus.

Se calhar, o pai morreu - diz Nasser, vendo que Morad não regressa, passados quarenta dias e quarenta noites. - Se calhar, o fedor a cadeia asfixiou-o dizem Nafass e Nabi. - Morreu com o fedor - dizem Navid e Nassim. - O fedor matou-o. Shirin-Gol cala-se. Já ninguém sabe há quanto tempo partiu, quando uma noite batem a porta. Morad entra, despe as calças e a

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túnica, pendura-as junto da janela aberta e deita-se debaixo do cobertor. - Cheiras à nossa terra - diz Shirin-Gol. Estive na nossa terra - responde Morad.

O que foste lá fazer? - pergunta Shirin-Gol, sem, na verdade, querer saber. 158 Morad cala-se, porque sabe que ela, na verdade, não quer saber. - Os teus filhos sentiram a tua falta diz Shirin-Gol. O teus de teus filhos grande, intenso e pesado. Morad cala-se. - E a tua mulher também diz Shirin-Gol com um grande tua de tua mulher. Os dias-aves reúnem-se em bando, voam sobre todos os lagos, todas as montanhas e todos os vales. Tudo é como era antes dos dias-da-cadeia-de-Morad e tudo é diferente do que era antes dos dias-da-cadeia-de-Morad. Nasser viaja para sul rumo ao golfo Pérsico, compra brinquedos com os quais nunca brincou, trá-los para Isfahan, e ele e o vendedor de brinquedos apregoam à vez. - Brinquedos novos e bonitos! Únicos em todo o Irão! Isfahan é meio mundo e os nossos brinquedos vêm de todo o mundo!

Brinquedos novos e bonitos! Ao acentuarem muito o i e o é de brinquedos, parece que vão cantar. Uma canção que lembra uma melodia que Shirin-Gol trauteia à noite para que os pequenos irmãos, e quem mais a ouça, durmam em paz e nãc tenham maus sonhos. Nasser já não ouve a melodia, pois já não dorme no casebre junto da mãe dos irmãos. No casebre onde dorme o seu pai-preso. À noite, Nasser arruma os brinquedos no ventre do carrinho dos brinquedos, fecha-o com o cadeado, entrega a chave ao vendedor de brinquedos e, em vez de ir para casa, estende uma manta em cima do carrinho onde durante o dia estiveram as bonecas de pernas nuas e calcinhas cor-de-rosa, os carrinhos, os tambores e todos os outros brinquedos com os quais Nasser nunca brincou. Deita-se no tejadilho, observa o céu com as suas infinitas estrelas, suspira e adormece. -- Não tenho nada contra o facto de dormires no carrinho - diz o amável vendedor de brinquedos. Pelo contrário, pois, assim, ninguém tem a ideia de o roubar. O amável vendedor de brinquedos ri, fazendo tremer a barriga redonda. - E se alguém quiser roubar o carrinho, tem de te roubar a ti. - Treme a barriga. E quando a barriga redonda deixa de rir, continua o amável vendedor de brinquedos: - Mas não é bon que não durmas na casa do teu pai. Não, meu rapaz, não é bom. - Eu sei - responde Nasser, assentindo sem protestar e dizendo apenas: É melhor assim. - Em voz baixa, de cabeça inclinada e sem olhar para o amável vendedor de brinquedos: - É melhor assim. Tudo é como era antes dos dias- da-cadeia-de-Morad, tudo é diferent do que era antes dos dias-da-cadeia-de-Morad. 159 Alinhados em fila, Nafass, Nabi, Navid e Nassim saltam de alegria e mal conseguem esperar que Morad os atire ao ar e os volte a apanhar. Muito alto, o mais alto que pode. Quando estão no ponto mais alto, imediatamente antes de voltarem a cair para os seus braços seguros e fortes, para os seus braços-fortes-sim-senhor, os pequenos estômagos esvaziam-se, o ar foge, as vozes desaparecem, os olhos fecham-se, apesar das firmes intenções de continuarem abertos, e os pequenos guincham, apesar das firmes intenções de não guincharem. Nafass, Nabi, Navid e Nassim precipitam-se para Morad, fazem-lhe cócegas, beliscam-no e todos gritam e riem. Enquanto Shirin-Gol está em casa. Porque logo que Shirin-Gol sai de casa, nem que seja para ir só ao padeiro, querem ir com ela. Nafass, Nabi, Navid e Nassim querem ir com ela. Nafass, Nabi, Navid e Nassim não querem ficar sozinhos com Morad, de quem ninguém sabe quando vem e vai e vai e vem, ou quanto tempo fica, se vai ou se vem, ou se o fedor da prisão não irá asfixiá-lo. - Morreu com o fedor dizem Navid e Nassim. O fedor matou-o. Tudo é como era antes dos dias-da-cadeia-de-Morad, tudo é diference do que era antes dos dias-da-cadeia-de-Morad. Shirin-Gol deita-se ao lado do seu

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Morad e deseja-lhe a mão, o calor, a protecção e o corpo, não porque é a mulher e ele o homem, mas mais porque não suporta a sua dor. Porque não quer que ele se sinta excluído. Excluído dos meus filhos, dos teus filhos, dos nossos filhos. Porque ele perde a força, a confiança e a fé sem os seus filhos. O seus de seus filhos grande, cheio de significado, cheio de amor. Morad deita-se ao lado de Shirin-Gol, ouve-lhe a respiração, cheira-lhe a pele, fecha os olhos, fica sozinho, sem força, sem confiança, sem os filhos, sem a mulher. Morad sozinho. Shirin-Gol sozinha. Ambos acordados. Ambos calados. Morad foi ao Afeganistão comprar ópio, trouxe-o para o Irão, vende-o e pousa maços gordos de notas iranianas no parapeito. Compra alguma coisa decente para os teus filhos comerem. Teus. Desta vez, a polícia vai prender Morad a casa. Desta vez, as más companhias vêm ter com Morad a casa. Desta vez, Morad passa seis meses atrás das grades e é esmurrado e espancado. Nódoas negras. Nódoas negras no rosto, na pele, nas pernas. As costelas partem com um estalido baixo e surdo que só ele ouve. Tem sangue na cabeça, e os dedos quebram com um estalido alto que o carcereiro também ouve. As costas entortam-se-lhe. A alma de vidro voa-lhe através das grades sobre todos os lagos, todas as montanhas, todos os vales, cai ao chão e quebra-se. O coração de papel rasga-se e torna a rasgar-se em mil e um pedacinhos, roçagando mil e uma vezes. Um roçagar que só ele ouve. Quebra a alma de vidro. Rasga o coração de papel. Meio ano, seis meses depois de o coração de papel rasgar, seis mese depois de a alma de vidro quebrar, Shirin-Gol compra a liberdade de Mo rad. Por um punhado de toman. No lugar da alma e do coração, Morad tem agora tudo colado. Com ópio negro, verde, negro-esverdeado. Um punhado de toman por Morad-de-ópio. "Com a cabeça mais limpa e desanuviada, não teria sobrevivido à ca deia", dizem as pessoas. "Dá graças a Deus por não ter morrido." Agradecer a Deus. Estar agradecida por Morad-de-ópio de alma colada. De coração colado. Com cola negro-esverdeada. Quem tem culpa? A polícia? O denunciante? Morad? Shirin-Gol? O meus de meus filhos? O coração que se fez de papel? Jogar às cartas? Passur? Jawwari ? 0 contrabandista? Os filhos paquistaneses? A alma que se fez de vidro A guerra? Os Russos? Os mujaedines? A União Soviética? Os EUA? Os ta ubás? A fome? Alguma coisa decente para comer?

O Irão foi bom para nós, mas agora já não é - diz Shirin-Gol -Eu sei - responde Morad. - Devíamos ir embora - propõe Shirin-Gol. - Eu sei - diz Morad. Tal como Shirin-Gol, os filhos e Morad, centenas de milhares, milhões de afegãos fugiram para o Irão. Fugiram das tropas, dos blindados, aviões, mísseis, bombas, minas e do Exército Vermelho. Fugiram dos mu jaedines e da sua guerra fratricida. Fugiram dos fetos que caem ao chão com um estalido, dos seios cortados e dos ventres abertos das mulheres. Fugiram dos ladrões, dos salteadores de estrada e dos violadores. Fugiram dos talibãs, dos Paquistaneses e dos Americanos que os armaram. Os Iranianos também conhecem a guerra e a necessidade, sabem como é não se ter outro caminho senão fugir. Ao princípio, receberam os afegãos calorosamente, considerando-os hóspedes no seu país e acolhendo-os como irmãos e irmãs. Ajudaram-nos, deram-lhes coisas, comida e sítio para viver. Os Iranianos deram aos afegãos mais do que qualquer outro país do mundo, sem eles próprios terem recebido qualquer ajuda do Ocidente, de outros países ou das Nações Unidas. Os afegãos não eram obrigados a viver em campos de refugiados, podiam trabalhar, atravessar a fronteira e ficar o tempo que quisessem. Passou um ano, dois anos, muitos anos, vinte e dois anos até os Iranianos não quererem mais os seus hóspedes. Até tudo começar a escassear no próprio Irão: trabalho, dinheiro, casas,

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apartamentos, pão, escolas, universidades. Até se tornar difícil 160 161 para os Iranianos dividir com estrangeiros aquilo que é cada vez mais escasso, cada vez menos. Podiam juntar os afegãos, transportá-los para ,, fronteira e expulsá-los. Porém, mesmo agora, que não podem nem querem dividir nada, amparam e ajudam quem quer regressar, mas não têm forças para o fazer sozinhos.

À semelhança de Shirin-Gol, há muitos afegãos prontos a regressar, mas não têm dinheiro e não querem nem podem viver sob o domínio dos talibãs. Não querem viver com a guerra, com as minas, com a fome e com tudo o resto. Shirin-Gol tem sorte: é diligente e asseada e, por isso, ainda tem trabalho. Trabalho asseado e diligente. Limpa, lava e esfrega a casa de uma família iraniana. De cima a baixo, da esquerda à direita, à frente, atrás, entre as fendas, as janelas, a cozinha, a casa de banho, a retrete. E varre todos os tapetes. O que é bom, pois tem autorização para ligar o televisor enquanto o faz. Umas vezes há canções bonitas, outras, alguém diz palavras inteligentes. Um homem de cara séria lê as notícias escritas numa folha, levanta a cabeça e olha para Shirin-Gol como se falasse pessoalmente com ela e com mais ninguém. -Afegãos que querem regressar ao Afeganistão - diz o homem. Shirin-Gol pára de varrer e faz que sim com a cabeça. - Os afegãos que quiserem regressar à sua pátria serão financeiramente apoiados pela República Islàmica do Irão e pelas Nações Unidas. Para este efeito, o Governo criou centros de apoio nas regiões e cidades onde vivem mais afegãos. Qualquer afegão pode inscrever-se numa lista. Lista. Apoio financeiro. Nações Unidas. O Governo. Varrer tapetes. Crr. Crr. A vassoura que tem na mão já não é nova. mas também não é velha. Isso é bom. Adaptou-se à sua força, pressão, ritmo e tamanho. Dobrou-se na ponta. A vassoura não é tão nova que cheire a madeira. Crr. Crr. Com uma mão segura a vassoura e com a outra apoia-se nos joelhos. Costas tortas e direitas. Inclinada. Um pé à frente do outro. Crr. Crr. Como a vida. Pó desde a ponta do tapete em filas iguais, varre sempre em frente. Mais pó em cada fila. Como a vida. Começa no princípio e acaba no fim. Sempre a direito, para que a lã não se levante e o pó que se meteu entre os fios saia. Sempre uma fila após a outra, da direita para a esquerda, da esquerda para a direita, outra vez, da esquerda para a direita, caminhos iguais. Não levanta a vassoura depois de cada crr, crr, segura-a em baixo para que o pó não voe para o ar e se espalhe por todo o lado. É da última fila que Shirin-Gol gosta mais. Varreu e juntou o pó do enorme tapete, grão a grão, floco a floco, novelinho a novelinho. Fila a fila foi juntando mais, mais cinzento, com mais grãos, mais novelinhos. Varreu até 162 ao fim muitos dos grãos que tinha encontrado já no princípio do tapete. Como a vida, que parece o enorme tapete de cores vivas a trouxe-mouxe, rindo e esperando que Shirin-Gol varra o pó, os grãos e os novelinhos da última fila. Um momento de prazer. Shirin-Gol endireita as costas que manteve curvadas ao longo do enorme tapete, diz bismi-allah e, crr, crr, varre a última fila com as costas como novas. Cada vez mais pó. Como a vida. Para a pá de lata, para o balde. primam. Como a vida. Como a vida,que um dia também será tamam.Tamam e khalass . Tamam e libertação. Shirin-Gol escreve sete nomes na lista do regresso. Shirin-Gol, Morad, Nasser, Nafass, Nabi, Navid, Nassim. Aceita o bonito bidão de plástico que as Nações Unidas lhe oferecem para a viagem, assina a requisição de trigo e dinheiro que receberá antes de atravessar a fronteira, dobra-a e mete-a cuidadosamente no bolso da saia, junta tudo o que lhes vai ser possível transportar, veste às crianças as bonitas roupas que lhes foram oferecidas, enrola o pequeno tapete que teceu, pega no tasbih que a mulher-de-pedra da montanha lhe

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ofereceu há muitos anos, olha o céu, invoca o seu Deus e pede-Lhe que os acompanhe na viagem e na nova vida no Afeganistão. - Não quero ir para lado nenhum - diz Nasser, baixando a cabeça. - Fico aqui, no Irão. Já não sou afegão. Agora sou iraniano.

- Quando vem o meu irmão Nasser? - pergunta Navid, sorrindo. - Não vem - responde docemente Shirin-Gol. Com voz profunda. De olhos sorridentes, engole as lágrimas. Deus. o misericordioso. Dá e tira. Um irmão. Um canto à frente de um casebre. Uma pátria. Um shahid. Uma tenda. Uma aldeia de oito casebres encostados à montanha, com pernas e compridas chaminés. Um cobertor. Um campo de papoilas. Um terraço. Um prego na parede para pendurar coisas. Uma mangueira de plástico. Alguma coisa decente para comer. Fedor a cadeia. Fedor a ópio. Escarro. Negro-esverdeado. Um coração de papel. Uma alma de vidro. Um tapete para varrer. Pó, grãos, novelinhos. Crr, crr, como a vida. Um bonito bidão de plástico azul das Nações Unidas para a viagem. Uma filha. Um filho. Um filho que dantes era divertido e atrevido. Um filho que agora é sério e calado e cada vez mais anda sozinho. Um filho que já não ia comer nem dormir a casa. Um filho que agora é iraniano. Deus dá. Deus tira. - Anda connosco - suplica Shirin-Gol. - Podem obrigar-me a ir, mas no primeiro momento em que tirarem os olhos de mim, fujo e volto para aqui - diz Nasser. - Eu fico. Não regressarei ao Afeganistão. -Anda connosco - repete Shirin-Gol. - És muito novo, ainda meio menino. Não podes ficar aqui sozinho, sem pai nem mãe. 162 163 - Posso - responde ele calmamente, olhando a mãe de frente, muito direito. Ele já não é nenhum meio menino, é meio homem. Não vem. Nunca mais vem. Nenhum-meio-menino-meio-homem nunca mais vem. CAPÍTULO 13 UMA FLOR VERMELHA COMO SANGUE E UMA RAINHA

Seis e mais cem outros nomes regressam ao Afeganistão amontoados num camião, como gado. Seis e mais cem nomes descem do camião e pisam o solo do Afeganistão. Morad agacha-se no solo seco da pátria e não quer voltar a pôr-se em pé. Os outros rodeiam-no e alguns homens tentam levantá-lo. Morad não quer. Defende-se com as mãos e os pés. Outros homens agacham-se ao seu lado. Morad começa a chorar. Chora, chora, chora. O coração de Shirin-Gol faz-se papel e rasga-se. Com um roçagar. Dois pedaços de coração-papel. Coração de papel. Chora. Chora. Tanto, que os outros homens que se sentaram junto dele também começam a chorar. Shirin-Gol e as outras mulheres dos outros homens e os filhos dos outros homens sentam-se a olhar. Algumas choram. Outras não. Agachado, Morad chora. Chora agachado. Tanto, que o solo à sua volta deixa de estar seco e poeirento. As suas lágrimas fertilizam a areia, de onde brotam pequenas florezinhas vermelhas. Uma flor vermelha de sangue por cada lágrima, por cada gota de sangue da sua alma. Flores vermelhas, vermelhas de sangue no solo da pátria.

À noite, os seis nomes dormem num campo de transição, sob uma tenda de plástico azul, os nomes pequenos deitados no tapete e os outros na areia nua da pátria. Shirin-Gol está mais

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acordada do que a dormir e Morad não dorme mesmo, censurando-se, não conseguindo deixar de pensar como é miserável a vida que dá à mulher e aos filhos, em todos os anos que passou a arrastá-los de um lado para o outro, do Sul para o Norte, do Paquistão para as montanhas, do Afeganistão para o Irão e outra vez para o Afeganistão; 165 tudo isto para voltarem a dormir na terra nua e os seus filhos não terem água fresca nem comida quente há vários dias. - Qual é a diferença entre o nosso país e o estrangeiro?", perguntam vezes sem conta Nafass, Nabi, Navid e Nassim, sem receberem resposta nem de Shirin-Gol nem de Morad. As muitas terras, cidades, montanhas, vales e aldeias onde viveram, que atravessaram e que tiveram de abandonar, a areia, os desertos, as montanhas, tudo isto é de mais, grande de mais para as alminhas pequeninas das crianças, que cada vez ficam mais frágeis, inseguras e medrosas. - O que é um país? ", perguntam. "O que quer dizer pátria? Onde é a minha casa? O que é uma fronteira? Onde é? Este risco% Esta barreira? Esta bandeira? Porque é que regressamos? O que é que há lá? Porque é que não vamos a lugar nenhum? A pátria é onde nasci? Onde o meu pai nasceu? Onde a minha irmã está? Onde o meu irmão está? A pátria é onde me atiram pedras, troçam de mim e me humilham? Então, a pátria é em todo o lado. Onde passei e passarei fome? Então, a pátria é em todo o lado. Onde nunca mais me adaptarei, porque sou diferente dos que tomaram outro caminho ou se deixaram ficar onde estavam? Então, a pátria é em todo o lado. Mas, então, também não tenho de partir. Shirin-Gol escava um buraco no chão, pousa Nassim no solo fresco, despe a Nabi as calças quentes e persas, oferecidas pelos vizinhos, e a camisola vermelha, quente e oferecida pelos vizinhos, e veste-lhe a shah or-kamiz que ela própria costurou. Nafass enfia o vestido que ela própria costurou. Nafass, Nabi e Navid protegem os olhos do sol impiedoso, pestanejam e ficam assim a olhar a burka da mãe.

Deus é mau para as pessoas - diz Nafass. - Como é que sabes que é mau? - pergunta a burka de Shirin-Gol.

Não vês? pergunta Nafass, chicoteando o ar com a mão pequena. - Disse ao Sol para transformar a terra num forno de pão. Deus é mau, pois disse ao Sol para transformar a terra num forno de pão. O pensamento fica peganhento. O cérebro entorpece. Os músculos perdem a força. Cada movimento é um jogo de poder entre o corpo e a vontade. A toda a volta, nenhuma árvore, nenhum arbusto, nenhuma sombra, só deserto, vento e poeira. E tendas. Tendas azuis. A cor das cúpulas das mesquitas e das Nações Unidas. Só há sombra nas tendas. Sombras de plástico, quentes, sufocantes, azuis. À volta do pai, Nafass, Nabi e Navid tentam, como já tentaram toda a manhã, afastar dos olhos com uma mão o impiedoso sol da pátria, enquanto estendem a outra, mortinhos por pegar no dinheiro da pátria, que Morad já trocou a um câmbio miserável. Devagar e com cuidado, de dedos trémulos, devotamente, como se rezasse, Morad pousa uma nota afegã na mão pequena de cada um dos filhos. Estes observam-nas, admirando-se por não acontecer nenhum milagre, lançam ao pai um olhar de desconfiança e interrogação, examinam de novo o dinheiro, miram a mãe-burka, voltam ao pai, tornam às notas, viram-nas e reviram-nas, erguem-nas à luz do Sol, agitam com elas o ar pesado como se o milagre que esperam estivesse ali escondido, abanam as notas, deixam-nas cair no solo poeirento e quente, apanham-nas outra vez, dobram-nas e desdobram-nas, ora as afastam, ora as aproximam dos olhos, apalpam a espessura do papel. É esta a imagem da felicidade? Qual dos muitos sinais, qual figura, qual palavra me diz que a partir de agora tudo correrá bem? Desde que partiram de Isfahan que as

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crianças esperam impacientemente este momento. Com ansiedade sempre renovada. Venceram o cansaço, o desespero e a exaustão, porque os pais lhes prometiam constantemente que a vida seria melhor. - É igualzinho ao dinheiro do Irão - diz Nafass com a voz embargada, quase a chorar. - Não é nada como tu disseste. - Tudo mentira - grita Navid. - Dá-me o outro dinheiro, o iraniano. Este não parece melhor do que o iraniano. Mesmo nada. Porque é que saímos de Isfahan? Quero voltar. Quero ir para casa. Quero voltar para onde está o meu irmão Nasser. Quero voltar para onde nasci. Vá, venham, está ali um camião que nos leva para casa. Quero ir comprar um gelado ao Agha Mustafá. Quero outra vez o meu dinheiro. O meu dinheiro. O meu grande e pesado. Morad deixa os pequenos resmungar. Não há nenhuma contrapartida que possa oferecer-lhes. Navid tem razão. Aqui ou lá, a vida nunca será realmente boa para ele. Anda. Navid pega na mão do pai, agarra energicamente a mão grande e forte do pai e puxa-o atrás dele. Parece que a criança é Morad e Navid o adulto, o pai, o protector, que sabe o que é bom e o que não é, que sabe qual é o caminho certo e qual o errado. Morad não sabe onde vai o rapaz buscar tanta energia. Deus criou o pequeno Navid assim, repete vezes sem conta. Deus enviou-lhe o pequeno Navid para que Morad nunca mais se sinta só. Só com toda a sua dor, nesta vida de miséria. Morad não pode senão rir, para não chorar. O rapaz vira-se para o pai e também ri. O riso faz bem. Os olhos de Navid estão cheios de amor, o seu sorriso não é senão misericórdia. E quando vê as lágrimas que, por fim, Morad consegue soltar da garganta, pede-lhe colo. Beija-o no rosto e esboça um sorriso tão radioso que a abrasadora luz do Sol até parece empalidecer. Morad sente o coração a estourar de felicidade e aperta muito a si o pequeno Navid. O seu coração voa, livre, por um breve e frágil instante que logo se desvanece. À volta da burka de Shirin-Gol, com o dinheiro da pátria nas mãos es 166 167 tendidas, as crianças emudecem. Terra três vezes abençoada em três mãos pequenas de criança. Três vezes esperança. Três mil desejos. Três vezes desilusão, que já viram nas suas pequenas, minúsculas vidas. E o mais que ainda verão. Há muito que sabem que este dinheiro não vale nada, que vale tanto como o dinheiro com o qual o pai não pôde comprar-lhes nenhum passado. Sabem-no há muito, mas não o querem ouvir, querem que lhes mintam o mais tempo possível, querem esperar um milagre e acreditar que a vida ainda será boa. Shirin-Gol pega nas notas, dobra-as e guarda uma por uma no bolso das calças dos filhos. De pé ao seu lado, Morad também parece uma criança à espera de que Shirin-Gol lhe dobre a nota e lha meta no bolso das calças. As crianças e Morad andam de um lado para o outro, param, acham-se, entreolham-se, caminham mais um bocadinho, voltam para trás, tornam a avançar. - Pobre Morad, que sabe que é daqueles que nunca terá dinheiro, que nunca poderá comprar a felicidade dos filhos - murmura Shirin-Gol. - Pobre Shirin-Gol, com quem estás a falar? - Com Deus, que é bondade e misericórdia e tem mil e um nome~, Shirin-Gol apaga o seu nome, que desenhou na areia, e escreve P-á-t-r-i-a. Depois apaga. Seis nomes viajaram de pé na área de carga do camião, engolindo o pó da estrada durante um dia inteiro. - Quando é que chegamos à pátria? - perguntavam as crianças. Pátria. Quando tivermos dinheiro afegão na mão é porque estamos na pátria e tudo correrá bem. Nafass, Nabi, Navid estão ali com o dinheiro afegão na mão e nada corre bem. A mãe transformou-se numa burka. A casa é de plástico. DAL., disse ao Sol para transformar a terra num forno de pão. O que é que corre bem? Nada. O Sol em brasa, a poeira, muitas pessoas, os ruidosos cambistas com os seus olhares maus e viscosos, os seus maços de notas persas, dólares americanos e o abençoado dinheiro da pátria, que não têm nada na cabeça senão enganar, aldrabar e intrujar os seus compatriotas acabados de chegar. Os barulhentos camiões com as cargas de pessoas cobertas de pó,

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esgotadas e intimidadas que deles saltam. As centenas, milhares de tendas de plástico azul. Os novos senhores do país, os talibãs, com as suas shalvar-kamiz muito compridas, os turbantes negros na cabeça e ameaçadores bastões na mão. As crianças berrando, as mulheres caladas, os homens atrapalhados e intimidados, sem honra nem dignidade. A rede à frente dos olhos de Shirin-hol, na qual as suas pestanas compridas se prendem de cada vez que fecha os olhos. Shirin.Gol já não vê tudo isto e muito mais. Só a desilusão nos olhos dos filhos. Deus bondoso", murmura a burka de Shirin-Gol, erguendo a cabeça-burka para o céu, como se Deus estivesse sentado por cima dela e esperasse apenas que ela falasse, elevando para Ele os seus desejos e súplicas. "Deus misericordioso, tem piedade. Tem compaixão. Permite que as nossas esperanças, de que desta vez tudo correrá bem, não tenham sido vãs. Todo-poderoso."

Morad e as crianças andam de um lado para o outro, param, olham em redor, aproximam-se de Shirin-Gol, dão uns passos, voltam para trás. Todos regressam sempre. À pátria. A Deus. A Shirin-Gol. Parado em frente da mãe, Nabi semicerra os olhos e olha e não olha a mãe. Se não houvesse guerra no Afeganistão, se reinasse um rei justo que tivesse um filho, um príncipe, à procura de uma mulher que pudesse fazer rainha, uma mulher com cabelos de seda preta, olhos de carvão, pele macia como um pêssego maduro, dentes brancos como pérolas, membros elegantes e delicados como uma gazela, voz cheia e bondosa como a canção de mil huri e coração tão grande e quente como a luz do Sol, para Nabi, esta mulher seria a sua mãe. Orgulhosa, íntegra, bonita, pobre, alquebrada rainha Shirin-Gol. Shirin-Gol senta-se de pernas cruzadas. Com as costas direitas e, no entanto, flexíveis como uma pena, leves, serenas, descontraídas, orgulhosas, de rainha, observa centenas, milhares de tendas de plástico azul como se fosse uma senhora contemplando o seu exército e não ma refugiada arrependida, regressando ao seu país, uma mãe de seis filhos dos quais não vê a filha mais velha há muitos anos, dos quais teve de deixar o filho mais velho no Irão. Não uma mulher cujos filhos nasceram no estrangeiro, não como uma mulher que regressa a uma pátria arrasada pela guerra. Nabi vê e não vê o véu preto, sujo e cheio de pó dos dias de viagem, das horas de jornada na área de carga do camião. Para ele, são vestes de rainha. Os seus adornos baratos de latão são as jóias da coroa. O bebé deitado no buraco fresco escavado na terra é uma princesa. O último pão persa subsidiado que parte é o seu banquete. A tenda de plástico azul, sob a qual está sentada a suar, é o seu castelo. Com os olhos brilhantes a faiscar, o filho-príncipe Nabi dá um salto, lança-se nos seus braços e exclama: - Minha mãe-rainha! - Um homem mandou a mãe para o inferno - grita Nafass, entrando a correr na tenda, muito agitada. - O quê? - pergunta Shirin-Gol. 168 169 - A família dela não a quer mais. Por isso, disse-lhe que podia vir pa_ ra cá e ser nossa avó, porque nós não temos nenhuma. - O quê? Claro que tens avó. É a minha mãe, e amanhã vamos ter com ela. - Então vamos deixá-la vir até amanhã. Avó-até-amanhã. A anciã da tenda vizinha foi expulsa pelo genro. As Nações Unidas dão a cada família apenas oito sacos de trigo, e, infelizmente, a velha é a nona pessoa e o seu marido a décima. Por isso, não recebem trigo. Por isso, a velha é uma carga maior do que já era para a família. Por isso, o filho não pode continuar a andar com ela de um lado para o outro. Tem de se arranjar sozinha. Avó-até-amanhã chora e lamenta-se tanto que todas as outras mulheres das tendas vizinhas têm pena, todos os homens resmungam e praguejam, afirmando que o genro não tem um pingo de decência. Dizem que ele esqueceu o que é ser Afegão, que perdeu a moral e a fé, e que a culpa de as pessoas serem agora assim é da maldita guerra. Dali a pouco

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estão todos a falar e a gritar, a berrar e a levantar braços ameaçadores, ralhando e praguejando, até que o funcionário Maick chega com dois talibãs armados de bastões. Todos se calam. Primeiro, os que estão mais perto do senhor Malek e dos dois talibãs. Por fim, os que se encontram mais afastados deles. No meio do grupo quieto e silencioso, o senhor Malek dá-se ares de importante e pronuncia um grande discurso, durante o qual se vira constantemente em todas as direcções, para que nenhum dos presentes perca as suas importantes palavras. -Vós deixais-vos enganar por toda a gente - começa ele. - Pela vossa própria família, pelos funcionários do Irão que vos registam, pelos cambistas, por autodenominados comandantes, pelos vendedores de trigo, e depois vindes ter connosco para que voltemos a meter tudo nos eixos. Por vós, devíamos fazer uma revolução, demitir o Governo e arranjar outro. - Isso era bom - murmura uma mulher lá de trás. Avó-até-amanhã não pára de chorar. Atira-se para o chão a soluçar. Bate com os punhos de velha no chão seco e grita uma e outra vez: - Que pecado é o nosso para Deus nos castigar assim? - Quanto mais a anciã chora, mais mulheres, novas e velhas, soltam igualmente o pranto. Vendo as mães chorar, os filhos também choram e, por fim, os pais. O senhor Malek tenta fazer-se ouvir acima do choro e dos soluços, vira-se de um lado para o outro e fala sem parar, mas ninguém o ouve. De repente, também ele fica sem ar, quando lhe aparece à frente um outro afgão, que também usa um boné azul das Nações Unidas e que tem claramente um posto superior ao de Malek. Ao contrário do senhor Malek, Amdjad é um homem sereno, com uns olhos que continuam a sorrir de bondade, apesar do muito sofrimento que viram e viveram. A sua voz é suave e tranquila. Tirando o boné da cabeça, diz o seu nome e nada mais, observa Malek, olha em volta e torna a fitar Malek, que abre a boca para começar a falar. Mas Amdjad descobre avó-até-amanhã, inclina-se para ela, ajuda-a a levantar-se e fala-lhe com serenidade e delicadeza: - Perdão, mãe, por lhe dirigir a palavra. Trabalho para as Nações Unidas. Fale, por favor. O que aconteceu? Talvez eu possa ajudar. A pobre avó-até-amanhã apoia-se com gratidão no ombro de Amdjad e só então pára de chorar. Sossega, desculpa-se por se ter aproximado de mais dele e diz: - Deus perdoar-me-á por ter tocado num desconhecido. Sou uma velha para quem a morte não tarda, e tu tens a idade do meu neto, que Deus o proteja a ele e a ti. - E conta então a Amdjad que o genro não a quer nem a ela nem ao marido, porque não têm direito ao trigo. Amdjad abana-se a si e à avó-até-amanhã com o boné, coça a cabeça transpirada e não sabe o que há-de dizer. Por fim, vai falar com o genro de avó-até-amanhã e diz-lhe que o compreende, que sabe como se sente, que a ele próprio às vezes só lhe apetecia deixar tudo e fugir, mas que avó-até-amanhã e o marido também lhe fazem pena. Por fim, dá uma volta com o homem, compra dois sacos de trigo a Shirin-Gol, que não quer levar consigo uma parte do seu quinhão, entrega-os ao homem para os seus velhos sogros e pede-lhe que dê a palavra de honra de que vai levá-los consigo e tratá-los bem. O homem envergonha-se, olha para o chão, morde os lábios, murmura uma promessa, gira nos calcanhares, agacha-se na tenda perto de um dos sacos de trigo, observa a velha sogra, chora e cala-se. -As pessoas não sabem ler nem escrever - diz Amdjad -, estão desesperadas e aflitas e não compreendem o que os serviços iranianos querem dizer, quando lhes explicam que só podem inscrever um determinado número máximo de pessoas por família. Avó-até-amanhã e o marido deviam ter-se registado como uma única família. Mas os Afegãos são assim, família são todos aqueles em quem corre o mesmo sangue. Amdjad bate na anca com o boné azul das Nações Unidas e olha a distância. Cala-se. Engole. Engole as lágrimas. - Porque é que estás a chorar? - pergunta Nabi à mãe, continuando sem esperar a sua resposta: - Não tenhas medo, nunca te expulsaremos. Amdjad

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não pode deixar de rir. Lançando um olhar de gratidão ao rapaz, põe o boné e despede-se. Shirin-Gol não pode senão lançar um olhar de gratidão ao filho, pousar-lhe a mão no peito e rir, um bonito riso feito de lágrimas. 170 171

-Porque é que estás a rir? - pergunta Nabi à mãe, continuando, sem esperar a sua resposta: - Porque somos a luz da tua vida? - grita, passando os braços à volta do pescoço da sua mãe-rainha e beijando-a. - Não estejas mais triste, está bem? Mage na? - no dialecto de Isfahan. "A voz límpida de Nabi perdeu a alegria", pensa Shirin-Gol. Já não soa como um regato cristalino que nasce algures entre as pedras das montanhas do Indocuche e segue descuidadamente o seu caminho. Nabi brinca com uma madeixa preta que escapou do véu da mãe, observa-a e convence-se de que salvou a vida a Shirin-Gol com as suas perguntas e respostas, os seus beijos, o seu amor, o simples facto de estar ali. - E agora volto para Isfahan - anuncia Nabi. - Quando lá chegar, procuro o meu irmão Nasser e compro um gelado para os dois. - Olha lá - começa Shirin-Gol docemente -, queres ir sem a tua mãe? Parado à frente dela, Nabi reflecte e faz que sim com a cabeça. - Mas eu não te deixo ir. A lugar nenhum. Percebes? Tu ficas comigo - diz Shirin-Gol, beijando-o. -As mulheres são mais fortes do que os homens - diz Morad, olhando para os pés. - Quem disse? - pergunta Shirin-Gol, suspirando tanto que o peito se lhe levanta e o seio escorrega da boca de Nassim, que se sobressalta. A pequena tem a testa minúscula coberta de gotas de suor. Shirin-Gol volta a meter-lhe o mamilo na boca, abana-a com a ponta do véu e diz a Morad: - Deixa de cismar. Deixa de te atormentares, a ti, a mim e às crianças. Morad assente, olha em redor como se procurasse qualquer coisa que não encontra, fica parado um momento e depois diz: - Vou dar uma volta. - Onde? - pergunta Nabi. -A lado nenhum - responde Morad. -Nós também vamos - gritam Nafass, Nabi e Navid. - Não, fiquem aqui - diz Shirin-Gol, acrescentando, sem olhar para Morad: - Vai. Sem olhar para ele. O calor toma a forma de um monstro. Um monstro esfomeado pronto a apoderar-se da vida dos homens. Deus disse ao Sol para transformar a terra num monstro devorador. Shirin-Gol respira de boca aberta, tira a camisa à bebé e escava ao seu lado no solo arenoso um outro buraco onde deita a pequena Nassim. Nafass, Nabi e Navid retiram-se para um canto da tenda, deitam-se nos sacos de trigo, acabando por dormitarem. Morad retira-se para algum canto, algures no campo, a fumar ópio. Pela quarta ou quinta vez. Ópio-medo. Um mesqhal inteiro. Menos mil e quinhentos ou dois mil lak para sustentar e alimentar os filhos. Os seus filhos. Shirin-Gol desenha letras na areia com o dedo. M-e-u-s f-i-l-h-o-s.

-Queres vender o teu bidão? - perguntam duas mulheres, que já acarretam oito ou mais bidões de plástico às costas. - Que quereis do meu bidão? - indaga Shirin-Gol. - Compramos-to e já não precisas de andar com ele atrás de ti. - E depois que lhe fazeis? Já tendes tantos! - Vendemo-los no bazar. E se quiseres também te compramos o trigo. - Não, obrigada, irmãs. Que Deus vos proteja, mas o trigo vendo-o eu. Não podeis dar-me o dinheiro que eu quero por ele, e preciso do bidão para a viagem até à casa do meu pai. - Que Deus te proteja e permita que todos estejam de saúde na casa do teu pai.

Que Deus vos proteja a vós também - responde Shirin-Gol. Tal como Shirin-Gol, também as duas mulheres regressaram há um ano do Irão. Também elas queriam regressar à casa do seu pai, mas os Russos ou quem quer que fosse bombardearam-na. O

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próprio pai está por aí algures ou foi morto. Os seus maridos combatem aí algures ou também morreram. Por isso, ficaram por aqui, perto da fronteira. Vivem debaixo de encerados de plástico e de árvores, enquanto os filhos apanham as agulhas dos abetos, que usam para acender o lume ou para dormir. O pouco dinheiro que tinham gastaram-no há muito tempo. Os bidões de plástico e o trigo são a sua única fonte de rendimentos. Compram aos que regressam tudo o que estes não querem ou não podem levar consigo e vendem-no na cidade. Quando têm sorte, os que chegam ainda não conhecem os preços das coisas. Nalguns dias, as mulheres compram e vendem tanto que se saciam a si e aos filhos. Nalguns dias. Todos os dias, pequenos comerciantes compram o trigo aos que regressam, carregando-o em camiões e indo depois vendê-lo a preços mais altos à cidade. Todos os dias chegam ao campo cambistas, vendedores de medicamentos, afegãos que, numa altura ou outra, regressaram do Irão, se deixaram ficar por ali, tornando-se compradores e vendedores. Todos eles se lembram do seu primeiro dia no solo pátrio. Da esperança que, entretanto, enterraram. Esperança enterrada. Vontade enterrada de começar de novo. Esperança morta de que a vida será melhor. Quando o seu irmão de fé, o seu compatriota, lhes aparece à frente e 172 173 diz: "Irmão, quero ajudar-te, vende-me o teu trigo, o preço é este e este,,, acreditam nele. Quando lhes diz que o bidão não vale mais do que tanto, ou que o dinheiro persa é tanto, acreditam nele. E, quem sabe, quantos dos que hoje chegam terão enterrado a esperança e estarão a comprar e a vender bidões de plástico e trigo daqui a um ano. Bidões de plástico e trigo que os que então regressarem não vão querer carregar consigo para o desconhecido. Por fim, ao quarto ou quinto homem que tenta comprar-lhe o trigo, Shirin-Gol baixa o preço, regateia um pouco e vende-lhe um saco. - Quem há-de carregar com eles? - pergunta a si própria, porqu não tem mais ninguém com quem falar, guardando o dinheiro no bolso da saia. As gotas de suor da testa da pequena Nassim adquirem vida, são como crianças irrequietas que correm por ela abaixo durante o sono. Shirin-Gol segura a criança direita. Para urinar e vomitar. Líquido branco-amarelado que se escoa no solo. - O pai também vomitou. Fumou ópio de mais - diz Nafass. - Como sabes que é ópio? - pergunta Shirin-Gol, limpando a boca a Nassim. Nafass encolhe os ombros. - Vão encher o bidão com água fresca da bomba e procurem o vosso pai - diz Shirin-Gol a Nafass e Nabi. -Eu não vou - responde Nafass. - Está ali uma doida. Uma mulher passa pela tenda, tropeça, quase cai, endireita-se, continua a andar, estaca de repente como se tivesse embatido contra uma parede de vidro, gira nos calcanhares, caminha na outra direcção, torna a chocar com um vidro invisível, pára, agacha-se no chão à frente de Shirin-Gol e fala. Sem o juízo, que perdeu, e com os olhos muito abertos. Fitando Nafass, diz: - Dá-me o meu dinheiro. És o vento? Porque me roubaste o meu di nheiro? Salil-shodeh. Dá-mo cá. O vento roubou o meu dinheiro. - Quem o encontrar tem sorte - murmura Shirin-Gol, limpando o vomitado da bebé da saia e do lenço. Nafass, Nabi e Navid correm à procura do dinheiro da mulher. Nabi pergunta por onde é que ela andou, Navid puxa-a atrás de si e Nafass corre de um lado para o outro, indagando se alguém viu o dinheiro da pobre mulher. "Isto é bom para as crianças. Pelo menos durante algum tempo estão ocupadas", pensa Shirin-Gol. Por fim, Morad regressa. Treme. Tem a cabeça encolhida entre os ombros. Os braços muito encostados ao corpo. Arrasta o corpo cansado a dentro da tenda, agacha-se, vê a filha doente, fecha os olhos, tenta recompor-se e torna a levantar-se. Parece um velho. Fala com a língua pesada e entaramelada: -As pessoas dizem que há por aqui um médico. Eu levo-a lá. Shirin-Gol embrulha a pequena num lenço e pousa-a nos braços de Morad, mas tira-lha logo a seguir, porque ele quase a deixa cair. Empurrando Morad para o chão, diz: - Senta-te. Quem precisa

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de ajuda és tu. Como se ele não estivesse ali, como se não a pudesse ouvir, como se não a compreendesse, como se não se encontrasse no seu perfeito juízo, como se fosse uma criança pequena e desamparada, Shirin-Gol apoia-lhe a cabeça no que encontra à mão, descalça-lhe os sapatos, desaperta-lhe o cinto e tapa-o com qualquer coisa. A pequena Nassim vomita outra vez. Shirin-Gol enche uma bacia com água, ampara a cabeça de Morad, ajuda-o a beber, molha a mão e pousa-a no seu pescoço, testa e cabeça, massaja-lhe os ombros e ajuda-o a agachar-se. Como um bebé. Bebé Morad. Agachado, com espuma na boca. A pequena Nassim vomita outra vez. Shirin-Gol veste a burka, pega na pequena Nassim e sai. - Onde vais? - pergunta Nafass. -Ao médico. - Também vou - diz Nafass, pendurando-se na saia da mãe. - Os meus olhos ardem, doem e estão sempre cheios de lágrimas. Já devia ter ido ao médico. Nassim jaz inerte no colo da mãe. As pernas e os braços pequeninos balançam sem vida. A cabeça pequena pende pesadamente, encostada ao pescoço de Shirin-Gol. Respira ao de leve e tem os olhos fechados. Bebé Nassim. Bebé Morad. Shirin-Gol corre sem saber para onde. Uma mulher vê a bebé Nassim meia morta nos braços de Shirin-Gol e indica-lhe o caminho para o médico. O médico não é médico. O médico foi ver uma criança meia morta que está algures no meio das tendas azuis e que precisa da sua ajuda. O médico é uma enfermeira. A enfermeira-médica tira a temperatura à meia morta Nassim, que tem muita febre, dá-lhe uma injecção, mete uns comprimidos na mão de Shirin-Gol e vira-se para tratar da criança seguinte, que jaz meia morta nos braços do pai. - E os meus olhos? - pergunta Nafass. - O que têm os teus olhos? - indaga a enfermeira-médica sem olhar para Nafass.

174 175 l'! -Ardem e doem-me. A enfermeira-médica lança um olhar apressado a Nafass e depois a Shirin-Gol e diz: -Aquele frasquinho ali. Põe-lhe duas gotas nos olhos e mais duas por hora. - Que gotas são? - pergunta Shirin-Gol. -As únicas que tenho - responde a enfermeira-médica, dando . outra criança a mesma injecção que deu a Nassim e continuando: - E esta é a única injecção que tenho. E sou a única enfermeira que há aqui. Só existe um médico que saiu e lá fora esperam outras crianças quase mortas. Nafass está feliz com as gotas. Sente-se feliz, orgulhosa e importante. Para que as gotas não lhe escorram dos olhos, percorre o caminho todo de regresso à tenda com os olhos fechados. Primeiro, tenta que Shirin-Gol lhe pegue ao colo, mas compreende que é muito grande e pesada e que, além disso, a mãe já leva a sua irmã meia morta nos braços. Para não cair, crispa a mão pequena nas saias da mãe, mas recusa-se a abrir os olhos até quando tropeça e quase cai. Nafass só volta a abrir os olhos quando Shirin-Gol diz: - Está ali a avó-até-amanhã. A avó-até-amanhã e o marido estão sentados nos seus sacos de trigo. Calados, olham em frente, pestanejam medrosamente quando passa alguém por eles, olham em frente e continuam calados. - Olha o meu amigo - grita Nafass, desatando a correr. O amigo-de-Nafass é um jovem de cerca de 16 anos. O amigo-de-Nafass parece uma adolescente, anda como uma adolescente, tem as sobrancelhas arranjadas como uma adolescente casada, usa o cabelo comprido como uma adolescente. O amigo-de-Nafass chucha o dedo mindinho de uma mão em volta da boca e tem a outra apoiada na cintura num gesto coquete. Ao andar, o amigo-de-Nafass balança as nádegas da direita para a esquerda e da esquerda para a direita. O amigo-de-Nafass pisca-lhe o olho, mas passa por ela sem parar, dizendo-lhe: "Tenho de trabalhar.,, Nádegas da direita para a esquerda e da esquerda para a direita. O amigo-de-Nafass detém-se à frente de um homem,

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sorri, diz duas ou três palavras, chucha o dedo mindinho em volta da boca, lança para trás a cabeça-de-amigo-de-Naf

ass. A mão-de-amigo-de-Nafass toca na do homem e o amigo-de-Nafass ri e desaparece com ele numa tenda de plástico azul. - Allah-o-akbar! - exclama Shirin-Gol. - Com tanta gente no mundo, este foi o único amigo que conseguiste arranjar? Encolhendo os ombros, Nafass fecha os olhos, volta a agarrar-se às saias da mãe e tropeça ao seu lado, de volta à sua própria tenda azul de plástico.

Nas tendas em volta, toda a gente junta os seus haveres, os tapetes e o mais que trouxe do Irão. Homens vão e vêm, carregando os sacos de trigo 176 para os autocarros. Só Morad permanece no mesmo lugar, aninhado co mo um bebé.

Bebé Morad.

Shirin-Gol passeia o olhar pelos sacos de trigo, pelos filhos, pelo mari do desamparado, agachado no chão, pela bebé meia morta e pelo homem da tenda ao lado, a quem pede ajuda. Depois, mete nas mãos dos filhos os sacos e o bonito bidão de plástico das Nações Unidas, para a viagem. Shirin-Gol ajuda Morad a pôr-se de pé, veste a burka, tapa o rosto, arrasta Morad para o autocarro, põe-se na fila para entrar. empurra os filhos e Morad pelos degraus acima, olha uma última vez em volta com a cabeça tapada, não diz nada, entra e desaparece. 177

CAPITULO 14 A CASA DO PAI, UMA CAMPA E UMA MULHER-DO-IRMÃO QUE PERDEU o JUÍZO

Mesmo assim, Shirin-Gol tem sorte. Tem trigo. Tem um pequeno tapete que ela própria teceu. Tem um punhado de dólares. Tem um bonito bidão de plástico das Nações Unidas. Tem o tasbih da mulher-de-pedra à volta do pescoço. Leu três livros e meio. Bebeu água do lago nos seus anos de adolescente. Teve dias que se transformaram em aves e voaram para longe. Ela, os filhos e o marido têm todos braços e pernas. Tem a casa do pai, para onde pode regressar. Está mais pequena. Foi atingida por um míssil, que lhe levou uma parte. O pai está doente e de cama. A mãe desapareceu, morreu. No local da campa da mãe encontram-se outras campas. Campas de mártires. Campas de rapazes. Campas de irmãos. Campas de pais. Campas de raparigas. Campas de mulheres. Campas de Irmãs Campas de mães. A campa da mãe de Shirin-Gol. Nas campas dos rapazes e nas campas dos homens estão espetados paus compridos, onde as pessoas ataram pedaços de tecido. Verdes, amarelos, vermelhos, esvoaçando ao vento.

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Para dar sorte. Para impedir os espíritos maus de perturbar a alma dos mortos. Para lembrar a Deus que já há mais um morto no Afeganistão. Por cada oração, um pedaço de tecido. Orações-pedaços-de-tecido esvoaçando ao vento. Nas campas dos mártires há ainda mais paus espetados. Ainda mais farrapos verdes, ainda mais amarelos, ainda mais vermelhos, esvoaçando ao vento. Ainda mais orações-pedaços-de-teci

do esvoaçam ao vento. Pedaços de tecido que sussurram. Falam. Choram. As campas das raparigas sem pedaços de tecido. As campas das mulheres sem pedaços de tecido. Ao lado da campa da mãe morta jaz um afegão-árabe morto. 178 Mais de trinta e cinco mil árabes vieram dos EUA para o Afeganistão treinar homens, fazendo deles afegãos-árabes. Muitos deles ficaram depois da guerra. Mortos. Mortos pelo Profeta. Mortos pelo Alcorão. Mortos pelo Islão. Mortos pelos EUA. Mortos pelo capitalismo. O Profeta de quem? O Alcorão de quem? O Islão de quem? Os afegãos-árabes mortos de quem? Os Afegãos queriam vencer e expulsar os Russos da sua terra. Os árabes vieram para combater, para morrer. Para serem mártires. Shahid. O afegão-árabe morto também tinha mãe? A mãe do afegão-árabe morto estará feliz por o filho ser agora um shahid? A mãe do afegã -árabe morto ficou com o cabelo branco? Mãe do afegão-árabe-Shahid co o cabelo branco. Shirin-Gol tinha uma mãe de cabelo branco. Os muitos shahid da vida de Shirin-Gol. Quantos? Deixou de os contar. Um míssil matou-a. Os mísseis têm mãe? Alguém deve ter dado o míssil à luz. Os homens que constroem mísseis têm mãe? Homens-mísseis com mãe. Os homens-mísseis têm filhos? Deus tens mãe? Mãe de Deus. Mas alguém deve tê-Lo dado à luz. Shirin-Gol agacha-se junto da campa da mãe e quer chorar, mas não tem lágrimas para ela. Nem uma. Em vez disso, tem mil e uma perguntas. Mil e um pensamentos. Em vez disso, observa os crânios de animais nas pontas dos paus espetados nas campas. Para que puseram os sobreviventes crânios de animais em cima dos paus? Uma protecção? Um presságio? Um símbolo? Simplesmente, porque é bonito? Porque é que não há paus com pedaços de tecido esvoaçando ao vento nas campas das raparigas e das mulheres? Por cada farrapo, uma palavra. Uma )ração. Porque é que não há paus com crânios de animais nas campas das raparigas e das mulheres? Um presságio. Simplesmente, porque é botiin). Porque é que as mulheres trazem filhos ao mundo? Yek rouz be dardam ruikhore, um dia podem ser-me úteis. Para quê? Para fazerem a guerra? Para dispararem mísseis contra as mães? Anda depressa para casa - grita Nafass. - A tia perdeu o juízo. Porque é que o míssil não matou a mulher-do-irmão, que perdeu o juízo: - murmura Shirin-Gol, beijando uma pedra, levando-a à testa e pousando-a na campa da sua mãe morta. Mulher-do-irmão-que-perdeu-o-juízo encontra-se sentada no chão, de pernas cruzadas em volta do tronco da árvore. Bate uma e outra vez com 179 a testa na árvore. Pum. Pum. Testa no tronco da árvore. Para matar a~ imagens sangrentas que tem na cabeça. Sangue na testa. Sangue no tronco da árvore. Pum. Pum. Shirin-Gol agacha-se junto da mulher-do-irmão, passa-lhe o braço à volta dos ombros e puxa-a para si. Sente o sangue da testa de mulher-do-irmão no pescoço, mas não diz nada. Abraça-a e embala-a. A mulher-do-irmão perdeu o juízo, anda apática, puxa os cabelos, arranha-se até fazer sangue e tenta arrancar os olhos para não ter de ver o sofrimento do marido, a fome dos filhos, o inferno em que a vida se transformou. O irmão pisou uma mina e perdeu uma perna. Uma perna e o filho, que levava pela mão quando pisou a mina. O irmão-aleijado anda de um lado para o outro, não tem trabalho, grita de dor, prefere morrer a ver os farrapos da sua perna, juntamente com os farrapos do filho, esvoaçando no ar e caindo ao

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chão com um estalido. Com um estalido. Um olho do filho está ainda aberto e a sorrir. A mão do pai e a mão do filho, arrancadas, jazem no solo, ainda abraçadas uma à outra. A explosão atirou ao chão a filha do irmão, que seguia atrás do pai e do irmão. Levantando-se, sacode o pó do vestido de flores, dantes bonitas e agora murchas, apanha o pé do irmão ainda calçado com um sapato de plástico e tenta colá-lo à perna desfeita. O irmão-aleijado grita com os filhos. Grita com a mulher, que perdeu o juízo. O irmão-aleijado atira-se à mulher sem juízo durante a noite e engravida-a. O irmão-aleijado grita. O irmão-aleijado encosta a Kalachníkov à parede, atrás de si. O pai de Shirin-Gol perdeu a voz. O pai perdeu o olhar. O pai perdeu tudo. Passa o tempo sentado e só come quando alguém lhe dá de comer, quando alguém lhe mete a comida na boca, como a uma criança. Criança-pai. Pai-criança. Nafass, Nabi, Navid e Nassim têm medo. Acordam estremunhados à noite. Com um ar apático, Morad agacha-se no seu canto a fumar. Opio. Quatro dias e quatro noites. Depois parte. Desaparece. Sem uma última palavra. Sem um último olhar. Shirin-Gol não vê nada, não ouve nada, não nota nada. Depois de dar de mamar à pequena Nassim e de a lavar, porque voltou a vomitar após comer: depois de mudar o penso da testa de mulher-do-irmão; depois de ligar de novo o toco do irmão, que há meses não pára de criar pus; depois de prometer a Nafass, Nabi e Navid que a vida vai melhorar, entra no quarto e vê que o canto de Morad está vazio. Não sente no quarto nem o fumo quente nem o cheiro a ópio acabado de fumar. O canto vazio de Morad está frio. Shirin-Gol não fica triste nem contente. Agachando-se no tapete colorido, dá o peito a Nassim, olha o canto vazio de Morad e não sabe como sabe, mas sabe que Morad partiu e nunca mais voltará. Morad, o seu marido, o pai dos filhos dela. Com um grande dela de filhos dela. Por um lado, era mais um fardo. Por outro, quando estava em si, era um marido justo e terno. Um pai bondoso e amoroso dos filhos dela. Dela. Por um lado, era como um dos filhos. Tinha de o lavar, de lhe dar de comer e de o consolar. Por outro lado, era um homem. O único protector oficial. Tanto fazia o seu estado. O importante era ser homem. Por um lado, não ajudava nada. Por outro, os outros homens deixavam-na em paz na sua presença. Agora, Shirin-Gol está sozinha. Trata dos filhos sozinha, vende o trigo sozinha, vende o bonito bidão de plástico das Nações Unidas sozinha, vende o tapete sozinha. Para comprar aos filhos alguma coisa decente para comer. Sozinha diz ao mullah e ao talibã que não quer marido, que tem um marido que há-de regressar. Vai ao bazar sozinha. Sozinha trata do irmão :aleijado, da mulher do irmão aleijado, dos oito filhos do irmão aleijado. Sozinha trata do seu pai-criança. Sozinha. De quatro em quatro dias, o talibã aparece-lhe à porta a querer tomá-la para si. De quatro em quatro dias, Shirin-Gol manda-o embora.

A mulher-do-irmão, que perdeu o juízo, que anda com apatia de um lado para o outro, que puxa os cabelos, que arranha a pele até fazer sangue, que passa as pernas à volta do tronco da árvore e que bate com a testa, porque quer matar as imagens que tem na cabeça, que quer arrancar os olhos para não ter de ver mais o sofrimento do marido, a fome dos filhos e o inferno em que a vida se tornou, a ensanguentada e doida mulher-do-irmão, diz: Parte. Desaparece. Vai e leva os teus filhos contigo. Vai! Vai! Vai! Para não teres de ver mais o sangue na testa da mulher-do-irmão e no tronco da árvore. Para que o fedor do pus-do-toco-da-perna-do-irmão não volte a empestar-te a pele. Para que tu e os teus filhos não endoideçam. Para que tu e os teus filhos não morram à fome. Para que não nos matemos todos uns aos outros. Para que. Para que. Para que. Vai! Shirin-Gol espera quarenta dias e quarenta noites.

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Depois, junta os trapinhos que pode levar consigo, beija a testa da mulher do irmão e parte. - Para onde vamos? - pergunta Nafass. - Para outra aldeia - responde Shirin-Gol. - Para a aldeia onde vive a tua irmã mais velha, Nur-Aftab. I 180 181 Nafass reflecte: - É aquela com o vestido de casamento parecido com uma nuvem,verde-amarela-laranja-vermelha mais bonita do mundo? - É - confirma Shirin-Gol. -Quero ir ter com a minha irmã do vestido de casamento cono uma nuvem - grita Nafass. - Também vou ter um vestido de casamento parecido com uma nuvem? - Temos uma irmã? - perguntam Nabi e Navid. - O que é um vestido de casamento parecido com uma nuvem? Também vamos ter um?

Alá seja louvado. Ainda de longe, Shirin-Gol vê que a aldeia, que parece um homem deitado no chão com as pernas muito juntas e os braços esticados, só em parte foi bombardeada. E se fosse uma ave que voasse no céu e observasse a aldeia de cima, veria que a casa onde vive a sua filha e o jovem talibã também não está destruída. Ao som dos cânticos da mesquita, o vento atreve-se a invadir ruas e casas, campos e jardins, fazendo dançar as cabeças das papoilas e sacudindo-lhes o pó do dia das delicadas corolas. "A única graça conhecida no Afeganistão é o cântico da mesquita transportado pelo vento pensa Shirin-Gol, agachando-se debaixo da amoreira, fechando os olhos, libertando o rosto da burka e entregando-se à voz do muezim e do vento. O vento sabe que as armas se calam quando se ouve a voz do mullah, Uma brisa ligeira e agradável sopra ao de leve do Indocuche, saudando Shirin-Gol e os filhos com o cheiro da neve, transportando até ao vale os murmúrios pacíficos das mulheres que andam nos campos. Shirin-Gol e os filhos agacham-se ao sol quente da tarde e esperam, meio a dormir, meio felizes, meio medrosos e inquietos. Estão simplesmente sentados como milhões de outras mulheres e crianças, que algures no Afeganistão se agacham à espera. À espera. Do fim da guerra. Dos maridos. Dos Filhos. De alguma coisa decente para comer. Disto e daquilo. O vento une-se com o cheiro das maçãs, o pó fino das ruas, a erva fresca, as papoilas, a breve paz, a calma perfeita, o cântico dos jovens que louvam a sua pátria. O vento enfia-se nos lenços e roupas de Shirin-Gol e pousa-lhe na pele cansada. "Aqui podia ser o Paraíso", pensa ela de olhos fechados. Ao ouvir os cascos dos primeiros burros na estrada, ao ouvir os primeiros gritos dos homens, ao ouvir os primeiros tiros, Shirin-Gol tapa o rosto com a burka, levanta-se, pega em Nassim ao colo, dá a mão a Navid, Nafass e Nabi agarram-se às suas saias e todos juntos iniciam a descida a caminho da aldeia. 182 A corda já não está lá, transformou-se numa barreira. O antigo mecânico de rádios e o antigo alfaiate de mulheres já não estão lá. Da barreira pende a vida íntima de várias cassetes. Cassetes de música confiscadas. Os talibãs partiram-nas, arrancaram-lhes as fitas e penduraram-nas na barreira como troféus, em sinal de intimidação. A música é proibida. A casa de chá ainda se encontra no mesmo sítio, mas o amável dono da casa de chá não. - Onde está? - pergunta Shirin-Gol. - Morto - responde o novo dono da casa de chá. - Quem vive no quarto atrás da casa de chá? - indaga Shirin-Gol. - O que tens a ver com isso? - pergunta o novo dono da casa de chá. Shirin-Gol segue em frente. Desce a rua de areia até ao portão azul-claro de ferro, que tem agora mais buraquinhos parecidos com picos e feridas abertas, e mete pela ruazinha onde vive a filha. O coração de Shirin-Gol galopa-lhe dentro do peito, de cima para baixo e da direita para a esquerda. Tanto lhe bate na garganta, parecendo que vai saltar-lhe pela boca, que ela perde a voz. Voz perdida. Por isso, empurra Nafass para a frente. - Procuro a minha irmã Nur-Aftab - diz a pequena, num sorriso aberto como a Luz-do-Sol. - Aqui não vive nenhuma Nur-Aftab - diz o homem, fechando

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a porta de madeira. O coração de Shirin-Gol cai-lhe no estômago com tanta força que o mundo perde a cor. Cor perdida. Cor do rosto perdida. Fica tudo negro aos olhos de Shirin-Gol, o vento cala-se, a noite cai sobre o mundo. Shirin-Gol segue em frente. Pousando um pé à frente do outro sem saber como o faz, sem saber porquê, sem saber para onde. Um pé à frente do outro. - Quem são vocês? - pergunta um talibã. Somos Fulanos. Somos uns quaisquer. Uma mulher e os seus filhos. Os seus filhos. Procuramos o talibãã de nome Fulano, que vivia em tal sítio. -- Sou novo aqui. Não conheço ninguém assim, nenhum talibã com esse nome. - Onde está Bahadur? - pergunta Shirin-Gol ao rapaz que abre a porta. - Quem? - Bahadur, a quarta mulher do segundo comandante mais importante dos mujaedines - explica Shirin-Gol. 183 - Esse foi morto. Era um traidor. -Quem traiu? Quem o matou? O rapaz olha à esquerda e à direita e murmura: - Os talibãs. Foram os talibãs que o mataram. - Onde estão as mulheres dele? - pergunta Shirin-Gol. - Foram mortas - responde o rapaz. - E os filhos? - Também. - Porquê? - pergunta Shirin-Gol. - Sei lá! - replica o rapaz. Shirin-Gol segue em frente. - Onde está a médica Azadine? - pergunta Shirin-Gol à mulher talibã que vive agora no consultório. - Ne pohoegoem, não sei - diz a mulher em pastum. Shirin-Gol segue em frente. A casa do mullah foi atingida por um míssil. Metade acha-se destruida e metade de pé. O mullah foi morto, a mulher do mullah ainda é viva. - Onde está a minha filha? - pergunta Shirin-Gol. - Foi-se embora - responde a mulher do falecido mullah. - Para onde? - Provavelmente para Herat. - Herat? Quando? Porquê Herat? - Porque o marido a levou para lá - volve-lhe a mulher do falecido mullah, baixando os olhos para o chão. - Tu és mãe de filhas e filhos, diz-me o que aconteceu à minha filha. Seja o que for, suplico-te que mo digas - implora Shirin-Gol. - Nur-Aftab e o marido, o jovem talibã, tiveram um filho. O talibã era um homem bondoso e justo. Dava-se bem com a tua Nur-Aftah e amava o filho mais do que a própria vida - começa a mulher do falecido mullah. - Onde está a minha filha? - pergunta Shirin-Gol. - Deixaram a tua filha viva, mas a ele mataram-no. Porque era Porque se revoltou. Porque defendeu as pessoas contra os outros talibãs Porque disse que o que os talibãs fazem não é o que está no Alcorão, não é a lei de Deus, não é a palavra do Profeta. Os outros talibãs disseram que um talibã também pode errar e mataram-no. Mataram o comandante, o meu marido, o teu genro e muitos outros. Olhando outra vez para o chão, a mulher do falecido mullah continua: -Depois, um outro talibã tomou a tua filha por mulher, dizendo que desde o princípio ela devia ter-lhe pertencido a ele e a nenhum outro. Um escarro. Um maço de notas. Olhos frios e azedos. 184 A boca de Shirin-Gol sabe a fel. Sabor a fel. - Onde está a médica? - pergunta Shirin-Gol. - A Azadine fugiu - diz a mulher do mullah. - Proibiram-na de trabalhar. Resistiu aos talibãs, protestando que em Cabul e noutras cidades e aldeias há médicas que nem os talibãs nem ninguém proíbe de trabalhar. Os talibãs responderam-lhe que nas outras cidades e aldeias mandam outros talibãs, mas que aqui quem manda são eles. A Azadine ainda continuou a ver doentes às escondidas, mas os talibãs descobriram e proibiram-na. Depois, disseram que ela precisava de um marido para não ser tão rebelde, para ter alguém que a controlasse. Então, juntou os trapinhos e fugiu às escondidas, durante a noite. - Para onde? - Para Cabul. - Tenho de ir a Herat - afirma Shirin-Gol. - Quero ir procurar a minha filha. - Sozinha? - Com os meus filhos. - Vais demorar semanas a chegar lá. -Mas vou. - Sem marido? - 185 CAPÍTULO 15 UMA RAINHA QUE TINHA A ÚLTIMA PALAVRA Estradas de asfalto. Um aeroporto. Árvores de folhas compridas e fina como agulhas. Cheiro a limpo. Imponentes palácios e mesquitas enco- mendados por uma rainha, Gowhar Shad, mulher do rei Shah Rokh. Pa lácios que sobreviveram a todas as guerras. Até hoje. Na escola russa, quando Fauzich falou de Herat,

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Shirin-Gol pensou "Um dia hei-de lá ir." Um dia. Dantes, quando ainda não tinha uma filha, que fora obrigada a deixar e que precisava agora de procurar. Dantes. Herat, a cidade que foi a capital de um grande e poderoso reino. Herat, a cidade do rei timúrida, do rei Tamerlão, do rei da arte, a cidade da grande biblioteca, da escola de iluministas. Shah Rokh, o quarto filho do grande Timur. O rei, cujo poder se estendeu até ao Irão e ao Turquestão. Herat, a cidade do vidro azul. Azul como o lago, cuja água Shirin-Gol bebeu quando era adolescente. Água que lhe refresca a garganta. Herat, a cidade de tudo isto e muito mais. Herat, a cidade onde morreram vinte e quatro mil pessoas quando os blindados russos chegaram. Herat, hoje a cidade dos talibãs. Talibãs de turbantes pretos. Talibãs de compridas shalvar-kamiz. Talibãs de regras rigorosas, que proíbem tudo às mulheres. É proibido andarem sozinhas na rua. É proibido frequentarem a universidade. Herat, outrora cidade de eruditos, de rainhas que tinham a última palavra. Herat, outrora cidade de escritores e poetas. Cidade da música e da dança. Dantes. Herat, a cidade onde hoje as raparigas só andam na escola, se for às escondidas. Herat, a cidade de gigantescos minaretes inclinados. Sobreviveram às bombas dos Russos e aos mísseis dos mujaedines. Sobreviverão também às bombas dos EUA? Herat, a cidade do progresso, terra de homens de ciência e de sábios, é hoje governada pelos déspotas mais retrógados que o Afeganistão conheceu. Talibãs. Pobre Herat. Pobre Shirin-Gol à procura da filha. Agachada na berma de uma estrada, não sabe onde há-de procurar Nur-Aftab. No primeiro andar da casa que fica atrás de si, o amável dono do restaurante vê Shirin-Gol, faz o que é proibido e pede ao atrevido Nabi que diga à mãe para subir. O amável dono do restaurante gostaria de agradar ao seu Deus, dando de comer a Shirin-Gol e aos filhos. "Pratica uma boa acção todos os dias que Deus te dá." Uma refeição grande e quatro refeições pequenas é uma boa acção. - Isto é insubmissão - diz Shirin-Gol, libertando o rosto da burka. - Isto é insubmissão - responde o amável dono do restaurante. é Shirin-Gol, Nafass, Nabi, Navid e Nassim agacham-se em tábuas. Oi to homens sentados noutras tábuas observam cada pedacinho que Shirin -Gol leva à boca. Nem com simpatia nem sem simpatia. Francamente. Sem rodeios. Com avidez. Com cobiça. Têm direito a isso, são homens. Shirin-Gol atreveu-se a invadir um domínio masculino. Sozinha. Sem protecção. Sem Morad-de-ópio. - Se a ssia-ssar anda por aí nua, é porque com certeza quer chamar a atenção - diz um deles. Nua. Mulher nua. Shirin-Gol nua. - Diz-lhe que coma arroz para ficar forte. Diz-lhe que a carne dá inergia - aconselha um outro. Herat não é como o resto do país. Aqui é perigoso uma mulher andar sem protecção masculina. "Deixa-os falar", pensa Shirin-Gol. "Deixa-os ver como levo a comida à boca.,, Shirin-Gol, Nafass, Nabi, Navid e Nassim comem tanto, ficam com as barrigas tão cheias e duras que quase não conseguem respirar. Barrigas cheias de arroz, carne e hortaliças, chá com açúcar e pão. Numa gaiola, um pássaro chilreia e trina. Nem é bonito nem feio. só um trinado. -Quer sair da gaiola - diz Nabi. - Para onde? - pergunta o amável dono do restaurante. Nabi encolhe os ombros. Um rapaz traz uma taça para lavar as mãos, pousa-a em frente de Shirin-Gol e toca-lhe no pé descalço. Sem querer. "Deixa-o tocar-me", pensa Shirin-Gol, lavando as mãos. 187 Da janela, à frente da qual está agachada, Shirin-Gol vê os homens voltando a abrir as suas lojas ao fundo da rua. Já rezaram. Comeram. Dormiram. Deitados ao lado, dentro e em cima das mulheres. Lavaram as mãos, os pés, os cotovelos, atrás das orelhas. "Água, água, lava-me. Purifica-me dos meus pecados.. Rezar. Esquecer. Fazer o Bem. Shirin-Gol bebe o chá e passeia o olhar pelos homens. Insubmissa,. - Daqui a pouco é a hora do recolher - diz o amável dono do restaurante. - Onde vais passar a noite? Oito homens esticam o pescoço. Que irá responder a mulher nua a barriga cheia de arroz e carne devido a uma boa

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acção? O pássaro chilreia. Alto e baixo. Baixo e alto. - Quer sair - diz Nabi, encolhendo os ombros. - A cidade não é segura - diz o amável dono do restaurante. Aqui há umas noites, os talibãs forçaram a entrada numa casa e violaram uma inglesa. Uma estrangeira que trabalha numa organização humanitária. É coisa que nunca aconteceu na história da nossa terra. Uma estrangeira que foi violada. Shirin-Gol bebe o seu chá. - O pássaro quer sair - diz Nabi. Um talibã violador. Uma inglesa violada. - Vou levar-te à casa da minha irmã, onde ficarão em segurança diz o amável dono do restaurante. - Onde ficaremos em segurança - repete Shirin-Gol. O amável dono do restaurante não quer nada pela sua boa acção A única coisa que quer é ser bom. - Em tempos difíceis, as pessoas boas têm de fazer ainda mal, Bem, para que a justiça não morra - diz ele. O amável dono do restaurante nasceu em Herat e passou aqui toda a sua vida. Só foi para Cabul quando andava a estudar. - Estudei Direito - continua. - Comecei em 1349, no tempo da rei Zaher, e acabei em 1354, quando Daud estava no poder. Depois tive de ir fazer o serviço militar. Era soldado de infantaria. Andávamos sempre a pé de um lado para o outro. O soldado de infantaria formado em Direito anda a pé. O soldado de infantaria formado em Direito recebe um louvor. - Eu andei na escola russa e também recebi um louvor - diz Shirin-Gol. - As outras crianças aplaudiram. - Trabalhei no Ministério das Finanças, onde era responsável pelo Planeamento e Programação. Trabalhei no Departamento dos Direitos Alfandegários e depois no Ministério Público, primeiro em Cabul e a seguir ati, em Herat. - Eu andei na escola russa e aprendi a ler e a escrever - diz Shirin-Gol. - Quem não sabe nada, acredita nas pessoas que imagina que sabem mais - continua o amável dono do restaurante. - Quem sabe ler, pode formar a sua própria opinião e não é obrigado a acreditar no que os outros lhe dizem. - Eu queria ser médica - afirma Shirin-Gol. - Não há muitas mulheres como tu - diz o amável dono do restaurante. - Onde está o teu marido? -Ao princípio, o meu marido estava comigo, mas agora ando sozinha com os meus filhos pelo mundo. -Conheço a minha mulher desde que éramos pequenos - conta o amável dono do restaurante, que não quer nada pela sua amabilidade. - -Ando à procura da minha filha Nur-Aftab, que dei por mulher a um talibã e que deixei no Afeganistão, de modo a poder fugir para o Irão com o dinheiro que recebi por ela. O amável dono do restaurante assente, mas não diz nada. O pássaro quer sair. E agora só peço a Deus que ela ainda esteja viva - diz Shirin-Gol, sorrindo para não chorar. - Temos sorte - replica o amável dono do restaurante. - Todos os que hoje ainda estão vivos no Afeganistão têm sorte. - Sorte - repete Shirin-Gol, sorrindo. - O pássaro também tem sorte - diz Nabi. - Nunca combati - acrescenta o amável dono do restaurante. - A guerra não é solução. -Não há muitos homens como tu - diz Shirin-Gol. -Num país como o nosso, os homens que não combatem não são vistos com bons olhos - continua o amável dono do restaurante. - Há muitos que nem sequer me consideram um verdadeiro homem por causa disso. Como todos os afegãos, também fui contra os Russos e contra o presidente 'I'araki e o seu Governo, que colaborava com os comunistas. Fui contra os Paquistaneses que os apoiaram. Fui contra os Americanos que os apoiaram e sou contra os talibãs. Mas guerra? Não é solução.

O meu pai combateu nas montanhas e agora passa o dia sentado num canto, tão desamparado como a minha filha mais nova - conta Shirin-Gol. - O meu irmão pisou uma mina e perdeu uma perna. Uma perna, um braço e o filho que levava pela mão. O meu outro irmão é um shahid, que enterrámos. Não faço a mínima ideia se os meus outros irmãos e irmãs estão vivos ou mortos. - Se pudesse falar com os dirigentes dos mujaedines, havia de lhes perguntar porque é que continuaram a combater depois de terem expulsado os Russos -

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acrescenta o amável dono do restaurante. - Porque é que puseram Cabul a ferro e fogo. Porque é que saltearam estradas. Por- 188 - 189 que é que violaram as mulheres dos seus próprios irmãos de fé. As pessoas deram aos mujaedines tudo, tudo, tudo, o pão e a vida. Gostaria de lhes perguntar se não são afegãos. Se este país não é a sua pátria. E dir-lhes-ia que me arrependo e que lamento cada dia em que os ajudei. E perguntar-lhes-ia que direito têm a querer outra vez o Poder. E dir-lhes-ia que os talibãs só puderam chegar ao Poder por uma razão: apenas porque os mujaedines continuaram a combater. Shirin-Gol ri:

A bandeira do nosso país perdeu a cor. Hoje é branca. Antes vermelha, branca e preta. E antes era vermelha. O amável dono do restaurante sorri e repete:

Vermelha, branca e preta. Somos como os mortos a quem o ladrão de mortalhas, o kefrn-kesh, rouba o pano que os envolve - diz o amável dono do restaurante. O kefrn-kesh deslizava furtivamente para as campas durante a noite, desenterrava os que acabavam de morrer, tirava-lhes as mortalhas dos corpos e ia vendê-las ao bazar. Um dia, os mortos fartaram-se de serem amortalhados e enterrados para depois os desenterrarem e lhes tirarem as mortalhas. E como jaziam tão mortos, frios e despidos nas suas campas, resolveram pedir ao deus dos mortos que os livrasse do desavergonhado kefrn-kesh. Deus, o Justiceiro., ouviu-os, deu-lhes razão e desembaraçou-os do velhaco ladrão de mortalhas. Os mortos ficaram contentes e aliviados, mas o seu descanso em breve seria novamente perturbado. O ajudante do kefrn-kesh tornou-se o novo kefin-kesh. Mas não só fazia o mesmo que o seu mestre e antecessor, roubando as mortalhas aos mortos, como também tinha um outro hábito ainda pior: depois de desenrolar as mortalhas dos corpos dos mortos, violava os cadáveres e satisfazia o seu repugnante desejo nos despojos nus. Com aquela é que os mortos não contavam. Profundamente arrependidos da sua decisão, pediram a Deus que lhes devolvesse o antigo kefin-kesh. - Passa-se o mesmo connosco continua o amável dono do restaurante. - Os Americanos, os Ingleses e os Russos serviram-se como quiseram do nosso país. Do nosso petróleo. Do nosso urânio. Do nosso ópio. Assinaram com o Afeganistão contratos vantajosos para eles e aproveitaram-se de nós. E de futuro também se apropriarão daquilo que quiserem. Sempre sofremos com a influência do mundo ocidental e assim continuará no futuro. Mas seja o que for que os EUA e os seus aliados e amigos nos façam, sempre é melhor do que os fantoches, os talibãs, que criaram e nos mandaram para cá. Não só roubam o nosso urânio e metem ao bolso os lucros da venda do ópio, como ainda por cima destroem tudo. Arrasam a nossa cultura e tradição, que têm milhares de anos. Desonram-nos e ultrajam-nos. O amável dono do restaurante ri: E vão matar-me por não obedecer à proibição e estar aqui sentado a falar em público contigo.

Tive um sonho - começa Shirin-Gol. - Sonhei que as bombas, que há mais de duas décadas caem nas nossas casas, não eram bombas e sim livros. Sonhei que as minas que nos puseram debaixo dos pés, não eram minas, mas sim trigo e algodão.

Um belo sonho remata o amável dono do restaurante.

Shirin-Gol remove céus e terra durante quatro dias. Pergunta a toda a gente. Ninguém conhece Nur-Aftab, filha de Shirin-Gol e Morad. Morad-de-ópio. Ninguém conhece o talibã que

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se chama Fulano, o segundo marido de Nur-Aftab, com quem foi obrigada a casar-se depois de lhe matarem o primeiro. Ninguém conhece aquele que escarrou aos pés de Shirin-Gol. Ninguém a conhece. Ninguém o viu.

Antes que os talibãs reparem nela, antes que possam começar a importuná-la, antes que gaste o dinheiro todo, antes que se torne um fardo para a irmã do amável dono do restaurante, antes, antes, antes, Shirin-Gol parte. Para onde? Que diferença faz? Nenhuma. Não faz qualquer diferença para onde vão Shirin-Gol e os filhos. O dinheiro que o amável dono do restaurante ofereceu a Shirin-Gol chega para a viagem até Kandahar.

Portanto, Kandahar. A cidade das romãs vermelhas e estaladiças. O fruto do amor. Com mil e um grãos estaladiços. Todos iguais. Todos diferentes. Agridoces. Já passaram anos, mas Shirin-Gol lembra-se muito bem dos grãos vermelhos e sumarentos entre os dentes. Agridoces. Nur-Aftab, com o seu vestido de casamento parecido com uma nuvem verde-amarela-vermelha-laranja, comera do fruto do amor, cujo sumo lhe tingira os lábios de vermelho, escorrendo-lhe vermelho de sangue para os cantos da boca e pingando-lhe o vestido. Formando uma flor vermelha no seu regaço de menina. "Vermelho saindo da boca da filha,>, pensara Shirin-Gol. Kandahar. Dario, rei dos Aqueménidas, foi derrotado por Alexandre Magno em Kandahar. Os Sasstnidas, os Árabes, outros reis da Pérsia, 190 191 Turcos, Genghis Khan da Mongólia, os Timtíridas, os Ingleses, os Russos e os Americanos, os kefin-kesh e os talibãs, homens que cospem escarros verde-amarelados, o zarolho mullah Ornar, o mal-afamado Osama Bin Laden, todos estiveram ou estão ainda aqui. Nur-Aftab não. Ninguém a conhece, ninguém a viu. CAPÍTULO 16 SIMORGH E O ESQUELETO DE UMA CAPITAL

- Safam.

Wa-aleikomo safam, que a paz esteja contigo. O amável dono do restaurante de Herat deu a Shirin-Gol a morada do seu irmão e da mulher, em Cabul, dizendo: - Se o meu irmão Herati e a mulher ainda estiverem vivos, que Deus o permita, vão ajudar-te. -Mande nabashi, espero que não estejas cansada - diz o irmão Herati amavelmente, pousando a mão direita no coração e inclinando a cabeça à maneira afegã. - Bem-vinda aos escombros desta cidade. A Cabul. Sê nossa hóspede. - Vivi aqui nos meus anos de adolescente - conta Shirin-Gol. - Andei na escola russa. - Não resta muito da cidade dos teus anos de adolescente - responde o irmão Herati. - Cabul transformou-se numa cidade de mortos e esfomeados. O irmão Herati viu Cabul no tempo do rei, quando o canhão ribombava mia vez por dia no cimo da montanha. O irmão Herati conhece o Afeganistão em paz, a cidade de Cabul sem os mísseis, as bombas e as minas que a destruíram, a Pérola do Oriente com as suas mesquitas, edifícios e casas azuis. Também ele andou a estudar aqui. Mais tarde, deu aulas na universidade até ser obrigado a ir para a guerra. Contra os mujaedines. Desertou, juntou-se aos mujaedines e ajudou a expulsar os Russos da sua pátria. A sua pátria, que ama como um poema, como o filho, a mulher, a

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própria vida. Agora conduz táxis. O irmão Herati conhece o Afeganistão e Cabul de um tempo em que as folhas das árvores dançavam ao vento ao longo das ruas asfaltadas, e em que os jovens álamos não faziam ideia de que iam ser reduzidos a lenha, passado pouco mais de duas décadas. O irmão Herati lembra-se do ar 193 límpido e cristalino, cheio do alegre tilintar e retinir dos sinos portadores de boa sorte e das campainhas das carroças. Lembra-se do doce e sonhador chape-chape das rodas de madeira e dos cascos dos cavalos. Ainda tem nos ouvidos os pregões dos vendedores, o riso e as canções dos jovens. Ouve as vozes cristalinas, vigorosas e sorridentes que celebram a sua admirável pátria. Vê coloridos papagaios de papel dançando no céu, perto de Deus, sem saberem que, vinte anos depois, a lei dos talibãs proibiria que se lançassem papagaios ao vento.

É proibido brincar. - Porquê?

Sabe-se lá! - Porque os talibãs são os talibãs. Porque proíbem tudo o que podem. Em nome do Profeta, do Alcorão e do Islão. -As raparigas e as mulheres estão proibidas de andar na rua e de ir à escola. As mulheres não podem nem estudar, nem trabalhar. Os rapazes têm de tapar a cabeça, rapar o cabelo e não podem jogar futebol, iria-,d -hamn-a'o-allah, louvado seja Deus, o Grande e único. Os homens têm de deixar crescer a barba, não podem vestir casacos e calças ocidentais, sendo obrigados a andar na rua de cabeça tapada. O irmão Herati vai falando, enquanto segue aos solavancos com Shirin-Gol no velho e ruidoso táxi, percorrendo as ruas acidentadas e esburacadas, passando pelos destroços de autocarros, automóveis e blindados, passando por pedintes de mão estendida, passando por mulheres e crianças a caminho de algures para nenhures, passando pelas covas feitas pelas bombas, montões de entulho, casas derrubadas, escombros. O irmão Herati conta que dantes, quando tudo era como nunca mais voltará a ser, a viagem da sua aldeia até Cabul, para a qual hoje são necessárias treze ou mais horas, se fazia em quatro ou cinco. - Cabul era uma cidade cheia de flores e alegria - diz com a voz embargada pelas lágrimas. - Eu sei - concorda Shirin-Gol, virando a cabeça tapada, calando-se e olhando pela janela do automóvel. Ali, onde hoje os esqueletos e espectros das casas de pedra e lama esticam o pescoço despido e fino para o céu, sem que Deus lhes explique porque é que deixou que tudo isto acontecesse, erguiam-se, dantes, esplendorosos edifícios antigos com arcos, arcadas, casas de tijolos decoradas com mosaicos azuis e verdes. Os bazares não cheiravam a fome, a farrapos, feridas de guerra purulentas, crianças corn diarreia, medo, urina, carne podre e esgotos chocos e inquinados, mas sim a canela, cardamomo, curcuma e água de rosas. A música e as canções saíam das coloridas lojas de tapetes para as ruas. À noite, o céu límpido de incontáveis estrelas e de esplendor irreal transformava a cidade num conto d' As mil e uma noites. 194 Numa noite como aquelas em que Xerezade lança o corpo de ébano e marfim aos pés do seu rei. Do sinistro e impiedoso rei que tem o desagradável hábito de casar todas as noites com uma adolescente e de a mandar matar de manhã, depois da primeira noite de amor. Xerezade entoa uma pequena melodia de mansinho, cala-se, espera que a impaciência do seu senhor aumente até ao infinito. Até agora, o Sinistro mandou matar todas as suas mulheres, logo a seguir à primeira noite. Mas não Xerezade. Não, ela. Porque Xerezade contou-lhe uma história, mas deixou-a por acabar. O rei ajoelha-se aos pés da sua amada Xerezade e pede-lhe, suplica-lhe que continue a contar-lhe a história da noite anterior, jurando pelo seu Deus que lhe poupará a vida e lhe lançará aos pés pedras preciosas, ouro e sedas, se ela lhe contar o fim. Xerezade sorri docemente, triunfa, pousa a bonita cabeça no ombro, toca com os dedos

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delicados nos anjos que só ela e mais ninguém vê no ar e continua a contar a história que na véspera deixou por acabar, para que o rei lhe desse mais um dia de vida, se quisesse ouvir o fim. O mesmo jogo durante mil e uma noites. Uma história nova, de que não conta o fim. Hoje, meu rei, meti senhor e amo, hoje sou uma ave, a mais bela de todas as aves. Por isso, ouve. Contar-te-ei esta história uma vez e mais nenhuma. Só desta vez e mais nenhuma escutarás o que Deus, o Misericordioso, cuja bondade não tem princípio nem conhece fim, o que o Todo-Poderoso me ordena que te diga. Além de Deus não havia ninguém, mas havia as suas aves. Trinta ao todo. Um dia, ouviram falar de uma ave de nome Simorgh, que vivia algures na admirável terra de Deus. É a mais magnífica, a mais inteligente e a mais sábia de todas as criaturas de Deus. As aves tinham ouvido dizer que os homens e as mulheres ficam cegos ao olharem para Simorgh. Ninguém pode resistir à sua beleza, elegância, graça, voz clara e cristalina, canto doce e encantador. As aves reúnem-se no seu lago, discutem o acontecimento e decidem partir em busca desta ave, a mais bela de todas as aves, Simorgh, para lhe apresentarem as suas homenagens e o seu respeito. Sobrevoam a alta montanha e todas as outras montanhas, o vale profundo e todos os outros vales, atravessam o mar e todos os outros mares o deserto e todos os desertos, todas as cidades e países, vêem todos os homens e animais, todas as plantas e seres terrestres e divinos, todo o Bem e todo o Mal, todos os tempos, todos os prodígios, todos os poetas, todos os reis e tudo o resto que Deus permitiu fizesse parte da vida e da Terra Só não vêem uma coisa: a ave Simorgh. Por fim, regressam ao lugar onde começaram a sua viagem. Desannimadas e cansadas. Sem forças e cheias de sede, bebem água do seu lago, eles 194 195 cobrindo nele aquilo que procuraram e não encontraram durante tantos anos. Meu amo e senhor, murmura Xerezade em voz doce, com a qual conduz o Sinistro para o país do amor. Meu amo e senhor, é tempo de descansarmos. E o fim? Amanhã, meu amado. Amanhã. Em troca da minha vida. O fim. Por fim, as aves regressam ao lugar onde começaram a sua viagem. Desanimadas e cansadas. Sem forças e cheias de sede, bebem água do seu Lago, olham e descobrem nele aquilo que procuraram e não encontraram durante tantos anos. As trinta aves vêem no lago o reflexo de Simorgh. O reflexo de trinta aves magníficas e tão belas que homens e mulheres cegam ao olharem para elas. Simorgh sois vós, minhas aves amadas, diz Deus. Vós mesmas. Aquilo que procurastes durante estes anos todos, pelo qual destes a volta ao mundo, não é senão vós próprias. Trinta aves, si-morgh. Simorgh.

Aconteceu-nos o mesmo que a Simorgh, dizem muitos afegãos. O nosso país era o mais belo de todos. O nosso solo era fértil. Se soubéssemos o que sabemos hoje, se tivéssemos cuidado dele, ninguém teria fome neste país. Toda a gente, mendigo ou rei, teria um tecto para se abrigar. A nossa vida desenrolar-se-ia em paz, tranquilidade e harmonia. Mas muitos de nós pensavam que havia um lugar mais belo. Um país mais belo. Uma vida melhor. Mais poder. Mais beleza. Mais glória. O conto de Simorgh não passa de uma história, dizem outros afegãos. Se pudéssemos ter feito alguma coisa, tê-la-íamos feito. Nem os Ingleses, nem os Russos, nem os nossos próprios irmãos que nos traíram, nem os mujaedines, nem os Americanos, nem Osama Bin Laden e os talibãs teriam alguma vez posto um pé que fosse no nosso país. A paz da nossa pátria, a serenidade de Cabul era uma mentira. A serenidade era de vidro.

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Queres ir à montanha ver o canhão? pergunta o irmão Herati, respondendo logo a seguir: - Hoje o canhão está calado. Já não há nada para ver nem para ouvir. Dantes, o rei Zaher Shah mandava que o disparassem sempre ao meio-dia, para lembrar aos fiéis que era a hora da oração na mesquita. Para que todos os que estivessem a trabalhar interrompessem as suas actividades. Para que todos os que não tivessem trabalho se lembrassem de que tinham de o arranjar. E para recordar a todos e a cada um que tinham um rei, sentado num trono de um belo palácio, estenden do a sua mão protectora sobre nós. Hoje, não existe nada nem ninguém de quem possamos ou queiramos recordar-nos. É por isso que o canhão está calado. Shirin-Gol e o irmão Herati não foram, pois, à montanha ver o canhão silencioso. Seguiram pela cidade destruída, onde no tempo do rei e do seu ribombante canhão havia cinemas, museus, restaurantes, jardins. Famílias, mulheres com os filhos pela mão, mulheres e homens passeando ao longo do canal, sonhando com um futuro mais radioso. Na Cabul de outrora, quando os Russos ainda não tinham invadido o Afeganistão, quando os ricos eram ricos e os pobres, pobres, quando os poderosos tinham poder e os fracos obedeciam. Quando as pessoas ainda tinham sonhos, as flores ainda floresciam, as árvores ainda viviam e as casas ainda tinham paredes, telhados, portas e janelas. Quando nas praças e encruzilhadas da cidade as fontes ainda tinham água que dançava no ar. Quando luzes coloridas enfeitavam lojas e quiosques. Quando ainda não se falava sequer de guerra e ninguém tinha medo de pisar uma mina a qualquer momento, ninguém tinha medo de infringir leis arbitrárias, de ser preso a qualquer momento. Dantes, quando Deus ainda estendia a sua mão protectora sobre o Afeganistão e as pessoas ainda possuíam todo o seu orgulho e dignidade. Dantes. O irmão Herati conhece um Afeganistão onde não precisava de ter constantemente medo de ser assaltado. Estava em Cabul no tempo em que não encontrava mulheres e crianças pedindo a cada esquina, despedaçando-lhe o coração. Viu o país sem manetas nem pernetas. Conheceu o antigo Afeganistão e a sua capital como eram e nunca mais serão. Shirin-Gol inveja-o por isso.

Shirin-Gol ouviu dizer que existem na capital organizações estrangeiras de ajuda humanitária, que distribuem trigo e banha às viúvas e que vacinam os seus filhos contra as doenças mais perigosas. Os seus. Os seus filhos. E que talvez lhe dêem trabalho. Diz-se que em Cabul existem escolas até para raparigas. Às escondidas. Mas existem. Talvez Shirin-Gol consiga ser professora. Talvez possa tecer tapetes na oficina de tapetes para viúvas. Talvez. Talvez. - Tu não és viúva - diz-lhe a filha Nafass. - O teu pai não está aqui - responde Shirin-Gol. - Qual é a diferença? Há uma diferença teima Nafass. - De que serve um pai que não está aqui? - pergunta Shirin-Gol - De que serve um homem que abandona a mulher? Que abandona filhos? Que hei-de fazer? Hei-de ficar parada a ver-nos morrer uns a seguir aos outros? 197 Morrer. Morrer à fome. Mortos de fome.

Não - diz Nafass. - Quero viver. - Sim responde Shirin-Gol. Vamos dizer que o Morad morreu. O Morad morreu. O Morad está morto. - Que diferença faz se está vivo ou morto? Nenhuma diferença. Nenhuma. - Está bem - concorda Nafass. - Então vou dizer que o meu pai morreu.

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- Está bem - declara Shirin-Gol. Shirin-Gol tem medo. Medo da capital. Das estradas destruídas. Medo de estar tanhahi, sozinha. Medo por quatro filhos sem pai. Medo das mentiras. Medo dos ladrões. Medo dos homens. Medo dos talibãs. Medo das minas. Medo dos espectros das casas. Reconhece o canal. Já não encontra o caminho para a escola russa. Reconhece a rua do bazar. Foi aqui que Morad estendeu o lenço sobre uma pedra. Foi aqui que disse que ia casar com ela. Foi aqui que ela disse que não havia diferença. Já não encontra o quarto onde viveu com Morad. As bombas comeram-no. Mulheres sem rosto passam por Shirin-Gol. Shirin-Gol-sem-rosto passa por outras mulheres. Não se levam umas às outras a sério. Não se tomam umas às outras por seres humanos. Uma, duas burkas passam por ela. Uma burka fala-lhe, pede-lhe dinheiro ou pão. Pergunta-lhe se tem trabalho para ela. Às vezes, Shirin-Gol ouve uma voz e pensa: > Conheço-a." Uma vez, uma burka pega-lhe no braço, puxa-a de lado, saúda-a, abraça-a, beija-a. Depois, a burka repara que se enganou. Pensava ter encontrado uma irmã de quem há muito tempo não sabia nada. Aos pés de Shirin-Gol encontra-se um rapazinho todo sujo de terra. Só tem a tapá-lo um farrapo cinzento e sujo enrolado à volta da cintura. Está tão sujo de terra e porcaria que mal se distingue da areia e do cascalho da rua. Só tem uma perna, é só pele e osso. Tão aleijado, é mais um fardo do que uma ajuda. Do mesmo lado de onde lhe falta a perna, também não tem braço. O outro braço é apenas um toco. Apoiando-se no toco ferido, concentra-se e arrasta atrás de si o traseiro e o que ainda lhe resta do corpo. Shirin-Gol tem de se esforçar para descortinar a criança naquela desordem de pele e ossos, farrapos e sujidade, que só de muito longe lembra um ser humano, pois mais parece um insecto. Um insecto já meio esmagado, mas que ainda vive. Que se debate no chão, meio morto, meio vivo. E do qual ninguém se apieda, libertando-o da sua meia vida. Shirin-Gol concentra-se nos seus olhos, uns olhos belíssimos, escuros. radiosos e alegres, que lançam um sorriso franco à burka de Shirin-Gol. O mais belo sorriso de criança do mundo. Shirin-Gol compra pão, agacha-se, afasta o véu para trás, arranca pedacinhos de pão e dá de comer ao Rapaz-insecto. Vasculhando o lixo, o Rapaz-insecto encontrou uma mina de brincar. Uma mina construída de propósito para as crianças. Uma mina que parecia um brinquedo. Rapaz-insecto viu a lata tão bonita, que brilhava e cintilava. Brilhava e cintilava tanto que não resistiu a abri-la para ver o que tinha dentro. A explosão não foi especialmente violenta, mas deixou-lhe as mãos, os braços e os lábios em farrapos, atirando-o ao ar. Foi como se voasse. Depois, quando caiu ao chão, houve outra explosão. Não se lembra de mais nada. Mais tarde, disseram-lhe que uma segunda mina o atirou de novo ao ar. Homens passam por Shirin-Gol, agachada ao lado do Rapaz-insecto, e olham-nos com comiseração. Mulheres de burka param, abanam a cabeça e continuam a andar. Outras burkas cochicham e tocam nos braços, na cabeça e no rosto de Shirin-Gol. Uma burka diz-lhe que tem fome e pede-lhe pão, trabalho. Uma outra burka pousa-lhe a mão nas costas, levanta-a, limpa-lhe as lágrimas dos olhos e diz:

Não te mostres fraca. O que eles querem é que nos mostremos fracas para se sentirem fortes. - A burka abraça Shirin-Gol e puxa-a a si. Um abraço vigoroso. A burka acalma Shirin-Gol, que treme da cabeça aos pés. Shirin-Gol inclina-se para o Rapaz-insecto, beija a sua meia face, afa ga-lhe a cabeça e dá-lhe dinheiro. - És a mulher mais bonita que vi na vida - diz o Rapaz-insecto. Shirin-Gol ri e responde: - E tu tens os olhos mais bonitos que vi na vida. Rapaz-insecto baixa o olhar envergonhado e continua: - Também gostaria de te dar um presente. Vou oferecer-te uma pe quena história. Rapaz-insecto olha o rosto descoberto de Shirin-Gol e conta: - Uma rapariga cai a um poço. Um rapaz passa por ali, vê-a, salta lá para dentro e salva-

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a. A rapariga agradece e pergunta: "Porque é que fizes te isto?,> O rapaz responde: "Porque a minha vida não valeria nada se ti vesse ficado a assistir à tua morte. Porque não existe diferença entre ti e mim. Porque somos todos filhos de Deus. Porque, de cada vez que um de nós morre, todos morremos um bocadinho." - É uma história bonita - diz Shirin-Gol. - És um verdadeiro contador de histórias. - Isso sou - afirma Rapaz-insecto, sorrindo. O mais belo sorriso de criança do mundo. - Ganho o meu dinheiro a contar histórias. 199 - Que Deus te proteja, pequeno contador de histórias. - Como te chamas? - Shirin-Gol. - Nunca te esquecerei, Shirin-Gol - diz o Rapaz-insecto, apoiando-se no toco ferido, arrastando atrás de si o traseiro e o que ainda lhe resta do corpo, desaparecendo entre as burkas e as pernas do bazar. E ninguém se apieda dele, libertando-o da sua meia vida. Tapada dos pés à cabeça, Shirin-Gol avança pelas ruas da cidade da sua adolescência. Da cidade da qual já não resta muito. Cabul, a cidade dos mortos e esfomeados, dos malcheirosos e dos rapazes-insectos. O chão juncado de cabelos. Cabelos de homem. Os talibãs tosquiaram homens em público. Tripas de cassetes penduradas nos lampiões. A música é proibida. Um morto suspenso na árvore. Um morto na árvore. Os talibãs enforcaram-no. Para intimidar. Um morto, para intimidar os meios mortos. Mulheres vagueando pelas esquinas. Cheiram a fome. Lamentam-se. Mendigam. Cabul, a cidade das quarenta mil viúvas. Shirin-Gol não é viúva. Shirin-Gol tem Morad. Morad-de-ópio. Crianças, com sacos às costas, vasculhando os escombros em busca de qualquer coisa para queimar, qualquer coisa para comer. Shirin-Gol olha para os pés. Não quer ver, quando alguma delas encontrar uma mina. Cabul, a cidade das minas esfomeadas, à espreita de devorarem, desfazerem e despedaçarem uma das cinquenta mil crianças esfaimadas que percorrem as ruas. Shirin-Gol atravessa as ruas da cidade dos seus anos de adolescente. Passando pelo malcheiroso canal. Passando por gente esgotada, exausta. Por gente com fome. Por gente meio morta. Passando pelo estádio. Primeiro, os talibãs proibiram o futebol. Em lugar de jogar, os homens deviam vir à sexta-feira ao estádio rezar e ouvir os discursos dos seus autodenominados governantes. E deviam assistir. Para intimidar. À decepação das mãos. As lapidações. As decapitações. À decepação das pernas. Em nome do Profeta, do Alcorão e do Islão. Os homens não compareceram. Os talibãs voltaram então a autorizar o futebol, para atraírem os homens ao estádio. Ver futebol é agora um dever. É proibido aplaudir. Allah-o-akbar e la-eiaha-e1--allah é um dever. No princípio e no fim, a oração é um dever. No intervalo do futebol sem aplausos e com allah-o-Mar e la-elaha-el-allah, os talibãs decepam pernas. Decepam mãos. Fuzilam mulheres. Homens. Raparigas. Rapazes. Apedrejam pessoas. Pessoas apedrejadas. Esmagam cabeças. Cabeças esmagadas, cujo sangue salpica a túnica do carrasco. Hoje, Aisha está lá dentro. Aisha. Bela, pequena Aisha. 200 Dois talibãs puseram-na em cima de um burro, porque já não consegue andar. Aisha. E como se não fosse nada nem ninguém debaixo da burka. Como se esta só se tapasse a si própria. Aisha, a Prostituta, perdeu os ossos, diz o talibã que hoje será seu carrasco, rindo e escarrando. Um escarro verde-amarelado. - Que Deus te proteja - disse-lhe a mãe, quando a puxou de dentro do seu corpo e lhe deu o nome da mulher do Profeta para a proteger. - Por uma vida longa. Com saúde. Com liberdade. Sa11âIho-aleihe-wa -aalehi-wa-sai/ant. Aisha. A segunda das mais de catorze esposas do Profeta. Sallalho-aleihe-wa-aalehi-wa-sallam. Aisha tinha seis anos. Seis anos, quando o Profeta vê e se sente perturbado pelafilha do seu protector e amigo Abu Bakr. Desejo de Profeta. Abu Bakr compreende e promete ao Profeta dar-lhe a filha por esposa, logo que esta atinja a maturidade sexual. O sexo maduro de Aisha. Três anos mais tarde, quando Aisha tem nove anos, o Profeta leva-a para Medina e toma-a por esposa. Aisha tem nove anos. Nove

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pequenos anos de menina. O Profeta tem 50. Cinquenta grandes anos de profeta. As mães chamam Aisha às filhas para que o Profeta se lembre da sua esposa favorita e as proteja Sentada no burro, Aisha, a Prostituta, observa os homens através da rede que tem à frente dos olhos. Homens-rede. A prostituta com fome, que perdeu os ossos, observa os homens-rede. Aisha não consegue parar de tremer. Aisha tem o gosto da morte na boca. Sente a língua seca. O cheiro da vingança, pesado como chumbo, provoca-lhe náuseas. O seu ventre é uma caverna vazia. A criança já não está lá. A burka cola-se-lhe à pele banhada pelo suor do medo. Ao inspirar, entra-lhe pela boca. Ressoam-lhe na cabeça as pancadas, as marteladas do coração e o primeiro choro do filho que tirou do corpo ainda ontem. "Onde está o meu filho? - pensa Aisha. "Porque é que Deus mo deu pensa Aisha. "Deus está a ver?", pensa Aisha. "Onde está Ele?", pensa Aisha. O Unico. O Inigualável. O dos mil nomes. - Esta mulher infringiu as leis de Deus - grita o talibã do meio do campo. - Pecou. Vendeu o corpo. Cobriu-nos de vergonha a nós e ao nosso Profeta. Os talibãs são misericordiosos: esperaram que Aisha desse o filho à luz. Os talibãs são justos. Não matam mulheres grávidas. Aisha ajoelha-se no chão. Aos pés do seu carrasco. Fita a mão do carrasco com a pedra. A mão do carrasco levanta-se. Aproxima-se. Mais. Aisha afasta o véu para trás. - Olha para mim - murmura. Aisha observa o rosto do carrasco. 201 Isto é insubmissão. A mão com a pedra imobiliza-se no ar. O carrasco escarra. Levanta a mão outra vez. Bate. A mão de pedra atinge a cabeça da prostituta Aisha. Duas vezes. Quatro vezes. Golpes que fazem barulho. O sangue da cabeça de Aisha lava do solo da pátria a vergonha da prostituta e o escarro da boca do carrasco. Lava a vergonha. Lava o escarro. Allah-o-akbar e Ia-elaha-el-allah é um dever. Os futebolistas regressam ao campo e retomam o jogo. Primeiro um jogo, depois o outro. Os espectadores baixaram as cabeças. Não querem assistir, nem a um nem ao outro jogo. Os futebolistas deixam-se cair ao chão. Fingem lesões nos joelhos e nas articulações. Os corações lesados é que não mostram. Nem a vergonha e o asco. Isso seria insubmissão. Os jogadores evitam o sangue da cabeça de Aisha. Sangue sacrificial. Sangue da cabeça. Solo sagrado. Solo ensopado de sangue. Solo ensanguentado. Talibãs agitam os seus bastões à volta do campo. Continuai a jogar. Em nome do Profeta. Allah-o-akbar. Talibãs agitam os seus bastões em público. Ficai aqui. Levantai a cabeça. Vede. Allah-o-akbar. Allah-o-akbar. Allah-o-akbar. Todos estão presentes. Menos um. O único. O Inigualável. O dos mil nomes. Shirin-Gol atravessa as ruas da cidade da sua adolescência. Os mortos gostariam de ter outra vez o seu antigo kefin-kesh. Simorgh olha para o lago. Simorgh vê o seu reflexo. Isso é insubmissão. As imagens são proibidas no Afeganistão dos talibãs. Porquê? Quem sabe? Porque os talibãs são talibãs. Os Árabes tomaram conta da cidade. Pintaram tudo de branco. Todas as fachadas, todas as paredes, todas as casas, lojas, edifícios. O branco da paz. O branco da pureza. O branco da inocência. Um talibã árabe arrasta um rapazinho para o seu jipe tão brilhante que até faísca. O pequeno berra, defende-se, debate-se, esperneia e chora. Shirin-Gol grita: -Que queres dele? O árabe estaca e abana o pénis e os testículos. Baba-se, ri e segue o seu caminho. Shirin-Gol fica parada. O rapaz era tão novinho ou tão crescido como Sarvar da aldeia das papoilas, que vivia com os talibãs atrás do portão com os picos. Sarvar, o rapazinho que fazia tudo aos talibãs, porque eles eram simpáticos e davam-lhe de comer. Rapazinho da rua, arrastado para dentro do carro. Rapazinho atrás do portão, a quem dão de comer. "Que será destas crianças quando já não forem crianças?", pensa Shirin-Gol.

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- Tshe hal dari? Como tens passado? - Tashak-kor. Obrigada. Duas mulheres, duas amigas, duas irmãs abraçam-se. Em silêncio. Shirin-Gol encontrou Azadine. Azadine trata mulheres. Oficialmente no hospital e às escondidas em casa. Às escondidas. A casa de Azadine está cheia de mulheres. Outras médicas. Uma agricultora. Uma bióloga. Professoras. Uma engenheira. Enfermeiras. Mulheres que sabem ler. Mulheres que não sabem ler. Mulheres clandestinas. Reúnem-se na casa de Azadine, o que é proibido pelas leis dos talibãs. Mas as mulheres fazem-no. Isso é insubmissão. - Tiraram-nos tudo - diz a bióloga. - Tudo. Os poucos direitos que já tínhamos arrancado aos governantes. Tiraram-nos o nosso trabalho, os nossos filhos e os nossos maridos, pais e mães, as nossas casas, os nossos campos, a nossa pátria, a nossa honra, o nosso orgulho. Até os nossos sonhos. Mas temos uma coisa que não podem tirar-nos. - Já não tenho nada - diz Shirin-Gol. - Absolutamente nada. Não tenho nada que alguém me possa tirar. Só a minha vida e a dos meus filhos. - A nossa esperança - continua a bióloga. - Não podem tirar-nos a esperança. - Não podem? - pergunta Shirin-Gol. - Não podem - responde a bióloga. - Não, enquanto nos mantivermos juntas. Não, enquanto nos ajudarmos umas às outras e às demais mulheres. Não, enquanto respirarmos e vivermos. - Não sabia que havia mulheres como vocês no nosso país - diz Shirin-Gol. - Acabaram a escola, estudaram, sabem pensar bem, sabem falar bem, podem conversar umas com as outras. Eu estive sozinha durante quase toda a vida. 202 203 Azadine abraça Shirin-Gol, ri e observa: - Espera que já vais ver. O nosso lugar é ao lado umas das outras. Partilhamos todas as alegrias e tristezas. Agora já não estás sozinha. -A solidão é um grande inimigo das raparigas e mulheres do Afeganistão - acrescenta a bióloga, lançando um sorriso a Shirin-Gol. - Agora já não estás sozinha. -As mulheres, independentemente do país em que vivem, da língua que falam e da religião que praticam, deviam unir-se e resistir à opressão e à loucura que os homens espalham - diz a professora. - Mas fomos nós que fizemos dos homens o que eles são - acrescenta uma enfermeira. - Afinal de contas, somos nós, mulheres, que educamos os nossos filhos. - Somos oprimidas pelos nossos maridos e temos medo deles - diz uma mulher que não sabe ler. - Isso vai mudar - volve-lhe a bióloga, erguendo orgulhosamente a cabeça. - Estou convencida de que o nosso trabalho vai dar os seus frutos. Começámos há três anos, e hoje já quinhentas mulheres arranjaram trabalho com a nossa ajuda. Não chega, mas é um começo. - Não interessa onde vivemos nem como vivemos. Independentemente das dificuldades, temos de lutar - afirma Azadine. - Isso é insubmissão - diz Shirin-Gol. - É insubmissão - declara Azadine, rindo. - Não há muitas mulheres como vocês no Afeganistão - afirma Shirin-Gol. - Seremos ainda mais - replica Azadine, rindo. E todas as outras mulheres riem, até terem lágrimas nos olhos. Lágrimas de alegria. Alegria feita de tristeza.

Nessa tarde, Shirin-Gol e Azadine ainda não sabem nada do que mais tarde acontecerá no seu país. As médicas, a agricultora, a bióloga, as professoras, a engenheira, as enfermeiras, as mulheres que sabem ler, as mulheres que não sabem ler, as mulheres que se reuniram em casa de Azadine ainda não sabem que dali a menos de um ano os Americanos e os Europeus, em guerra contra os talibãs, virão finalmente em sua ajuda. Nessa tarde, as mulheres acreditam mais uma vez num futuro melhor, cheias de uma esperança que ninguém pode tirar-lhes. Nessa tarde, ainda não sabem os muitos amigos que têm na distante América e na Europa. Ainda não sabem que o combate ao terrorismo só é possível com bombas e mísseis. As mulheres ainda não sabem, nessa tarde, que em breve serão outra vez lançadas bombas sobre

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elas, sobre Cabul, todas as outras cidades, o seu país. 204 Nessa tarde, não sabem que os Americanos virão libertá-las. Que mais uma vez, muitas delas terão de largar tudo e voltar a fugir. Ainda não sabem, nessa tarde, que dali a uns meses algumas delas estarão mortas. Atingidas pelas bombas dos Americanos que virão libertá-las. 205 CAPÍTULO 17 UM MORAD-DE-ÓPIO E UM ORFANATO

Não lhe pergunta porque a deixou sozinha nem onde esteve o tempo todo. Também não lhe pergunta como a encontrou. Dá-lhe apenas um chá e pergunta-lhe se está cansado. Depois manda Nafass à procura de pão para o pai. Morad continua a precisar de ópio todos os dias. Está incapaz de trabalhar. Além disso, não pode pôr um pé na rua, porque cortou a barba num ataque de loucura, e é certo e sabido que os talibãs o metem na cadeia. Shirin-Gol não está feliz nem infeliz com o regresso de Morad. Entretanto, habitua-se a diariamente não-poder-andar-na-rua e diariamente ter-de-andar-tapada-da-cabeça-aos-pés. Aprendeu a viver com a proibição do trabalho feminino decretada pelos talibãs e, apesar disso, sustentar-se a si e a quatro crianças. E agora, que Morad-de-ópio está outra vez com a família, também conseguirá sustentá-lo a ele. Se tiver de ser, também conseguirá comprar-lhe ópio. Embora não saiba como, a verdade é que sempre o conseguiu. Com a ajuda de Azadine e das suas novas amigas, Shirin-Gol arranjou um emprego de mulher-a-dias. A estrangeira trabalha numa organização americana de ajuda humanitária no Afeganistão e ficou contente por a ter a trabalhar em sua casa, pois Shirin-Gol é o seu único contacto pessoal com os Afegãos. Um contacto clandestino. Shirin-Gol gosta da estrangeira e sente-se grata não só pelo trabalho como também pela coragem da americana. E que, tal como proíbem os estrangeiros de entrarem nas casas dos Afegãos, as leis dos talibãs também proíbem as Afegãs de irem a casa dos estrangeiros. Isto sem contar que, de qualquer maneira, é proibido as mulheres trabalharem, excepto se forem médicas ou enfermeiras. Shirin-Gol leva os filhos para casa da estrangeira, senta-os no relvado do bonito jardim, vigia-os constantemente e dá graças por eles poderem estar sossegados entre as flores, arbustos e árvores e correr à vontade sem terem medo de pisar uma mina. Shirin-Gol dá graças por ela e os filhos terem alguma coisa decente para comer todos os dias. Shirin-Gol dá graças por poder olhar nos olhos uma mulher que vem de um mundo livre e que tem tudo aquilo de que precisa para viver e ser feliz.

A estrangeira é uma mulher bondosa, activa e inteligente. E sabe viver. De tantas em tantas semanas, contrata um segundo cozinheiro, manda preparar um banquete e convida as amigas e os amigos estrangeiros, que trabalham em Cabul para outras organizações de ajuda humanitária. Shirin-Gol e o divertido jardineiro levam os tapetes para o jardim. Distribuem-nos debaixo das árvores e põem-lhes almofadas em cima. Entre os arbustos e as flores, espetam velas e paus fininhos que espalham um perfume delicioso quando se acendem. Há comida durante toda a noite. Toda a gente pode servir-se à vontade do que quiser. Toda a noite há as mais variadas bebidas, algumas das quais cheiram mal, mas que os convidados evidentemente apreciam. Não só os homens, mas também as mulheres, fumam cigarros durante toda a noite. Shirin-Gol também não tarda a habituar-se a isso, embora ache mais bonitas as mulheres que

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não fumam. Da primeira vez, Shirin-Gol não soube bem o que pensar, ao ver mulheres e homens estranhos abraçando-se, sentando-se ao lado uns dos outros, juntando as cabeças e até trocando um ou outro beijo. Shirin-Gol tentou sempre desviar a cara. Mas onde quer que pousasse o olhar, via mulheres com roupas ligeiras sentadas muito perto de homens que as observavam de frente, lhes davam a mão e se mostravam ternos. Nem sequer o seu marido, Morad, alguma vez lhe pegara na mão durante tanto tempo, afagando-a e acariciando-a. Nunca a fitara ternamente nos olhos, nunca lhe sorrira, nunca lhe roubara um beijinho apaixonado. "O deus dos estrangeiros deve ser um deus bondoso e livre, que permite às pessoas fazerem isto tudo sem as castigar", pensa Shirin-Gol. Shirin-Gol gosta de observar o alegre jardineiro, o triste motorista e os outros afegãos andando com as bandejas por entre os convivas, perguntando: - Sahib, excuse me, mais um panadinho de peixe? Sab mais um bocadinho de frango? Sahib, excuse me, deseja beber mais algum coisa? Sah b, excuse me, mais uma Coca-Cola? Coca-Cola do Paquistão Sahib isto, sahib aquilo. Como no século passado, no ter nialistas ingleses. Sahib, o amo. Excuse me. Hoje, os lordes preferem ficar em Inglaterra, e os novos sahibs vêm de 207 todo o mundo. Trabalham nas Nações Unidas, na Cruz Vermelha ou noutras organizações não-governamentais. Têm pouco dinheiro, andam de calções e são jovens, extravagantes, democratas, alternativos, aventureiros, prontos a ajudar, abnegados. Os sahibs, na sua maioria, já não se sentiam bem no seu país ou quiseram cortar com o seu quotidiano organizado, seguro, aborrecido e desprovido de sentido. Sahib, mais uma Coca-Cola? Na manhã seguinte, Nafass é a primeira a levantar-se. Na noite anterior, guardou um caixote vazio. Ainda antes de os galos dos jardins vizinhos cantarem pela primeira vez, Nafass sai furtivamente para o jardim e anda de gatas entre os arbustos, espreita atrás das árvores e esquadrinha os canteiros de flores, juntando as latas vazias no seu caixote e sentindo-se rica como uma rainha ao ver a quantidade que tem. Vendendo-as no bazar, talvez consiga dinheiro suficiente para realizar um grande sonho: comprar um par de sapatos de borracha usados, para ter os pés secos e quentes. Até talvez possa comprar um par para si e outro para a sua irmãzinha Nassim. Dois pares de botas de borracha por um caixote inteiro de latas vazias de Coca-Cola. Sahib, excuse me. Shirin-Gol apanha as pontas dos cigarros malcheirosos que os sahibs atiraram para o canteiro das flores, o relvado e os caminhos, recolhe as almofadas onde os sahibs se sentaram e deitaram, sentindo-se mortinha por falar às amigas daquelas mulheres corajosas e livres. Que mostram a pele. Que falam com homens em público, tocando-lhes, sendo tocadas por eles e fazendo sabe-se lá mais o quê. Shirin-Gol vai contar às amigas que viu a cara de mulheres que têm na vida tudo o que é preciso para uma pessoa se sentir feliz e satisfeita. Dirá às suas amigas que ganhou novas esperanças. Enquanto existirem no mundo mulheres livres e sem fome, também haverá esperança para Shirin-Gol e as amigas. Depois das pontas malcheirosas dos cigarros nos canteiros de flores, chega a vez dos pratos. Pratos sujos de preciosa gordura, restos de pão, restos de carne, restos de arroz. Comida para dois dias. Para Shirin-Gol, os filhos e Morad, o alegre jardineiro, o triste motorista e os outros afegãos que trabalham para a estrangeira. Sempre com um sorriso estampado no rosto, o alegre jardineiro volta a arrumar dentro de casa as almofadas, mais os tapetes, dizendo: - Enquanto trabalharmos, não temos de pensar na guerra, nas minas, nem em toda a miséria do nosso país. Venham ajudar-me, meninos. Uma almofada, duas almofadas... Quem consegue pegar em três? - Eu, eu - grita Navid. Eu, eu grita Nafass. O jardineiro orgulhoso, franco e alegre, cheio de músculos, pega nas crianças e nas almofadas e transporta-as para dentro de casa. -Ah, ora vejam! Não são almofadas, são meninos! Nafass, Nabi, Navid e Nassim

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riem tanto que as lágrimas inundam os olhos de Shirin-Gol. Lágrimas de alegria. -Agora vem a melhor parte do nosso trabalho - anuncia o alegre jardineiro. Nafass, Nabi, Navid e Nassim batem as palmas e pulam de alegria. tia. Água. Água da mangueira de plástico. O alegre jardineiro adora a sua mangueira de plástico. Fica extasiado só de pensar que vai limpar o pó e a porcaria com água. As costas e os músculos descontraem-se-lhe, enquanto se dirige à torneira e a abre, mas não muito. A pressão não deve ser de mais. Nem de mais nem de menos. Água. Água. Água limpa e fresca. Nafass, Nabi, Navid e Nassim agacham-se em fila, caladinhos que nem ratos, fitando o alegre jardineiro como se ele fosse contar uma história ou fazer um truque de magia. - Vejam - diz o alegre jardineiro. A água faz o que eu quero. Vejam. Obedece às minhas ordens. Domínio absoluto. O indicador e o polegar apertam a ponta da mangueira. Os jactos de água saem em leque, lavando tudo aquilo para que aponta. Com um bismi-allah, o alegre jardineiro empurra tudo à sua frente, depositando-o no canteiro. Tudo. Pó. Areia. Cinza. Pecados.

Só os pecados dos talibãs permanecem. Shirin-Gol é apanhada. Não pode trabalhar mais em casa da americana. Shirin-Gol é apanhada. Não pode ensinar mais na escola clandestina, a escola em casa. Shirin-Gol é apanhada. Não pode vender mais no bazar os tapetes que tece. Azadine é apanhada. Os talibãs metem-na na cadeia. A bióloga não aguenta mais. Pega nos filhos e em tudo o que conse gue transportar e foge. A enfermeira tem de casar. O marido não a deixa sair mais de casa. A americana foi colocada noutro país do mundo onde também há guerra. Agachada na esquina do bazar, Shirin-Gol pensa que então também há outros países onde existe guerra, estende a mão por baixo da burka e mendiga. Isto pode. Isto não é trabalho. Isto os talibãs toleram. Porque não querem responsabilizar-se por Shirin-Gol nem pelos milhares de mulheres que mendigam. É permitido mendigar. Shirin-Gol dá graças. Apesar de tudo, não tem de vender o corpo. Os filhos são uma grande ajuda. Nabi, o atrevido Nabi, engraxa sapa 208 209 tos. A pequena Nassim queima incenso numa lata velha de Coca-Cola e recebe dinheiro dos transeuntes, por quem reza uma oração. Que Deus, o Bondoso, te proteja de todo o mal, da doença e da desgraça. Al-hamn-do-allah. Navid procura no lixo tudo o que pode queimar-se e vende-o. Nafass, com os seios a despontar e as ancas arredondadas, já atingiu a maturidade sexual. Tem nove anos, talvez dez ou onze. Em todo o caso, é muito crescida para sair à rua. Shirin-Gol proibiu-a de pôr um pé que fosse fora de casa. O perigo de que algum talibã, ou outro qualquer, a veja e a queira por esposa é demasiado grande. Nafass passa o dia agachada no casebre-esqueleto ao lado de Morad-de-ópio, olhando o vazio e esperando que a mãe e os irmãos regressem.

Um dia, Nabi entra no casebre-esqueleto com um turbante preto enrolado à volta da cabeça. - Quero ser talibã anuncia orgulhosamente. - Depois vou para a guerra defender a minha pátria e a minha religião contra os infiéis e os inimigos do Profeta e do Islão. No primeiro dia, Shirin-Gol aconselha-o pacientemente a desistir de tal imbecilidade. No segundo, ameaça-o de o pôr na rua, se não parar com aquilo. No terceiro, dá-lhe uma sova. Nafass atira-se à mãe, liberta o irmão dos seus açoites enlouquecidos e grita: De que é que estavas à espera? Ele passa o dia todo lá fora. Todo o dia ouve os disparates que os talibãs berram, alto e bom som, das

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mesquitas com os seus megafones. Ainda é uma criança. É de admirar que acredite no que lhe dizem? Shirin-Gol observa a filha, a sua pequena Natàss que também ainda é só uma criança, e não sabe o que há-de dizer. Nabi encolhe-se contra a irmã mais velha e chora. Sente-se feliz por ela o proteger e infeliz devido à injustiça da mãe. Sente-se feliz-infeliz. Shirin-Gol agacha-se mum canto e fita Morad-de-ópio, no outro. Odeia-o. Odeia se. Odeia os talibãs. Odeia a fome. Odeia os farrapos que cobrem o corpo dos filhos extenuados. Odeia o fedor que envolve tudo e todos como uma nuvem. Odeia tudo. Odeia todos.

Que Deus é este? - pergunta Shirin-Gol. Porque não me liberta desta vida e me chama a Si? Nafass lança à mãe olhares cheios de rancor, ri-se dela e comenta: - Porque é que Ele há-de chamar-te a Si? Que há-de Deus querer de alguém como tu? Até fica contente por não te pôr a vista em cima. - Que sabes tu de Deus? indaga Shirin-Gol com o sabor do ódio na boca. Deus. Na noite seguinte, quando Nabi, Navid e Nassim chegam ao casebre -esqueleto, depois de engraxarem sapatos, apanharem lixo, queimarem in censo e mendigarem, encontram Shirin-Gol no chão, com uma pulseira vermelha em cada pulso. Pulseiras de sangue. Shirin-Gol cortou os pulsos. Nafass, Nabi, Navid e Nassim agacham-se ao lado da mãe. Nassim molha o dedo no sangue da mãe e pinta uma pulseira de san gue no pulso. Nafass rasga tiras de tecido e liga os pulsos da mãe. - A mãe perdeu o juízo - diz para os irmãos. Shirin-Gol jaz no mesmo sítio durante quatro dias e quatro noites, com as tiras de tecido em volta dos pulsos. Depois, abre os olhos e vé a filha Nafass, agachada ao seu lado, lim pando o suor da testa da mãe. Shirin-Gol sorri a Nafass: - Foi bonito. Vi-O. - Quem? - pergunta a filha. - Deus. Shirin-Gol passa a noite acordada. Não chora, não se lamenta, não se queixa. Só fica acordada. Ainda antes de o Sol lançar os seus primeiros raios sobre o casebre-esqueleto, levanta-se, passa por cima de Morad-de -ópio, que está a dormir, acorda os filhos e diz: - Vamos. - Para onde? - Para qualquer lado.

Temos medo. -Eu também.

- Onde estamos? pergunta Nafàss. Shirin-Gol cala-se. -Que casa é esta? - pergunta Nabi. Shirin-Gol cala-se. -Aqui cheira a porcaria - diz Nabi. Shirin-Gol cala-se. - Os teus filhos vão ficar bem connosco diz o talibã. Logo que recebamos outra vez dinheiro de uma organização de ajuda humanitária estrangeira, vamos organizar actividades físicas e desporto para os rapazes acrescenta o jovem talibã, agachado em frente da burka azul atrás da qual Shirin-Gol dá graças por poder esconder o rosto. O talibã deve ter 20, 23 anos. Tem a túnica e os dentes impecavel mente brancos. Tem o turbante, a barba comprida e o cabelo brilhante insondavelmente pretos. 210 211 "É um homem bonito", pensa Shirin-Gol, perguntando: - E as raparigas? - O desporto é uma actividade física livre, muito perigosa para as raparigas continua o bonito talibã. - O Islão diz que as raparigas na idade da puberdade não devem fazer movimentos bruscos. Não devem saltar nem correr para que o seu corpo não sofra danos. Fazendo movimentos bruscos, podem perder o hímen ou talvez nunca mais engravidarem. E depois não encontram marido. Shirin-Gol nem acredita que tem um talibã sentado à sua frente, um desconhecido, falando com ela sobre o hímen das raparigas, das suas filhas. -Vão aprender a ler e a escrever? - pergunta Shirin-Gol. -A lei de Deus, a Sharia, é a nossa lei, segundo a qual educamos as crianças confiadas à nossa guarda - responde o talibã com

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impaciência, tocando um sino pousado na mesa para chamar o velho servidor de costas deformadas, a quem entrega a ficha com os quatro nomes dos recém-chegados, mandando-o depois sair outra vez. Uma ficha com quatro nomes. Nafass. Nabi. Navid. Nassim. Os filhos de Shirin-Gol. - Tu andaste na escola russa - diz o talibã, desfiando colericamente as contas do tasbih de um lado para o outro. Shirin-Gol cala-se. - Eu não estudei Química nem Biologia - continua o talibã. Tudo o que aprendi foram as palavras de Deus. - O talibã fita o véu de Shirin-Gol, atravessando com o seu olhar amendoado e muito preto os orifícios do tecido azul, e diz: - Mas não é por isso que sou um selvagem. A opção é tua. Ou deixas aqui os teus filhos, ou voltas a levá-los contigo. - Deixo-os aqui - declara Shirin-Gol. O talibã volta a tocar para chamar o servidor das costas deformadas e ordena-lhe: - Leva os filhos desta ssia-soar para o refeitório. O servidor das costas deformadas espera à porta que Shirin-Gol saia. Sem dizer nada, acena-lhe para que o siga. Muito à frente, quando percorrem os compridos corredores, passando pelos quartos sem portas nem janelas, passando pelo fedor a fezes e urina, passando por olhos de criança fitando o vazio, passando por tudo isto e muito mais, diz o servidor das costas deformadas:

Pelo menos aqui os teus filhos terão comida. Só Nabi e Navid podem comer no refeitório. As raparigas têm de comer no quarto. As raparigas fazem tudo no quarto. Dormem, bebem, comem, vivem. De manhã até à noite. De noite até de manhã. Em cada quarto, mais de vinte raparigas. O ano inteiro, de Verão e de Inverno. Em nome do Profeta, do Alco rão e do Islão. As raparigas não podem ir ao pátio nem ao telhado. Não podem ir ao refeitório nem ao pátio interior. - Porquê? - Porque as raparigas são raparigas. - Pelo menos aqui terão comida. -Que Deus te proteja - dizem Nafass, Nabi, Navid e Nassim.

Que Deus vos proteja - responde Shirin-Gol.

- Onde estão as crianças? - pergunta Morad-de-ópio através da sua névoa de ópio. - No orfanato - responde Shirin-Gol. - Pelo menos lá terão comida. Shirin-Gol senta-se na esquina do bazar, estende a mão por baixo da burka azul e esfarrapada, tomba para o lado e fica assim. Shirin-Gol já não se mexe. Só o seu sangue. Só o seu sangue ainda mexe. Vem-lhe do ventre, que expele o bebé. Tinge-lhe de vermelho a burka azul e esfarrapada. Os mortos querem o seu antigo kefin-kesh. Simorgh olha para o lago. Simorgh vê o seu reflexo.

Shirin-Gol vai a uma organização estrangeira de ajuda humanitária. - Preciso de ajuda - diz. O tradutor traduz. -Não tens direito a ajuda. Shirin-Gol não fica desiludida nem se admira. Compreende. Profissionais endurecidos, que não vêem os destinos individuais como o de Shirin-Gol. Que não podem vê-los. Que não devem vê-los. De contrário, eles próprios pereceriam. E ninguém seria ajudado. Nas organizações humanitárias, as contas fazem-se em toneladas de trigo, centenas de milhares de dólares de subsídios, alojamento para milhares de famílias. Têm razão. "O todo da população é a sua missão", pensa Shirin-Gol. Tudo o resto seria ineficaz, injusto, incorrecto. De noite, sentam-se nas suas casas de pedra, cujos alugueres pagam em dólares, e derramam as suas lágrimas baixinho para que ninguém os veja. Shirin-Gol viu-o, quando trabalhava em casa da americana. Que no dia seguinte estava outra vez pronta a

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atirar-se às suas toneladas, população e trigo, países dadores e país de destino. O Afeganistão. Shirin-Gol agacha-se à frente da mulher e mostra-lhe os pulsos. As cicatrizes recentes. O corpo enfraquecido e escanzelado. 212 213 A estrangeira acredita na sua necessidade e dá-lhe uma senha. O homem que lhe fica com a senha dá-lhe trigo, que vai vender ao bazar. Shirin-Gol tira os filhos do orfanato. Nafass, Navid, Nabi e Nassim aparecem de mãos dadas à frente da mãe. - Tshe hal dar(, como vais? - Tashak-kor, obrigada.

CAPÍTULO 18 UMA MULHER-ESFARRAPADA E UM POUCO DE LEITE DE CABRA

Shirin-Gol-esfarrapada, com os seus pulsos abertos e o ventre onde gravidez foi interrompida, Nafass, Nabi, Navid, Nassim e Morad-de-ópio não têm nada para levar. Partem. Shirin-Gol-esfarrapada não sabe se resistirão a mais uma fuga. Shirin-Gol-esfarrapada não sabe se é verdade o que se diz, que o gémeo atrevi( vive no Norte. Shirin-Gol-esfàrrapada não sabe se conseguirá atravessar linha da frente. Shirin-Gol não sabe tudo isto nem mais nada. De resto, quem sabe seja o que for nesta terra esquecida por Deus?

No quarto dia, Deus está novamente com vontade de chorar. Vem ao Afeganistão, vê Shirin-Gol-esfarrapada, mal a reconhece, ouve as suas orações e envia-lhe uma caravana de nómadas, que recolhem Shirin-Gol-esfarrapada, os filhos e Morad-de-ópio. Nafass, Nabi, Navid e Nassim ajudam a conduzir e a ordenhar as ovelhas e a apanhar bosta de camelo, de ovelha e de burro, que secam e usam para acender o lume. Transportam cordeirinhos recém-nascidos e fazem amuletos com fios de quatro cores. Vermelho, branco, verde, preto. Cantam a plenos pulmões, correm, juntam ovelhas. Shirin-Gol troca a saia preta por coloridas saias nómadas. Vermelhas, brancas, verdes, pretas. Faz muitas tranças fininhas que prende à volta da testa, pendura ao pescoço tilintantes adornos de latão, bebe leite de cabra, dispara com a espingarda, aprende a desactivar minas, monta a cavalo e crava estacas no chão com uma grande pedra. Durante quarenta dias, Shirin-Gol e os filhos atravessam o deserto, sobem montanhas e palmilham vales. Comem e dormem bem, andam satisfeitos. Passam para o outro lado da linha da frente, percorrem gelo e neve, sobem as montanhas do Indocuche e chegam por fim a Faizahad. 215 CAPÍTULO 19 DOIS IRMÃOS, O NORTE E UMA DOCE AVÓ O irmão-comandante de Shirin-Gol combate contra os talibãs nas montanhas, no Norte do país. É um homem respeitado e de longe o melhor cavaleiro no bozkeshi, o jogo em que os homens, montados a cavalo, lutam pelo cadáver de uma ovelha. Já é jogado há séculos e foi inventado pelo rei com o objectivo de treinar e preparar os seus homens para a guerra. O irmão-comandante já nem sabe quantos inimigos matou. Quantos russos. Quantos mercenários árabes e paquistaneses a soldo da Arábia Saudita, do Paquistão e dos EUA. Quantos talibãs. Só sabe que o que fez, fez pela pátria. Pelos filhos, para que tenham um futuro melhor. Pela liberdade. Por Deus. Pelo Profeta. Em nome do Alcorão. Já a sua vida começara, já aprendera o Alcorão, já sabia lavrar o campo com os bois, já descobrira a primeira penugem no queixo, já se tornara meio rapaz e meio homem, já pensara ,daqui a pouco sou um homem por inteiro", quando os Russos tinham atacado a sua aldeia. O irmão tivera de ir para a montanha com o pai

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e os outros irmãos. Dez anos. Lutaram durante dez anos até expulsarem os Russos da sua pátria. Depois, combateram pelo poder contra outros grupos de mujaedines. Uns anos depois, os talibãs chegaram e empurraram os exaustos mujaedines cada vez mais para norte. Grupos inimigos de mujaedines voltaram a unir-se para formar a Aliança do Norte. A dada altura, o irmão de Shirin-Gol foi nomeado comandante, com a missão de proteger a montanha tal e tal contra os ataques do inimigo. Em nome da pátria, da liberdade, da Aliança do Norte, do Alcorão, do Profeta e do Islão. A dada altura, chegou às montanhas um jovem, que se apresentou ao irmão-comandante, dizendo: - Os meus professores enrolaram-me um turbante à volta da cabeça, informaram-me de que eu era um talibã e mandaram-me, juntamente com outros talibãs, libertar a pátria e matar os mujaedines. Mas eu fugi, estou aqui e quero matar os talibãs. - Fazes muito bem - diz o comandante, abraçando o desertor, apertando-o contra o coração e sentindo uma emoção estranha. Sem perceber porquê, tem os olhos marejados de lágrimas. Passam alguns dias até o irmão-comandante compreender a emoção estranha e as lágrimas. O desertor é um dos seus irmãos mais novos. O seu irmão em pessoa. O filho do seu pai. O gémeo atrevido. O inimigo? São os talibãs. Os talibãs afegãos. Os talibãs paquistaneses. Os talibãs árabes. Mas, por acaso, também é o outro comandante, que quer alargar o seu poder. Quanto tempo terá ainda de combater, é coisa que o irmão-comandante não sabe. O gémeo atrevido combaterá, enquanto o irmão-comandante combater. Enquanto for necessário. Enquanto durar. De resto, que há-de fazer? Os campos estão minados. As aldeias destruídas. Que há-de fazer, de resto? O gémeo atrevido ainda não casou. O irmão-comandante tem duas mulheres. As mulheres e os onze filhos do irmão-comandante sentem-se satisfeitos com a vida que levam. A dada altura, a filha de Shirin-Gol, Nur-Aftab, e os seus dois filhos foram ter com o irmão-comandante às montanhas. Também a acolheu. Deu-a em casamento a um dos seus jovens combatentes e, em breve, assim Deus o permita! trará um rapaz ao mundo. E agora também Shirin-Gol percorreu o caminho até ao Norte. Shirin-Gol, Nafass, Nabi, Navid, Nassim e Morad, que ainda fuma ópio, mas já não tanto. Morad-de-meio-ópio. -Finalmente, estamos juntos de novo - diz o irmão-comandante, fitando a irmã que já não via há tantos anos. Já Shirin-Gol tira o lenço da cabeça, desata as tranças, encosta as costas cansadas à almofada, já bebe chá quente com açúcar, já o primeiro filho de Nur-Aftab, o primeiro neto de Shirin-Gol, corre da direita para a esquerda, e o segundo filho de Nur-Aftab, o segundo neto de Shirin-Gol, da esquerda para a direita, batem com a cabeça um no outro, caem e começam a chorar fitando a sua avó Shirin-Gol com olhos suplicantes, quando Nur-Aftab solta um grito. Dobrando-se com a dor, olha para a mãe, deita-se no chão e diz: - Vem aí. Shirin-Gol prende o cabelo, põe o lenço, amarra-o bem, tira a foice do recanto perto da porta, leva-a ao lume, mergulha-a em água a ferver, levanta as saias da filha, enfia um dedo dentro dela, apalpa o pequeno na riz, as orelhas, a boca do bebé, pousa os dedos em volta da cabeça minúscula e escorregadia e puxa o terceiro filho da sua filha. 216 217 - Que Deus nunca te abandone - diz Shirin-Gol, pousando o cordão umbilical do rapazinho em cima da foice e cortando-o. Com um bismi-allab. Shirin-Gol beija a testa do recém-nascido, dizendo: - Que Deus te dê felicidade. Sempre o suficiente para comer. Sossego. Shirin-Gol pousa o terceiro neto, que acaba de tirar do corpo da sua primeira filha, nos braços da mãe, e diz: - Que Alá permita que vivas a tua vida em paz e tranquilidade. Que permita que a tua pátria, o Afeganistão, seja finalmente livre. Shirin-Gol tira o lenço da cabeça, passa os dedos pelo cabelo branco, bebe o resto do chá com açúcar e pergunta à filha: - Como vai chamar-se? - Shir-Del, como o meu primeiro marido, que mataram - responde Nur-Aftab, beijando a testa do filho. -

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Shir-Del. Coração-de-Leão. É um nome bonito - afirma Shirin-Gol. - O teu cabelo perdeu a cor - observa Nur-Aftab. - Está branco. Agora és uma bibi. - Uma bibi. Uma avó. - Doce-avó. - Bibi-Shirin. AGRADECIMIENTOS Afeganistão, o Indocuche, o deserto, os rios, as montanhas e vales, Cabul, Mazar-Sharif, Herat, Faizabad, Baharak, Jalalahad, Kandahar, Sorubi... o povo afegão transformou a minha vida. Agradeço-lhe e devo-lhe muito. Muito. Obrigada, minhas amigas e amigos afegãos. Possa chegar o dia em que direi o vosso nome com todo o orgulho, respeito e amor que sinto por vós sem vos pôr em perigo. Agradeço aos que me deram a oportunidade de viajar neste país admirável, especialmente a Inge von Bbnninghausen e Jürgen Thebrath, os meus redactores na Alemanha. Apesar da guerra, de nem sequer haver a certeza de eu poder levar a minha câmara e muito menos de filmar, deram-me a possibilidade de partir e depositaram toda a sua confiança em mim. Agradeço a Helmut Grof3e e Albrecht Reinhard, os meus redactores da ARD Weltspiegel, e a Heinz Deiters e Birgit Keller-Reddemann, da Kinderweltspiegel, que me deram sempre a possibilidade de partir. Obrigada a Maria Dickmeis pela sua dedicação. Obrigada a todos os montadoros e operadores de câmara que fizeram dos meus filmes o que eles são. Obrigada a Friedhelm Maye, o director da produção, que tornou tudo possível. Uli Fischer, a ti agradeço-te muitos sítios, pessoas e amigos no Afeganistão. Uli Fischer é um daqueles homens que não abandona o país sob o Indocuche. Ele próprio parece um afegão quando veste a shalvar-kamiz. Uma vez, disse que ia nascer afegão na próxima encarnação, esperando que nessa altura já não houvesse guerra. Agradeço a Abed Najib, que me levou pela primeira vez até Ahmad Shah Massoud, o carismático senhor da guerra, vítima de um traiçoeiro atentado dois dias antes do desumano ataque ao World Trade Center. Agradeço a Rita Grieghaber, Gerd Poppe, Claudia Roth e Angelika Graf, que pude acompanhar ao Afeganistão. Agradeço ao mullah..., que infringiu muitas leis por minha causa, me 219 protegeu e me acautelou, e que, na verdade, só se fez talibã porque acreditava que conseguiria modificar os talibãs, se fizesse parte deles. Possa ele ter saído a tempo e servir a paz na sua pátria. Agradeço a Malalai e seus irmãos, que me salvaram a vida. Agradeço a Rahmat, que me impediu de pisar uma mina. Agradeço a Ulla Nõllc e a Tine, que me permitiram visitar a sua escola, frequentada por raparigas e onde trabalham mulheres. Agradeço a Fartane: devolveste os sonhos à menina. Agradeço à Organização Alemã de Luta contra a Fome; a Ellen Heinrich, que não desistiu até eu ter começado a recolher histórias para o meu livro, faz agora dois anos; a Erhard Bauer e Robert Godin, que estiveram sempre comigo; a Ingeborg Schãuhle, presidente da Luta contra a Fome, que aproveita todas as oportunidades para falar do Afeganistão. Um obrigado especial aos meus amigos afegãos, que me alimentaram, protegeram e andaram comigo de um lado para o outro. Agradeço encarecidamente sobretudo aos meus amigos Anita e Richard: sem a vossa amizade, amor e apoio, muito disto não teria sido possível. Agradeço aos meus amigos das Nações Unidas e outras organizações humanitárias, que sempre me apoiaram e ajudaram no meu projecto. Agradeço à minha amiga Eli Holst, que me pôs em contacto com os melhores agentes do mundo. Agradeço o apoio de Joachim Jessen e de todos os seus colegas da Agência Thomas Schlück. Agradeço a todas as mulheres e homens da C. Bertelsmann e a Margit Schõnberger e Helga Mahmoud, que me enchem de mimos; a Maus Eck, que comprou o meu livro antes de 11 de Setembro, quando ainda não se falava do Afeganistão, e que mostrou mais uma vez que os homens também podem pensar com a barriga; a Claudia Vidoni, minha impiedosa e boa leitora, que me impediu de seguir por caminhos errados, que tudo fez para eu permanecer fiel à minha língua e ao meu ritmo. Samantha e Rahela, obrigada por tudo o que aprendi

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convosco. Que Deus vos dê uma vida longa, com saúde e em paz, a vós, aos vossos entes queridos, a todas as mulheres, crianças e homens a quem dedicastes a vossa vida. Karla Schefter, obrigada pela outra maneira de ajudar e pelo outro Afeganistão. Marie jan, obrigada pela tua coragem e amor. Que em breve possas regressar ao Afeganistão. Agradeço a Rüdiger Kõnig, que, como nenhum outro diplomata ocidental , soube compreender o Afeganistão e o seu povo, cujos interesses sempre defendeu em primeiro lugar. Obrigada, Irene Salimi, responsável da antiga Embaixada Alemã, pelos contactos com os talibãs, o carro blindado e a toalha branca de mesa. Agradeço aos meus amigos de Nova Iorque que, depois de 11 de Setembro de 2001, foram, apesar de tudo, às mesquitas e que com a acção "our grief is not a cry for war" lutam por uma solução pacífica para o Afeganistão. Obrigada, Arundhati Roy, por me lembrares constantemente que a coragem dá os seus frutos. Obrigada, Shirin Neshat, pela tua amizade que me dá asas. Roland Suzo Richter e Peter Hermann, obrigada pela inspiração e por terem acreditado em mim e nos meus compatriotas. Obrigada, Soma Mikich: aprendi a pensar alto contigo. Obrigada, Adrienne Gõhler: aprendi contigo que vale a pena manter-me fiel a mim própria e aquilo em que acredito. Obrigada, Jürgen Domian, pela amizade com que me lembras de onde venho. Obrigada, Brigitte Leeser: salvaste a minha alma. Obrigada, Thomes Leeser e Rebecca van Sandt por Ava, pela inspira ção e pelos pequenos-almoços de domingo em Nova Iorque. Agradeço aos meus pais, aos meus irmãos Arian e Omid, aos seus fi lhos Tarek e Julian, porque estais sempre ao meu lado. Aprendi convosco a questionar tudo e a procurar a minha própria verdade. Obrigada, primo Bahram Bcyzai, sem ti, nem isto nem mais nada te ria sido possível. Arman, deixaste-nos cedo de mais. Madjid, não morras. Obrigada, Biggi - Müller, pelo teu exemplo. Tom Schlessinger e Keith Cunningham, obrigado pela infecção com o vírus certo. Obrigada, Judith Weston, pela perspicácia. Jean Houston, obrigada pelos heróis. Obrigada, Julia Cameron, pelo caminho certo. Sem amigas, a vida não vale a pena. Obrigada, Angel, pelo anjo, Tere sa pela mesquita, Gail pelo "quilt"; Persheng, Ashkan e Kim, obrigada por Ananda, Jaya, Dicki e Mane, Arde, Farhad, Birgit, Anita, Lucia, Ulla e Karin. Agradeço à minha família, aos meus amigos e ao povo do meu país, o Irão. Aprendi convosco que há um futuro até para os países que Deus esqueceu e onde ainda só vai para chorar. E agradeço a todos os que aqui não posso nomear, mas que, no entanto, são importantes para mim e para a minha vida e trabalho. Já sabeis: Everything is part of everything. 220

Digitalizado por Carla Maria Ferreira dos Mártires

2003-02-13