· Web viewQueria que lhe fizessem festas na barriga. À medida que os dedos de Peter iam...

28
Gatos Dois nomes para um gato Era um gato com dois nomes. Tanto podia chamar-se Boutchkin como El Magnifico. Era grande e gordo e já ultrapassara há muito a longevidade média de um felino.

Transcript of  · Web viewQueria que lhe fizessem festas na barriga. À medida que os dedos de Peter iam...

Page 1:  · Web viewQueria que lhe fizessem festas na barriga. À medida que os dedos de Peter iam avançando ao de leve pelo pêlo do gato, o ronronar foi-se tornando mais forte, até ao

GatosDois nomes para um gato

Era um gato com dois nomes. Tanto podia chamar-se Boutchkin como El Magnifico. Era grande e gordo e já ultrapassara há muito a longevidade média de um felino.

Doris Lessing, a sua dona, usava um nome ou o outro consoante o seu estado de espírito, e o bom ou mau comportamento do bichano.

O gato sabia de cor capítulos inteiros dos seus livros, preferindo as passagens em que os gatos eram os protagonistas dos sentimentos ou das acções. No fundo, ele sabia que essas personagens eram, de algum modo, inspiradas nas suas manhas e truques, que a escritora nunca parava de observar, como se estudasse uma cobaia dentro de uma caixa de vidro. Só que ele vivia em liberdade naquela casa acolhedora e contava com o imenso carinho da dona.

Page 2:  · Web viewQueria que lhe fizessem festas na barriga. À medida que os dedos de Peter iam avançando ao de leve pelo pêlo do gato, o ronronar foi-se tornando mais forte, até ao

Foi ele que, certo dia, contou a Doris esta pequena história:– Não são as pessoas que escolhem os gatos, e sim o contrário. Aqui na rua

há vários que têm esta casa debaixo de olho. Quando eu morrer, o que não há-de tardar muito a acontecer, vai aparecer um à tua porta com aquele ar meio indiferente de quem está bem em qualquer lado, mas não tem dúvidas quanto ao sítio onde prefere morar.

– Quando estamos no domínio da ficção – ironizou a escritora – consegues sempre ultrapassar-me.

O gatarrão nada respondeu, limitando-se, com a felina eloquência dessa atitude, a saltar para o colo da dona, com as unhas cuidadosamente recolhidas para não a arranhar.

Passados alguns meses, sentiu que era tempo de partir. Fechou-se num armário cheio de roupa e morreu em paz. Durante meses, Doris Lessing chorou a morte desse companheiro de excepção.

Todas as noites, antes de adormecer, ela cumpriu, com palavras saudosas, este ritual:

– Até amanhã, Boutchkin! Até amanhã, El Magnifico!E, onde quer que estivesse, o seu querido gato respondia-lhe:– Até sempre, Doris!

O gato do general

O General De Gaulle, herói da liberdade da França, tinha dois grandes confidentes. Um era o escritor e ministro André Malraux, e o outro o seu gato Gris-Gris, de seu verdadeiro e aristocrático nome Ringo de Balmalon, presente de sua mulher, Yvonne, que o sabia muito mais apreciador de cães do que de gatos. E foi Gris-Gris, um belo exemplar de pêlo cinzento e vivos olhos amarelos que lhe revelou a grandeza felina desses pequenos companheiros das horas de glória e também das do doloroso e convicto afastamento do poder.

Gris-Gris era o companheiro inseparável do general quando ele se retirou para a sua casa de Colombey-les-Deux-Églises, antes de regressar às batalhas políticas do Eliseu. Juntos davam grandes passeios pela floresta, e sabe-se que Gris-Gris terá ajudado o general a tomar decisões difíceis nos momentos em que se mostrou mais agastado com as baixas manobras da política partidária ou em que te- ve de enfrentar crises agudas, como a resultante da guerra de libertação na Argélia. Os seus silêncios meditativos eram, em regra, o conselho que De Gaulle nunca dispensava, juntamente com os de Malraux, eterno apaixonado dos

Page 3:  · Web viewQueria que lhe fizessem festas na barriga. À medida que os dedos de Peter iam avançando ao de leve pelo pêlo do gato, o ronronar foi-se tornando mais forte, até ao

gatos, de que nunca se separou desde os tempos da juventude. Ambos sabiam que se aprende muito com eles, confirmando a convicção dos artistas que nunca abdicaram dessa afectuosa e discreta companhia.

Quando o general se despediu do mundo, em finais de 1970, Gris-Gris esteve sempre perto dele, companheiro inseparável e omnipresente.

O gato sobreviveu ao dono e teve prole bastante para espalhar os genes de uma sabedoria milenar, a qual De Gaulle, que era desconfiado e reticente quanto às virtudes dos que se apresentavam com grandes méritos e créditos, nunca pôs em causa.

Se De Gaulle pudesse, tê-lo-ia agraciado com a Legião de Honra, mas Gris-Gris, tanto quanto se sabe, dava, como qualquer gato sábio, muito pouca importância a condecorações. Para ele, a única que verdadeiramente contava era o afecto do seu dono e senhor, e esse teve-o sempre em abundância, apesar da tardia conversão do general à magia dos gatos.

Os Gatos do Senhor Zola

O que mais terá custado a Émile Zola quando foi preso, após a publicação do corajoso panfleto J’Accuse!, que denunciava a injusta condenação do capitão Dreyfus, vítima de uma ignóbil conspiração, terá sido a impossibilidade de ter consigo os gatos que tanto amava, que tanta companhia lhe tinham feito ao longo da vida e que tanto o inspiraram nos seus contos e romances, ao ponto de ter sido dos escritores que melhor os consagraram em textos literários.

Embora no quintal da sua casa houvesse patos, galinhas, coelhos, uma vaca e um burro, era aos gatos que mais atenção e carinho dedicava, dando continuidade a uma predilecção que lhe vinha dos tempos da juventude, quando, enfrentando dificuldades económicas, antes da consagração nacional, partilhava o escasso alimento com uma boa meia dúzia de gatos.

Page 4:  · Web viewQueria que lhe fizessem festas na barriga. À medida que os dedos de Peter iam avançando ao de leve pelo pêlo do gato, o ronronar foi-se tornando mais forte, até ao

Os gatos de Zola estão presentes em livros tão famosos como Teresa Raquin.Dos gatos dizia Émile Zola: “Dou-lhes muito, mas sei que eles me dão muito

mais”. Aqueles que com ele privavam sabiam até que ponto a morte de um dos

seus animais de estimação o prostrava e deprimia. No fundo, desejava que fossem eternos para nunca ter de fazer luto por eles. Talvez o conhecimento que tinha da natureza e da condição humanas tenha contribuído decisivamente para Zola ter gostado tanto dos gatos e das outras espécies que com ele coabitaram. O mesmo se pudesse dizer dos humanos, que tão bem soube retratar na sua monumental obra!

Quando o escritor morreu, em circunstâncias que ainda hoje não permitem eliminar a hipótese de homicídio, por serem as suas ideias e a sua coragem incómodas para os poderosos do seu tempo, talvez alguns animais de estimação tenham morrido com ele e outros conhecessem a crua verdade dos factos, embora não tivessem tido a possibilidade de a revelar à justiça.

O Português de Quimono

Vestindo o seu quimono tradicional, o velho português de longas barbas brancas passava grande parte do dia a escrever cartas, artigos e capítulos de livros que queria deixar prontos antes de a morte o levar. Vivia no Japão há muitos anos e era ali que queria deixar os seus restos mortais na hora da partida. Ali tinha vivido, amado e sido feliz com mulheres locais que quiseram e souberam amá-lo. Agora estava só e, apesar de sentir saudades da pátria distante, não tinha intenções de regressar.

Page 5:  · Web viewQueria que lhe fizessem festas na barriga. À medida que os dedos de Peter iam avançando ao de leve pelo pêlo do gato, o ronronar foi-se tornando mais forte, até ao

Na verdade, tornara-se japonês por opção e por adopção, mas nunca deixara de ser português no que escrevia e no que sentia. Fora oficial da Marinha e, depois, tornara-se diplomata. Escrevera livros importantes para dar a conhecer o Japão aos portugueses, não o Japão aristocrático e exótico, mas o Japão popular e autêntico, o das pessoas humildes, com os seus rituais, os seus temores e as suas crenças e superstições milenares. Agora estava só, e a escrita, na paz de Tokushima, era talvez a única coisa que o mantinha vivo. Foi nesses dias, já perto do final da existência, que recebeu a visita de um gato que ficava sentado, durante horas, a observá-lo a escrever.

– Como te chamas e de onde vens? – perguntou o velho português.– O meu nome é Maneki Neko e venho de Goto-kuji, onde até foi erguida uma

estátua em minha honra, ao lado da de Buda.– Isso quer dizer que não és um gato igual aos outros.– Eu sou um gato igual aos outros, mas quiseram os deuses que me

transformasse em símbolo do melhor que tem a minha espécie.– E que poderes te atribuem aqueles que te veneram?– Tal como acontecia no Egipto antigo, os japoneses atribuem-me o dom

divino de proteger a infância.– E é uma crença antiga?– Tem séculos, vinda do tempo em que o Japão era ainda governado pelos

senhores da guerra. Eu aprendi com eles os valores da honra e do respeito pela Natureza.

– E fizeste bem.– Sabes que fico comovido quando vejo gente humilde vir até mim com

oferendas para garantir a protecção dos seus lares e principalmente das crianças que os habitam. Por eles, sempre que é preciso, eu intercedo junto de Buda, que se habituou, devido a uma longa e pacífica vizinhança, a respeitar as minhas opiniões.

– E conheces, ao menos, a origem do culto de que és objecto?– Diz-se que, há muitos, muitos anos, fui acolhido por uma comunidade de

monges pobres. Eu seria, nessa altura, um pobre gato faminto e abandonado, e, com os poderes que me são atribuídos, acabei por contribuir para que o seu templo passasse a ser popular e visitado por milhares de crentes ao longo dos anos. Em troca dessa espécie de milagre, que nem sequer me atrevo a tentar explicar, eles alimentaram-me, cuidaram de mim e permitiram que eu tivesse uma abundante descendência. Só depois foi erguida a estátua que hoje me honra.

Entretanto, o gato não deixava de observar o escritor, que ia tirando apontamentos enquanto ele falava. E perguntou-lhe:

Page 6:  · Web viewQueria que lhe fizessem festas na barriga. À medida que os dedos de Peter iam avançando ao de leve pelo pêlo do gato, o ronronar foi-se tornando mais forte, até ao

– Posso saber o que te levou a deixar a tua terra e a vir para o outro lado do mundo, deixando para trás família e bens?

– Foi uma escolha que fiz e da qual não me arrependo. Passei a amar esta terra e dela fiz a minha segunda pátria e a casa dos meus sonhos e amarguras. É aqui que quero acabar os meus dias em paz, com a recordação daqueles que amei e que me amaram.

– Sabes que há muito tempo que te observo e que te coloquei sob a minha modesta protecção?

– Não sabia, mas fico-te grato pelo facto de teres decidido fazê-lo. Assim, sei a quem posso recorrer em momentos de aflição.

Dizendo isto, o velho português chamado Wenceslau de Moraes dirigiu-se à cozinha e trouxe um peixe que se preparava para comer à refeição. Pegou nele e entregou-o a Maneki Neko, dizendo:

– Se não levares a mal, aceita este peixe. É a minha modesta oferenda a um gato que tantos japoneses veneram.

– Obrigado, nunca esquecerei a tua generosidade.O gato abocanhou o peixe e partiu para nunca mais voltar. Desse dia em

diante, Wenceslau de Moraes sentiu-se menos só e passou a sorrir serenamente sempre que via um gato na proximidade da sua modesta casa de português distante da pátria onde nascera. Para ele, cada um desses gatos era a materialização da simpática divindade popular que dava protecção às crianças e aos desfavorecidos, e o fazia conhecer ainda melhor os segredos mágicos da alma japonesa.

Page 7:  · Web viewQueria que lhe fizessem festas na barriga. À medida que os dedos de Peter iam avançando ao de leve pelo pêlo do gato, o ronronar foi-se tornando mais forte, até ao

Quando morreu, havia muitos gatos na proximidade do local onde ficou sepultado. Maneki Neko quis que ele partisse para a terra dos antepassados ilustres com todas as honras devidas aos homens bons deste mundo.

José Jorge LetriaAmados gatos

Cruz Quebrada, Oficina do livro, 2005

Romance de Lucas e Pandora

Lucas vivia na Ribeira, junto ao rio que corria sem parar. Era um gato jovem, malhado, filho de um gato vadio e da gata gorducha da loja das iscas de bacalhau. Os outros gatos da ninhada, seus irmãos, foram parar às casas das redondezas; só ele conseguiu saltar do regaço da mulher que o levava e assim escapar a uma vida de prisão. Era seu destino e sua vontade ser um gato sem dono, como o pai, o avô, o bisavô. Chamavam-lhe assim, Lucas, e ele respondia quando a recompensa valia a pena, mas não havia ninguém que conhecesse o seu verdadeiro nome de gato.

Uma noite, quando brincava nos charcos da margem, viu um peixe aos saltos no ar. Saltava e abria a boca. Depois caía na água e saltava outra vez. Lucas voltou a vê-lo na noite seguinte e na outra e na outra. Que peixe maluco se poria aos saltos quando podia nadar com os outros no fundo do rio, onde não chegam as redes e os anzóis dos pescadores?

Ninguém sabia, mas aquele peixe estava apaixonado por uma flor da margem. Saltava para a poder ver e para sentir o perfume dela espalhado no ar.

Page 8:  · Web viewQueria que lhe fizessem festas na barriga. À medida que os dedos de Peter iam avançando ao de leve pelo pêlo do gato, o ronronar foi-se tornando mais forte, até ao

Lucas achou que ele estava aflito e acertou-lhe uma patada que o atirou para terra.

O peixe contorceu-se todo sobre as pedras e Lucas pensou que ele estava contente.

– Se soubesse, já o tinha tirado da água há mais tempo – miou ele para o Pintas, o gato da loja de ferramenta, que o acompanhava naquela noite.

Por fim o peixe alongou-se, estremeceu uma última vez e tornou-se sereno. Estava morto: os olhos perdidos no ar, a boca aberta de repente como se quisesse beijar a flor, que se dobrou ligeiramente e talvez tenha chorado do modo invisível e delicado como choram as flores.

– Um peixe fresco... – miou o Pintas a passar a língua pelos bigodes. – Vamos comê-lo. Nunca comi um peixe acabadinho de morrer. Mais fresco não podia ser.

Lucas e Pintas ainda não tinham idade para roubar peixes às vendedeiras do mercado. Comiam as tripas que elas lhes lançavam e os peixes que começavam a apodrecer antes que alguém os comprasse.

– Tu primeiro – disse Pintas.Lucas cheirou o peixe apaixonado, lambeu-lhe as escamas para lhe tomar o

gosto e depois ferrou-lhe os dentes grandes da frente. O peixe era gordo, depressa ele se empanturrou.

– Então? – miou o Pintas.– Estava bom. Foi a única vez que gostei.Lucas deixou a cabeça e a barbatana do peixe para o amigo, que não lhe pôs

a unha como deve ser e o deixou cair ao rio. E lá se foi meio peixe apaixonado pelo rio abaixo na direcção do mar. Como já não sabia nadar, encalhou mais abaixo, onde foi apanhado pela jovem Pandora, uma gata amarela e branca, que brincava sozinha na outra margem.

Pandora era uma gata mimada, nascida e criada numa casa da avenida marginal. Era filha de um gato embarcadiço e da linda gata doméstica que o namorava às escondidas dos donos.

Nunca tinha visto um peixe com tão pouca carne mas resolveu comê-lo. A comida da rua sabia-lhe melhor do que a comida enlatada que lhe davam em casa.

E assim foi. Lucas e Pandora comeram no mesmo dia o mesmo peixe apaixonado e nessa mesma noite, como em todas as outras que se seguiriam, sonharam um com o outro. O rio, que corria, os separava. Mas era o mesmo céu que os cobria e, à noite, ele via a mesma estrela que ela via.

Não se procuravam. Se ela era a gata dos seus sonhos, se ele era o gato dos seus sonhos, só em sonhos se podiam encontrar, pensavam eles. Por isso dormiam e sonhavam tanto. Lucas, tal como ela, já comia pouco, já brincava

Page 9:  · Web viewQueria que lhe fizessem festas na barriga. À medida que os dedos de Peter iam avançando ao de leve pelo pêlo do gato, o ronronar foi-se tornando mais forte, até ao

pouco e, embora tivesse o melhor professor de caça do mundo, não ia além de um ratinho pequeno por noite. A mãe viu-o assim e mandou-o consultar o velho gato que todos os fins de tarde passava à porta da loja a caminho da muralha, mais acima, onde assistia, refastelado, ao pôr-do-sol.

Chamavam-lhe Gato, simplesmente. Todos os outros eram gatos, ele era o Gato. Nunca ninguém ousou pôr-lhe um nome qualquer. Era enorme e caminhava majestosamente, com a grossa cauda felpuda a rasar o chão. Dele se dizia que carregava a sabedoria de todos os gatos que tinham vivido antes dele. Por isso, respondia a qualquer pergunta se lhe dessem um pedaço de fígado ou miúdos de frango. Quem lhe levasse um pedaço de coelho frito ou estufado, que era o seu petisco favorito, podia ficar a ouvi-lo miar até o sol desaparecer.

Lucas era o mais curioso dos gatos mas, naquele dia, só tinha de seu um pedacinho de fígado cozido.

– É com cebola? – perguntou o Gato.– É.Então diz lá.Lucas baixou a cabeça, envergonhado. Depois miou:– Os gatos apaixonam-se?– Pois sim – miou o Gato. – Não tanto como os peixes ou os hipopótamos, é

verdade, mas é falso que sejam frios e que não tenham sentimentos. A verdade é que muitos gatos vivem grandes histórias de amor, sobretudo os que têm a sorte ou o azar de comer um peixe apaixonado. Queres saber mais alguma coisa? Este fígado está como eu gosto.

Lucas ganhou coragem: – Como hei-de encontrar a gata dos meus sonhos, a minha alma gémea?

Como vou reconhecê-la se a vir?– Não tenhas medo. Ela há-de saber o teu nome secreto, o teu verdadeiro

nome de gato. Se a encontrares, há-de dizer-to. E tu hás-de saber também o verdadeiro nome dela.

– Não sei – miou Lucas, preocupado.– Hás-de saber, não te aflijas. E agora vai dar uma volta. O mundo dá uma

volta todos os dias e todos os dias são dias de ir dar uma volta com ele. E diz à tua mãe que o fígado estava uma delícia.

O rio corria, o tempo também. O mundo deu tantas voltas que chegou o dia de S. João. Lucas já tinha estranhado o movimento louco das pessoas, o cheiro das ervas, o barulho irritante dos martelos de plástico.

– O que se passa? – perguntava ele. Mas os gatos mais velhos só se riam.

Page 10:  · Web viewQueria que lhe fizessem festas na barriga. À medida que os dedos de Peter iam avançando ao de leve pelo pêlo do gato, o ronronar foi-se tornando mais forte, até ao

À meia-noite estouraram os foguetes e o ar encheu-se de fumo e do cheiro da pólvora. O que era aquilo? Lucas pensou que o mundo do lado de cá do rio estava a acabar. Baixou-se o mais que pôde e atravessou a ponte a correr, indiferente aos automóveis e aos pontapés dos rapazes que passavam.

Pandora, na outra margem, pensou que acabava o mundo do lado de lá do rio e fez o mesmo. Passaram um pelo outro a meio da ponte e reconheceram-se. Ele pensou: «Ia ali a gata dos meus sonhos». Ela pensou: «Ia ali o gato dos meus sonhos». Afinal o mundo dos sonhos era ali. No meio do fogo do fim do mundo, que, afinal, era dos dois lados do rio e até no meio da ponte, que, de repente, também ficou em fogo. Eles aproximaram-se, sem receio. Ela segredou-lhe o nome ao ouvido e ele segredou-lhe o dela. Não sabiam como o souberam nem como o esqueceram logo a seguir. As sombras deles misturaram-se e cresceram sobre o rio, enquanto os gatos mais velhos, na margem, se riam com vontade a olhar para eles.

Desde essa noite nunca mais ninguém viu Lucas e Pandora separados. Juntos deram mil voltas à cidade, juntos criaram sucessivas ninhadas de gatos que inundaram as duas margens do rio, juntos viveram sete vidas felizes que lhes souberam a pouco.

O rio correu e com ele foram os dias e os anos, que também correram. E o amor de Lucas e Pandora cresceu também, tanto que já não cabia neles, na cidade, na Terra. Por fim, já não cabia no tempo. Quando a velhice se lhes instalou nos ossos e eles sentiram o cheiro da morte, subiram os dois a muralha e levaram ao Gato três bons pedaços de atum fresco:

– Queremos saber o segredo da Morte – miou Pandora.– Os gatos, quando morrem, vão para o céu? – miou Lucas.O gato engasgou-se e começou a tossir de tal maneira que parecia que ia

cuspir os pulmões.– Disseste que era atum sem espinhas – miou ele quase sem voz. – Um gato gosta de uma boa espinha de atum, mas tem de estar a contar

com ela. Não foi a espinha mas a pergunta que se atravessou na garganta do gato.

Não gostava nada que lhe perguntassem o segredo da Morte. – Todos temos de morrer um dia – disse ele por fim. – Bom é não saber

quando.– Não há um segredo? – insistiu Lucas.O Gato engoliu o primeiro bocado de atum:– Há um segredo, pois. Chamam à morte malvada, maldita, macaca, mas ela

tem outro nome que ninguém conhece. Todos os gatos o sabem. – Eu não sei – miou Lucas.

Page 11:  · Web viewQueria que lhe fizessem festas na barriga. À medida que os dedos de Peter iam avançando ao de leve pelo pêlo do gato, o ronronar foi-se tornando mais forte, até ao

– Nem eu – miou Pandora.– Sabem sim. Mas só se vão lembrar na hora da vossa Morte. Nem um

segundo antes.Fez-se silêncio. Uma gaivota desnorteada passou a rasar a cabeça deles e o

Gato mudou de posição, aborrecido.– Esse é que é o segredo – voltou ele. – Se se soubesse o outro nome da

Morte, nada seria assim...– Assim como? – quis Lucas saber.– Assim. Não tens olhos para ver?Era a primeira vez que o Gato não respondia como devia ser a uma pergunta.– Afinal os gatos vão ou não vão para o céu? – miou Lucas, inconformado.– Já viram as horas? – disse o Gato a olhar para longe.– Já – miou Pandora. – Vamos embora quando ouvirmos a resposta.O Gato alisou o pêlo da cabeça, arreliado:– Não se sabe ao certo, ao certo. É claro que todos os gatos têm alma, como

os outros animais e as pessoas que são crianças, já que vivem na realidade verdadeira e fazem parte da Natureza. Isto é tudo o que sei.

Lucas e Pandora voltaram para casa, desiludidos, a saber o mesmo que já sabiam. E o rio correu, e correu o tempo. E, um dia, Pandora morreu serenamente durante o sono. Enterraram-na sob a roseira do quintal, mas Lucas, só ele, viu uma figura ardente sobrevoar o rio, a ponte, e depois viu essa figura desaparecer no ar, em direcção ao céu.

O mundo deu outra volta e outra e mais outra ainda. Até que, um dia, Lucas ouviu claramente ao longe os miados de Pandora, quando passeava na beira do rio. Correu para lá com as patas do jovem Lucas e viu, no charco da margem, uma gatinha amarela. Miava como miava Pandora, daquela maneira inconfundível que ele reconheceria em qualquer canto do Céu ou da Terra. E comia um peixe, talvez apaixonado.

– Porque mias assim?– Assim como?A gatinha não sabia porque miava assim. Ainda miava há pouco tempo, mas

nunca tinha miado de outra maneira. Lucas quis segredar-lhe o seu nome secreto, mas não se lembrou.– Espera aí – disse ele a esfregar a cabeça com uma pata da frente. Mas ela não lhe deu tempo e chapinhou na lama para afastar aquele velho gatarrão metediço. Ele veio embora, a sacudir a lama do pêlo. Era fim de tarde. O sol punha-se e ele subiu a muralha, embora isso já lhe custasse.

Page 12:  · Web viewQueria que lhe fizessem festas na barriga. À medida que os dedos de Peter iam avançando ao de leve pelo pêlo do gato, o ronronar foi-se tornando mais forte, até ao

– Agora já sabes – miou o Gato quando o viu chegar. – A vida nunca pára. Corre sempre, como corre o rio. O rio também é sempre o mesmo, apesar de a água que corre ser sempre outra água.

Fez-se silêncio. Durante algum tempo nenhum dos dois miou.– E quanto ao resto? – miou o Gato por fim. – Não me digas que não

trouxeste nada.Lucas deixou sobre as pedras da muralha um bom naco de coelho acabado

de estufar e foi dar uma volta. Nessa noite sonhou com a gata dos seus sonhos e, de repente, lembrou-se do outro nome da Morte.

A Morte chama-se Vida.Álvaro Magalhães

Contos da cidade das pontes Porto, Ambar, 2001

O gato

Quando Peter acordava, mantinha sempre os olhos fechados até ter respondido a duas perguntas muito simples. Apareciam-lhe sempre pela mesma ordem. Primeira: Quem sou eu? Ah pois, Peter, dez anos e meio. A seguir, ainda com os olhos fechados, segunda pergunta: que dia da semana é hoje? E aí estava um facto tão sólido e inamovível como uma montanha. Terça-feira. Mais um dia

Page 13:  · Web viewQueria que lhe fizessem festas na barriga. À medida que os dedos de Peter iam avançando ao de leve pelo pêlo do gato, o ronronar foi-se tornando mais forte, até ao

de escola. Então, enfiava a cabeça debaixo dos cobertores e afundava-se no próprio calor, deixando-se engolir por aquela escuridão amigável. Quase podia fingir que não existia. Mas sabia que tinha de forçar-se a sair dali.

Todo o mundo estava de acordo que era terça-feira. A própria Terra, vagueando pelo espaço frio, girando à volta do Sol e de si própria, tinha trazido toda a gente até àquela terça-feira e não havia nada que Peter, os pais ou o governo pudessem fazer para contrariar aquele facto. Teria de levantar-se, senão perderia o autocarro, chegaria atrasado e meter-se-ia em sarilhos.

Era cruel ter de arrastar o corpo quentinho e preguiçoso para fora do choco e procurar a roupa às apalpadelas, sabendo que em menos de uma hora estaria a tremer na paragem do autocarro. Na televisão o manda-chuva dissera que aquele era o Inverno mais frio dos últimos quinze anos. Frio, mas não divertido. Sem neve, sem gelo, nem sequer uma poça de gelo onde se pudesse patinar. Só frio e cinzento, com um vento agreste que conseguia entrar no quarto de Peter através de uma racha na janela. Havia alturas em que lhe parecia que tudo o que tinha feito na vida e tudo o que faria era acordar, levantar-se e ir para escola. Nem o facto de todas as outras pessoas, incluindo os adultos, terem de levantar-se nas manhãs escuras de Inverno tornava aquilo mais fácil.

Se, pelo menos, todos concordassem em parar, ele poderia parar também. Mas a Terra continuava a girar, segunda, terça, quarta, e toda a gente continuava a sair da cama, as segundas, terças e quartas-feiras sucediam-se, e toda a gente continuava a levantar-se da cama.

A cozinha era como uma casa a meio-caminho entre a cama e o grande mundo que existia lá fora. Na cozinha, o ar era denso com o fumo das torradas, o vapor da chaleira e o cheiro a bacon. O pequeno-almoço devia ser uma refeição em família, mas raramente acontecia sentarem-se os quatro ao mesmo tempo. Os pais de Peter tinham de ir para o emprego e havia sempre alguém a correr à volta da mesa em pânico, à procura de um papel perdido, de uma agenda ou de um sapato. Quem entrava na cozinha tinha de deitar a mão ao que estivesse ao lume e arranjar um lugar para se sentar.

A cozinha também estava quente, quase tão quentinha como a cama, mas não era tão pacífica. O ar estava impregnado de acusações disfarçadas de perguntas.

– Quem deu de comer ao gato?– A que horas vens para casa?– Acabaste os trabalhos de casa? – Quem pegou na minha pasta?À medida que os minutos iam passando, a confusão e a urgência iam

aumentando. Era uma regra de família que ninguém podia sair de casa sem deixar a cozinha arrumada. Às vezes, tinha de surripiar da frigideira a sua fatia de bacon, antes que a atirassem para a tigela do gato e mergulhassem a

Page 14:  · Web viewQueria que lhe fizessem festas na barriga. À medida que os dedos de Peter iam avançando ao de leve pelo pêlo do gato, o ronronar foi-se tornando mais forte, até ao

frigideira na água do lava-loiças, fazendo-a soltar um silvo fumegante. Os quatro membros da família corriam para trás e para a frente com pratos sujos e pacotes de cereais, chocando uns com os outros, e havia sempre alguém a resmungar: «Vou chegar atrasado. Vou chegar atrasado. É a terceira vez esta semana!»

Mas a verdade é que havia um quinto membro da família, que nunca estava com pressa e ignorava sempre aquela agitação. Deitava-se todo esticado numa prateleira por cima do aquecedor, de olhos meio-fechados, dando como único sinal de vida um bocejo ocasional. Era um bocejo enorme, um bocejo insultuoso. Abria a boca toda e mostrava uma língua limpa e rosada e, quando finalmente voltava a fechá-la, era percorrido por um arrepio confortável desde os bigodes até à cauda: William, o gato, estava a preparar-se para o seu dia.

Quando Peter agarrava na mochila e dava uma última vista de olhos pela cozinha, antes de sair, era sempre William que via. A cabeça estava apoiada numa pata que lhe servia de almofada, enquanto a outra, caída da prateleira, balançava indolentemente, chapinhando no calor da cozinha. Agora que os ridículos humanos se iam embora, podia dormir a sua soneca. A imagem do gato preguiçoso era um tormento para Peter no momento em que saía de casa ao encontro das rajadas geladas do vento norte.

Quem achar estranho que se pense num gato como um verdadeiro membro da família talvez deva saber que William tinha mais anos do que Peter e Kate juntos. Em jovem, conhecera a mãe deles, nos tempos em que ela ainda andava na escola. Foi com ela para a universidade e, cinco anos depois, esteve presente na cerimónia do casamento. Quando Viola Fortune ficou grávida do primeiro filho e passava algumas tardes na cama, o gato William deitava-se sobre aquele grande monte redondo no meio dela, que era Peter. Nos dias em que Peter e Kate nasceram, desapareceu de casa imenso tempo. Ninguém sabia para onde tinha ido nem porquê. Tinha observado calmamente todas as tristezas e alegrias da vida em família. Viu os bebés crescerem e começarem a andar, tentando transportá-lo pelas orelhas, e viu-os transformaram-se de bebés que mal sabiam andar em crianças em idade escolar. Conheceu os pais deles quando eram um casal jovem e estouvado, que vivia num quarto. Agora já eram menos estouvados naquela casa de três quartos. E o gato William também estava menos estouvado. Já não trazia para casa ratos nem pássaros, que depositava aos pés dos ingratos humanos. Pouco depois do seu décimo quarto aniversário desistiu de lutar e já não defendia orgulhosamente o seu território. Peter achava ultrajante que o rufião do gato novo do vizinho do lado estivesse a apoderar-se do jardim, sabendo que o velho William não podia fazer nada contra isso. Às vezes, o gato do vizinho entrava pela porta da cozinha e comia a comida de William, enquanto este assistia, impotente, à cena. E pensar que apenas uns anos antes nenhum gato ajuizado se atreveria a pôr uma pata que fosse no relvado...

William devia ter ficado triste com a perda de capacidades. Deixou a companhia dos outros gatos e agora ficava sentado em casa, sozinho com as suas memórias e grandes reflexões. Mas, apesar dos seus dezassete anos,

Page 15:  · Web viewQueria que lhe fizessem festas na barriga. À medida que os dedos de Peter iam avançando ao de leve pelo pêlo do gato, o ronronar foi-se tornando mais forte, até ao

continuava mansarrão e bonito. Era quase todo preto, com as patas de um branco reluzente, uma faixa branca a descer-lhe do pescoço e uma pincelada branca na ponta da cauda. Às vezes ia ter com os donos ao sítio onde estavam sentados e, depois de pensar por um momento, saltava-lhes para o colo e por lá ficava, todo refastelado, olhando-os fixamente sem pestanejar. Depois aninhava a cabeça, olhando sempre fixamente, miava uma só vez, e nesse momento eles sabiam que estava a dizer qualquer coisa importante e sensata, qualquer coisa que nunca iriam entender.

Não havia nada de que Peter gostasse mais nas tardes de Inverno, ao chegar a casa, do que tirar os sapatos e deitar-se no chão da sala ao lado de William em frente da lareira. Gostava de se deitar ao nível de William, com a cara perto do focinho dele, a observar como ele, na realidade, era extraordinário, como era belo na sua categoria de não-humano, com tufos de pêlo preto brotando como um globo da pequena cara que existia por detrás do pêlo, com os seus bigodes brancos ligeiramente curvados para baixo, com as pestanas brancas apontadas para cima como antenas de rádio, com os olhos verde-pálido com os seus cortes verticais, como portas abertas para um mundo onde Peter nunca conseguiria entrar. Assim que Peler se aproximava do gato, começava a ouvir-se um ronronar profundo, tão baixo e ao mesmo tempo tão forte que fazia vibrar o chão. Peter sabia então que era bem-vindo.

Foi justamente numa dessas tardes, por acaso uma terça-feira, eram quatro horas e já estava a ficar escuro, as cortinas já estavam fechadas e as luzes acesas, que Peter se deitou no tapete onde William estava deitado, em frente da lareira onde as chamas volteavam em torno de um madeiro. Pela chaminé descia o murmúrio do vento gelado que chicoteava os telhados. Peter tinha vindo a correr com Kate desde a paragem do autocarro para aquecer.

Agora já estava dentro de casa a salvo com o seu velho amigo que fingia ser mais novo do que era, rolando sobre as costas e deixando que as patas da frente balançassem atabalhoadamente. Queria que lhe fizessem festas na barriga. À medida que os dedos de Peter iam avançando ao de leve pelo pêlo do gato, o ronronar foi-se tornando mais forte, até ao ponto de fazer chocalhar os ossos. Depois, William estendeu uma pata na direcção dos dedos de Peter, tentando puxá-los mais para cima. Peter deixou que o gato lhe guiasse a mão.

– Queres que te faça festinhas no queixo? – murmurou. Mas não. O gato queria que ele lhe mexesse na base da garganta. Peter sentiu lá uma coisa dura, que se movia de um lado para o outro quando lhe tocava. Era qualquer coisa que tinha ficado presa na pele. Peter apoiou-se num cotovelo para investigar. Afastou os pêlos. A princípio, pensou que estava a ver uma jóia, um pequeno pendente de prata. Mas não viu nenhum fio e, continuando a afundar os dedos no pêlo para ver melhor, apercebeu-se de que não era metal, mas osso polido, oval e achatado no centro. O mais curioso de tudo era o facto de estar unido à pele de William. Conseguia agarrar o pedaço de osso com o indicador e o polegar. Fez força com o pulso e deu um puxão. O ronronar do gato tomou-se ainda mais

Page 16:  · Web viewQueria que lhe fizessem festas na barriga. À medida que os dedos de Peter iam avançando ao de leve pelo pêlo do gato, o ronronar foi-se tornando mais forte, até ao

forte. Peter tornou a puxar, desta vez para baixo, e houve qualquer coisa que cedeu.

Ao afastar os pêlos com a ponta dos dedos, apercebeu-se de que tinha aberto um pequeno rasgão na pele do gato. Era como se tivesse na mão a ponta de um fecho de correr. Tornou a puxar e a abertura tornou-se maior – tinha já uns cinco centímetros. Era dali que saía o ronronar de William. «Talvez consiga ver o coração do William a bater», pensou Peter. A pata estava de novo a tocar-lhe nos dedos. O gato William queria que ele continuasse.

E foi isso que ele fez. Abriu o fecho do gato desde a garganta até à cauda. Peter queria abrir a pele para poder espreitar lá para dentro, mas não queria dar a impressão de estar a bisbilhotar. No preciso momento em que ia chamar Kate, houve um movimento, algo que se agitou dentro do gato, e da abertura saiu um brilho ligeiramente róseo, que se foi tornando cada vez mais intenso. E, de repente, de dentro do gato William saiu uma coisa, uma criatura. Mas Peter não tinha a certeza se era algo em que pudesse tocar, pois parecia ser totalmente feito de luz. E, embora não tivesse bigodes, nem cauda, nem pêlo, nem quatro patas, nem ronronasse, tudo naquela coisa parecia dizer «gato». Era a verdadeira essência da palavra, o coração da ideia. Era uma mancha silenciosa, furtiva, recurvada, de luz rósea e púrpura, e estava a sair de dentro do gato.

– Deves ser o espírito do William – disse Peter em voz alta.– Ou és um fantasma?A mancha de luz não emitia qualquer som, mas compreendia. Parecia dizer,

sem proferir quaisquer palavras, que era ambas as coisas, e muito mais, para além disso.

Depois de se ter libertado do gato, que continuava deitado de costas na carpete em frente da lareira, o espírito do gato flutuou pelo ar até pousar no ombro de Peter. Peter não teve medo. Sentia o brilho do espírito espelhado no seu rosto. Depois a luz passou por detrás da sua cabeça e ele perdeu-a de vista. Sentiu-a tocar-lhe no pescoço e um ligeiro estremecimento percorreu-lhe as costas. O espírito do gato agarrou algo com a forma de um botão que Peter tinha no cimo da coluna e puxou-o para baixo, ao longo das suas costas; então, foi o seu próprio corpo que se abriu, fazendo-o sentir o ar fresco tocar ao de leve o calor das suas vísceras.

Era uma coisa estranhíssima, alguém trepar para fora do seu corpo, sair dele e deixá-lo deitado na carpete, como uma camisa aca- bada de despir. Peter viu o seu próprio brilho, que era púrpura e do mais puro branco. Os dois espíritos flutuaram pelo ar, olhando-se. E foi então que, de repente, Peter descobriu o que queria fazer, o que tinha de fazer. Flutuou em direcção ao gato William e ficou a pairar sobre ele. O seu corpo continuava aberto, como uma porta, e parecia tão convidativo, tão acolhedor. Desceu e entrou para dentro dele. Era tão bom estar vestido de gato. Não era tão mole quanto Peter julgava que todas as vísceras fossem. Estava seco e quente. Deitou--se de costas e enfiou os braços nas patas

Page 17:  · Web viewQueria que lhe fizessem festas na barriga. À medida que os dedos de Peter iam avançando ao de leve pelo pêlo do gato, o ronronar foi-se tornando mais forte, até ao

dianteiras de William. A seguir tentou enfiar as pernas nas patas traseiras de William. A sua cabeça ajustou-se perfeitamente à cabeça do gato. Olhou de relance para o seu próprio corpo, mesmo a tempo de ver o espírito do gato William desaparecer dentro dele.

Com as patas, Peter conseguiu puxar o fecho de correr para cima. Levantou-se e deu alguns passos. Que maravilha, andar sobre quatro patas brancas e fofas. Via os bigodes espetados dos lados do seu rosto e sentia a cauda a voltear atrás de si. Os seus passos eram ligeiros e o pêlo era como a mais confortável das camisolas de lã. À medida que o seu prazer de ser gato aumentava, o coração começou a inchar e ele começou a sentir um formigueiro no fundo da garganta, tão forte que conseguia ouvi-lo. Peter estava a ronronar. Ele era o gato Peter e do outro lado estava o rapaz William.

O rapaz levantou-se e espreguiçou-se. Depois, sem dizer nada ao gato que estava deitado aos seus pés, esgueirou-se para fora da sala.

– Mãe – ouviu Peter o seu antigo corpo dizer da cozinha. – Estou cheio de fome. O que é o jantar?Nessa noite, Peter esteve demasiado inquieto, demasiado excitado,

demasiado gato para dormir. Por volta das dez da noite fugiu pela abertura da porta. O ar gelado da noite não conseguia atravessar o seu pêlo tão espesso. Encaminhou-se para o muro do jardim, sem fazer o mínimo barulho. Saltou para cima dele, sem esforço, graciosamente, e ficou lá em cima a vigiar o seu território. Como era maravilhoso ver os recantos mais escuros, sentir as vibrações dos seus bigodes no ar da noite e poder não ser visto. Eis se não quando, à meia-noite, surge um cão a caminho do jardim para vasculhar os caixotes de lixo. Estava consciente da presença de outros gatos à sua volta, alguns das redondezas, outros vindos de longe, que se dedicavam aos seus afazeres nocturnos, percorrendo as suas rotas. A seguir ao cão, foi um gato malhado que tentou entrar no jardim. Peter avisou-o de que se fosse embora com um assobio e um estalido com a cauda. Ouviu o seu ronronar interior, ao mesmo tempo que o novato guinchou de susto e fugiu.

Pouco depois deste episódio, quando estava a patrulhar o muro alto sobranceiro à estufa, deu de caras com outro gato, um intruso mais perigoso. Era completamente preto, e por isso é que Peter não o vira antes. Era o gato da casa do lado, um tipo forte, quase o dobro de si, com um pescoço gordo e umas pernas fortes e compridas. Sem sequer pensar, Peter arqueou o dorso e pôs o pêlo em pé para se fazer maior.

– Ouve lá, gato – disse num tom sibilante – este muro é meu e tu estás em cima dele.

O gato preto pareceu surpreendido. Sorriu.– Foi teu, queres tu dizer, avozinho. Que tencionas fazer?

Page 18:  · Web viewQueria que lhe fizessem festas na barriga. À medida que os dedos de Peter iam avançando ao de leve pelo pêlo do gato, o ronronar foi-se tornando mais forte, até ao

– Põe-te a andar, antes que eu corra contigo. – Peter estava admirado por se sentir tão forte. Era o seu muro, o seu jardim; e a sua missão era manter os gatos hostis à distância.

O gato preto tornou a sorrir, um sorriso gelado.– Ouve lá, avozinho, não vai ser teu por muito tempo. Vou avançar. Sai da

frente, se não desfaço-te.Peter ficou onde estava.– Se deres mais um passo, minha pulga de circo ambulante, ato-te os

bigodes à volta do pescoço.O gato preto deu uma longa gargalhada de desprezo. Mas não deu mais

nenhum passo. A toda a volta, os gatos das redondezas iam aparecendo, vindos do escuro, para assistirem. Peter ouvia as suas vozes.

– Uma briga?– Uma briga.– O velho deve estar doido!– Se tiver sorte, ainda chega aos dezassete.O gato preto arqueou o dorso forte e voltou a gemer, num crescendo terrível.Peter tentou manter a voz calma, mas as palavras saíram-lhe como se

estivesse a assobiar.– Não passassss por aqui sssssem me pediresssss primeiro.O gato preto piscou os olhos. Os músculos do seu pescoço gordo retesaram-

se no momento em que soltou outra gargalhada, que era também um grito de guerra.

No muro em frente, um murmúrio de excitação percorreu a assistência, que continuava a aumentar.

– O velho William pirou de vez.– Escolheu mal o gato com quem ter uma briga.– Ouve lá, meu bode velho desdentado – disse o gato preto, num tom

sibilante muito mais penetrante do que o de Peter. – Aqui sou eu o primeiro. Não é assim? – Virou-se para a assistência, que

murmurou um «sim». Peter achou que os gatos ali presentes não tinham respondido com muito entusiasmo.

– Vais servir de pequeno-almoço aos passarinhos – ameaçou o gato preto, dando um passo em frente.

Peter respirou fundo. Tinha de ganhar, em honra do velho William. Enquanto pensava nisto, a pata do gato chicoteou-lhe a cara. Peter tinha o corpo de um

Page 19:  · Web viewQueria que lhe fizessem festas na barriga. À medida que os dedos de Peter iam avançando ao de leve pelo pêlo do gato, o ronronar foi-se tornando mais forte, até ao

gato velho, mas o espírito de um rapaz novo. Baixou-se e sentiu a pata com as garras mal intencionadas espetadas a atravessar o ar por cima das suas orelhas. Teve tempo para ver como momentaneamente o gato preto se apoiou apenas em três patas. Mas, logo a seguir, saltou para a frente e, com as patas dianteiras, deu um valente empurrão no peito do gato. Não era o género de coisa que os gatos costumassem fazer numa luta, e o gato número um foi apanhado de surpresa. Com um miado de espanto, foi escorregando e tacteando o caminho para trás, até que se enfiou de cabeça pelo telhado da estufa. O ar gelado da noite foi quebrado pelo embate e pelo som musical do vidro partido e pelo som mais cavo dos vasos a quebrarem-se. A seguir, voltou o silêncio. A multidão silenciosa de gatos espreitou pelo muro. Ouviram algo a mexer-se e depois um gemido. Viram, então, no meio da escuridão, o vulto do gato preto a coxear sobre o relvado. Ia a falar entre dentes:

– Não é justo. Garras e dentes, tudo bem. Mas um encontrão daqueles! Não é justo.

– Para a próxima – gritou Peter lá para baixo – pede licença.O gato preto não respondeu, mas houve qualquer coisa naquele vulto que se

retirava a coxear que deixou claro que ele tinha percebido.Na manhã seguinte, Peter estava deitado na prateleira por cima do radiador

com a cabeça apoiada numa pata, enquanto a outra balançava indolente por entre o calor que ia subindo. À sua volta reinavam a correria e o caos. Kate não conseguia encontrar a mochila. Os flocos tinham-se queimado. O Sr. Fortune estava de mau humor, porque o café tinha ido por fora, e ele precisava de três chávenas de café forte para começar o dia. A cozinha estava numa confusão e essa confusão estava encoberta no meio do fumo dos flocos queimados. E era tarde, tarde, tarde!

Peter enrolou a cauda atrás das patas traseiras e tentou não ronronar demasiado alto. No extremo oposto da cozinha estava o seu antigo corpo com o gato William lá dentro e aquele corpo tinha de ir para a escola. O rapaz William parecia confuso. Já estava de casaco vestido e pronto para sair de casa, mas só tinha um sapato. Não conseguia encontrar o outro. Ia repetindo: «Mãe, onde está o meu sapato?» Mas a Sr.ª Fortune estava no hall a discutir com alguém ao telefone.

O gato Peter semicerrou os olhos. Depois da sua vitória ficara desesperadamente cansado. Faltava pouco para a família se ir embora. A casa ia cair no silêncio. Quando o radiador arrefecesse, iria até lá acima escolher a cama mais confortável. Em memória dos velhos tempos, escolheria a sua própria cama.

O dia passou-se tal como esperava. Dormiu, lambeu um pires de leite, tornou a dormir, mastigou uma comida de gato enlatada que, afinal, não era tão má como cheirava – parecia empadão sem puré de batata. Depois, dormiu outra vez. Sem que se tivesse apercebido disso, o céu escureceu e as crianças voltaram da escola. O rapaz William estava com um ar cansado de um dia de aulas e de lutas

Page 20:  · Web viewQueria que lhe fizessem festas na barriga. À medida que os dedos de Peter iam avançando ao de leve pelo pêlo do gato, o ronronar foi-se tornando mais forte, até ao

no recreio. O rapaz-gato e o gato-rapaz deitaram-se no chão lado a lado em frente da lareira. Era estranhíssimo, pensava o gato Peter, que estivesse a ser acariciado por uma mão que ainda no dia anterior era a sua. Interrogava-se se o rapaz William se sentiria feliz com a sua nova vida de escola e autocarros, irmã, mãe e pai. Mas a expressão do rapaz não dizia nada ao gato Peter. Não tinha pêlos nenhuns, não tinha bigodes, À noite, Peter foi até ao quarto de Kate. Como de costume, ela estava a falar com as bonecas, a dar-lhes uma lição de Geografia. A avaliar pela expressão dos seus rostos, não estavam muito interessadas em saber quais eram os maiores rios do mundo. Peter saltou para o colo dela e ela começou a fazer-lhe festas, distraidamente, enquanto ia falando. Se ao menos ela conseguisse perceber que a criatura que estava no seu colo era o irmão... Peter continuou deitado, a ronronar. Kate estava a começar a enumerar todas as capitais de que se lembrava. Era tão maçador que era mesmo o que ele precisava para adormecer outra vez. Já tinha os olhos fechados quando a porta se abriu com um encontrão e o rapaz William entrou com grandes passadas.

– Então, Peter? – disse Kate. – Não bateste à porta.Mas o seu irmão-gato não lhe ligou nenhuma. Atravessou o quarto, pegou

toscamente no seu gato-irmão e saiu a correr. Peter não gostou de ser levado assim. Era indigno de um gato da sua idade. Tentou desembaraçar-se, mas o rapaz William segurou-o ainda com mais força, enquanto descia as escadas a correr. «Sss», disse ele. «Não temos muito tempo.»

William levou o gato para a sala e pousou-o no chão.– Deixa-te estar quieto – disse-lhe em voz baixa. – Faz o que eu mandar.

Deita-te de costas.O gato Peter não tinha grandes alternativas, pois o rapaz estava a segurá-lo

com uma mão e a vasculhar-lhe o pêlo com a outra. Encontrou a peça de osso polido e puxou-a para baixo. Peter sentiu o ar fresco percorrer o seu interior. Saiu de dentro do corpo do gato. O rapaz estava à procura de qualquer coisa por detrás do pescoço, até que começou a abrir o fecho. A luz rósea e púrpura de um verdadeiro gato deslizou para fora do corpo do rapaz. Por um momento, os dois espíritos, de gato e de homem, ficaram frente a frente, suspensos sobre a carpete. Por baixo deles, estavam os seus corpos, imóveis, expectantes, como táxis prontos a partir com os seus passageiros. Havia uma certa tristeza no ar.

Embora o espírito do gato não falasse, Peter conseguia sentir o que ele estava a dizer.

– Tenho de voltar. Tenho outra aventura para começar. Obrigado por me teres deixado ser rapaz. Aprendi tantas coisas que me serão úteis no futuro! Mas, acima de tudo, obrigado por teres travado a minha última batalha por mim.

Peter ia a falar, mas o espírito do gato voltou para dentro do seu próprio corpo.

Page 21:  · Web viewQueria que lhe fizessem festas na barriga. À medida que os dedos de Peter iam avançando ao de leve pelo pêlo do gato, o ronronar foi-se tornando mais forte, até ao

– Resta muito pouco tempo – parecia ele estar a dizer, no momento em que a luz rósea e púrpura se dobrou sobre si própria para se meter dentro da pele do gato.

Peter dirigiu-se para o seu próprio corpo e deslizou lá para dentro pela parte de cima da coluna.

A princípio, sentiu-se muito estranho. Não se ajustava minimamente àquele corpo. Quando se pôs de pé, tinha as pernas a abanar. Era como se andasse com umas botas de borracha quatro números acima do seu. Talvez o seu corpo tivesse crescido um pouco desde a última vez que o usara. Era mais seguro deitar-se por um instante. Ao fazê-lo, o gato William deu meia volta e saiu da sala muito lentamente, todo empertigado, sem sequer olhar para ele.

Enquanto estava ali deitado a tentar habituar-se ao seu antigo corpo, Peter reparou numa coisa curiosa. As chamas continuavam a voltear em torno do mesmo madeiro. Olhou pela janela. O céu estava a escurecer. Ainda não era noite, era a tarde que estava a chegar ao fim. No jornal que estava ao pé da cadeira viu que ainda era terça-feira. E isso era outra coisa curiosa. A sua irmã Kate entrou na sala a correr e a chorar. Atrás dela entraram os pais, com um ar muito triste.

– Peter – disse Kate, lavada em lágrimas. – Aconteceu uma coisa horrível.– Foi o William – explicou a mãe. – Parece-me que ele...– Oh, William! – O choro de Kate abafou as palavras da mãe.– Entrou na cozinha – disse o pai – trepou para a sua prateleira preferida, por

cima do radiador, fechou os olhos e... morreu. – Não sentiu nada – garantiu Viola Fortune para tranquilizar o filho.Kate continuava a chorar. Peter percebeu que os pais estavam a olhar

ansiosamente para ele, à espera de ver como reagia à notícia. De toda a família, era ele o mais chegado ao gato.

– Tinha dezassete anos – disse Thomas Fortune. – Viveu muito tempo.– Teve uma vida boa – continuou Viola Fortune.Peter levantou-se devagar. Parecia que duas pernas não chegavam.– Pois – disse, por fim. – Partiu para outra aventura.Na manhã seguinte enterraram William ao fundo do jardim.Peter fez uma cruz com paus e Kate fez uma coroa de louros e ramos. Apesar

de irem atrasar-se para saírem para a escola e para o emprego, a família dirigiu-se em peso à sepultura. As crianças lançaram as últimas pás de terra. E foi nessa altura que uma bola de luz rósea e púrpura saiu do chão e voou para o ar.

– Olhem! – disse Peter, apontando.– Olhem para quê?

Page 22:  · Web viewQueria que lhe fizessem festas na barriga. À medida que os dedos de Peter iam avançando ao de leve pelo pêlo do gato, o ronronar foi-se tornando mais forte, até ao

– Ali, ali mesmo à vossa frente.– Do que estás a falar, Peter?– Está outra vez a sonhar.A luz continuou a subir até chegar ao nível da cabeça de Peter. Claro que não

falou. Isso teria sido impossível. Mas Peter ouviu na mesma.– Adeus, Peter – disse ela ao começar a desvanecer-se à frente dos seus

olhos. – Adeus. E, mais uma vez, obrigado.

Tradução e adaptaçãoIan McEwan

O SonhadorLisboa, Gradiva, 1999