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TEXTO DE APOIO SOBRE A FENOMENOLOGIAProfessor Marcelo Marques
Você ainda deve lembrar que no início do ano estudamos duas perspectivas diferentes
sobre o problema do conhecimento.
A primeira foi o racionalismo, que toma a razão como critério para a busca da verdade.
Segundo esse ponto de vista, se nós deixarmos de lado todas as noções derivadas dos sentidos para
construir um pensamento puramente racional, poderemos chegar a idéias seguras. O principal
filósofo desse período foi Descartes. Uma de suas conclusões foi a de que existem duas realidades
diferentes: o pensamento (espírito) e a matéria (corpo). Enquanto os seres inanimados e os animais
compõem a realidade material e Deus a realidade espiritual, nós, seres humanos, somos os únicos
seres feitos das duas realidades. Sendo assim, podemos falar em essências, verdades e estruturas
permanentes para o sujeito que conhece e para o restante do mundo.
A segunda corrente é o empirismo, que se opõe ao racionalismo afirmando que todo
conhecimento tem origem na experiência dos sentidos. A razão passa a ser vista como algo
subordinado às sensações, e não se pode mais falar em verdades absolutas. Tudo o que podemos
conhecer são percepções imperfeitas, e tudo o que chamamos de verdade não passa de
probabilidade ou simples convenção.
Ao pensarmos no contexto histórico que se seguiu a esse período, lembraremos que a
sociedade ocidental buscou cada vez mais desenvolver as ciências e as técnicas. O modelo de
conhecimento mais valorizado passou a ser o conhecimento objetivo e neutro defendido pela
ciência. Com tudo isso, a filosofia entra em crise, junto às ciências humanas, que acabam sendo
vistas como conhecimentos sem rigor teórico.
Essa volta que acabamos de fazer foi para começarmos a falar de uma nova perspectiva
sobre o conhecimento, da qual faz parte o filósofo Martin Heidegger, que começaremos a estudar.
A perspectiva em questão é a fenomenologia. O termo fenomenologia, como você já sabe, vem de
fenômeno (objeto como aparece para o sujeito) + logia (de logos, que significa razão).
Simplificando: trata-se de uma ciência ou filosofia dos fenômenos.
A fenomenologia surge no fim do século XIX e foi aprimorada pelo filósofo Edmund
Husserl. Aparece como uma proposta que resgata a importância da filosofia e busca re-humanizar
as ciências. Com relação ao conhecimento, diferente do racionalismo, que tem seu foco no sujeito
(racional) e do empirismo, que impossibilita a afirmação de qualquer essência, a fenomenologia
propõe um modelo no qual sujeito e objeto são interdependentes. Não pode haver razão pura, e o
sujeito que conhece não é mais visto como uma estrutura fixa composta de essências como
“alma”e “corpo”. Para a fenomenologia, o sujeito é, antes de tudo, uma consciência; e mais do
que isso, uma consciência intencional, uma consciência que se lança para o mundo e que nunca
existe isolada (redução transcendental). Essa consciência é definida como “consciência de”(algo).
Nessa perspectiva não se pode falar em conhecimento neutro e objetivo, pois tudo o que se
pode conhecer depende da consciência intencional e, por isso, sempre parcial - do observador.
Todo conhecimento é fruto da relação necessária entre o objeto e o sujeito que, ao observar, já
coloca sua intencionalidade sobre o objeto.
Curiosidades:
- A consciência é apresentada por Sartre como sendo algo que tem carência de Ser, e que
por isso se lança para o mundo, absorvendo-o. É como um buraco negro, que em si mesmo
não é nada além de um imenso vazio, mas que atrai os astros próximos para si.
A consciência é algo que se lança e que se constrói de acordo com a vivência do sujeito,
sujeito este que não tem uma estrutura própria. Não podemos falar mais em caráter do indivíduo,
personalidade fixa ou essência. Cada sujeito se constrói existindo. Nunca está determinado. Essa
perspectiva impossibilita as teorias cientificistas sobre as sociedades, sobre os comportamentos e
sobre qualquer tipo de moral na qual se entenda as ações humanas como determinadas e
previsíveis. Afinal, como podemos prever um acontecimento futuro que depende de consciências
que, em si mesmas, não possuem uma estrutura definida? Quando prevemos um fenômeno natural,
o fazemos por acreditar que os objetos envolvidos possuem uma estrutura fixa (caso da água que
ferve a 100 graus).
É difícil falar em ciências sociais segundo o modelo tradicional, mas é possível pensar o ser
humano a partir de seus modos existenciais. Diferente do que se entende por estrutura ou
essência, os modos existenciais são características observáveis enquanto fenômenos. Aqui não se
fala de estrutura, mas sim de acontecimentos recorrentes, de formas de percepção e compreensão
de mundo. Isso ficará mais claro quando começarmos a falar de Heidegger.
Se só podemos falar de fenômenos, como fica a questão do conhecimento do mundo? De fato, o
conhecimento é sempre condicionado pela intencionalidade da consciência, mas é possível ainda
se falar em essência como uma espécie de núcleo obtido a partir de diversos pontos de vista sobre
um mesmo objeto. Para a fenomenologia, o caminho para se alcançar essa essência (eidos) começa
com uma suspensão do juízo (epoché), uma visão pura do objeto despida de qualquer noção
anterior, como se fosse a primeira vez. O sujeito que realiza a epoché percebe o objeto por um
ponto de vista particular e ainda não seguro. A segurança do conhecimento só é obtida a partir do
confronto entre várias visões distintas. A partir dessas visões, pode-se eliminar aquilo que cada
uma tem de supérfluo e descobrir o núcleo presente em todas elas. Este núcleo constitui
finalmente a essência do fenômeno. Mas essa essência não é uma verdade absoluta e metafísica.
Ela é construída; é uma verdade intersubjetiva. Uma verdade alcançada pelo método
fenomenológico é sempre passível de novas visões e novos pontos de vista. Dessa forma, toda
verdade encontra-se em constante construção. Ela encontra-se na mente, e não na realidade em si.
Edmund Husserl ( 1859-1938),
Uma das mudanças mais marcantes na filosofia moderna foi a inclusão da idéia de sujeito,
o desenvolvimento desse conceito que passaria a ser central e determinador do pensamento a partir
de Descartes. Na filosofia moderna pode-se distinguir uma mudança de referencial em relação à
determinação da realidade. As especulações anteriores buscavam sempre alcançar a verdade. Uma
verdade exterior e inquestionável, universal e absoluta. Portanto, especulava-se sobre uma
realidade dada, e a partir da simples objetividade e do uso eficiente da lógica poder-se-ia atingi-la
com precisão absoluta.
Mas com a introdução da ideia de sujeito aparece a dúvida, pois todo o conhecimento que
podemos ter passa necessariamente a depender do sujeito e de sua percepção das coisas. Com isso
percebe-se o problema da subjetividade, e transfere-se o polo do conhecimento do objeto a ser
conhecido para o indivíduo conhecedor. A consequência é que são elaboradas várias teorias do
conhecimento, as quais ora oscilam para o empirismo, ora para o racionalismo, mas concordando
em que todo o conhecimento depende do sujeito, e pode-se dizer que a culminância desse processo
se deu com o idealismo, o qual afirmava que não podemos conhecer de forma alguma a essência
das coisas, o que conhecemos são apenas as representações formuladas por nossos sentidos e por
nosso entendimento. Cria-se então um muro entre o sujeito e o objeto, e uma aporia para a questão
da verdade e da essência.
Uma solução para o problema surge então com a fenomenologia, um método de
investigação o qual poderia ser bem definido como um sistema aberto. Levando em conta os
problemas trazidos pela filosofia até então, a fenomenologia visa funcionar como um verdadeiro
"positivismo", não no sentido conhecido a partir do seu fundador Auguste Comte, mas no sentido
de que fundamentaria, unificaria e tornaria mais rigoroso o estudo filosófico. Visto que se tenha
posto de tal forma o conhecimento pelo idealismo, a fenomenologia afirma que podemos sim
conhecer. Podemos conhecer os fenômenos (e deles suas essências) que constituem tudo o que
percebemos, sensorialmente ou intelectualmente. Para a fenomenologia, a realidade não é
apreendida em sua forma final com uma essência definida simplesmente a partir de uma boa
intuição, mas somente a partir de continuas visadas que vão determinando o objeto em um
processo. Outro fator importante é que o foco do conhecer não está situado especificamente no
sujeito ou no objeto, mas em ambos. Os dois se relacionam incessantemente e o ato de conhecer
deixa de ter um polo. O sujeito se determina pelos objetos assim como os objetos se determinam
pelo sujeito.
Assim o método é aberto. O conhecimento não é fechado, mas desenvolvido, e a realidade
é determinada continua e infinitamente. Assim como o processo de conhecer, a essência não é
fechada. Ela é desvelada no processo e pode também ser infinitamente descoberta e transformada.
Por último, o sujeito não é fechado. Ele se determina no próprio ato de conhecer. Essa idéia de
sujeito pôde ser construida a partir da noção introduzida da consciência de algo, a qual será
descrita nas próximas linhas.
A consciência, para Husserl, não é uma coisa, um objeto, algo que possa ser localizado e
definido, a não ser como o ponto mais originário de qualquer apreensão (visada). Tudo o que
percebemos, o fazemos a partir dela, e na própria definição: "origem de qualquer visada"
percebemos que não a definimos em si mesma e isoladamente, mas incluímos o percebido na
própria definição da consciência. O termo "visada" denuncia imediatamente a relação dessa
consciência com o objeto. Assim, ela é a origem, e por "Origem" não se pode ainda determiná-la
como coisa; e é origem de visada, e essa "visada" remete necessariamente à apreensão de algo, ou
seja, não se pode definir a consciência fora desta relação com o objeto. Por isso Husserl afirma
que a consciência é sempre e somente consciência de algo. A consciência só é enquanto
consciência de algo e esse algo, por sua vez, só o é enquanto é para a consciência. Pensar a
consciência "pura" seria como pensar um deus criador de todas as coisas. Ele seria a origem de
tudo. Podemos pensá-lo, como o fazemos com a consciência, mas não podemos defini-lo. De que
ele é feito? Qual a sua forma? Onde ele está? De onde vem?...
O problema se dá porque a consciência, como ponto originário, se volta sempre para fora,
para as coisas externas a si; semelhante aos nossos olhos, que são incapazes de se ver a partir de si
mesmos. Eles se voltam sempre para algo que lhes é exterior. Eles podem ver os objetos, podem
ver o próprio corpo, as mãos, os braços, os ombros, e até o nariz, e mesmo as sobrancelhas, mas
nunca a si mesmo. Ou seja, a consciência pode perceber, além das coisas, o próprio corpo e o
sujeito, e chegar muito próximo do que seria a consciência, mas esta ainda assim estaria
infinitamente distante de sua apreensão.
Uma outra definição (que se obtém por dedução da anterior) é que a consciência é o
próprio conhecer, isto é, como origem de toda apreensão (que é necessariamente apreensão de
algo). Ela só existe enquanto apreende, enquanto conhece; e este conhecer é um processo contínuo
e ininterrupto, o qual determina a consciência a cada instante. Daí surgiu o termo movimento de
consciência que explica justamente em que constitui esse existir da consciência, pois se ela não se
movesse e se relacionasse com os objetos, ela simplesmente não existiria.
Como no exemplo dos olhos que tentam ver a si próprios, a consciência realiza um
movimento semelhante. Seu foco se volta para os objetos mais próximos e, embora não consiga
ver-se como objeto, a consciência percebe a sua extensão mais imediata, o sujeito. A apreensão do
sujeito, que nesse caso se torna um objeto para a consciência, é de extrema importância, pois o
sujeito exerce expressiva influência na determinação de qualquer objeto e se ele mesmo não for
satisfatoriamente determinado antes, isto é, reduzido ou colocado entre parênteses, torna-se
impossível a determinação da essência de qualquer outro objeto.
O método de Husserl baseia-se nesse processo de redução. Ele constitui o ato de visar o
objeto sempre como se o sujeito estivesse percebendo-o pela primeira vez e realizando
incessantemente novas e diferentes visadas, e tentando perceber o mesmo objeto a partir de outras
perspectivas. Em outras palavras, como se o observador se colocasse sempre no lugar de outra
pessoa, que estaria também tendo de tal objeto a primeira impressão, mas que se apresentaria
necessariamente de forma distinta. Neste processo é constatada claramente a presença de um
observador e de um objeto ou fenômeno.
O fenômeno é precisamente todo algo, todo ente que a consciência é capaz de perceber.
Ele constitui o objeto da maneira mesma como ele se nos aparece. A concepção de "coisa" é
alterada significativamente desde o racionalismo Cartesiano. Para Husserl, não há mais a
dicotomia entre a coisa-empírica e a coisa-em-si, mas apenas a "coisa que se mostra à
consciência". A realidade na fenomenologia é imanente no sentido tradicional do termo; os
fenômenos habitam este mundo e só existem enquanto há uma consciência que os percebe, e do
modo com que ela os percebe. Por isso cada uma dessas percepções, inquestionavelmente vê o
objeto, mas é muito difícil, ou talvez impossível que uma visada consiga captar toda a abrangência
do fenômeno, toda a sua extensão e todas as suas possibilidades de compreensão. Assim, o que se
tem são perspectivas; inúmeras e infindas perspectivas para um mesmo objeto, e cada uma delas
delimita positivamente de algum modo o fenômeno, mas só a soma e a combinação de várias
perspectivas pode chegar a delimitar esse fenômeno como um todo e dizer com segurança o que
ele é essencialmente.
Contudo, para realizar essa determinação fenomenológica do objeto é preciso antes que se
entenda o que é o sujeito, como ele pode influenciar a visada e como se realiza a redução do
próprio sujeito para que se consiga de fato olhar para um objeto da maneira mais pura (livre de
pré-conceitos) possível e assim chegar à sua essência.
O sujeito é a constituição do observador, de suas possibilidades de conhecimento. Ele
consiste no resultado da presença de um corpo que apreende através dos sentidos e de uma mente
que raciocina essas apreensões e as articula umas com as outras, sejam elas imediatas ou
lembranças. O sujeito é o causador da intencionalidade no movimento da consciência e por isso
influencia diretamente no modo com que visamos as coisas. A partir dessas intencionalidades
surgem as diferentes visadas.
O método afirma então a necessidade de se colocar o próprio sujeito entre parênteses para
se observar qualquer objeto. Esse "colocar entre parênteses" é o que Husserl chamou de epoché; é
a redução racional da coisa (no caso o sujeito) eliminando-se qualquer opinião pré-estabelecida. O
primeiro passo e o mais essencial no processo da redução do sujeito é o de se tomar consciência
desse sujeito e de sua atuação no processo. Deve-se primeiramente tomar consciência da própria
intencionalidade existente na visada e tentar suspendê-la. Com essa redução chega-se ao ego-
transcendental, ao sujeito puro, e é a partir dele que se deve observar o objeto procurando novas e
diferentes visadas que constituirão a intersubjetividade, de onde será possível retirar o que é
consenso em todas as visadas, ou seja, sua essência ou eidos.
A redução do sujeito a ego-transcendental é realmente complexa, pois se dá quase como
uma volta da intencionalidade a si mesma. A solução para o problema é tomar consciência
exatamente de tudo que envolve esta dificuldade, ou seja, que ao tomar consciência da
intencionalidade, esta consciência é já intencional, e a consciência da intencionalidade da visada
que pensa a intencionalidade do sujeito é por sua vez uma intencionalidade e assim infinitamente,
pois o sujeito intentou pensar a sua intencionalidade necessariamente a partir de uma complexa
estrutura formada em sua vivência.
Por fim, resta definir o que seja a essência, que na fenomenologia Husserliana apresenta
claramente um sentido completamente diverso daquele dos idealistas e do senso-comum que o
incorporou.
A essência aqui não é a coisa-em-si metafísica; imutável como afirmara Parmênides ou
absoluta e transcendental em relação a este mundo sensível, como na filosofia de Platão. A
essência ou eidos, em concordância com o método, é uma essência dinâmica. Ela decorre do
próprio movimento de determinação do fenômeno a partir das visadas devidamente reduzidas. Ela
é o resultado de uma visada comum, possibilitada pela suspensão da intencionalidade em cada
uma delas; obtêm-se aí um postar-se face a face com a coisa (não a coisa-em-si, mas a coisa
mesma). Essa coisa mesma é a própria essência, e sua transcendentalidade não é se não a
transposição da barreira da intencionalidade e dos pré-conceitos. Ela é imanente quando se
observa que ela está na própria coisa e, mais que isso, que ela é a própria coisa. Sendo assim, ela é
infinitamente determinável e eternamente mutável, já que é fruto de um movimento, este
movimento das infinitas visadas que o homem pode realizar, e que partem de uma realidade que se
transforma no tempo.
A Fenomenologia de Husserl justifica dessa maneira o seu caráter metodológico, o qual
visa à universalidade e coloca-se como o "verdadeiro Positivismo", pois soluciona os problemas
encontrados na ideia de verdades absolutas, mostrando que a verdade existe, mas existe em
dependência e comunhão com os homens, e somente a eles podem ser consideradas universais,
mas nunca absolutas.
Martin Heidegger (1889-1976),
Heidegger tomou seu caminho próprio, preocupado que a fenomenologia se dedicasse ao que está
escondido na experiência do dia a dia. Ele tentou em O ser e o tempo (1927) descrever o que
chamou de estrutura do cotidiano, ou "o estar no mundo", com tudo que isto implica quanto a
projetos pessoais, relacionamento e papeis sociais (pois que tudo isto também são objetos ideais).
Em sua crítica, Heidegger salientou que ser lançado no mundo entre coisas e na contingência de
realizar projetos é um tipo de intencionalidade muito mais fundamental que a intencionalidade de
meramente contemplar ou pensar objetos, e é aquela intencionalidade mais fundamental a causa e
a razão desta última, da qual se ocupava Husserl.
A fenomenologia inaugura uma nova forma de interpretar a realidade. Para essa corrente de
pensamento, tudo aquilo que se afirma como verdade seria um núcleo, uma essência obtida pelo
consenso de vários pontos de vista individuais formando uma visão coletiva. Entretanto, essa
verdade nunca se encerra completamente. O mundo pode sempre ser observado por novos
ângulos. Apreender um objeto a partir de novas perspectivas, alterando de alguma forma a sua
essência, é o que os fenomenólogos chamam de desvelar. Desvelar é observar sem preconceitos,
como se fosse a primeira vez, sem querer aplicar teorias ou metodologias que podem restringir as
possibilidades de se perceber realmente o que aparece ao sujeito.
O sujeito que conhece o mundo é definido como uma consciência (e não como corpo,
mente, alma, etc). A fenomenologia não tenta entender a realidade segundo o modelo científico.
Sem pressupostos, tenta compreender os indivíduos pelas suas experiências e vivências.
Podemos observar que algumas pessoas se destacam pela sua coragem, por se arriscar por
ideais, enquanto outras tendem a buscar estabilidade acima de tudo. Algumas pessoas são super
extrovertidas enquanto outras são tímidas. Umas têm vários projetos enquanto outras preferem se
deixar levar pelas ondas da vida. Para a fenomenologia, esses não são traços predefinidos de
personalidade, mas possibilidades existenciais. Todas as possibilidades estão abertas ao ser
humano, que na fenomenologia é definido simplesmente como um “ser-para”, um “poder-ser” ou
como um projeto. Se o ser humano tem a peculiaridade de estar aberto para se construir, este fato
pressupõe que ele é livre, que toma posição diante da realidade.
Heidegger nem mesmo usava os termos “ser humano” ou “homem” para tratar daquilo que
somos. Para evitar a carga de “pré-conceitos” que estes termos já nos trazem, utilizava a
expressão “ser-aí”. Ser-aí é para ele uma palavra que designa melhor o que somos por afirmar
a nossa grande peculiaridade: somos seres que existem se lançando para o mundo, se criando a
partir da vivência. O que somos não resulta simplesmente da nossa genética e nem é
inteiramente determinado pelo meio. Somos as formas de existência que desenvolvemos
constantemente.
Heidegger define os entes (objetos) como: sem mundo
(objetos inanimados), pobres de mundo (animais) e seres-
no-mundo (homens). Nosso grande diferencial nesse
sentido é que ao existirmos e ao lidarmos com as coisas e
as pessoas vamos construindo uma noção de mundo
própria. A noção de mundo é uma espécie de conjunto de
toda a realidade que a nossa consciência configura inferindo-lhe sentidos determinados.
Finalmente, o ser humano, ao se projetar para a existência, desenvolve modos de lidar com os
objetos, de se relacionar com os outros seres como nós, e de dar sentido a todas essas relações.
Não é pelo advento da razão que podemos nos afirmar diferentes dos outros seres, mas sim por
esse modo específico de existir.
Apesar de existirem várias formas de o ser humano se relacionar com o mundo, uma delas
costuma se manifestar desde o início nas pessoas. É o modo existencial da lida instrumental com o
mundo. Heidegger dedica grande parte do seu pensamento a entender essa ocupação dos homens
com os objetos e até mesmo com as pessoas como se fossem meros utensílios. A prática sempre
aparece antes da teoria no desenvolvimento humano. Primeiro os homens começam a interagir
com a realidade, e só bem depois passam a compreendê-la.
O mundo como o percebemos hoje é uma
radicalização desse modo de existir. A ascensão da ciência é
um exemplo disso. A nossa forma de entender a realidade
se tornou instrumental. É por isso que sempre que nos deparamos com algo desconhecido
queremos saber antes para o quê ele serve, e não simplesmente o que ele é.
Quando usamos uma caneta, por exemplo, não paramos para pensar sobre o que é o “ente-
caneta”; usamos sem precisar pensar. Em nosso cotidiano executamos inúmeras atividades sem
sequer nos darmos conta do que estamos fazendo. Com passar do tempo, conseguimos
desenvolver um ambiente de vida no qual todas as coisas com as quais nos deparamos são
instrumentos e passam desapercebidas. Tudo já está devidamente catalogado, reconhecido, e deve
ser apenas utilizado. Assim andamos na rua, atravessamos no sinal, pegamos o ônibus, pagamos a
passagem... até nossas relações pessoais se tornaram instrumentais.
Os instrumentos são adequados enquanto funcionam. Quanto
melhor seu funcionamento, menos a coisa é percebida e mais
ela cumpre o seu papel de não ser nada em si mesma. Um
martelo bom não solta o cabo. Somente quando seu cabo solta
ele aparece como simples objeto. Até mesmo um operador de
caixa de supermercado não existe em si mesmo, mas apenas como instrumento para as pessoas na
fila. Mas basta ele se atrapalhar e deixar de cumprir bem sua função para passar a ser percebido.
Nesse mundo onde tudo já está definido aprendemos a existir de uma forma padronizada.
Esse é o modo existencial da cotidianidade ou da mundanidade. Um mundo no qual o sentido das
coisas que se faz é determinado por todos e por ninguém. É o modo de existir em que se faz o que
se faz por que assim se faz. “Todos fazem assim...” É o modo impróprio ou inautêntico de existir.
Nesse modo, além de lidarmos com os objetos simplesmente como instrumentos, e com as pessoas
como se elas também fossem coisas, também orientamos nossas próprias vidas a partir de
caminhos predefinidos. Não aprendemos a perguntar pelo sentido da existência para encontrar um
sentido autêntico. Não nos espantamos com nada no mundo.
No entanto, essa forma instrumental e mundana de viver é apenas uma
das possibilidades de que o homem dispõe. Ela constitui a tendência mais
forte, na qual quase sempre estamos presos. Crescemos e aprendemos a viver
conforme esse modelo, e assim a estrutura se mantém cada vez mais forte.
Mas em cada indivíduo existe sempre a possibilidade de se descobrir outras
formas de existir. São formas próprias e singulares, possibilitadas pela
compreensão do homem de si mesmo como um ser indefinido e capaz de se
criar. Só que quebrar o gelo do nosso modo-zumbi de viver não é fácil. As situações que podem
provocar uma ruptura com o modo cotidiano de viver e abrir a possibilidade de nos tornarmos
autênticos são raras. Geralmente essa abertura aparece nos momentos de angústia, de depressão,
de uma tragédia pessoal ou coletiva (como estar diante de uma doença fatal, da morte de alguém
ou de um acidente do qual se tenha escapado por pouco).
Mesmo assim, esses momentos que nos retiram do modo cotidiano muitas vezes acabam
sendo apenas um desligamento momentâneo. Muitas pessoas que sobreviveram a um acidente
dizem ter nascido de novo, mas após algumas semanas voltam a viver exatamente como viviam
antes.