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Dossiê Faces da pobreza: o lugar do pobre Em meados do século XIX, as elites gaúchas lançaram uma discussão: o que fazer com os indigentes? Uma das soluções propostas foi o envio de libertos para a África; outra foi a criação de asilos que os afastassem do convívio social Por Cláudia Tomaschewski O Rio Grande de São Pedro foi uma província ocupada pelos portugueses apenas no século XVIII, sendo seu domínio político motivo de diversas disputas com a Coroa espanhola, guerras que foram causa do extermínio de povos nativos e africanos utilizados como massa de manobra nos conflitos por ambos os lados, inclusive após a emancipação política. Também na revolta provincial, que ficou conhecida como Farroupilha (1835-1845), fez-se uso dessa estratégia: a muitos escravos que foram engajados havia-se prometido a liberdade. Para que isso não acontecesse, quando os revoltosos chegaram a um acordo com o Império, resolveram assassinar aqueles homens, entregando-os desprevenidos às tropas legalistas. O episódio ficou conhecido como Massacre de Porongos. Aliás, o recrutamento militar foi a forma mais comum utilizada pelos poderosos do século XIX para dar cabo daqueles que consideravam vadios e perigosos. Em 1857, a assembleia dos representantes provinciais se reuniu em Porto Alegre para debater um projeto que propunha a criação de um asilo de mendicidade. O asilo deveria ser um local para abrigar aqueles que não pudessem mais trabalhar individualmente e não tivessem família que os sustentasse. Seu público seria composto especialmente por idosos e doentes crônicos que, ainda assim, deveriam realizar trabalhos mais leves para a manutenção da instituição. Na segunda metade do século XIX, vivia-se certa estabilidade política, favorecendo a afirmação das instituições

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Dossiê Faces da pobreza: o lugar do pobre

Em meados do século XIX, as elites gaúchas lançaram uma discussão: o que fazer com os indigentes? Uma das soluções propostas foi o envio de libertos para a África; outra foi a criação de asilos que os afastassem do convívio social

Por Cláudia Tomaschewski

O Rio Grande de São Pedro foi uma província ocupada pelos portugueses apenas no século XVIII, sendo seu domínio político motivo de diversas disputas com a Coroa espanhola, guerras que foram causa do extermínio de povos nativos e africanos utilizados como massa de manobra nos conflitos por ambos os lados, inclusive após a emancipação política. Também na revolta provincial, que ficou conhecida como Farroupilha (1835-1845), fez-se uso dessa estratégia: a muitos escravos que foram engajados havia-se prometido a liberdade. Para que isso não acontecesse, quando os revoltosos chegaram a um acordo com o Império, resolveram assassinar aqueles homens, entregando-os desprevenidos às tropas legalistas. O episódio ficou conhecido como Massacre de Porongos.

Aliás, o recrutamento militar foi a forma mais comum utilizada pelos poderosos do século XIX para dar cabo daqueles que consideravam vadios e perigosos. Em 1857, a assembleia dos representantes provinciais se reuniu em Porto Alegre para debater um projeto que propunha a criação de um asilo de mendicidade. O asilo deveria ser um local para abrigar aqueles que não pudessem mais trabalhar individualmente e não tivessem família que os sustentasse. Seu público seria composto especialmente por idosos e doentes crônicos que, ainda assim, deveriam realizar trabalhos mais leves para a manutenção da instituição. Na segunda metade do século XIX, vivia-se certa estabilidade política, favorecendo a afirmação das instituições no Império do Brasil. Durante o debate sobre a criação do asilo, é possível analisar o pensamento daquela elite política regional sobre a pobreza e suas causas.

O projeto foi apresentado e defendido por José Antônio do Vale Caldre e Fião, Felipe Betbezé d’Oliveira Nery e Manuel Pereira da Silva Ubatuba. Discursaram contra a proposta (por fim, não levada adiante) Félix Xavier da Cunha e José Cândido Gomes, ambos redatores do periódico liberal O Mercantil. Afora Ubatuba, que pouco se expressou no debate, os dois primeiros proponentes também se dedicavam a atividades jornalísticas: Nery havia editado o Correio do Sul, em Porto Alegre, e Caldre e Fião havia dirigido O Philantropo, no Rio de Janeiro, que defendia a abolição da escravidão, mas possuía forte conteúdo racista, propondo até mesmo o envio dos libertos para formar colônias na África.

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Félix da Cunha, que foi o primeiro a discursar, dividiu os mendigos (aqueles que pediam esmolas para viver) em três classes: a dos “válidos” que desejavam trabalhar e não encontravam ocupação, a dos “válidos” que desejavam o ócio e a dos “inválidos”, que não tinham mais força para a atividade produtiva. Em sua visão, a primeira “classe” ainda não existia no Brasil; para a segunda, ele defendia o recrutamento militar como forma de regeneração; para a terceira, a ajuda domiciliar, como então era praticada na França. Segundo o representante provincial, em 1856, o chefe de polícia Gavião Peixoto havia procedido a uma devassa em Porto Alegre e os que se achavam na condição de serem recrutados logo “procuraram trabalho”. O representante provincial (o equivalente a deputado estadual nos dias atuais) Caldre e Fião concordou que, no Brasil, não havia quem desejasse trabalhar e não encontrasse ocupação, mas, posteriormente, ao fazer a defesa do projeto, admitiu que numerosas famílias dependiam de incertos “bilhetes de costura” distribuídos no Arsenal de Guerra para a confecção de roupas para o exército. Na mesma época, eram comuns os pedidos, especialmente de mulheres viúvas ou solteiras, para viver e trabalhar na Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre.

Durante a década de 1850, foram constantes as reclamações dos dirigentes da Misericórdia quanto ao excesso de pobres “inválidos” que procuravam o hospital. Certamente, esse foi um dos motivos para o projeto de criação do referido asilo de mendicidade. Nas discussões, esse aspecto é mencionado por Felipe Nery, o qual afirma que a Misericórdia abrigava 15 indigentes que, não fosse a instituição, “estariam nas ruas”. Mas nem todos os mendigos “inválidos” encontravam lugar nas Santas Casas. Normalmente, havia relutância da direção em aceitar internos permanentes, a não ser que estes oferecessem bens ou serviços em contrapartida. Um caso de recusa foi ao pedido do “preto velho Pai Francisco”, em 1846. Ele dizia ter mais de 100 anos, ser pobre, não ter onde morar nem como se alimentar.

O representante Nery fez menção às pessoas que esmolavam na capital da província: boa parte dos sujeitos descritos eram negros. Segundo Nery e Caldre e Fião, essas pessoas estariam mais bem acomodadas no asilo, sendo a forma institucional a mais apropriada para distinguir os “verdadeiros” dos “falsos” mendigos que exploravam a caridade particular.

Caldre e Fião reconheceu que a pobreza existia por uma condição necessária das instituições; ele chegou a afirmar que “se a nossa constituição tivesse nos levado para o comunismo”, teríamos condições de igualdade e poderíamos alimentar toda a população, mas ao ser interpelado por Félix da Cunha, esclareceu o seu pensamento, dizendo que as leis reservaram a cada um segundo o seu trabalho (eu diria, a cada um segundo o trabalho dos seus escravos).

Cláudia Tomaschewski é doutora em história pela PUC-RS