WEGNER, Uwe. Jesus, A Divida Externa e Os Tributos Romanos

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5/25/2018 WEGNER,Uwe.Jesus,ADividaExternaeOsTributosRomanos-slidepdf.com http://slidepdf.com/reader/full/wegner-uwe-jesus-a-divida-externa-e-os-tributos-romanos J esus , a  D ívida  E xterna  e  os T r ib u t o s  R omanos UWE WEGNER l - O Conflito das interpretações  A dívida externa do Brasil, que ultrapassa os 240 bilhões de dólares, está sendo religiosamente paga anualmente através de pesados juros e amortizações. Este pagamento é uma questão altamente controversa. Basta citar a realização do último plebis- cito nacional em 2000, organizado pela CNBB e outras entida- des. e as acaloradas discussões sobre o assunto no Fórum Social Mundial em Porto Alegre, levado a efeito de 31 de janeiro a 5 de fevereiro de 2002. No Brasil, tanto pessoas quanto instituições, têm se posicionado de forma diametralmente oposta em relação ao assunto: Há desde os que encaram esta dívida como legal, legítima e necessária, até outros que a consideram como nefasta e eticamente imoral, sobretudo, pelo ônus social e trabalhista que representa. A semelhança dos posicionamentos em relação à atual dí- vida externa brasileira, latinoamericana e do Terceiro Mundo, também os tributos pagos na Palestina do tempo de Jesus aos romanos encontramse sob um conflito de interpretações. A per- gunta geralmente se coloca nos seguintes termos: Tinham os romanos, a seu tempo, também o direito de cobrar tributos dos  povos por eles subjugados, como é o caso do povo de Israel na Palestina do século I? Ou, mais precisamente: Como se  posicionou, em especial. Jesus, o fundador da nova religião cris- tã, diante dessa questão? Teria ele próprio legitimado a arreca- dação dos tributos romanos? -203 -

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  • J esus, a D v id a E x t e r n a

    e os T ributos R o m a n o sUWE WEGNER

    l - O Conflito das interpretaesA dvida externa do Brasil, que ultrapassa os 240 bilhes

    de dlares, est sendo religiosamente paga anualmente atravs de pesados juros e amortizaes. Este pagamento uma questo altamente controversa. Basta citar a realizao do ltimo plebiscito nacional em 2000, organizado pela CNBB e outras entidades. e as acaloradas discusses sobre o assunto no Frum Social Mundial em Porto Alegre, levado a efeito de 31 de janeiro a 5 de fevereiro de 2002. No Brasil, tanto pessoas quanto instituies, tm se posicionado de forma diametralmente oposta em relao ao assunto: H desde os que encaram esta dvida como legal, legtima e necessria, at outros que a consideram como nefasta e eticamente imoral, sobretudo, pelo nus social e trabalhista que representa.

    A semelhana dos posicionamentos em relao atual dvida externa brasileira, latino-americana e do Terceiro Mundo, tambm os tributos pagos na Palestina do tempo de Jesus aos romanos encontram-se sob um conflito de interpretaes. A pergunta geralmente se coloca nos seguintes termos: Tinham os romanos, a seu tempo, tambm o direito de cobrar tributos dos povos por eles subjugados, como o caso do povo de Israel na P alestina do sculo I? Ou, m ais p recisam ente: Com o se posicionou, em especial. Jesus, o fundador da nova religio crist, diante dessa questo? Teria ele prprio legitimado a arrecadao dos tributos romanos?

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    A interpretao usual de telogos e biblistas costuma ir no sentido de uma resposta afirmativa a tais perguntas. E a principal base para esta deduo extrada sempre de um mesmo texto, a saber, do Evangelho de Marcos 12.13-17, em que se l a famosa frase Dai a Csar o que de Csar e a Deus o que de Deus . H, no entanto, tambm algumas vozes dissonantes entre os pesquisadores, que afirmam ser superficial a interpretao usual dada ao citado texto, carecendo a questo, pois, de um exame mais acurado dos argumentos apresentados em ambas as posies. o que nos propomos a realizar no presente estudo.

    II - 0 Texto Bblico em DebateO texto bsico para nosso estudo ser o do Evangelho de

    Marcos 12.13-17. Em traduo prpria do original grego, seu contedo o seguinte:

    V. 13: Ento lhe enviaram alguns dos fariseus e herodianos para faz-lo cair em cilada atravs de uma palavra.

    V. 14: E, tendo chegado, lhe disseram:

    - Mestre, sabemos que s verdadeiro e no te orientas por ningum, pois no olhas os homens segundo as aparncias mas, com base na verdade, ensinas o caminho de Deus. permitido pagar tributo a Csar ou no? Devemos ou no devemos pagar?

    V. 15: Ele, porm, conhecendo a sua hipocrisia, disse-lhes:

    - Por que me tentais? Trazei-me um denrio para que veja.

    V. 16: E eles trouxeram. E disse-lhes:

    - De quem esta imagem e a inscrio?

    E eles lhe disseram: - De Csar.

    V. 17: Ento lhes disse Jesus:

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  • - Devolvei as coisas de Csar a Csar e as coisas deDeus a Deus!

    E admiraram-se dele.

    III - interpretaes Favorveis ao Pagamento dos Tributos RomanosA maioria dos exegetas e comentaristas atuais da opinio

    de que o texto de Mc 12.12-17 suficientemente claro em sua assero ao pagamento dos tributos romanos. Esta interpretao clssica" na pesquisa pode ser visualizada atravs de dois posicionamentos emitidos por telogos de renome. O primeiro o de J. D. O. Dunn, que escreve:

    A pergunta postulada diante de Jesus dizia respeito ao imposto per capita que fora cobrado aos habitantes da Judia, Samaria e Idumia desde 6 d.C. Este imposto, como dinheiro de tributo a um conquistador vitorioso, a uma pot n c ia em o cu p ao , era o foco de sen tim en to s nacionalsticos e religiosos da parte dos judeus. Os zelotes, especialmente, eram veementes e implacveis na sua hostilidade; afirmaram que Deus era seu nico Soberano e Rei (Josefo, Ant. 18, 1, 6). A pergunta, quanto ao ser lcito ou permissvel pagar o imposto a Csar, ou no, foi portanto, bem escolhida para prender Jesus num dilema: ou negar a autoridade de Csar (sedio), ou negar a plena autoridade de Deus (traio e blasfmia). A resposta de Jesus torna claro que, no ponto de vista dEle, era falsa a anttese: no h necessariamente conflito algum entre a autoridade poltica e a divina. O pagamento do imposto uma obrigao legtima dentro do complexo de relacionamentos humanos. Como tal, no precisava entrar em conflito com a autoridade mais alta de Deus, que a tudo abrange, assim como, por exemplo, no precisa haver conflito entre

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    o amor de duas pessoas entre si e o amor delas a Deus. Colocar Csar e Deus como autoridades mutuamente exclusivas inventar uma anttese entre todos os relacionamentos humanos e a autoridade divina, porque todos os relacionamentos incluem obrigaes e responsabilidades de algum tipo. Jesus no autorizava semelhante oposio exclusiva.(1)

    O segundo, o de O. Cullmann, que em seu renomado livro Cristo e poltica assim se expressa:

    Na verdade, Cristo...reconhece apenas que, dentro do m bito de sua influncia, o Estado pode exigir o que lhe pertence: dinheiro e impostos...O Estado no um fim em si, mas pode arrecadar impostos...Seus discpulos, portanto, no deveriam perder tempo e energia em resistir ao pagamento de impostos - isto , contra a existncia de foras romanas de ocupao - contanto que se trate apenas do pagamento de impostos, de dinheiro que, realmente, pertence a CsarJ21

    Posicionamentos como estes poderiam ser multiplicados revelia.(3) Os ltimos comentaristas bblicos sobre Marcos vo. com raras excees, praticamente todos nesta mesma direo. O que dizer de um tal partidarismo romano? Duas consideraes iniciais que este tipo de posicionamento provoca seriam:

    1) E surpreendente a aparente naturalidade com que so correlacionados Estado e Csar. A equao parece ser a seguinte: O Estado tem atualmente o direito de arreca

    (1) Cf. J D O. DUNN, Artigo Csar, Cnsul, G overnador.ln: O novo dicionrio internacional de teologia do Novo Testamento, So Paulo, Vida Nova, v. 1, 1981, p. 417.

    (2) Cf. o. CULLMANN, Cristo e poltica, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1968, p 32s.(3) Para citar um s exemplo Assim se expressam O. Theissen e Annette Merz, Der

    historische Jesus. Ein Lehrbuch, Gttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1996, p. 140: Nach Mk 12, 13-17 hat Jesus eindeutig die Lehre des Judas Galilaios abgelehnt: Der Glaube an den einen und einzigen Gott verpflichtet nicht zum W iderstand gegen den Kaiser" (o itlico nosso).

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    dar tributos, logo devemos conferi-lo tambm a Csar .Aqui est se equiparando impostos pagos dentro de um Estado soberano e livre com tributos a Csar .Mas, com que legitimidade?

    Ora, "C sar nome titular que se dava aos imperadores romanos a partir do primeiro sculo d.C. Na poca pressuposta pelo texto (meados de 30 d.C.) Csar era, na verdade, Tibrio, que reinou como imperador de 14 a 37 d. C. Ele deu seqncia srie de imperadores romanos que, a comear pela invaso armada de Pompeu na Palestina em 63 a.C., mantinham o territrio e a nao de Israel militar- mente ocupados e subjugados a ferro e sangue. E absurdo, pois, querer equiparar impostos arrecadados por um "Estado" soberano e livre de hoje com impostos romanos, extor- quidos militarmente por um imprio invasor dos incios de nossa era.

    2) Na citao de Cullmann, chama a ateno a naturalidade com que o dinheiro arrecadado pelos tributos pressuposto como realmente "pertencente a Csar . Num Estado soberano e democrtico jam ais se diria que o dinheiro de tributos pertena" ao(s) governante(s). Tributo dinheiro do povo que, quando muito, governantes so chamados para distribuir e administrar com justia. Alm disso, tambm no todo e qualquer tributo que legtimo. A maior parte da arrecadao tributria no Brasil, por exemplo, no feita sobre os que mais tem e ganham, mas justamente, sobre os que menos tm e mais precisariam dele.

    A q ue Interesses S erve este T ipo de In ter p r e ta e s?

    Q u a l a S u a O r ig e m ?

    O citado de Cullmann no deixa dvidas quanto a esta pergunta: "Seus discpulos, portanto, no deveriam perder tempo e energia em resistir ao pagamento de impostos... . O interesse desse autor reside na afirmao da legitimidade dos impostos:

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    Resistir ao seu pagamento seria um erro!

    No caso de Dunn, uma observao mais acurada em algumas frases torna igualmente transparente o que defende: O problema de um conflito possvel entre a autoridade de Deus e de Csar deve ter sido muito real...no h necessariamente conflito algum entre a autoridade poltica e a divina...o pagamento do imposto...como tal, no precisava entrar em conflito com a autoridade mais alta de D eus . Dunn est, pois, interessado em minimizar o conflito entre as duas instncias, a divina e a terrena. Mais: ele pretende fazer ver que, na realidade, no h conflito algum entre as partes. A incongruncia de uma tal argumentao salta aos olhos por uma razo muito simples: Se Dunn tivesse razo, fariseus e herodianos estariam armando uma cilada inexistente, ou seja, formulando uma pergunta ardilosa, mas cuja resposta era conhecida de todos. Neste caso, a cilada seria irreal, o ardil, inexistente. 0 texto, contudo, fala em cilada real (v. 13) e em hipocrisia verdadeira (v. 14).

    H duas hipteses que nos parecem viveis para interpretar este tipo de posicionamento. Primeira: Autores como Cullmann e Dunn poderiam estar visualizando as caractersticas do Imprio romano e de seus governantes com as lentes aplicadas ao Estado moderno e seus dirigentes. Assim como, em princpio, aceitam a legitimidade do Estado moderno, assim tambm estariam aceitando, (ingenuamente?), a legitimidade do Estado romano. Segunda: E tambm possvel que autores como os citados interpretem a posio de Jesus neste texto a partir de uma idia preconcebida sobre o mesmo, extrada de outros textos seus ou dos apstolos. Nesses outros textos, l-se. por exemplo, que Jesus teria dito Meu reino no deste mundo..." (Evangelho de Joo 18.36), ou, ento Amai os vossos inimigos (Evangelho de Mateus 5.44). E do apstolo Paulo, so conhecidas as palavras Sede submissos s autoridades, porque no h autoridade que no proceda de Deus (Carta aos Romanos, 13.1). Textos

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    como os citados, parecem ser dificilmente conciliveis com uma posio mais antagnica de Jesus em relao a autoridades e ao Estado de sua poca. Logo, a conseqncia que se interpreta Jesus como - em princpio - no contrrio ao Estado, em nosso caso, a Csar -Tibrio.

    A s C o n tr a d i e s C o nstatveis n a In ter p r e ta o

    " P r -R o m a n a " de J esus

    As interpretaes que partem do pressuposto de que Jesus teria sido favorvel ao pagamento de tributos aos romanos geralmente no se do conta de uma srie de contradies ou, no mnimo, tenses existentes entre os argumentos usados e o teor do texto. Tais contradies ou tenses resumem-se no seguinte:

    1) Todos os trs evangelistas - Mateus, Marcos e Lucas - so unnimes em constatar que a pergunta formulada a Jesus era, em verdade, uma cilada (Mt 22.15; Mc 12.13; Lc 20.20). Em que consistia a cilada embutida na pergunta: Devemos ou no dar tributo a Csar? A cilada era que, qualquer que fosse a sua resposta, Jesus estaria se antagonizando com grupos de sua poca.(4) Se dissesse sim, teria o povo contra si, j que este era, em sua expressiva maioria, contrrio ao pagamento dos tributos; Jesus seria anti-popular. Se dissesse no, seria considerado como perigoso e subversivo, podendo ser entregue jurisdio e autoridade do governador (Lc 20.20), o que, normalmente, representava condenao e morte.

    Pois bem, o surpreendente na resposta de Jesus, que os autores normalmente interpretam como representando um sim, que ela causa admirao do lado dos seus oponentes.(5) Se a sua resposta tivesse, de fato, eqivalido a um

    (4) J houve quem caracterizasse a alternativa montada nos seguintes termos: Era algo assim como ter que responder 'sim' ou no para uma pergunta como esta: Voc j parou de surrar a sua m ulher? (W. Hordern).

    (5) Cf. Mc 12.17 E muito se admiraram dele . De forma semelhante, tambm Mt 22.22: Ouvindo isto se admiraram e, depois, deixando-o, foram-se.

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    "sim", seus oponentes no teriam do que se admirar - teriam, isto sim. se alegrado por Jesus ter cado na cilada. O texto do evangelista Lucas, alis, vai inclusive um passo adiante e afirma que no s os adversrios, mas tambm o prprio povo percebeu que Jesus no se deixou pegar na armadilha: "No puderam apanh-lo em palavra alguma diante do povo; e admirados da sua resposta, calaram-se". Ora, se o prprio povo constata que Jesus no caiu na cilada, ento a conseqncia que forosamente devemos tirar : A resposta de Jesus no pode ter eqivalido a um "sim", pois nesse caso o povo seria contrrio ao mesmo.

    2) Na priso e no processo de Jesus, a questo de sua posio diante dos tributos retorna mais uma vez. Neste caso, a informao procede do evangelista Lucas. Segundo este, os membros do Sindrio, que levam Jesus preso a Pilatos. apresentam-no ao Procurador romano com a seguinte acusao:

    "Encontramos este homem subvertendo a nossa nao, impedindo que se paguem os impostos a Csar e pretendendo ser Cristo Rei" (Lc 23.2).

    Seria esta acusao um mero embuste, apresentado para incriminar Jesus? Mas, neste caso, porque o evangelista no teve o cuidado em apresent-la como falsa e mentirosa em Lc 23.1 ss? De qualquer forma, a acusao do sindrio corrobora nossa suspeita de que a resposta de Jesus em Mc 12.17 no pode ter eqivalido simplesmente a uma afirmao.

    ) Num outro texto, Mc 10.42-43, h um posicionamento muito forte de Jesus contra a prtica dos governantes de seu tempo. Diz ele:

    Sabeis que aqueles que vemos governar as naes as oprimem, e os seus grandes as tiranizam. Mas entre vs no seja assim..."

    Isto representa um repdio muito claro prtica poltica

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    do Imprio. Ora, se Jesus pde ser to crtico aos governantes numa ocasio, por que deveria ter sido ele necessariamente conivente com os mesmos num assunto to delicado como o da cobrana dos tributos?

    IV - Interpretao Alternativa: Jesus foi Contrrio ao Pagamento dos Tributos RomanosPassemos agora apresentao dos argumentos que nos

    parecem favorecer a tese contrria, ou seja, a de que Jesus tenha, em Mc 12.13-17, sido contrrio cobrana dos tributos romanos. H vrias questes a considerar, as quais passamos a colocar nos seguintes tpicos:

    0 V a lo r e a N a t u r e z a d a T r ib u t a o R o m a n a (6)

    (1) Arye Ben David, em sua obra Talmudische konomie,(7) nos repassa os seguintes dados, recolhidos da Mishn e de Flvio Josefo:

    Segundo a Mishn, havia na poca de Cristo mais ou menos 100.000 pequenas propriedades rurais produtivas e autnomas na Palestina, arrecadando cada uma, em mdia, o equivalente a 300 denrios por ano, perfazendo 70% do PIB da Palestina;

    Considerando-se adicionalmente a renda desenvolvida pela indstria, o comrcio e as manufaturas das cidades, o PIB

    (6) Cf. para o assunto o artigo Tributum, de Thomas Pekry, em: Der kleine Pauly, Munique, Deutscher Taschenbuch Verlag, 1979, v. V, col. 952-954 e o livro de W e rn e r S te n g e r, .. .G e b t dem K a ise r, w as des K a is e rs is t . . . ! .E ine s o z ia lg e s c h ic h tlic h e U n te rs u c h u n g z u r B e s te u e ru n g P a l s tin a s in neutestamentlicher Zeit, Frankfurt, Athenum, 1988. Alm disso, o artigo de K. Fssel: Die politische konomie des rmischen Imperiums in derfrhen Kaiserzeit. In: K. Fssel, F. Segbers (Hg.), ...so lem en die Vikerdes Erdkreises Gerechtigkeit . Ein Arbeitsbuch zu Bibel und konomie, Salzburg, Anton Pustet, 1995, p. 36-57.

    (7) Cf Arye ben David, Talmudische konomie. Die Wirtschaft des jdischen Palstina zur Zeit der Mischna und des Talmud, Hildesheim, Georg Olrns Verlag, Band 1, p. 304s.

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    anual da Palestina com portava aproxim adam ente 44/45 milhes de denrios = 1,8 milhes de denrios-ouro = 14,75 toneladas de ouro macio.

    De acordo com Josefo, ao todo, a soma dos impostos recolhidos por Herodes, o Grande (37 a 4 a.C.) e Agripa I (37 a 44 d.C.) importava em

    450 talentos de prata - para a Judia e Idumia;100 talentos de prata - para a Peria;100 talentos de prata - para a Galilia.

    Ao todo, isto representam 650 talentos de prata = 2,55 toneladas de ouro macio. Comparando-se as informaes da Mishn com as de Josefo, pode-se inferir com facilidade que os impostos recolhidos sob Herodes e Agripa chegavam vultuosa soma de 17,25% do PIB anual da Palestina.

    (2) Havia dois impostos a serem pagos por Israel aos romanos. O primeiro denominava-se tributum capitis e era arrecadado de todas as pessoas (dos homens, a partir dos 14, e das mulheres, a partir dos 12 anos) at a idade aproximada de 65 anos. Importava numa taxa mnima, que se supe de 1 denrio por pessoa, mais uma percentagem definida sobre o valor de bens no agricultveis, que se estima em 1 %. O segundo era o tributum so li/agri (= imposto sobre bens produzidos na agricultura = imposto fundirio). Este era o tributo mais penoso a ser pago, pois podia representar, por vezes, 20%, 25% ou at 30% do total da produo. Estas duas espcies de tributos so o objeto da pergunta dirigida a Jesus. No original grego, a palavra empregada no texto de Mc 12.13-17 kensus (census em latim e censo no portugus). A fim de calcular anualmente o exato tributo a ser pago por cada famlia, os romanos faziam periodicamente um rigoroso censo' (cf. Lc 2.1-5). No pagadores do tributo eram castigados com brutalidade e severidade. A pena podia variar desde a venda como escravo, at a morte.

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    (3) Os tributos podiam ser pagos em espcie (neste caso o porcentual da quota era previamente estipulado) ou em moeda, atravs dos denrios imperiais. Uma terceira forma de arrecadao era atravs de outros bens disponveis. Esta era evitada, sobretudo, por estar sujeita a atribuio de baixo valor pelo fisco.

    A R e a l iz a o de C ensos p a r a o C lc u lo d a T r ib ta o R o m a n a

    H vrios testemunhos sobre a brutalidade e atrocidades existentes na realizao dos censos pelos romanos.,8) Notria tomou-se a descrio efetuada pelo historiador cristo Lactncio, em sua obra De mortibus persecutorum 23 (Sobre a morte dos perseguidores, referindo-se aos imperadores que perseguiram os cristos), em que descreve a realizao de um censo sob o reinado de Galrio (293-310 d.C.) e que pode muito bem retratar a situao da Palestina no primeiro sculo. O seu texto o seguinte:

    A infelicidade e o clamor generalizavam-se com os impostos sobre a cabea e sobre os bens (sc tributum capitis e tributum soli, cuja cobrana era ordenada simultaneamente para todas as provncias e cidades. A multido dos funcionrios do fisco espalhava-se por todas as partes, trazendo agitao em tudo. Eram cenas de terror, como as que existem por ocasio do ataque de inimigos ou da deportao de presos.

    As plantaes eram medidas por leivas, as videiras e outras rvores contadas. Toda a espcie de animais domsticos era registrada em relao cts pessoas, era anotada a quantidade das cabeas. Nas cidades comprimiam-se as populaes do campo e das zonas urbanas. Todos os lugares estavam repletos de gentalha. Todos apresentavam-se no local com os filhos e escravos.

    (8) Por exemplo: Filo de Alexandria, De specialibus legibus II, 92-95; III, 159-163.

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    Ocorriam torturas e espancamentos: torturavam-se os filhos contra os pais, os escravos mais fiis contra os seus senhores, esposas contra os seus maridos. Ouando todas as medidas no logravam xito, passava-se a torturar os proprietrios contra eles prprios, e cpiando a dor vencia, registravam-se como propriedades patrim nios que nem existiam. Nem idade nem fraqueza eram objeto de considerao. Doentes e fracos eram conduzidos ao local, sendo avaliada a idade de cada um. Nas crianas acrescentavam-se, e nos mais idosos suprimiam-se alguns anos da idade. Tudo estava repleto de clamor e luto...Mesmo assim, as pessoas encarregadas das avaliaes no contavam com a confiana dos seus mandatrios; estes enviavam sempre novas pessoas, na esperana de poderem encontrar cada vez mais; e a cada vez os dados eram duplicados. Acontecia que, quando os que eram enviados posteriormente nada mais encontravam, acresciam dados revelia, para no terem sido enviados em vo. Nesse meio tempo diminua o nmero de animais domsticos e pessoas vinham a falecer. Isto no impedia que as taxas tivessem que ser recolhidas, inclusive dos falecidos. Em suma: sem pagar no se podia mais viver e nem ao menos morrer.

    Restavam unicamente ainda os mendicantes, dos quais nada podia ser recolhido. Sua misria e infelicidade lhes davam segurana contra todo tipo de coao. Mas eis que o homem compassivo se apiedou tambm destes, no intuito de dar um fim aos seus sofrimentos. Ordenou que fossem todos reunidos, levados de navio ao mar e afundados na gua. Como foi misericordioso esse homem, querendo exterminar com toda a misria dentro do seu reinado! Enquanto que ele, assim, queria evitar que o no pagamento de impostos fosse praticado com a desculpa da falta de bens, acabou por assassinar uma multido de verdadeiros pobres, contrrio ao mais elementar de todos os mandamentos da humanidade.

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    A questo, inclusive, era de tal importncia para o Imprio, que as suas autoridades procuravam garantir-se atravs do estabelecimento de fadores entre as pessoas mais ricas das cidades e provncias (= aristocracias) sob ocupao. H. G. Kippenberg(9) caracteriza este sistema de arrecadao tributria ao tempo de Jesus com o seguinte grfico:

    relaes jurdicas

    circulao de excedentes

    (4) E, por ltimo, ainda um dado intrigante: Na poca romana, o pagamento dos impostos estava atrelado unicamente ao clculo efetuado pelos censores, no ao montante real da produo. Aos romanos no importava se uma determinada safra tivesse sido frustrada por condies climticas desfavorveis (chuvas em demasia, secas, etc.) - isto era problema de alada exclusiva do produtor. Quaisquer que tenham sido as condies de plantio, produo e safra, o agricultor era obrigado a pagar pelo montante calculado!

    (9) Cf. H. O. Kippenberg, Religio e formao de classes na antiga Judia. Estudo sociorreligioso sobre a relao entre tradio e evoluo social, So Paulo, Paulinas, p. 117.

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    Este dado, explica, por si s, o enorme grau de endividamento e empobrecimento a que se viam sujeitos os agricultores ju deus do incio da era crist. E toma, simultaneamente claro, o absurdo que representa correlacionar o Estado romano com os atuais Estados modernos.

    A P e r g u n ta de F a r is e u s e H e r o d ia n o s c o m o C il a d a

    Este um dos aspectos no suficientemente levados em conta na pesquisa. Diante de uma cilada necessita-se de inteligncia, astcia. A ingenuidade pode ser fatal. E exatamente assim que devemos interpretar a reao de Jesus no texto. Foram dele as palavras: Sede simples como as pombas, mas prudentes como as serpentes (Mt 10.16).

    Como fugir a ciladas armadas por uma pergunta? Geralmente, pode-se usar dois recursos diferenciados. Primeiro: A ambivalncia. Esta se caracteriza por deixar respostas suscetveis de mais de uma interpretaes. Segunda: A devoluo da pergunta ou o despiste para novos aspectos da questo. Desta forma, consegue-se deslocar o eixo da questo.

    A nosso ver, Jesus usou de ambos os recursos. Sobretudo o segundo, que consiste em no dar respostas prontas, mas em fazer com que seus interlocutores repensem, eles prprios, as questes dadas, usado por Jesus tambm em outras ocasies.(10)

    A R esposta de J esus c o m o D es lo c a m e n to d a P er g u n ta

    e C o lo c a o de N ovas Q uestes

    A tese de que Jesus no texto esteja, na verdade, devolvendo a pergunta e, simultaneamente, ampliando a discusso, a que mais respaldo detm entre os pesquisadores.Ela se baseia no fato de que, entre a pergunta formulada (v. 14) e a resposta propriamente dita (v. 17) h uma insero de dois versculos, em que introduzida uma questo relacionada com os denrios romanos

    (10) Cf., por exemplo, Mc 2.9,19,25s; 3.4, entre outros.

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    (v. 15-16). A insero assim apresentada pelo texto:

    V. 15: Ele, porm, conhecendo a sua hipocrisia, disse-lhes:- Por que me tentais? Trazei-me um denrio para que veja.

    V. 16: E eles trouxeram. E disse-lhes:- De quem esta imagem e a inscrio?E eles lhe disseram: - De Csar.

    Que sentido teria este pedido de Jesus pela apresentao de denrios da parte dos seus adversrios? A resposta usual vai no sentido de afirmar o seguinte: O emprego de denrio romanos pelos adversrios no revela outra coisa que a hipocrisia de sua prpria pergunta.

    Ora, segundo consenso na pesquisa, o denrio apresentado a Jesus era o denrio imperial, moeda cunhada a mando do imperador Tibrio na cidade de Lugdunum (hoje: Lio) e de circulao generalizada nas provncias do Imprio. Na sua efgie era apresentada a face de Tibrio, com a seguinte inscrio circunscrita:

    TI. CAESAR DIVI AVG. F. AVGVSTVS, por extenso:

    TIBERIUS CESAR DIVI AUGUSTI FILIUS AUGUSTUS, ou seja:

    TIBRIO CSAR, AUGUSTO, FILHO DO DIVINOAUGUSTO*11

    Considerando as leis dos judeus, sobretudo, a proibio de fazer imagens e de adorar dolos, o emprego de denrios romanos por parte de fariseus e herodianos, adversrios de Jesus, s podia representar um sacrilgio: O denrio concedia a Tibrio atributos divinos (Augusto) e o uso de imagens para o divino estava proibido entre os judeus (cf. Ex 20.2-6). Jesus, assim, des

    (1 1 )0 verso portava a inscrio "Pontife[ex] M axim[us] = Sumo Pontfice, um titulo conferido a Tibrio em 10 de maro do ano 15 d.C., com a imagem de Lvia, a me de Tibrio, como deusa da paz (segundo uma interpretao alternativa, a imagem representaria a deusa Concrdia), ostentando um ramo de oliveira em sua mo esquerda.

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    mascara seus adversrios e a pergunta por eles formulada. Em primeiro lugar, por praticarem a idolatria. Em segundo lugar, por ficar evidente que quem carrega os prprios denrios romanos em seu bolso e negocia com eles, est dando, assim, um testemunho inconfundvel de que tambm a favor da sua cobrana em forma de tributos. Dentro desta linha de raciocnio, tudo se decide no fato de serem os fariseus e herodianos os que portam consigo as moedas e de representarem as moedas uma idolatria pblica, mas aparentemente tolerada pelos adversrios.(12)

    (12) Citamos, exemplarmente, dois defensores desta posio: K. Wengst, Pax romana -pretenso e realidade. Experincias e percepes da paz em Jesus e no cristianismo primitivo, So Paulo, Paulinas, 1991, p. 84-89 e G. Brakemeier, Enfoques bblicos, So Leopoldo, Sinodal, 1980, p. 30s.

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    A Resposta de Jesus pelo Emprego da Ambivalncia

    A interpretao dada acima, mesmo que amplamente respaldada pela pesquisa, apresenta duas incongruncias A primeira que necessita supor uma velada crtica a fariseus e herodianos, no respaldada diretamente por nenhuma palavra de Jesus. E a segunda, mais importante, que no explica suficientemente a omisso do termo tributo em sua resposta. Em funo disso, propomos como alternativa uma tese diferente, que poderia ser resumida da seguinte forma: Jesus contrrio ao pagamento de tributos aos romanos, mas defende a sua tese com o recurso da ambivalncia, sobretudo, pelo perigo que representava politicamente assumir algo assim como uma "desobedincia civil ao pagamento dos tributos".

    1) A F u n o do R ecurso ao s D e n r io s R o m a n o sEm nossa opinio, a solicitao por um denrio imperial na

    estratgia da resposta no tem objetivos velados. O objetivo real, est, ao contrrio, claramente contido na formulao da pergunta: De quem esta imagem e a inscrio? Jesus est, pois. querendo tornar claro a questo da pertena da moeda. A imagem de Csar , a inscrio de rosto refere-se a ele, a inscrio do verso, tambm ("Pontifex] maxim[us]), logo, a moeda do denrio um bem seu. E unicamente isto que est em jogo aqui. E isto que Jesus est procurando ressaltar: Uma moeda cunhada a mando de algum, pertence a esse algum!

    2) A Solicitao do D enrio com o C have de Interpretao do v. 17A falcia da interpretao anterior reside, a nosso ver, em

    relacionar estreitamente a resposta do v. 17 (Devolvei as coisas de Csar a Csar e as de Deus, a Deus) com a pergunta formulada pelos oponentes no v. 14 (E permitido dar tributo a Csar ou no?), no considerando, portanto, o recurso ao denrio efetuado por Jesus nos v. 1 5-16. Sem considerar os v. 15-16, de fato

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    o mais provvel fica que a resposta de Jesus se refira diretamente pergunta pelo pagamento dos impostos (v. 14). Mas, se fosse este o caso, por que Jesus no faz referncia direta aos impostos em suas palavras?

    Melhor , pois, entender o dito do v . 17 em estreita conexo com a pergunta pelos denrios nos v. 15-16. Neste caso, o que Jesus estaria propondo com o v. 17 no seria um pagamento de tributos, e sim, uma devoluo de moeda ao seu legtimo dono. Ora, quais so as coisas que Jesus acaba de identificar como sendo de Csar no recurso da solicitao pelo denrio? A resposta s pode ser uma: So as moedas dos denrios.

    A favor desta interpretao corroboram os seguintes argumentos:

    A j citada omisso da referncia aos impostos na resposta de Jesus: Devolvei a Csar as coisas de Csar no significa necessariamente Devolvei a Csar o tributo !

    H que citar tambm uma pequena alternncia do uso de verbos entre a pergunta (v. 14) e a resposta (v. 17). Fariseus e herodianos perguntam: - lcito "dar'7pagar tributo a Csar? Neste caso, usam o verbo grego ddomi. Jesus afirma: - "Devolvei as coisas de Csar a Csar"', para o que, no entanto, usa um verbo ligeiramente diferenciado, ou seja, upoddomi.{Xi) Segundo os dicionrios bblicos*14, apoddomi comporta dois sentidos principais: a) dar"/pagaf', ou seja, pode ser empregado como sinnimo de ddomi; b) devolver . Nosso raciocnio simples: Se Jesus tivesse, de fato.

    (13) Esta uma alternncia que, lamentavelmente, quase de todo ignorada pelos pesquisadores/as que geralmente pressupem os termos como sendo meros sinnimos. Assim tambm a maioria das tradues bblicas para o portugus, como a verso de Almeida, da Bblia de Jerusalm, entre outras.

    (14) Cf. por exemplo, W. Bauer, Griechisch-deutsches Wrterbuch zu den Schriften des Neuen Testaments und der frhchristlichen Literatur, 6a ed., Berlim, W. de Gruyter, 1988, col. 180-181; F. W. Gingrich, F. W. Danker, Lxico do N T. grego/ portugus, So Paulo, Vida Nova, 1984, p 29.

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    em mente o pagamento de tributos em sua resposta, por que no usou o mesmo verbo embutido na pergunta?

    E, por ltimo, temos ainda a coincidncia na formulao em genitivo do termo Csar. No v. 16, quando perguntados os adversrios sobre a pertena do denrio imperial, respondem: de Csar. Logo a seguir, na resposta dada por Jesus no v. 17, ele emprega o mesmo genitivo: Da a Csar as coisas de Csar. Esta repetio do m esm o genitivo em dois versculos consecutivos dificilmente seria casual. A inferncia , pois que, na resposta de Jesus, o genitivo de Csar tenha por objeto no os impostos referidos trs versculos antes, e sim, a pertena da moeda romana, confirmada com o mesmo genitivo pelos prprios adversrios no v. 16!

    A concluso , portanto, que, na resposta de Jesus, as palavras Devolvei a Csar as coisas de Csar referem-se unicamente s moedas romanas, no incluindo o pagamento dos impostos. Resta perguntar: Que sentido tem esta proposio de Jesus?

    3 ) 0 D e n r io c o m o S m b o lo d o P o d er R o m a n o

    O denrio tinha uma fora simblica muito forte. Ele simbolizava inicialmente o poder poltico e econmico dos romanos, j que era, simultaneamente, instrumento da poltica imperia l05', cam bial06' e fiscal07' do Im prio. A lm disso , era indiscutivelmente tambm um smbolo religioso, pois concedia atributos divinos aos soberanos, o que retrata, sobretudo, o ttulo de Augusto (= venervel). A proposta de Jesus deve ser enten

    (15) A onipresena de uma moeda simboliza a onipresena do poder que representa. No por acaso que a imagem traz a imagem de Csar: exatamente o seu poder que lhe cabe representar e assegurar .0 exemplo da atualidade dado pelo dlar e pelo euro, que igualmente deixam transparentes a hegemonia dos poderes norte-americano e europeu.

    (16) O denrio de Csar era a moeda oficial e parmetro para o cmbio com as demais moedas do Imprio.

    (17) O denrio imperial era a moeda oficial para o pagamento dos tributos em todas as provncias.

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    dida sob este pano de fundo. "Devolver a Csar a sua moeda parece, pois, no ter outra inteno do que tirar da Palestina o mais expressivo smbolo da hegemonia do Imprio.(l8) Com esta interpretao corrobora uma observao muito simples: Sempre que na histria do povo judeu houve levantes contra dominao estrangeira, houve simultaneamente a cunhagem de moedas prprias, como smbolo de liberdade politica.(l9)

    4 ) U m a P roposta A d ic io n a l : " (D evolvei) a D eus as coisas de D eus"

    A pesquisa reconhece, com razo, que este acrscimo na resposta representa uma das chaves para a interpretao do texto. Por que a resposta de Jesus faz referncias a Deus, quando a pergunta de fariseus e herodianos referia-se exclusivamente a Csar?

    Aqui preciso dar-se conta do entendimento divergente que havia entre judeus e romanos sobre a legitimidade de arrecadao de impostos por parte do Imprio. Para os romanos, o territrio conquistado das provncias era tido como ager publicus, ou seja, propriedade pblica = estatal. Esta era a sua base legal para a cobrana dos tributos. O seu substrato ideolgico era motivado com a alegao da necessidade da paz.(20) Esta era, claro, a perspectiva do dominador e vencedor.

    Para o judaism o, contudo, a terra de Israel tinha outro dono , a saber, Deus, como afirma Dt 19.5: Toda a terra minha.(2I) Alm disso, o povo de Israel tinha em Deus o seu

    (18) Alguns autores aventam inclusive, uma possibilidade mais radical, como, por exemplo Wengst: A solicitao, portanto, poderia ir alm da questo do imposto e significar a devoluo de todos os denrios ao imperador; portanto, uma rejeio geral da moeda e do sistema monetrio" (Pax romana, op. c it., p. 89).

    (19) O fato pode ser constatado tanto no levante dos macabeus (a partir de 164 a C.), quanto na Guerra Judaica de 66-70 d.C. e na de Bar Cosba em 132-135 d C

    (20) Esta motivao ideolgica encontra-se bem documentada no discurso de um chefe romano, Cerialis, aos treveranos e linges. Diz ele: Embora tenhamos sido provocados tantas vezes, fizemos tal uso do direito dos vencedores, que no vos impusemos nada mais do que servia para a proteo da paz. Pois no pode haver tranqilidade entre os povos sem o poder das armas, no pode haver noder das armas sem o pagamento do soldo e no pode haver pagamento do soldo sem tributos..." (Tcito, hist. IV, 73s, apud K. Wengst, Pax romana, op. cit., p. 36)

    (21) Veja tambm outros textos, como Gn 15.7; Dt 12.10; 26.8-9; S1136.22.

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    nico e legtimo soberano, como o atestam com muita clareza passagens, a exemplo de Dt 33.5; Is 41.21 e Jr 8.19. O prprio Jesus notabilizou-se pela sua pregao do reinado de Deus. Foi justamente este tipo de concepes que, alis, desencadeou tambm a violenta oposio armada contra Roma por parte do movimento de libertao dos zelotes decnios mais tarde.(22)

    E ele explica tambm porque ainda no sculo II d.C. Tertuliano possa referir-se aos tributos arrecadados pelos romanos como notae captivitatis, ou seja, sinais de cativeiro/escravido.(23) Mas um prprio escritor romano, Tcito, que nos d o mais eloqente testemunho de uma viso alternativa aos romanos quando, na biografia do seu sogro, Jlio Agrcola, governador romano da Bretnia entre 77 e 84 d.C., cita a seguinte descrio do Imprio, feita pelo general breto CIgaco(2',,:

    ...mais perigosos do que todos (os outros dominadores) so os romanos, de cuja arrogncia em vo pensamos poder escapar atravs de submisso e comportamento leal. Saqueadores do mundo, agora que no existe mais nenhum pas para ser devastado por eles, revolvem at o prprio mar: se o inimigo possui riquezas, eles tm ganncia; se ele pobre, so ambiciosos; Oriente e Ocidente j os abarrotaram de riquezas; so o nico povo da humanidade que contempla com a mesma concupiscncia a fartura e a es

    (22) Sobre o fundador do movimento zelote, Judas, o Galileu, informa Josefo: Durante a sua (de Copnio) administrao, um Galileu chamado Judas incitou seus compatriotas revolta, acusando-os de covardia por aceitarem pagar tributos aos romanos e por se submeterem a mestres mortais quando Deus era seu Senhor; Quanto quarta filosofia, Judas, o Galileu, tornou-se o seu lder. Esta escola concorda em todos os aspectos com as opinies dos fariseus, com a exceo de uma paixo pela liberdade que quase inquebrantvel, pois acreditam que apenas Deus seu lidere senhor (Guerra Judaica2.117-118 e Antiguidades Judaicas 18.23-25).

    (23) Ct. Tertuliano, Apologeticum 13.(24) Cf: Tcito, Agrcola 30-31. O texto em portugus foi adaptado de J. D. Crossan, O

    Jesus histrico. A vida de um campons judeu do Mediterrneo, Rio de Janeiro, Imago, 1994, p. 77 e H. Reimer, I. Reimer, Tempos de graa. O jubileu e as tradies jubilares na Bblia, So Leopoldo, CEDI (Paulus e Sinodal), 1999, p. 120s..

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    cassez. Pilham, matam, roubam e chamam isso de dominao [imperium]; trazem desolao e chamam isso de paz (...) nossas posses so tomadas sob a forma de tributos; nossas terras e colheitas, em requisies de suprimento; a nossa prpria vida e o nosso corpo so usados para derrubar florestas e pntanos, sob um coro de zombarias e pancadas...

    O antagonismo existente entre as posies romana (a favor dos tributos) e judaica (contrria aos tributos) permite praticamente uma nica interpretao para o acrscimo das palavras Devolvei a Deus as coisas de Deus . Dentro de uma concepo libertadora judaica, a terra da Palestina no era ager publicus romano, e sim, pertencia a Deus. Tambm o povo judeu entendia ser Deus o seu nico soberano e rei, logo, questionava-se a legitimidade de os romanos alvoroarem-se como senhores deste povo, s por haverem-no conquistado militarmente. Jesus est, pois, pleiteando diante dos seus adversrios, que seja devolvido a Deus aquilo que, segundo o testemunho bblico, s a Ele pertence, ou seja, a sua terra (ora ocupada pelos romanos) e o seu povo (ora em estado de dependncia e destitudo de sua livre soberania).

    Esta interpretao sugere, alis, a necessidade de uma pequena correo de traduo. Na resposta de Jesus a conjuno grega kai , usualm ente, entendida de form a copulativa e traduzida por e :

    "Devolvei a Csar as coisas de Csar e a Deus as coisas de Deus". Dentro da interpretao alternativa sugerida, no entanto, Jesus est contrapondo coisas legitimamente pertencentes a Deus a outras coisas no legitimamente apropriadas pelo imperador romano. Logo, a conjuno kai provavelmente esteja sendo em pregada em sentido adversativo, com o significado de mas, porm . A melhor traduo seria, pois, a seguinte:

    Devolvei as coisas de Csar a Csar, mas as de Deus a Deus .

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    5 ) C o n c lu s o

    1) Os argumentos arrolados acima esto a indicar que Jesus era no s contrrio ao pagamento de impostos aos romanos, como, simultaneamente, a favor da retirada das moedas imperiais de solo palestino. Tanto um como o outro seriam motivos suficientes para mandar aprision-lo. Contudo, o texto afirma que, ao invs de uma denncia, a resposta de Jesus levou, muito mais, admirao. Como se explica o fato?

    O mais provvel nos parece ser que a astcia ligada resposta do Mestre resida em sua ambivalncia. E isto porque, propondo devolver os denrios ao Imperador, ele p o deria facilmente ser subentendido como algum que estava aceitando o pagamento de tributos, j que este costumava ser feito atravs da moeda em questo. Por outro lado, a omisso deliberada do termo tributo em sua resposta, poderia tambm sinalizar ao povo que ele no compactuava com esta prtica extorsiva romana. Ora, devoluo de moeda no implica, necessariamente, em pagamento de imposto!

    Jesus consegue esta ambivalncia, deslocando o eixo da questo que residia inicialmente na pergunta pela legitimidade ou no de pagar o tributo, para uma outra, que consistia em indagar a quem pertence o denrio com a imagem e inscrio do imperador. Temos assim que o erro comumente feito na interpretao do texto consiste em vincular a resposta de Jesus pergunta fo rm ulada por fariseus e herodianos no v .14, ao invs de vincul-la a sua prpria pergunta, dirigida aos adversrios no v. 16. Os dois argumentos mais decisivos em favor desta ltima vinculao nos parecem ser a omisso de uma referncia direta ao tributo na resposta do v. 17 e a mudana do verbo ddomi (= dar/pagar) empregado na pergunta dos oponentes para apoddomi ( = devolver) usado na resposta de Jesus. Colocando estas duas opes em grfico, teramos o seguinte:

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    Vinculaco ErrneaV. 13: Ento lhe enviaram alguns dos fariseus e herodianos para

    faz-lo cair em cilada atravs de uma palavra.

    V. 14: E, tendo chegado, lhe disseram:

    - Mestre, sabemos que s verdadeiro e no te orientas por ningum, pois no olhas os homens segundo as aparncias mas, com base na verdade, ensinas o caminho de Deus. permitido dar tributo a Csar ou no? Devemos ou no devemos dar?

    V. 15: Ele, porm, conhecendo a sua hipocrisia, disse-lhes: \

    - Por que me tentais? Trazei-me um denrio

    para que veja.

    V. 16: E eles trouxeram. E disse-lhes:

    - De quem esta imagem e a inscrio?

    E eles lhe disseram: - De Csar. /

    V. 17: Ento lhes disse Jesus: y '

    - Devolvei as coisas de Csar a Csar e as coisas de Deus a Deus!E admiraram-se dele.

    Vinculaco CorretaV. 13: Ento lhe enviaram alguns dos fariseus e herodianos para faz-lo cair em cilada atravs de uma palavra.

    V. 14: E, tendo chegado, lhe disseram:

    - Mestre, sabemos que s verdadeiro e no te orientas por ningum, pois no olhas os homens segundo as aparncias mas, com base na verdade, ensinas o caminho de Deus. permitido dar tributo a Csar ou no? Devemos ou no devemos dar?

    V. 15: Ele, porm, conhecendo a sua hipocrisia, disse-lhes:

    - Por que me tentais? Trazei-me um denrio para que veja.

    V. 16: E eles trouxeram. E disse-lhes:______________.___ ^ ^

    - De quem esta imagem e a inscrio? E eles lhe disseram:- De Csar. ---------------------------------------------- ------------------

    V. 17: Ento lhes disse J e s u s :_______ ________________

    - Devolvei as coisas de Csar a Csar e as coisas de Deus a Deus!

    E admiraram-se dele.

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  • JESUS, A DVIDA EXTERNA E OS TRIBUTOS ROMANOS

    2) O posicionamento de Jesus nesta delicada questo de pagar ou no o tributo imposto aos judeus pelos romanos coincide, curiosamente, com a convico de grupos radicais revolucionrios de sua poca, os zelotes. Tanto Jesus como os insurretos zelotes tinham por certo que os tributos arrecadados pelos romanos careciam de legitimidade. As razes para uma tal convico eram, primariamente, de ordem teolgica, pois vinculavam a terra e o povo de Israel ao senhorio nico e exclusivo do seu Deus. Mas, no era preciso ser ju deu e crer no Deus de Israel para chegar-se a esse resultado. Os historiadores da poca nos permitem deduzir com facilidade que a enorme extorso que se cometia atravs dos tributos, o grau de extremo endividamento que acarretavam, sobretudo, em casos de colheitas malogradas e a severidade e brutalidade com que eram penalizadas pessoas que no tinham condies de pag-los, por si s, j contrariavam preceitos bsicos de qualquer humanitarismo, por mais elementar que fosse. Assim sendo, a contrariedade de Jesus sua prtica certamente no se deveu unicamente a sua noo da realeza exclusiva de Deus sobre o povo de Israel, mas igualmente, por ferir princpios bsicos da tica contida nas leis bblicas, contrrias a todo tipo de tirania, esplio e abuso de poder .

    3) Embora, ao nvel das convices, existisse concordncia entre Jesus e os zelotes, a histria e os evangelhos registram uma diferena fundamental no nvel das estratgias e dos meios empregados para viabiliz-las: Os zelotes optaram pela estratgia do enfrentamento militar com a super potncia romana e, como no poderia deixar de ser, foram dizimados, esmagados e, o restante, vendido como escravos. Jesus foi tambm um ferrenho contestador dos governantes e dos romanos, mas com outras armas e estratgia diferentes: Suas armas eram uma paixo inquebrantvel pelo que era verdadeiro e justo, pelo que era fraterno e unia, ao invs de dividir, os povos. Em decorrncia, sua estratgia tambm no foi a

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    de vencer aniquilando e pisoteando os seus adversrios, mas perdoando-os e oferecendo uma reconciliao. As armas usadas por Jesus foraram-no a uma crtica e denncia sem trguas s injustias de sua poca.(25) Sua estratgia de no- violncia ativa, contudo, inibiu enfrentamentos militares. Ele sabia perfeitamente que, para cada centena de romanos mortos, ressurgiriam outras tantas centenas e a represso s faria aumentar ainda mais. Por isso, ao invs de enfrentar militar- mente seus inimigos, procurou fortalecer ideolgica e eticamente seus amigos e as pessoas simpatizantes com a causa da justia. A causa de Deus no se conquista com armas: E preciso que se mudem coraes, se alterem as mentes e se aprenda a repartir os bens e o saber, ao invs de acumul-los. Esta uma revoluo - Jesus o sabia - bem mais exigente do que a outra que vence, sem convencer, que mata sem converter e extermina sem reconciliar .0 poder por detrs da sua lgica foi comparado a uma pequena semente que, para tornar-se grande rvore, necessita de um processo lento e gradativo de amadurecimento (Evangelho de Marcos 4.26- 32). Mesmo assim, h uma fora embutida neste tipo de poder solidrio, que nem as agonias sofridas nas cruzes antigas e modernas, nem as torturas impostas com requintes de crueldade, sejam as de ontem, sejam as de hoje, conseguem abafar.

    v - Dvidas de Ontem e de HojeA teologia latino-americana tem destacado algumas curio

    sas coincidncias entre a situao dos incios de nossa era crist, retratada nos textos estudados, e a vigente entre os pases pobres ou em desenvolvimento, terceiro-mundistas na atualidade mais recente. No h mais foras militares de ocupao em nossos

    (25) Foi exatamente esta postura que tambm o incompatibilizou com as autoridades civis e religiosas, tornando-se vtima do direito romano, que punia rebeldes e suspeitos pena mxima da crucificao. Jesus foi condenado e morto em funo da luta pacfica em favor dos seus ideais -no morreu de velho!

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  • JESUS, A DVIDA EXTERNA E OS TRIBUTOS ROMANOS

    pases, semelhana da Palestina na poca de Jesus, ocupada pelas foras romanas sediadas na Cesaria martima (aproximadamente 3 mil soldados) e na fortaleza Antnia, em Jerusalm (aprox. 600 soldados). Tambm aquilo que se chamou de imperialismo romano e, h pouco tempo, de imperialismo norte-americano, caiu em desuso na retrica do dia-a-dia. E, no obstante, estamos pelo menos to cativos como o estavam os judeus - perdemos nossa autonomia, nossa liberdade; h hoje uma ingerncia extema no Brasil e na Amrica Latina, talvez pior do que a romana de outro- ra. O estado de ocupao dado, hoje em dia, pela nossa dvida externa e pelas condies aviltantes a que somos submetidos para pag-la. A dvida externa nos mantm cativos e refns de uma lgica nefasta que, amparada em leis, acordos e condies especiais de pagamento, faz com que quanto mais se paga a dvida, maior fique a quantia em dbito. A situao para ns, os devedores, assemelha-se a de um paciente que, por mais remdios que compre para recuperar a sua sade, fica sempre em estado pior do que o anterior. A diferena de ontem para hoje no est no grau de dependncia, que pouco se alterou. A diferena est na maneira de explorao: O que antes se fazia mediante a cobrana de tributos, hoje se faz mediante a cobrana de elevados juros e servios. Para quem credor, simplificaram-se os caminhos que levam aquisio de dinheiro fcil. No preciso mais foras armadas ou armas. Sem um nico tiro, dezenas de pases pagam mensalmente somas bilionrias para quem emprestou pouco e j recebeu o dobro ou o triplo daquilo que investiu.

    A lg u n s D a d o s S o b r e a P r o g r e s s o d a D v id a E x t e r n a

    1) Mas que dvida esta?

    No caso do Brasil, por exemplo, entre 1973 e 1985, entraram do exterior em tomo de 121 bilhes de dlares como emprstimos e financiamento. No mesmo perodo, foram pagos de juros mais de 80 bilhes de dlares e de amortizao, mais outros 65 bilhes de dlares. Portanto, o pas rece

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    beu 121 bilhes mas pagou 145 bilhes, transferindo de forma lquida aproximadamente 24 bilhes de dlares entre 1973 e 1985.

    No entanto, no mesmo perodo, a dvida passou de aproximadamente 10 bilhes a mais de 100 bilhes. O pas paga cada vez mais e deve cada vez mais...

    (C. Grzybowski, Cdigo de boa conduta entre credores e devedores...Caderno do CE AS, n 116, julho/agosto de 1988, p. 26s.)

    2) "O endividamento externo durante o governo FHC foi m uito alto: durante seus trs (os primeiros) anos e meio, ele fez a dvida externa crescer de 148 bilhes para 198 bilhes de dlares. Neste perodo (sem contar 1998) o pas pagou quase 100 bilhes de dlares, sendo 35 s de juros".

    (CESE -CONIC: ABC da dvida externa. A vida antes que a dvida, 1999, p. 41)

    3) Maria da Conceio Tavares cita os seguintes dados dos seis primeiros anos da gesto FHC (1994 a 1999):

    O total de remessas lquidas de lucros somadas s despesas lquidas com juros e s amortizaes, pagas ao longo desses seis anos, alcanou o montante inacreditvel de US$ 231 bilhes! Foi necessrio um aumento correspondente das desnacionalizaes e privatizaes de mais de US$ 130 bilhes, para fechar a conta, assim mesmo com perda de reservas. a isso que se tem reduzido, no essencial, a brilhante contribuio do investimento direto estrangeiro que deveria levar-nos ao paraso da competitividade" e no acrescentou qualquer capacidade produtiva significativa taxa de investimento lquido interno. Estamos vendendo o pas para pagar a dvida! E, apesar de todo este montante pago, a dvida no para de crescer. Estima-se que para o final da gesto FHC, ela j tenha ultrapassado a casa dos US$ 250 bilhes.

    (Revista Eclesistica Brasileira, n 239, set. 2000, p. 680s)

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  • JESUS, A DVIDA EXTERNA E OS TRIBUTOS ROMANOS

    Em razo de fatos como este, a teologia latino-americana tem chamado a ateno para algum as coincidncias entre o denrio e o dlar, entre os tributos antigos e os juros modernos, que no podem constituir meras casualidades. Seno, vejamos:

    Assim como antigamente o pagamento obrigatrio do tributo gerava o empobrecimento e endividamento endmico de grande parte da populao, da mesma forma vivemos hoje sob cortes obrigatrios e extremamente onerosos para reas como as da educao, moradia, sade e trabalho: so os ajustes fiscais e estruturais que nossos credores da dvida impem e que incidem sobre o social.

    Os fiscais romanos de antigamente eram extremamente frios e calculistas, quando no violentos e fraudadores. Os modernos fiscais da dvida no mais vm acompanhados de exrcito ou polcia, mas exercem sua vigilncia da mesma forma fria e insensvel. So os auditores do FMI, do BIRD ou d BM, cuja tarefa se resume em verificar e zelar para que a sade dos clientes esteja em dia, a fim de que compromissos com a dvida possam ser honrados, ou ento, programas de ajuste possam ser implantados. O paciente, nestes casos, inicialmente o pas, o que eqivale dizer, uma abstrao. Pois, enquanto o pas vai pagando bem, o seu povo pode estar passando mal ou morrendo por falta de investimentos em sade e alimentao.

    De forma semelhante ao denrio imperial romano, tambm circula hoje pelo hemisfrio o dlar imperial americano. E, semelhana do denrio, com ares de sagrado: In God we trust = confiamos em Deus, esta sua moderna inscrio. Sua fora cambial, simblica e poltica no inferior a do denrio de outrora.(26)

    (26) O Brasil imitou: As notas de um, cinco, dez e cinqenta reais que tenho minha frente, trazem todas uma efigie masculina romana e a inscrio "Deus seja louvado.

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    A imposies de antigamente, que facilmente levavam runa, como a que obrigava a pagar parcela igual de tributos, mesmo em caso de mau tempo e malogradas colheitas, a ssem elham -se hoje em dia cond ic io n an tes com o o atrelamento dos juros da dvida variao da taxa de juros nos EUA no final da dcada de 70/incio da dcada de 80.(27)

    Esta comparao no deixa de falar uma linguagem forte. H quem possa entend-la como forada ou forjada, at certo ponto. Mas, no h duvida de que ternos, tanto antiga, como atualmente, processos de enriquecimento e extorso de bens e moeda altamente polmicos e questionveis. J houve, inclusive, quem comparasse o aumento extorsivo da dvida externa, somado fuga bilionria de capitais e deteriorao progressiva dos saldos da balana comercial na Amrica Latina com um moderno holocausto infringido ao nosso continente. O pagamento da dvida no emana gases mortais, mas faz morrer de forma mais refinada, porque gradativa e lenta, pela privao a que submete as populaes via ajustes e alinhamentos considerados como pressupostos para os (novos) emprstimos ou rolagern da dvida. Como dizia E. Galeano:

    Eles tm mais poder que os reis e marechais e o prprio Papa de Roma. Honorveis filantropos, praticam a religio monetarista, que adora o consumo no mais alto dos seus altares. Nunca sujam as mos. No matam ningum: limitam-se a aplaudir o espetculo. Suas imposies chamam- se recomendaes. Denominam as atas de rendio de cartas de inteno. Sempre que dizem estabilizar, querem dizer: derrubar. Chamam a fome de austeridade e de cooperao a ajuda que a corda presta ao pescoo.(28)

    (27) A frase de Agenor Brighenti O fator central da dvida, e que faz dela um problema maistico do que econmico, foi a elevao indiscriminada e unilateral de suas taxas de juro" (REB, 1999, p. 571 ) praticamente consenso na literatura critica sobre o assunto.

    (28) E. Galeano: Julgamento e condenao do poderoso cavaleiro com dinheiro. Tempo e Presena, n 236, nov. de 1988, p.34.

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    Que diria Jesus a modernos fariseus e berodianos se, a modo de antigamente, viessem formular-lhe a capciosa pergunta: E lcito pagar a dvida externa? Devemos ou no devemos pagar?

    natural que a resposta a uma tal pergunta no poder passar de hipottica, j que Jesus no se encontra mais em nosso meio em carne e osso. Mas, por tudo o que falou e fez, e pelo esprito de respeito e solidariedade que deflagrou em relao s pessoas e povos, ousamos fazer um pequeno exerccio de projeo daquilo que poderia compreender uma eventual resposta sua. Sintetizamos esta projeo da resposta de Jesus nos seguintes pontos:

    Jesus foi um arauto da verdade: Eu vim para dar testemunho da verdade, afirmou diante de Pilatos, o procurador romano (Joo 18.37). Em decorrncia, seria um fervoroso defensor de que todos os dados, cifras, e condies sob as quais foram negociados acordos da dvida viessem plena luz do dia. Jesus optaria pela solicitao de transparncia. Ele seria a favor de por em prtica a determinao do art. 26 do Ato das disposies constitucionais transitrias, cujo texto o seguinte: No prazo de um ano a contar da promulgao da Constituio, o Congresso Nacional promover, atravs de comisso mista, exame analtico e pericial dos atos e fatos geradores do endividamento externo brasileiro (grifo nosso). Ou seja: seria favorvel a uma rigorosa auditoria da dvida. No se combate uma doena, sem conhecer-lhe as causas e os geradores. No se faz servio dvida gerando ou perpetuando dvida. Por que no se d ao povo, isto , ao seu verdadeiro pagador, acesso aos nmeros e dados? Por que se envolve tanto a dvida em nvoa semntica de mistrio? Por que se fala dela em discurso criptogrfico destinado a no ser entendido por ningum*29*? Se os fatos geradores da dvida e as condies dos seus acordos se tornassem transparentes, ela dei

    (29) Ct: J. L. D. Pinaud, Dvida contra o Direito, So Paulo, CEDI. 1992, p. 12.

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    xaria de ser um assunto desinteressante, porque complicado, difcil de entender e complexo; e os acordos feitos em relao a ela, poderiam ser facilmente avaliados pelo povo que a paga quanto ao seu grau de justia.

    Jesus foi um arauto da justia. Uma dvida que se multiplica na proporo geomtrica como se multiplicou nossa dvida externa, configura prtica de usura. Jesus jam ais poderia consider-la legtima, j que o testemunho bblico revela um Deus contrrio prtica da usura: Se empresta- res dinheiro ao meu povo, ao pobre que est contigo, no te havers com ele com o credor que im pe ju ro s" (Ex 22.25).(30) O que ele proporia em relao ao capital financeiro da dvida, resultante da usura? Somos da opinio que ele sugeriria sua imediata devoluo'31', proposta com a qual tambm concordou quando o rico Zaqueu, uma vez convertido, lhe falou: Senhor, resolvo dar aos pobres a metade dos meus bens; e, se nalguma coisa tenho defraudado algum, restituo quatro vezes mais (Lc 19.8). Faria Jesus tambm hoje algo assim como uma devoluo da pergunta, se indagado por ns? Talvez, de fato, ele inicialmente no se precipitaria em nos responder, mas nos faria uma contra-pergunta: Quem deve a quem, na questo da dvida externa? E provvel que, s depois que lhe consegussemos responder a sua pergunta, estaramos, de fato, em condies de assimilar a sua resposta nossa.

    Jesus no era, por princpio, contrrio a leis. Ele saberia, por

    (30) Ct: tambm Dt 23.19; Lv 25.35.(31) Cf. A. Brighenti, Dvida externa -um novo mecanismo de colonizao?, Revista

    Eclesistica Brasileira, n 235, setembro, 1999, p. 585: ...se o montante da dvida externa j foi pago vrias vezes. ..a restituio seria uma questo de justia, uma espcie de reparao de um roubo, ainda mais quando ele mergulhou milhes e milhes de pessoas na misria, precisamente porque os recursos que lhes deveriam ser destinados foram transferidos para o exterior. A restituio seria tambm uma questo de reconhecimento e respeito pela dignidade humana, pois h um equvoco taciturno em meio a tudo isso: na verdade, a dvida no est do lado de c, mas do lado de l. Legalmente est do lado de c, mas eticamente est do lado de l".

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  • JESUS, A DVIDA EXTERNA E OS TRIBUTOS ROMANOS

    certo, que tambm contratos de emprstimo necessitam ser regulamentados. Mas ele jamais aceitaria como legtimas leis que geram abastana dum lado e carncia, penria e morte do outro. A funo das leis foi, para Jesus, proteger e gerar vida (Mc 3.4). Na medida em que uma lei, como a da dvida externa, no mais consegue cumprir com esta funo original, ela forosamente haver de perder seu respaldo cristo. Leis que no geram ou protegem a vida, por mais ares de legalidade que vendam para fora, sero sempre imorais por dentro. Jesus as consideraria assim - legais, mas imorais.'32'

    Jesus pregou um Deus que perdoa dvidas e que quer que nos perdoemos mutuamente as dvidas tambm: Pai nosso que ests no cu...Perdoa-nos as nossas dvidas, assim como ns tambm temos perdoado aos nossos devedores.'33 Por isso achamos que Jesus seria um defensor do perdo das dvidas ou, ento, de sua rolagem sob condies que no ferissem o necessrio desenvolvimento dos povos.

    Em seu ministrio pblico, Jesus fez um apelo para a converso e arrependimento de todos os pecadores. Sua crtica ao pecado foi radical e no poupou ningum. Por isso, se fosse ajuizar a nossa dvida externa atual, saberia, por certo, que nem sempre condies de insolvncia so unicamente o resultado de abusos por parte dos pases credores. Em muitos dos pases endividados, parcelas razoveis da dvida po

    (32) Joo Luiz Duboc Pinaud oferece um criterioso estudo sobre a engrenagem juridica e legal acintosa na qual se assenta o endividamento externo brasileiro. Ele mostra, com riqueza de detalhes, a inconstitucionalidade do direito aplicado nos acordos da dvida. Critica tambm ju zos apriorsticos do tipo quem deve tem que pagar" (pacta sunt sen/anda: pactos devem ser cumpridos), como se pudessem ser legitimadas leis que levam os devedores penria, quando sabido que qualquer direito, levado ao seu extremo, se converte em injustia (summum jus summa injuria): Dvida contra o Direito, op. cit., passim. cf. tambm Jos Lzaro Alfredo Guimares, Divida externa e os princp ios gerais do Direito. A necessria eliminao do ilcito e do excessivo. In: Pgina da Internet, site da Google, sob verbete divida externa .

    (33) Mt 6 12. Na Igreja catlica reza-se e perdoa-nos as nossas ofensas..., porm, sem respaldo no original grego.

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    dem ser devidas - tambm - m administrao dos emprstimos contrados, corrupo, irresponsabilidade em relao ao dficit pblico, etc. Jesus faria, pois, a sua denncia, no poupando nenhum dos lados envolvidos.

    Como Jesus no era partidrio do confronto de foras, mas da sua soma, ele bem provavelmente seria contrrio a acordos bilaterais entre os pases credores e cada um dos pases devedores, isoladamente. Imaginamos que ele seria partidrio de algo parecido com uma Confederao dos pases devedores, esta sim, responsvel pela representatividade e defesa dos interesses dos pases necessitados de emprstimos. A negociao dos pases perifricos em bloco dar- lhes-ia uma fora bem mais expressiva.

    VI - Concluso: A dvida Merc dos seus/suas intrpretesTodos ns temos nossa opinio particular sobre a legitimi

    dade ou no do pagamento de nossa dvida externa. Uns sero mais contrrios, outros mais a seu favor. Isto vai depender muito de que lado nos encontramos, se do lado dos que tm que pagar, ou dos que esperam receber e isto, com o maior lucro possvel. Vai depender tambm dos valores que abraamos, como os da vida, solidariedade e sensibilidade, ou da rentabilidade e lucro a qualquer preo. E vai depender, no por ltimo, de que funo estamos dispostos a atribuir s leis. As leis, por si s, no podem deter um valor absoluto. Elas so funcionais, so mediaes para alcanar-se uma justia que dignifique as pessoas e os povos. E a esse critrio ltimo que, a nosso ver, devem ser submetidas tambm as leis que geraram e ainda vigoram para efeito de pagamento, rolagem ou perdo das dvidas.

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