Wheen, F., Karl Marx. Biografia

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BKRTRANR EDITOftA

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BKRTRANR EDITOftA

KARL MARX

FRANCIS WHEEN

KARL MARX

Tradução de José Luís Luna

BERTRAND EDITORA CHIADO 2003

Título original: Karl Marx © Francis Wheen, 1999

Todos os direitos para a publicação desta obra em Mngua portuguesa, excepto Brasil, reservados por:

Bertrand Editora, Lda. • Rua Anchieta, n.° 29, 1.°

1249-060 Lisboa Telefone: 210 305 500

Fax: 210 305 563 Correio electrónico: [email protected]

Revisão: André Cardoso

Impressão e acabamento: Tipografia Guerra, Viseu Depósito legal n.° 189121/02

Acabou de imprimir-se em Janeiro de 2003 ISBN: 972-25-1282-X

Para Julia

I N T R O D U Ç Ã O

Havia apenas 11 pessoas presentes no funeral de Karl Marx a 17 de Março

de 1883. «O seu nome e trabalho resistirão ao longo dos séculos», predisse

Friedrich Engels no seu discurso fúnebre no cemitério de Highgate. Pare

cia uma tirada pouco provável, mas tinha razão.

A história do século XX é o legado de Marx. Estaline, Mao, Che, Castro

— os ícones e monstros da idade moderna, todos eles se apresentaram como

seus herdeiros. Agora que ele os tivesse reconhecido como tal é outra ques

tão. Ainda em vida, as manias dos seus pretensos discípulos desesperavam-

-no. Ao ouvir que um novo partido francês reivindicava ser marxista, retor

quiu que, nesse caso: «Eu, pelo menos, não o sou.» N o entanto, ao longo dos

cem anos que se seguiram à sua morte, metade da população mundial foi go

vernada por regimes que professaram o Marxismo como sendo a fé que os

guiava. As suas ideias transformaram o estodo da economia, da história, da

geografia, da sociologia e da Mteratura. Desde Jesus Cristo que nenhum pobre

diabo obscuro tinha inspirado uma tal devoção universal — ou sido tão ca

lamitosamente mal interpretado.

Chegou a altora de desmontar a mitologia e tentar redescobrir Karl Marx,

o homem. Foram publicados milhares de livros sobre o Marxismo, mas quase

todos foram escritos por universitários e fanáticos para quem é quase uma

blasfémia tratá-lo como uma figura de carne e osso — um emigrante

prussiano que se tornou um cavalheiro inglês da classe média, um agitador

colérico que passou a maior parte da idade adulta no erudito suêncio da sala

de leitura do Museu Britânico; um anfitrião bem-disposto e sociável que se

zangou com quase todos os seus amigos; um chefe de família dedicado que

10 « ^ KARL MARX

engravidou a criada; e um filósofo profundamente honesto que adorava

copos, charutos e piadas.

N o decorrer da guerra fria, ele foi para o Ocidente o demoníaco causa

dor de todos os males, o fundador de um culto assustadoramente sinistro,

o homem cuja maléfica influência tinha de ser suprimida. N a União Sovié

tica da década de 50, ele adquiriu o estatuto de um deus secular, com Lenine

como São João Baptista e, claro está, o camarada Estaline em pessoa como

o redentor Messias. Só isto tem sido o bastante para condenar Marx como

cúmplice de massacres e purgações: caso ele tivesse vivido mais uns anos,

não faltaria agora um jornalista cheio de iniciativa para provavelmente o

acusar também de ser o principal suspeito dos assassínios de Jack, o Estripador.

Mas porquê? O próprio Marx nunca pediu certamente para ser incluído na

Santíssima Trindade e teria ficado consternado pelos crimes cometidos em

seu nome. Os princípios corruptos esposados por Estaline, Mao ou Kim II

Sung trataram a sua obra como os cristãos modernos utiHzam o Antigo Tes

tamento: grande parte foi ignorada, ou descartada, enquanto uns slogans res

sonantes («ópio do povo», «ditadura do proletariado»), são tirados de con

texto, virados ao avesso e, depois, citados como justificações aparentemente

divinas para a mais brutal desumanidade. Como tantas vezes, Kipling expri

me isso bem:

Aquele que tem um Evangelho

Para dar à Humanidade

Embora o sirva totalmente

D e corpo, alma e espírito

E suba ao Calvário

Todos os dias por ele

É o seu discípulo

que tornará tal tarefa vã.

Só um louco pode responsabilizar Marx pelos gulags; mas, infelizmente,

há uma imediata provisão de loucos. «De uma maneira ou outra, os mais

importantes factos da nossa época conduzem-nos a um só homem — Karl

Marx», escreveu Leopold Schwarzschild, em 1947, no prefácio da sua mal

humorada biografia, The Red Prussian (O Prussiano Vermelha). «Dificilmente

poderá ser contestado que a sua presença é manifesta na própria existência

da Rússia Soviética e, em particular, nos métodos dos sovietes.» A semelhan-

INTRODUÇÃO «%» 11

ça entre os métodos de Marx e os do tio José Estaline era, aparentemente,

tão indiscutível que Schwartzschild nem se deu ao incómodo de provar a sua

absurda afirmação, contentando-se em observar que «se conhece a árvore

pelos seus frutos» — o que, a exemplo de tantos provérbios, é menos axio

mático do que parece. Deveriam os filósofos ser censurados por todas e

quaisquer subsequentes mutilações das suas ideias? Se fí^rr Schwartzschild

tivesse encontrado ñ:utos comidos pelas vespas no seu pomar — ou tives

se talvez comido uma torta de maçã demasiado cozida ao almoço —, teria

ele pegado num machado e administrado castigo sumário à árvore culpada?

Assim como os seu seguidores imbecis, ou sedentos de poder, deifica

ram Marx, também os seus críticos frequentemente sucumbiram ao mesmo

e oposto erro de o imaginar um agente do Diabo. «Houve momentos em que

Marx parecia estar possuído por demónios», escreve um biógrafo moderno,

Robert Payne. «Tinha uma visão diabólica do mundo e a perversidade de

Satã. Parecia por vezes saber que estava a reaKzar tarefas demoníacas.» Esta

escola de pensamento — mais de reformatorio, para dizer a verdade —

atinge a sua conclusão absurda em Was Karl Marx a Satanist? (Era Karl Marx

um Adepto de Satã?), livro bizarro publicado em 1976 por um célebre e zelo

so evangelista norte-americano, o reverendo Richard Wurmbrand, autor de

obras-primas imortais como Tortured for Christ (Torturado em Nome de Cristo)

— mais de dois milhões de Livros vendidos — e The Answer to Aloscow's Bible

(A Rßsposta à Biblia de Moscovo).

Segundo Wurmbrand, o jovem Karl Marx foi iniciado numa «igreja sa

tânica sumamente secreta», que ele depois serviu fiel e malignamente durante

toda a vida. Claro que nenhuma prova foi encontrada, mas isto meramente

fortalece a intuição do nosso detective clerical: «Como a seita satânica era

extremamente secreta, possuímos apenas pistas quanto à possibilidade das

suas ligações com ela.» Que «pistas» são essas? Bem, quando era estudante,

Marx escreveu uma peça em verso cujo título, Oulanem, é mais ou menos um

anagrama de Emanuel, o nome bíblico de Jesus — e, assim, «faz-nos pen

sar nas inversões das missas negras dos satanistas». Terrivelmente incri

minador; mas há mais. «Alguma vez se interrogaram», pergunta Wurmbrand,

«quanto às barbas de Marx? Na sua época, os homens usavam barba, mas

não como a dele. . . O estilo de Marx era característico dos discípulos de

Joanna Southcott, uma sacerdotisa satânica que dizia estar em contacto com

o demónio Shiloh.» De facto, a Inglaterra do tempo de Marx tinha uma data

12 % ^ KARI.MARX

de homens com barbas hirsutas, desde o jogador de críquete, W. G. Grace,

ao político Lorde Salisbury. Também falavam eles com o demónio Shiloh?

Após o final da guerra fria e o aparente triunfo de Deus sobre Satanás,

inúmeros poços de ciência declararam que tínhamos chegado ao que Francis

Fukuyama pretensiosamente chamou o Vim da História. O Comunismo es

tava tão morto como o próprio Marx e a aterrorizadora ameaça com a qual

concluía o Manifesto Comunista, o mais influente panfleto político de todos os

tempos, parecia agora não ser mais do que uma pitoresca reh'quia histórica:

«Deixem as classes dirigentes tremer perante uma revolução comunista.

Os proletários nada têm a perder senão as suas correntes. Têm um mundo

a ganhar. Trabalhadores de todo o mundo, uni-voslO% únicos grilhões que, hoje em

dia, prendem a classe operária são relógios Ro/é'xde imitação, mas há muito

mais coisas que estes proletários modernos odiariam perder — microndas,

férias a tempo partilhado e televisão por satéHte. Compraram apartamentos

sociais e acções em serviços públicos privatizados e ganharam um bom

pequeno lucro quando as sociedades que lhes prestavam serviços financei

ras se transformaram em bancos. E m resumo, agora somos todos burgue

ses. Até o Partido Trabalhista inglês se thatcherizou.

Quando comecei a fazer pesquisas para esta biografia, muitos .amigos

olhavam para mim com pena e incredulidade. Porquê, perguntavam-se, de

sejaria alguém escrever — e ainda menos 1er — sobre uma figura tão desa

creditada, irrelevante e fora de moda? Mas, mesmo assim, prossegui; e quanto

mais estudava Marx, mais espantosamente actual me parecia ser. Os pânditas

e políticos de hoje, que se julgam pensadores modernos, gostam de usar a

palavra de ordem «globalização» sempre que podem — sem se dar conta de

que Marx já falava disso em 1848. O domínio mundial de McDonald's e MTV

não o teria minimamente surpreendido. A deslocação em termos de poder fi

nanceiro do Atlântico para o Pacífico — graças aos sistemas económicos do

Tigre Asiático e à expansão das cidades de suício na costa ocidental dos EUA.

—- foi profetizado por Marx mais de um século antes de Bui Gates nascer.

Há, contudo, um evolução que nem Marx nem eu tínhamos previsto: que,

em final da década de 1990, muito depois de até mesmo os liberais em voga

e os esquerdistas pós-modernos lhe terem posto uma cruz em cima, ele se

ria subitamente aclamado pelos próprios velhos e velhacos capitalistas bur

gueses como um génio. O primeiro sinal desta curiosa reavaliação surgiu em

Outubro de 1997, quando um número especial do New lor/è^ranunciou Karl

Marx como «o próximo grande pensador», um homem com muito para nos

INTRODUÇÃO ^ ^ 13

ensinar sobre corrupção política, monopolização, alienação, desigualdades

e mercados globais. «Quanto mais tempo passo em Wall Street, mais me

convenço de que Karl Marx tinha razão», declarou um rico banqueiro à re

vista. «Estou plenamente convencido de que a abordagem de Marx é a me

lhor maneira de encararmos o capitalismo.» E, desde então, economistas e

jornalistas de direita fazem bicha para prestar a mesma homenagem. Igno

rem todos esses disparates comunistas, dizem eles: Marx era realmente «um

estudioso do capitalismo.»

Até mesmo este cumprimento deliberado serve apenas para o diminuir.

Karl Marx era um filósofo, um historiador, um economista, um linguista, um

crítico literário e um revolucionário. Embora talvez não tenha tido um «em

prego» na verdadeira acepção da palavra, era um trabalhador prodigioso: os

seus escritos completos, poucos dos quais foram publicadas durante a sua

vida, estão compilados em 50 volumes. O que nem os seus inimigos nem

discípulos querem reconhecer é a mais óbvia e, todavia, impressionante de

todas as suas qualidades: esse ogro mítico e sagrado era um ser humano. A

bruxas mccarthista dos anos 50, as guerras no Vietname e na Coreia,

a crise cubana dos mísseis, a invasão da Checoslováquia e da Hungria, o

massacre dos estudantes na Praça Tiananmen — todos esses incidentes

sanguinários da história do século XX foram justificados em nome do Mar

xismo ou do antimarxismo. Proeza de modo algum mesquinha para um ho

mem que, atormentado por fiirúnculos e dores de fígado, passou grande

parte da vida adulta na pobreza e foi uma vez perseguido pela polícia atra

vés das ruas de Londres, depois de uma passagem excessivamente animada

por diversas tabernas.

1

o MARGINAL

Um comboio avança lentamente e aos solavancos pelo vale de MoseUe —

pinheiros altos, vinhas plantadas nas encostas, aldeias pitorescas e fumo a ele-

var-se tranquilamente no céu de Inverno. Tentando respirar num vagão de gado

carregado de gente, um jovem espanhol da Resistência Francesa preso em

combate conta os dias e as noites à medida que ele e os seus companheiros são

inexoravelmente transportados de Compiègne para o campo de concentração

nazi em Buchenwald. Quando o comboio pára numa estação, lança um olhar

ao nome da localidade: TRIER. De repente, um rapaz alemão atira uma pedra

contra as grade atrás das quais os passageiros condenados se amontoam.

Assim começa o grande romance de Jorge Scmprun, A Longa Viagem, e

nada nessa jornada rumo ao aniquilamento — nem mesmo a antecipação

dos horrores que o aguardam em Buchenwald — trespassa mais dolorosa

mente o coração do narrador do que aquele gesto.

— É o raio de um golpe muito baixo que, entre tantos sítios, isto tenha

acontecido em Trier, lamenta-se.

— Porquê? — pergunta, espantado, um francês. — Costumavas vir cá?

— Não, nunca aqui estive.

— Então, conheces alguém daqui?

— É isso mesmo.

Um amigo de infância, explica. Mas, na realidade, está a pensar num na

tural de Trier, um rapaz judeu, nascido na madrugada de 5 de Maio de 1818.

«Abençoado aquele que não tem família», desabafava enfadonhamente

Karl Marx numa carta de Junho de 1854 a Friedrich Engels.^

16 ^ » KARL MARX

Tinha trinta e seis anos na altura, e há muito que cortara os seus laços umbilicais. O pai estava morto, assim como os txês irmãos e uma das cinco irmãs; outra irmã tinha morrido dois anos mais tarde, e as sobreviventes pouco tinham a ver com ele. As relações com a mãe eram frias e distantes, sobretudo porque ela mostrava suficiente falta de consideração mantendo-se viva e impedindo, assim, o filho rebelde de herdar.

Marx era um judeu burguês de uma cidade predominantemente católica, num país cuja religião oficial era o protestantismo evangélico. Morreu ateu e sem pátria, tendo dedicado a vida adulta a profetizar a queda da burguesia e o enfraquecimento do Estado-Nação. Afastando-se da religião, classe social e cidadania, personificou a alienação que definiu como sendo a maldição infligida pelo capitalismo à humanidade.

Este respeitável alemão da classe média pode parecer um estranho representante das massas oprimidas, mas o seu estatuto emblemático não teria surpreendido o próprio Marx, o qual acreditava que os indivíduos reflectem o mundo em que habitam. A educação que recebeu ensinou-lhe tudo o que precisava saber sobre a sedutora tirania da religião, armando-o com a eloquência didáctica e a autoconfiança necessárias para exortar a humanidade a livrar-se das suas cadeias.

«Era um contador de histórias único e sem igual», recordou a filha, Eleanor, ao falar de um dos poucos episódios da infância do pai que ':hegaram até nós. «Ouvi as minhas tias dizer que, em rapazinho, tratava de forma tirânica as irmãs, "conduzindo-as" como cavalos a todo o galope por Markusberg abaixo, em Trier, e, pior ainda, obrigando-as a comer os "bolos" de massa suja que fazia com mãos ainda mais porcas. Mas elas aguentavam ser "conduzidas" à rédea solta e comiam os "bolos" sem um queixume, só pelo prazer de ouvir as histórias que Karl lhes contaria para as recompensar da sua paciência.»^

Anos mais tarde — quando as meninas brincalhonas já se tinham tornado respeitáveis mulheres casadas — mostraram-se menos indulgentes para com o irmão rebelde. Louise Marx, que emigrou para a Africa do Sul, jantou uma vez em casa dele no decorrer de uma visita a Londres.

«Ela não podia admitir que o irmão fosse líder dos socialistas», relatou um outro convidado. «E insistiu, na minha presença, que ambos pertenciam à respeitada família de um advogado que contava com a simpatia de toda a gente de Trier.»^

Os esforços determinados de Marx para se afastar da influência da família, da religião, da classe social e da sua nacionalidade nunca foram totalmente bem sucedidos. Velho e venerável continuava a ser o filho pródigo, bombar-

o MARGINAL ^ J 17

deando tios ricos com cartas suplicantes ou insinuando-se nas boas graças

de primos distantes que estivessem a ponto de redigir os seus testamentos.

Quando morreu, encontraram uma fotografia daguerreótipo do pai no bolso

do seu casaco. Foi colocada no caixão e enterrada no cemitério de Highgate.

Estava tolhido — embora contrariado — pela força da sua lógica. N u m

precoce ensaio escolar aos 17 anos, «Reflexões de um Jovem sobre a Esco

lha de uma Profissão», Karl Marx observava que «nem sempre podemos

alcançar a posição para a qual julgamos ter vocação; as nossas relações em

sociedades começam, em certa medida, a ser estabelecidas antes de nos en

contrarmos em posição de as determinar»."* O seu primeiro biógrafo, Franz

Mehring, pode ter exagerado ao detectar o germe do marxismo nesta frase,

mas a observação é pertinente. Mesmo em plena maturidade, Marx insistia

que os seres humanos não podem ser isolados nem abstraídos das suas circuns

tâncias sociais e económicas — ou da arrepiante sombra dos antepassados.

«A tradição de todas as gerações mortas», escreveu em O Dezoito Brumário de

IMÍS Bonaparte, «pesa como uma montanha no espírito dos vivos.»

Um dos antepassados paternos de Marx, Joshue Heschel Lwow, foi no

meado rabino de Trier em 1723 e o cargo tornou-se uma espécie de sinecu

ra familiar desde então. O tio Samuel de Karl sucedeu como rabino da cidade

ao avô, Meier ílalevi Marx. E mais gerações mortas foram acrescentadas à

carga pela mãe de Karl, Henriette, uma judia holandesa em cuja famíHa «os

filhos eram rabinos há séculos» — incluindo o pai dela. Como filho mais

velho de tal família, Karl talvez não tivesse escapado ao seu destino rabínico

senão fossem aquelas «circunstâncias sociais e económicas».^

Ao peso das gerações mortas somou-se a asfixiante tradição espiritual de

Trier, a cidade mais antiga da Rehânia.

Conforme Goethe observou lugubremente após uma visita em 1793:

«No interior das suas muralhas é sobrecarregada e até mesmo oprimida por

igrejas, capelas, claustros, estabelecimentos de ensino e edifícios dedicados

a ordens religiosas e de cavalaria, para nada dizer das abadias, conventos

cartuxos e instituições que a cercam, não! Obstruem-na.»*" Todavia, quando

foi anexada pela França durante as Guerras Napoleónicas, os habitantes fo

ram expostos a ideias tão pouco germânicas como à liberdade constitucio

nal e da imprensa e — ainda mais significativamente para a família Marx —

à tolerância religiosa. Embora a Renânia fosse reincorporada na Prússia im

perial pelo Congresso de Viena, três anos antes do nascimento de Marx, o

inebriante odor do Século das Euzes francês ainda pairava no ar.

18 ^ ^ KARLiMARX

O pai de Karl, Hirschel, era dono de várias vinhas de Moselle e membro

moderadamente próspero da classe média educada. Mas também era judeu.

Apesar de nunca totalmente emancipados sob o regime francês, os judeus

da Renânia tinham saboreado suficientemente liberdade para ansiar por mais.

Quando a Prússia recuperou a Renânia de Napoleão, Hirschel solicitou ao

novo governo o fim da discririíinação contra si e os seus «companheiros de

crença». Mas sem resultado: os judeus de Trier estavam agora sujeitos a um

édito de 1812 que os impedia de exercer cargos públicos ou praticar qual

quer profissão. Pouco disposto a aceitar as penalidades sociais e financeiras

de uma cidadania de segunda classe, HirscheU renasceu como Heinrich Marx,

patriota alemão e cristão luterano. O seu judaísmo há muito que não passa

va de um acidente ancestral e não uma fé constante e profunda.

(«Nada recebi da minha família», dizia, «a não ser, devo confessá-lo, o

amor da minha mãe.»)

A data do seu baptismo é desconhecida, mas converteu-se certamente

por altura do nascimento de Karl: registos oficiais provam que Hirschel co

meçou a exercer advocacia em 1815 e, em 1819, celebrou a nova respeita

bilidade adquirida pela família mudando do apartamento alugado com cin

co divisões para uma casa com dez quartos perto da antiga entrada romana

para a cidade. Porta Nigra.

O Catolicismo parece ter sido a escolha mais óbvia para o que, essencial

mente, não passou de um casamento espiritual de conveniência, a Igreja à

qual ele agora pertencia mal tinha 300 fiéis numa cidade cuja população era

de 11 400. Mas esses adeptos contavam com a presença de alguns dos mais

influentes indivíduos de Trier. Como um historiador notou: «Para o Estado

prussiano, os membros da sua religião oficial representavam o núcleo dig

no de confiança, leal e sólido, numa Renânia predominantemente católica ro

mana e perigosamente francófila.»^

Não que Hirschel fosse imune ao encanto gaulês: durante o domínio

napoleónico, fora penetrado por ideias francesas quanto a política, religião,

vida e arte, tornando-se «um autêntico "francês" do século XVIII que conhe

cia Voltaire e Rousseau de cor». Também era sócio activo do Clube do Casino

de Trier, onde os cidadãos mais esclarecidos se reuniam para discutir poK-

tica e literatura. E m Janeiro de 1834, quando Karl tinha 15 anos, Heinrich

organizou um banquete no clube para prestar homenagem aos deputados

«liberais» recentemente eleitos para a Assembleia da Renânia, sendo o seu

brinde ao rei da Prússia ruidosamente aplaudido — «a cuja magnanimidade

o MARGINAL ^ J 19

pela criação das primeiras instituições de representação popular estamos

gratos. Na plenitude da sua omnipresença, decidiu por vontade própria que

os membros da Dieta se reunissem, a fim de a verdade poder chegar aos de

graus do trono.»

Esta extravagante bajulação a um rei fraco e anti-semita pode parecer

sarcástica, e foi provavelmente assim interpretada pelos folgazões mais ba

rulhentos. («A plenitude da sua magnanimidade», que lata!) Mas Heinrich foi

perfeitamente sincero; não era nenhum revolucionário. N o entanto, a pró

pria menção de «representação popular», por muito cautelosamente velada

pela adulação e a moderação, era suficiente para alarmar as autoridades de

-Berlim: a ironia é, com frequência, a única arma do dissidente numa terra de

censores e espias da polícia, e os agentes do Estado prussiano — sempre

alerta — tinham tendência a detectar troça onde não havia nenhuma. E a im

prensa local foi proibida de pubHcar o discurso. Após uma reunião do Clu

be do Casino oito dias mais tarde, em que os sócios cantaram a Marselhesa

e outros cantos revolucionários, o Governo colocou o edifício sob vigilân

cia policial, repreendeu o governador provincial por permitir tais traiçoei

ras reuniões e designou Heinrich Marx como provocador perigoso.

Qual foi a reacção da mulher perante tudo isto? É bastante provável que

ele lhe tenha ocultado o caso. Henriette Marx não partilhava os apetites in

telectuais do marido: era uma mulher pouco educada -— meio analfabeta,

para dizer a verdade —, cujos interesses começavam e acabavam na família

quanto à qual se inquietava incessantemente. Ela mesma admitia padecer de

«amor maternal excessivo», e uma das poucas cartas sobreviventes que en

viou ao filho — escrita quando ele estava na universidade — comprova am

plamente esse diagnóstico: «Permite-me observar, meu querido Karl, que

nunca deves tomar a limpeza e a ordem como algo de secundário, pois a

saúde e a boa disposição dependem delas. Insiste rigorosamente para que o

teu alojamento seja limpo com frequência, e estabelece um prazo determi

nado para que o façam — e tu, meu querido Karl, esfrega-te um vez por

semana com esponja e sabão. Como é que te arranjas para tomar café, és m

quem o faz ou como é que é? Informa-me, por favor, de tudo sobre a tua casa.»^

A imagem da Sra. Marx como uma pessoa congenitamente inquieta foi con

firmada por Heinrich: «Conheces a tua mãe e sabes como ela é ansiosa...»

Uma vez fugido do ninho, Karl pouco mais teve a ver com a mãe —

excepto quando tentava, sem muito sucesso, extorquir-lhe dinheiro. Muitos

anos mais tarde, depois da morte da amante de Engels, Mary Burns, Marx

20 ^ 0 KARL MARX

enviou ao amigo uma brutal carta de pêsames: «Estou a ser importunado por

causa das propinas e da renda.. . E m ve2 da Mary, não devia ter sido antes

a minha mãe que, de qualquer modo, é um poço de doenças e já gozou a sua

parte de vida?»^

Karl Marx nasceu no quarto do andar de cima de uma casa localizada em

Brückergasse, 664, uma rua movimentada que vai dar à ponte sobre o rio

Moselle. O pai tinha alugado o prédio há apenas um mês e mudou de casa

quando Karl tinha 15 meses. N o entanto, o local do seu nascimento, do qual

não se lembrava, foi comprado pelo Partido Social Democrata alemão, em

Abril de 1928, e tem sido um museu dedicado à sua vida e época desde então

— à parte um terrível interludio, entre 1933 e 1945, quando foi ocupado pelos

nazis e usado como sede de um dos seus jornais. Depois da guerra, foram

enviadas cartas a solicitar dinheiro para consertar os estragos causados pelos

grosseiros ocupantes. Uma das respostas, datada de 19 de Março de 1947,

vinha assinada pelo secretário internacional do Partido Trabalhista Britâni

co: «Caro camarada, lamento, mas o Partido Trabalhista Britânico não está

preparado, como organização, para apoiar o vosso comité internacional na re

construção da casa de Karl Marx em Treves (o nome de Trier em inglês), pois

os seus recursos são destinados à conservação de monumentos semelhan

tes de Karl Marx em Inglaterra. Fraternalmente vosso, Denis Healey.»

Trata-se de um história incrível: os londrinos procurarão de balde os mo

numentos aos quais Healey «destinou», supostamente, os recursos do seu

partido. Mas, pelo menos, a casa está de pé. A uns cem metros de distância

encontra-se o sítio da antiga sinagoga de Trier, presidida por tantos antepas

sados de Marx. A única marca da sua presença é uma placa num lampião da

esquina, que não necessita ser traduzido: Hier stand die frühere Trierer Synagoge,

die in der Progromnacht im November 1938 durch die Nationalsozialisten i^erstört wurde.

Além da mania de obrigar as irmãs a comer bolos de lama, pouco se sabe

da infancia de Marx. Parece ter sido educado particularmente até 1830, ano

em que foi admitido no Liceu de Trier — cujo director, Hugo Wyttenbach,

era amigo de Heinrich Marx e um dos fundadores do Clube do Casino.

E m b o r a Karl rejeitasse mais tarde os colegas de liceu chamando-lhes

«campónios», os professores eram, na sua maior parte, humanistas liberais

que faziam o que podiam para civilizar os saloios. E m 1832, depois de uma

manifestação em Hambach a favor da liberdade de expressão, a polícia in

vadiu o liceu e encontrou literatura sediciosa — incluindo discursos do

o MARGINAL ^ ^ 21

protesto em Hambach — a circular por entre os alunos. Um rapaz foi pre

so e Wyttenbach foi colocado sob estreita vigilância. Dois anos mais tarde,

a seguir ao nefasto jantar no Casino de Janeiro de 1834, os professores de

Matemática e Hebreu foram acusados dos ignóbeis crimes de «ateísmo» e

«materialismo». Para diminuir a influência de Wyttenbach, as autoridades no

mearam um sinistro reaccionário chamado Loers como co-director.

«Acho a posição do bom Sr. Wyttenbach extremamente dolorosa», dis

se Heinrich ao filho depois de assistir à investidura de Loers. «Podia ter cho

rado pela ofensa infligida a este homem, cuja única falta é ser demasiado bon

doso. Manifestei-lhe o melhor que podia a alta estima que sinto por ele e

disse-lhe, entre outras coisas, que tu lhe és muito dedicado.. .»^°

Mas quando Marx provou a sua devoção recusando-se a falar com o in

truso conservador, apanhou um raspanete do pai.

«O Sr. Loers levou muito a peito o não te teres despedido dele», escre

veu Heinrich depois de Karl se ter matriculado em 1835. «Tu e o Clemens

(outro rapaz) foram os únicos. . . Fui obrigado a recorrer a uma pequena

mentira e dizer-lhe que tínhamos lá ido quando ele se encontrava ausente.»"

Era esta a verdadeira índole de Heinrich, colérico mas tímido, infeliz mas

obediente, sempre a deixar a prudência sobrepor-se ao atrevimento.

O filho, ao contrário, preferia adoptar a atitude do tigre.

«As reformas sociais nunca são concretizadas pela fraqueza dos fortes»,

escreveu Karl Marx ao avisar a classe operária para não esperar quaisquer

gestos filantrópicos por parte dos capitalistas. «Mas sempre pela forças dos

fracos.»^^

Podia argumentar-se que ele personificava este princípio. Embora o seu

poder intelectual raramente vacilasse, o corpo que continha esta tremenda

fecundidade criativa era realmente um recipiente bastante fraco. Era quase

como se ele quisesse testar nele mesmo, desafiando as suas limitações físi

cas e procurando a força da sua própria fraqueza, o que advogava para o

proletariado.

Até mesmo em pleno vigor da juventude — antes da pobreza, das insó

nias, da má comida, bebida excessiva e do tabaco o ter debilitado —, ele era

um espécime frágil.

«Nove cursos parece-me muito e eu não gostaria que fizesses mais do que

o teu corpo e espírito podem suportar», aconselhou Heinrich Marx pouco

depois de o filho entrar, aos 17 anos, na Universidade de Bona, em 1835. «Ao

alimentares saudável e vigorosamente o teu espírito, não te esqueças de que

22 *i!*e I<CARLMARX

neste mundo miserável ele é sempre acompanhado pelo corpo, o qual de

termina o bem-estar de toda a máquina. Um estudante doente é o ser mais

infeliz da Terra. Por conseguinte, não estudes mais do que a tua saúde pode

suportar.»^^

Karl não ligou, nem nessa altura nem nunca: e, anos mais tarde, traba

lhou muitas vezes noites inteiras à custa de cerveja barata e charutos infectos.

Com a sua habitual franqueza impetuosa, o rapaz retorquiu que se sentia de

facto doente — o que provocou outro severo sermão do seu polónio pai.

«Os pecados de juventude, em qualquer recreação imoderada, ou até

mesmo nociva, são horrivelmente punidos. Aqui, o Sr. Giinster é um triste

exemplo disso. É verdade que no caso dele não se trata de vício, mas o ta

baco e a bebida deram-lhe cabo dos pulmões e ele dificilmente resistirá até

ao Verão.»^'*

A mãe, inquieta como sempre, incluiu a sua própria lista de recomenda

ções: «Tens de evitar tudo o que possa piorar a tua saúde; não deves excitar-

-te muito, beber demasiado vinho ou café, comer comida picante, muita pi

menta ou outros condimentos. Não deves fumar nem deitar-me muito tarde.

E levanta-te cedo. Tem também cuidado para não apanhares frio, querido

Karl, e não dances até te sentires novamente bem.»^^

Pode-se sem risco afirmar que a mãe não era lá muito divertida.

Pouco depois dos 18 anos, Marx foi dispensado do serviço militar por

causa de problemas respiratórios, embora ele possa muito bem ter exagera

do o seu estado físico. (A suspeita de cunhas é fortalecida por uma carta do

pai aconselhando-o a como escapar à tropa: «Querido Karl, se puderes, tenta

arranjar aí certificados de médicos competentes e conhecidos. Podes fazê-

-lo com boa consciência... Mas sê consistente com a tua consciência e não

fumes demasiado.») A suposta incapacidade não prejudicou certamente que

ele se divertisse à grande. Um «Certificado de Dispensa» oficial, emitido de

pois de Marx ter passado um ano na Universidade de Bona, apesar de lou

var os seus sucessos académicos («zelo e atenção excelentes»), notava que ele

«tinha sido castigado com um dia de detenção por perturbar a paz à noite em

estado de embriaguez... Foi subsequentemente acusado de transportar armas

proibidas em Colónia. A investigação ainda está pendente. Não se suspeita que

tenha participado em qualquer associação proibida de estudantes».^''

As autoridades universitárias não sabiam da missa a metade. É verdade

que o Clube dos Poetas — ao qual se juntou no primeiro trimestre — não

era uma «associação proibida», mas também não era tão inocente como o

o MARGINAL ( Ä J 23

nome sugeria: os debates sobre poesia e retórica constituíam uma cobertu

ra para conversas mais sediciosas. «Como podes bem acreditar, o teu peque

no círculo agrada-me, muito mais do que as reuniões nas cervejarias», escre

veu Heinrich Mark, imaginando, muito satisfeito, que o seu rapaz aproveitava

a ocasião para discutir literatura.

Dava-se o caso de Marx também não ser nenhum estranho nas cerveja

rias. Era co-presidente do Clube Taberna de Trier, sociedade com cerca de

30 estudantes universitários da sua cidade natal, cuja principal ambição era

embebedarem~se o mais frequente e ruidosamente quanto possível: foi de

pois de uma dessas pândegas que o jovem Karl se viu detido durante 24

horas, embora a prisão não tivesse impedido os companheiros de lhe trazer

ainda mais bebidas alcoólicas e baralhos de cartas para amenizar a senten

ça. Em 1836, houve uma série de zaragatas entre a malta de Trier e um des

tacamento de jovens do Borussia Korps, que obrigavam os estudantes ca

lões a ajoelhar e a jurar fidelidade à aristocracia prussiana. Marx comprou

uma pistola para se defender contra estas humilhações e, quando visitou

Colónia, em Abril, a «arma proibida» foi descoberta no decorrer de uma

rusga policial. Só uma suplicante carta de Heinrich Marx a um juiz de Colónia

é que persuadiu as autoridades a não apresentar queixa. Dois meses mais tar

de, depois de mais um confronto com o Borussia Korps, Marx aceitou um

desafio para um duelo. O resultado deste combate entre um aplicado estudante

míope e um soldado treinado era demasiado previsível, e Marx teve sorte em

safar-se com apenas um pequeno ferimento acima do olho esquerdo.

«Os duelos estão assim tão interligados com a filosofia?», perguntou-lhe

o pai em estado de desespero. «Não deixes que essa inclinação, e, no caso de

não ser inclinação, essa loucura, se enraíze em ti. Poderás vir a privar-te e aos

teus pais das grandes esperanças que a vida oferece.»"

Após um ano de «feroz rebalderia em Bona», Heinrich Marx ficou todo

contente por autorizar o filho a passar para a Universidade de Berlim, onde

haveria menos tentações extracurriculares.

<A-qui não há bebidas, nem duelos, nem agradáveis passeios em grupo»,

tinha observado o filósofo Ludwig Feuerbach dez anos antes quando ali es

tudava. «Em nenhuma outra universidade se encontra um tal paixão pelo tra

balho .. . Comparadas com este templo de estudos, as outras universidades

parecem tabernas.»

Não admira que Heinrich estivesse tão ansioso para assinar os documen

tos necessários a fim de consentir à mudança.

24 * ^ KARI.MARX

«Não só concedo a devida autorização ao meu filho, Karl Marx, como

também é de minha vontade que ele seja admitido na Universidade de Berlim

no próximo trimestre para ali prosseguir os seus estudos de Direito...»

Quaisquer esperanças de que o caprichoso jovem poderia agora concen-

trar-se nos esmdos sem distracções caíram rapidamente por terra: Karl Marx

tinha-se apaixonado.

O único amigo dos tempos da escola de Trier com quem Marx manteve

ligações em adulto era Edgar von Westphalen, um pateta amigável e diletante

com ideias revolucionárias. Esta amizade duradoura nada tinha a ver com as

qualidades de Edgar e tudo a ver com a irmã dele, a encantadora Johanna

Bertha Julie Jenny von Westphalen, mais conhecida por Jenny, a qual veio a

ser a primeira e única Sra. Karl Marx.

Era um excelente partido. Ao revisitar a sua cidade natal muitos anos mais

tarde, Karl escreveu afectuosamente a Jenny: «Todos os dias e em todos os la

dos, perguntam-me pela quondam mais "bonita rapariga de Trier" e a "rainha dos

bailes". É um enorme prazer para um homem ter uma mulher que vive assim,

como uma "princesa encantada", na imaginação de uma cidade inteira.»^**

Pode parecer surpreendente que uma princesa de 22 anos, da classe di

rigente prussiana — filha do barão Ludwig von Westphalen —, se tivesse

apaixonado por um espertalhão burguês judeu, quatro anos mais novo do

que ela e não por um impetuoso nobre de farda bordada e fortuna pessoal;

mas Jenny era uma rapariga inteligente e livre pensadora que achou a fan-

farronice intelectual de Marx irresistível. Depois de se livrar do seu preten

dente oficial, um respeitável jovem alferes, ficou noiva de Karl durante as

férias de Verão de 1836. Ele sentiu-se tão orgulhoso que não conseguiu dei

xar de se gabar diante dos pais, mas a notícia foi mantida secreta da família

de Jenny durante quase um ano.

Os motivos desta dissimulação são suficientemente óbvios à primeira

vista. O barão Ludwig von Westphalen, funcionário superior do governo

provincial da Prússia real, era um homem de linhagem duplamente aristo

crática: o pai tinha sido chefe do Estado-Maior durante a guerra dos Sete

Anos, e a mãe escocesa, Anne Wishart, descendia dos condes de Argyll. Um

puro-sangue de tal modo magnífico dificilmente desejaria que a filha se

encabrestasse com o descendente plebeu de uma longa linhagem de rabinos.

Um exame mais minucioso, contudo, revela que tanto segredo é inexpli

cável, pois Von Westphalen não era snobe nem reaccionário. Após um ca-

o MARGINAL ^ß 25

samento aristocrata convencional, que tinha produzido quatro convencionais filhos aristocratas — um dos quais, Ferdinand, se tornou mais tarde num diabólicamente tirânico ministro do Interior do Governo prussiano — , o barão estava agora casado com Caroline Heubel, uma decente e modesta mulher da classe média, que era mãe de Jenny e Edgar (A sua primeira mulher, Lisette Velthéim, morrera em 1807). Como já não era obrigado a dar--se ares nem graças ou a preocupar-se com o seu estatuto social, as qualidades naturais do barão Ludwig eram mais evidentes — afável, culto e liberal e benigno. Como protestante num cidade católica, pode ter-se sentido um marginal; simpatizava, certamente, com os párias da vida. Nos relatórios oficiais que enviava para Berlim, chamava a atenção sobre a «grande e crescente pobreza» das classes mais baixas de Trier, mas sem apresentar motivos nem propor soluções. Era um espécime quase perfeito do conservador Hberal bem intencionado, pesaroso pelas privações dos pobres, mas desfrutando as regaKas da sua própria vida.

Assim como Heinrich Marx, para dizer a verdade. Os dois homens co-nheceram-se pouco depois de Von Westphalen ser colocado em Trier, em 1816, e descobriram que tinham muito em comum, incluindo o gosto pela literatura e a filosofia do século das Luzes. Apesar de indubitavelmente monárquicos e patriotas, ambos eram favoráveis — soffo voce e com extrema delicadeza — a algumas reformas moderadas que pudessem temperar os excessos do absolutismo prussiano. Como Henrich Marx, Ludwig von Westphalen tornou-se membro do Clube do Casino e foi, a partir de então, tratado com circunspecta suspeita pelos seus superiores em BerHm.

As duas mulheres nada tinham em comum. Caroline von Westphalen era uma anfitriã generosa e viva, sempre a organizar leituras de poesia ou noites musicais, enquanto Henriette Marx era obtusa, inarticulada e socialmente desajeitada. Para os filhos Marx, a casa dos Von Westphalen, em Neustrasse, era um refúgio de luz e vida. Sophie Marx e Jenny von Westphalen foram amigas íntimas durante a maior parte da infância: quando Jenny, que contava então cinco anos, viu pela primeira vez o seu futuro marido, ele era ainda um bebé de colo. Como o irmão dela, um ano mais velho que Karl, Jenny foi enfeitiçada pelos olhos escuros desta criança dominadora («ele era um tirano terrível») e nunca mais escapou.

O barão começou igualmente a reparar no precoce amigo dos filhos. Ao contrário do seu próprio filho, Edgar, o rapazinho Marx tinha fome de conhecimento e a sua rápida inteligência permitia-lhe digeri-lo com toda a facilidade. Nos longos passeios que davam juntos. Von Westphalen recitava

26 * ^ KARL MARX

longas passagens de Homero e Shakespeare ao seu jovem companheiro. Marx veio a saber de cor grande parte da obra de Shakespeare — e utiliza-va-a com bom efeito, condimentando os seus escritos de adulto com analogias e citações apropriadas das peças.

«O seu respeito por Shakespeare era ilimitado; fez um minucioso estudo das suas obras e conhecia até mesmo os seus personagens menos importantes», lembrava-se Paul Lafargue, genro de Marx. «Toda a família dele tinha um verdadeiro culto pelo grande dramaturgo inglês; as três filhas sabiam muitos dos seus textos de cor e salteado. Quando, depois de 1848, ele quis aperfeiçoar os seus conhecimentos de inglês, língua que já conseguia 1er, procurou e assentou todas as expressões originais de Shakespeare.»^^

No fim da vida, Marx recordava esses momentos felizes passados com Von Westphalen declamando cenas de Shakespeare — bem como Dante e Goethe — enquanto conduzia a família até Hampstead Heath para o piquenique de domingo.

«As crianças lêem constantemente Shakespeare», disse ele a Engels, com enorme orgulho paternal, em 1856. °

Aos 12 anos, a filha de Marx, Jenny, comparou o seu antigo secretário, Wilhelm Pieper, a Benedick, de Much Ado About Nothing— ao que a irmã de 11, Laura, retorquiu que Benedick era urn homem de espírito e Pieper apenas um palhaço, «e ainda por cima sem graça nenhuma».

No decorrer dos longos anos de exílio, as únicas incursões de Marx na cultura inglesa foram para, de vez em quando, ir ver os grande actores shakespearianos Salvini e Irving. Não é coincidência o facto de uma das filhas de Marx, Eleanor, ter-se dedicado ao teatro e uma outra, a pequena Jenny, ansiar fazer o mesmo. Como o professor S. S. Prawer comentou, toda a gente em casa de Marx era obrigada a viver «em perpétua agitação de alusões à literatura inglesa.»^^ Havia citações para todas as ocasiões — para arrasar um inimigo político, para animar um árido texto sobre economia, para realçar uma piada de família ou dar veracidade a uma emoção intensa. Numa carta de amor escrita à mulher 13 anos depois de se terem casado, Marx revelou mais uma vez a duradoura influência que o barão Von Westphalen tinha exercido sobre ele:

«Estás diante de mim em carne e osso. Levanto-te nos meus braços e beijo-te toda da cabeça aos pés, caindo de joelhos e gritando, ' Amo-te", E amo-te deveras com um amor que o Mouro de Veneza jamais sentiu... Quem entre os meus numerosos caluniadores e viperinos inimigos jamais me censurou de ser chamado para representar o papel do herói romântico

o MARGINAL efM 27

numa peça de segunda ordem? E, conmdo, é verdade. Se os patifes fossem espertos teriam representado "as relações produtivas e sociais" de um lado e, do outro, eu a teus pés. E, por baixo, teriam escrito: "Olhem para esta

9? 99

imagem e para isto. »

A última frase, como Jenny não precisaria que lhe dissessem, era tirada de Hamkt.

Porquê, então, se mostraram Karl e Jenny tão relutantes em falar do noivado aos pais dela? Talvez Karl pensasse que a diferença de idades contaria contra ele: casamentos com mulheres mais velhas ainda eram suficientemente raros para parecerem um crime contra as leis da natureza. Ou talvez temesse que, apesar de toda a sua generosidade de espírito, o barão tentaria dissuadir a sua adorada filha a unir o seu destino ao de um brilhante, mas pusilânime, não conformista. A vida com Karl nunca seria monótona, mas a promessa de estabilidade ou prosperidade era reduzida.

A parte Jenny von Westphalen, a maior paixão da juventude de Max foi por um filósofo morto, G. W. E Hegel. Tal paixão seguiu o mesmo curso de muitos casos amorosos: prudência tímida, a intoxicante excitação do primeiro beijo, rejeição do ser amado à medida que o amor se desvanece. Mas, nos escaninhos da vida adulta, ele manteve-se grato por essa iniciação. Muito depois de repudiar o hegelianismo e declarar a sua independência intelectual, Marx falava com afecto do homem que o tinha emancipado. Tinha ganho o direito de repreender Hegel com a robusta honestidade de um amigo íntimo; mas os estranhos não eram autorizados a tamanha Uberdade.

«Critiquei o aspecto mistificador da dialéctica de Hegel há quase 30 anos, numa altura em que estava ainda na moda», escreveu em 1873. «Mas, quando trabalhava no primeiro volume de O Capital, o grande prazer dos arrogantes, medíocres e rabugentos epígonos que, agora, falam com bazofia na Alemanha culta, era de tratar Hegel como o bravo Moses Mendelssohn na época de Lessing tratava Espinosa, quer dizer, como um "cão morto". Admiti abertamente, por conseguinte, ser discípulo desse considerável pensador e até aqui e aU, no capítulo sobre a teoria do valor, namorisquei com as formas de expressão que lhe eram particulares. A mistificação que a dialéctica sofre nas mãos de Hegel, de modo algum o impede de ser o primeiro a apresentar a sua forma geral de trabalho de maneira consciente e compreensiva.»^^

Era, de facto, muito raro que Marx dirigisse um cumprimento a alguém com quem tinha discordado: normalmente, aqueles que provocavam o seu

28 1 ^ KARL MARX

descontentamento podiam esperar ser chamados asnos e imbecis dali em

diante. Heinrich Heine era uma excepção, pois Marx acreditava que os de

feitos dos grandes poetas deviam ser perdoados; e parece que ele aplicava

a mesma regra às imperfeições dos grandes filósofos. Para os medíocres, con

tudo — poetastros, tolos presumidos, imbecis presunçosos —, nenhum epí

teto era demasiado duro. E ao ver Hegel ser atacado por mentes inferiores,

Marx soube logo que lado tomar.

Sobretudo porque ainda se sentia em dívida para com ele, como confessou

muitos anos mais tarde. Hegel empregou uma metodologia radical para che

gar a conclusões conservadoras. O que Marx fez foi manter a estrutura dia

léctica, descartando a algaraviada mística — como um homem que compra

uma capela desconsagrada e transforma numa moradia secular e habitável.

O que é a dialéctica? Como qualquer criança de escola com um par de

imãs — ou, para o caso, qualquer agência de casamentos — pode confirmar,

os opostos atraem-se. Se assim não fosse, a raça humana já estaria extinta.

A fêmea acasala-se com o macho e, do seu abraço suado, emerge uma nova

criatura que, eventualmente, repetirá o processo. Nem sempre, claro está,

mas de forma suficientemente frequente para assegurar a sobrevivência e o

progresso das espécies.

A dialéctica desempenha a mesma função para o espírito humano. Um

ideia, posta a nu, tem uma atracção apaixonada pela sua antítese, da qual surge

uma síntese, a qual, por sua vez, se torna uma nova tese que será devidamente

seduzida por um novo amante demoníaco. Duas coisas erradas podem dar

uma certa — mas, pouco depois do seu nascimento, essa coisa certa torna-se

noutra errada, que tem de ser sujeita ao mesmo íntimo escrutínio que os seus

antepassados e, desta maneira, seguimos em frente. O próprio entrosamento

de Marx com Hegel era em si mesmo uma espécie de processo dialéctico, do

qual emergiu a criança sem nome que viria a ser materialismo histórico.

É evidente que estou a simplificar; mas somos obrigados a simplificar

Hegel pois, de outro modo, grande parte do seu trabalho permaneceria

impenetravelmente obscuro. Aos 18 anos e recentemente chegado à Univer

sidade de Berlim, o próprio Marx troçou dessa opacidade e ambiguidade

numa série de epigramas intitulados «Sobre Hegel».

«Ensino palavras todas misturadas numa confusão diabólica.

Assim, todos podem pensar o que decidem pensar;

Nunca, pelo menos, se é estorvado por limitações rigorosas.

o MARGINAL iy'%:- 29

Saindo às bolhas do dilúvio, mergulhando do alto da falésia, Assim são as palavras e os pensamentos da Amada que o Poeta concebe; Compreende o que pensa, inventa livremente o que sente. E, assim, todos podem sugar o nutritivo néctar de tal sabedoria; Agora sabem tudo, pois disse-vos uma data de nada!» '*

Marx incluiu o poema num caderno de versos «dedicado ao meu querido pai na ocasião do seu aniversário, como insignificante marca de amor eterno». O velhote deve ter-se deleitado por saber que o filho não tinha sucumbido à epidemia de adoração de Hegel que infectava quase todas as instituições do país. Numa das suas cartas para Berlim, Heinrich preveniu Karl contra a contagiosa influência hegeliana — «Os novos imoralistas que torcem as suas palavras até eles próprios não as ouvirem; que nomeiam produto de génio uma enxurrada de palavras porque é desprovida de ideias.»^^

Era pouco provável que alguém tão infinitamente curioso e argumentador como Karl Marx resistisse por muito tempo. Hegel ocupou a cadeira de filosofia em Berlim desde 1818 até à sua morte, em 1831, e por volta da inscrição de Marx na universidade, cinco anos mais tarde, os seus herdeiros intelectuais ainda se batiam pela herança. Na sua juventude, Hegel tinha sido um simpatizante idealista da Revolução Francesa, mas, a exemplo de tantos outros radicais — então como agora —, acomodou-se quando chegou à meia-idade, acreditando que um homem verdadeiramente maturo deveria reconhecer «a. necessidade objectiva e a natureza razoável do mundo que encontra». O mundo em questão — o Estado prussiano — era uma manifestação completa e final do que ele chamava o Espírito Divino ou Ideia (Geist). Sendo isto assim, não restava mais nada para os filósofos debaterem. Quaisquer outras discussões quanto ao status quo era pura vaidade.

Este tipo de argumento tornou-o naturalmente muito popular entre as autoridades prussianas que o brandiram como prova que o seu sistema de governo era não apenas inevitável como também não podia ser melhorado. «Tudo o que é real é verdadeiro», tinha escrito Hegel; e como não havia dúvidas de que os estado era real, no sentido que existia, devia por conseguinte ser racional e irrepreensível. Aqueles que defendiam o aspecto subversivo dos seus primeiros trabalhos — os chamados jovens hegeiianos — preferiam citar a segunda metade dessa famosa: «Tudo o que é racional é real.» Uma monarquia absoluta, sustida por censores e polícia secreta, era manifestamente irracional e, por conseguinte, irreal, uma miragem, ou espectro, que desapareceria no momento em que alguém ousasse tocar nela.

30 ^ ^ I<CARLMARX

Estudante na Faculdade de Direito de Berlim, Marx tinha um lugar na primeira fila da arena. O seu professor-assistente de jurisprudencia era Friedrich Karl von Savigny, um reaccionario severo e magro que, apesar de não ser hegeliano, era contudo da opinião que o governo e as leis de um país constituíam um processo orgânico que reflectia o carácter e a tradição do seu povo. Pôr em questão o absolutismo prussiano era desafiar a natureza: mais vaüa, então, exigir uma reforma na estrutura dos carvalhos ou a aboHção da chuva. A perspectiva alternativa era representada pelo gorducho e jovial professor de criminologia, Eduard Gans, um hegeliano radical que acreditava que as instituições deveriam antes ser sujeitas a criticismo racional do que a veneração mística.

Durante o seu primeiro ano em Berlim, Marx resistiu à tentação da filosofia: estava ali, afinal de contas, para estodar direito e, além do mais, não tinha ele já rejeitado o diabólico Hegel e toda a sua obra? Distraía-se escrevendo poemas líricos, mas produzia apenas «difusas e rudimentares expressões de sentimento, nada de natural, tudo criado a partir de banalidades, total oposição entre o que é e o que deveria ser, reflexões retóricas em vez de pensamentos poéticos.. .>?'•'' (Quando querelamos com os outros, dizia W. B. Yeats, fazemos retórica; quando querelamos com nós mesmos, fazemos poesia.) Empreendeu então a redacção de uma filosofia do direito — «um trabalho com cerca de 300 páginas» — apenas para deparar com o mesmo velho abismo entre o que é e o que deveria ser: «O que me agradou denominar a metafísica do direito quer dizer, princípios básicos, reflexões, definições de conceitos (estava) separado de todas as leis concretas e de todas as formas concretas da lei.» Pior ainda, não conseguindo estabelecer um ponto de união entre a teoria e a prática, foi incapaz de reconciliar -afirma da lei com o seu conteúdo. O seu erro — pelo qual responsabilizou Savigny — «encontra-se no facto de eu acreditar que matéria e forma podem e devem desenvolver-se separadas uma da outra e, assim, obtive uma forma que não era real, mas algo como uma secretária com gavetas nas quais derramei areia».

O seu trabalho não foi totalmente desperdiçado, «o decorrer desta tarefa», revelou. «Adoptei o hábito de fazer resumos de todos os livros que li» — hábito que nunca perdeu. A lista de leituras desse período mostra a amplitude de tais explorações intelectoais: que outra pessoa acharia que valia a pena fazer um minucioso estudo sobre a História ãaA-ri:e, de Johann Joachim Win-ckelmann, enquanto redigia uma filosofia do direito? Traduziu Germânia, de Tácito, e Tristia, de Ovídio, e «comecei a aprender inglês e italiano sozinho, quer dizer, através de gramáticas». N o semestre seguinte, enquanto devorava

o MARGINAL ^ ^ 31

dúzias de livros de estudo sobre processos civis e direito canónico, traduziu a Retórica, de Aristóteles, leu Francis Bacon e «passei um bom bocado de tempo embrenhado em Reimarus, cujo Hvro sobre o instinto artístico dos animais ocupou deliciosamente o meu espírito».

Tudo, sem dúvida, um bom exercício para o cérebro; mas nem mesmo os animais artísticos podiam salvar a sua magnum opus. Abandonando, desesperado, o manuscrito de 300 páginas, o jovem Karl virou-se novamente para «as danças das Musas e a música dos Sátiros». Escreveu um curto «romance humorístico». Escorpião e Félix, uma torrente absurda de extravagâncias e zombarias que foi obviamente escrita sob a influência de Tristam Shandy, de Lawrence Sterne. Há, todavia, uma passagem que merece ser transcrita:

«Todo o gigante... pressupõe um anão, todo o génio um filisteu obtuso e toda a tempestade no mar — lama, e assim que os primeiros desaparecem, os últimos começam, sentam-se à mesa estendendo arrogantemente as pernas compridas.

Os primeiros são demasiado grandes para este mundo e, assim, são atirados fora; os últimos enraízam-se e ficam, como se pode ver pelos factos, pois o champanhe deixa um travo repulsivo, César, o herói, deixa atrás dele o comediante Octávio, o imperador Napoleão, o rei burguês Luís Filipe...»

Ninguém que escreveu sobre Marx parece ter notado a semelhança entre este conceito chistoso e o famoso parágrafo de abertura do De^oitó Brumário de Euis Bonaparte escrito 15 anos mais tarde:

«Hegel nota algures que todos os factos e personagens de grande importância da história do mundo ocorrem, como se diz, duas vezes. Es-queceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia; a segunda como uma farsa miserável. Caussidière para Danton, Louis Blanc para Robespierre, o Montagne de 1848-1851 para o Montagne de 1793-1795, e o polícia de Londres (Luis Bonaparte) corn a primeira dúzia de tenentes gratos que se juntaram ao pequeno sargento (Napoleão) com o seu bando de marechais! O De^oitó Brumário do idiota para o Dezoito Brumário do génio!»^^

À parte o sugestivo eco, pouco há em Escorpião e Fé/ix que nos detenha; e ainda menos em Oulanem, um excessivo drama em verso que range sob o

32 -í I<CARLMARX

peso da influência de Goethe. Depois destas experiências, Marx aceitou finalmente a morte das suas ambições literárias. «De repente, como se por um toque mágico — oh, tal toque foi primeiro um golpe devastador — avistei o distante reino da verdadeira poesia como um longínquo palácio encantado e todas as minhas criações reduziram-se a nada.» A descoberta tinha-lhe custado muitas noites de insónia e muita angústia. «Um cortina caíra, o meu sancta sanctorum ficou em pedaços e novos deuses tiveram de ser instalados.» Sofrendo de uma espécie de quebra física, o médico mandou-o ir descansar para o campo. Alugou uma casa na pequena aldeia de Stralau, nas margens do rio Spree, perto de Berlim.

Parece ter ficado ligeiramente desequilibrado nessa altura. Esforçando--se ainda para ignorar a voz de sirena de Hegel («a grotesca melodia desafinada de que não gostei»), escreveu um diálogo de 24 páginas sobre religião, natureza e história — apenas para descobrir que «a minha última proposta era o princípio do sistema hegeliano». Tinha sido entregue ao inimigo. «Durante uns dias, o meu dissabor impediu-me de pensar; percorri, furioso, o jardim à beira das águas sujas do Spree que "lava almas e dilui o chá". (Uma citação de Heinrich Heine.) Até fui a uma caçada com o meu senhorio, parti precipitadamente para Berlim e tive vontade de beijar todos os madraços encostados às esquinas.» Curiosamente, o próprio Hegel tinha atravessado uma crise semelhante no período em que andava a renunciar aos seus ideais e a abraçar a «maturidade». O facto de tanto Hegel como Marx terem escrito a fundo sobre o problema da alienação — o afastamento em relação a nós mesmos e à sociedade — não é nenhuma coincidência. N o século XIX, a «alienação» tinha um significado secundário e era sinónimo de perturbação ou insanidade: daí os patologistas mentais (ou «médicos de loucos») serem conhecidos por alienistas.

Enquanto se encontrava em convalescença — restaurando as forças com longos passeios, refeições regulares e deitando-se cedo —, Marx leu Hegel de fio a pavio. Por intermédio de um amigo da universidade foi introduzido no Clube dos Doutores, um grupo de jovens hegeUanos que se encontravam regularmente no café Hippel, em Berlim, onde passavam noites ruidosas a discutir e a beber. Entre os seus membros havia o professor-as-sistente de teologia Bruno Bauer e o filósofo radical Arnold Ruge, ambos viriam a ser colaboradores intelectuais de Marx — e, uns anos mais tarde, os seus piores inimigos.

Na noite de 10 de Novembro de 1837, Marx escreveu uma extensa carta ao pai descrevendo a sua conversão e as peregrinações intelectuais que o

o MARGINAL « * ^ 33

tinham conduzido a isso. «Há momentos na vida de uma pessoa que são

como postos fronteiriços marcando o fim de um dado período, mas que, ao

mesmo tempo, indicam claramente uma nova direcção. E m tais momentos

de transição sentimo-nos compelidos a encarar o passado e o presente com

os olhos de águia do pensamento a fim de nos tornarmos conscientes da

nossa posição. Com efeito, a própria história gosta de olhar para trás dessa

maneira para avaliar os acontecimentos...»

Nenhuma falsa modéstia nestes propósitos: aos 19 anos, ele já estava a

experimentar a roupa de um Homem de Destino e a descobrir que lhe iam

lindamente. Agora, que iniciara a fase seguinte da vida, queria erguer um mo

numento ao que tinha vivido... «e onde encontrar lugar mais sagrado do que

o coração de um pai, o juiz mais misericordioso, o simpatizante mais íntimo,

o sol de amor cujo fogo caloroso é sentido no âmago dos nossos esforços!»

A lisonja florida não o levou a lado nenhum. Heinrich não se mostrou

complacente nem misericordioso ao 1er, com crescente horror, toda a his

tória das aventuras intelectuais do filho. Ter um hegeliano na família era su

ficientemente vergonhoso; mas o pior era dar-se conta de que o rapaz tinha

andado a desperdiçar tempo e talento com a filosofia, quando deveria uni

camente ter-se concentrado para obter um bom diploma de direito e arran

jar um emprego lucrativo. Não tinha ele nenhuma consideração pelos seus

pobres pais? Nenhuma gratidão para com Deus que o tinha abençoado com

tantos e magníficos dons naturais? E a sua responsabilidade para com a

futura mulher — «uma rapariga que, dados os seus notáveis méritos e a sua

posição social, fez um enorme sacrifício ao abandonar as suas esperanças e

brilhante situação por um futuro incerto e sem fulgor acorrentando-se ao

destino de um homem mais novo»? Mesmo que Karl não se preocupasse

com os nervos da mãe e o pai doentes, devia certamente sentir-se obrigado a

assegurar um futuro feliz e próspero à Hnda Jenny; e isso dificilmente poderia

ser conseguido a 1er livros sobre animais artísticos num quarto cheio de fumo.

«Que calamidade!!! Desordem, incursões em todos os departamen

tos do conhecimento, ruminações sorumbáticas à luz bruxuleante de

uma lamparina, andar por aí descomposto e despenteado numa toga de

letrado em vez de procurar distracção num copo de cerveja; compor

tamento insociável sem nenhum respeito pelo mínimo decoro . . . E é

aqui, nesta oficina de erudição insensata e inadequada, que os frutos

que te hão-de refrescar, a ti e aos teus entes queridos, vão amadurecer

34 1 ^ KARL MARX

e a colheita que servirá para cumprires as tuas sagradas obrigações será

armazenada!?»^'

Esta mordaz repreensão — a qual também é uma descrição precisa dos

métodos de trabalho usados por Marx durante toda a vida — foi dada em

Dezembro de 1837, quando Heinrich já se encontrava gravemente doente

com tuberculose. Soa como o ultimo grito desesperado de um moribundo

que pôs todas as esperanças na geração seguinte — apenas para ver essas es

peranças serem amarfanhadas como uma folha de papel inútil. Fortalecen-

do-se com um punhado de comprimidos receitados pelo médico, ele lançava

uma chuva de queixas ao filho desalmado. Karl raramente respondia às cartas

dos pais; nunca se informava da sua saúde e, num ano, gastara quase 700

táleres do dinheiro deles, «enquanto os ricos gastavam menos de 500»; tinha

enfraquecido o corpo e o espírito com abstracções e «criado monstros»;

nunca regressava a casa durante as férias e ignorava os irmãos e irmãs. Até

mesmo Jenny von Westphalen, que anteriormente fora louvada até aos pín

caros, revelava-se agora como outro objecto de irritação: «Mal se tinham

acabado as tuas loucas andanças em Bona, mal te tinhas lavado dos teus

antigos pecados — os quais eram realmente inúmeros — quando, para nosso

espanto, surgiu a tua paixão... Ainda tão novo, desHgaste-te da tua famíHa...»

O que era verdade; mas este rosário de queixumes dificilmente serviria para

os reunir. Os pais de Karl suplicaram-Ihe que viesse passar uns dias em Trier

durante as férias da Páscoa de 1838, mas ele recusou.

A verdade era que Marx tinha abandonado a família. A distância entre eles

pode ser avaliada por uma carta de Heinrich, de Março de 1837, em que su

geria que Karl escrevesse uma ode heróica para ganhar nome: «Deveria con

tribuir para honrar a Prússia e proporcionar a oportunidade de atribuir um

papel ao génio da monarquia. . . Se for executada com espírito patriótico

alemão e profundidade de sentimentos, uma tal ode seria em si suficiente para

estabelecer os alicerces de uma reputação.» Julgava realmente o velho homem

que o filho queria glorificar a Alemanha e a sua monarquia? Talvez não.

«Posso apenas aconselhar-te», concedeu lamentosamente. «Superaste-me;

nesta questão, és, em geral, superior a mim e, por isso, deixo que decidas

como quiseres.»

Heinrich Marx morreu aos 57, a 10 de Março de 1838. Karl não assistiu

ao funeral. A viagem de Berlim seria demasiado longa, explicou, e tinha

coisas mais importantes para fazer.

o PEQUENO JAVALI SELVAGEM

Ao longo dos três anos passados na Universidade de Berlim, Marx raramente foi às aulas e estava com frequência endividado. A morte do pai significava o fim de uma mensalidade regiilar, mas também aliviava a pressão paterna de estudar direito.

«Seria estúpido dedicares-te a uma carreira prática», aconselhou-o Bruno Bauer. <A. teoria é, agora, a prática mais forte e somos absolutamente incapazes de predizer até que ponto se tornará prática.»

A missão dos jovens hegelianos era infiltrarem-se na academia e estabelecer as suas teorias como a nova forma de conhecimento. Marx começou a trabalhar numa tese de doutoramento, que o qualificaria para o posto de professor-assistente, sobre o tema «A Diferença entre as Filosofias Demócrito e Epicurista».

Não podia ter escolhido um momento menos propício, pois coincidia com uma nova e meticulosa purga da ala esquerda hegeliana. Eduard Gans, o último hegeliano da Faculdade de Direito, morreu inesperadamente em 1839 e foi substituído pelo severo reaccionário Julius Stahl. O próprio Bauer foi expulso do departamento de teologia pouco depois e obrigado a procurar refúgio na Universidade de Bona. Em 1836 Bauer tinha afirmado, com certa veemência, que a religião deveria manter-se acima e para além do criticismo filosófico e, agora, proclamava o seu ateísmo aos quatro ventos. Recomendou vivamente a Marx que continuasse a dissertação e que se juntasse a ele em Bona o mais depressa possível. Outro jovem radical profetizou que «se Marx, Bruno Bauer e Feuerbach se juntassem para fundar uma revista teofilosófica, Deus teria todo o interesse em pedir a protecção de todos os anjos, porque estes três iriam certamente expulsá-lo do céu.»^

36 ^ « 8 KARL MARX

Felizmente, Deus tinha amigos prussianos que ocupavam cargos impor

tantes e, depois da subida ao trono de Frederico Guilherme IV, em 1840, a

perseguição aos dissidentes duplicou, sendo imposta rigorosa censura a to

das as publicações e a liberdade académica suprimida.

Perdido na inóspita cidade de Berlim, Marx já não se dava ao trabalho de

ir às aulas. D e dia, ficava a 1er, a escrever e a fumar nos seus aposentos e, à

noite, discutia e divertia-se com as almas gémeas que frequentavam o Clube

dos Doutores. Embora o seu estudo de Demócrito e Epicuro pudesse pa

recer suficientemente inofensivo, ele sabia que não valia a pena submeter a

sua tese aos professores de Berlim — sobretudo porque seria minuciosamen

te examinada por F W Von Schelling, velho filósofo anti-hegeHano que, por

ordem pessoal do novo rei, entrara para a universidade em 1841, a fim de

extirpar influências daninhas. Apesar da aparente aridez do tópico de Marx,

o estudo comparativo de Demócri to e Epicuro era uma obra original e

ousada, na qual ele se propunha provar que a teologia devia ceder o lugar à

superior sabedoria da filosofia e que o cepticismo haveria de triunfar do

dogma. Expôs o seu argumento na primeira página como um desafio:

«Enquanto uma gota de sangue pulsar no seu coração totalmente Hvre

e conquistador do mundo, a filosofia há-de constantemente bradar aos

seus oponentes o grito de Epicuro: "A impiedade não consiste em des

truir os deuses da multidão, mas sim em atribuir aos deuses as ideias da

multidão." A filosofia não esconde tal coisa. A proclamação de Prome

teu — "Numa palavra, odeio todos os deuses." — é a sua própria pro

fissão de fé, o seu próprio lema contra todos os deuses do céu e da Terra

que não reconhecem a consciência humana como sendo a divindade

máxima. Além desta, não haverá nenhuma outra.»^

N o espírito de travessura beligerante que viria a ser uma particularidade

das suas polémicas posteriores, Marx acrescentava um pequeno apêndice

para troçar da perda de fé liberal do seu tutor. Citando um ensaio que

Schelling tinha escrito há mais de 40 anos — «Chegou o momento de pro

clamar a liberdade do espírito à melhor parte da humanidade e deixar de to

lerar que eles deplorem a perda das suas correntes» —, perguntava: «A al

tura já tinha chegado em 1795, e, então, no ano de 1841?»

Schelling não teve a possibilidade de responder. Marx decidiu submeter

a tese à Universidade de Jena, a qual tinha a reputação de conceder diplomas

o PEQUENO JAVALI SELVAGEM o ( ^ 37

sem debate nem atrasos. Foi obrigado a incluir o certificação de dispensa de

Bona (que mencionava as estroinices com armas de fogo e copos) e uma

referência dos plenipotenciários do governo real da Universidade de Berlim

que não encontraram «nada de particularmente desfavorável quanto a dis

ciplina», a não ser que «em várias ocasiões, ele foi processado por dívidas».

O director do departamento do Filosofia de Jena, o Dr. Carl Friedrich Bach

mann, decidiu que essas infracções insignificantes podiam ser descartadas

pois o ensaio sobre Demócrito e Epicuro «dá provas de tanta inteligência e

perspicácia quanto erudição e, por isso, considero o candidato por excelên

cia digno de mérito». A 15 de Abril de 1841, apenas nove dias depois de ter

enviado a sua dissertação para Jena, Karl Marx doutorou-se em Filosofia.

HerrDoktorMatx estava agora preparado para se lançar no mundo. Mas,

no ano seguinte, andou numa viravolta entre Bona, Trier e Colónia, aparen

temente sem saber o que fazer. A tese fora dedicada «ao seu querido pater

nal amigo, Ludwig von Westphalen... como marca de amor filial» e, no de

correr de várias visitas a Tier, ignorou significativamente a mãe, dedicando-se

ao barão doente (o qual viria a falecer em Março de 1842) e à paciente Jenny,

cuja adoração pelo seu «pequeno javali selvagem» era tão intensa como

dantes, apesar das suas Jongas ausências.

«O meu pequenino coração está tão repleto, tão tl"ansbordante de amor,

desejo e ardentes saudades de ti, meu infinitamente amado», escreveu. «É

certo, não é, que posso câsar-me contigo?»^ Claro, claro concordava ele, mas

ainda não. O casamento teria de ser adiado até arranjar um emprego remu

nerado, pois a desgraçada da mãe tinha-lhe cortado a mesada e retinha a sua

parte da herança de Heinrich Marx.

E m Julho de 1842, Marx foi morar com Bruno Bauer em Bona, onde os

dois depravados passaram um tumultuoso Verão a chocar a burguesia local

— embriagando-se, rindo na igreja, cavalgando montados em burros atra

vés das ruas da cidade e (ainda mais subversivamente) redigindo um panfleto

anónimo, «A última Trompeta do Juízo Final contra o Ateu e Anticristo

Hegel». A primeira vista, tratava-se de um piedoso ataque contra Hegel, es

crito por um cristão devoto e conservador, para provar que ele era ateu re

volucionário, mas a sua verdadeira intenção, assim como a identidade dos au

tores, em breve se tornava evidente. Um jornal hegeliano comentou com ar

entendido que todos os bauer (camponês, em alemão) perceberiam o verda

deiro significado. Bruno Bauer foi expulso da universidade e, com ele, de

sapareceu a última possibilidade de Marx obter um cargo académico.

38 ^ B KARL MARX

«Tenho de ir para Colonia dentro de uns dias, pois acho intolerável a pro

ximidade dos professores de Bona», disse Marx ao filósofo hegeliano radi

cal, Arnold Ruge, em Março de 1842. «Quem desejaria estar sempre a falar

com texugos intelectuais, gente que estuda apenas no intuito de encontrar

impasses ao virar de todas as esquinas do mundo!»'*

Um mês mais tarde, mudava de ideias: «Abandonei o plano de me ins

talar em Colónia. A vida é muito barulhenta para o meu gosto e o grande

número de amigos que lá tenho não é bom para quem estuda filosofia.. .As

sim, continuo por enquanto a residir em Bona; seria uma pena, afinal de

contas, se ninguém ficasse aqui e os homens sagrados não tivessem com

quem se 2angar.»^

Mas a atracção de Colónia era difícil de resistir. O «barulho» de que ele

se queixava era como um eco das reuniões do Clube dos Doutores no café

Hippel — a principal diferença era a qualidade das bebidas.

«Como estou contente que te sintas feliz», escreveu Jenny a Karl em

Agosto de 1841. «E que bebas champanhe em Colónia, que haja aí clubes

hegelianos e que tenhas andado a sonhar.. .»^

O champanhe parecia ser um lubrificante mais apropriado do que a cer

veja bebida em BerHm: Colónia era a maior e mais rica cidade da Renânia,

a qual era, por sua vez, a província mais política e industrialmente avançada

de toda a Prússia, e os banqueiros e homens de negócios locais tinham re

centemente começado a reivindicar uma forma de governo mais adequada

a uma economia moderna do que o antiquado e asmático sistema da monar

quia absoluta e a opressão burocrática sob a qual trabalhavam. Como o

próprio Marx assinalou muitas vezes anos mais tarde, a natureza da socie

dade é ditada pelas suas formas de produção; e agora que o capitalismo

industrial se estabelecera, a conversa nos bares de Colónia era a de que a de

mocracia, uma imprensa livre e uma Alemanha unificada tinham de ser es

tabelecidas. Não constituía portanto nenhuma surpresa que a cidade atraísse,

como um imã, os pensadores heréticos e os boémios descontentes que

ofereciam a riqueza do seu conhecimento em troca do conhecimento da ri

queza dos magnatas. O filho desta união era Rheinische Zeitung, jornal Uberal

fundado no Outono de 1841 por um grupo de abastados fabricantes e finan

ceiros (incluindo o presidente da Câmara de Comércio de Colónia) para de

safiar o conservador e lúgubre Kölnische Zeitung.

Retrospectivamente, era inevitável que Marx escrevesse para esse jornal

e viesse rapidamente a ser o seu génio. Mas, embora o Marxismo tenha sido

o PEQUENO JAVALI SELVAGEM „v -:- 39

frequentemente caricaturado como uma doutrina de «inevitabilidade histó

rica», ele sabia muito bem que os destinos individuais não são antecipada

mente ordenados — embora tivesse tendência para subestimar a importância

dos acasos e das coincidências na formação de uma vida. O que é que teria

acontecido se Bruno Bauer não tivesse sido expulso da universidade? E se

o Dr. Marx tivesse encontrado uma sinecura universitária em vez de ser

obrigado —faute de mieux-— a exprimir a sua irrequieta inteligência através

do jornalismo?

A sorte pode tê-lo ajudado a decidir o seu destino; mas era uma sorte que

ele procurara. Isto era mais um desses postos fronteiriços que marcam os

territórios inexplorados. Hegel tinha servido os seus objectivos e, desde que

deixara Berlim, os pensamentos de Marx tinham passado do idealismo para

o materialismo, do abstracto para o real.

«Como toda a verdadeira filosofia é a quintessência intelectual da sua épo

ca», escreveu em 1842. «Deve chegar uma altura em que a filosofia, não ape

nas internamente pelo seu conteúdo mas também externamente através da sua

forma, entra em contacto e em interacção com o mundo real do seu dia.»^

Tinha acabado por desprezar os argumentos confusos e nebulosos dos

liberais alemães «que pensam que honram a liberdade colocando-a no

firmamento estrelado da imaginação e não no solo firme da realidade».^

Graças a esses sonhadores etéreos, a liberdade na Alemanha não era mais do

que uma fantasia sentimental. A nova direcção tomada por Marx requeria,

evidentemente, outro exaustivo e fatigante curso para se educar a si mesmo,

mas isso não desencorajava um autodidacta tão insaciável como ele.

Compôs o seu primeiro ensaio jornalístico em Fevereiro de 1842, no

decorrer de uma visita ao moribundo barão Von Westphalen em Trier, e

enviou-o para Arnold Ruge, em Dresden, a fim de ser incluído no novo jor

nal dos Jovens Hegelianos, oDeutsche Jahrbücher. O artigo era uma brilhante

polémica contra as últimas instruções de censura emitidas pelo rei Frederico

Guilherme IV — e, com gloriosa se não intencionada ironia, o censor proi-

biu-o imediatamente. E o próprio DeutcheJahrbücher íoi encerrado meses mais

tarde por ordem do Parlamento federal.

Resmungando contra o «repentino restabelecimento da censura saxó

nica», Marx esperava ter melhor sorte em Colónia, onde vários dos seus ami

gos já estavam instalados no Rheinische Zeitung. O director, Adolf Rutenberg,

era um camarada que gostava da pinga do Clube dos Doutores (e cunhado

de Bruno Bauer), mas, como estava quase sempre embriago, o fardo de

40 ^ 0 KARL MARX

publicar o jornal recaía a maior parte das vezes sobre Moses Hess, socialista jovem e rico. Mais tarde, Hess tornou-se um feroz inimigo, mas, nessa época, a sua atitude para com Marx era de reverência. Escreveu o seguinte ao seu amigo Berthold Auerbach:

«Ele é um fenómeno e, apesar das nossas actividades serem bastante semelhantes, impressionou-me enormemente. Em resumo, podes prepararte para conhecer o maior filósofo — e talvez o único genuíno — da nossa geração. Quando se dá a conhecer publicamente, quer por escrito ou nas salas de conferência, atrai a atenção de toda a Alemanha... O Dr. Marx (tal é o nome do meu ídolo) ainda é muito jovem — cerca de 24 anos no máximo. Vai dar o coup de grâce a religião medieval e à filosofia; combina a mais profunda seriedade filosófica com a ironia mais mordaz. Imagina Rousseau, Voltaire, Holbach, Lessing, Heine e Hegel fundidos numa só pessoa... Digo "fundidos", não justapostos —, e tens o Dr. Marx.»'

Nessa altura, Marx teve o mesmo efeito sobre quase toda a gente que encontrou. Apesar dos homens do Clube dos Doutores de BerHm e do Círculo de Colónia serem oito ou dez anos mais velhos do que ele, a maior parte tratava-o com imenso respeito. Quando Friedrich Engels chegou a Berlim para fazer o serviço militar poucos meses depois de Marx ter partido, descobriu que o jovem renano já era uma lenda. Um poema escrito por Engels em 1842 conta com uma viva descrição do seu futuro colaborador — que ele ainda não conhecia —, baseada inteiramente nas recordações admirativas dos seus companheiros intelectuais:

Quem enfrenta tudo com feroz impetuosidade? «Um tipo trigueiro de Trier, uma reconhecida monstruosidade. Não desliza nem dá pulinhos, mas move-se aos saltos. Divagando aos brados. Como se fosse agarrar e puxar a imensa tenda do Céu cá para baixo. Abre os braços e estende-os para o céu. Abana o punho violento, delira freneticamente como se dez mil diabos o agarrassem pelos cabeios'.» *

Era, de facto, moreno (daí ser alcunhado Mouro) e a sua pele escura era realçada pelo espesso cabelo preto que parecia crescer de quase todos os poros das faces, braços, orelhas e nariz.

o PEQUENO JAVALI SELVAGEM Í * ^ 41

É fácil deixar escapar o óbvio e talvez seja por isso que tão poucos autores que escreveram sobre Marx repararam no que estava à vista": ele era, tal como Esaú, um homem peludo. No entanto, na recordação de todos qtie o conheceram, o efeito impressionante dessa juba magnífica é repetidas vezes mencionado. Eis a opinião de Gustav Mevissen, um homem de negócios de Colónia, em 1842: «Karl Marx, de Trier, era um homem corpulento de 24 anos, cujo espesso cabelo preto jorrava das faces, dos braços, do nariz e das orelhas. Era apaixonado, dominador, impetuoso, e a confiança que tinha em si mesmo era ilimitada...» E o poeta George Herwegh, que veio a conhecer Marx em Paris, disse: «Cabelo preto luxuriante ocultava-Ihe a testa. Poderia desempenhar soberbamente o papel do último dos escolásticos.» Pavel Annenkov, que encontrou Marx em 1846: «A sua aparência era notável. Tinha uma cabeleira muito preta e mãos peludas... parecia um homem com o direito e o poder de impor respeito.» Friedrich Lessner: «Tinha uma fronte alta muito bem desenhada, o cabelo espesso e preto de azeviche... Marx era um líder nato.» Cari Schurz: «Homem um pouco corpulento de testa ampla, cabelo muito preto e olhos escuros cintilantes que atraía imediatamente a atenção. Tinha a reputação de ser muito letrado...» Wilhelm Liebknecht, ao escrever em 1896, ainda tremia ao lembrar-se do momento em que, 50 anos antes, tinha «enfrentado o olhar daquela cabeça leonina de juba negra».

Esta exuberância de aparência negligente era deliberadamente estudada. Tanto Marx como Engels compreenderam o poder do aspecto hirsuto, conforme provaram num aparte sarcástico a meio de um panfleto sobre o poeta e crítico Gottfried Kinkel, escrito em 1852:

«Londres proporcionou uma nova e complexa arena onde recebeu ainda mais aclamações ao homem venerado. Ele não hesitou: teria de ser o leão da temporada. Com isto em mente, absteve-se, durante certo tempo, de toda actividade política e retirou-se a fim de deixar crescer a barba sem a qual nenhum profeta é bem sucedido.»^^

Talvez pela mesma razão, Marx deixou crescer o cabelo e a barba na universidade e cultivou-os com orgulho ao longo da idade adulta até ficar tão lazudo como um rebanho de ovelhas. (Um espião prussiano em Londres, ao enviar um relatório em 1852 para os seus patrões em Berum, achou importante incluir que «ele nunca faz a barba».)

Friedrich Engels também parece ter formulado uma teoria política quanto ao pêlo facial muito cedo. «Domingo passado tivemos uma noite bigo-

42 ^ O KARLMARX

deira», escreveu Engels, aos 19 anos, à irmã em Outubro de 1840. «Enviei uma circular a todos os jovens em idade de ter bigode dizendo-lhe que chegara finalmente a altura de horrorizar os fiHsteus e que nada seria melhor do que usar bigode. Por conseguinte, todos aqueles que tinham coragem para os desafiar e usar bigode deveriam assinar a petição. Recolhi uma dúzia de bigodes e, depois, fixámos o dia 25 de Outubro, quando os nossos bigodes já teriam um mês, para festejar o bigode comum.» "*

Esta festa pogonológica, ocorrida na adega da Câmara de Bremen, concluiu com um provocante brinde:

«Os filisteus esquivam-se aos pêlos Escanhoando esmeradamente o rosto Não somos filisteus e, por conseguinte, Deixamos o bigode florir em liberdade.»

Embora o bigode se espalhasse mais tarde pelo rosto, a barba rala de Engels não se comparava à magnífica plumagem marxista. A imagem de Karl Marx, que se tornou familiar através de numerosos cartazes, estandartes revolucionários, bustos heróicos — e a famosa lápida do cemitério de Highgate —, perderia muito da sua ressonância icónica sem aquela auréola frisada.

Marx não era um grande orador — era ligeiramente cioso e o ríspido sotaque renano era muitas vezes incompreensível —, mas a mera presença deste javali de pelos eriçados era suficiente para inspirar respeito e intimidar. O historiador Karl Friedrich Koppen, um hahutué do Clube dos Doutores, ficava paralisado sempre que se encontrava na companhia de Marx. «Mais uma vez tenho pensamentos próprios», escreveu pouco depois do seu temível amigo ter partido de Berlim em 1841. «Ideias que (como se diz) produzi por mim próprio, enquanto as anteriores vinham de longe, nomeadamente de Schützenstrasse (onde Marx vivia). Agora, posso realmente trabalhar de novo e agrada-me caminhar por entre imbecis sem rne sentir um deles...» Após ter Hdo um artigo de Bruno Bauer sobre a política do Cristianismo, Koppen disse a Marx que «sujeitei a ideia a um interrogatório poHcial e pedi para ver o seu passaporte, e verifiquei, então, que também emanava de Schützenstrasse. Por isso, como vês, és um autêntico armazém de ideias, uma fábrica inteira ou (utilizando o calão de Berlim) tens o cérebro de um estudante marrão.»

Quando Marx começou a trabalhar para o Rheinische Zeitung, os seus colegas notaram que a sua irrequieta impetuosidade intelectual também se

o PEQUENO JAVALI SELVAGEM ^ß 43

manifestava através de uma distracção que o tornava simpático aos olhos dos outros. O jornalista Karl Heinzen adorava observar Marx sentado numa taberna a olhar miopiamente para um jornal enquanto tomava o café da manhã. «De repente levantava-se e, depois, sentava-se a outra mesa estendendo a mão para um jornal inexistente; ou, quando ia protestar ao censor o corte de um artigo e, em vez de mostrar o artigo em questão, tirava outro recorte ou um lenço e voltava a sair.»^^

Igualmente divertido para aqueles que tinham estômago forte, era o gosto de Marx por rebalderias e zaragatas. Heinzen descreve uma noite em que teve de conduzir Marx depois de terem bebido várias garrafas de vinho:

«Assim que entrei, ele fechou a porta, escondeu a chave e começou a gritar cómicamente que eu era seu prisioneiro. Convidou-me a subir até ao seu gabinete e eu sentei-me num sofá para ver o que é que este excêntrico iria fazer. Esqueceu-se imediatamente de que eu estava ali. Encavalitou-se numa cadeira e pôs-se a cantarolar, num tom meio triste, meio trocista, em voz alta: «Pobre tenente, pobre tenente! Pobre tenente, pobre tenente!» Este lamento dizia respeito a um tenente prus-siano que ele «corrompera», ensinando-lhe os princípios da filosofia hegeliana...

Depois de lamentar o tenente durante um bocado, levantou-se e, de repente, deu-se conta de que eu estava na sala. Aproximou-se de mim, fez-me compreender que eu me encontrava em seu poder e, com atitudes que mais lembravam um miúdo travesso do que o diabo que ele tentava imitar, começou a atacar-me com ameaças e os punhos. Pedi-lhe para me poupar esse género de coisas, porque não tinha feitio para lhe pagar na mesma moeda. Mas ele insistiu e, então, eu preveni-o seriamente que lhe daria uma Hção que ele não esqueceria tão cedo. Como isso também não desse resultado, atingi-o de forma a ele estatelar-se a um canto da sala. Quando ele se levantou, disse-lhe que o achava um chato e pedi--Ihe para me abrir a porta. Foi a vez de ele se mostrar triunfante: «Então vai para casa, fortalhaço», troçou fazendo caretas cómicas. Era como se estivesse a recitar as palavras de Fausto, «Há alguém preso no interior...» O sentimento era, pelo menos, semelhante, mas a sua ridícula imitação de Mefistófeles tornava a situação muito cómica. Avisei-o, por fim, que se ele não me abrisse a porta, eu abri-la-ia sozinho e ele teria de pagar os estragos. Continuou a fazer troça e eu, então, desci e arrombei a porta..

44 % ^ * I<CARLMARX : . : / . • ; -

Gritei-lhe depois da rua para ele voltar a fechar a porta por causa dos ladrões. Espantado por eu ter escapado ao seu fascínio, ele veio debruçar--se à janela olhando para mim com os seus pequenos olhos arregalados como um fantasma assustado.»

A continuação é previsível: anos mais tarde, Marx denunciou Heinzen acusando-o de ser um grosseiro filisteu («chato, bombástico, gabarolas»), e foi por sua vez apodado de «egoísta indigno de confiança» pelo seu temporário prisioneiro. Engels entrou, então, na liça, chamando Heinzen «a pessoa mais estúpida do século» '' e ameaçando-o dar-lhe uma carga de pancada. Heinzen retorquiu que não se deixava intimidar por «um frívolo diletante». E assim por diante interminavelmente. Em 1860, depois de ter emigrado para os Estados Unidos, Heinzen ainda guardava rancor e descreveu Marx num artigo como sendo um cruzamento entre um gato e um macaco, um sofista, um mero diletante, um aldrabão e um intriguista, conhecido pela sua compleição amarelada, cabeio preto desgrenhado, olhos pequeninos possuído por «um espírito maligno», nariz arrebitado, beiço inferior invulgarmente grosso, uma cabeça que sugeria tudo menos idealismo ou nobreza e um. corpo sempre vestido com roupa suja.

Marx foi com frequência acusado de ser um intimidador intelectual, em particular por aqueles que sentiram toda a força das suas invectivas. (Uma das suas tiradas contra Karl Heinzen, publicada em 1847, tem quase 30 páginas.) A sua violência verbal agradava-lhe certamente de sobremaneira. O seu estilo, como um amigo observava admirativamente, é o que o stilus— estilete de ponta afiado usado para escrever e espetar — era originalmente nas mãos dos Romanos. «O estilo é o punhal utilizada para ser lançado certeiramente ao coração.»"

Heinzen achava que não era tanto um punhal como uma bateria de artilharia — lógica, dialéctica, erudita — para aniquuar quem quer que discordasse dele. Marx, dizia, queria «quebrar vidros de janelas a canhão». No entanto, a acusação de intimidador não pode ser sustida. Marx não era covarde e não atormentava apenas aqueles que não podiam retaliar: a sua escolha de vítimas revela uma temeridade corajosa, que explica o porquê de ele passar a maior parte da vida adulta no exílio e politicamente isolado.

Para provar isto basta ver o primeiro artigo que escreveu para o Jiheinische Zeitung, em Maio de 1842, no qual comentou acerbamente os debates da Assembleia Provincial do Reno sobre liberdade de imprensa. É evidente que

o PEQUENO JAVALI SELVAGEM tn^ 45

criticou a intolerância opressiva do absolutismo prussiano e os seus bajuladores, o que, apesar de não ser surpreendente, demonstrava bastante coragem. Mas, com um grito exasperado de «Deus e livre dos amigos!» mostrou--se ainda mais cáustico em relação à pobreza de espírito da oposição liberal. Enquanto os inimigos da liberdade de imprensa eram motivados por uma emoção patológica que dava convicção e sentimento aos seus argumentos absurdos, «os defensores da imprensa nesta Assembleia não têm, globalmente, nenhuma relação real com o que estão a defender. Nunca encararam a liberdade de imprensa como uma necessidade vital Para eles, trata-se de uma questão cerebral em que o coração não desempenha nenhum papel». Citando Goethe — que disse que um pintor pode apenas ser bem sucedido com um tipo de beleza feminina que tenha amado pelo menos em alguém —, Marx sugeriu que a liberdade de imprensa também tinha a sua beleza, a qual uma pessoa tem de amar para a defender. Mas os supostos liberais da Assembleia pareciam levar vidas repletas e satisfeitas, enquanto a imprensa estava acorrentada.

Depois de ter criado inimigos tanto no Governo como na oposição, também em breve se virou contra os seus próprios confrades. Georg Jung, um conhecido advogado de Colónia ligado ao Kheinische Zeitung, considerou-o «o diabo de um revolucionário», e os jovens radicais da redacção ficaram muito esperançados quando Marx foi nomeado director, em Outubro de 1842. Mas iriam ficar desapontados. Marx expôs a sua poKtica editorial numa resposta 2JòA.ugshurger Allgemeine Zeitung,x]}ie acusara o rival de namorar com o comunismo:

«O Kheinische Zeitung, que nem sequer admite que as ideias comunistas, na sua presente forma, possuam realidade teórica e, por conseguinte, deseja ainda menos a sua concreti^çãoprática ou até mesmo a considera possível, sujeitará essas ideias a crítica minuciosa... Trabalhos como os de Leroux, Considérant e, acima de tudo, a obra contundente de Proudhon, não podem ser criticados superficialmente, mas apenas de

pois de longo e profundo estudo. 18

Não há dúvida de que ele tinha um olho no censor — e nos accionistas do jornal, todos capitalistas burgueses. Mas era exactamente isso que quería dizer. Marx não gostava da atitude de alguns colegas, como o bêbedo Rutenberg (que, embora o seu trabalho consistisse principalmente èm inserir sinais de pontaação, ainda lá trabalhava) e Moses Hess. E ainda se mostrava

46 ^ ^ KARL MARX

mais irritado pelas macaquices dos brincalhões dos Jovens Hegelianos em Berlim que agora se apelidavam «Os Livres» e faziam jus ao nome criticando Hvremente tudo — o Estado, a Igreja e a família —-, e advogavam ostensivamente a libertinagem como dever político. Considerava-os gente entediante e frívola que se autoproclamava. «Numa época em que se exige hombridade, seriedade e sobriedade para alcançar objectivos elevados, a canalhice e a indisciplina devem ser pública e resolutamente repudiadas», disse aos seus leitores.

Mas havia uma certa hipocrisia nessa palavras: como os seus companheiros de Colónia poderiam testemunhar, ele nem sempre se portava de modo ordeiro, ou sóbrio; e a solene desaprovação de acções espaventosas vinda de um homem que, há bem pouco tempo, tinha atravessado ruidosamente as ruas de Bona montado num burro soava um pouco estranho. Mas a sua actual responsabilidade como director de um jornal tinha-o feito mudar de ideias: as tropelias juvenis já não erafn aceitáveis.

A contrariedade mais persistente era Eduard Meyen, chefe da licenciosa clique de Berlim, que continuava a enviar «montes de escritos repletos de palavras de ordem para revolucionar o mundo e vazios de ideias». No decorrer da débil e indiscriminada intendência de Rutenberg, Meyen e o seu bando vieram a tomar o Kheinische Zeitung como seu território privado. Mas o novo director fê-los compreender que não permitiria que eles empapassem o jornal numa torrente de verborreia. «Considero inapropriado e até mesmo imoral passar clandestinamente doutrinas comunistas e socialistas, e, por conseguinte, uma nova perspectiva mundial, à sombra de críticas teatrais, etc.», escreveu. «Caso o comunismo venha a ser discutido, exijo que o seja de modo diferente e de forma mais pormenorizada.»^^

A capacidade de Marx para falar de comunismo era entravada pelo facto de ele nada saber do assunto. Os seus anos de estudo académico tinham--Ihe ensinado toda a filosofia, teologia e leis que ele viria provavelmente a necessitar, mas em termos de economia e poKtica, ele ainda era um novato.

«Como director do Kheinische Zeitun§>, admitiu muitos anos mais tarde. «Experimentei pela primeira vez o embaraço de ter de participar em discussões sobre interesses materiais.»^*^

A sua primeira aventura a este território inexplorado foi uma longa crítica à nova lei contra o roubo de madeira nas florestas particulares. Segundo um costume antigo, os camponeses podiam apanhar ramos caídos para lenha, mas, agora, quem apanhasse o mais pequeno galho poderia ser preso.

o PEQUENO JAVALI SELVAGEM ö ^ 47

Ainda mais escandaloso era o facto de o ofensor ter de pagar o valor da ma

deira ao dono da floresta, cujo valor seria calculado pelo próprio proprietá

rio. Tamanha desonestidade legaUzada obrigou Marx a reflectir, pela primeira

vez, sobre a questão de classes, propriedade privada e o Estado. E também

lhe permitiu exercitar o seu talento para demolir um argumento descabido

com a sua própria lógica. Ao assinalar os comentários de um dos fidalgos im

becis na assembleia provincial — «É justamente por a pilhagem de madeira

não ser considerado furto que acontece tantas vezes» — ele explodiu cole

ricamente com um reductio ad absurdum característico. «Por analogia, o legis

lador deveria chegar à seguinte conclusão: é por um murro na cara não ser

considerado crime que acontece com tanta frequência. Deve, por conseguin

te, ser decretado que um murro na cara é um crime.»^'

Isto pode não ser comunismo, mas era suficientemente grave para preo

cupar a Administração prussiana — especialmente porque a circulação e a

reputação do jornal estavam a aumentar rapidamente.

«Não imagines que nós, no Reno, vivemos num eldorado poKtico», es

creveu Marx a Arnold Ruge, cujo Deutsche Jahrbücher uïûiz levado uma seve

ra repreensão das autoridades de Dresden. «Para dirigir um jornal como o

Rheinische Zeitung é necessário a mais inabalável persistência.»^^

Durante grande parte do ano de 1842, o censor instalado no jornal era

Laurenz DoUeschaU, um poMcia estúpido que chegara a proibir um anúncio da

Divina Comédia, de Dante, porque «o divino não podia ser tema de comédia».

Todas as noites, ao receber todas as provas, ele marcava a lápis azul quaisquer

artigos que não compreendia (a maior parte) e, consequentemente, o director

tinha de passar horas a convencê-lo de que eram inofensivos — enquanto os

tipógrafos esperavam até altas horas. Marx gostava de citar o angustiado la

mento de DoUeschaU sempre que os seus superiores lhe ralhavam por ter

deixado passar algum comentário maléfico: «A minha vida, agora, está em

jogo!» Este pobre funcionário é quase digno de simpatia, pois qualquer cen

sor suficientemente azarento para ter de discutir com Karl Marx todos os

dias deveria sentir-se muito infeliz. Uma história contada pelo jornaUsta de

esquerda, Wilhelm Bios, demonstra o que DoUeschaU tinha de aguentar:

«Certa noite, o censor foi convidado, juntamente com a mulher e a

filha casadoura, para um grande baile dado pelo presidente da província.

Antes de sair do emprego, contudo, rinha de terminar o trabalho de cen

sura e, justamente nesse dia, as provas não chegaram à hora do costume.

48 ^ ^ KARL MARX

O censor fartou~se de esperar. Não podia desleixar os seus deveres, mas, ao mesmo tempo, também não podia deixar de comparecer no baile — além das possibilidades que isso traria à filha núbil. Eram quase dez horas e o censor estava a começar a ficar extremamente agitado. Por fim, enviou a mulher e a filha à frente e mandou um subalterno buscar as provas. Mas este voltou passado pouco tempo dizendo que a tipografia estava fechada. Espantado, o censor dirigiu-se de carruagem a casa de Marx, a qual ficava bastante longe. Já eram onze horas.

Depois do funcionário bater à porta durante largo tempo, Marx apareceu finalmente à janela de um terceiro andar.

— As provas! — berrou o censor. — Não há nenhumas! — gritou-lhe Marx — Mas... — O jornal não sai amanhã! E Marx fechou-lhe a janela na cara. A furia do censor enganado quase o

fez engasgar, mas, a partir daquele momento, mostrou-se mais delicado.»^^

Os seus patrões, contudo, não mudaram de modos e, em Novembro, o governador provincial que deu o baile, OherpräsidentNovL Schaper, queixou--se de que o jornal estava «a ficar cada vez mais impudente», e exigiu que Rutenberg (o qual ele erroneamente assumiu ser o culpado) fosse demitido da redacção. Como, de qualquer modo, Rutenberg era um peso morto, isso não foi um grande sacrifício, e Marx redigiu uma servil carta assegurando Sua Excelência, que o Rheinische Zeitung àe.?,é]'àY'à unicamente fazer eco «dos votos que, no momento actual, toda a Alemanha envia a Sua Majestade, o Rei, pela sua carreira ascendente». Como Franz comentou anos mais tarde, a carta revelava «uma prudência diplomática que nunca mais foi repetida na vida do seu autor».

Mas não apaziguou Herr Oberpräsident t, em meados de Dezembro, ele recomendou aos ministros da censura em Berlim que processassem o jornal — bem como o anónimo autor do artigo sobre a apanha de madeira — «por impudência e desrespeito às presentes instituições governamentais». A 21 de Janeiro de 1843, um mensageiro a cavalo chegou de Berlim com um decreto ministerial revogando a licença de publicação do Kheinische Zeitung com efeito a partir do fim de Março. Os fiéis leitores de toda a Renânia — de Colónia, Düsseldorf, Aachen e Trier, a cidade natal de Marx — enviaram petições ao rei suplicando a sua anulação, mas sem resultado. Um segundo

o PEQUENO JAVALI SELVAGEM a í ^ 49

censor foi instalado para impedir quaisquer actividades nefastas no decor

rer das semanas finais. «O nosso jornal tem de ser apresentado à poiïcia para

ser farejado», resmungou Marx a um amigo. «E se o nariz da poKcia cheirar

algo pouco cristão, ou antiprussiano, a sua publicação é proibida.»^'*

Como nenhuma justificação foi dada por aquela atitude governamental,

Marx só podia fazer especulações. Tinham as autoridades entrado em pânico

ao se darem conta da popularidade crescente do jornal? Fora ele demasia

do franco quando tomara a defesa de outras vítimas da censura, como no caso

do Deutsche Jahrbücher, de Ruge? O motivo mais provável, raciocinou, era um

longo artigo publicado uma semana antes do decreto em que ele tinha acusa

do as autoridades de ignorar a miserável situação económica dos produtores

de vinho de Moselle, os quais não podiam competir com os vinhos baratos

e isentos de impostos que a Prússia importava de outros estados alemães.

Marx estava longe de realizar — embora talvez ficasse satisfeito por o saber

— que havia interesses bem mais fortes a ser tramados nos bastidores. Quem

pedira ao rei da Prússia para suprimir o jornal fora nada menos do que o czar

da Rússia, Nicolau I, o seu mais próximo e necessário aliado, que tinha ficado

ofendido por uma diatribe anti-russa publicada no Kheinishe Zeitung, a 4 de

Janeiro. N u m bane ocorrido no Palácio de Inverno quatro dias mais tarde, o

embaixador da Prússia na corte de Sampetersburgo tinha sido repreendido

pelo czar por causa da «infâmia» da imprensa liberal alemã. O embaixador

enviou uma mensagem urgente a Berlim, informando que os Russos não

podiam compreender «como um censor empregado pelo Governo de Sua

Majestade podia ter deixado passar um artigo de tal natureza». E foi tudo.

«Hoje, os ventos mudaram», escreveu um censor do Rheinische Zeitungnva

dia depois de Marx ter desocupado a cadeira de director. «Estou bem con

tente.» O próprio Marx também ficou bastante satisfeito. «Estava a come

çar a sentir-me asfixiado naquela atmosfera», confiou a Ruge. «É mau ter de

executar tarefas servis mesmo quando são por amor à liberdade; combater

com alfinetes em vez de varapaus. Estou cansado da hipocrisia, da estupi

dez, da arbitrariedade grosseira e dos nossos salamaleques, artimanhas e

truques por causa de palavras. O Governo devolveu-me a liberdade.»^^

Não tinha futuro na Alemanha, mas como a maior parte das pessoas e

das instituições que ele gostava estava agora morta — o pai, o barão Von

Westphalen, o Deutsche Jahrbücher, o Rheinische Zeitung— não havia nada que

o prendesse. O que importava era que, aos 24 anos, ele já soubesse manejar

uma caneta que podia aterrorizar as cabeças coroadas da Europa. Quando

5 0 ^ ^ K J ^ R L M A R X . • • • , . • •

Arnold Ruge decidiu abandonar o país e fundar um jornal no exilio, o Deutsche-

-Fran^öskhe Jahrbücher, Marx aceitou alegremente o convite de se juntar a ele.

Havia apenas um senão: «Estou comprometido e não posso, não devo nem

deixarei a Alemanha sem a minha noiva.»

Sete anos depois de prometer casar-se com Jenny, até mesmo o pouco

sensível Karl Marx estava a começar a sentir punhaladas de culpa. «Por mi

nha causa», admitiu em Março de 1843, «a minha noiva tem combatido as

mais violentas batalhas que quase minaram a sua saúde. E m parte contra os

seus piosos parentes aristocratas para quem "o Senhor nos Céus" ou "o

senhor em Berlim" são igualmente objecto de um culto religioso, e, por outra

parte, contra a minha própria família, no seio da qual alguns padres e outros

inimigos meus se instalaram. Durante anos, portanto, a minha noiva e eu te

mos estado implicados em conflitos mais desnecessários e cansativos do que

muita gente que é três vezes mais velha do que nós.»'^''

Mas nem todas as aflições e tormentos deste longo noivado podiam ser

culpa dos outros. Enquanto Karl se divertia em Berlim ou provocava sari

lhos em Colónia, Jenny permanecia em casa, em Trier, perguntando-se se ele

ainda a amaria no dia seguinte. As vezes, essas ansiedades eram visíveis nas

suas cartas — as quais eram seguidamente interpretadas por Marx como

prova da inconstância dela. «Fiquei abalada pelas tuas dúvidas do meu amor

e fidelidade», queixava-se Jenny em 1839 — «Oh, Karl, como tu me conhe

ces pouco, como pouco aprecias a minha posição e como desconheces o meu

pesar.. . Se pudesses, pelo menos, ser rapariga por um bocadinho e, sobre

tudo, uma rapariga tão estranha como eu.»

Com as raparigas, conforme ela tentava explicar, era diferente. Conde

nadas à passividade pelo pecado original de Eva, podiam apenas esperar, so

frer e resistir. «Uma rapariga, claro está, só pode dar ao homem amor, ela pró

pria e a sua pessoa, como ela é, toda inteira e para sempre. E m circunstâncias

normais, uma rapariga tem igualmente de encontrar completa satisfação no

amor do homem e esquecer tudo em amor.» Mas como pode ela esquecer-

-se de tudo quando premonições de desgraça zumbem dentro da sua cabe

ça como abelhas furiosas? <AJi, querido, querido, meu doce amor, agora tam

bém andas a envolver-te em política», escreveu em Agosto de 1841 enquanto

Marx fazia trinta por uma Hnha em Bona com Bruno Bauer. «É a coisa mais

arriscada de todas. Querido pequenino Karl, nunca te esqueças que tens aqui

uma namorada que te aguarda, sofre e depende totalmente de ti.»^^

o PEQUENO JAVALI SELVAGEM ^ » 51

Para dÍ2er a verdade, a actividade poKtica dele era a menor das preocupações de Jenny: era certamente perigoso, mas também arrepiantemente heróico. Não esperava nada menos do seu «selvagem javali preto», o seu «tratante manhoso». O que retinha Jenny de se render à felicidade era o receio do «teu amor ardente cessar». Havia bons motivos para essas inquietações. Enquanto estudava em Berlim, Karl caiu sob o encanto da famosa poetisa romântica Bettina von Arnim — que tinha idade para ser mãe dele — e, numa ocasião, com obtusa insensibilidade, chegou mesmo a levá-la a Trier para conhecer a sua futura noiva. A amiga de Jenny, Betty Lucas, testemunhou esse despropositado encontro:

«Uma noite, entrei na sala de Jenny sem bater e vi um pequeno vulto na semiobscuridade agachado no sofá com os pés no ar e os braços à volta dos joelhos, que mais parecia uma trouxa do que uma figura humana. Ainda hoje, dez anos mais tarde, compreendo o meu desapontamento quando essa criatura se levantou e me foi apresentada como sendo Bettina von Arnim. . . As únicas palavras que a sua celebrada boca proferiu foram queixas contra o calor. A seguir, Marx entrou na sala e ela pediu-lhe em tom autoritário que a acompanhasse ao Rheingrafenstein, o que ele fez, embora já fossem nove horas e levasse uma hora para lá chegar. Lançou um olhar triste à noiva e seguiu a famosa mulher.»^^

Como podia uma rapariga pouco culta competir com tais serias? O vigor intelectual de Marx intimidava Jenny. Era espirituosa, animada e supremamente segura quando conversava com aristocratas medíocres nos bailes, mas, na presença do seu adorado, bastava um olhar daqueles olhos negros e profundos para ela ficar sem saber o que dizer: «De nervoso, não consigo dizer palavra. O sangue gela-me nas veias e a minha alma treme.»

Quase não vale a pena acrescentar que Jenny era uma criança da Idade Romântica e, como muitos espíritos irrequietos dessa geração, tinha lido e relido o Prometeu Ubertado, de SheMey, cujo herói estava preso com correntes a uma rocha por desafiar os deuses e tentar esclarecer a humanidade. («Prometeu é o santo e mártir mais eminente do calendário filosófico», declarou Marx na sua tese de doutoramento. Uma caricatura publicada depois da supressão do Rheinische Zeitung representava Marx disfarçado de Prometeu agrilhoado a uma prensa de impressão, enquanto uma águia prussiana lhe bicava o fígado.) Incapaz de acompanhar as impetuosas passadas de Karl, Jenny começou a sonhar que também ele teria de ser manietado:

52 ^ > e KARL MARX

«Assim, meu querido, desde a tua última carta que me torturo com o receio de que, por minha causa, tu te envolvas numa disputa e, depois, num duelo. Vejo-te, dia e noite, ferido, a sangrar e doente. Para te dizer toda a verdade, Karl, tal ideia não me tornava totalmente infeliz pois

?:•• imaginava vivamente que tinhas perdido a mão direita e isso punha-me •> num estado de êxtase, de felicidade suprema. Pensei então, meu queri-

•f do, que, nesse caso, eu me tornaria realmente indispensável para ti, que . ! me guardarias sempre ao teu lado e me amarias. Também pensei que seria

eu então que assentaria todas as tuas preciosas e sublimes ideias e que te seria realmente útil.»""''

Apesar de ela concordar que isto talvez parecesse «bizarro», trata-se de uma fantasia romântica bastante comum — o herói que tem de ficar aleijado, ou ser emasculado, para ganhar o coração de uma mulher. Anos mais tarde, Charlotte Bronte utilizou a mesma ideia em Jane Eyre.

O desejo de Jenny foi, mais ou menos, concedido. N o decorrer dos seus 40 anos de casamento, Marx esteve frequentemente «a sangrar e doente^>; e, como os seus gatafunhos eram indecifráveis, dependia dela para transcrever as suas preciosas e sublimes ideias. O êxtase revelou-se, contudo, mais inacessível na vida real do que nos sonhos estonteantes de Jenny.

Meio Prometeu, meio Sr. Rochester: se era assim que a sua adorada noiva o via, pode-se imaginar a atitude dela em relações mais convencionais. Casar com um judeu já era por si bastante chocante, mas casar com um judeu sem dinheiro nem emprego era intolerável. O seu reaccionário meio-irmão, Ferdinand, o chefe da família desde a morte do pai, fez tudo para impedir a união, prevenindo-a de que Marx era um vadio que traria desgraça a toda a tribo dos Von Westphalen. Para escapar aos constantes mexericos e intimidações, Jenny e a mãe — a qual, embora de forma ansiosa, lealmente a apoiou — fugiram de Trier e instalaram-se em Kreuznach, elegante cidade termal a 80 quilómetros de distância. Foi aí, às 10 da manhã do dia 19 de Junho de 1843, que Herr Marx, de 25 anos e doutorado em filosofia, se casou com Frau/em Johanna Bertha Juüa Jenny Von Westphalen, de 29 anos e «sem nenhuma ocupação particular». Os únicos convidados foram o chanfrado irmão de Jenny, Edgar, a mãe dela e alguns amigos locais. Nenhuma das relações de Karl assistiu ao casamento. A noiva ostentava um vestido verde de seda e uma grinalda de rosas carmim. O presente de casamento da mãe de Jenny foi uma colecção de jóias e uma bandeja de prata com o brasão da

o PEQUENO JAVALI SELVAGEM * ; 53

família Argyll, herança dos antepassados escoceses dos Von Westphalen. A baronesa ofereceu-lhe igualmente uma grande caixa com dinheiro para os ajudar durante os primeiros meses de vida marital, mas, infelizmente, os recém-casados levaram este tesouro com eles numa viagem de núpcias pelo Reno fora e encorajaram todos os amigos indigentes que iam encontrando pelo caminho a servir-se. O dinheiro volatilizou-se numa semana.

Uns dias antes do casamento e a insistência de Jenny, Karl assinou um contrato invulgar que estipulava «legal propriedade comum de bens», mas que «cada cônjuge pagaria a sua parte das dívidas que ele, ou ela, contraísse, herdasse ou tivesse incorrido antes do casamento». Deve-se assumir que isto era uma tentativa para apaziguar a mãe de Jenny que estava a par da situação financeira de Marx. Mas o contrato nunca foi aplicado, muito embora, dali em diante, Karl andasse quase sempre endividado. No anos seguintes, a bandeja de prata dos Argyll passou mais tempo nas casas de prego do que no armário da cozitiha.

Nesse Verão pós-nupcial de 1843, o Sr. e a Sra. Karl Marx puderam viver quase sem vintém como convidados na casa da baronesa, em Kreuznach, enquanto aguardavam notícias de Ruge sobre quando — e onde — o seu novo jornal seria fundado. Era um pequeno interludio idílico. Ao fim da tarde, Jenny e Karl davam um passeio até ao rio para ouvir os rouxinóis cantar nos bosques da outra margem. De dia, o eleito director do Deutsche--Franiiösische Jahrbücher teút?cv2i-^çi para o seu gabinete onde lia e escrevia com intensidade furiosa.

Marx sempre gostou de pôr as suas ideias em ordem numa folha de papel, anotando pensamentos à medida que lhe vinham à cabeça. Uma página do seu caderno de apontamentos em Kreuznach que sobreviveu exemplifica o seu método:

«Nota. Sob Luís XVIII, a constituição graças ao rei (Carta imposta pelo rei); sob Luís Filipe, o rei graças à constituição (realeza imposta). Podemos notar, em geral, que a conversão do sujeito em predicado, e do predicado em sujeito, a troca do que determina pelo que é determinado, é sempre a revolução mais imediata. E não apenas no lado revolucionário. O rei faz a lei (monarquia antiga), a lei faz o rei (nova monarquia).»

Quando Marx começava com este género de coisas, brincando com as suas adoradas contradições, não havia meio de o parar. Esta simples inversão gramatical, que transformava velhos monarcas em novos, não poderia

54 ^ 8 KARL MARX

também expHcar por que a filosofia alemã tinha falhado? Hegel, por exemplo, assumira que «a Ideia do Estado» era o sujeito e a sociedade o predicado, enquanto a história mostrava que era o inverso. Nada havia de errado em Hegel que não tivesse solução virando-o de cabeça para baixo: a religião não faz o homem, o homem é que faz a religião; a constituição não cria o povo, mas o povo cria a constituição. Tudo fazia sentido, às avessas.

A honra desta descoberta pertence ao filósofo alemão Ludwig Feuerbach, cuja Tese Introdutória à Keforma da Filosofia tinha sido publicada em Março de 1848. «Ser é sujeito; o pensamento, predicado», afirmou. «O pensamento provém do ser e não o ser do pensamento.» Marx foi muito mais longe, estendendo esta lógica da filosofia abstracta ao mundo real — acima de tudo, o mundo da política, o Estado e a sociedade. Feuerbach, antigo discípulo de Hegel, já tinha percorrido uma grande distância a partir do ideaKsmo do seu mentor na direcção do materialismo (o seu mais memorável aforismo, o qual ainda se encontra em dicionários de citações, era: «O homem é o que come»); mas tratava-se de um materialismo deliberadamente cerebral sem relação com as condições económicas e sociais da sua época ou lugar. A incursão de Marx no jornalismo tinha-o convencido de que os filósofos radicais não deviam passar a vida no alto de uma coluna como os antigos anacoretas gregos; tinham de descer e participar no momento presente.

Feuerbach foi um dos primeiros escritores a quem Marx soKcitou a colaboração para o Deutsche-Frantiösische Jahrbücher ?L'&sim que soube que a sua publicação estava assegurada. A 3 de Outubro de 1843, mesmo antes de partir para se juntar a Ruge em Paris, escreveu-lhe para sugerir um artigo demolidor contra o filósofo da corte prussiana, F. W von Schelüng, o seu velho antagonista da Universidade de Berlim.

«Toda a poKcia alemã se encontra à disposição dele, como eu mesmo tive a experiência quando era director do Kheinische Zeitung. Quer dizer, uma ordem da censura pode impedir que o que quer que seja escrito contra o sagrado ScheUing passe... Mas imagine ScheUing exposto em Paris, perante o mundo Hterário francês!... Aguardo confiantemente a sua contribuição na forma que achar mais conveniente.»^'' E, como isca suplementar, acrescentou um descarado P. S.: «Embora não o conheça, a minha mulher envia-lhe cumprimentos. Nem calcula a quantidade de admiradoras que tem.»

Feuerbach não se deixou seduzir e respondeu que, na sua opinião, seria imprudente passar da teoria à prática sem a teoria ter sido aperfeiçoada. Marx, em contrapartida, achava que as duas eram — ou deviam ser —

o PEQUENO JAVALI SELVAGEM s* J 55

inseparáveis, hpraxis torna perfeito e «crítica impiedosa de tudo o que existe»

era a prática mais necessária dos filósofos dessa época. Feuerbach inspirara

a crítica de Hegel e, agora, o próprio Feuerbach, depois de alcançar o seu

objectivo, deveria esperar ser, por sua vez, criticado — sobretodo emyís Teses

de Feuerbach, escrito na Primavera de 1845 e que terminava com o mais su

cinto resumo quanto à diferença entre anacoretas e activistas: «Os filósofos

apenas interpretaram o mundo de várias maneiras; mas a finalidade é mudá-lo.»

Ao contrário da maior parte dos pensadores que Marx mastigou e cus

piu, Feuerbach obteve a sua eterna gratidão. «Agrada-me ter a oportunida

de de lhe manifestar o meu mais profundo respeito — caso possa empregar

esta palavra — e estima», escreveu a Feuerbach em 1844. «Proporcionou-me

— não sei se intencionalmente — uma base filosófico para o socialismo...

A unidade entre os homens, a qual se baseia nas suas diferenças reais, e a ideia

da espécie humana trazida do céu da abstracção para a terra entre eles, nada

mais são do que o conceito de sociedadeb?^

Nas última semanas passadas em Kreuznach, Marx compôs dois impor

tantes ensaios que viriam a ser publicados no Deutsche-Yran^sischeJahrbücher.

O primeiro. Sobre Questão Judaica, é normalmente apenas mencionado en

passant, ou escamoteado, nas hagiografias marxistas, mas tem dado muitas

munições aos seus inimigos.

Era Marx um judeu que detestava a sua raça? Embora nunca tivesse ne

gado as suas origens judaicas, também nunca chamou a atenção para esse

facto — ao contrário da filha, Eleanor, que orgulhosamente disse a um grupo

de operários do East End de Londres que era «judia». Nos últimos anos de

correspondência com Engels, ele pulverizou prazenteiramente os inimigos

com insultos anti-semitas: o socialista alemão Ferdinand LasaUe, vítima fre

quente, foi várias vezes descrito como semítico, safardana e preto judeu.

«Parece-me agora bastante claro — como o feitio da cabeça dele e a ma

neira do cabelo crescer o provam — que ele descende dos negros que fugi

ram com Moisés do Egipto ou, então, a mãe ou a avó do lado paterno tiveram

relações com pretos», escreveu Marx em 1862, ao debater o sempiterno tema

dos antepassados de LasaUe, «Por um lado essa mistura de sangue alemão e

judeu e, por outro, a origem negroide devem inevitavelmente produzir uma

coisa bizarra. A importunidade deste tipo também é muito à preto.»^^

Certas passagens de Sobre a Questão Judaica têm igualmente um sabor a

ranço, como se tivesse sido tiradas fora de contexto — o que, habitualmen

te, assim acontece.

56 ^ 8 KARL MARX

«Qual é a base secular do Judaísmo? Necessidade prática, interesses

pessoais.

Qual é o culto secular do Judeu? Regatear.

Qual é o seu Deus secular? O dinheiro.. .

Por conseguinte, reconhecemos no Judaísmo a presença de um elemento

anti-social contemporâneo e imiversal, cuja evolução histórica — avidamente

alimentada pelos Judeus nos seus aspectos nocivos — alcançou actualmente

o ponto mais alto, o qual há-de inevitavelmente desintegrar-se.

A emancipação dos Judeus é, em última análise, a emancipação da huma

nidade do Judaísmo.»^^ ,

, Os críticos que vêem nisto um prenúncio de Men Kempfàeï^âm. escapar

um ponto essencial: apesar da desajeitada fraseologia e da grosseira estereo-

tipagem, o ensaio fm na verdade escrito para defender os Judeus. Era uma

réplica a Bruno Bauer, que tinha argumentado que não deveriam ser conce

didos direitos civis nem liberdade aos Judeus a não ser que eles se conver

tessem ao Cristianismo. Embora (ou, talvez, porque) Baur fosse um osten

sivo ateu, achava o Cristianismo uma forma mais avançada de civilização do

que o Judaísmo e, por conseguinte, mais próximo da libertação que se segui

ria à inevitável destruição de todas as religiões — assim como um covei

ro pode considerar uma viúva senil potencialmente mais promissora como

cliente do que uma miss Primavera local.

Este perversa justificação do fanatismo oficial, que aUou Bauer aos pa

palvos mais reaccionários da Prússia, foi demolida com brutalidade carac

terística. É verdade que Marx parecia aceitar que os Judeus fossem carica

turados como usurários inveterados — mas, quanto a isso, quase toda a gente

estava de acordo. (A palavra A&cvãijudentum era, regra geral, usada nessa época

como sinónimo de «comércio»). E, ainda mais significativamente, ele não os

acusava nem censurava: na medida em que estavam proibidos de pertencer

a instituições poKticas, era de admirar que exercessem a única actividade que

lhes era permitida, a de ganhar dinheiro? Tanto o dinheiro como a religião

alienavam a humanidade e, assim, «a emancipação dos Judeus é, em última

análise, a emancipação da humanidade do Judaísmo».

D o Judaísmo, note-se, não dos Judeus. E m última análise, a humanida

de tem de se libertar da tirania de todas as religiões, o Cristianismo incluído.

''• o PEQUENO JAVALI SELVAGEM a < ^ 57

mas, entretanto, era absurdo e cruel recusar aos Judeus o mesmo estatuto que

a qualquer outro cidadão. O compromisso de Marx em relação a direitos

iguais é confirmado por uma carta que enviou de Colónia, em Março de

1843, a Arnold Ruge: <A.cabei de receber a visita do chefe da comunidade

judaica nesta cidade, que me pediu para assinar uma petição a favor dos

Judeus a ser enviada à Assembleia Provincial e aceitei. Por muito que a fé

judaica não me agrade, a perspectiva de Bauer parece-me demasiado abs

tracta. O que há a fazer é abrir tantas brechas quantas forem possíveis no

estado cristão e introduzir lá dentro o máximo de racionalidade possível.»

Tais palavras também são corroboradas por outra obra importante que

ele começou a redigir após a lua-de-mel, no Verão de 1843: «Para uma Crí

tica da Filosofia do Direito, de Hegel: uma Introdução», e terminou em Paris

uns meses mais tarde. Este ensaio foi publicado na Primavera de 1844 e, em

bora o título possa ser familiar apenas aos iniciados, é tão célebre quanto o

artigo sobre Judaísmo é obscuro. Muitas pessoas que nunca leram nada de

Marx citam, contudo, o epigrama declarando que a religião é o ópio do povo.

Trata-se de uma das suas metáforas mais poderosas — inspirada, segundo

tudo leva a crer, pela Guerra do Ópio combatida entre a Grã-Bretanha e os

Chineses, de 1839 a 1842. Mas compreendem realmente estas palavras àque

les que as repetem? Graças aos seus autoproclamados intérpretes na União

Soviética, que se apoderam da frase para justificar a perseguição de que eram

alvo os antigos crentes, é normalmente tomada como significando que a re

ligião é uma droga administrada pela iníqua classe dirigente, a fim de man

ter as massas em estado de passividade embrutecida.

O ponto de vista de Marx era mais subtil e compassivo. Apesar de insis

tir que «a crítica da religião é o requisito indispensável para todas as críticas»,

ele compreendeu o impulso espiritual. Os pobres e os desgraçados que não

esperam alegrias neste mundo podem necessitar consolar-se com a promessa

de uma vida melhor no próximo; e, se o estado não ouve os seus clamores

nem os seus gritos, porquê não apelar para uma entidade mais poderosa que

promete atender todas as súplicas? A religião era uma justificação para a

opressão — mas também um refúgio.

«O sofrimento religioso é simultaneamente a expressão do verdadeiro so

frimento e um protesto contra o sofrimento verdadeiro. A religião é o sus

piro dos oprimidos, o coração deste mundo impiedoso e a alma das condi

ções desumanas. É o ópio do povo.»^"^

58 « i ^ KARL MARX ;

Muito eloquente. Mas, noutras passagens do ensaio, a sua facilidade verbal degenera, de quando em quando, em meros jogos de palavras — ou, para ser franco, em puro exibicionismo. Eis o que diz sobre Lutero e a Reforma alemã:

«Destruiu a fé na autoridade restaurando a autoridade da fé. Transformou os padres em leigos, transformando os leigos em padres. Libertou a humanidade da religiosidade externa tornando a religiosidade o homem interior. Libertou o corpo das correntes, mas aprisionou o coração.»

Ou sobre a diferença entre a França e a Alemanha:

«Na França, basta ser algo para querer ser tudo. Na Alemanha, ninguém pode ser nada a não se renuncie a tudo. Na França, a emancipação parcial é a base da emancipação universal. Na Alemanha, a emancipação universal é a condição sine qua non da emancipação parcial.»

Após uns parágrafos deste flamejar pirotécnica, suspeita-se que a própria exposição se tornou um fim em vez de um meio.

No entanto, não aceitar os excessos estiKsticos de Marx é ignorar o seu objectivo. Os seus vícios são também as suas virtudes, manifestações de uma mente viciada em paradoxos e transposições, antíteses e quiasmos. Por vezes, este zelo dialéctico produzia uma retórica vazia, mas levava, com maior frequência, a originais e surpreendentes critérios. Não tomava nada por certo e virava tudo do avesso — incluindo a própria sociedade. Como é que os poderosos poderiam ser derrotados e os humildes exaltados? Na crítica a Hegel, expôs a sua solução pela primeira vez: o que se requeria era «uma classe com cadeias radicais, uma classe de sociedade civil que não é uma classe de sociedade civil; uma classe que é a dissolução de todas as classes... Esta dissolução da sociedade como uma classe particular é o proletariado». Esta última palavra ressoa como o ribombar de um trovão sobre uma paisagem desolada. Pouco importava que nem a Alemanha nem a França ainda não tivessem um proletariado digno desse nome: a tempestade vinha a caminho.

A teoria da luta de classes de Marx viria a ser aperfeiçoada e embelezada nos próximos anos — de forma mais memorável no Manifesto Comunista —, mas a sua configuração já era suficientemente clara: «Todas as classes, logo

o PEQUENO JAVALI SELVAGEM ..*aí' 59

que se batem contra a classe acima, envolvem-se em luta com a classe abaixo. Assim, os príncipes lutam contra reis, os burocratas contra os aristocratas e a burguesia contra todos eles, enquanto o proletariado já está a começar o seu combate contra a burguesia.» Por conseguinte, o papel do emancipador passa de uma classe à seguinte até a libertação universal ser finalmente alcançada. Na França, a burguesia já derrubara a nobreza e o clero, e outra revolução parecia iminente. Até mesmo na imperturbável Prússia, o Governo medieval não podia prolongar indefinidamente o seu reino. Com uma estocada de despedida à eficiência teutónica — «Não pode haver uma revolução na Alemanha, a qual é conhecida pela sua meticulosidade, a não ser que seja meticulosa» — partiu para Paris. Era, sentia, o único lugar para estar nesta época. «Quando todas as condições internas forem satisfeitas, a ressurreição da Alemanha será anunciada pelo canto do galo gaulês.»

o REI CORRUPTO

«E, assim — rumo a Paris, para a velha universidade e a nova capital do mundo novo!», escreveu Marx a Ruge em Setembro de 1843. «Quer o empreendimento se concretize ou não, estarei de todos os modos em Paris no fim deste mês, pois o ambiente, aqui, transforma-nos em servos e não vejo nenhuma possibilidade na Alemanha de exercer uma actividade livre.» As revoluções de 1789 e de 1830 tinham tornado a capital francesa um local de encontro natural. Era uma cidade de conspiradores e panfletários, de seitas e sociedades secretas — «o centro nervoso da historia europeia que, enviando choques eléctricos a intervalos regulares, galvanizava o mundo inteiro».

Todos os mais conhecidos pensadores políticos da época eram franceses: o místico socialista cristão Pierre Leroux, os comunistas utópicos Victor Considérant e Etienne Cabet, o orador e poeta liberal Alphonse de Lamartine (ou, chamando-o pelo seu glorioso nome completo, Alphonse Marie Louis de Prat de Lamartine). Acima de todos estes, havia Pierre Joseph Proudhon, anarquista Kbertário, que tinha ganho imediata celebridade em 1840 com o seu Hvro O que E a Propriedade? — pergunta a que respondeu na primeira página com a simples fórmula, «a propriedade é roubo». Todos estes picadores po-Kticos acabariam por ser desventrados e atirado para um canto por Karl Marx — sobretudo Proudhon, cujo magnum opus sobre «a filosofia da pobreza» provocou a duacerante resposta de Marx,^ Pobreza da Filosofia. De momento, contudo, o recém-chegado contentava-se em escutar e aprender.

Tocava-se música nos cafés à noite e a revolução pairava no ar. Com a «monarquia burguesa» de Luís Filipe a titubear, outro acontecimento de alta voltagem parecia inevitável e iminente. <A. perda de prestígio do rei burguês

62 * ^ KARLMARX

era amplamente demonstrada pelas inúmeras tentativas de assassinar aquele

príncipe autocrático e dinástico», informou Ruge. «Um dia em que ele pas

sou por mim nos Champs-Elysées, bem escondido na sua carruagem, rodea

do de hussardos, observei com espanto que eles não ostentavam as armas no

estilo burlesco do costume, mas que as tinham engatilhadas e prontas a dis

parar. O rei passeava-se com má consciência!»^

Ruge, Marx e o poeta George Herwegh — o triunvirato da direcção do

Deutsche-Fran^sische Jahrbücher— chegaram a Paris no Outono de 1843. Ruge

veio de Dresden num «grande veículo» acompanhado pela mulher, um en

xame de crianças e uma enorme perna de vitela. Inspirando-se no utópico

Charles Fourier, propôs que os três casais deveriam formar uma comuna na

qual as mulheres fariam turnos para ir às compras, cozinhar e coser. «Frau

Herwegh deu-se imediatamente conta da situação», recordou o filho, Marcel,

muitos anos depois. «Como podia Frau Ruge, pequenina mulher saxónica,

entender-se com a extremamente inteligente e ainda mais ambiciosa Frau

Marx, cuja cultura era muito superior à dela? Como podia Frau Herwegh, que

tinha casado há muito pouco tempo e era a mais nova, sentir qualquer

atracção por esta vida comunitária?»^

George e Emma Herwegh apreciavam o luxo — e, como o pai dela era um

rico banqueiro, possuíam os meios para o desfrutar. Declinaram, por con

seguinte, o convite de Ruge, mas Karl e Jenny (que estava grávida de quatro

meses) decidiram experimentar. Mudaram para o apartamento dos Ruge na

Rue Vanneau, 23, ao lado dos escritórios diO Jahrbücher.

A experiência em comunismo patriarcal durou cerca de 15 dias e os Marx

foram instalar-se um pouco mais abaixo na mesma rua. Ruge era um homem

caseiro, empertigado e puritano que não podia tolerar a desorganização e

hábitos impulsivos do seu co-director; Marx, queixava-se, «não termina nada,

interrompe tudo, e mergulha de novo num infinito mar de livros... Adoe

ceu de tanto trabalhar e não se deitou durante quatro, cinco noites a fio.. .»~

Chocado por esses «loucos métodos de trabalho», os lazeres e diversões de

Marx também o escandalizaram. «A mulher ofereceu-lhe no dia de aniver

sário um pingalim no valor de cem francos», escreveu uns meses mais tar

de. «Mas o pobre diabo não sabe montar nem tem cavalo. Quer possuir tudo

o que vê — uma carruagem, roupas elegantes, um jardim com flores, mo

bília nova, até mesmo a Lua.»'* Trata-se de uma lista de compras pouco plau

sível: Marx não se interessava por artigos luxuosos nem trapos. Se desejava

tais coisas era sem dúvida por causa de Jenny. Os primeiros meses em Paris

o REI CORRUPTO a < ^ 63

foram a única vez que, no decorrer da sua vida de casada, ela se pôde dar ao

luxo de satisfazer o seu apetite, pois uma doação de mil táleres, enviada de

Colónia por antigos accionistas do Kheinische 7.eitung,Y¿\.o aumentar o sala

rio de Marx. Além disso, ele queria que ela desfrutasse aquela última opor

tunidade antes de ficar limitada pelas exigências da maternidade. A 1 de Maio

de 1844, ela deu à luz uma menina, Jenny — mais conhecida pelo diminu

tivo/¿•««yf^é'« —, cujos olhos escuros e cabeleira preta lhe dava a aparência

de um Karl em miniatura.

Os pais noviços, embora babados, eram totalmente incompetentes e, em

princípios de Junho, concordaram que o melhor seria que Jenny fosse com

a filha passar vários meses com a baronesa Von Westphalen, em Trier, para

aprender os rudimentos da maternidade. «A pobre bonequinha ficou bas

tante indisposta e doente depois da viagem», escreveu Jenny a Karl a 21 de

Junho. «E veio a verificar-se que ela não só sofria de diarreia como também

de sobrealimentação. Tivemos de chamar o porco gordo (Robert Schleicher,

o médico da família), e a sua decisão foi que ela precisava de uma ama para

a amamentar porque, com comida artificial, ela não consegue recuperar tão

depressa. Não foi fácil salvá-la, mas, agora, já está quase fora de perigo.»^

A ama concordou vir para Paris com elas, mas, apesar da felicidade de

Jenny («todo o meu ser exprime satisfação e ahunáânciaf>), não conseguia li-

vrar-se completamente dos seus antigos pressentimentos. «Meu mais que

tudo, estou muito preocupada quanto ao nosso futuro... Acalma, se pude

res, os meus anseios. Fala-se muito por todos os lados de um rendimento re

gular.» O rendimento regular foi uma das necessidades da vida que sempre

escapou a Karl Marx.

O seu trabalho em Paris, que parecia prometer segurança financeira,

verificou-se ainda mais temporário do que o seu emprego anterior. Apenas

um número do Deutsche-Fran^sischeJahrbücher íd\ pubHcado antes dos desen

tendimentos com Ruge se tornarem irreparáveis — e mal chegou a mostrar-

-se à altura da promessa do seu nome. Embora França tivesse bastantes es

critores, nenhum quis contribuir e, para preencher essa lacuna, Marx incluiu

os seus ensaios sobre a questão judaica e sobre Hegel, juntamente com uma

versão adaptada da sua correspondência com Ruge ao longo do ano ante

rior. A única voz não alemã era a de um comunista anarquista russo, Michail

Bakunine. «Marx estava, então, mais avançado do que eu», declarou. «Em

bora mais novo, já era ateu, materialista culto e consciente socialista... Tentei

impacientemente convertê-lo, o que era sempre instrutivo e divertido quando

64 ^ « KARL MARX

não se inspirava em ódios mesquinhos, mas, infelizmente, isso acontecia

muitas vezes. Nunca houve uma intimidade sincera entre nós — os nossos

temperamentos não o permitiam. Ele chamava-me idealista sentimental, e

tinha razão: eu dizia que ele era vaidoso, pérfido e tímido, e também tinha

razão.»''

Apesar de todas as óbvias deficiências, o primeiro e último número do

Jahrbücher teve. um colaborador de prestígio internacional — o poeta român

tico Heinrich Heine, por quem Marx sentia veneração desde a infancia e de

quem se tornou amigo pouco tempo depois de chegar a Paris. Heine era uma

pessoa dolorosamente susceptível que desatava a chorar à mais pequena

crítica, e Marx era um crítico impiedoso de formidável insensibilidade. Por

uma vez, porém, conteve as suas tendências iconoclastas em deferência por

um genuíno herói da literatura. Heine tornou-se uma visita habitual no

apartamento dos Marx da Rue Vanneau e lia em voz alta as suas obras em

curso pedindo a opinião do jovem director. Numa ocasião, encontrou Karl

e Jenny aflitos por causa da ^tc^crúrvà Jennychen que padecia de uma crise de

cólicas e estava — ou pelo menos eles assim julgavam — às portas da morte.

Heine ocupou-se imediatamente e ordenou que «a criança devia tomar um

banho». E, assim, segundo a lenda da família Marx, a vida da criança foi salva.

Heine não era comunista, pelo menos no sentido marxista da palavra.

Costumava citar a história do rei da Babilónia que julgava ser Deus, mas veio

a despenhar-se miseravelmente do alto das suas pretensões para acabar ras

tejando como um animal no chão e a comer erva: «Esta parábola encontra-

-se no esplêndido e notável l^ivro de Daniel. Recomendo-o para a edificação

do meu bom amigo. Ruge, e também ao meu muito mais teimoso amigo

Marx, assim como aos Srs. Feuerbach, Daumer, Bruno Bauer, Hengstenberg

e os restantes pretensos deuses sem deus.» Heine contemplava a vitória do

proletariado com apreensão, receando que a arte e a beleza não teriam lugar

nesse mundo novo.

«Os líderes mais ou menos clandestinos dos comunistas alemães são

grandes lógicos e o melhor deles todos vem da escola hegeliana», escreveu

em 1854 referindo-se a Marx. «Estes mestres da revolução e os seus impla-

cavelmente determinados discípulos são os únicos alemãs com alguma vida

e temo que o futuro lhes pertença.»

Pouco depois da sua morte, em 1856, redigiu um último testamento

pedindo perdão a Deus caso tivesse escrito algo «imoral», mas Marx estava

preparado para não ligar a essa recaída devota — facto que, noutra pessoa.

o REI CORRUPTO o ^ 65

teria provocado o seu mais feroz desprezo. Como Eleanor Marx escreveu: «Ele amava o poeta e a sua obra, e encarava a sua fraqueza política tão generosamente quanto lhe era possível. Os poetas, explicava, eram gente estranha e deviam ser autorizados a seguir o seu próprio caminho. Nunca deveriam ser avaliados pela mesma bitola que os homens vulgares ou até mesmo extraordinários.»^

O Jahrbücher pode ter sido um desastre financeiro, mas gozou de grande succès d'estime, e não só por causa das odes satíricas de Heinrich Heine sobre o rei Ludwig da Baviera. Centenas de números enviados para a Alemanha foram confiscados pela polícia, que fora avisada pelo Governo prussiano que o seu conteúdo era uma incitação á alta traição. Foi emitida uma ordem para prender imediatamente Marx, Ruge e Heine caso alguma vez tentassem regressar à pátria. Na Áustria, Metternich prometeu «severas sentenças» contra qualquer livreiro que fosse apanhado a vender esse «repugnante» jornal.

Arnold Ruge assustou-se e deixou Marx em apuros ao suspender a publicação e não lhe pagando o ordenado prometido. Alguns historiadores pretendem que a discórdia não teria sido definitiva se «não tivessem havido outras diferenças de ordem pessoal, em particular sobre questões fundamentais de princípio que duravam há já bastante tempo»**. Mas a verdade é que a mais importante «questão fundamental de princípio» era uma ridícula querela sobre a vida sexual do seu colega, Georg Herwegh, que tinha atraiçoada a mulher e tinha um caso com a condessa Marie d'Agoult, antiga amante de Lizt e mãe da menina que se tornou Cosima Wagner. «Estou indignado pelo estilo de vida e preguiça de Herwegh», escreveu Ruge à mãe. «Chamei-lhe cordialmente velhaco vários vezes e declarei que, quando um homem se casa tem de saber o que está a fazer. Marx não proferiu palavra e tomou a sua demissão de forma perfeitamente amigável. Escreveu-me no dia seguinte a dizer que Herwegh era um génio com grande futuro e que o facto de eu lhe ter chamado de velhaco enchia-o de indignação, acrescentando ainda que as minhas ideias sobre o casamento eram estreitas e desumanas. Não nos voltámos a ver desde então.»'

Apesar de Marx se manifestar muitas vezes contra a promiscuidade e a libertinagem com a ferocidade puritana de um Savonarola — quanto mais não fosse para repudiar a acusação que o comunismo era sinónimo de sexo colectivo —, encarava divertidamente as escapadas amorosas dos amigos e, talvez, com um pouco de inveja, atitude que inquietava certamente Jenny. «Embora o espírito tenha força de vontade, a carne é fraca», escreveu ela de

66 ^ ^ KARLMARX

Trier, em Agosto de 1844, dois meses depois de deixar o marido sozinho em Paris. «A verdadeira ameaça de infidelidade, a sedução e atracções de uma capital — tudo são forças cujo efeito sobre mim é mais poderoso do que qualquer outra coisa qualquer.»^^

Entre as atracções e seduções de Paris, o restolhar de uma saia de condessa não podia competir com o clamor da política. No Verão de 1844, Marx aceitou a oferta de escrever para o Vonmrts!, jornal bissemanal comunista patrocinado pelo compositor Meyerbeer e actualmente dirigido por Karl Ludwig Bernays, que tinha colaborado no T>eutsche-¥ran^ösische Jahrbücher.

Como o único jornal radical em língua alemã não censurado que era publicado na Europa, o l/óní'¿'r/j-.''proporcionava um refúgio a todo o velho bando de poetas e polemistas, incluindo Heine, Herwegh, Bakunine e Arnold Ruge. Reuniam-se uma vez por semana no escritório do primeiro andar, à esquina da Rue des Moulins e da Rue Neuve des Petits, para uma conferência editorial presidida pelos Bernays e o editor, Heinrich Börnstein, que recordou:

«Alguns sentavam-se na cama ou em arcas e outros ficavam de pé a andar de um lado para o outro. Todos fumavam imenso e discutiam apaixonada e excitadamente. Era impossível abrir as janelas, porque uma multidão ter-se-ia logo agrupado na rua para conhecer o motivo, do violento tumulto que fazíamos. A sala ficava rapidamente envolta em tais nuvens espessas de fumo que era impossível, para quem quer que chegasse, reconhecer as pessoas presentes. No fim, quase não conseguíamos reconhecer-nos uns aos outros.»"

O que, caso Marx e Ruge também lá se encontrassem, fosse provavelmente melhor: de outro modo, o «violento tumulto» talvez degenerasse em pancadaria.

Mas, em vez disso, os dois inimigos continuaram o seu feudo na imprensa pública. Em Julho de 1844, e assinando apenas com o nome de «Um prussiano». Ruge escreveu um longo artigo para o 'Vonvärts! oht^ a brutal repressão por parte do rei prussiano dos tecelões da Silesia que tinham destruído as máquinas que ameaçavam a sua subsistência. Ruge considerava a revolta dos tecelões como inconsequente, pois a Alemanha não possuía a «consciência política» necessária para transformar um acto de desobediência isolado numa revolução a sério.

A resposta de Marx, publicada dez dias depois, argumentava c|ue o fertilizante da revolução não era a «consciência poKtica», mas a consciência de

o REI CORRUPTO 67

classe que os tecelões possuíam para dar e vender. Ruge (ou «o alegado

prussiano», como Marx lhe chamava) pensava que uma revolução social sem

alma política era impossível; Marx descartou essa «mistura absurda», man

tendo que todas as revoluções são tanto sociais como políticas, na medida

em que dissolvem a velha sociedade e derrubam o velho poder. Mesmo que

a revolução ocorresse numa única região fabril, como no caso dos tecelões

silesianos, continuava a ameaçar todo o estado pois «representa o protesto

do homem contra a vida desumanizada»^^. Isso era um pouco optimista de

mais. A única influência duradoira da revolta foi a de ter inspirado um dos

mais famosos poemas de Heine, O Canto dos Tecelões Silesianos, publicado no

mesmo número de Vorwärts!

«O proletariado alemão é o teórico do proletariado europeu, assim como

o proletariado inglês é o seu economista e o francês o seu político», escre

veu Marx na réplica a Ruge, prefigurando uma opinião mais tardia de Engels

que afirmava que o marxismo em si era um híbrido dessas três linhagens. Aos

26 anos, Marx já era bastante versado em filosofia alemã e socialismo fran

cês; decidiu, agora, educar-se em economia política e, no Verão de 1844, leu

sistematicamente as obras principais de economia poMtica inglesa — Adam

Smith, David Ricardo, James MiU —, garatujando comentários à medida que

ia avançando. Estas notas, cerca de 50 000 palavras, só foram descobertas na

década de 1930, altura em que o investigador soviético David Ryazanov as

publicou sob o útalo Manuscritos Económicos e Políticos. São actualmente conhe

cidos pelos manuscritos de Paris.

O trabalho de Marx tem sido muitas vezes descartado como «dogmas

grosseiros», normalmente por gente que não dá provas de o ter lido. Seria

um exercício útil obrigar esses críticos improvisados — que incluem o actual

primeiro-ministro britânico, Tony Blair — a estudar os manuscritos de Pa

ris, os quais revelam o funcionamento de uma mente incansavelmente

inquisitiva, subtil e nada dogmática.

O primeiro manuscrito começa com uma simples declaração: «Os salá

rios são determinados pela feroz batalha entre o capitalista e o trabalhador.

O capitalista ganha inevitavelmente. O capitalista pode viver mais tempos

sem o trabalhador do que o trabalhador sem o primeiro.» Desta premissa,

tudo mais se segue. O trabalhador tinha-se tornado em apenas mais um

produto à procura de comprador; e não é mercado de vendas. O que quer

que aconteça, o trabalhador perde. Se a riqueza da sociedade diminui, o

68 ^ B KARLMARX

trabalhador é quem sofre mais. Mas o que é que acontece se a sociedade está a prosperar? «Tal condição é a única favorável ao trabalhador. Nesse caso, a competição ocorre entre os capitalistas e a procura de trabalhadores excede a oferta. Mas...»

Naturalmente. O capital nada mais é do que os frutos acumulados do trabalho e, assim, os capitais e rendimentos de um país aumentam apenas «quando cada vez mais os produtos do trabalhador forem tirados dele, quando o seu próprio trabalho o confrontar cada vez mais como propriedade alheia e os meios da sua existência e da sua actividade forem cada vez mais concentrados nas mãos do capitalista» — assim como uma galinha inteligente (caso tal improvável criatura exista) que se tornasse mais consciente da sua impotência no seu estado mais fértil, pondo dúzias de ovos para vê-los serem roubados ainda quentes.

Além do mais, numa sociedade próspera haverá uma crescente concentração de capital e competição mais intensa. «Os grandes capitalistas arruinam os pequenos, e uma parte dos antigos capitalistas afunda-se na classe dos trabalhadores, a qual, devido ao aumento em número, sofre mais uma depressão salarial e torna-se ainda mais dependente de um punhado de grandes capitalistas. Porque o número de capitalistas diminui, a competição para procurar trabalhadores deixa de existir; e porque o número de trabalhadores aumenta, a competição entre eles torna-se maior, anormal e violenta.

Assim, conclui Marx, até mesmo nas condições mais propícias, a única consequência para os trabalhadores é "excesso de trabalho e morte prematura, ser reduzido a uma máquina, sujeição ao capital". A divisão do trabalho torna-o ainda mais dependente e introduz a competição das máquinas assim como a dos homens. "Na medida em que o trabalhador foi reduzido a máquina, a máquina confronta-o como um competidor." Finalmente, a acumulação de capital dá a possibilidade à indústria de fabricar ainda uma maior quantidade de produtos colocando um grande número de trabalhadores sem emprego ou reduzindo os seus salários a uma ninharia. "Uma tal situação," concluiu Marx com sinistra ironia. "São as consequências de um estado da sociedade que é a mais favorável ao trabalhador, quer dizer, um estado de riqueza crescente. Mas, com o tempo, há-de chegar uma altura em que esse estado alcança o ponto mais alto. E qual será, então, a situação do trabalhador?"» Bastante miserável, o que não é nenhuma surpresa.

As vantagens favorecem o capital. Um grande industrial pode guardaros produtos da sua fábrica até eles atingirem um preço decente, enquanto o

o REI CORRUPTO a ^ 69

único produto do trabalhador — o suor do seu rosto — perde completamente valor se não for vendido a cada instante. Um dia perdido de trabalho vale tanto no mercado como o jornal matutino de ontem e nunca mais pode ser recuperado. «O trabalho é vida e, se a vida não for trocada todos os dias por alimentação, sofre com isso e em breve perece.» O patrão tem mais sorte, pois o capital é «labor armazenado» com indefinida duração.

A única defesa contra o capitalismo é a competição, a qual sobe os salários e baixa os preços. E, por essa mesma razão, os grandes capitalistas tentam sempre contrariá-la ou sabotá-la. Assim como os proprietários feudais antigos possuíam o monopólio da terra — para a qual a procura era quase infinita e a oferta limitada —, também a nova geração de industriais queria obter o monopólio da produção. Era por conseguinte insensato concluir, a exemplo de Adam Smith, que o interesse do proprietário, ou do capitalista, é idêntico ao da sociedade. «Sob o regime da propriedade privada, o interesse que qualquer indivíduo tem na sociedade é inversamente proporcional ao interesse que a sociedade tem nele, exactamente como o interesse do usuário no esbanjador não é de modo algum idêntico ao do esbanjador.»

Apesar de os criticar, Marx tinha um grande respeito por Smith e Ricardo. Como com Hegel, usava as próprias palavras e lógica deles para expor os defeitos das suas teorias. E o defeito mais óbvio era o seguinte: «A economia poKtica provém da existência de propriedade privada. Não a explica.» Assim como a teologia explicava a existência do diabo referindo-se ao primeiro pecado do homem, o fruto da árvore proibida que trouxe a morte ao mundo, os economistas clássicos trataram a propriedade privada como uma condição humana primordial.

Mas não havia nada estabelecido nem imutável quanto a isso. Já graças à Revolução Industrial, o poder tinha sido transferido dos proprietários feudais para os membros importantes das corporações: a aristocracia do dinheiro suplantara a aristocracia da terra. «Recusamos juntar-nos às lágrimas sentimentais que o românticos derramam por causa disto», comentou severamente Marx. Os proprietários feudais tinham sido uns idiotas ineficazes que não souberam tirar o máximo lucro das suas propriedades e se banhavam na «glória romântica» da sua nobre indiferença. Era, de sobremaneira, desejável que este mito benigno explodisse e que «a raiz da propriedade terrena — sórdido interesse pessoal — se manifestasse sob a sua forma mais cínica». Reduzindo os grande domínios a meros produtos, sem

70 * ^ KARL MARX

nenhuma mística arcádia, as intenções do capitalismo eram, pelo menos,

transparentes. O lema medieval, nulle terre sans seigneur (nenhuma terra sem

senhor) cedeu o passo a uma admissão mais vulgar, mas honesta: l'argentn'a

pas de maître (o dinheiro não tem dono).

Sob esta tirania, quase todos e tudo eram «objectifícados». O trabalha

dor dedica a vida a produzir objectos de que não é dono nem controla. O

seu labor torna-se, assim, um ser externo e separado, que «existe fora dele,

alheio e independente, e que começa a confrontá-lo como um poder autó

nomo; a vida que ele conferiu ao objecto enfrenta-o alienada e hostilmente».

Nenhum investigador ou crítico marxista chamou a atenção sobre o óbvio

paralelo com Frankenstein, de Mary Shelley: a história de um monstro que se

vira contra o seu criador. (Dado o fascínio de Marx pela lenda de Prometeu,

repare-se no subtítulo desse romance, Um Prometeu Moderno).

E m Dezembro de 1865, e padecendo de furúnculos, Marx descreveu

como «um segundo Frankenstein nas minhas costas» uma dessas horríveis

erupções". «Achei que era um bom tema para um conto», escreveu a Engels.

«De frente, o indivíduo que regala o seu homem interior com vinho do Porto,

clarete, cerveja e uma grande porção de carne. De frente, o glutão. Mas, por

detrás, nas suas costas, o homem exterior, o raio de um furúnculo. Se o diabo

fizer um pacto com alguém para o manter sempre bem alimentado em cir

cunstâncias como estas, quero então que o diabo vá para o diabo que o

carregue.»^"^ Marx mencionou este incubo pestilento à filha, Eleanor, que

tinha oito anos nessa altura. «Mas é a tua própria carne!», exclamou ela.

O conceito de auto-alienação foi instilado nos filhos de Marx desde a

infância, sobretudo através de contos de fadas que ele inventava para os

divertir. «Dos inúmeros maravilhosos contos de fadas que ele me contou, o

mais maravilhoso, o mais delicioso, foi o de Hans Köckle», escreveu Eleanor

nas suas memórias:

«Durou meses e meses; era uma série de histórias... Hans Röckle era

um mágico à Hoffmann, que tinha uma loja de brinquedos e que estava

sempre "teso". A loja dele estava cheia das coisas mais maravilhosas —

bonecos e bonecas de madeira, gigantes e anões, reis e rainhas, trabalha

dores e patrões, aves e animais tão numerosos como os que Noé meteu

dentro da arca, mesas e cadeiras, carruagens, caixas de todos os tamanhos

e feitios. Embora fosse um mágico, Hans nunca podia cumprir as suas

obrigações para com o diabo nem para com o homem do talho e, por

o REI CORRUPTO ^ß 71

conseguinte, era constantemente obrigado a vender — bastante contra

riado — os seus brinquedos ao diabo. Estes viviam maravilhosas aven

turas, mas, no fim, voltavam sempre para a loja de Hans Röckle.»^^

Era bastante fácil num conto de fadas, mas como podia um trabalhador

recuperar os frutos do seu trabalho sem recorrer à magia? Para Hegel, a

alienação era simplesmente uma realidade da vida, a sombra que cai entre o

conceito e a criação, entre o desejo e o espasmo. Uma vez que a ideia se torna

um objecto — quer seja uma máquina ou um livro — era "exteriorizada" e

separada do seu produtor. A separação era a conclusão inevitável de todo o

trabalho.

Para Marx, o labor alienado não era um problema eterno e inelutável da

consciência humana, mas o resultado de uma particular forma de organiza

ção económica e social. Uma mãe, por exemplo, não é automaticamente

separada do seu bebé logo que este sai do útero, muito embora o parto seja,

sem dúvida, um exemplo da «exteriorização» de Hegel. Mas ela sentir-se-ia

deveras muito alienada se, sempre que desse à luz, a criança aos guinchos lhe

fosse imediatamente tirada por um moderno Heredes. Tal era, mais ou

menos, a sorte diária dos trabalhadores que constantemente produziam o

que não podiam guardar. Não admira que se sentissem menos do que hu

manos. «O resultado é que», observou Marx num paradoxo característico, «o

homem (o trabalhador) sente que está apenas a agir livremente nas suas

funções mais animais — comendo, bebendo e procriando ou, no máximo,

no que respeita a sua habitação e ornamentação —, enquanto nas suas fun

ções humanas não passa de um animal.»

Qual era a alternativa? Quando escreveu os manuscritos de Paris, em

1844, Marx já possuía um formidável talento para detectar as falhas estru

turais da sociedade — a humidade, a madeira a apodrecer, os barrotes que

não podiam suster o peso colocado por cima deles — e explicar porquê a sua

demolição era urgentemente requerida. Mas as suas capacidades de capataz

e demolidor ainda não incluíam uma grande visão arquitectónica própria. «A

suplantação da propriedade privada é. . . a total emancipação de todos os atri

butos e sentidos humanos», escreveu. «Apenas através da exposição objectiva

da riqueza da natureza humana pode a riqueza da sensibilidade subjectiva

humana—um ouvido musical, um olho para apreciar a beleza das formas, em

resumo, sentidos capazes de gratificação humana — ser cultivada ou criada.»

Só o comunismo poderia resolver o conflito entre o homem e a natureza, e

72 ;>o KARL MARX

entre o homem e o homem. «E a solução para o enigma da historia», anun

ciou com um floreado grandiloquente. «E sabe que é a solução.»

Talvez; mas o que era exactamente? Incapaz de fazer elaborações sobre

o seu vago humanismo, Marx preferiu dizer o que não. Nenhuma solução

para o enigma da história poderia ser encontrada nas banalidades pequeno-

-burguesas de Proudhon («as suas homflias quanto ao lar, amor conjugal e

outras tolices do género») ou em sonhos de igualitários, como Fourier e

Babeuf, que — motivados peia «inveja e desejo de nivelar pelo baixo» — não

aboliriam a propriedade privada, mas meramente a redistribuiriam. O seu

imaginário Vale Feliz era «uma comunidade de labor e salários iguais a serem

pagos pelo capital comunitário, a comunidade como capitalismo universal. A

posse material continuaria a ser a finalidade da existência e a única diferença

seria que todos os homens — incluindo os antigos capitalistas — seriam re

duzidos à categoria de «trabalhadores». E, então, as mulheres? Como o casa

mento era em si mesmo uma forma de propriedade privada exclusiva, os gros

seiros comunistas tencionavam provavelmente que «as mulheres passassem do

casamento à prostituição geral» — tornando-se, desse modo, na propriedade

de todos. Marx recuou, horrorizado, perante essa perspectiva tão «bestial».

Pode perceber-se porquê a tentativa de viver em comunidade com Herr

Frau Ruge teve tão pouco sucesso. Apesar de toda a sua troça a respeito da

moral e maneiras burguesas, Marx era, no fundo, um patriarca supremamente

burguês. Quando bebia ou se correspondia com amigos, adorava piadas

porcas ou palpitantes escândalos sexuais. Mas, acompanhado por pessoas de

ambos os sexos, ostentava um cavalheirismo paternal que qualquer chefe de

família vitoriano admiraria. «Como pai e marido, Marx, apesar do seu tem

peramento irrequieto e selvagem, é o mais doce e gentil dos homens», ob

servou, surpreendido, um espião da polícia na década de 1850. O socialista

alemão, Wilhelm Liebknecht — seu companheiro em muitas pândegas em

tabernas — achava o pudor afectado de Marx tocante e um pouco cómico.

«Embora em discussões políticas e económicas, ele não tivesse costume de

medir as palavras e utilizava frequentemente bastantes palavrões, diante de

crianças e mulheres a sua linguagem tornava-se tão amável e requintada que

até mesmo uma governanta inglesa não teria motivo para se queixar. E se,

durante a conversa, fosse mencionado algum assunto delicado, Marx cora

va e retorcia-se na cadeira como uma virgem de 16 anos.»^''

E m Agosto de 1844, enquanto Jenny se encontrava ainda na sua dispensa

devido ao parto em Trier e Karl estudava economia sozinho no apartamento

o REI CORRUPTO o ^ 73

da Rue Vanneau, Friedrich Engels, então com 23 anos, passava por Paris

vindo de Inglaterra a caminho da Alemanha. Embora os dois homens já se

tivessem visto uma vez — quando Engels visitara a redacção do Kheinische

Zeitung2i 16 de Novembro de 1842 —, tinha sido um encontro frio e pouco

memorável: Engels desconfiou do jovem director que «se exalta como se dez

mil diabos o agarrassem pelos cabelos», conforme Edgar Bauer o tinha

prevenido. Marx mostrou-se igualmente desconfiado, pressupondo acertada

mente que, como Engels vivia em Berlim, devia com certeza ser cúmplice das

loucuras dos irmãos Bruno e Edgar Bauer, hegeUanos livres. Engels redimiu-

-se dentro de pouco tempo abandonando Berlim para ir morar em Manchester

e foi-Ihe permitido escrever vários artigos para o Rheinische Zeitung, o que des

pertou realmente o interesse de Marx foi uma braçada de ensaios submetida

ao Deutsche-Fran^sische Jahrbücher— uma crítica de Passado e Presente, de Thomas

Carlyle, e uma volumosa Crítica de Economia Política, a qual Marx considerou uma

obra de génio. Percebe-se porquê: apesar de ele já ter decidido que o idealis

mo abstracto não passava de conversa e que o motor da história era accionado

por forças económicas e sociais, os seus conhecimentos práticos quanto ao ca

pitalismo eram nulos. Tinha andado de tal modo embrenhado em contendas

dialécticas com filósofos alemães que a situação da Inglaterra — o primei

ro país industrializado e berço do proletariado — tinha escapado à sua aten

ção. Engels, da sua posição vantajosa no meio dos teares de algodão em

Lancashire, estava bem colocado para o esclarecer.

Quando voltaram a encontrar-se em Agosto de 1844, a atitude de Marx

tinha mudado e, em vez de desconfiança, manifestou uma curiosidade res

peitosa. Depois de tomarem uns aperitivos no Café de la Régence — anti

go covil de Voltaire e Diderot — Marx convidou Engels a vir ao seu apar

tamento para continuarem a conversa. Esta, acompanhada por copiosas

quantidades de vinho tinto, durou dez dias intensos que se prolongaram pela

noite fora e, no fim, eles juraram amizade eterna.

Curiosamente, nenhum deles escreveu sobre esse épico diálogo. N u m

prefácio escrito cerca de 40 anos mais tarde, o relato de Engels resume-se

a uma frase: «Quando visitei Marx no Verão de 1844, a nossa total concor

dância em todos os campos teóricos tornou-se evidente e o nosso trabalho

comum data dessa época.»'"' C'est tout: ninguém adivinharia que essa brusca

passagem de Engels por Paris poderia justamente vir a ser descrita como os

dez dias que abalaram o mundo.

74 ^ ^ KARL MARX ^ •

Os antepassados de Friedrich Engels tinham vivido em Wuppertal du

rante mais de dois séculos ganhando a vida como agricultores e, depois —

com maior lucro —, na indústria têxtil. O pai, também chamado Friedrich,

tinha ampliado e diversificado a empresa associando-se com dois irmãos,

Ermen, e construindo teares em Manchester (1837), Barmen e Engelskir

chen (1841).

Friedrich júnior nasceu a 28 de Novembro de 1820. A vida caseira era

devota e industriosa, sendo a rigorosa ortodoxia apenas ligeiramente aliviada

pela alegre disposição da mãe, EKse, cujo sentido de humor era «tão acen

tuado que, mesmo na sua velhice, ria-se por vezes tanto que as lágrimas lhe

corriam pelas faces abaixo». ** O pai, personagem muito mais austera, espiava

ansiosamente o comportamento do filho mais velho para que ele não se

desviasse do caminho da virtude. «Friedrich obteve resultados médios no

Hceu», escreveu a EHse a 17 de Agosto de 1835. «Como sabes, os seus modos

melhoraram, mas, apesar dos severos castigos que recebeu no passado, não

parece ter aprendido a ser obediente. Descobri, hoje, mais um Mvro repreen-

sível na sua secretária: um romance do século XIII. Que Deus o proteja pois

inquieto-me muitas vezes por causa deste nosso filho que, por outro lado,

demonstra ser tão prometedor.» Aparentemente, Deus não se ralava com o

jovem Engels, o qual, muito em breve, passou a 1er «livros repreensíveis»

muito mais perigosos.

Conformou-se às expectativas dos pais entrando — embora sem gran

de entusiasmo — na empresa familiar. Na sua caderneta escolar, classe de

1837 em Michaelmas, o director observou como nota final que o jovem

Friedrich «se julgava inclinado» a entrar nos negócios para fazer «uma car

reira secundária». N o íntimo, já tinha outros planos. Mas precisava de ren

dimentos e um emprego na firma Ermen & Engels seria uma sinecura útil

que garantia segurança financeira e bastante tempo uvre.

Começou a sua aprendizagem em Bremen, onde o pai lhe arranjou uma

posição não paga num negócio de exportações dirigido por Heinrich Leupold.

«É um ripo terrivelmente simpático, oh, tão bom que nem imaginam», dis

se Engels do patrão' ' . Numa carta para os seus antigos colegas de escola,

Friedrich e Wilhelm Graeber, datada de 1 de Setembro de 1838, ele pede

desculpa por não escrever mais a fundo «porque o director está aqui senta

do». Mas, como o parágrafo seguinte indica, Leupold não era mau patrão:

o REI CORRUPTO 0 ^ 75

«Desculpem eu escrever tão mal; emborquei três garrafas de cerveja, hurra!, e não posso demorar porque isto tem de ir imediatamente para o correio. Já estão a bater as três horas e as cartas têm de ser enviadas para o correio às quatro. Com mil milhões de macacos, notam de certeza que estou com umas cervejas no buxo. . . Que estado lamentável! O velhote, quer dizer, o director, vai sair e eu estou em palpos-de-aranha. Não faço ideia do que estou a escrever. Tenho a cabeça cheia de toda a espécie de ruídos.»

Quando não estava a cumprir a suas mínimas obrigações no escritório, ou a escrever cartas bêbedo, ou deitado numa rede a olhar para o tecto através do fumo de um charuto, ou a vaguear a cavalo pelos subúrbios de Bremen, Engels já ouvia aqueles ruídos no crânio. Compunha música coral — grande parte copiada de cânticos antigos — e andava a praticar poesia. Um dos seus poemas, «O Beduíno», foi aceite para pubKcação pelo Bremisches Conver-sationsblatt, em Setembro de 1845. Digno de nota por ser o primeiro trabalho publicado de Engels, também assinalou o seu primeiro encontro com a censura dos editores burgueses.

O poema começava por lamentar a sorte dos beduínos — «filhos do deserto, orgulhosos e livres» — que tinham sido roubados desse orgulho e dessa liberdade, sendo, agora, meras diversões para turistas. Terminava com um apaixonado grito de batalha:

«Voltem de novo para casa, exóticos convivas! As vossas túnicas do deserto nada têm a ver Com os nossos mantos e vestes prussianos. Nem os vossos cantos com a nossa literatura!»^°

A ideia, explicou mais tarde, era de «contrastar o beduíno, na sua condição presente, com a audiência, a qual lhe era totalmente alheia». Mas, aquando da publicação do texto, isto foi substituído por uma nova estrofe final acrescentada pelo próprio editor e sem permissão do autor:

«Saltam a mando e obediência do dinheiro, E não por vontade primordial da Natureza. Os olhos são inexpressivos, estão em silêncio. Todos menos um que entoa um canto fúnebre.»

76 '«I. KAM. MARX

Uma colérica exortação transformou-se, assim, em nada mais do que um triste encolher de ombros melancólico. Engels mostrou-se compreensivelmente contrariado: de forma primitiva, já tinha reparado que a sociedade era moldada por imperativos económicos, mas o editor não permitiu que ele nomeasse ou condenasse os culpados. «É evidente», concluiu após este infeliz começo, «que o meus versos não têm grande significado.»^^

O seu gosto literário estava a tornar-se mais político e prosaico. Comprou um píLiiñeto, Jacob Grimm über seiner Entlassung, que descrevia a demissão de sete professores da Universidade de Göttingen, que tinham ousado protestar contra o repressivo regime de Ernst August, o novo rei de Hanover. «E excelente e está escrito com uma força pouco comum.»^^ Leu sete outros panfletos sobre o «caso de Colónia» — a recusa, em 1837, do arcebispo de Colónia de obedecer ao rei da Prússia. «Li coisas e encontrei expressões — estou a adquirir uma boa prática, sobretudo em literatura — que nunca seriam autorizadas a ser impressas aqui, ideias bastante liberais, etc... realmente maravilhosas.» Encorajado pela cerveja, referiu-se a Ernst August numa das suas cartas a Graebers chamando-o «velho bode de Hanôver».

As vozes mais obviamente «progressivas» da época vinham do grupo de escritores Jovem Alemanha; eram discípulos de Heine queadvogava a Uberdade de expressão, a emancipação das mulheres, o fim da tirania religiosa e a abolição da aristocracia hereditária. «Quem pode manifestar-se contra tais coisas?», perguntava, meio trocista, Engels. Mostrava-se impaciente com o liberalismo fácu e vago do grupo, mas, na ausência de algo mais anaKtico ou rigoroso, não tinha outro lado para se voltar. «O que é que eu, pobre coitado, posso fazer agora? Continuar a estudar sozinho? Não me apetece. Tor-nar-me leal? Nem pensar!»^-' E, z'&úni, faute de mieux, juntou-se ao grupo Jovem Alemanha. «Não consigo dormir de noite por causa das ideias deste século. Quando estou nos correios e olho para o brasão da Prússia, o espírito de liberdade apodera-se de mim. Procuro, sempre que leio um jornal, marcas de liberdade. Intrometem-se nos meus poemas e fazem pouco dos obscurantistas envoltos em hábitos de monge e arminho.»

Na sua casa, em Barmen, os pais nada sabiam da febre democrática do filho pois, então e ao longo de muitos anos, ele fez o possível para os manter na ignorância. Mesmo depois de ter chegado à meia-idade, quando ele e Marx aguardavam alegremente a iminente crise do capitalismo, Engels com-portava-se da melhor maneira sempre que Friedrich sénior o vinha visitar a Manchester e desempenhava o papel do filho obediente a quem a fortuna

o REI CORRUPTO g ^ 77 XA

da familia podia ser confiada — assim como, ao caçar a cavalo com os

membros do clube Cheshire Hunt, se fazia passar por um negociante local

conservador. O seu comunismo, ateísmo e promiscuidade sexual faziam

parte de uma vida à parte.

Para aqueles que estavam a par dessa existência dupla, as opiniões de

Engels quanto aos pais e o meio em que viviam já era conhecida desde Março

de 1839, altura em que escreveu um brilhante ataque contra os autocom-

placentes e presumidos habitantes de Bramen e Elberfeld para o Telegraph für

Deutscheland, um jornal da Jovem Alemanha. O autor, de 18 anos, assinou

com o pseudónimo de Friedrich Oswald — precaução necessária, pois os

artigos constituíam um verdadeiro parricidio jornalístico. Nas «ruas lúgu

bres» de Elberfeld, todas as cervejarias ficavam a transbordar nas noites de

sábado e domingo:

«... e quando fecham, por volta das onze, os bêbedos saem aos tram

bolhões e, regra geral, cozem a bebedeira na valeta... As razões de tal

coisa são perfeitamente claras. Primeiro e principalmente, o grande res

ponsável é o trabalho na fábrica. Salas acanhadas onde os trabalhadores

respiram mais fumo de carvão e poeira do que oxigénio — e a maior parte

dos casos de intoxicação começam aos seis anos de idade —, privam-nos

de toda a energia e alegria de viver. Os tecelões, que têm teares em casa,

trabalham debruçados sobre eles de manhã à noite e dissecam a espinal

medula diante de um fogão. Aqueles que escapam ao misticismo são

destruídos pela bebida.»

Como esta referência ao misticismo implica, Engels já tinha identifica

do a religião como sendo serva da exploração e da hipocrisia: «Pois é uma

realidade que as pessoas piedosas entre os proprietários das fábricas são as

que tratam pior os trabalhadores; empregam todos os meios para reduzir os

seus salários a pretexto de os impedir de beber, mas, quando há eleições, os

padres são os primeiros a corromper a sua gente.» Engels chegou a nomear

alguns desses lacrimosos fariseus, embora se tenha abstido de mencionar o pai.

As «Cartas de Elberfeld» provocaram alvoroço. «Ha, ha, ha!», escreveu

a Friedrich Graeber, um dos poucos a ser posto ao corrente. «Sabes quem

escreveu o artigo que apareceu no Telegraph? O autor é quem te escreve estas

linhas, mas aconselho-te a não dizer palavra quanto a isto. Podia meter-me

num grande sarilho.»^''

78 ^ ^ I<ARI. MARX

Na Primavera de 1841, Engels partiu de Bremen para ir cumprir o servi

ço militar em BerKm, aKstando-se na artilharia da Guarda Real. A escolha de

Berlim, capital do Jovem Hegelianismo, não foi por acaso: embora a farda o

camuflasse dando-lhe um ar de respeitabilidade e assegurasse os pais, passou

todos os momentos de folga imerso em teologia radical e jornalismo. Fez um

truque semelhante em Outono de 1842, ao ser colocado na filial de Ermen &

Engels, em Manchester: enquanto aparentemente adquiria prática no negócio

da família, como um herdeiro consciencioso era suposto fazê-lo, aproveitou

a oportunidade para investigar as consequências humanas do capitalismo.

Manchester era o locai onde a lei antitrigo tinha nascido, o centro da greve

geral dei 842, e uma cidade a fervilhar de cartistas, owenistas e agitadores in

dustriais de todo o tipo. Viria a descobrir, aqui, a natureza desprezível do ser

humano. D e dia, era um jovem e diligente gerente na Bolsa de Algodão;

mudava de campo depois do trabalho e explorava a terra incógnita do proleta

riado de Lancashire, a fim de reunir dados e impressões para a sua obra-pri-

ma dos primeiros anoSj^j Condições da Classe Operária em Inglaterra (1845). Fre

quentemente acompanhado pela nova amante, uma operária ruiva chamada

Mary Burns, aventurava-se nos bairros da lata que poucos outros homens

da sua classe social conheciam. Foi aqui, por exemplo, que retratou a «Pe

quena Irlanda», a área de Manchester a sudoeste de Oxford Road:

«Uma massa informe de Hxo, detritos e porcaria repugnante em to

das as direcções; a atmosfera é envenenada por eflúvios, carregada e

toldada por fumo de uma dúzia de chaminés de fábricas. Uma multidão

de mulheres e crianças em farrapos anda por aqui, tão nojentos como os

porcos que se espojam no lixo e nas poças. E m resumo, todo este chi

queiro proporciona um espectáculo tão odioso e repulsivo, que dificil

mente poderá ser igualado. A raça que vive nestes casebres em ruínas,

remendados com oleados, por detrás das janelas partidas e portas arrom

badas ou em caves escuras, húmidas e fedorentas como se tivesse uma

finalidade, deve ter chegado ao nível mais baixo da humanidade. Tal é a

impressão e a ideia com que se fica ao ver este bairro. Mas o que é que

se deve pensar ao saber que uma média de 20 seres humanos vive em cada

destes cubículos?»^^

O que conferiu intensidade e profundidade e este livro foi a hábil teia (era,

afinal de contas, um industrial de têxteis) de observações em primeira mão.

o REI CORRUPTO ^ß 79

provenientes de comissões parlamentares, funcionários do departamento de saúde e o relatório de Hansard. O Estado britânico pode ter feito pouca coisa, ou mesmo nada, para melhorar as condições dos trabalhadores, mas tinha reunido imensos dados sobre o horror das suas vidas que estavam disponíveis a quem quer que se desse ao trabalho de os retirar de uma poeirenta prateleira de biblioteca. Artigos de jornais, sobretudo de processos criminais, proporcionavam ainda mais pormenores. «No dia 15 de Janeiro de 1844, uma segunda-feira», anotou Engels:

«dois rapazes esfomeados foram trazidos à presença do magistrado da polícia. Tinham roubado e devorado logo a seguir uma perna de vitela meio cozida de uma loja. O magistrado decidiu investigar o caso e o agente da poKcia deu-lhe os seguintes pormenores: a mãe dos dois rapazes era viúva de um antigo soldado e vivia com muita dificuldade desde a morte do marido... Quando o poHcia foi ter com ela, encontrou-a com seis outros filhos pequenos literalmente amontoados numa sala do fundo, cuja única mobília eram duas cadeiras sem assento, uma pequena mesa com duas pernas partidas, uma chávena quebrada e um pequeno prato. Na lareira mal havia vestígios de lume e, a um canto, estava empilhado um pequeno monte de trapos velhos que servia de cama para toda a família.»

Engels ficou espantado por descobrir que a administração da burguesia britânica proporcionava tantas provas incriminadoras contra ela mesma. Depois de citar vários revoltas, casos de doença e fome, publicados no jornal da classe média, Manchester Guardian, exultou: «Tenho imenso prazer em ouvir o testemunho dos meus oponentes.» Basta examinar as citações do relatório oficial do Governo e de The Economist mc\\xià2i,s em O Capitalp2xa ver quanto Karl Marx aprendeu através desta técnica.

Marx e Engels complementaram-se perfeitamente. Embora Engels não pudesse competir com a erudição de Marx, pois não finalizara a universidade, tinha valiosos conhecimentos em primeira mão sobre o funcionamento do capitalismo. Mas o «acordo absoluto em todos os campos teóricos» não se estendia aos seus respectivos estilos e hábitos. Quase se pode dizer que os dois personagens eram a Tese e a Antítese encarnadas. Marx escrevia em garatujas com inúmeras emendas, borrada demonstração do esforço que lhe custava; a escrita de Engels era nítida, elegante, metódica. Marx era atarra-

80 ^ © KARL MARX

cado e moreno, um judeu atormentado pela aversão à sua própria pessoa;

Engels era alto e louro, com mais do que uma simples sugestão à arrogân

cia ariana. Marx vivia no caos e na penúria; Engels era um trabalhador efi

caz que ocupava um emprego a tempo inteiro na firma da família enquan

to, ao mesmo tempo, mantinha uma produção formidável de livros, cartas

e peças jornaKsticas... escrevendo igualmente, com frequência, artigos em

nome de Marx. N o entanto, arranjava sempre tempo para desfrutar o con

forto da vida da alta burguesia: tinha cavalos nos seus estábulos, vinho na sua

adega e amantes no seu quarto. Durante os longos anos que Marx passou

quase na miséria, fugindo aos credores e debatendo-se para sustentar a fa

mília, Engels, sem filhos, prosseguiu a vida de prazer e despreocupação dos

solteiros ricos.

Apesar das suas óbvias vantagens, Engels sabia que nunca viria a ser a

figura dominante e, desde o princípio, sujeitou-se a Marx, aceitando que o

seu dever histórico era apoiar e subsidiar o indigente sábio sem queixumes

nem inveja — ou, já agora, sem muitas demonstrações de gratidão. «Não

posso de todo compreender», escreveu em 1881, quase 40 anos depois de

se terem encontrado. «Como é que se pode ter inveja do génio; trata-se de

algo tão especial que aqueles que não o possuem sabem, desde o princípio,

que é inatingível; para se ser invejoso de um tal dom é preciso ter uma grande

estreiteza de espírito.»^'' A amizade de Marx e a culminação triunfante da sua

obra seriam recompensa suficiente.

Não tinham segredos entre eles, nenhuns tabus: se deparava com um

enorme furúnculo no pénis, Marx não se coibia de fazer uma descrição

pormenorizada ao amigo. A sua volumosa correspondência constitui um

apurado guisado de história e mexericos, economia política e obscenidade

de estudantes, ideais elevados e intimidades degradantes. Como exemplo

mais ou menos ao acaso, Marx, numa carta a Engels de 23 de Março de 1835,

discute o rápido aumento de peritos britânicos em territórios turcos, a po

sição de DisraeK no Partido Conservador, a passagem do projecto de lei so

bre as reservas do clero canadiano na Câmara dos Comuns, o tratamento dos

refugiados por parte da polícia britânica, as actividades dos comunistas ale

mães em Nova Iorque, a tentativa do editor de Marx para o vigarizar, a si

tuação na Hungria. . . e a alegada flatulência da imperatriz Eugenia: «Parece

que aquele anjo sofre de um mal indelicadíssimo. É apaixonadamente viciada

em peídos e é incapaz, mesmo em companhia, de os suprimir. Numa certa

ocasião, recorreu a montar a cavalo como remédio. Mas, na medida em que

o REI CORRUPTO i^1^ 81

isso lhe foi agora proibido por Bonaparte, ela "descarrega-se". E apenas um

silvo, um pequeno murmúrio, quase nada, mas sabes muito bem que os

franceses são muito sensíveis ao menor sopro de vento.»

Como cosmopolitas sem terra, chegaram a criar uma linguagem própria;

uma estranha algaraviada em inglês, francês, latim e alemão. Todas as cita

ções neste livro foram traduzidas para poupar ao leitor a angústia de tentar

decifrar o código marxista, mas uma breve frase dará uma ideia da sua ex

pressiva, embora incompreensível, sintaxe: Diese excessive technicality of an

cient law i^eigtjurispruden^asfeather of the same bird, als d. religiösen Formalitäten

^. i3. Auguris etc. od. d. Hokus Fokus des mediane man der savages. Engels apren

deu a compreender esta confusão facilmente e, assim como Jenny, conseguia

1er os gatafunhos de Marx. À parte estes dois próximos colaboradores, pou

cos foram aqueles que, sem arrancar os cabelos, tiveram sucesso. Após a

morte de Marx, Engels teve de dar longas lições de paleografia aos demo

cratas sociais alemãs que desejavam compilar os documentos inéditos do

grande homem.

Engels serviu Marx como espécie de mãe substituta — enviando-lhe

dinheiro, preocupando-se com a sua saúde e lembrando-lhe constantemente

para não negligenciar os estudos. Na primeira carta que existe e que foi escrita

em Outubro de 1844, já insistia para que Marx terminasse os manuscritos

sobre poKtíca e economia: «Mexe-te para que o material que compilaste seja

pubHcado em breve. Já não é sem tempo!» E, novamente, a 20 de Janeiro do

ano seguinte: «Tenta terminar o teu livro de economia política. Mesmo que

haja muita coisa com que não estejas satisfeito, não interessa. As pessoas

estão prontas e devemos bater no ferro enquanto ele ainda está quente.. . Por

isso, tenta terminá-lo antes de Abril. Faz como eu, marca uma data para o teres 27 definitivamente acabado e certifica-te de que vai rapidamente para a tipografia.»

Mas não havia nada a fazer. Marx era desencaminhado pelo próprio

Engels. Este cometeu o erro de propor que colaborassem juntos num pan

fleto contra Bruno Bauer e a sua trupe de palhaços sob o título de Crítica do

Criticismo C 'Z/Vo, assinalando que não deveria ter mais de 40 páginas, pois

«acho estas balelas teóricas cada vez mais entediantes e irrita-me o número

de palavras que tem de ser consagrado ao tópico do "homem" e todas as 28 Mnhas que têm de ser lidas, ou escritas, contra a teologia e a abstracção...»

Engels redigiu rapidamente a sua parte de 20 páginas enquanto ainda se

encontrava no apartamento da Rue Vanneau e, depois, regressou para casa

na Renânia. Vários meses depois, ficou «bastante surpreendido» ao saber que.

82 ^ ^ KARL MARX

agora, o panfleto era uma monstruosidade com mais de 300 páginas e fora

reintitulado A. Sagrada Família.

«Vai parecer estranho se mantiveres o meu nome na capa», comentou. «A

minha contribuição foi praticamente nula.» Mas este não era o único moti

vo para desejar que o seu nome fosse retirado. «O Criticismo Crítico ainda não

chegou!», disse a Marx em Fevereiro de 1845. «O seu novo titvXo^ASagrada

Família, vai certamente causar-me sarilhos com o meu piedoso e já muito

exasperado parente, embora tu, claro está, não pudesses estar ao corrente de

uma coisa dessas.»^^ O parente irritado era, claro está, o seu beato e despó

tico pai que começava a recear pela salvação da alma cristã do filho.

«Quando recebo uma carta, é farejada por todos os lados antes que ma

entreguem», resmungava Engels. «Não posso comer, beber, dormir nem

mandar um peido sem ter de enfrentar a mesma maldita expressão de cor

deiro de Deus.»^°

U m dia, quando Engels chegou a cambalear duas da manhã, o

desconfiado patriarca perguntou-lhe se ele fora preso. D e modo algum,

ripostou Engels de maneira tranquilizadora: tinha simplesmente estado a

discutir ideias comunistas com Moses Hess. «Com o Hess!», gaguejou o pai.

«Deus nos valha! Andas com péssimas companhias!»

E o pai não sabia da missa a metade. «Agora, tudo o que o meu velho tem

de fazer é descobrir a existência do Criticismo Critico pata me pôr, certamen

te, no olho da rua. E, ainda por cima, há a constante irritação de ver que não

há nada a fazer com esta gente; adoram flagelar-se, torturar-se com as suas

fantasia infernais e ninguém consegue sequer ensinar-lhes os mais banais

princípios de justiça.».

yí Sagrada Família, ou a Crítica do Criticismo Crítico: Contra Bruno Bauer e

Consortes, foi pubUcada em Frankfürt na Primavera de 1845. Ao voltar a 1er

o livro cerca de 20 anos mais tarde, Marx ficou «agradavelmente surpreso por

se dar conta de que não há razão para nos sentirmos envergonhados do texto,

embora o culto a Feuerbach provoque, agora, uma impressão cómica».^^

Poucos outros leitores partilharam da sua satisfação. Por volta da altura em

que Marx começou a escrever esta epopeia desdenhosa, os irmãos Bruno,

Edgar e Egbert Bauer — a sagrada família do título — já tinham derrapa

do do ateísmo e comunismo militantes para uma mera palhaçada, assim

como os Dadaístas ou Futuristas dos anos de 1930. Tudo o que eles mere

ciam, ou precisavam, era uma bofetada e não um bombardeamento em lar

ga escala. Quem mata moscas com um bacamarte?

o REI CORRUPTO o * ^ 83

Os chumbos de Marx acertaram em outros alvos que não mereciam a sua atenção. Havia vários capítulos de invectivas contra Eugène Sue, autor de populares romances sentimentais, cuja única ofensa era ter sido elogiado no Allgemeine Literatur-Zeitung, de Bruno Bauer. Embora Sue possa ter sido tão horrível como Marx sugeria, o castigo era absurdamente desproporcionado em relação ao crime: tentem imaginar, através de um equivalente moderno, uma magnum opus do professor George Steiner que atacasse As Pontes de Madison Country. Até mesmo Engels foi obrigado a admitir que Marx estava a desperdiçar o seu humor azedo no ar do deserto. «A coisa é demasiado longa», escreveu. «O supremo desprezo que nós dois manifestamos pelo Literatur-Zeitung contrasta flagrantemente com as 22 folhas de papel (352 páginas) que lhe dedicámos. Além do mais, a maior parte do criticismo quanto à especulação e ao ser abstracto em geral será incompreensível para a maioria do público e não terá interesse. De outro modo, o livro está lindamente escrito...»

Ou, como o vigário cheio de tacto disse quando o bispo lhe serviu um OYO podre: «Não, eminência, há uns bocados que são excelentes!»

o RATO N O SOTAO

Caso Marx se tivesse limitado a irritar hegelianos obscuros e romancis

tas de segunda ordem, talvez o tivessem deixado em paz. Mas ele não podia

resistir à possibilidade de arreliar criaturas maiores e mais perigosas. N o

Verão de 1844, depois de ter escapado a uma tentativa de assassínio, o rei

Frederico Guuherme IV, da Prússia, enviou uma breve mensagem de agra

decimento aos seus leais súbditos antes de partir para férias: «Não posso

abandonar o solo pátrio sem exprimir publicamente a gratidão profunda

mente sentida em Meu nome e no da Rainha, pela qual o Nosso coração

ficou comovido.»

Marx achou isto hilariante — e disse-o, con brio, numa artigo publicado

no Vorwärts!. A sintaxe do rei, escreveu, parecia implicar que os peitos reais

estavam comovidos pelo nome real:

«Se o espanto perante este estranha construção de frase força uma

pessoa pensar novamente, nota-se que a conjunção relativa "pela qual o

nosso coração ficou comovido" se refere não ao "nome", mas à "grati

dão" colocada mais longe.. . A dificuldade é devida à combinação de três

ideias: 1 que o rei abandona a pátria; 2 que a deixa apenas por um curto

período de tempo; 3 que ele sente a necessidade de agradecer ao povo.

A enunciação demasiado concentrada dessas ideias faz parecer que o rei

está a exprimir a Ç.UÍLgratidão apenas porque deixa a pátria.. .»^

Se Marx julgou que poderia escapar com estes comentários de lesa-ma-

jestade, tinha-se esquecido de que os soberanos têm a sua própria solidariedade

86 ^ o I<j\RLMARX

maçónica. A 7 de Janeiro de 1845, o enviado prussiano, Alexander von

Humboldt entregou, no decorrer de uma audiência com o rei Luís Füipe, dois

itens: um valioso vaso de porcelana e uma carta de Frederico Guilherme IV

protestando contra os ultrajantes insultos e difamações publicados no

l^orwãrtslhuís Filipe concordou que haviam, de facto, demasiados filósofos

alemães em Paris: o jornal foi fechado duas semanas mais tarde e o minis

tro do Interior francês ordenou a expulsão de Marx.

Para onde ir agora? O único rei no continente europeu que, apesar de

exigir uma promessa escrita de bom comportamento, ainda aceitava refu

giados era Leopoldo I, da Bélgica. («A fim de obter autorização para residir

na Bélgica concordo prometer, sob a minha palavra de honra, nada pubK-

car neste país sobre política actual (assinado) Dr. Karl Marx.») Enquanto

Jenny permaneceu durante uns dias em Paris para vender a mobília, Marx

partiu de Paris acompanhado por Heinrich Bürgers, um jovem jornalista do

Vorwärst!, que saía do país revoltado pelo «castigo infligido no homem que

foi meu amigo e fiel guia dos meus estudos». Enquanto a carruagem avan

çava aos solavancos através da Picardia, Bürgers tentou em vão animar o seu

mentor entoando canções das tabernas alemãs.

Uma boa noite de sono restaurou melhor as forças de Marx que, na ma

nhã seguinte, já estava impaciente para entrar em acção. Apressou Bürgers

a terminar o pequeno-almoço, dizendo-lhe que «temos de partir já para ver

o Freüigrath ainda hoje». Ferdinand Freüigrath, antigo poeta da corte de Fre

derico Guilherme IV, tinha fugido para a Bélgica há umas semanas a fim de

não ser preso por causa da publicação de uma obra traiçoeira. Confissão de Fé.

Outrora alvo habitual do velho Rheinische Zeitung, tinha sido agora instanta

neamente absolvido por se ter juntado à causa antiprussiana. Outros recém-

-chegados da diáspora radical incluíam Moses Hess, Karl Heinzen, o radi

cal suíço Sebastian Seüer, um antigo oficial de artilharia, Joseph Weydemeyer

(o qual viria a tornar-se um amigo de sempre), um grupo de socialistas po

lacos — e, mais importante, Friedrich Engels que não precisou de ser exces

sivamente persuadido para escapar à asfixiante casa paterna e seguir Marx

no exílio. O irmão de Jenny, Edgar von Westphalen, o encantador, embora

incontinente, cachorrinho da família, também os acompanhava.

Quando a mulher e a filha se juntaram a Marx, já ele tinha voltado à velha

rotina — 1er, escrever, intrigas e copos. «Éramos loucamente alegres», recor

dava Weydemeyer. Longas manhãs passadas em cafés e noites ainda mais

longas a jogar às cartas e a conversar meio bebidos. Por uma vez, até mes-

o RATO NO SÓTÃO « ^ 87

mo as finanças da família eram prósperas: dois dias antes de partir de Paris, um editor de Darmstadt tinham dado um avanço de 1500 francos a Marx pelo seu embrionário livro sobre economia poKtica e uma colecta feita por Engels, sobretudo entre adeptos na Alemanha, acrescentava mais mil francos ao mealheiro. Engels também entregou o dinheiro que tinha recebido pelo seu livro. As Condições da Classe Operária em Inglaterra, para que «pelo menos, esses filhos da mãe não tenham a satisfação de verem a sua infâmia causar-te embaraços financeiros». Mas, acrescentou com presciência, «receio que, no fim, também terás problemas na Bélgica e que a única alternativa será a Inglaterra».^

Jenny, mais uma vez grávida, tentava esconder o seu desapontamento de ter abandonado as lojas e salões de Paris pela enfadonha Bruxelas. No entanto, a mãe ficou preocupada com este último transtorno doméstico e emprestou-lhe permanentemente a criada de Trier, Helene Demuth, a qual passou o resto da vida a manter a casa de Marx em ordem através de inúmeras crises e vicissitudes. Era uma mulher graciosa de origem camponesa com 25 anos — rosto redondo, olhos azuis e sempre bem arranjada e limpa mesmo quando rodeada pela miséria. A sua eficiência doméstica era formidável e infatigável. Em 1922, uma mulher que visitara os Marx em rapariga ainda se lembrava da excelente cozinha de Helene. «As tortas de fruta que fazia ainda hoje são uma constante e doce recordação.»^ Mas Helena não era nenhuma humude criada para todo o serviço: tomava conta dos patrões com uma ferocidade de tigre e os convidados que abusavam da hospitalidade deles eram maltratados.

Durante os primeiros meses, Marx e a família moraram em hotéis e quartos de amigos. Mas, assim que encontraram um alojamento permanente — uma pequena casa com terraço na Rue d'Alliance, número 5, na extremidade oriental da cidade —Jenny e a filha foram passar as férias de Verão na residência da baronesa Von Westphalen, na Alemanha, deixando a Karl a tarefa de tornar o lugar habitável. <A. pequenina casa deve servir», escreveu Jenny de Trier. Um quarto no andar de cima teria de ser reservado para o parto, mas «logo que tiver a criança, mudo novamente para o andar de baixo. Tu poderias dormir no que é agora o teu escritório e montar a tua tenda no imenso salão. Assim, o barulho das crianças não te perturbaria e eu, quando as coisas estivessem tranquilas, iria ter contigo... Que rica colónia de mendigos vai ser Bruxelas!»"* A 26 de Setembro, apenas 15 dias depois de ter voltado de Trier, Jenny deu à luz outra filha, Laura.

88 ^ ^ KARLMARX

Marx tinha-se comprometido com as autoridades belgas de nada publicar sobre a política actual, mas julgou que tinha o direito de participar em política e de prosseguir o seu estudo de historia económica. Daí os apelos a Engels, actualmente um indispensável lugar-tenente. No Verão de 1845, os dois homens fizeram uma visita de seis semanas a Inglaterra, em parte para aproveitar as bem fornecidas bibliotecas de Londres e Manchester, mas também para se encontrarem com os Kderes dos Cartistas, o primeiro movimento operário do mundo. Ao regressarem, Engels alugou uma casa ao lado da dos Marx e pôs-se a organizar os socialistas espalhados em Bruxelas numa fi^rça política comparável.

Primeiro, porém, havia o assunto do livro de Marx a tratar. A viagem de estudo à Grã-Bretanha e as longas horas que ele tinha passado na biblioteca municipal de Bruxelas devem ter aumentado as esperanças do editor, Karl Leske, que esperava a conclusão da Crítica Económica e Política por volta do fim do Verão. Mas Marx já pusera o manuscrito de lado de pois de ter escrito pouco mais do que o índice. «Pareceu-me muito importante», explicou a Leske, «preceder o meu desenvolvimento positivo com um texto polémico contra a filosofia alemã e o socialismo alemão até à actualidade. Isto é necessário a fim de preparar o público para o meu ponto de vista em economia, o qual é diametralmente oposto ao dos investigadores alemães passados e presentes... Se for necessário, posso apresentar numerosas cartas que recebi da Alemanha e da França como prova de que esta obra é ansiosamente aguardada.»^

Mas tal não aconteceu: o seu «texto polémico» só encontrou editor em 1932. A única expectativa pública vinha do próprio Marx que, agora, estava a ser caricaturado pelos Jovens Hegelianos como improvável discípulo de Feuer-bach. Isso enñarecia-o: a desmistificação de Hegel por Feuerbach tinha sido, na verdade, um glorioso momento de revelação, como o primeiro vislumbre do Homero, de Chapman, por parte de Keats, mas Marx há muito tinha concluído que a crítica apenas substituía um mito por outro. Tinha chegado agora a vez de Feuerbach, o homem que virara Hegel de pernas para o ar, de receber o mesmo tratamento — tratava-se de um «ajuste de contas», como dizia Marx.

O seu exercício em contabilidade filosófica começou na Primavera de 1845, ano em que assentou as breves notas actualmente conhecidas por Teses sobre Feuerbach. «A principal falha de todo o materialismo anterior (o de Feuerbach incluído) é que as coisas, a realidade, a sensualidade, são apenas concebidas sob a forma de objecto, ou de contemplação, e não como actividade eprática humana sensual.»'^

o RATO NO SÓTÃO < ^ 89

Feuerbach tinha exposto as bases seculares da religião, mas, a seguir,

permitiu que o própr io domínio secular se dispersasse em nuvens de

abstracção. «A questão de saber se a verdade objectiva pode ser atribuída ao

pensamento humano», argumentou Marx, «não é uma questão teórica, mas

prática... Toda a vida social é essencialmente^ritóVí?.. .Os filósofos interpre

taram meramente o mundo de várias maneiras; a questão é mudá-lo.» A teoria

sem prática era uma forma de masturbação escolástica — bastante prazen

teira, mas, em última análise, infértil e sem consequências. N o entanto, Marx

e Engels passaram o Inverno de 1845-46 a teorizar à farta enquanto com

punham A Ideologia Alemã.

O livro começa com uma daquelas generalizações de Marx para chamar

a atenção: «Até hoje os homens conceberam sempre ideias erradas quanto

a eles mesmos, sobre o que são e o que devem ser.» Isto é seguido por ou

tro dos seus truques favoritos, a parábola provocadora:

«Era uma vez um tipo valente que julgava que os homens se afoga

vam apenas porque estavam possuídos pela ideia da gravidade. Se conse

guissem tirar tal ideia da cabeça, confessando, por exemplo, que se tra

tava de uma superstição, de um conceito religioso, ficariam sublimemente

livres dos perigos da água. Ele tinha lutado toda a sua vida contra a ilu

são da gravidade e todas as estati'sticas davam-lhe novas e múltiplas pro

vas das suas nocivas consequências. Este tipo valente era o protótipo dos

novos filósofos revolucionários alemães.»^

Esses filósofos eram carneiros atormentados pela ilusão de que eram

lobos cujo insípido balido «apenas imitava, em forma filosófica, as concep

ções da classe média alemã».

Um dos carneiros era o próprio Ludwig Feuerbach, cuja concepção do

mundo era «limitada, por um lado, à sua mera contemplação, e, por outro,

a meras sensações». Assim ele nem sequer reparava que os objectos naturais

mais simples são, na realidade, produtos das circunstâncias históricas. «Por

exemplo, a cerejeira, como quase todas as árvores de fruta, foi, como é de

sobremaneira conhecido, transplantada há apenas alguns séculos através do

comércio para as nossas regiões e, por conseguinte, só por esta acção de uma

dada sociedade numa dada época é que tornou numa "certeza sensual".» Para

Feuerbach, a cerejeira encontrava-se simplesmente alie. constituía um dos

dons altruístas da Natureza.

90 ^ O KARL MARX - -

Curiosamente, e embora a intenção do livro fosse um ajuste de contas com

Feuerbach, Marx reservou-lhe apenas alguns capítulos curtos. Bruno Bauer

— «São Bruno» — foi despachado com rapidez semelhante. Mas 300 páginas

ilegíveis foram dedicadas às loucuras de Max Stirner, autor anarquista dos

Jovem Hegelianos, que propunha o egoísmo e o sibaritismo para Hbertar os

indivíduos da opressão imaginária. Embora o credo existencialista de Stirner

estivesse a pedi-las, um directo rápido teria dado conta do recado com maior

eficácia do que o sarcasmo verboso de Marx — o qual, ironicamente, se pa

rece como um bom exemplo do egoísmo sibarita que Stirner advogava.

Apesar de todos os seus longueurs, A Ideologia Alemã é um relato muito

revelador do que Marx, que contava então 27 anos, tinha aprendido através

das suas aventuras filosóficas e políticas. Tendo rejeitado Deus, Hegel e

Feuerbach em rápida sucessão, ele e Engels estavam agora prontos para re

velar o seu próprio plano de teoria prática ou prática teórica — aliás, conhe

cida por materialismo histórico. «As premissas a partir das quais começamos»,

anunciaram, «não são arbitrárias nem dogmas, mas premissas verdadei

ras das quais a abstracção só pode ser feita imaginariamente. São indivíduos

reais, a sua actividade e as condições materiais da sua vida... Estas premissas

podem, portanto, ser verificadas de forma puramente empírica.»

Enquanto Feuerbach tinha argumentado que somos o que comemos, Marx

e Engels insistiam que somos o que produzimos — e como produzir. «A di

visão do trabalho no interior de um país conduz, ao princípio, à separação do

trabalho industrial e comercial do agrícola, e, daí, à separação da cidade e

do campo e ao conflito dos seus interesses. O seu desenvolvimento ulterior

conduz à separação do trabalho comercial do industrial » E assim por

diante. Estes variados requintes na divisão do trabalho reflectiam o desenvol

vimento da propriedade — da propriedade tribal primitiva à propriedade co

munitária antiga e do Estado, depois à propriedade feudal e, a seguir, à proprie

dade burguesa. «K estrutura social e o Estado estão constantemente a evoluir

a partir do processo vital de indivíduos definidos... Não é a consciência que

determina a vida, mas a vida que determina a consciência.» A escravatura não

podia ser abolida sem a máquina a vapor ou a mula, assim como a servidão

não podia ser abolida sem melhoramentos na agricultura, e, em geral, «as

pessoas não podem ser libertadas enquanto não conseguirem obter comida e

bebida, alojamento e roupa de qualidade e quantidade adequadas.»

Como é que seria essa libertação? Apesar do novo materialismo de Marx

e Engels ser apresentado como a negação do idealismo, a sua própria visão

o RATO NO SÓTÃO ^ 91

do paraíso era um idílio pastoral — o que, visto o desprezo de Marx pela vida

no campo, a qual costumava descrever como uma «idiotice rural», não dei

xava de ser estranhamente irónico. Sob a presente divisão do trabalho, ob

servaram, todos os homens estavam encurralados numa esfera exclusiva de

actividade:

«Ele é um caçador, um pescador, um pastor, ou um crítico, e assim

deve permanecer, a fim de não perder os seus meios de subsistências;

enquanto numa sociedade comunista, onde ninguém tem uma esfera

exclusiva de actividade, mas todos podem tornar-se eficientes em qual

quer sector, a sociedade regula a produção geral e torna possível que eu

faça uma coisa hoje e outra amanhã, caçar de manhã, pescar à tarde, tratar

do gado ao anoitecer, criticar o que me apetecer sem nunca ter de me

tornar caçador, pescador, pastor ou crítico.»

Um estado de nirvana um tanto ou quanto cansativo, podem algumas

pessoas pensar. Engels gostava certamente de caçar e criticar, mas agrada-

va-lhe realmente a ideia de tratar do gado após a refeição?

O paraíso marxista era invocado de modo mais sedutora na interminá

vel diatribe contra Stirner, o qual tinha sugerido que a divisão do trabalho

se aplicava apenas àquelas tarefas que qualquer pessoa razoavelmente trei

nada poderia desempenhar — cozer ao forno ou amanhar a terra, por exem

plo. Ninguém, insistia, podia ter executado a obra de Rafael em nome des

te. O exemplo era infeliz: Rafael tinha uma data de assistentes e discípulos

para completar os seus frescos, como Marx e Engels rapidamente assinala

ram. Além disso, os comunistas não acreditavam que qualquer pessoa deves

se, ou pudesse, produzir a obra de um Rafael, mas apenas que deveria ser

permitido que um Rafael potencial se desenvolvesse sem entraves.

«Sancho [quer dizer, Stirner] imagina que Rafael produziu quadros in

dependentemente da divisão de trabalho que existia em Roma nessa

época. Se ele comparasse Rafael com Leonardo da Vinci e Ticiano, ve

ria como as obras de arte de Rafael dependiam enormemente da pros

peridade de Roma, a qual ocorreu sob influência florentina, enquanto a

obra de Leonardo dependia do estado das coisas em Florença e a de

Ticiano, num período mais tardio, dependia do desenvolvimento total

mente diferente de Veneza. Rafael, como qualquer outro artista, foi

92 * ^ KARL MARX

determinado pelos progressos técnicos, pela organização da sociedade

e a divisão do trabalho.. . Numa sociedade comunista não existem pin

tores, apenas pessoas que, entre outras actividades, também pintam.»

Actividades como a caça, a pesca e, presumivelmente, a tosquia de car

neiros. A pergunta de quem é que limpava as casas de banho ou ia buscar o

carvão às minas nunca foi posta nem respondida. Quando um espertalhão

alemão tentou apanhá-lo interrogando-o em voz alta quem é que engraxa

ria os sapatos sob o regime comunista, Marx replicou colericamente, «Você!»

Uma vez, uma amiga sugeriu que não conseguia imaginá-lo a viver numa

sociedade igualitária. «Nem eu», concordou ele. «Esses tempos hão-de che

gar, mas, por essa altura, já não devemos cá estar.»

Desde a sua tardia publicação neste século que têm sido feitas extrava

gantes declarações acerca de A Ideologia Akmã, afirmando que se trata de uma

«exposição clara» da concepção marxista da história. O próprio Marx era

mais realista quanto às suas limitações. «Abandonámos o manuscrito à roe

dora crítica dos ratos», escreveu, «tanto mais que tínhamos alcançado o nosso

objectivo principal — autoclarificação.» As páginas rasgadas do manuscrito

parecem, de facto, ter sido roídas nas margens por pequenos roedores, pro

vavelmente de tendência irreconcüiavelmente hegeliana.

Depois de terem resolvido a questão da teoria a seu agrado, Marx e

Engels passaram rapidamente à prática — «para conquistar o proletariado

europeus e, em primeiro lugar, o alemão». E onde é que estava o proletariado

alemão? E m Paris, Londres e Bruxelas, claro está.

A primeira organização de comunistas alemães exilados, a Liga dos

Marginais, tinha sido fundado em Paris, em 1834. Os seus membros eram

quase todos intelecmais da classe média — «os elementos mais sonolentos»,

como lhes chamava Engels — que em breve acabaram por adormecer de

vez. A clandestina Liga dos Justos, que se tinha separado em 1836, era mais

animada e dirigida por artesãos autodidactas que passaram alegremente

muitas noites a conspirar. A sua política, contudo, era pouco mais do que

uma vago igualitarismo derivado do utopista do século XVIII, Gracchus

Babeuf Depois de participarem na sublevação parisiense falhada de Maio

de 1839, vários dos Hderes da Liga fugiram para Londres, onde fundaram

uma Associação Educativa de Trabalhadores Alemães, como fachada da sua

sociedade secreta, que soava respeitável. As figuras mais importantes eram

Karl Schapper, um corpulento compositor-tipógrafo e, por vezes, guarda

o RATO NO SÓTÃO s * ^ 93

florestal que tinha ganho os seus galões de revolucionário num ataque a uma esquadra em 1833; Heinrich Bauer, pequeno sapateiro espirituoso da Francónia; e Joseph Moll, relojoeiro de Colónia de altura média, mas enorme coragem física. «Quantas vezes», escreveu Engeles, «ele e Schapper defenderam vitoriosamente a entrada da Associação contra centenas de oponentes!» (Heróico até ao último momento, Moll foi abatido a tiro num campo de batalha alemão durante a revolta de Baden, em 1849).

Engels veio a conhecer este triunvirato no decorrer de uma visita a Londres, em 1843. Eram os primeiros revolucionários da classe operária que jamais tinha conhecido e, para um impressionável jovem burguês, o seu estatuto de «homens a valer» fadlmente superou a estreiteza e ingenuidade da sua ideologia. Além do mais, eram sem dúvida eficazes, pois reestruturaram a Liga dos Justos em Londres e organizaram uma rede de apoiantes na Suíça, Alemanha e França. Onde as associações de trabalhadores eram proibidas por lei, eles faziam-nas passar por sociedades corais ou clubes de ginástica.

Embora esses conspiradores ainda considerassem Paris a cidade-mãe das revoluções, já não tratavam a filosofia francesa com o mesmo assombro ou deferência pois, agora, a Liga tinha o seu próprio teórico, o aprendiz de alfaiate Wilhelm Weitling, cujo livro A. Humanidade como é e como Deveria Ser fora publicada pela Liga em 1838.

Weitung, filho ilegítimo de uma lavadeira alemã, tinha a atitude angustiada e piedosa de um profeta mártir. Estaria perfeitamente à vontade entre os pregadores viajantes da Idade Média, ou as seitas milenaristas comunistas que floresceram durante a Guerra Civil inglesa, mas tinha pouco em comum com os pensadores e agitadores do século XIX. O seu credo era uma mistura caseira do I^ivro das Kevelações e o Sermão da Montanha, na qual a enjoativa homilia do catecismo era temperada com uma pitada de fogo e enxofre. Quando não profetizava um apocalipse iminente, perorava alegremente sobre um retorno ao Paraíso, uma Arcádia onde a inveja e o ódio não existiriam. Era como se um dos cavaleiros do Apocalipse tivesse de repente desmontado para bater num gato.

Não se podia contudo negar que o seu evangeMsmo não tivesse poder. «Os nossos círculos respeitavam-no imenso», escreveu Friedrich Lessner, outro alfaiate comunista da Alemanha. «Era um ídolo para os seus adeptos.» E, por causa das viagens que ele efectuava pela Europa, estes discípulos formavam uma brigada multinacional impressionante. Ao fugir para a Suíça

94 t ^ ICARLIVIARX

depois da abortada rebelião fi-ancesa de 1839, fiandou filiais da Liga dos Jus

tos em Genebra e Zurique, o que acabou por chamar a atenção das autori

dades suíças. N o decorrer de uma rusga aos seus alojamentos, a polícia

encontrou provas incriminadoras — um manuscrito autobiográfico, O Evan

gelho de um Pobre Pecador, no qual ele se comparava a Jesus Cristo, o coitado

de um marginal que fora crucificado por ousar denunciar a injustiça. Tal

impudência valeu-lhe seis meses de prisão por blasfémia, seguida da sua

deportação para a Alemanha — onde em breve foi novamente preso, dessa

vez por tentar escapar ao serviço militar. Quando, finalmente, chegou a

Londres, em 1844, o alfaiate de 36 anos era uma figura lendária que, com a

sua retórica revivalista, atraía grandes multidões de socialistas alemães

expatriados e Cartistas ingleses. N u m dos seus favoritos lances teatrais, le

vantava a perna das elegantes calças (sendo alfaiate, Weitung andava sempre

vestido com fatos bem cortados) para mostrar as lívidas cicatrizes deixadas

pelos gruhões dos seus carcereiros.

É difícil imaginar alguém com menos probabilidade de seduzir Marx do

que este vaidoso e utópico sonhador, cujo programa político se encontrava

resumido no prefácio do seu Uvro Garantias de Harmonia e l^iherdade: «Que

remos ser livres como as aves no céu; passar pela vida como elas, voando

alegre e despreocupadamente em doce harmonia.» E a melhor maneira para

conseguir levantar voo, sugeria Weitling, era recrutar um exército de 40 000

ladrões condenados — os quais, motivados pelo seu rancor contra a proprie

dade privada, derrubariam os poderosos e iniciariam uma nova era de paz

e alegria. «Os criminosos são produto da ordem actual da sociedade.» Escre

veu. «Sob o regime comunista, deixariam de ser criminosos.»

N o paraíso terrestre de Weitling, todos se vestiriam com roupa idêntica

(feita, sem dúvida, por ele mesmo), e aqueles que quisessem usar algo dife

rente teriam de o ganhar trabalhando horas extraordinárias. As refeições

teriam lugar em cantinas comuns, mas as normas quanto aos talheres ainda

estavam por decidir. («Estes alfaiates são tipos espantosos», comentou

Engels depois de se ter encontrado com alguns adeptos de Weitling. «Há bem

pouco tempo, andavam a discutir muito seriamente a questão dos garfos e

das facas.») Ao chegar aos 50 anos, as pessoas deixariam de trabalhar e se

riam enviadas para colónias de reforma — uma espécie de Eastbourne co

munistas, mas sem os clubes de howling.

Quase se pode ouvir Marx rosnar de desdém ao ouvir um tal chorrilho

de asneiras. Mas ele hesitou em condená-lo publicamente. Apesar de, 1834,

o RATO NO SÓTÃO a * ^ 95

ter proclamado com patriotismo hiperbólico que «o proletariado alemão é o teórico do proletariado europeu», a verdade era que, até meados de 1840, ele tinha conhecido muito poucos trabalhadores alemães. («Não sabemos o que o proletariado faz e o facto é que dificilmente o poderíamos saber», lembrou--Ihe Engels em Março de 1845.) Ao princípio, portanto, a sua reacção perante o aparecimento de um verdadeiro pensador da classe operária originário do seu país foi como a do Dr. Johnson ao ver um cão andar sobre as patas traseiras — não anda como deve ser, mas uma pessoa fica espantada por vê-lo andar de todo — e, consequentemente, elogia-se extravagantemente o cachorro.

«Onde, entre a burguesia — incluindo os seus filósofos e escritores eruditos — se pode encontrar um livro sobre a emancipação da burguesia — emancipação ^O////Í;<2 — semelhante ao de Weitung, Garantias de Harmonia e Uberdade?», perguntava-se Marx. «Basta comparar a mesquinha e insípida mediocridade da literatura polttica alemã com a estreia literária brilhante e veemente dos trabalhadores alemães, basta comparar estes gigantescos sapatos de criança do proletariado com os sapatos políticos apertados e gastos da burguesia alemã, para se profetizar que a Gata Borralheira alemã terá, um dia, físico de atleta...»

A itinerante Gata Borralheira nunca foi ao baile, quer com sapatos de vidro ou de corrida. Embora os Srs. Schapper, Bauer e MoU tivessem feito uma enmsiástica recepção à chegada de Weitling a Londres, em 1845, depressa concluíram que as ideias dele eram demasiado extravagantes. Weitling ficou bastante desconsolado por eles não quererem investir nos seus inúmeros e engenhosos planos — a criação de uma nova linguagem universal, a invenção de uma máquina para fazer chapéus de palha de senhora — e até mesmo arreliado quando recusaram elegê-lo presidente da sua associação. E, em princípios de 1846, partiu para tentar a sorte em Berlim.

«Se eu te contasse que género de vida levamos aqui, ficarias certamente surpreendida com os comunistas», escreveu Joseph Weydemeyer à noiva em Fevereiro. «Para cúmulo, Marx, Weitling, o cunhado de Marx e eu passámos a noite inteira a jogar. Weitling foi o primeiro a ficar cansado. Marx e eu dormimos umas horas no sofá e, no dia seguinte, fizemos companhia à mulher e ao cunhado dele. Metemo-nos numa taberna de manhã cedo e, depois, fomos de comboio a Villeworde, onde almoçámos. Regressámos muito bem-dispostos no último comboio»^. Note-se que Weitung, tendo-se retirado mais cedo, não participou na diversão do dia seguinte: a sua auréola de santidade tornava-o uma companhia pouco apropriada, especialmente

96 ^ B KARLMARX

para intelectuais burgueses. Como Engels escreveu: «Ele era, agora, o grande homem, o profeta, perseguido de país para país, que levava uma receita pronta a usar no bolso para a realização do céu na Terra, e imaginava que andavam a tentar roubar-lha. 10

Quando Heinrich Heine conheceu Weitling, ficou escandalizado pela «falta de respeito que manifestou quando conversava comigo. Não tirou o chapéu e, enquanto eu me mantive de pé diante dele, permaneceu sentado com o joelho direito levantado até ao queixo esfregando o tornozelo da dita perna com a mão esquerda»". Réplica do velho truque para mostrar as cicatrizes da prisão, mas mesmo deixou Heine impassível. «Confesso que me mostrei impressionado quando o alfaiate Weitling me falou das correntes. Eu, que uma vez em Münster beijei fervorosamente as reKquias do alfaiate John, de Leyden —- os grilhões que tinha usado e os instrumentos com que o tinham torturado que se encontram na Câmara daquela cidade — eu, que venerava esse alfaiate morto, sentia agora uma aversão insuperável por este alfaiate vivo, Wühelm Welding, embora ambos os homens fossem apóstolos e mártires da mesma causa.»

Marx e Engels sentiam a mesma repulsa, especialmente quando Weitung se pôs a tratá-los por «meus caros jovens», mas, por respeito pelo seu estatuto de proletário e os longos anos passados na prisão, fizeram o possível para a ocultar. Em princípios de 1846, convidaram-no para ser membro fundador do novo Comité Comunista de Correspondência, em Bruxelas, cujo objectivo era manter «um permanente intercâmbio de cartas» com a Liga dos Justos e outras associações fraternas na Europa ocidental. Como este comité foi o Adão original a partir do qual todos os outros partidos comunistas subsequentes descendiam, vale a pena enumerar os 18 signatários fundadores: Karl Marx, Friedrich Engels, Jenny Marx, Edgar von Westphalen, Ferdinand Freiligrath, Joseph Weydemeyer, Moses Hess, Hermann Kriege, Wilhelm Weitung, Ernst Dronke, Louis Heilberg, Georg Weerth, Sebastian Seiler, Philippe Gigot, Wilhelm Wolff, Ferdinand Wolff, Karl Wallau, Stephan Born. Como a maior parte das suas sucessoras no século XX, esta célula comunista reivindicou a sua autoridade purgando quem fosse suspeito de divergência com a política oficial; Weitung foi, inevitavelmente, designado como a primeira vítima.

A altura escolhida para esta humilhação ritual foi uma reunião na noite de 30 de Março de 1846, a que assistiram meia dúzia de membros mais um observador exterior, Pavel Annenkov, jovem «turista estético» russo que aparecera recentemente em Bruxelas com uma carta de apresentação de um

o RATO NO SÓTÃO *aCl# 97

dos antigos compinchas de Marx em Paris. Embora não fosse socialista,

Annenkov estava fascinado pela personalidade do seu anfitrião:

«Marx era o tipo de homem feito de energia, vontade e inabaláveis con

vicções. Seu aspecto era notável. Tinha uma farta cabeleira muito preta,

mãos peludas e o casaco mal abotoado; mas, independentemente da sua

aparência ou do que quer que fizesse, parecia alguém com o direito e poder

de impor respeito.. . Usava sempre palavras imperativas que não admi

tiam nenhuma contradição e soavam ainda mais acutilantes pelo tom quase

doloroso que retinia em tudo o que dizia. Tal tom exprimia a firme con

vicção da sua missão de dominar a mente dos homens e impor-lhe as suas

leis. Tinha perante mim a personificação de um ditador democrático.»'^

O janota WeitKng, em contraste, parecia mais um caixeiro-viajante do que

um herói da classe operária.

Depois de serem feitas as apresentações, todos se sentaram à volta da

pequena mesa verde da sala de Marx para discutir a táctica da revolução.

Engels, alto e digno, falou da necessidade de se porem de acordo quanto a

uma única doutrina comum para benefício dos trabalhadores que não tinham

tempo nem oportunidade para estudar teoria. Antes de terminar, contudo,

Marx já estava à procura de briga.

«Diz-nos uma coisa, Weitung», interrompeu, lançando um oñiar de desafio.

«Tu que fizeste tanto barulho na Alemanha com os teus sermões: a que título

é que justificas a tua actividade e em que é que tencionas baseá-la no futuro?»

Weiding, que não esperava mais do que uma noite de lugares-comuns

liberais, ficou desconcertado com este desafio abrupto. Lançou-se num

longo e desconexo monólogo, fazendo frequentes pausas para repetir, ou se

corrigir, que a sua finalidade não era criar novas teorias económicas, mas

adoptar as que eram «as mais adequadas».

Marx preparou-se para dar o golpe de misericórdia. Sublevar os trabalha

dores sem lhes dar quaisquer ideias científicas, ou uma doutrina construti

va, era «equivalente a um modo desonesto e vaidoso de fazer sermões, pois

isso pressupõe que de um lado está um profeta inspirado, e do outro apenas

burros boquiabertos».

Wetling corou e, em voz trémula, protestou que um homem que tinha

reunido centenas de pessoas sob a mesma bandeira em nome da justiça e da

solidariedade não podia ser tratado daquela maneira. Consolou-se lembrando

98 *§^ KARLMARX '

as inúmeras cartas de agradecimento que recebera e de que o seu «modesto

trabalho era provavelmente mais importante para a causa comum do que as

críticas e as análises de doutrinas feitas confortavelmente sentado numa

poltrona e distante do mundo dos que sofriam».

Esta tentativa de jogar o trunfo do proletariado foi mais do que Marx podia

tolerar. Saltando da cadeira e batendo o punho sobre a mesa com tanta força

que o candeeiro quase caiu, berrou: «A ignorância nunca ajudouninguém!»

A reunião foi adiada em pleno alvoroço. «Enquanto Marx, extraordina

riamente irritado e zangado, percorria a sala de um lado para o outro», in

formou Annenkov. «Eu despedi-me apressadamente dele e dos seus inter

locutores e fui para casa, espantado com tudo o que tinha visto e ouvido.»

Ninguém que conhecia bem Marx teria ficado tão espantado: durante toda

a vida, ele achou que era necessário e útil denunciar os deuses falsos e os

presumidos Messias do movimento comunista.

Weitling continuou surpreendentemente a frequentar a casa de Marx

durante algumas semanas mais e encontrava-se presente em Maio, durante

outro julgamento espectacular. O réu, desta vez condenado à revelia, era o

jovem estudante de VestefáHa, Hermann Kriege, que tinha emigrado recen

temente para publicar um jornal em língua alemã em Nova Iorque. A 11 de

Maio, e apenas com a oposição de Weitling, a seguinte moção foi passada:

1. A unha de conduta tomada pelo editor de Volks-Tribun, Herman

Kriege, não é comunista.

2. A pretensão infantil de Kriege em apoio dessa linha está a com

prometer o Partido Comunista, tanto na Europa como na América, visto

que ele é o representante do comunismo alemão em Nova Iorque.

3. O fantástico sentimentalismo que Kriege anda a pregar em Nova

Iorque, sob o nome de «comunismo», deve ter um efeito extremamente

pernicioso sobre o moral dos trabalhadores se for adoptado.

E m apoio da acusação, Marx e Engels apresentaram um «Circular Con

tra Kriege», troçando do sentimentalismo piegas do seu jornal, o Volks-Tribun,

que descrevia as mulheres como «os ardentes olhos da humanidade», «ver

dadeiras sacerdotisas do amor» e «irmãs bem-amadas», cujo dever sagrado

era conduzir os homens ao «reino da felicidade suprema». O que é uma mu

lher, perguntava Kriege num editorial, «sem um homem a quem possa amar,

a que se possa render a sua trémula alma?» Marx e Engels afirmaram que uma

o RATO NO SOTÃO 99

tal pieguice amorosa «apresenta o comunismo como o oposto impregnado

de amor do egoísmo e reduz um movimento revolucionario de impor

tancia histórica mundial às meras palavras: a m o r — ódio, comunismo —

egoísmo.. . Cabe a Kriege reflectir a sós sobre o debilitante efeito que esse

langor amoroso não pode deixar de ter em ambos os sexos, e na anemia e

histeria colectiva que deve produzir nas "virgens"».^^^

Os 18 membros originais diminuíram assim para 16 — e, em breve,

para 15, quando Moses Hess se demitiu antes de ser expulso. Com a repu

tação de Marx como «ditador democrático» a crescer, era difícil encontrar

novos recrutas para o seu círculo epistolar. E m Maio, depois de se despedir

de Weitling e Kriege, convidou Pierre Joseph Proudhon para se juntar ao

clube. «No que respeita a França, todos nós achamos que não há melhor cor

respondente do que você. Como sabe, os Ingleses e os Alemães têm maior

consideração por si do que os seus próprios compatriotas. . . Dê-nos uma

resposta rápida e creia, desde já, na minha mais sincera amizade. Respei

tosamente, Karl Marx.»^"*

As marcas de amizade e respeito, e a garantia de que o comité estava em

penhado num «intercâmbio de ideias» civilizado eram minados pelo pós-

-escrito de Marx: «PS — Para seu conhecimento, tenho de denunciar o

Sr. Grün, de Paris. Esse homem não passa de um vigarista literário, uma es

pécie de charlatão que trafica em ideias modernas. Tenta ocultar a sua igno

rância através de frases arrogantes e pomposas, mas tudo o que consegue

fazer através dessa algaraviada é tornar-se ridículo... N o livro dele sobre os

"socialistas franceses", tem o descaramento de se intitular tutor de Proudhon.. .

Tenha cuidado com esse parasita.»

Mas Proudhon simpatizava com Karl Grün, publicista conhecida de O

Verdadeiro Socialismo, e considerou que o aviso era pouco judicioso e de mau

gosto. «Grün encontra-se em exíUo, sem dinheiro, com a mulher e dois fi

lhos para sustentar e vivendo do que escreve. Além das ideias modernas, o

que é que queria que ele explorasse para ganhar a vida?.. . Nada vejo de

errado a não ser desgraça e penúria, e não tenho motivos para o condenar.»

O carácter vindicativo de Marx preocupava muito mais Proudhon do que a

inofensiva vaidade de Grün. «Vamos, se assim o desejar, colaborar para tentar

descobrir as leis da sociedade», propôs.^^

«Mas, por amor de Deus, depois de termos demolido todo o dogma

tismo a priori, não vamos tentar, por nossa vez, instilar outro género de

1 0 0 ^ ^ . KARI.MARX

dogmas nas pessoas... Aplaudo francamente a sua ideia de expor todas as opiniões. Que a polémica seja decente e sincera. Vamos dar um exemplo de tolerância erudita e clarividente ao mundo. Mas apenas porque nos encontramos à frente do movimento, não nos tornemos os líderes de uma nova intolerância... Não vamos considerar nenhuma tópico exausto e, mesmo depois de termos utilizado os nossos últimos argumentos, será melhor, caso for necessário, recomeçar outra vez com eloquência e ironia. Nessas condições, aceito com prazer entrar na sua associação. De outro modo — não!»

Marx não podia permitir que um tal tratamento desdenhoso ficasse impune — como, aliás, Prodhoun antecipara no final da carta: «É esta, meu caro filósofo, a minha posição actual; a não ser, claro está, que eu me engane e surja uma ocasião em que você me possa repreender, repreensão essa a que me sujeitarei de boa vontade...»

Tal ocasião veio a surgir uns meses mais tarde quando Proudhon publicou uma obra em dois volumes, A Filosofia da Pobreza. Marx retaliou com um ataque de cem páginas sob o título de A Pobreza da Filosofia, publicado simultaneamente em Paris e Bruxelas, em Junho de 1848, no qual ridicularizava o guru gaulês pela sua infinita ignorância. No prefácio, escreveu:

«O Monsieur Proudhon tem o infortúnio de ser particularmente mal compreendido na Europa. Na França, tem o direito de ser mau economista porque é considerado um bom filósofo alemão, e na Alemanha tem o direito de ser mau filósofo porque é considerado um dos melhores economistas franceses. Sendo alemães e economistas ao mesmo tempo, desejamos protestar contra esse duplo erro. O leitor compreenderá que, nesta ingrata tarefa, tivemos muitas vezes de abandonar as nossas críticas ao Sr. Proudhon para criticar a filosofia alemã; e, simultaneamente, fazer algumas observações sobre economia política.»^''

Apesar dos inesperados ataques ad hominem (contra o homem) a Proudhon serem bastante divertidos, são essas «observações» sobre economia e filosofia que dão valor ao livro. Com A Ideóloga Alemã despachada para um sótão infestado de ratos, A Pobreí^a da Filosofia é a primeira obra pubHcada em que Marx expôs a sua ideia materialista da história. As categorias económicas, como «a divisão do trabalho», eram, argumentou, apenas a expressão teó-

o RATO NO SÓTÃO 101

rica e transitoria das condições reais de produção. Mas Proudhon — «man

tendo as coisas às avessas como um autêntico filósofo» — julgava que essas

condições reais eram apenas a encarnação de leis económicas eternas, e con

cluiu que a divisão do trabalho era uma realidade imutável e inevitável da vida.

Marx arrasou essa lógica confusa num parágrafo merecidamente famoso:

«O economista, MonskurVtouâhon, percebe muito bem que os homens

fabricam tecido, de linho ou de seda, em relações bem determinadas de pro

dução. Mas o que ele não compreendeu é que essas relações sociais deter

minadas são tão produzidas pelos homens como pelo linho, etc. As relações

sociais estão estreitamente ligadas com as forças produtivas. Ao adquirir

novas forças produtivas, os homens mudam o seu modo de produção;

e, ao mudar o seu modo de produção, ao mudar o modo de ganhar a vida,

mudam todas as suas relações sociais. A produção manual dá a sociedade

com o senhor feudal; a vapor, a sociedade com o capitalista industrial.»

Aos olhos implacáveis de Marx, o manifesto socialista de Proudhon

parecia suspeitosamente como uma relutante aceitação do status quo. Os

trabalhadores não deveriam organizar-se para exigir melhores salários, avi

sava Proudhon, porque, senão, teriam de pagar preços mais caros. Nem havia

nada a ganhar através da violência revolucionária. Para lá de uma vaga espe

rança, ou «providência» era, de facto, difícil perceber o que ele advogava.

Quando é que o consentimento dócil tinha alguma vez conseguido o que

quer que fosse? perguntava Marx. Na última página de J\ Pobreza da Filoso

fia, a sua indignação transbordou:

«O antagonismo entre o proletariado e a burguesia é uma luta de classe

contra classe, uma luta que, levada a extremos, é uma revolução total. É sur

preendente que uma sociedade fundada na oposição de classes culmine em

contradição brutal, no choque de corpo contra corpo, como desenlace final?»

Não digam que o movimento social exclui o movimento político. Não

existe movimento político que não seja simultaneamente social.

Somente numa ordem das coisas em que não haja mais classes nem anta

gonismo de classes é que as evoluções sociais deixarão de ser revoluções políticas.

Até então, na véspera de todas modificações gerais da sociedade, a última

palavra da ciência social será sempre: «Combate ou morte, luta sanguinária

ou extinção. A questão é, assim, inexoravelmente posta.» (George Sand)

102 :>ö KARL MARX

Proudhon não respondeu publicamente zA Pobrera da Filosofia, mas o seu

exemplar tem furiosos gatafunhos nas margens de quase todas as páginas —

«absurdo», «mentira», «conversa fiada», «plágio», «difamação descarada» e «a

verdade é que Marx tem inveja». Uma passagem encontrada entre as suas

notas descreve Marx como sendo «a lombriga do socialismo».

O Comité Comunista de Correspondência tinha de encontrar outra pes

soa para o representar em França. Engels mudou-se para Paris em Agosto de

1846 para apalpar terreno. «O nosso assunto prosperará imenso aqui», infor

mou depois de falar com August Hermann Ewerbeck, líder local da Liga dos

Justos. «O que resta aqui de weitUnguianos, um pequeno grupo de alfaiates, está

agora em vias de desaparecer... Mas os ebanistas e os curtidores, por outro

lado, são considerados gente fixe.»" Ewerbeck tinha identificado quatro ou

cinco indivíduos entre eles que pareciam suficientemente dignos de confian

ça para serem convidados a juntarem-se à rede de correspondência. (Con

tinuava a persistir a suposição de que todos os revolucionários deveriam ser

artesãos: nesse mesmo mês, em Paris, o Journal des Economistes caricaturava

Marx como «um sapateiro» com tendência para «fórmulas abstractas».

Semanas mais tarde, após ter assistido a várias reuniões da Liga, Engels

mostrava-se menos satisfeito. Ewerbeck, embora amigável e bem intencio

nado, era um chato especializado em meticulosas dissertações sobre «valo

res autênticos» e palestras sobre etimologia alemã. Pior ainda, ele e os outros

membros tratavam as efusões de Proudhon e Grün como textos sagrados.

«É uma desgraça ter ainda de me opor a este absurdo bárbaro. Mas temos

de ser pacientes e não largar os tipos até eu me ver Hvre de Grün e varrido

as teias de aranha do cérebro deles.»^^

Preparou o «golpe» para meados de Outubro, iniciando um debate na Liga

sobre os prós e os contras do comunismo e forçando, dessa maneira, os arte

são parisienses a decidirem se eram comunistas confessos ou se eram «simples

mente a favor do bem da humanidade», como Grün e os seus seguidores

diziam. Engels preveniu que, se o voto lhe fosse contrário, «estar-se-ia nas tintas

para eles» e não assistiria a outra reunião. «A força de paciência e um pouco

de terrorismo», disse a Marx. «Saí vitorioso com a maioria atrás de mim.»"

O principal discípulo de Grün, um velho carpinteiro chamado Eisermann, sen-

tiu-se tão intimidado pelo aríete verbal de Engels que nunca mais apareceu.

Estas ruidosas discussões depressa chegaram aos ouvidos do chefe da

poHcia francesa, Gabriel Delessert, e, quando Engels soube que uma ordem

o RATO NO SÓTÃO « ^ 103

de expulsão poderia ser emitida contra ele e Ewerbeck, decidiu afastar-se da Liga até a situação acalmar. «Graças ao Sr. Delessert, tenho tido deliciosos encontros COWÍ grisettes (jovens operárias) e divertido imenso», confessou maliciosamente, «pois quero aproveitar os dias e as noites que possivelmente me restam em Paris.» Depois de satisfazer os seus apetites carnais, Engels passou uma semana em casa de Karl Ludwig Bernays, antigo director do Vorwärts!, em Sarcelles, mas achou o ambiente intoleravelmente fétido: «O fedor é de cinco mil camas de penas por arejar multiplicado por numerosos peidos — o resultado da cozinha austríaca.» ' Escreveu igualmente um panfleto satírico «a fervilhar de piadas grosseiras» sobre Lola Montez, a bailarina espanhola cuja influência sobre o rei Ludwig da Baviera era motivo de diversão tanto para Marx como para Engels. Todos os editores recusaram publicá-lo, e há muito que se desconhece o paradeiro do manuscrito.

Como se pode inferir de todos estes divertissements, faltavam estimulações intelectuais a Engels. «Se te for possível, vem passar uns tempos comigo em Abrib), suplicou a Marx em princípios de Março:^'

«Vou-me embora por volta de 7 de Abril — ainda não sei para onde — e, por essa altura, também terei um pouco de dinheiro. Por isso, poderíamos divertir-nos ã grande em todas as tabernas... Se tivesse um rendimento de cinco mil francos, não faria mais nada senão trabalhar e divertir-me com mulheres até cair aos bocados. Se as francesas não existissem, não valeria a pena viver. Mas, enquanto \\QMSiexgrisettes, tudo bem! Isso não impede uma pessoa de, por vezes, sentir vontade de falar sobre um tópico decente ou desfrutar a vida com certo requinte, o que é impossível com toda a gente que aqui conheço. Tens de cá vir.»

É possível que toda aquela rebalderia tenha toldado o cérebro de Engels. Três meses depois de ter escrito essa carta, Jenny Marx deu à luz o seu primeiro filho, Edgar, um irmão pãtajennycòen, com dois anos, e Laura, com um. Como único provedor de uma mulher sempre exausta, três crianças e uma criada, Marx não se podia dar ao luxo de ir divertir-se em Paris. Desempregado e virtualmente incapaz de ser contratado, nem sequer conseguia arranjar dinheiro para uma viagem mais importante a Londres, onde a Liga dos Justos tinha convocado uma conferência para Junho, a fim de debater a sua fusão com o círculo de correspondência de Bruxelas.

104 1 ^ ^ KARL MARX

Não foi tanto uma fusão quanto uma tomada de passo. Marx tinha re

cusado aliar-se aos londrinos — Schapper, Bauer, Moll — até eles se reestru

turarem numa Liga Comunista, cortando os laços com quem se tinham as

sociados. Estavam agora dispostos a aceitar as suas exigências. Proudhon,

Grün e Weitling deveriam ser ritualmente denunciados por «hostilidade para

com os comunistas», e o lema da antiga Liga que Marx tanto desprezava —

«Todos os Homens São Irmãos» — seria substituído pelo imperativo «Tra

balhadores de Todos os Países, Uni-vos!»

Dois meses depois da reunião inaugural da Liga Comunista em Londres,

o comité de correspondência de Bruxelas converteu-se numa filial (ou «co

munidade») da Liga sob a presidência de Marx. Segundo os novos regula

mentos, todas as comunidades deviam ter pelo menos três e, no máximo, 12

membros, cada um dos quais tinha de «dar a palavra de honra que trabalha

ria com lealdade e manteria segredo».^^

Tratava-se, no final de contas, de uma organização ilegal. N o entanto, e

seguindo o exemplo dos londrinos, Marx também fundou uma Associação

de Trabalhadores mais aberta e menos política, que organizou debates quase

parlamentares assim como sessões de «canto, recitação, teatro e eventos do

mesmo género». Nas primeiras semanas, mais de cem trabalhadores torna-

ram-me membros. «Por pouco que pareça», escreveu Marx a George Her-

wegh, «a actividade pública é infinitamente refrescante».^^

Os interesses de Marx foram representado durante o congresso de Ju

nho, em Londres, por outro comunista alemão de Bruxelas, Wilhelm Wolff,

bem como pelo delegado da filial da Liga em Paris, um certo F. Engels, que

chegou com uma declaração preliminar de princípios para a nova Liga

Comunista. Apesar de não ter sido formalmente adoptada, essa declaração

foi enviada a todas as comunidades da Europa «para séria e matura consi

deração». Como uma circular do quartel-general explicava: «Tentámos, por

um lado, abstermo-nos de todo o comunismo de caserna que criasse siste

mas, e, por outro, evitar a sentimentalidade fátua e insípida dos comunistas

emocionais e lacrimosos [quer dizer, utopistas como Weitling]... Esperamos

que proponham muitos acréscimos e emendas à autoridade central. Voltare

mos a convocá-los para discutir o projecto com particular entusiasmo.»^^

Ninguém recebeu o convite com maior entusiasmo do que Marx, o qual,

no espaço de um ano, transformou o embrionário credo de Engels num dos

livros mais influentes que jamais foi publicado.

o PAPÃO ATERRADOR

O Manifesto do Partido Comunista talvez seja o panfleto político mais Hdo

da historia humana, mas também é aquele que tem o título mais enganador:

nenhum partido com esse nome existiu. Nem, já agora, foi concebido como

manifesto. O que os membros da Liga Comunista queriam em 1847 era uma

«profissão de fé», e um primeiro rascunho escrito por Engels, em 1847,

demonstra que eles ainda estavam unidos aos rituais de iniciação apoiados

pelas seitas clandestinas francesas:

l.'' PERGUNTA: És comunista?

RESPOSTA: Sou.

2, PERGUNTA: Qual é o objectivo do comunismo?

RESPOSTA: Organizar a sociedade de modo a que todos os seus membros

possam desenvolver-se e usar todas as suas capacidades e poderes em total

liberdade, mas sem infringir as condições básicas dessa sociedade.

3.'PERGUNTA: Porque meios queres alcançar esse objectivo?

RESPOSTA: Através da eliminação da propriedade privada e da sua substi

tuição pela propriedade em comum.

E assim por diante ao longo de mais sete páginas e culminando na 22."

pergunta («Rejeita o comunismo as religiões existentes?») à qual a resposta

correcta é que o comunismo «tornas todas as religiões existentes supérfluas

e suplanta-as». De uma posição vantajosa moderna, este laborioso questio

nário lembra irresistivelmente a comédia de Monty Python em que Marx apa

rece num concurso da televisão apresentado por Eric Idle:

106 --3>te KARL MARX

IDLE: O desenvolvimento do proletariado industrial é condicionado por

que outro desenvolvimento?

MARX: Pelo desenvolvimento da burguesia industrial.

IDLE: Sim, senhor. Muito bem, Karl, estás quase a ganhar um conjunto

de mobílias para sala de estar. Vamos, agora, passar à pergunta número 2.

O que é a luta de classes?

MARX: Uma luta política.

IDLE: Formidável! Mais uma pergunta e essa Hnda mobília não materia

lista será tua. Estás pronto, Karl? És muito corajoso. Aqui vai a pergunta final:

quem ganhou a taça da Associação Inglesa de Futebol em 1949?

MARX: Eh . . . eh. . . o controlo dos meios de produção pelo operário? A. . .

a luta do proletariado urbano?

IDLE: Não, Karl. Foi o Wolverhampton Wanderers que derrotou o Lei

cester por 3 a 1.

MARX: Oh, porra!

O catecismo de Engels talvez fosse adequado a uma sociedade secreta

como a velha Liga dos Marginais ou a Liga dos Justos — rnas isso era a

tradição conspiratória e furtiva da qual Marx queria salvar a nova Liga Co

munista. Porquê, perguntava ele, deviam revolucionários esconder as suas

opiniões e intenções?

Engels entendeu o que ele queria dizer e admitiu que «como uma deter

minada porção de história tem de ser narrada, a forma adoptada é bastante

inadequada». Ao regressar a Paris em Outubro, depois de um prolongada

estada em Bruxelas, descobriu que Moses Hess tinha redigido outro rascu

nho. Confissão, que tresandava a utopia e mal mencionava o proletariado.

Engels ridicularizou linha por linha o documento durante uma reunião da

Liga Comunista local — «e ainda a meio quando a rapaziada se declarou

satisfeita», como informou triunfalmente Marx em Bruxelas. «Sem encon

trar nenhuma resistência, consegui que me confiassem a tarefa de fazer novo

rascunho para ser discutido na próxima sexta-feira e enviado para Londres

nas costas dos comunistas. Claro que ninguém pode saber isso, senão todos nós

perderemos o lugar e haverá o raio de uma zaragata.»^

Engels terminou a nova versão em poucos dias. Era menos do que um

credo e mais como um exame, com uma longa narrativa histórica das origens

e desenvolvimento do proletariado, bem como «toda a espécie de assuntos

o PAPÃO ATERRADOR s K ^ 107

secundários». No entanto, era ainda escrito em estilo pergunta e resposta do anterior. («O que é o comunismo? Resposta: O comunismo é a doutrina das condições para a emancipação do proletariado. O que é o proletariado? Resposta: O proletariado é a classe da sociedade que procura os seus meios de existência, inteira e unicamente, através da venda do seu trabalho.. .»)

O local da reunião do congresso foi no quartel-general da Associação Educativa dos Trabalhadores Alemães, por cima da taberna Red Lion na Rua Great Windmill, no Soho. A intensidade do debate pode ser avaliada pelo facto de ter durado dez dias — sem dúvida com ocasionais incursões ao andar de baixo para refrescos urgentemente necessitados. Poucos registos contemporâneos sobreviveram, mas a dominante presença de Marx foi descrita anos mais tarde por Friedrich Lessner, alfaiate de Hamburgo que vivia em Londres desde Abril de 1847:

«Marx era um líder nato do povo. O seu discurso foi breve, convincente e irresistível na sua lógica. Nunca disse palavras supérfluas, cada frase era um pensamento e todo o pensamento era um elo essencial na cadeia da sua demonstração. Marx nada tinha de sonhador. Quanto mais me dava conta da diferença entre o comunismo da época de Weitling e do Manifesto Comunista, mais claramente percebia que Marx representava a maturidade do pensamento socialista.»'

No fim da maratona de dez dias, Marx e Engels levaram tudo à frente deles. O congresso de Junho, ao qual Marx não tinha assistido, declarara simplesmente que a Liga «tem por objectivo a emancipação da humanidade através da divulgação da teoria da comunidade de propriedade e a sua introdução prática o mais rapidamente possível»^. Os regulamentos aprovados no segundo congresso eram muito mais combativos e sólidos: «O objectivo da Liga é derrubar a burguesia, a lei do proletariado, a abolição da antiga sociedade burguesa que assenta no antagonismo de classes e a fundação de uma nova sociedade sem classes e sem propriedade privada»''. Os delegados con

cordaram por unanimidade quanto a estes prihcipios~i3î[sicoB"e'eîiUiaïr^aifflrp Marx e Engels de redigir um manifesto que resumisse a nova doutrina.

Marx não se mostrou muito apressado em aceder a esse pedido. Após regressar a Bruxelas, em meados de Dezembro, realizou uma série de palestras na Associação dos Trabalhadores Alemães sobre economia política, argumentando que o capital não era um objecto inanimado, mas uma «re-

108%^-« I<CARLMARX

lação social». Escreveu vários artigos para o Deutsche-BrüsselerZeitungà-tícn-

dendo os comunistas e antecipando com deleite a chegada da revolução em

França. Fez um longo discurso sobre o comércio livre e, numa festa do fim

do ano dada pela Associação dos Trabalhadores, propôs um brinde à Bél

gica — «exprimindo, com vigor, apreço pelos benefícios de uma constitui

ção liberal de um país onde há liberdade de expressão e de associação, e onde

a semente do humanitarismo pode florescer para bem de toda a Europa». (Mal

ele sabia que, dentro de uns meses, iria denunciar a «brutalidade sem prece

dentes» e a «fúria reaccionária» deste outrora paraíso liberal quando o Go

verno belga lhe deu o prazo de 24 horas para sair do país.) De 17 a 23 de Ja

neiro, Marx visitou Gent para criar uma filial da Associação Democrática.

A maior parte dos escritores reconhecerão os sintomas: adiamentos in

cessantes, procura de distracções, vontade de fazer tudo excepto o trabalho

entre mãos. E, do mesmo modo, a maior parte dos editores irá simpatizar

com a crescente impaciência dos líderes da Liga Comunista em Londres que

enviaram um ultimato a Bruxelas no dia 24 de Janeiro de 1848:

«O Comité Central encarrega o seu comité regional em Bruxelas de

comunicar com o cidadão Marx e lhe participar que, se o Manifesto do Par

tido Comunista, a redacção do qual ele se comprometeu a executar no

recente congresso, não chegar a Londres a 1 de Fevereiro do ano corren

te, outras medidas serão tomadas contra ele. Caso o cidadão Marx não ter

cumprido essa tarefa, o Comité Central solicita o retorno imediato dos

documentos colocados à disposição do cidadão Marx.»^

Habitualmente, Marx desembaraçava-se às mil maravilhas quando tinha um

prazo fixo a cumprir e este aviso final parece ter dado resultado. Embora todas

as edições modernas do Manifesto tenham os nomes de Marx e Engels — e as

ideias de Engels certamente tiveram influência —, o texto que chegou final

mente a Londres em princípios de Fevereiro foi escrito somente por Karl Marx,

o qual, no seu gabinete da Rue d'Orléans, 42, passou sozinho noites a fio a ga

ratujar furiosamente no meio de uma espessa nuvem de fumo de charuto.

Kierkegaard diz algures que a vida deve ser vivida em frente, mas pode

apenas ser compreendida em sentido contrário. Isto também se aplica a eras

e épocas: a realidade de um período particular pode não se tornar aparente

até chegar ao fim. Ou, como Hegel escreveu na sua Filosofia do Direito, «o mocho

de Minerva estende as asas só ao entardecer». Quando Marx escreveu o

o PAPÃO ATERRADOR *;,¿* 109

Manifesto Comunista, em Janeiro de 1848, imaginou que podia ver o mocho

a preparar-se para levantar voo: a breve mas brilhante era do capitalismo

burguês tinha servido a sua finalidade transitoria e, dentro de pouco tempo,

ficaria enterrado sob as suas próprias contradições. Conduzindo operários

isolados para fábricas, a indústria moderna tinha criado condições para que

o proletariado se associasse e constituísse uma força dominante. «O que, por

conseguinte, a burguesia produz é, sobretudo, os seus próprios coveiros»,

observou com satisfação no final da primeira secção do manifesto. «A sua

queda e a vitória do proletariado são igualmente inevitáveis.»

Talvez porque pensava que estava a ensaiar uma oração fúnebre, podia

dar-se ao luxo de ser generoso para com o inimigo vencido. Aqueles que

nunca leram Marx, mas o conhecem apenas como uma espécie de papão

sedento de sangue cujo nome é invocado para assustar a classe média, ficam

frequentemente surpreendidos por descobrir os elogios que ele dispensou

à burguesia. Marx não era homem para subestimar os sucessos do inimigo:

«Historicamente, a burguesia desempenhou um papel muito revolu

cionário. Sempre que teve vantagens, a burguesia pôs termo a todas re

lações feudais, patriarcais e idílicas. Quebrou impiedosamente as corren

tes feudais que ligavam o homem aos seus "superiores namrais" e não

deixou outro elo entre os homens que o interesse pessoal, o empedernido

"pagamento a dinheiro". Afogou os êxtases mais celestiais de fervor

religioso, de entusiasmo cavalheiresco e de sentimentalismo fariseu nas

águas geladas do cálculo egoísta. Reduziu o valor pessoal a moeda de troca

e, no lugar das inumeráveis e imutáveis liberdades colocou essa liberdade

única e sem escrúpulos •— o Comércio Livre. Numa palavra, substituiu

a exploração brutal, directa, desavergonhada e nua pela exploração ve

lada por ilusões políticas e religiosas...

A burguesia revelou como o brutal desenvolvimento da Idade Média,

que os reaccionários tanto admiram, encontrou o seu complemento apro

priado na maior indolência. Foi a primeira a mostrar o que a actividade

humana pode causar. Conseguiu maravilhas superiores às pirâmides

egípcias, aquedutos romanos e catedrais góticas; organizou expedições

que obscurecem todos os antigos êxodos de nações e cruzadas.»

Um crítico moderno descreveu o manifesto como sendo «uma celebração

Krica das obras burguesas»^. E, de certo modo, assim é: Marx celebrava o capi-

110 4 ^ KARL MARX

taltsmo como um fenómeno temporario, como o precursor de uma verdadeira

revolução. Mas o que ele julgava ser o estertor da morte eram, na verdade, as

dores de parto. Os sinais que ele interpretou mal — os uivos, o esbracejar, os

lençóis manchados de sangue — são ainda mais conspícuos hoje do que na sua

época, embora raramente lhe seja dado crédito por ter reparado neles.

«Através da exploração do mercado mundial, a burguesia tem dado um

cunho cosmopolita à produção e consumo em todos os países», assinalou.

«Em lugar das antigas necessidades, satisfeitas pela produção do país, encon

tramos novas necessidades que, para sua satisfação, precisam dos produtos

de países e climas distantes.» Quem observar as frutas e legumes que se encon

tram nos balcões de um supermercado — pilhas de mangas, abacates, ervi-

Ihas-doces e morangos fora da temporada —, verá o que ele queria dizer.

Enquanto vai importando produtos exóticos, a burguesia impõe os seus

próprios produtos, gostos e hábitos em todos os demais: «Numa palavra, cria

um mundo ã sua própria imagem.» Para reconhecer a verdade disto basta

visitar Pequim — a capital de um Estado comunista — onde o centro da

cidade se parece arrepiantemente com Main Street, EUA: McDonald's, Ken

tucky Fried Chicken, Haagen-Dazs e Pizza Hut, além de várias filiais de

Chase Manhattan e Citybank para depositar os lucros.

«O que acontece na produção material, também acontece na intelectual»,

continua o Manifesto. <A.s criações intelectuais de países individuais tornam-

-se propriedade comum.. . A burguesia, através do rápido progresso de to

dos os instrumentos de produção e dos meios de comunicação, atrai todas

as nações, até mesmo as mais bárbaras, para a civilização.» É discutível que

Arnold Schwarzenegger, John Grisham e programas de televisão a toda a

hora sejam «civilização», mas a verdade essencial desta percepção não pode

ser negada. Marx também compreendeu que o ritmo da transformação tec

nológica iria tornar-se ainda mais frenético, criando uma espécie de revolu

ção permanente onde qualquer programa de computador comprado há mais

de dois anos é obsoleto. <A. burguesia não pode existir sem revolucionar os

instrumentos de produção e, por conseguinte, as relações de produção bem

como todas as relações sociais... A revolução constante de produção, a per

turbação ininterrupta de todas as condições sociais, e a agitação e incerteza

permanentes diferenciam a época burguesa das anteriores. Relações fixas e

congeladas, com o seu séquito de opiniões e preconceitos antigos e venerá

veis, são varridas e as novinhas em folha tornam-se antiquadas antes de ter

tempo para se ossificarem. Tudo o que é sólido derrete-se no ar...»

o PAPÃO ATERRADOR « - " ^ I H

E m 1998, quando da comemoração do 150." aniversário de Manifesto, inú

meros académicos e políticos acorreram para esfregar as mãos de contentes

perante a imbecilidade do velhote. Um intelectual britânico, lorde Skidelsky,

resmungou que Marx «tinha-se enganado» ao profetizar uma revolução

iminente — e que a sua obra não valia, por conseguinte, uma segunda leitura.

Mas deu-se caso de que, poucos dias depois da publicação do Manifesto, a re

volução rebentou realmente. Primeiro em Paris e, a seguir, com a velocidade

de um incêndio no mato, em grande parte do continente europeu. Foi extin

guida com a mesma rapidez e o triunfalismo burguês começou o seu longo

reino. Nesse sentido, o optimismo de Marx foi deslocado, embora a sua visão

do mercado global tivesse sido estranhamente presciente.

Como é que ele podia estar tão errado e, contudo, tão certo? E m estado

de espírito profético, Marx pensava como um jogador de xadrez e concebia

um ataque fatal ao rei do adversário em seis jogadas — sem reparar que,

entretanto, o oponente podia fazer-lhe xeque mate muito mais cedo. Se o

outro jogador cometia um erro, os cálculos de Marx eram vindicados. E,

mesmo que Marx perdesse, podia sempre dizer que, se o jogo durasse mais

uns minutos, teria provado que tinha razão.

Conhecemos bem esses jogadores de xadrez — estratégia brilhante,

tácticas frágeis — e Marx era, efectivamente, um deles. Apesar de imbatível

a jogar às damas, faltava-lhe a paciência manhosa requerida para as comple

xidades infinitas do tabuleiro de xadrez. O seu estilo era ruidoso, controverso,

irascível. Nos princípios da década de 1850, pouco depois da sua chegada

a Londres, terminava muitas noites furioso quando mais um exilado alemão

lhe encurralava o rei.

«Uma noite», contou Wühelm Liebknecht, «Marx anunciou triunfalmente

que tinha inventado uma nova abertura e que nos ganharia a todos. O de

safio foi aceite e, de facto, ele derrotou-nos a todos, uns atrás dos outros. Aos

poucos, contudo, fomos aprendendo à custa das derrotas e eu consegui dar-

-Ihe xeque mate. Já era muito tarde e Marx pediu irritadamente desforra para

a manhã seguinte em casa dele.»

As 11 da manhã do dia seguinte, Liebknecht apresentou-se devidamen

te no alojamento de Marx na Rue Dean e veio a saber que o grande homem

tinha passado a noite inteira a aperfeiçoar a sua «nova jogada». Ao princípio,

parecia novamente dar resultado e Marx festejava cada vitória pedindo be

bidas e sanduíches. Mas, depois, o combate recomeçou a sério: os dois ho

mens passaram toda a tarde e parte da noite frente a frente diante do campo

n i * ^ I<J\RLMARX

de batalha branco e preto até Liebknecht, à meia-noite, conseguir dar xeque

mate ao seu oponente duas vezes seguidas. Marx estava disposto a continuar

até de madrugada, mas a sua enérgica governanta, Helene Demuth, estava

farta: agora, ordenou aos adversários fatigados, «já chega!»

N o dia seguinte, de manhã cedo, Liebknecht foi acordado por alguém a

bater à porta. Era Helena que lhe trazia um recado: «A Sra. Marx suplica-lhe

que não jogue mais xadrez, à noite, com o Mouro... Quando ele perde, tor-

na-se extremamente desagradável.» (Ver pós-escrito 3: o único registo de um

jogo de xadrez jogado por Marx.)

Liebknecht nunca mais voltou a jogar xadrez com Marx, mas a sua descri

ção da técnica marxista — «tentava compensar o que lhe faltava de conheci

mentos com zelo, impetuosidade e ataques de surpresa». — pode ser aplica

da ao Manifesto Comunista. Mais cedo ou mais tarde, reis, rainhas, bispos e cavalos

eram obrigados a submeter-se, derrotados pela pura determinação dos que os

desafiavam. Como a «nova abertora» de que se sentia tão orgulhoso, o mani

festo era uma arma de vingança, forjada e aperfeiçoada ao longo de noites

de raiva sem dormir, contra os seus superiores adversários. Os seus detrac

tores actuais também estão, por conseguinte, a não entender a questão.

Os textos da década de 1840 incluem passagens que, agora, parecem ligei

ramente bizarras ou desactualizadas; o mesmo se poderia dizer de muitos

manifestos eleitorais e editoriais publicados apenas há um ano ou dois. A in

tenção de Marx nunca foi de escrever textos sagrados e eternos, embora ge

rações de discípulos os encarem, por vezes, como tal. O primeiro parágrafo

— com a referência a Metternich, Guizot e o czar — realça o facto de se tra

tar de uma artigo perecível, redigido num momento específico e com uma

finalidade particular, sem pensar na posteridade.

A coisa verdadeiramente notável quanto ao manifesto é que tenha qual

quer ressonância contemporânea. Recentemente, contei nada menos do que

nove edições inglesas à venda numa livraria de Londres. Até mesmo Karl

Marx, que nunca foi dado à falsa modéstia, mal podia ter esperado que o seu

pequeno panfleto ainda teria sucesso no fim do milénio.

A inesquecível primeira frase do Manifesto Comunista possui a força de um

relâmpago. «Um assustador papão percorre a Europa...» Isso, pelo menos, foi

o que apareceu na primeira edição inglesa publicada pelo jornal Ked Repu

blican, em 1850, e traduzido por Helen Macfarlane, feminista Cartista que

conhecia Marx e Engels e era muito admirada por ambos. De certo modo.

o PAPÃO ATERRADOR ciü^ 113

porém, a ideia do papão assustador nunca pegou. A versão que toda a gente agora conhece é a tradução, por Samuel Moore, publicada pela primeira vez em 1883 e reeditada numerosas vezes depois: «Um espectro assombra a Europa. . . o espectro do comunismo. Todos os poderes da velha Europa fizeram uma aliança sagrada para exorcizar esses espectro. O Papa e o czar, Metternich e Guizot, os radicais franceses e os espiões da poHcia alemã.»

Esta salva de abertura ficou desactualizada quase logo após Marx a ter disparado. A edição alemã do manifesto foi publicada a 24 de Fevereiro de 1848, ou próximo dessa data, composta, utilizando novos tipos góticos, na Associação Educativa dos Trabalhadores, em Londres, e, a seguir, entregue a toda a pressa numa tipografia perto da rua Liverpool pelo jovem e prestável Friedrich Lessner. «Estávamos intoxicados de entusiasmo», relatou Lessner. Quando ele foi buscar os exemplares — apropriadamente encadernados em amarelo-vivo — já havia de notícias vindas de França que a revolução tinha começado e que se levantavam barricadas nas ruas de Paris.

François Guizot, o homem que tinha assinado a ordem de expulsão de Marx em 1845, foi demitido do cargo de primeiro-ministro e o rei Luís Filipe abdicou no dia seguinte com o trono literalmente a arder. Uma outra bete noire de Marx, o chanceler austríaco, Metternich, foi derrubado dentro de três semanas e, a 18 de Março, a agitação alastrou-se para Berlim.

O galo gaulês tinha cantado e, de repente, toda a Europa tinha despertado. «A nossa era, a era de democracia, está a desmoronar-se», escreveu Engels num entusiástico despacho ao Deutsche-Brüsseler Zeitung. «As chamas das Tulherias e do Palais-Royal são a aurora do proletariado. O regime burguês cairá por toda a parte ou será destruido. A Alemanha, esperamos, será a próxima e, agora ou nunca, erguer-se-á da sua degradação...» "

Mas a Alemanha — ou, aüás, o rei da Prússia — tinha outras ideias. Os seus espiões na Bélgica andavam a vigiar o Deutsche-Brüsseler Zeitung com horror crescente.

«Este nocivo jornal (informou um agente da poKcia) deve sem sombra de dúvida exercer a mais nefasta das influências sobre o público pouco educado a que se dirige. Apresenta a sedutora teoria da divisão da riqueza aos operários e trabalhadores como sendo um direito nato e inculca neles um ódio profundo à classe dirigente e ao resto da comunidade. Se tais actividades conseguirem minar a religião e o respeito às leis, contaminando assim as classes mais baixas da população, a pátria e a civilização correm grande perigo.»

114 < ^ e KARL MARX

Já em Abril de 1847, o embaixador pf ussiano tinha exigido, sem qualquer

efeito, a supressão desse incendiário pasquim que «atacava o governo de Sua

Majestade com selvajaria e virulência revoltantes». Mas, com a proclamação

de uma república em França, a polícia belga entrou em pânico e, na tarde de

3 de Março de 1848, Marx recebeu uma ordem de expulsão assinada pelo rei

Leopoldo I, da Bélgica, ordenando-lhe que abandonasse o país dentro de 24

horas e que nunca mais voltasse.

Por feliz coincidência, ele já estava a planear partir. Paris era a cidade onde

a acção se estava a passar e ele acabara de receber um fraternal convite de

Ferdinand Flocon, director de La Reforme e, agora, membro do governo

provisório francês. «Como é burro esse Flocon!», tinha escrito Engels há

apenas quatro meses, chamando-lhe um imbecil «que vê tudo através dos

olhos de um empregado francês de terceira categoria num banco de quarta

categoria.»^"

Mas, se Flocon estava a par do desprezo que Marx e Engels lhe votavam,

a sua missiva não o dava a entender:

«Bom e leal Marx,

O solo da República Francesa é asilo e refúgio para todos os amigos

da liberdade. A tirania exilou-te, mas, agora, a França livre abre-te as

portas, a ti e a todos os que lutam pela nossa causa sagrada, a fraternal

causa de todos os povos.»"

Marx não precisou de mais encorajamentos para fazer as malas — e,

durante o resto do dia, foi exactamente o que fez. A uma da manhã, contu

do, dez agentes da polícia entraram-lhe em casa e arrastaram-no para a pri

são da câmara municipal, onde foi encarcerado juntamente com um «louco

furioso» que passou a maior parte da noite a tentar dar-lhe um murro no na

riz. O motivo oficial dado para a detenção foi que o seu «passaporte não

estava em ordem», muito embora ele tenha apresentado nada menos do que

três passaportes devidamente carimbados e datados além da ordem de ex

pulsão assinada pelo rei. Mas as suspeitas da polícia podem não ter sido ca

prichosas como parecem. E m meados de Fevereiro, a mãe tinha-lhe envia

do a avultada soma de seis mu francos em ouro, parte da herança de Heinrich

Marx, e a maior par te desse dinheiro fora imedia tamente usado em

actividades subversivas. Segundo um dos seus biógrafos mais recentes, David

o PAPÃO ATERRADOR a < ^ 115

McLellan, «a polícia suspeitava (embora não houvesse provas) que Marx

estava a usá-lo para financiar o movimento revolucionário». Existem real

mente amplas provas — uma boa parte delas dada pela própria Jenny von

Westphalen. «Os trabalhadores alemães (em Bruxelas) tomaram a decisão de

se armar», admitiu ela. «Punhais, revólveres, etc. foram comprados e Karl de

boa vontade lhes deu o dinheiro, pois tinha acabado de receber uma herança.

O Governo viu nisto tudo uma conspiração e planos criminosos: Marx

recebe dinheiro e compra armas, logo, temos de nos ver livres dele.»^^

O tom de inocência ofendida dificilmente pode ser justificado pela con

fissão dela: se as autoridades pudessem associar o marido com o arsenal de

«punhais, revólveres, etc., ele ficaria metido, até às espessas sobrancelhas,

numa grande encrenca. Profundamente alarmada, Jenny saiu imediatamente

de casa para dar a notícia da prisão do marido a um advogado da esquerda

deixando os três filhos pequenos ao cuidado de Helene. Ao voltar, de madru

gada, a porta estava guardada por um polícia que delicadamente lhe disse que,

se ela desejasse falar com MonskurMarx, ele teria muito prazer em acompanhá-

-la. Mas, assim que chegaram à esquadra, Jenny foi presa por "vadiagem" —

aparentemente porque não trazia documentos de identidade com ela —

e enfiada numa cela escura com "prostitutas do mais baixo nível".

"Quando, no dia seguinte, Jenny compareceu, um magistrado mostrou-

-se sarcasticamente surpreendido por a polícia não ter, já agora, prendido

igualmente as crianças."»" Ela e Karl foram soltos às três da tarde — o que

lhes deu apenas duas horas para tratar dos seus assuntos, pegar nos filhos e

apanhar o comboio para Paris. Jenny vendeu à pressa algumas posses, mas

teve de deixar as pratas da família e a melhor roupa branca com um amigo li

vreiro. Os Marx foram obrigados a viajar sob escolta da polícia até à fronteira,

sem dúvida para poderem apreciar, pela última vez, a hospitalidade belga.

Fatigados pela noite passada na prisão, Karl e Jenny fizeram uma viagem

horrível. Não havia lugares sentados e pouco espaço de pé, pois o comboio

ia cheio de tropas belgas a caminho da fronteira para guardar o país contra

o contágio revolucionário. Na etapa francesa, os passageiros tiveram de

descer em Valencienne — onde os cocheiros «luditas» tinham aproveitado

a confusão para arrancar os carris e destruir as locomotivas que lhes rouba

vam a subsistência — e continuar a viagem de autocarro.

Ao chegar a Paris, a 5 de Março, Marx encontrou as ruas cobertas de vidro

partido e pedras da calçada. Como para compensar o que tinha perdido,

mergulhou de cabeça na luta e, sem demora, meteu mãos à obra. Logo no

1 1 6 - . - ICARLMARX

dia seguinte avisou a Liga Comunista de Londres que o quartel-general fora transferido para Paris e, a 9 de Março, a liga aprovou por unanimidade a sua proposta de que todos os membros usassem «uma fita vermelha-viva» nos casacos. Como a liga ainda era uma organização meio clandestina, Marx também fundou um Clube de Trabalhadores Alemães, cujo comité foi anunciado no jornal l^ Reforme:«W. Bauer, sapateiro; Hermann, ebanista;}. Moll, relojoeiro; Wallau, tipógrafo; Charles Marx; Charles Shapper.» Este último era, na verdade, compositor-tipógrafo, mas é difícil de imaginar qual o ofício declarado por Marx; provavelmente o de «provocador».

Era assim, sem dúvida, que era considerado por alguns camaradas exilados — em particular pelo seu velho colega, George Herwegh, e pelo antigo oficial prussiano, Adalbert von Bornstedt, que tinham concebido o plano louco e romântico de formar uma <degião alemã» para marchar triunfalmente pela Alemanha dentro e Libertá-la. E, depois, invadiriam a Rússia. «Oh, ousem isso pelo menos por um dia!», era o slogan de recrutamento de Herwegh. O governo provisório francês, em pulgas para ver esses quixotescos estrangeiros pelas costas, ofereceu bilhetes de graça e o salário diário de 50 cêntimos ao dia por cada voluntário.

Marx acusou Herwegh e Bornstedt de «estarem a portar-se como canalhas», e rejeitou o plano considerando-o uma aventura arrogante que estava destinado a terminar ignominiosamente. E tinha razão: o miserável exército de Herwegh, o qual, provavelmente, não contava com mais de mil homens, partiu para a Alemanha a 1 de Abril, no dia das mentiras, e foi desbaratado assim que atravessou a fronteira.

O que era preciso para fazer uma revolução na Alemanha, argumentava Marx, não era um regimento de poetas e professores a brandir baionetas em segunda mão, mas constante agitação e propaganda. Logo que Engels se juntou a ele em Paris, a 21 de Março, ambos escreveram um panfleto intitulado «Exigências do Partido Comunista na Alemanha», o qual foi rapidamente publicado pelos jornais democráticos de Berlim, Trier e Düsseldorf Um crítico moderno declarou que esse programa, com 17 pontos, foi «calculado para intimidar a burguesia». Longe disso: como a Alemanha não possuía proletariado digno desse nome, Marx percebeu que a primeira fase da sua campanha tinha de ser uma revolução burguesa. Pelos seus padrões, as «exigências» eram, por conseguinte, surpreendentemente modestas. Incluíam apenas quatro dos dez pontos do Manifesto Comunista — impostos progressivos sobre os rendimentos, educação gratuita, propriedade estatal de todos

o PAPÃO ATERRADOR >i>& 117

os meios de transporte e a criação de um banco nacional. Para dar ênfase às

suas intenções, Marx acrescentava que o banco do Estado substituiria as

notas por moedas, tornando assim os meios universais de troca mais bara

tos e libertando o ouro e a prata para serem usados no comércio exterior.

«Esta medida», escreveu, «é necessária para unir os interesses da burguesia

conservadora à causa da revolução.»

Houve outras concessões notáveis. O Manifesto Comunista tinha advoga

do «a aboUção de todo o direito a heranças» (embora isso não tivesse impe

dido Marx de aceitar uma herança paterna de seis mil francos); as «Exigên

cias sugeriam meramente que as heranças seriam "reduzidas". Enquanto o

Manifesto tinha proposto a nacionalização de todas as terras, o texto das

"Exigências" limitava-se a assinalar as "propriedades feudais e principes

cas"». Marx tentou mesmo seduzir os camponeses e os pequenos agricul

tores — os quais em privado desprezava —, concedendo-lhes empréstimos

estatais, consulta legal gratuita e o fim de todas as obrigações feudais. Para

provar como as «Exigências do Partido Comunista» eram moderadas, bas

ta indicar que muitas delas — incluindo sufrágio universal, pagamento de

salários a representantes parlamentares e transformação da Alemanha numa

«única república indivisível» — foram desde então aceites por governos cujas

credenciais capitalistas são evidentes.

Sujeitar-se aos caprichos dos camponeses e da pequena burguesia não

fazia mal, mas, agora, a tarefa mais urgente de Marx era sublevar a consciên

cia das massas teutónicas. E m fins de Março e princípios de Abril, os mem

bros da Liga Comunista em Paris partiram para a Alemanha; a maior parte

com destino às suas cidades natais para iniciar o processo de educação e

organização. Karl Schapper foi para Nassau e Wilhelm Wolff para Breslau.

<A Liga dissolveu-se; está em toda e nenhuma parte», escreveu Stephan Born,

um compositor-tipógrafo revolucionário que se instalou em Berlim (Born,

cujo nome verdadeiro era o delicioso Simon Buttermilch, abandonou mais

tarde o comunismo e tornou-se mestre-escola na Suíça.)

Como tantas vezes, a arma preferida dé Marx foi o jornalismo. «Um novo

jornal diário será publicado em Colónia», anunciou. «Será chamado Neue

Rljeinische Zeitung, e será dirigido por HerrKaú Marx.» Havia boas razões para

a escolha do local. Colónia, a capital da Renânia, era uma cidade que conhecia

bem, pois trabalhara lá como director do anterior Jiheinische T^eitung. Ainda

mantinha relações amigáveis com alguns dos antigos accionistas e esperava

que eles apoiassem o seu novo projecto. E, talvez ainda mais importante, o

118 ^ B KARL MARX

Código de Napoleão — herança dos tempos da ocupação francesa — ain

da aí se encontrava em vigor e permitia alguma liberdade de imprensa.

Os Marx partiram de Paris na primeira semana de Abril de 1848, acom

panhados por Engels e Ernst Dronke, um radical alemão de 26 anos, que já

tinha a seu crédito um romance, uma condenação e uma fuga da prisão. Após

uma breve paragem em Mainz, separaram-se: Engels rumo a Wuppertal, na

esperança de persuadir o pai e os amigos a investir no novo jornal; Dronke

para casa de um tio em Koblenz; e Jenny e os filhos para Trier, onde tencio

navam ficar com a mãe durante umas semanas até Karl obter uma autoriza

ção de residência.

Assim que chegou a Colónia, Marx solicitou devidamente às autoridades

que lhe restaurassem a nacionalidade prussiaha, a qual perdera m 1845.

Declarou que queria lá instalar-se com a família/para escrever «um livro so

bre economia», omitindo discretamente o seuplano de fundar um jornal diá

rio. As autoridades, de qualquer modo recusaram, deixando assim em aberto

a possibilidade de poderem expulsá-lo se ele causasse sarilhos.

As tentativas de Engels estavam igualmente a ser contrariadas. «Há pou

cas perspectivas de vender aqui quaisquer acções», escreveu de Barmen a 25

de Abril. «A verdade é que, au fond, até os burgueses radicais daqui nos vêem

como os seus principais inimigos futuros e não tencionam meter-nos nas

mãos armas que, dentro de pouco tempo, nós viraríamos contra eles»." Mais

valia, pois as intenções de Marx eram exactamente essas. «Não há nada a

obter do meu velho», prosseguiu Engels. «Mais depressa no daria um tiro de

caçadeira do que mil táleres.»

N o fim, Marx teve de deitar à mão ao que restava da sua herança para

assegurar que o jornal começasse a ser publicado a 1 de Junho de 1848. A data

da saída do primeiro número deveria ter sido 1 de Julho, mas «a renovada

insolência dos reaccionários» convenceram-no de que não havia tempo a per

der. («Os nossos leitores terão, por conseguinte, de nos desculpar», escre

veu no primeiro número, «se nos primeiros dias não conseguirmos oferecer

a grande variedade de notícias e artigos que as nossas conexões por todo

o mundo nos deveriam permitir fazê-lo. Dentro de alguns dias poderemos

satisfazê-los inteiramente».)

O conselho editorial era controlado por antigos membros da Liga Co

munista, incluindo o poeta revolucionário Georg Weerth, Ernst Dronke e

os jornalistas Ferdinand Wolff e Wühelm Wolff (Para evitar confusões, estes

dois Wolff não tinham nenhum grau de parentesco e eram respectivamente

o PAPÃO ATERRADOR - r ' 119

alcunhados Red Wolff & I^upus). Mas, como Engels admitiu, o jornal era es

sencialmente «uma ditadura governada por Marx». Segundo Stephan Born,

que visitou a redacção uns meses mais tarde, até mesmo os súbditos mais

leais do tirano achavam por vezes difícil enfrentar esta caótica autocracia. «As

queixas mais amargas sobre Marx provinham de Engels. "Ele não é nenhum

jornalista", dizia. "E nunca o será. Leva um dia inteiro para escrever um ar

tigo que outra pessoa faria num par de horas, como se se tratasse de um pro

blema profundamente filosófico. Faz alterações, aperfeiçoa e muda as mudan

ças, e por causa da sua infatigável meticulosidade nunca termina a tempo." Era

um autêntico alívio para Engels poder, uma vez por outra, desabafar.»^^

Embora Marx não fosse certamente cumpridor de prazos. Born talvez

esteja a exagerar. O Neue Rheinische Zeitiung era pubHcado diariamente, com

frequência acompanhado de um volumoso suplemento para acomodar to

das as notícias e artigos que não cabiam na secção principal, e, em ocasiões

especiais, também saía uma edição à tarde. Se o director fosse tão lento como

Born alegava, o jornal nunca chegaria à tipografia.

O que distinguia o Neue Rheinische Zeitung do resto da imprensa «demo

crática» na Alemanha era a sua preferência por informações sobre teorias de

longo fôlego. Reunindo cuidadosamente os factos que convinham aos seus

objectivos, Marx achava que conseguia muito mais do que as eruditas refle

xões liberais sobre o significado do republicanismo. Também prestava par

ticular atenção às actividades dos cartistas na Grã-Bretanha e aos jacobinos

em França, na esperança de que estes alertariam os leitores quanto ao neces

sário antagonismo entre a burguesia e o proletariado — antagonismo esse

que ele não ousava articular mais explicitamente. (A primeira coisa que fez

ao chegar a Colónia foi fazer-se assinante de três jornais ingleses, The Times,

o Telegraph e o Economist)

Os 12 meses que Marx viveu na Alemanha, entre 1848 e 1849, são mui

tas vezes denominado «o ano louco», e ele parece realmente ter passado esse

período a espumar de raiva — sobretudo contra ele mesmo enquanto andava

a tentar harmonizar dois impulsos irreconciliáveis. O dilema era óbvio para

quem tivesse üdo mais atentamente o Alanifesto Comunista: Mãtx argumentava

que os comunistas deveriam encorajar o proletariado a apoiar a burguesia

«sempre que esta agisse de forma revolucionária» e, ao mesmo tempo, instilar

nos trabalhadores «o hostil antagonismo existente entre a burguesia e o

proletariado». As classes médias — não se pode viver com elas nem sem elas.

120 V:--* I<CARI.MARX

Os Hberais burgueses, incluindo vários dos seus accionistas, tinham fé em

duas instituições democráticas estabelecidas depois dos motins de Março: a

Assembleia Nacional Alemã, em Frankfurt, e a Assembleia Prussiana, em Ber

lim. Um director que queria assegurar os ansiosos leitores da classe média das

suas intenções deveria ser aconselhado a dar o benefício da dúvida, pelo menos

durante um mês ou dois, a esses dois recentemente criados parlamentos. Mas

a impaciência levou a melhor e, logo no primeiro número, havia um relato im

piedoso e mordaz, escrito por Engels, das sessões da assembleia de Frankfurt.

«Há duas semanas que a Alemanha possui uma Assembleia Nacional

constituinte eleitar^ïèio povo alemão. A primeira acção da Assembleia Na

cional deveria ter sido proclamar bem alto e publicamente esta soberania

popular e, a segunda, redigir uma constituição alemã baseada na soberania

do povo.»^*" E m vez disso, os «filisteus eleitos» — a maior parte dos quais era

advogados e professores — perderam tempo a fazer «novas emendas e

digressões... longos discursos e muita confusão». Sempre que uma decisão

estava prestes a ser tomada, os representantes adiavam o assunto e retiravam-

-se para ir jantar.

Vários homens de negócios que tinham investido no jornal retiraram

imediatamente o seu apoio. «Custou-nos metade dos nossos accionistas»,

confessou Engels. E, após ter antagonizado os moderados, Marx provocou

uma zaragata com o socialista mais popular da cidade, Andreas Gottschalk,

que não só era presidente da recentemente formada Associação dos Traba

lhadores de Colónia como também Hder da filial local da Liga Comunista.

A violenta animosidade entre os dois homens é difícil de explicar ou

justificar — embora os ciúmes possam ter algo a ver com o que aconteceu.

Como já tinha mostrado por várias vezes, Marx detestava organizações, ou

instituições, que não conseguisse dominar; e Gottschalk, médico muito

apreciado entre os pobres, tinha mais adeptos do que o irascível director. O

Neue Rheinische Zeifungvendia cinco mü exemplares, uma enorme circulação

para aquela época, mas a Associação dos Trabalhadores de Colónia, lidera

da por Gottschalk, contava com oito mil sócios — número alcançado pou

cas semanas depois da sua criação.

Marx acusava Gottschalk de ser um sectário da esquerda e de ter com

prometido a «frente unida» constimída pela burguesia e pelo proletariado, ao

fundar um grupo de pressão formado exclusivamente por membros da classe

operária — além de boicotar as eleições para os parlamentos de Berlim e de

Frankfurt. Dada a presteza com que Marx caricaturou a Assembleia Nacional

o PAPÃO ATERRADOR a ^ 121

como um ninho de gente que perdia tempo com ninharias, pode-se pensar

que esta crítica cheirava a hipocrisia. E, ainda com maior perversidade,

queixava-se de que Gottschalk estava pronto a aceitar uma monarquia cons

titucionalmente limitada em vez de um regime republicano imediato. N o

entanto, o próprio Marx declarou num editorial de 7 de Junho: «Não quere

mos utópicamente pedir que, logo de início, seja proclamada uma república

alemã unida e indivisível.»

O pobre Gottschalk viu-se, assim, simultaneamente condenado por ti

midez e excesso de zelo; não admira que se tenha demitido da Liga Comu

nista semanas depois da estapafúrdica chegada de Marx a Colónia. Mesmo

quando Gottschalk e o seu amigo, Friedrich Anneke, foram presos e acusa

dos de incitação à violência em princípios de Julho, o Neue Rheinische Zeitung

pareceu curiosamente desinteressado. «Reservamos a nossa opinião, pois

ainda não obtivemos informação suficiente sobre a sua prisão e a maneira

como foi executada», comentou Marx num breve editorial a 4 de Julho. «Os

trabalhadores devem mostrar-se razoáveis e não se deixarem levar a provo

car distúrbios.» O jornal do dia seguinte continha um artigo mais comple

to, concentrando-se sobre o tratamento que Anneke recebera por parte dos

agentes que o tinham detido e acusando o promotor público, Herr Hecker,

de ter chegado meia hora depois da polícia a fim de lhes dar tempo para

espancar o suspeito e aterrorizar a mulher grávida. «Herr Hecker declarou

não ter dado ordens para cometer brutalidades», acrescentou sarcasticamente

Marx. «Como se Herr Hecker pudesse ordenar uma coisa dessas!» Todavia,

o coitado de Gottschalk mal era mencionado.

Gottschalk ficou cinco meses na cadeia à espera de ser julgado. Um cí

nico poderá suspeitar que Marx não se sentiu totalmente descontente com

o desaparecimento do seu rival, pois isso dava-lhe a oportunidade de impor

a sua própria autoridade e unir as facções em litígio. Mas Marx nunca foi um

conciliador nato. Cari Schurz, um estudante de Bona, viu-o actuar no decor

rer de uma reunião dos democratas de Colónia, em 1848:

«Na altura, ele não devia ter muito mais do que 32 anos, mas já era o

reconhecido chefe da escola socialista superior... Eu cá nunca tinha visto

um homem cuja atitude fosse tão provocadora e intolerável. Não con

cedia nem sequer a honra de considerar de maneira condescendente as

opiniões que diferiam da sua. Todos aqueles que o contradiziam eram tra

tados com desprezo abjecto e respondia a todos os argumentos de que

1 2 2 ^ 8 KARL MARX

não gostava com mordaz desdém pela infinita ignorância que os tinham

incitado ou com calúnias infames sobre os motivos de quem os articu

lara. Lembro-me muito distintamente do tom desdenhoso com que pro

nunciava a palavra "burguês"; e como um "burguês" — quer dizer, um

detestável exemplo da mais profunda degenerescência mental e moral —

denunciava todos que ousavam opor-se à opinião dele... É evidente que

não só não ganhou nenhuns adeptos como também repeliu muitos que,

de outro modo, poderiam ter-se tornado seus seguidores.»"

É de assinalar que isto foi escrito cerca de 50 anos mais tarde, muito de

pois de Schurz ter emigrado para a América e de se tornar um respeitável ho

mem de Estado como senador e secretário do Ministério do Interior dos EUA.

N o entanto, soa terrivelmente verdadeiro. Como Marx era raramente capaz

de manter boas relações com os seus próprios camarada mais íntimos, se

ria absurdo imaginar que ele pudesse harmonizar uma coligação já dividida

de liberais, esquerdistas, camponeses e proletários. Nos seus discursos e edi

toriais, insistia que a Alemanha devia ter um governo democrático consti

tuído pelos «elementos mais heterogéneos» e não uma ditadura de comunis

tas inteligentes como ele mesmo, mas a veemência com a qual declarava isso

— lançando escárnios e insultos a quem ousasse discordar com ele —, su

geria que ele era um homem que não reconheceria o pluralismo nem que lhe

fosse apresentado numa bandeja de prata enfeitada.

As autoridades prussianas nunca se deixaram enganar pelas suas atitudes

de reformador benigno. Já em Abril, o inspector Hünermund, de Colónia,

tinha avisado os seus superiores acerca do «politicamente incerto Dr. Marx»

e, quando o Neue Kheinische Zeitung publicou o cáustico relato da prisão de

Anneke, aproveitou a oportunidade. A 7 de Julho, Marx foi levado diante do

juiz para interrogatório por «difamações e insultos contra o promotor da jus

tiça», enquanto a poKcia vasculhava a redacção à procura de qualquer documen

to que identificasse o autor anónimo do pérfido artigo. Duas semanas mais

tarde, Marx foi mais uma vez interrogado e, em Agosto, os seus colegas,

Dronke e Engels, foram chamados como testemunhas. A 6 de Setembro, o

Zeitung publicou uma notícia preocupante: «Ontem, um dos nossos redac

tores, Friedrich Engels, foi mais uma vez convocado para comparecer diante

do juiz no que se refere à investigação em curso contra Marx e associados,

mas, desta vez, não como testemunha, mas sim como co-acusado.»

o PAPÃO ATERRADOR ~T^-123

A perseguição movida a «Marx e associados» não os intimidou nem si

lenciou; pelo contrário, tornou-os mais imprudentes. «Uma característica da

Renânia, disse Engels no decorrer de uma reunião de democratas de Colónia

em meados de Agosto, "é o ódio às autoridades prussianas e ao prussianismo

puro; esperemos que tal atitude se mantenha".»^* Como ele devia saber, as

zntoúda.desprussianas não se importavam que lhes puxassem a cauda; o exér

cito, em particular, parecia estar inteiramente fora de controlo e sabotava

alegremente o chamado «Governo de Acção», que fora formado apenas há

uns meses. E m Agosto, a assembleia prussiana em Berlim pediu a demissão

de todos os militares que se recusassem aceitar o novo sistema constitucio

nal. O ministro da Guerra não tomou quaisquer medidas e, a 8 de Setembro,

o Governo foi derrubado por uma moção de censura da assembleia proposta

pelo representante da Esquerda e do Centro.

De regresso de Viena onde se deslocara para angariar fundos, Marx en-

contrava-se, por acaso, em Berlim. «Quando se soube da derrota do Gover

no, uma alegria indescritível apoderou-se da multidão», enviou ele a notícia

a Engels que, na sua ausência, dirigia o jornal. «Milhares de pessoas junta-

ram-se e desfilaram pela Praça da Ópera ao som de constantes vivas. Nun

ca dantes se tinha visto aqui uma tal manifestação de regozijo.»^^

Foi uma vitória com consequências desastrosas. Apanhado naquele

ambiente de euforia, Marx assumiu ingenuamente que, agora, seria consti

tuído um governo do centro-esquerda. Um momento de reflexão talvez lhe

tivesse aberto os olhos: o rei da Prússia nunca toleraria uma tal afronta. E,

claro está, quando Marx voltou a Colónia, a contra-revolução tinha come

çado. Desafiando o desejo dos representantes do povo em Berlim, o rei

formou um novo gabinete composto de burocratas reaccionário e de ofi

ciais do exército. «A Coroa e a Assembleia confrontam-se», escreveu Marx

a 14 de Setembro. «É muito possível que sejam as armas a decidir a questão.

O lado com mais coragem e consistência vencerá.»

Heróica ilusão, claro está: a valentia valeria muito pouco contra o poder

de intimidação do Estado. Na madrugada de 25 de Setembro, a polícia de

Colónia prendeu vários Kderes do recentemente formado Comité de Segu

rança Pública, incluindo Karl Schapper e Hermann Becker; vieram também

à procura de Engels, mas este eclipsara-se. À hora do almoço, Marx dirigiu-se

a uma grande manifestação no antigo mercado, avisando os trabalhadores

para não reagir às «provocações da polícia» levantando barricadas. O mo

mento, porém, ainda não estava maduro para combates de rua.

124 < ^ ^ KARL MARX

Mas o tempo, como os abacates e os marmelos, por vezes apodrece antes de amadurecer. A 25 de Setembro, foi declarada a Lei Marcial em Colonia e o comando militar suspendeu imediatamente a publicação do Neue Rheinische Zeitung. Marx enviou uma circular aos assinantes explicando que «a caneta tem de se submeter ao sabre», mas prometia que, dentro em pouco, o jornal voltaria a aparecer em formato maior.

Com vários jornalistas na cadeia e os accionistas recusando subsidiar um jornal caído no esquecimento, isso era bastante optimista — sobretudo porque o mais valioso colega de Marx, Engels, tinha fugido assim que tinha ouvido que a poHcia andava atrás dele. Depois de fazer uma breve pausa em Barmen para dar a notícia aos pais horrorizados, Engels refugiou-se no santuário da Bélgica. O Kölnische Zeitung, patriótico e respeitador da lei como sempre, publicou o mandado de captura:

Nome: Friedrich Engels; profissão: comerciante; local de nascimento e residência: Barmen; religião: evangélica; idade: 27 anos; altura: 1,70 m.; cabelo e sobrancelhas: louro-escuro; testa: normal; olhos: cinzentos; nariz e boca: bem proporcionados; dentes: bons; barba: castanha; queixo e rosto: ovais; compleição: saudável; figura: esguia.^"

Boa publicidade para um estilo revolucionário de vida. O dono desta compleição saudável e nariz bem proporcionado chegou a Bruxelas a 5 de Outubro acompanhado por Ernst Dronke, mas os dois fugitivos mal se tinham sentado para jantar no hotel quando um poUcia, aproveitando-se da lei contra a «vadiagem» aplicada tão eficazmente com Jenny Marx, os arrastou para a prisão Petits-Carmes. Duas horas mais tarde, Engels e Dronken foram levados num coche fechado até à gare e obrigados a tomar o próximo comboio para Paris sob escolta.

Assim que o Neue Rheinische Zeitungvolton a ser publicado após o levantamento da Lei Marcial, a 12 de Outubro, Marx escreveu um furioso editorial sobre o «tratamento brutal» infligido aos seus amigos. «Isto prova que o Governo belga está a aprender a reconhecer a sua posição», comentou^^:

«Os belgas estão gradualmente a tornar-se nos polícias dos países vizinhos e ficam todos contentes quando são felicitados pelo seu comportamento paciente e submisso. N o entanto, há algo ridículo, sobre o bom poKcia belga. Até o honesto T/A^ÍJ reconhece ironicamente o desejo de agradar dos belgas e, ainda há pouco tempo, aconselhou a Bélgica a trans-

o PAPÃO ATERRADOR o * ^ 125

formar-se num grande clube com Ne risque^ rien (Não arrisquem nada)

como lema depois de se livrar de todas as associações de trabalhadores.

É evidente que a imprensa oficial belga, no seu cretinismo, reproduziu

esse lisonjeiro artigo e saudou-o com júbilo.»

A luta para salvar a recém-nascida democracia alemã atingiu o seu cKmax

com uma sublevação revolucionária em Viena e combates de rua em Berlim.

Pouco depois de Marx ter sido eleito presidente da Associação dos Traba

lhadores de Colónia, a 22 de Outubro, o director do jornal da associação foi

condenado a um mês de prisão por difamar Herr Hecker. Encorajado por

esta pequena vitória, o vingativo promotor de justiça processou Marx cla

mando que os discursos dele equivaliam a «alta traição» e, absurdamente,

também intentou vários processos por difamação sobre um texto publica

do no Neue Kheinische Zeitung sob o nome de «Hecker», muito embora o ar

tigo fosse simplesmente uma mensagem de adeus, dirigida ao povo alemão,

do republicano Friedrich Hecker, o qual partia para a América a fim de re

começar uma nova vida. N o entanto, o ridículo Torquemada de Colónia

alegava que os leitores interpretariam aquilo de outro modo. Marx pergun

tava com incredulidade se o queixoso julgava realmente que «este jornal, com

inventiva maKcia, tinha publicado um artigo assinado "Hecker" a fim de fazer

crer ao povo alemão que Hecker, o promotor de justiça, vai emigrar para

Nova Iorque, que Hecker, o promotor de justiça, proclama a república ale

mã, que Hecker, o promotor de justiça, aprova oficialmente ideias revolu

cionárias?»^^ Provavelmente não: mas era outra oportunidade para intimidar

os inimigos do Estado Prussiano.

E m vez de regressar apressadamente à pátria para assistir ao desenlace

destes vários dramas -— meio tragédia, meio farsa —, Engels não pensou

mais neles. Depois de ter passado uns dias a descansar em Paris, partiu

sozinho num lento passeio pelo interior da França, com vários e agradáveis

desvios pelo caminho, em direcção à Suíça. Conforme ele próprio admitiu,

«não se deixa facilmente a França». Os camaradas em Colónia podiam es

tar a bater-se peia liberdade e as suas vidas, mas ele não tinha pressa de se

juntar a eles. Será que ele tinha perdido a coragem?

O diário inédito de Engels sobre esta odisseia de um mês e que mal

menciona a crise na Alemanha, é escrito com a admiração de um turista

novato. «Que país na Europa se pode comparar com a França em riqueza, na

variedade dos seus encantos naturais e produtos, e na sua universalidade?»

126 _, « KARL MARX

elogia. «E que vinho! Que diversidade, de Bordéus a Burgundy, de Burgundy

ao encorpado St. Georges, Lünel e Frontignan do Sul, e destes ao cintilante

champanhe!»^^ Parece ter andado meio embriagado todo o tempo. . . sobre

tudo em Auxerre, cidade a que chegou a tempo para festejar a colheita do

novo Burgundy. «A colheita de 1848 foi tão pródiga que não havia barris

suficientes para conter todo o vinho. E de uma tal qualidade... melhor do

que a de 46 e talvez ainda melhor do que a de 34!»

Não era apenas o vinho que intoxicava. «A cada etapa encontrei compa

nhia alegre, as uvas mais doces e as raparigas mais bonitas.» Após uma pro

cura exaustiva, chegou à conclusão de que as mulheres «esbeltas bem lavadas

e penteadas» de Burgundy eram preferíveis às «carnudas» e «desgrenhadas»

entre os rios Seine e Loire. «É, portanto, fácil de acreditar que passei mais

tempo deitado na erva com os negociantes de vinhos e as suas raparigas a

comer uvas, a beber vinho, a conversar e a rir do que a subir colinas.»

Percebe-se agora porquê a viagem demorou tanto tempo — e porquê

chegou à Suíça sem um tostão. Apelando ao pai e a Marx para lhe enviarem

dinheiro e não obtendo resposta de ambos, voltou a escrever para Colónia

perguntando-se nervosamente se o amigo estava zangado por ele se ter

ausentado sem dar notícias. «Caro Engels», respondeu Marx. «Estou verda

deiramente espantado por ainda não teres recebido dinheiro. Enviei-te (eu

pessoalmente e não por vale do correio) seis táleres há séculos... Supores

que eu pudesse abandonar-te numa situação destas é pura fantasia. Serás

sempre o meu amigo e confidente como eu espero que permanecerei o teu,

K. Marx» " Acrescentava um encorajador e combativo P.S.: «O teu pai é um

porco e havemos de lhe escrever uma carta a chamar-Ihe nomes.» Mas,

depois, deve-se ter lembrado que isso talvez não fosse uma boa técnica para

arranjar dinheiro. «Maquinei um plano infalível para extrair dinheiro ao teu

velho pois, agora, estamos lisos», escreveu a 29 de Novembro. «Escreve-me

uma carta suplicante (tão crua quanto possível) a enumerar as tuas vicissi

tudes passadas, mas de maneira a que eu possa passá-la à tua mãe. O teu velho

está a começar a ficar assustado.»^^ O Chico-Esperto apelou de forma seme

lhante à compaixão materna para extrair vales postais, mas não se saiu melhor

do que Marx e Engels.

Por altura do Natal, Engels estava farto de levar uma «vida de pecado»

e «de não fazer nenhum no estrangeiro». Numa carta de Berna dava uma

ridícula nova desculpa pela sua ausência: «Se houver razões suficientes para

achares que não serei detido para interrogações, regressarei imediatamente.

o PAPÃO ATERRADOR 0 ^ 1 2 7

Depois, podem, quanto a mim, pôr-me diante de dez mil juízes. Mas, quan

do uma pessoa é detida para interrogações, não a deixam fumar e eu cá não

me vou deixar prender para isso.»

Após ter sido assegurado que não precisava sacrificar os seus charutos

pela causa. Engels voltou para a Alemanha em Janeiro — apenas para des

cobrir que a revolução estava praticamente terminada. Fora formado um

novo governo chefiado pelo conde Brandeburgo, reaccionário e filho bas

tardo de Frederico Guilherme II, e o rei tinha dissolvido a assembleia prus

siana: «A burguesia não levantou um dedo; deixou simplesmente o povo

combater por ela», resmungou Marx no Neue Rheinische Zeitung, admitindo

que a sua teoria de uma aliança entre os trabalhadores e a classe média não

passara de um sonho. A derrocada prussiana provava que uma revolução

burguesa era impossível na Alemanha; agora, seria necessário uma insurrei

ção republicana. Mas a classe operária alemã estava incapaz de entrar em

acção sem encorajamento do exterior — em particular da França. Após ter

reflectido sobre as lições do ano anterior, Marx publicou um menu revolu

cionário revisto a 1 de Janeiro de 1849:

«O derrubamento da burguesia em França, o triunfo da classe operá

ria francesa, a emancipação da classe operária em geral é, por conseguinte,

o grito de incitamento para uma acção em conjunto da libertação europeia.

Mas a Inglaterra, o país que transforma nações inteiras no seu prole

tariado, que engloba todo o mundo no seu amplexo imenso. . . a Inglater

ra parece ser o rochedo contra o qual as vagas revolucionárias quebram,

o país onde a nova sociedade ainda se encontra em fase embrionária.»^''

Todas as perturbações sociais na França estavam destinadas a ser opos

tas pelo poder comercial e industrial da classe média inglesa, «e apenas uma

guerra mundial pode vencer a velha Inglaterra, bem como só isto pode

proporcionar aos Cartistas, o partido dos trabalhadores ingleses organiza

dos, as condições para uma sublevação bem sucedida contra os seus gigan

tescos opressores». Este jogo de consequências segundo as épocas — o qual,

cerca de um século mais tarde, viria ser conhecido pela teoria dos dominós,

conduziu a uma conclusão inevitável e apocalíptica. «O programa para 1849

é: Sublevarão revolucionária da classe operária francesa, guerra mundial.»

E depois? E m 1848, a classe operária tinha sido batida sempre e onde

erguia a cabeça por cima das barricadas — França, Prússia, Austria e a pró-

1 2 8 * ^ KARL MARX

pria Inglaterra, onde uma demonstração popular em Kennington, a sul de

Londres, assinalou o fim da ameaça cartista. Mas, com o seu talento para

paradoxos e perversidades, Max podia discernir um triunfo potencial em

todas as catástrofes, o bom tempo por detrás de cada nuvem, uma nova

aurora a despontar na noite mais tenebrosa. Assim, o que é que fazia se as

contra-revoluções fossem bem sucedidas? Isso espicaçaria os trabalhadores

a preparar um ataque mais eficaz da próxima vez. Marx tinha fé na velha

táctica^ reculer pour mieux sauter (recuar para melhor saltar).

Na ocorrência, 1849 foi apenas um sinistro pós-escrito de 1848. Um mês

depois de ter publicado a mensagem do Novo Ano, Marx e Engels foram

julgados por insultos à magistratura. Num discurso de uma hora proferido do

banco dos réus, Marx mostrou que espírito bruhante a profissão legal tinha

perdido quando ele recusara seguir a carreira do pai e desconstruir os artigos

222 e 367 do código penal de Napoleão até nada restar senão um punhado de

poeira. Deu uma lição ao júri sobre a importante, embora pedante, distinção

entre observações insultuosas e calúnia; argumentou que o promotor públi

co tinha de provar não só o insulto mas a intenção de insultar, pois o artigo 367

autorizava-um jornalista a pubHcar «factos» mesmo que estes fossem ofensi

vos. Na sua exegese do artigo 222 (que proibia insultos contra funcionários

públicos), fez notar que o código penal, ao contrário da lei prussiana, não

incluía o crime de lesa-majestade; e, como o rei da Prússia não era funciona- '

rio, também não podia valer-se do artigo 222. «Como é possível que seja au

torizado a insultar o rei e não possa insultar o promotor de justiça?»

Marx apresentou grande parte da sua defesa de forma calma e eloquente,

sem os habituais truques de retórica, ou enfeites, e no seu discurso final

apelou para a consciência poKtica do júri:

«Prefiro seguir os grandes acontecimentos do mundo e analisar o

curso da história do que me ocupar com chefes locais, a polícia e promo

tores públicos. N o entanto, por mais importantes que esses cavalheiros

se julguem, não representam nada nas gigantescas batalhas da época

presente. Considero que estamos a fazer um verdadeiro sacrifício ao

decidir cruzar as nossas armas com tais oponentes. Mas, em primeiro

lugar, o dever da imprensa é defender os oprimidos.. . O primeiro dever

da imprensa agora é sabotar todos os alicerces da actual situação política.»

o PAPÃO ATERRADOR ff^-. 129

Marx sentou-se fortemente aplaudido pela sala apinhada do tribunal e ele

e Engels foram absolvidos. Mas não havia muito tempo para celebrações. N o

dia seguinte, 8 de Fevereiro, Marx voltou ao banco dos réus juntamente com

dois colegas do Comité Democrático Distrital da Renânia; desta vez, era

acusado de «incitação à revolta».

A acusação provinha dos motins de Novembro de 1848, quando mem

bros da Assembleia Nacional Prussiana — obrigados a sair de arma apon

tada pelas tropas governamentais — tinham decidido que, em protesto, não

cobraria impostos. Numa proclamação datada de 18 de Novembro de 1848,

o comité de Marx declarou que «se devia resistir por toda a parte e de todas

as maneiras» ao pagamento forçado de impostos e que deveriam ser forma

das milícias populares «para rechaçar o inimigo». Como isto era inegavelmen

te uma incitação à revolta, como o próprio Marx admitiu em tribunal, a única

questão era saber «se os acusados tinham sido autorizados pela decisão da

Assembleia Nacional a resistir ao poder estatal e a organizar um força armada

contra o Estado». Após breve discussão, o júri decidiu por unanimidade que

eles tinham agido em perfeita conformidade com Deutsche 'Londoner Zeitung,

semanário liberal dirigido aos refugiados alemães em Londres: «Hoje em dia,

e em julgamentos políticos, o Governo não tem sorte nenhuma com os

júris.»^'' Mas o Governo tinha outros trunfos na manga. O comandante-ad

junto da guarnição de Colónia, um coronel desgraçadamente chamado

Friedrich Engels, informou o Oberpräsident da Renânia que Marx estava «a

tornar-se cada vez mais audacioso, agora que fora absolvido pelo júri, e acho

que chegou a altura de deportar esse homem, pois não temos de tolerar um

estrangeiro que, com a sua língua viperina, conspurca tudo, especialmente

porque a nossa própria canalha local está a ocupar-se disso bastante bem.»^^

Enquanto o coronel Engels aguardava uma resposta, dois dos seus ofi

ciais subalternos da 8.* Companhia de Infantaria tomaram a iniciativa de ir

a casa de Marx na tarde do dia 2 de Março para o obrigar a dizer quem ti

nha escrito um artigo recentemente publicado no Neue Renische Zeitung so

bre corrupção militar. Tal artigo tinha, ao que parecia, ofendido gravemen

te «toda a companhia.» Marx observou que o artigo em questão era, na

verdade, um anúncio, pelo qual não era responsável. Os visitantes, fazendo

literalmente tilintar o sabres, avisaram que, se ele se recusasse a dizer o nome

do autor, «aqmlo iria acabar mal». Como resposta, Marx chamou-lhes a aten

ção para a coronha de um revólver que sobressaía do seu bolso. Os dois

homens despediram-se a toda a pressa.

1 3 0 ^ 8 KARL MARX

«A disciplina deve andar muito relaxada», escreveu Marx ao coronel Engels,

«e toda a noção de lei e ordem deve ser inexistente caso uma companhia do

exército possa enviar delegados, como um bando de ladrões, a casa de um

cidadão para lhe extorquir informações sob ameaças... Tenho de lhe solici

tar, meu caro Senhor, que faça um inquérito quanto a este incidente, a fim de

me dar uma explicação sobre essa singular arrogância. Lamentaria imenso ser

obrigado a ter de recorrer à divulgação deste caso para obter uma resposta.»^^

A missiva de Marx foi uma ameaça mais eficaz do que os sabres dos ofi

ciais. O pobre comandante assegurou-lhe que os homens tinham sido repreen

didos e agradecia ao Neue Rheinische Zeitung^th. sua discrição. Magnânimo na

vitória, Marx informou o coronel que o sñencio do jornal demonstrava «como

era grande o seu respeito pelo corrente estado de espirito de agitação».

Historia incrível. Embora Marx estivesse a ser censurado por esquerdis

tas, como o Dr. Gottschalk (o qual, entretanto, fora solto da cadeia), por falta

de müitancia, o que ele publicava era suficientemente provocador — incluin

do troça ao «despotismo burocrático feudal-miMtar» presidido pelo rei e o

seu aristocrático novo ministro do Interior, o barão Von Manteuffel. «Os

governos estão a preparar-se às claras para golpes de Estado destinados a

completar a contra-revolução», predisse a 12 de Março. «Consequentemente,

o povo seria plenamente justificado se se preparasse para uma insurreição.»

Acrescentou igualmente que o povo não devia deixar-se cair nessa «desajei

tada armadilha» — mas apenas porque achava que, em breve, haveria uma

oportunidade muito melhor. A 8 de Maio, depois de uma série de motins e

escaramuças em Dresden e no Palatinado, o Neue VJjeinische Zeitungttouy^c as

boas noti'cias que «a revolução estava cada vez mais perto».

«Foi manifestado espanto», escreveu Engels anos mais tarde, «por conti

nuarmos as nossas actividades de forma tão despreocupada a curta distância

de um quartel prussiano de primeira categoria, diante de uma guarnição de oito

mil soldados e confrontando o quartel da guarda, mas, em virmde das oito es

pingardas e das 250 balas na sala de redacção, e os bonés vermelhos jacobinos

dos compositores-tipógrafos, a nossa casa foi considerada pelos oficiais como

sendo uma fortaleza que não seria tomada através de um mero coup de main.)?^

A verdade é que a fortaleza foi tomada sem ser disparado um único tiro

e, a 16 de Maio, as autoridades prussianas processaram metade do pessoal

da redacção recomendando que a outra metade -— os que eram prussianos,

incluindo Marx — fosse deportada. Nada mais poderia ser feito. N o último

número, e impresso desafiadoramente a vermelho, o Neue Rheinische Zeitung

o PAPÃO ATERRADOR , \ • 131

anunciava que «a sua última palavra por toda a parte será sempre: emancipa

ção da classe operária!» A seguir, Marx e os outros jornalistas saíram do prédio,

com a bandeira vermelha hasteada orgulhosamente no telhado e uma ban

da a tocar, de armas e bagagem na mão.

Depois de vender tudo — incluindo a tipografia do jornal que lhe per

tencia e a mobília de sua casa — Marx conseguiu liquidar as dívidas mais

importantes, mas ficou sem mais nenhum dinheiro. A prata da família de

Jenny foi posta no prego, desta vez em Frankfurt, enquanto ela e os filhos

partiram para casa da mãe em Trier. Marx e Engels dirigiram-se para Frank

furt na esperança de convencer os deputados da esquerda a apoiar as tropas

insurgentes do Sudoeste da Alemanha que ainda combatiam pelo «governo

provisório» em Baden e no Palatinado. Mas ninguém lhes deu ouvidos e,

assim, partiram no dia seguinte para Baden, a fim de exortar as forças revo

lucionárias a marchar sobre Frankfurt sem serem convidados. Mais uma vez

os seus apelos foram ignorados, embora tivessem um encontro amigável com

o antigo colega deles, WiUich, que chefiava agora os guerrilheiros.

Engels, um estudioso de estratégia militar, não resistiu à oportunidade de

vestir uma farda e juntar-se à guerra. Alistando-se como voluntário, em breve

nomeado ajudante de campo de WiUich e dirigindo conjuntamente a cam

panha e as operações. N o decorrer das semanas seguintes combateu em al

gumas escaramuças — todas elas foram perdidas. A sua descoberta mais im

portante, disse ele a Jenny Marx, foi a de que «a muito vangloriada bravura

sob fogo é a qualidade mais comum que uma pessoa possui. O silvar das

balas é realmente uma coisa bastante trivial»^^ Assistiu a poucos actos

cobardes, mas muita «valentia estúpida».

Marx, que não tinha inclinação nem físico para ser soldado, deu-se con

ta de que não havia mais nada que podia fazer na Alemanha e, em princípios

de Junho, partiu para Paris com um passaporte falso, apresentando-se às

autoridades francesas como o enviado especial do governo revolucionário

do Palatinado. Ao chegar, contodo. Paris estava a braços com uma reacção rea

lista e uma epidemia de cólera. «Por todo isso», escreveu jovialmente a Engels

a 7 de Junho, «nunca uma colossal erupção do vulcão revolucionário esteve

mais iminente do que actoalmente em Paris... Dou-me com todo o partido

revolucionário e, dentro de alguns dias, terei todos os jornais revolucioná

rios à minha disposição».^^

Mas, dentro de dias, não havia mais jornais revolucionários. Quando

a facção dos montagnards da Assembleia Nacional francesa convocou uma

132 î ^ KARLxMARX

manifestação para 13 de Junho, as tropas governamentais afugentaram simplesmente os manifestantes da rua e prenderam os chefes. Assim terminou a revolução começada em 1848; depois do galo gaulês ter cantado e se pavoneado, torceram-lhe o pescoço.

Jenny, grávida do quarto filho, juntou-se ao marido em Paris em princípios de Julho. «Se a minha mulher não estivesse num état par trop intéressant (estado excessivamente interessante), sairia com todo o gosto de Paris assim que fosse financeiramente possível», escreveu a Engels^^. Mas a decisão já não dependia dele. Os reaccionários triunfantes andavam muito ocupados a procurar revolucionários estrangeiros e a expulsá-los da capital agora calma. Na soalheira manhã de 19 de Março, um agente da polícia veio à bater à porta dos Marx, na Rue de LiUe, 45, para entregar uma ordem oficial que os bania para o département àt Morbihan, na Bretanha. A única surpresa foi Marx não ter sido expulso mais cedo: todo leva a crer que a poKcia não o encontrou durante várias semanas porque ele tinha tomado a precaução de alugar o apartamento sob o nome de «Monsieur Ramboz».

Marx conseguiu retardar o inevitável apelando para o Ministério do Interior, mas, a 16 de Agosto, o comissário da polícia de Paris informou-o que a ordem fora confirmada, mas Jenny era autorizada a permanecer mais um mês. Marx descreveu Morbihan como sendo «o lodaçal da Bretanha», um pântano infestado de malária que acabaria sem dúvida por matá-lo e a toda a família, a qual já se encontrava bastante doente. «Escusado será dizer», escreveu a Engels, «que não consinto que atentem desta forma velada contra a minha vida e, assim, vou abandonar a França.»- "*

Nem a Alemanha nem a Bélgica o deixavam entrar, e a Suíça recusou o seu pedido de residência — não que ele desejasse particularmente viver naquela «armadilha para ratos». E, assim, virou-se para o último refúgio do revolucionário sem raízes e, quando o SS City of Boulogne chegou a Dover a 27 de Agosto de 1849, o seu comandante, de acordo com a lei, notificou o Ministério do Interior inglês de «todos os estrangeiros que se encontram a bordo do meu navio»^^: os quais incluíam um actor grego, um cavalheiro francês, um professor polaco e um tal Karl Marx que se intitula «doutor».

«Tens de partir para Londres imediatamente», escreveu Marx a Engels que estava a recuperar das suas fatigas militares frequentando bares e rnu-Iheres em Lausana. «Conto absolutamente com isso. Não podes permanecer na Suíça. Recomeçaremos tudo em Londres.»^*"

o MEGALOSSAURO

O refúgio final de Karl Marx foi na maior e mais rica metrópole do

mundo. Londres foi a primeira cidade a atingir uma população de um milhão

de habitantes, um enorme tumor que continuava a inchar sem, todavia, re

bentar. Quando o jornalista Henry Mayhew a sobrevoou num balão de ar

quente para ter uma noção do seu tamanho, não soube explicar «onde é que

a cidade monstruosa começava, ou acabava, pois os prédios estendem-se, de

um lado e do outro, não só até ao horizonte, mas para lá a perder de vista...

onde a cidade parecia confundir-se com o céu.» As estatísticas calculam que

300 000 pessoas se instalaram na capital entre 1841 e 1851 — incluindo

centenas de refugiados que, como Marx, foram atraídos pela sua reputação

de santuário para os marginais políticos.

Mas esta «supercidade de luxo» também era o monstro sinistro e som

brio que surge ameaçadoramente da primeira página de Bleak Home, escri

to três anos depois da chegada de Marx:

«Tempo implacável de Novembro. Há tanta lama nas ruas que é como

se a água tivesse sido quase toda retirada da face da Terra e não seria bom de

parar com um Megalossauro de 30 metros de comprido a subir lentamente

Holborn Hül como um lagarto paquidérmico. O fumo que sai dos tubos

das chaminés provoca uma chuva miúda e negra com flocos de fuligem tão

grandes como neve — enlutadas, podemos imaginar, pela morte do Sol.»^

Para lá dos luxuosos salões de Mayfair e Piccadilly estende-se um bairro

da lata inexplorado de barracas e oficinas, bordéis e fábricas sujas. «É como

1 3 4 ^ ^ KARL MARX

o coração do universo, e a torrente de esforços humanos jorra para dentro e para fora com uma violência que consterna os sentidos», escreveu Thomas Carlyle ao irmão. «Daí que o nosso pai tenha visto Holborno envolto em nevoeiro!, com o espesso vapor à sua volta absolutamente como tinta fluida; e carruagens, coches, carneiros, bois e gente alvoraçada no meio de berros, gritos e barulho ensurdecedor, como se a terra enlouquecesse.»

As doenças eram comuns — o que não era de surpreender, visto que os esgotos escoavam directamente no Tamisa, o qual abastecia a cidade de água. Apenas um mês antes de Marx chegar a Londres, infestada por mais uma das suas epidemias periódicas de cólera, The Times publicou o seguinte grito de socorro na sua página de cartas ao editor:

«Sor, suplicamos a sua ajuda e proteção. Vivemos, Sor, em Wilderniss, caso Londres queira saber de nós ou a gente importante e rica se interesse. Vivemos no meio do lixo. Não temos retrete, nem água, nem esgotos. A companhia dos esgotos, na rua Greek, no Soho, todos homens poderosos e ricos não Hgam às nossas queixas. O fedor é nojento. Todos nós sofremos e mviitos estão doentes. Deus tenha piedade de nós se a cók^ra vier aí.»^

Em alguns bairros, uma criança em três morria antes de cumprir um ano de idade.

As maravilhas e monstruosidades da Londres vitoriana, que espantavam tantos visitantes estrangeiros, eram invisíveis a Marx. Apesar de todo o seu talento como jornalista e analista social, ele parecia curiosamente ignorar muitas vezes o que o rodeava; ao contrário de Dickens, que mergulhava no horror para trazer vividas observações em primeira mão, preferia 1er os jornais ou dirigir-se às comissões reais para obter informação. Nem manifestava o menor interesse pelo gostos e hábitos dos habitantes — a maneira como se vestiam, se divertiam e as suas canções populares. É verdade que, em Julho de 1850, fico «todo vermelho e excitado» ao reparar na miniatura de uma locomotiva eléctrica na montra de uma loja da rua Regency, mas foram as implicações económicas e não a emoção da novidade que o entusiasmaram. «O problema é resolvido — as consequências são difíceis de prever», disse aos seus companheiros boquiabertos, explicando-lhes, que assim como o vapor tinha transformado o mundo no século passado, também agora a centelha eléctrica poria em marcha uma nova revolução.

o MEGALOSSAURO o í ^ 135

«Na esteira da revolução económica há-de necessariamente seguir-se a revolução poKtica, pois esta última é apenas a expressão da primeira.» Parece pouco provável que mais alguém entre a multidão tenha parado diante da loja da rua Regent para considerar as consequências políticas desse cavalo de ferro troiano; para Marx, contudo, era tudo que interessava. Se tivesse deparado com o megalossauro de Dickens a espojar-se na lama de Holborn Hill, mal teria olhado para ele uma segunda vez.

O trabalho era a única coisa que o distraía da desgraça da sua situação. Sem fazer uma pausa para se ambientar, pôs-se a organizar um novo quartel-general para a Liga Comunista nos escritórios da Associação Educativa dos Trabalhadores Alemães, em Londres, uma das muitas associações políticas da diáspora revolucionária, e, em meados de Setembro, foi eleito para um Comité de Ajuda aos Refugiados Alemães. «Encontro-me agora numa situação realmente difícil», escreveu a Ferdinand Freiligrath a 5 de Setembro de 1849, cerca de uma semana depois de ter chegado a Inglaterra. «A minha mulher está em estado avançado de gravidez. Tem de sair de Paris no dia 15 e eu não sei como hei-de arranjar dinheiro para a viagem e para a instalar aqui. Mas, por outro lado, há excelentes perspectivas de eu vir a publicar uma revista mensal.. .»

Poucos refugiados precisavam de ajuda mais urgente que os Marx. Jenny chegou a Londres em 17 de Setembro, doente e exausta com «os meus pobres três filhos perseguidos». Jennychen tinha nascido em França, Laura e Edgar na Bélgica, e essa paripatética parturição foi continuado pelo nascimento do segundo filho a 5 de Novembro de 1849 ao som de fogo-de--artifício: os londrinos festejavam o facto de Guido (Guy) Fawkes não ter conseguido mandar pelos ares o Parlamento em 1605. Em homenagem ao grande conspirador, a criança foi baptizada Heinrich Guido e instantaneamente alcunhada «Fawkesy» (alcunha essa mais tarde germanizado para «Foxchen»).

Marx tinha uma particular afeição por alcunhas e pseudónimos. É evidente que, por vezes, essa necessidade era de ordem poKtica: daí o cómico aliás«MonskurKainhoz», adoptado quando se escondia em Paris. Até mesmo na liberal Londres, onde havia pouca necessidade de subterfúgios, ele assinava por vezes as suas cartas A. Williams para escapar aos denunciantes da poHcia nos correios. Mas a maior parte dos diminutivos que dava tão liberalmente a amigos e à família eram por puro capricho. Dirigia-se a Engels, o soldado de luxo, pela sua patente imaginária, «General». A governanta, Helene Demuth, era «Lenchen» ou, outras vezes, «Nym». Jennychen desfru-

1 3 6 1 5 ^ KARL MARX

tava do título, se não dos salamaleques, de «Qui-Qui, imperador da China». Marx, conhecido pelos íntimos por Mouro, encorajava os filhos a chamá-lo Ve/ho Nick e «Charlep>. Confusamente, o sinal mais seguro do seu desprezo por alguém era chamá-lo pelo nome de baptismo: o poeta Kinkel, o anti--herói do panfleto de Marx, Grandes Homens do Exílio, era sempre tratado por Gottfried.

«Sabes que a minha mulher enriqueceu o mundo com mais um cidadão», escreveu Marx a Joseph Weydemeyer, que estava em Frankfurt, pouco depois do nascimento de Fawkesy. O tom bem humorado ocultava uma terrível apreensão: como é que ele iria sustentar quatro crianças pequenas e uma mulher doente? Como o Sr. Micawber, convenceu-se de que algo tinha de aparecer. Tinha-se mudado, em Outubro, para uma casa na rua Anderson, em Chelsea (então, como agora, um dos bairros mais na moda e caros) e pagava seis libras por mês, muito mais do que podia.

Pode parecer que um exilado numa terra estranha, desenraizado e sem um tostão no bolso, necessita de todos os amigos que possa arranjar; mas não Marx. O único aliado que precisava era de Engels — o qual, fiel como sempre, se instalou em Londres a 12 de Novembro todo aperaltado para dar batalha a recidivistas e traidores. Seis dias mais tarde, no decorrer de uma reunião na Associação Educativa dos Trabalhadores Alemães, Marx mudou o nome do comité de ajuda aos refugiados para o distinguir de um grupo rival fundado por «liberais» como Gustav von Struve, Karl Heinzen e Louis Bauer, o médico de família recentemente contactado pelos Marx. Com severa formalidade, Karl Marx informou o Dr. Bauer de que «em vista das relações pouco amistosas entre os dois grupos aos quais pertencemos... em vista dos seus ataques directos ao meu comité de refugiados, em todo o caso aos meus amigos e colegas... temos de pôr termo às nossas relações sociais... Ontem à noite, não achei conveniente exprimir a riiinha opinião quanto a este conflito em presença da minha mulher. Exprimo-lhe aqui os meus maiores agradecimentos pela sua assistência médica e peço-lhe que me envie os seus honorários.»"^

Mas, quando o médico lhe apresentou a conta, Marx acusou-o de querer depená-lo e recusou-se a pagar, i Por volta do Natal, Engels informou outro camarada alemão que «visto

bem as coisas, está tudo a correr bastante bem por aqui. Struve e Heinzen continuam a fazer intrigas contra nós e a Associação dos Trabalhadores, mas sem sucesso. Juntamente com uns moderados que nós expulsámos, forma-

o MEGALOSSAURO tfQjH37

ram um clube exclusivo, onde Heinzen se queixa das doutrinas nocivas dos comunistas»^ Quando The Times descreveu Heinzen como um «farol do Partido Social Democrata alemão», Engels enviou uma dura refutação ao Northern Star, jornal cartista: «Herr Heinzen, ao contrário de ser um farol, tem-se incansavelmente oposto desde 1842, embora sem sucesso, a tudo o que é socialismo e comunismo.»'' Era exactamente como nos velhos tempos em Paris, ou Bruxelas — um turbilhão de intrigas, ajustes de contas e luta pelo poder. Na sala da Associação, na rua Great Windmill, no Soho, Marx em breve se encarregou de examinar minuciosamente os recém-chegados e de impor regulamentos.

Wilhelm Liebknecht, que fugiu para Londres em 1850, deixou um vivo relato dos métodos intimidadores usados por Marx para estabelecer o seu domínio. Durante um piquenique da Associação, pouco depois da sua chegada, o «père Marx» chamou-o à parte e pôs-se a inspeccionar a forma do seu crânio. Não tendo encontrado nenhuma anormalidade, Marx convidou-o então no dia seguinte a ir à «sala privada» da rua Great Windmill para o escrutinar mais pormenorizadamente:

«Não sabia o que era uma "sala privada", mas tive o pressentimento que o exame "final" estava prestes a acontecer. Segui-o confiantemente. Marx inspirava confiança e tinha-me causado boa impressão no dia anterior. Conduziu-me pelo braço à sala privada, quer dizer, o gabinete do anfitrião — ou seria anfitriã? — onde Engels me recebeu alegremente com piadas e uma caneca de cerveja na mão... A maciça mesa de mogno, as canecas de estanho, a cerveja espumante, a perspectiva de um bom bife inglês com acessórios e compridos cachimbos de espuma — era realmente confortável e lembrava as ilustrações inglesas de Boz. Mas, apesar de tudo isso, examinaram-me a sério.»^

Os examinadores tinham feito os trabalhos de casa. Citando um artigo que Liebknecht escrevera para um jornal alemão em 1848, Marx acusou-o de fiüsteu e de ter a «nebulosidade sentimental dos alemães do Sul». Após muitas súplicas, o candidato foi perdoado. Mas o seu suplício não tinha terminado: o frenologista comunista residente, Karl Pfänder, foi chamado para fazer um exame mais aprofundado dos contornos cranianos de Liebknecht. «O meu crânio foi oficialmente inspeccionado por Karl Pfánder, o qual nada encontrou que impedisse a minha admissão no santuário da Liga

1 3 8 ^ ^ KARL MARX

Comunista. Os exames, porém, continuaram...» Marx, que era apenas cinco ou seis anos mais velho que os «camaradas jovens», como Wilhelm Liebknecht, interrogava-os como um professor a pôr à prova uma tristonha aula de estudantes, empregando os seus colossais conhecimentos e prodigiosa memória como se fossem instrumentos de tortura. «Como ele se divertia quando, depois de tentar um "pequenino aluno" a arriscar-se, demonstrava à custa do infeliz a incompetência das nossas universidades e da cultura académica.»

Marx era sem dúvida um tremendo exibicionista e um intelectual bruto e sádico. Mas também era um professor inspirado e ensinava espanhol, grego, latim, filosofia e economia política aos jovens refugiados. «Ele que, habitualmente, se mostrava tão impaciente, tinha uma tal paciência quando ensinava!» A partir de Novembro de 1849, iniciou uma série de palestras, cuja tema era «O que é a propriedade burguesa?», que atraiu imensa gente à sala do segundo andar da rua Great Windmill. «Enunciava uma afirmação — quanto mais breve, melhor — e, depois, demonstrava através de uma longa explicação, tentando com o maior cuidado evitar expressões que não fossem entendidas pelos trabalhadores», relatou Liebknecht. «A seguir, pedia à audiência que lhe fizesse perguntas e, se ninguém se propusesse, punha-se a examinar os trabalhadores com tais qualidades pedagógicas que nenhuma falha nem incompreensão lhe escapava... Também utilizava um quadro para escrever fórmulas... entre as quais algumas proveniente de O Capital, que eram familiares a todos.»

Os habitantes da rua Great WindmiU tinham um horário muito ocupado. Aos domingos, havia palestras de história, geografia e astronomia seguidas por «perguntas acerca da corrente situação dos trabalhadores e a sua atitude para com a burguesia». As discussões sobre comunismo ocupavam a maior parte das segundas e terças-feiras, mas, mais tarde durante a semana, o currículo incluía aulas de canto, locução, desenho e até mesmo de dança. As noites de sábados eram dedicadas à «música, recitação de poemas e leitura de artigos de jornal interessantes». Nos tempos de folga, Marx passeava até Rathbone Place, perto da rua Oxford, onde um grupo de emigrantes franceses tinha aberto um salão de esgrima no qual se podia praticar espada, florete e sabre. Segundo Liebknecht, as estocadas de Marx eram rudimentares, mas eficazes. «O que lhe faltava em perícia, tentava compensar com agressividade. E, a não ser que uma pessoa se mantivesse calma, assustava--a deveras.» . ,

o MEGALOSSAURO ^ ¡ » 1 3 9

O mesmo acontecia com a escrita; quando não brandia a espada, desembainhava mais outro jornal para dizimar os filisteus. No começo de 1850, o seguinte anúncio foi publicado no jornal alemão: «A Neue Rheinische Zeitung Politisch-ökonomische Revue, dirigida por Karl Marx, surgirá em Janeiro de 1850... Esta revista será publicada mensalmente, em pelos menos cinco folhas, ao preço por assinatura de 24groschen de prata cada trimestre.»^ O director comercial era para ser Conrad Schramm, outro revolucionário alemão independente chegado a Londres há uns meses.

As ambições de Marx para esta publicação eram heroicamente grandiosas. «Não duvido de que, após terem saído três números, ou talvez dois, da revista, haverá um conflito mundial», predisse'. Entretanto, contudo, era preciso tratar do desagradável problema financeiro. Convencido de que «só se conseguiria o dinheiro na América», Marx pensou enviar Conrad Schramnn numa digressão transatlântica para obter fundos, mas deu-se conta a tempo de que uma viagem dessas acartaria ainda mais despesas.

Desde o princípio que a nova revista estava condenada, acabando por expirar ao cabo de cinco meses. O primeiro número teve de ser adiado pelo facto de Marx ficar doente por duas semanas e a impossibilidade do compositor-tipógrafo não conseguir decifrar os gatafunhos dele provocou mais um atraso; Marx passou o tempo a discutir com o editor e o distribuidor, pois desconfiava que eles estivessem combinados com os censores. A revista ter sido publicada foi realmente um milagre.

Tinha boas coisas — sobretudo uma longa série de artigos, nos quais Marx empregou todo seu engenho dialéctico para se opor à ideia que a revolução francesa de 1848, tinha falhado. «O que sucumbiu nessa derrota não foi a revolução, mas sim os apêndices tradicionais pré-revolucionários, resultado das relações sociais ainda não terem chegado ao ponto do antagonismo de classes.. .» *'. O sucesso teria sido um desastre disfarçado: só através de malogros é que o partido revolucionário poderia libertar-se de noções ilusórias e líderes oportunistas. «Numa palavra: a revolução fez progressos e avançou, não através das suas imediatas proezas tragicómicas, mas, pelo contrário, através da criação de uma forte contra-revolução unida.»

Tendo provado esta tese contrária para sua própria satisfação «A revolução morreu! — Viva a revolução!»), passou para outro acontecimento: a espectacular vitória de Luís Napoleão nas eleições presidenciais de Dezembro de 1848. Porquê tinham votado os franceses de forma tão esmagadora por esse vadio grotesco — «desajeitadamente manhoso, velhacamente ingénuo.

I40'<*¿f.^ KARLMARX •;• •

imbecilmente subüme, uma superstição premeditada, uma paródia patética,

um anacronismo inteligentemente estúpido, uma palhaçada histórica-mun-

dial, um hieróglifo indecifrável?» Era muito simples: a própria inexpres-

sividade deste Bonaparte de tra2er por casa permitia que todas as classes o

reinventassem à imagem delas. Para os camponeses, ele era o inimigo dos

ricos; para os proletários, representava o aniquilamento do republicanismo

burguês; para a alta burguesia, a esperança da restauração monárquica; para

o exército, a promessa de guerra. Assim, o francês mais simples de espírito

adquiria o mais complexo significado: «Por nada ser, podia significar tudo.»

Apesar de todo o seu brilho e coragem, a Repue não se desviou dos seus

objectivos para seduzir assinantes. Como E. H. Carr assinalou, «o conjunto

dos artigos era tacitamente temperado com acerbos ataques aos outros re

fugiados alemães em Londres, os quais eram quase os únicos leitores poten

ciais da revista»". A circulação era reduzida e as receitas insignificantes. E m

Maio de 1850, Jenny Marx escreveu implorantemente a Weydemeyer em

Frankfurt: «Suplico-te que nos envie o mais depressa possível as receitas da

Revue. Estamos muito necessitados.»^^ Marx mostrava-se estóico quanto à

falência de um projecto no qual investira tanta esperança e energia. Como

Jenny observou com admiração, mesmo nos «momentos mais terríveis» —

e tais momentos foram bastante numerosos em 1850 —, nunca perdeu o

bom humor nem a sólida confiança no futuro. «Por favor não fiques ofen

dido pelas cartas agitadas da minha mulher», escreveu ele a Weydemeyer. «Ela

anda a amamentar o filho e a nossa situação aqui é tão extraordinariamente

catastrófica que as explosões de impaciência são desculpáveis.»"

Este breve comentário mal dava a perceber o verdadeiro horror que

estavam a passar os Marx para sobreviverem. Numa longa e lancinante carta

redigida em Maio de 1850, Jenny Marx descrevia uma cena que podia sair de

um romance de Charles Dickens:

«Deixa-me descrever-te apenas um dia das nossas vidas e hás-de per

ceber que muito provavelmente poucos refugiados passaram por uma ex

periência semelhante. Como as amas-de-leite são exorbitantemente ca

ras, decidi, apesar das terríveis dores no peito e nas costas, ser eu a dar

de mamar ao meu filho. Mas o pobre anjinho absorveu juntamente com

o meu leite tantas ansiedades e aflições que está doente noite e dia. Desde

que nasceu que nunca dormiu uma noite inteira — no máximo, duas ou

três horas. Nos últimos dias, também tem sofrido convulsões violentas

o MEGALOSSAURO ^ ^ 1 4 1

e está constantemente entre a vida e a morte. Mama com tanta força que

tenho uma ferida no peito que muitas vezes chega a sangrar na sua bo

quinha. Um dia, estava sentada a dar-lhe de mamar quando chegou a se

nhoria, a quem já pagámos mais de 250 tâleres durante o Inverno e com

quem concordámos, por contrato, pagar o resto mais tarde. Mas ela, ago

ra, nega a existência de tal contrato e exige as cinco libra que lhe deve

mos. .. Como não temos dinheiro, vieram dois oficiais de diligências cá

a casa e confiscaram o pouco que ainda possuo — camas, roupa, tudo,

até mesmo o berço do meu pobre filho e os brinquedos das meninas que

desataram a chorar. Ameaçaram levar tudo dentro de duas horas —

deixando-me a dormir no chão com as crianças cheia de firio e o meu pei

to ferido. O nosso amigo Schramm foi imediatamente à cidade à procura

de ajuda, mas, ao entrar no coche, os cavalos assustaram-se e abalaram

a toda a brida. Ele saltou e trouxeram-no a sangrar para casa onde eu me

lamentava na companhia dos meus pobres filhos a tremer de frio.

Fomos obrigados a deixar a casa no dia seguinte. Estava tanto frio e

húmido que o meu marido foi em busca de alojamento, mas ninguém nos

quer receber por causa das quatro crianças. Por fim, um amigo veio em

nossa ajuda. Pagámos o que devíamos e vendi tudo à pressa para pagar

igualmente aos boticários, padeiros, talhantes e leiteiro que, receosos pelo

escândalo provocado pelos oficiais de diligências, nos assaltaram subita

mente com as suas contas. As cama que vendi foram levadas para a rua

e carregadas num carrinho de mão. E, depois, o que é que aconteceu? O

Sol já se tinha posto há muito e a lei inglesa proíbe isso. Então o senho

rio vem ter connosco e os polícias e declara que podemos ter metido coi

sas dele no meio das nossas posses e que vamos fugir para o estrangeiro.

E m menos de cinco minutos, junta-se uma multidão de 200 ou 300 pes

soas à porta, toda a canalha de Chelsea. As camas voltam a entrar pois só

podem ser entregues ao comprador no dia seguinte depois de o Sol nas

cer, enquanto eu e os meus pobres filhos nos alojamos no German

Hotel, 1, Leicester Street, em Leicester Square, onde nos receberam de

centemente por 5,10 libras por semana.»"

Dias mais tarde, os Marx encontraram abrigo temporário em casa de um

negociante de rendas judeu na rua Dean, 64, no Soho, onde passaram um

Verão horrível à beira da miséria. Jenny estava de novo grávida e constan

temente doente. E m Agosto, a situação era tão má que ela teve de partir para

U 2 ^ s KARLMARX ••/:•- _ -' '

a Holanda e entregar-se à mercê do tio materno do marido, Lion Philips, rico

homem de negócios holandês (cuja epónima companhia ainda hoje flores

ce a vender toda a espécie de produtos eléctricos, de aparelhos de televisão

a torradeiras). Não precisava de ter-se dado a esse incómodo: Philips, que

estava «muito contrariado pelo efeito nefasto da revolução sobre os seus

negócios», ofereceu apenas um amplexo avuncular e um presente insignifi

cante ao pequenino «Fawkesy». E, quando ela o preveniu que teriam de emi

grar para a América se ele não os socorresse, Philips limitou-se a responder-

-Ihe que achava isso uma óptima ideia. «Receio bem, querido Karl, que tenha

de voltar para casa de mãos vazias, desapontada e cheia de medo de morrer»,

escreveu Jenny. «Oh, se soubesses quantas saudades tenho de ti e dos

pequeninos. Não posso escrever nada sobre os nossos filhos sem sentir os

olhos rasos de lágrimas...»

Muitos dos revolucionários exilados em Londres eram artesãos — tipó

grafos, sapateiros, relojoeiros. Outros ganhavam a vida ensinando inglês ou

alemão. Mas Marx era congenitalmente incapaz de qualquer emprego regular.

Considerou efectivamente a possibilidade de emigrar, mas descobriu que a

viagem seria <ánfernalmente cara»; mas, se soubesse que era prestada assis

tência aos emigrante necessitados, teria possivelmente tomado o próximo

barco. Como de costume, Engels veio em seu socorro, sacrificando as suas

próprias ambições jornaKsticas em Londres para trabalhar nos escritórios da

firma têxtil do pai em Manchester, Ermen & Engels, onde ficou durante

quase 20 anos.

«O meu marido e todos nós sentimos muito a tua falta e temos imensas

saudades tuas», escreveu-lhe Jenny depois da sua partida, em Dezembro de

1850. «No entanto, estou contente por te estares a tornar num grande neis gociante de algodão.

Mas o desejo de Engels não era aquele e considerava o «vil comércio» como

uma penitência. Embora em breve assumisse a aparência exterior de um

homem de negócios de Lencashire — fazendo parte dos clubes mais exclu

sivos, enchendo a cave de champanhe e participando em caçadas à raposa com

galgos — nunca se esquece que o objectivo era sustentar o seu brilhante, mas

necessitado amigo. O seu papel foi o de uma espécie de agente secreto atrás

das linhas inimigas e enviava a Marx pormenores confidenciais sobre o comér

cio de algodão, observações quanto ao estado dos mercados internacionais

e — principalmente — uma mesada regular em notas surripiadas do dinheiro

destinado às pequenas despesas da firma ou astuciosamente tiradas da sua

o MEGALOSSAURO «*GJ 143

conta bancária. (Como precaução contra os roubos nos correios, dividia as

somas em duas metades e enviava-as em envelopes separados.) Isto dá uma

ideia do modo negligente como o negócio era dirigido, pois nem o pai nem

o sócio em Manchester, Peter Ermen, nunca se deram conta de nada.

N o entanto, Engels teve o maior cuidado para não despertar suspeitas,

mesmo se, por vezes, isso significava deixar a família Marx sem tostão.

«Escrevo só para te dizer que, infelizmente, ainda não posso mandar as duas

libras que prometi», escreveu em Novembro. «O Ermen ausentou-se por uns

dias e, na medida em que não foi autorizada nenhuma procuração com o

banco, nada podemos enviar e temos de nos contentar com os poucos pa

gamentos que entram. A soma total da caixa é de apenas quatro Libras e tens

portanto de perceber que tenho de esperar um certo tempo.»^"" Quando o pai

visitou os escritórios de Manchester uns meses depois, Engels conseguiu que

ele lhe desse um «subsídio para despesas e representações» de 200 libras por

ano. «Com isso, tudo vai correr bem e, se não houver complicações antes de

ser feito o próximo balanço e o negócio aqui prosperar, ele terá de me pa

gar bastante mais dinheiro.. . Tenciono, este ano, gastar muito mais do que

200 libras. E, como os negócios vão de vento em popa e ele está agora du

plamente mais rico do que em 1837, nem vale a pena acrescentar que eu não

serei desnecessariamente escrupuloso.»"

Mas, dentro de pouco tempo, Engels sénior reflectiu sobre o assunto e,

decidindo que Friedrich estava a gastar demasiado dinheiro, reduziu a quantia

para 150 libras. Embora o filho pródigo tenha barafustado quanta essa «ri

dícula imposição», isso em nada diminuiu a sua generosidade para com o

amigo e, por volta de 1853, pôde gabar-se que «o ano passado, graças a Deus,

saquei metade dos lucros do meu pai aqui».**^

Engels podia dar-se ao luxo de manter duas residências: na elegante casa

na cidade recebia a fina flor local e, na outra, instalou a amante, Mary Burns,

e a irmã. Liza, com quem viveu em ménage à trois.

A 15 de Junho de 1850, pouco antes de Engels se exilar no Nor te , o

Spectator^ de Londres, pubMcou uma carta assinada por «Charles Marx e Frede.

Engels», moradores na rua Dean, 64, no Soho: «Nunca teríamos realmente

pensado, Sr. Director, que, neste país, existissem tantos espiões da polícia

como aqueles que tivemos a sorte de encontrar no curto espaço de uma

semana. Não só a porta das casas onde vivemos são estreitamente vigiadas

por individuos de aparência mais do que duvidosa que tomam notas sem-

1 4 4 ^ 0 KARL MARX

pre que alguém entra ou sai, como é impossível dar um único passo sem ser

mos seguidos para onde quer que vamos. Nem podemos apanhar um auto

carro ou entrar num café sem termos o prazer da companhia de, pelo me-19 nos, um desses amigos desconhecidos,

E com toda a razão, devem ter pensado os leitores do Spectator, sobretu

do porque os autores orgulhosamente se identificavam como sendo revo

lucionários fugidos do seu país. Mas Marx e Engels anteciparam essa

objecção fazendo astuciosamente apelo à vaidade inglesa e à sua fobia con

tra os hunos, revelando que nos seus santuários anteriores — França, Bél

gica, Suíça — não tinham conseguido escapar ao maléfico poder do rei

prussiano. «Se, através de sua influência, formos forçados a deixar este úl

timo refúgio na Europa, por que é que a Prússia não há-de julgar que governa

o mundo . . . Achamos, Sr. Director, que, nestas circunstâncias, nada pode

mos fazer de melhor do que dar a conhecer o caso ao público, pois acredi

tamos que os ingleses estão interessados em tudo que possa afectar a bem

estabelecida reputação de Inglaterra como o local de asilo mais seguro para

os refugiados de todos os partidos e países.»

Apesar do tom divertido, Marx precisava desesperadamente da garantia

de que a Inglaterra não o abandonaria. Desde a recente tentativa de assas

sinar o rei Frederico Guilherme IV, que o ministro do Interior prussiano

tinha intensificado a sua campanha contra os «conspiradores políticos», en

viando espiões da polícia e agents provocateurs p2Lt'ã. várias capitais europeias

— sobretudo Londres e, em particular, a rua Dean, no Soho. E não era de

admirar, pois o ministro do Inteiro era o reaccionário meio irmão de Jenny,

Ferdinand von Westphalen. Não tendo conseguido impedir que Marx entras

se na família sete anos mais cedo, estava, agora, bem decidido a vingar-se.

Na carta ao Spectator, Marx alegava que, uns 15 dias antes do atentado

contra o rei Frederico Guilherme, «pessoas que tenho todas as razões para

acreditar que sejam agentes do Governo prussiano, ou ultra-reaüstas, apre-

sentaram-se a nós e tentaram quase directamente envolver-nos em regicídios

em Berlim e noutras cidades. Escusado será dizer que tais indivíduos não nos

convenceram.» O objectivo deles, segundo explicou, era persuadir as auto

ridades britânicas «a expulsar deste país os pretensos chefes da pretensa

conspiração». Um desses agentes não identificados eraWüheltn Stieber, mais

tarde chefe do serviços secretos de Bismark, que, fazendo-se passar por um

jornalista de nome Schmidt, chegara a Londres em 1850. Stieber tinha rece

bido ordens para vigiar Karl Marx e, depois de se infiltrar no quartel-gene-

o MEGALOSSAURO o í ^ 145

ral comunista no número 26 da rua Great Windmill, enviou um telegrama

urgente confirmando as suspeitas que Von Westphalen tinha quanto ao cu

nhado. «O assassínio de príncipes é formalmente ensinado e planeado», in

formou esse agente:

«Numa reunião presidida por Wolff e Marx, que teve lugar anteon

tem e à qual assisti, ouvi um dos oradores afirmar "A Vitela da Lua (a

rainha Victoria) também não escapará ao seu destino. O aço inglês é o

melhor, as lâminas de machado sobretudo são particularmente afiadas e

a guilhotina aguarda todas as cabeças coroadas." Assim, o assassínio da

rainha de Inglaterra é proclamado por alemães apenas a umas centenas

de metros do palácio de Buckingham... Antes da reunião terminar, Marx

declarou à audiência que podia estar tranquila pois havia cúmpHces co

locados por toda a parte. Medidas infalíveis foram tomadas para que

nenhum dos assassinos das cabeças coroadas europeias possa escapar.»™

Um dos primeiros biógrafos de Karl Marx escreveu que «este relatório

é curiosamente convincente»^^ É, de facto, manifestamente absurdo —

como o próprio Governo britânico da época reconheceu. Embora o ministro

do Interior prussiano enviasse esse despacho para Londres, Lorde Palmer-

ston consignou-o nos arquivos do Ministério dos Negócios Estrangeiros

onde se encontra até hoje. Tanto quanto se possa dizer, ele nem se quer se

deu ao trabalho de alertar a Scodand Yard. Quando o embaixador austría

co em Londres se queixou ao ministro do Interior, Sir George Grey, que

Marx e os seus camaradas da Liga Comunista andavam a falar de regicídio,

a resposta que obteve foi um breve e sobranceiro sermão sobre a natureza da

democracia liberal: «De acordo com as nossas leis, a mera discussão de regi

cídios, e desde que não diga respeito à rainha de Inglaterra e não haja um pla

no definido, não constitui motivo suficiente para prender os conspiradores.»

Um esquema para assassinar a rainha Victoria era justamente o tipo de

proeza fútil que Marx detestava. Desprezava os revolucionários que prefe

riam actos que dessem nas vistas ao monótono, mas necessário, processo de

se preparar para a crise económica que conduziria à vitória do proletariado.

Na verdade, foi a sua própria obstinação quanto a este ponto que destruiu

a Liga Comunista em Londres, pois os membros mais impacientes do co

mité irritavam-se perante a insistência de Marx que deviam aguardar o mo

mento oportuno.

1 4 6 « ^ KARL MARX

O Kder dos descontentes era August WilUch, o antigo comandante mi

litar de Engels do tempo da campanha de 1849 em Baden, o qual, desde que

se juntara à diáspora alemã em Inglaterra, só criava problemas. «Vinha visi-

tar-me», escreveu Jenny Marx anos mais tarde, «porque queria extirpar o

bicho do caruncho que se instala em todos os casamentos.» Quase tudo em

Wilüch punha Marx fora de si — as suas atitudes e modos, as roupas colo

ridas, a sua forma ruidosa de chamar a atenção. N o Verão de 1850, ele de

nunciou abertamente Karl Marx de ser «reaccionário» Este, que nunca per

dia uma ocasião para vituperar quem quer que fosse, retaliou chamando-o

«mal-educado e um asno quatro vezes corno». N o decorrer de uma tumul

tuosa reunião do comité da Liga Comunista, a 1 de Setembro, WiUich desa

fiou Marx para um duelo.

Como WilUch era bom atirador e acertava no ás de copas a vinte passos,

Marx teve o bom-senso de recusar; mas o seu lugar-tenente, Conrad Schramm,

o qual nunca disparara um pistola na vida, aceitou o desafio imediatamente

e partiu com WiUich para Antuérpia, pois os duelos eram proibidos em

Berlim. Karl e Jenny ficaram à espera do pior, sobretudo quando ouviram

que WiUich levava Emmanuel Barthélémy como testemunha. Barthélémy,

um rufia musculoso de ar feroz, fora preso aos 17 anos por ter morto um

polícia e ainda ostentava no ombro a indelével marca dos condenados às

galés. Tendo fugido para Londres há apenas umas semanas depois de ter

escapado de uma prisão francesa, já o tinham ouvido dizer que traidores

como Marx e os seus amigos mereciam ser abatidos. E, em virtude das suas

proe2as com pistolas e sabres, conforme tinha amplamente demonstrado no

salão de esgrima de Rathbone Place, não se tratava de uma ameaça para ser

tomada a brincar.

Que possibUidades tinha o corajoso, mas fraco Schramm contra a formi

dável perícia de WiUich e Barthélémy? N o dia marcado, Marx e Jenny aguar

daram em casa muito preocupados, na companhia de Wilhelm Liebknecht,

contando os minutos. Na noite seguinte, Barthélémy veio pessoalmente

anunciar-lhes em voz sepulcral que Schramm a une halle dans la tête (Schramm

tem uma bala na cabeça), e, depois de baixar hirtamente a cabeça, saiu sem

dizer outra palavra.

«Claro que julgámos ter perdido Schramm», escreveu Liebknecht. «No

dia seguinte, estávamos nós ainda a falar tristemente dele, a porta abriu-se

de repente e lá entra o Schramm de cabeça Ugada, mas a rir-se. Contou-nos

que tinha recebido um tiro de raspão que o atordoara e que, ao recuperar os

o MEGALOSSAURO s * ^ 147

sentidos, se viu acompanhado da sua testemunha e do médico perto do mar.» Assumindo que o tiro tinha sido fatal, WiUich e Barthélémy tinham tomado o vapor de regresso em Ostende.

E assim terminou o sonho de Marx de dirigir a Liga Comunista a partir de Inglaterra. Na sua reunião final a 15 de Setembro de 1850, propôs que o Comité Central fosse transferido para Colónia, pois os agitadores em Londres eram incapazes de proporcionar uma liderança decente. Uma boa solução — excepto que os comunistas de Colónia já tinham problemas de sobra. Desde o atentado contra o rei Frederico Guilherme IV que o governo prussiano tinha redobrado a perseguição aos indivíduos subversivos e, no Verão de 1851, todos os 11 membros do Comité Central de Colónia se encontravam na cadeia à espera de serem julgados por conspiração. O pobre velho Marx, que esperava uma folga bem merecida, foi relutantemente arrastado no caso quando começou a tentar pressionar as autoridades e a protestar em nome dos «conspiradores» alemães. Não se tratou de simples altruísmo: para seu desespero, tinha sido apontado pelo promotor da justiça como o cérebro por detrás dos maquiavélicos planos dos réus. Trabalhou dia e noite, organizando comités de defesa, angariando fundos e escrevendo cartas indignadas para os jornais. «Foi instalado um escritório completo em nossa casa», contou Jenny a uma amiga. «Duas ou três pessoas escrevem, outras fazem recados e outras ainda tentam arranjar dinheiro para que os que escrevem possam sobreviver e consigam provar ao mundo que a administração é culpada dos escândalos mais ultrajantes. E, entretanto, os meus três alegres filhos cantam e assobiam até serem severamente repreendidos pelo pai. Que confusão!»^^

Sete dos 11 acusados foram parar à prisão. A Liga Comunista estava aniquilada e muitos anos se passariam antes de Marx se juntar a qualquer outra organização. Compreensivelmente fatigado de comités, sociedades e ligas, as quais tanto exigiam e obtinham tão poucos resultados, retirou-se para a sala de leituras do Museu Britânico, a dez minutos a pé da rua Dean, e dedicou-se à ambiciosa tarefa de produzir uma explicação compreensiva e sistemática da economia poKtica — um projecto monumental que viria a ser intitulado O Capital.

No final de>l 850 — após passarem cinco miseráveis meses na rua Dean, 64 — Karl e Jenny encontraram alojamento a uma centena de metros. Era no último andar do número 28 e tinha duas divisões. Actualmente, o prédio é ocupado por um elegante restaurante cujo patrão é o temperamental

1 4 8 ^ ^ KARL MARX

cozinheiro Marco-Pierre White; uma pequena placa azul na parede, mandada afixar pelo defianto Conselho Municipal da Grande Londres, assinala que «Karl Marx (1818-1883) viveu aqui de 1851 a 1856». Este é o único monumento oficial aos seus 34 anos passados em Inglaterra, país que nunca soube se devia sentir orgulho, ou vergonha, pela sua ligação com o pai da revolução proletária. De forma bastante apropriada, as datas dessa placa são incorrectas.

O annus horrihilis estava quase terminado, mas ainda tinha umas quantas crueldades para infligir. Duas semanas antes dos Marx terem mudado para a rua Dean, 28, o seu pequenino Heinrich Guido «Fawkesy» morreu subitamente após uma crise de convulsões. «Ainda há pouco ria e brincava», contou Marx a Engels. «Podes imaginar como nos encontramos todos aqui. A tua ausência neste momento particular faz-nos sentir muito sozinhos.»^^ Jenny ficou de cabeça perdida, «num perigoso estado de excitação e exaustão», enquanto Karl exprimiu o pesar que sentia em estilo característico denunciando a perfídia dos seus camaradas. Desta vez, o alvo principal foi Conrad Schramm, o qual, há apenas umas semanas, tinha arriscado a vida para defender a honra de Marx.

«Durante dois dias inteiros, 19 e 20 de Novembro, não apareceu em nossa casa», escreveu raivosamente Marx a Engels, «veio finalmente por uns instantes e voltou a desaparecer depois de fazer uma ou duas observações imbecis. Tinha-se oferecido para nos acompanhar no dia do funeral; chegou uns minutos antes da hora marcada, não pronunciou uma palavra acerca da cerimónia, mas disse a minha mulher que tinha de se ir embora à pressa por causa de um jantar com o irmão.» '* Schramm juntou-se, assim, a uma longa e sempre crescente lista de traidores. Rudolf Schramm, irmão de Conrad, já lá estava incluído por ter tido o atrevimento de organizar uma reunião de alemães em Londres sem convidar os associados de Marx e Engels.

Outro dos escorraçados era Eduard von Müller-Tellering, antigo correspondente da Neue Kheinische Zeitung, conhecido por ser «um zaragateiro de primeira classe» que tinha, contudo, encontrado alguém à sua medida quando certa vez desafiara Marx. Como acontece a maior parte das vezes com estas vendetas, o casus belli oú^nú era insignificante. Sem aviso prévio, TeUering pediu uma entrada a Engels para um baile organizado pela Associação Educativa dos Trabalhadores Alemães; Engels, ao explicar-lhe que já era demasiado tarde, não pôde resistir e fez-lhe notar que ele nunca tinha ido às reuniões da Associação nem sequer fora buscar o seu cartão de membro —

o MEGALOSSAURO o<ÇJ» 149

«ainda anteontem, um tipo na mesma situação foi expulso da Associação».

Pouco tempo depois e aceitando a sugestão, a «corte de honra» da Associa

ção, presidida por WiUich, rescindiu a adesão de Teilering. Este reagiu lan

çando ataques difamadores à cuque Marx-Engels — ou, como é hoje em dia

frequentemente chamada — o Partido Marx.

Nessa altura, o chefe do partido em pessoa entrou na refrega. «Se fosses

homem para aceitar, desafiava-te agora mesmo pela carta que escreveste

ontem à Associação dos Trabalhadores», rugiu Marx. «Espero por ti onde

quiseres para te arrancar a hipócrita máscara de fanatismo revolucionário

atrás da qual tens, até agora, sabido tão bem ocultar os teus interesses mes

quinhos. A tua inveja, a tua vaidade sem limites e o teu raivoso desconten

tamento pela falta de apreço que o mundo tem pelo génio — falta de apre

ço essa que começou no dia em que não passaste nos exames.»^^ Tinha sido

Marx quem encorajara as ambições jornalísticas de Teilering e o recomen

dara à Associação; era agora Marx quem mandava o infiel servidor para as

mais profundas trevas. Após um contra-ataque final — um panfleto de his

téricos insultos anti-semitas —, Teilering emigrou para os Estados Unidos

e nunca mais se ouviu falar dele.

Marx adorava conflitos e estava sempre alerta a qualquer provocação

verdadeira ou imaginária. TeUering e Rudolf Schramm eram «uns desgraça

dos»; os Kderes da Associação Democrática — grupo rival da Associação

Educativa dos Trabalhadores Alemães — eram «charlatães e vigaristas»;

outro grupo de refugiados recentemente chegados era «um enxame de de

mocratas velhacos». Se esses desgraçados e velhacos eram tão insignifican

tes, poder-se-á perguntar, porque não os ignorava? Quando, certa vez, foi

difamado na Suíça por um obscuro político chamado Karl Vogt, tinha real

mente de redigir uma polémica de 200 páginas — Herr Vogt— como res

posta? Marx não era o único que antipatizava com o fanfarrão e vaidoso

poeta revolucionário, Gottfried Kinkel, mas mais ninguém achou necessá

rio reagir aos seus comentários absurdos através de um calhamaço de cem

páginas escabrosamente trocistas intitulado Os Grandes Homens do Exílio.

Sempre que admiradores lhe sugeriam que um leão não devia perder tem

po a lutar com insectos, Marx respondia que a denúncia impiedosa de char

latães utópicos não era inferior ao seu dever de revolucionário: <A. nossa

missão é criticar implacavelmente e dirigir as nossas críticas mais contra os

nossos pretensos amigos do que contra os nossos inimigos declarados.»

1 5 0 ^ ^ KARI.MARX ' :•

Além do mais, ele gostava daquele desporto. Basta 1er alguns do fortuitos

retratos traçados em Os Grandes Homens do 'Exílio para ver o ptíLzer que ele tinha

em dar cabo deles. Rudolf Schramm: «Um homúnculo gabarolas e zaragateiro,

cuja lema na vida é saído do Sobrinho, de Rameau, "antes ser um faia-barato

insolente do que nada."» Gustav Struve: «Ao ver a sua aparência rugosa, os

olhos promberantes de expressão estúpida e manhosa, o brilho baço da ca

reca e as feições meio eslavas, meio calmuques, uma pessoa não duvida de

que está em presença de um homem invulgar...» Arnold Ruge: «Não se pode

dizer que este homem nobre possa ser recomendado pela sua beleza exte

rior; os seus conhecidos de Paris resumem os seus traços eslavo-pomeranos

chamando-o "cara de fuinha"... A figura de Ruge na revolução alemã asseme-

Iha-se a certas ruas onde se pode 1er o seguinte aviso: "Pode-se urinar aqui."»

Longe de lhe tirar o vigor, estas ferozes tiradas renovavam-no. A raiva

vulcânica que jorrava sobre deviacionistas obscuros tinha a mesma paixão

que iluminava as suas denúncias do capitalismo e das suas contradições. Para

dar o seu melhor, Marx necessitava de se manter em estado de fúria eferves

cente — para enfrentar as numerosas catástrofes domésticas, a sua péssima

saúde ou os idiotas que ousavam opor-se à sua sabedoria superior. Ao escre

ver O Capital, Marx jurou que os burgueses haveriam de ter bons motivos

para se lembrar dos furúnculos que lhe causavam dores e o mantinham de

mau humor. Os Vogt e os Kinkel serviam a mesma finalidade — não para

matar mosquitos a tiro de canhão mas para supurar os furúnculos no rabo.

As suas condições de vida talvez tivessem sido expressamente concebi-

daspara não o deixar ser feliz. A mobília e as instalações do seu apartamento

com duas divisões estavam partidas ou estragadas e tudo estava coberto por

uns centímetros de poeira. N o meio da sala da frente, a qual dava para a rua

Dean, havia uma grande mesa com um oleado onde se encontravam os

manuscritos, livros e jornais de Marx bem como os brinquedos das crianças,

trapos e o cesto de costura da mulher, várias chávenas rachadas, facas, gar

fos, lâmpadas, um tinteiro, cálices, cachimbos de cerâmica holandeses e uma

espessa camada de cinza de tabaco. Alguém que quisesse sentar-se corria

perigo. «Aqui está uma cadeira só com três pernas e as crianças têm estado

a brincar a cozinhar numa outra. . . Esta cadeira aqui tem por acaso quatro

pernas», contou um visitante. «É a que é oferecida às visitas, mas está suja dos

cozinhados das crianças; se uma pessoa se senta, arrisca um par de calças.»

Um dos raros espiões da polícia prussiana que entrou nesta gruta cheia

de fumo ficou chocado pelos hábitos desleixados de Marx:

o MEGALOSSAURO a ^ 151

«Leva a existencia de um autentico intelectual boémio. Lavar-se, pen-

tear-se e mudar de roupa são coisas que mal faz. E gosta de embebedar-

-se. Embora passe dias seguidos sem fazer nada, trabalha infatigavel

mente dia e noite quando tem trabalho. Não tem horas para dormir e

acordar. Fica muitas vezes levantado toda a noite e, depois, deita-se todo

vestido no sofá a meio do dia dormindo até à noite sem que as idas e

vindas de toda a gente o incomodem.»^''

A relutância de Marx em ir para a cama parece ser razoável, pois toda a

família — incluindo a governanta, Helene «Lenchen» Demuth — tinha de

dormir num pequeno quarto no fundo do prédio. Como é que Karl e Jenny

arranjaram privacidade para ter filhos continua a ser um mistério; presume-

-se que se aproveitavam das alturas em que Lenchen levava as crianças a

passear. Com Jenny doente e Karl inquieto, a tarefa de preservar qualquer

aparência de ordem doméstica recaía na criada. «Oh, se soubesses como

tenho saudades tuas e das crianças», escreveu Jenny a Karl aquando da in

frutífera expedição à Holanda em 1850. «Sei que tu e a Lenchen tratarão

deles. Sem a Lenchen, não me sentiria tranquila.»

E Lenchen estava, de facto, a cumprir os deveres de Jenny — incluindo

os do leito conjungal. Nove meses mais tarde, no dia 23 de Junho de 1854,

deu à luz um menino. Na certidão de nascimento de Henry Frederick De

muth, conhecido mais tarde por Freddy, o espaço destinado ao nome e à

profissão o pai foi deixado em branco. A criança foi pouco depois adoptada,

provavelmente por um casal da classe operária, os Lewis, que viviam na parte

leste de Londres. (As provas são apenas circunstanciais: o filho de Lenchen

mudou o nome para Frederick Lewis Demuth e passou toda a vida adulta

em Hackney. Tornou-se um excelente torneiro mecânico e trabalhou em

várias fábricas de East End; apoiou entusiasticamente o sindicato e foi

membro-fundador do Partido Trabalhista de Hackney. Recordado pelos

colegas como um homem sossegado que nunca falava da família, morreu a

2 8 d e J a n e i r o d e l 9 2 9 ) .

Como Freddy nasceu no pequeno quarto do fundo na rua Dean, 28 —

e a barriga inchada de Lenchen daria certamente nas vistas — esta concep

ção aparentemente milagrosa não pôde ser ocultada de Jenny. Mas, apesar

de profundamente chocada e zangada, ela concordou que tal notícia, caso

fosse revelada, proporcionaria munições letais aos inimigos de Marx. E assim

1 5 2 ^ ^ KARI.MARX

começou uma das mais bem sucedidas simulações jamais organizadas para

o bem da causa comunista. Correram muitos boatos de que Marx era pai de

um filho uegítimo, mas a primeira referência pública à verdadeira paternidade

de Freddy só surgiu em 1962, quando o historiador alemão, Werner Blumen

berg publicou um documento encontrado nos vastos arquivos marxistas

no Instituto Internacional de História Social, em Amesterdão. Trata-se de

uma carta escrita a 2 de Setembro de 1898 por Louise Freyberger, amiga de

Helene Demuth e governanta de Engels, a descrever a confissão do patrão

no seu leito de morte:

«Soube pela boca do próprio General (Engels) que Freddy Demuth

é filho de Marx. Tussy (a filha mais nova de Marx, Eleanor) importunou-

-me tanto que eu acabei por lhe perguntar directamente. O General fi

cou muito surpreendido por Tussy se agarrar tão obstinadamente àquela

ideia e disse que, caso fosse necessário, eu deveria desmentir os mexeri

cos que ele repudiara o filho. Lembra-te de que eu te falei disto muito

antes de o General morrer.

O facto de Frederick Demuth ser filho de Karl Marx e Helene De

muth foi novamente confirmado por uma declaração feita pelo General

poucos dias antes de morrer ao Sr. Moore (Samuel Moore, tradutor do

Manifesto Comunista e de O Capital) que, a seguir, foi ter com Tussy a Or

pington e lhe contou. Tussy contestou que o General estava a mentir e

que ele mesmo tinha sempre admitido que era o pai. Moore voltou de

Orpington e interrogou de novo o General, mas este insistiu que Freddy

era filho de Marx e disse: "A Tussy quer fazer do pai um ídolo."

N o domingo, quer dizer, um dia antes de morrer, o General escreveu

isso mesmo numa ardósia para Tussy ver, e esta saiu do quarto tão per

turbada que se esqueceu do ódio que me tinha e chorou amargamente ao

meu ombro.

O General deu-nos. . . a permissão de usar esta informação apenas se

ele fosse acusado de ter repudiado Freddy. Disse que não queria que o

nome dele fosse conspurcado, sobretudo porque já não podia fazer bem

a ninguém. Ao substitoir-se a Marx, tinha-o salvo de um conflito domés

tico. À parte nós, o Sr. Moore e os filhos do Sr. Marx (julgo que Laura

sabia da história, embora talvez não a tivesse ouvido bem contada), os

- únicos que sabiam que Marx tinha um filho eram Lessner e Pfänder.

Depois da cartas do Freddy serem publicadas, Lessner disse-me: "Claro

o MEGALOSSAURO 4, ¿ 153

que o Freddy é irmão da Tussy, todos nós o sabemos, mas nunca soube

mos onde é que ele foi criado.

Freddy parece-se cómicamente com Marx e, com aquela cara judia e

espessa cabeleira preta, e só por cegueira preconceituosas é que se po

dia ver nele qualquer semelhança com o General. Vi a carta que Marx

enviou para Manchester ao General naquela altura (o General, então,

ainda não vivia em Londres), mas acho que o General a destruiu, como

tantas outras que eles trocaram.

É tudo o que eu sei sobre o assunto. Freddy nunca soube quem era

o seu pai verdadeiro, pois nem a mãe nem o General lhe contaram.. .

Estou a 1er outra vez o que me escreveste sobre a questão. Marx

sempre esteve consciente da possibilidade de um divórcio, pois a mulher

era muito ciumenta. Não gostava da criança e, se ousasse fazer qualquer

coisa por ela, o escândalo seria enorme.»^^

Desde que este documento foi tornado público em 1962 que a maior

parte dos historiadores marxistas o aceitam como prova conclusiva da infi

delidade de Marx. Mas há uma ou outra pessoa céptica. A biógrafa de

Eleanor Marx, Yvonne Kapp, descreveu a carta de Freyberger como sendo

«uma fantasia» que «em muitos pontos não é críveb>; no entanto, concede,

«não pode haver nenhuma dúvida aceitável de que ele (Freddy) era filho de

Marx»^^. O professor Terrell Carver, autor de uma biografia de Engels, vai

muito mais longe. Recusa acreditar que Marx ou Engels pudessem ser pais

de Freddy e descarta a carta como sendo falsa — «uma falsificação maqui

nada, possivelmente por agentes nazis, para desacreditar o socialismo»^'.

Assinala que a versão dos arquivos de Amesterdão é uma cópia escrita à

máquina, cuja proveniência é desconhecida e que o original (se jamais exis

tiu) nunca foi encontrado.

É certo que algumas das alegações feitas no documento desafiam toda a

lógica ou senso comum. Tome-se a «carta» que Marx é suposto ter enviado a

Engels na altura do nascimento e que Louise Freyberger diz ter visto. Como

ela nasceu em 1860 e só foi trabalhar para Engels em 1890, isso significa que

ele deve tê-la guardado entre os seus papéis durante muitas décadas. Porquê,

então, tendo-se dado ao trabalho de a guardar durante tanto tempo, destruiu

ele a única prova que «desmentiria os mexericos que ele repudiara o filho?»

Há também uma óbvia implausibilidade psicológica. Quando Jenny Marx

descobriu que a criada e o marido andavam a fazer mimos um ao outro por

154 - - « KARLMARX

detrás das suas costas — enquanto ela própria estava grávida — devia ter

imediatamente posto a traiçoeira Lenchen fora de casa ou, pelo menos, olhá-

-la com desconfiança. N o entanto, as duas mulheres permaneceram amigas

o resto da vida. «No que respeita à identidade do pai, investigações feitas

sobre a vida de Frederick Demuth não deram qualquer resultado, e também

não existem dados que confirmem a alegada declaração de Engels que ele

tinha aceite a paternidade», conclui o professor Carver. «A correspondên

cia e memórias que restam não fornecem quaisquer elementos positivos

quanto à história contada por Louise Freyberger.»-^"

Isso não é bem verdade. Embora os papéis de Marx e Engels tenham sido

cuidadosamente esquadrinhados pelos seus executores que não desejavam

embaraçar, ou injuriar, estas duas grandes figuras do comunismo, alguns

fragmentos reveladores sobreviveram. O primeiro é uma carta de Eleanor

Marx à irmã Laura, datada de 17 de Maio de 1882, a qual prova que as filhas

de Marx tinham aceite a história da paternidade de Engels: «Freddy portou-

-se admiravelmente em todos os aspectos e a irritação de Engels contra ele

é tão injusta como compreensível. Penso que nenhum de nós gosta de en

frentar os nossos erros passados em carne e osso. Sou tomada por um sen

timento de culpa sempre que vejo Freddy. A vida desse homem! Ouvi-lo

contá-la entristece-me e envergonha-me.» Dez anos mais tarde, a 26 de Julho

de 1892, Eleanor voltou ao mesmo assunto: «Talvez eu seja muito "sentimen

tal".. . mas não posso deixar de sentir que Freddy sofreu muitas injustiças

durante toda a sua vida. Não é maravilhoso quando se pode olhar as coisas

de frente! Como é raro praticar todas as boas coisas que pregamos — aos

outros.» A luz da carta anterior, a zombaria é dirigida a Engels.

Tanto Karl Marx como a mulher deixaram pequenas, mas reveladoras

indicações quanto à verdade. O ensaio autobiográfico de Jenny, Breve Esbo

ço de Uma Vida Plena, escrito em 1865, inclui uma curiosa revelação entre

parênteses: «No começo do Verão de 1851, aconteceu uma coisa que, em

bora tenha contribuído para aumentar as nossas preocupações, pessoais e

outras, não desejo relatar aqui em pormenor.» O evento em questão só pode

ter sido o nascimento de Freddy. Se Helene Demuth tivesse sido engravidada

por outro amante, por que é que isso teria causado um pesar tão pessoal e

durável a Jenny?

Mais estranho é uma carta enviada por Marx a Engels, a 31 de Março de

1851, quando Helene estava grávida de seis meses. Depois de muitas épicas

resmungadelas quanto às suas dívidas, credores e a mãe avarenta, Marx

o MEGALOSSAURO ^Çj 155

acrescenta: «Tens de admitir que isto é o raio de uma alhada e que estou

enfiado até ao pescoço neste lodaçal pequeno-burguês.. . Mas, finalmente,

para dar à situação uma reviravolta tragicómica, há um mystère que te vou

contar en très peu de mots. Desculpa, mas acabei de ser interrompido e tenho

de ir tratar da minha mulher. O resto, em que tu também estás, seguirá na

próxima.» Mas, quando a carta seguinte chegou dois dias depois, ele já tinha

mudado de ideias. «Não te vou contar nada sobre o mystère porque, coûte que

coûte (custe o que custar), virei ver-te no fim de Abril. Tenho de fiagir daqui

por uma semana.»

Que outro mystère poderia ser senão a gravidez de Lenchen? O malicio

so uso de eufemismos firanceses prova-o sem sombra de dúvidas, pois era

a sua linguagem habitual quando se sentia ginecológicamente embaraçado.

(Durante os vários períodos de gravidez de Jenny, dizia a Engels que ela es

tava num «état trop intéressant>>. A sua relutância para dar mais pormenores por

escrito é sobejamente explicada mais tarde na mesma carta: «A minha mu

lher deu à luz uma filha e não ViVa garçon. E, o que é pior, está em muito mau

estado.» Quem, ¥rau Marx ou a recém-nascida, Franziska? Provavelmente

ambas. Pelo Uvro de memórias de Jenny, sabemos que, no começo do Verão

de 1851, ela estava deprimida, e a carta de Marx de 31 de Março confirma

isso: <A- minha mulher adoeceu no dia 28. Embora o descanso lhe tenha feito

bem, está agora bastante doente, mais por razões domésticas do que físicas.»

E m princípios de Agosto, com duas mães a partilhar o apartamento

atulhado da rua Dean, os outros refugiados começaram a fazer mexericos

sobre o pai Marx. «As circunstâncias em que vivo são horrorosas», confes

sou ao seu amigo Weydemeyer. «Se isto continua assim durante muito mais

tempo, a minha mulher acabará por sucumbir. As preocupações constantes

e a luta do dia a dia dão cabo dela. E, ainda por cima, há as infâmias dos meus

oponentes que, até agora, nunca tentaram atacar-me na minha essência, mas

que tentam vingar-se da sua impotência lançando suspeitas sobre a minha

reputação e espalhando as mais incríveis calúnias contra mim. Willich,

Schapper, Ruge e o resto da canalha democrática.»

Rudolf Schramm, irmão do duelista Conrad, andava a cochichar por en

tre os amigos que «qualquer que seja o resultado da revolução, Marx est2iperdu.y>

«Eu cá, claro está, não me ralo nada», escreveu Marx. «Nem por um

instante deixo que isso interfira com o meu trabalho, mas, como hás-de

compreender, a minha mulher, que está doente e é exposta às mais desagra

dáveis dificuldades domésticas de manhã à noite, já não suporta respirar as

156 < ^ KARL MARX

infectas exalações que a pestilenta cloaca democrática lhe administra através

dos seus estúpidos boatos. A falta de tacto de alguns indivíduos quanto a isto

pode ser colossal.»^^

Tais palavras só podiam ter a ver com a misteriosa concepção do peque

nino Freddy Demuth. Vale a pena notar que, embora deplorando a falta de

tacto daqueles que espalham os «incríveis» boatos, Marx não os nega.

A situação dificilmente podia piorar, mas piorou. N a Páscoa de 1852,

pouco depois do seu primeiro aniversário, Franziska teve uma grave bron

quite e, a 14 de Abril, Marx escreveu uma breve carta a Engels: «Caro Fre

derick, apenas umas curtas linhas para te informar que a nossa filha pe

quenina morreu esta manhã à uma e um quarto.» Esta fria mensagem está

longe de descrever a agonia e o desespero que reinavam em casa dos Marx.

Temos, para isso, de nos debruçar sobre o Brepe Esboço de Uma \^ida Viena, de

Jenny: «Ela sofreu horrivelmente. Quando morreu, deixámos o seu pequenino

corpo sem vida no quarto do fundo e fizemos as camas no chão da sala da

frente. Os nossos três filhos ainda vivos deitaram-se ao nosso lado e todos

nós chorámos o anjinho cujo corpo lívido se encontrava no quarto ao lado.»

Os Marx nem sequer tinham dinheiro para contratar os serviços de uma

agência funerária, mas um vizinho francês teve pena deles e emprestou-lhes

duas libras. «O dinheiro foi utilizado para pagar o caixão no qual a minha filha

agora repousa em paz. Não tinha berço quando chegou a este mundo e,

durante muito tempo, foi-lhe recusado um lugar onde pudesse finalmente

repousar.»

Há pouco mais de dois anos que Marx vivia em Londres e já tinha per

dido dois filhos. Engels identificou o motivo: «Se, pelo menos», lamentava

na sua carta de pêsames, «houvessem meios para tu e a tua família se muda

rem para alojamentos mais espaçosos num bairro mais salubre!»"*^ Quer tenha

sido, ou não, a penúria a matar Franziska, o certo é que dificultou o enter

ro. Ao longo das semanas anteriores à morte da filha, Marx tinha esperado

poder estabilizar as finanças através de doações provenientes de simpatizan

tes americanos, mas, na própria manhã do funeral, recebeu uma mensagem

de Weydemeyer, o qual vivia agora em Nova Iorque, a dizer-lhe para não

contar com essa ajuda. «A carta de Weydemeyer desmoralizou toda a gente

aqui, em particular a minha mulher», disse Marx a Engels. «Há já dois anos

que ela vê todas as minhas tentativas serem goradas.»

OS LOBOS FAMINTOS

Certa manhã de Abril de 1853, um padeiro dirigiu-se ao número 28 da

rua Dean para dizer aos seus inquilinos que não lhes forneceria mais pão até

as contas que eles lhe deviam serem pagas. Quem veio à porta foi Edgar

Marx, um garoto bochechudo de seis anos que já era um espertalhão. A pe

quena estatura de Edgar tinha-lhe valido a alcunha de Musch (mosca) na in

fância, mas, mais tarde, passarain a chamá-lo Coronel Musch em homenagem

às suas tácticas.

— A Sr.'' Marx está em casa? — perguntou o padeiro.

— Não — respondeu manhosamente o miúdo e, depois, agarrando em

três pães, fugiu.

O pai de Musch tinha imenso orgulho no rapazinho, mas não podia es

perar que os credores se deixassem enganar tão facilmente. Ao longo dos

anos passados em Soho, os Marx viveram em permanente estado de sítio:

agentes a soldo da Prússia espiavam-nos ostensivamente na rua, tomando

notas das idas e vindas, enquanto açougueiros, padeiros e oficiais de diligên

cias lhes batiam à porta.

As cartas de Karl Marx a Engels são uma constante litania de desgraças

e miséria. «Há uma semana cheguei ao agradável ponto de não poder sair à

rua por os meus casacos se encontrarem no prego e já não posso comer

carne por falta de- crédito. Embora pareça fútil, receio bem que isto tudo

venha a dar um escândalo» (27 de Fevereiro de 1852). «A minha mulher está

doente, a pequenina Jenny também e Lenchen sofre de uma espécie de fe

bre nervosa, mas não posso chamar o médico porque não tenho dinheiro para

comprar remédios. Nos últimos oito a dez dias, toda a família se aumenta

1 5 8 * ^ KARLMARX

unicamente de pão e batatas, mas duvido que hoje consigamos arranjar o que

quer que seja para comer. . . Como é que eu posso sair desta confusão infer

nal?» (8 de Setembro de 1852). «Os nossos infortúnios atingiram o seu cH-

max» (21 Janeiro de 1853). «Há quase duas semanas que não temos um tostão

em casa» (8 de Outubro de 1853). «Só à loja de prego tenho agora de pagar

25 por cento (do dinheiro da casa) e, regra geral, nunca consigo recuperar

as coisas por causa cautelas atrasadas... A total falta de dinheiro é o mais

horrível — à parte o facto das necessidades familiares não cessarem nem um

instante — pois o Soho é um bairro infectado pela cólera e as pessoas es

ticam o pernil a torto e a direito (uma média de três pessoas por casa na rua

Broad) e as "vitualhas" são a melhor defesa contra essa coisa monstruosa»

(13 de Setembro de 1854). «Enquanto estava no andar de cima a escrever a

minha última carta para ti, a minha mulher era atacada lá em baixo por lo

bos famintos que, a pretexto dos "tempos difíceis", exigem que ela pague o

dinheiro que não tem» (8 de Dezembro de 1857). «Acabei de receber um ter

ceiro efinal aviso do mesmo cobrador de impostos. Se não pagar até segunda-

-feira, chamam a polícia cá a casa. Por conseguinte, envia-me umas libras se

te for possível...» (18 de Dezembro de 1857).

Essas poucas libras somadas perfaziam uma boa maquia. E m 1852, um

dos mais miseráveis anos de Marx, ele recebeu um total de 150 libras de

Engels e outros apoiantes — o suficiente para uma família da classe média

viver com certo conforto. Nesse Outono, foi contratado para ser o corres

pondente europeu do New York Daily Tribune, o joi^nal com maior tiragem do

mundo. Enviava regularmente dois artigos por semana a duas libra cada e,

embora os seus honorários baixassem ligeiramente depois de 1854, nessa

altura também recebia 50 libras ao ano pelas suas contribuições para o Neue

Olãer-Zeitung, em Breslau. E m resumo, a partir de 1852 tinha um rendimento

de, pelo menos, 200 libras e a renda anual do apartamento na rua Dean era

de apenas 22 libras. Porquê, então, andava sempre tão falido?

Se Marx fosse o despreocupado boémio descrito em tantos relatórios da

poKcia, talvez se desembaraçasse bastante bem. Mas a verdade é que perten

cia à classe da gente bem-educada na penúria, desejosa de manter as aparên

cias e recusando abdicar dos hábitos burgueses. Durante a maior parte da

década de 1850, mal se podia dar ao luxo de alimentar os próprios e, no

entanto, insistia em ter um secretário, o jovem filologista alemão, Wilhelm

Pieper, muito embora Jenny Marx lhe pedisse encarecidamente para ser ela

a exercer essas funções.

OS LOBOS FAMINTOS a<GJ 159

Pieper, descrito por Jenny como um «pateta desleixado», conseguia a rara proeza de ser dogmático e frívolo ao mesmo tempo. E também não tinha tacto nenhum, era extravagantemente gabarola e insaciavelmente libidinoso. Algumas visitas femininas dos Marx eram reduzidas a lágrimas pelas suas entediantes arengas políticas — e outras pela sua impudente lubricidade. Considerava-se «uma mistura de Byron e de Leibniz»^ mas era, sobretudo, um inútil secretário. A sua principal função era transcrever e traduzir os artigos jornalísticos de Marx, mas as suas traduções tinham tantos erros que, normalmente, Engels tinha de as refazer do princípio ao fim. De qualquer modo, Marx sentiu-se suficientemente à vontade para começar a escrever em inglês a partir da Primavera de 1853. «Não consigo perceber para que é que ainda precisas dele», resmungava Engels numa carta^.

No fim desse Verão, Pieper passou duas semanas no hospital onde um pequeno letreiro afixado aos pés da cama anunciava do que se tratava a quem se desse ao trabalho de o 1er: «Wilhelm Pieper, syphilis secundarius.» Apesar de ter prometido ser mais selectivo no fumro, as suas conquistas indiscriminadas continuaram e, pouco tempo depois, foi parar novamente ao hospital.

Certo dia, chegou à rua Dean uma carta dirigida a ele. Estava escrita em letra feminina e solicitava um encontro. Como o nome não lhe dizia nada, Pieper p^ssou-a a Jenny Marx que reconheceu logo a assinatura — era a antiga ama-de-leite, «uma velha gorda irlandesa». Karl e Jenny fizeram troça dele por causa desta sua nova admiradora, mas, segundo Marx notou, «ele foi encontrar-se com a grande vaca»^. Todavia, umas semanas mais tarde, Pieper declarava o seu amor infinito por a filha de um merceeiro da zona sul de Londres, a qual era descrita por Marx como sendo uma vela de óculos — «toda ela é verde, mais para o verdete que vegetal e, ainda por cima, sem carne nenhuma»'*. Veio a saber-se que a principal razão do namoro era porque Pieper tencionava cravar 20 libras ao pai, mas, como habitualmente acontecia com todos os seus esquemas, tudo deu para o torto: o merceeiro recusou emprestar-lhe um tostão que fosse, e a apaixonada filha foi a correr à rua Dean propor-lhe que fugissem juntos imediatamente.

Pieper desaparecia às vezes durante semanas a fio, quer em perseguição de um corpete jeitoso quer para tentar uma nova carreira — como jornalista, revisor de provas, funcionário municipal, vendedor, mestre-escola —, mas os seus sonhos de amor e dinheiro nunca se concretizaram; regressa, assim, à rua Dean em estado de meter dó, suplicando abrigo e sustento. «Tenho, hélàs, outra vez, o Pieper às costas», gemia Marx em Julho de 1854. «Chegou

1 6 0 ^ 6 KARL MARX

com ar de leitão meio esfomeado depois de ter passado duas semanas com

uma puta que ele diz ser um bijou. Gastou umas 20 libras e, agora, ambas as

bolsas estão igualmente vazias. Com este tempo é uma chatice ter o tipo a

andar por aqui de manhã à noite, pois perturba o meu trabalho.»^ Por causa

das condições no apartamento, Pieper tinha de partilhar uma cama como

Marx. E, ainda pior, Pieper insistia em tocar música de Wagner — «a músi

ca do futuro» —, que Marx achava horrível.

E m 1857, Pieper anunciou que lhe tinham oferecido o cargo de profes

sor numa escola particular em Bognor, esperando, aparentemente, que Marx

insistisse para que ele ficasse a troco de um melhor salário. Finalmente,

contudo, o truque foi descoberto e Jenny tomou o seu lugar. «Transpirou que

a sua "indisponibilidade" era apenas fruto da sua imaginação», escreveu

Marx, esquecendo-se de acrescentar que ele também tinha caído na esparrela.

«A minha mulher desempenha perfeitamente as funções de secretária sem

nenhum dos incómodos provocados pelo nobre jovem... Não preciso dele 6 para nada

Como Jenny já tinha demonstrado as suas capacidades em várias ocasiões,

quando Marx estava doente e Pieper andava à caça às putas, porque levou

Marx tanto tempo a dar-se conta disso? Há anos que Pieper o irritava, chegan

do em privado a chamar-lhe palhaço com cabeça de sumaúma e asno pateta.

«A combinação de diletantismo e ar sentencioso, insipidez e pedantismo,

torna-o ainda mais difícil de aturar. E, como acontece muitas vezes com este

género de rapazes, por debaixo de um temperamento aparentemente radioso

esconde-se muita irritabilidade,mudanças bruscas de humor e má-fé.»^

Desde o princípio que o emprego de Pieper constitma uma extravagân

cia desnecessária, mas Marx não o tinha despedido porque achava inconce

bível que um homem na sua posição não tivesse um secretário confidencial

— bem como férias à beira-mar, lições de piano para as crianças e todas as

outras dispendiosas marcas de respeitabilidade. Por mais que os seus bolsos

estivessem vazios, recusava-se a aceitar um modo de vida «subproletário»,

como dizia. Coisas que para outros refugiados pudessem ser consideradas

luxos, tornaram-se, para ele, «absolutas necessidades» enquanto exigências

mais imperativas, como pagar a mercearia, eram tratadas como extras

opcionais.

Estas prioridades invertidas são bastante evidentes numa suplicante carta

enviada a Engels em Junho de 1854, quando Jenny estava em convalescen

ça e o Dr. Freund, o médico dela, exigia o pagamento dos seus honorários.

OS LOBOS FAMINTOS -^-'í^* 161

«Estou metido num lindo sarilho», escreveu Marx, explicando que estava

falido. «Tinha 12 libras para pagar as contas de casa, mas o que costumo

receber foi drasticamente reduzido por causa de uns artigos que acabei por

nãojsscrever. Só a factura da farmácia devorou grande parte do orçamento.»^

A compaixão motivada por este apelo é sabotada na frase seguinte em

que ele menciona que Jenny, os filhos e a governanta vão passar umas férias

de 15 dias numa vivenda em Edmonton — depois das quais, «ela talvez se

sinta suficientemente restabelecida pelo ar do campo para fazer a viagem até

Trier». Se custava tanto a Marx pagar ao médico, deve ter pensado Engels,

como é que ele podia fazer a deslocação à Alemanha? A mesma pergunta

ocorreu certamente aos seus pacientes credores quando souberam que Jenny

tinha adquirido uma nova colecção de vestidos para a viagem. Marx fingiu

não compreender a indignação deles, e insistiu que a filha de um barão ale

mão «não podia muito naturalmente chegar a Trier em farrapos».

Era ridiculamente orgulhoso por se ter casado com uma mulher fina. Daí

os cartões-de-visita que tinha mandado imprimir para ela {«Madame ]ç.nPiY

Marx, née baronesa de Westphalen»), os quais às vezes exibia na esperança

de impressionar os comerciantes e os Tories. «O mar fez muito bem à minha

mulher», notou depois de Jenny ter gozado mais umas férias. «Conheceu, em

Ramsgate, umas requintadas e, horribile dictu (horrível de dizer) inteligentes

inglesas. Após anos passados em companhia de gente inferior, ou de nin

guém, dar-se com pessoas da sua classe social parece fazer-lhe bem.»'^ Jenny

teve poucas oportunidades destas e Marx sentia-se culpado pelo esquálido

destino que tinha infligido à antiga princesa da alta sociedade de Trier. A

humilhação que sofrera ao ser apanhado a tentar vender a prata da família

de Jenny lembrava-lhe até que ponto tinham descido. A polícia tinha suspei

tado, com certa razão, que um desgrenhado refugiado alemão não podia ter

adquirido legitimamente aquela herança ducal, e Marx foi preso até Jenny

convencer as autoridades da sua genuína aristocracia.

Incapaz de manter a mulher ao nível da «gente da classe dela», ele devia,

pelo menos, esforçar-se pelos filhos. As meninas tinham evidentemente de

fazer bons casamentos e, para atrair bons partidos, necessitavam de vestidos

de baile, aulas de dança e todas as outras vantagens sociais que o dinheiro

podia comprar — mesmo que, para isso, tivesse de pedir dinheiro empres

tado a alguém. Engels, há muito habituado a ser esse alguém, nunca pôs em

causa a convicção do amigo de que valia a pena uma pessoa viver acima dos

seus meios para não perder o prestígio da casta e que, a longo termo, fazer

162 4 ^ KARL MARX ^

alarde da riqueza dava lucros. «Por mim, não me importaria de viver em Whitechapel», assegurava Marx. «Mas, para raparigas, de modo algum seria conveniente.»^* . Na adolescência, as filhas de Marx frequentaram um «colégio para meninas finas» que custava oito Kbras por trimestre e tinham Kções particulares de francês, italiano, desenho e música. «É verdade que a casa onde vivo é demasiado cara para mim», admitiu a Engels em 1865, ano em que mudou para uma mansão no Norte de Londres. «Mas é a única maneira das crianças ganharem estatuto social e garantirem o seu futuro... Acho que tu mesmo hás-de concordar que, de um ponto de vista puramente comercial, levar uma vida proletária não seria recomendável nas presentes circunstâncias, muito embora se eu e a minha mulher estivéssemos só, ou se as raparigas fossem rapazes, não teria mal nenhum.»"

Nem mesmo Engels conseguia pagar os enfeites de um enxame de debutantes casadoiras e, depois de muito matutar, decidiu que a única salvação de Marx era um empréstimo da Sociedade de Seguros da Previdência Popular: «Apesar de ter dado voltas ao miolo, não consigo pensar noutra maneira de arranjar dinheiro em Inglaterra. Parece-me que chegou a altura de tratares do assunto...»^^ Aparentemente, uma outra maneira óbvia — arranjar um emprego — nem sequer lhe tinha passado pela cabeça, muito embora o tenha recomendado em outras ocasiões a outros refugiados. «Quem dera que os nossos rapazes em Londres arranjassem um trabalho mais estável», disse a Marx uma vez sem querer ser sarcástico. «Pois estão a tornar-se nuns vadios.»"

No decorrer dos seus 34 anos em Londres, houve apenas duas ocasiões em que procurou uma forma de ganhar dinheiro. Numa carta de 1852 a Joseph Weydemeyer, então a viver nos Estados Unidos, sabemos que Marx foi informado acerca de «um verniz de laca recentemente inventado» por um novo amigo, o coronel Bangya, misterioso imigrante húngaro que, mais tarde, se veio a descobrir tratar-se de um agente secreto a soldo de metade das cabeças coroadas da Europa. Weydemeyer deveria alugar um lugar na Feira Industrial Internacional, em Nova Iorque, para atrair cHentes que ficariam tão impressionados com essa invenção que «podes ganhar uma fortuna de uma só cajadada» — e, claro está, render um bom lucro aos comanditarios em Londres. «Responde imediatamente a dar pormenores quanto às despesas que terás», aconselhava-o Marx. Nada mais se ouviu dizer quanto a esse verniz mágico, o qual parece ter tido a mesma sorte que a engenhosa maquineta de Weitiing para fazer chapéus de palha para senhoras. Dez anos mais

OS LOBOS FAMINTOS . " =163

tarde, quando as suas dívidas eram ainda maiores do que de costume, Marx,

desesperado, candidatou-se ao cargo de funcionário dos caminhos-de-ferro,

mas foi rejeitado por causa da sua letra ininteligível.

Sem o seu benfeitor, escreveu Marx, «há muito que teria sido obrigado

a começar uma "profissão'V"*. A repugnância representada por essas aspas

é quase audível. Assim sendo e graças à generosidade de Engels, podia pas

sar a maior parte dos dias na sala de leitura do Museu Britânico a trabalhar

no seu há muito negligenciado estudo sobre economia. Após a dissolução

da Liga Comunista, em 1852, não tinha mais afazeres políticos para o dis

trair e lidava com as suas obrigações para com o Tribune, de Nova Iorque, pas

sando grande parte do trabalho a Engels. «Como ando muito ocupado com

a economia política, tens de me ajuda0>, pediu-lhe a 14 de Agosto de 1851.

«Escreve uma série de artigos sobre a situação na Alemanha a partir de 1848.

E m estilo descontraído e espirituoso.» Assim, a primeira série importante de

artigos assinada por Marx no Tribune — «Revolução e contra-revolução na

Alemanha», publicada em 19 episódios, entre Outubro de 1851 e Outubro de

1852 — foi, na realidade, totalmente escrita por Engels. Um artigo sobre a

guerra russo-turca, publicado sob a forma de um editorial anónimo em De

zembro de 1853, revelava tais conhecimentos de estratégica militar que foi

atribmdo, em Nova Iorque, a um conhecido soldado americano da época, o

general Winfield Scott. O director do jornal. Charles Dana, citou esses boa

tos numa carta a Jenny Marx como prova do brilhantismo do marido — sem

lhe passar pela cabeça que o autor era, mais loma vez, o «General» Engels, antigo

soldado de infantaria na campanha do Paktínado.

«O Engels tem realmente muito que fazeD>, admitiu Marx, «mas como é

uma autêntica enciclopédia ambulante, é capaz, esteja bêbedo ou sóbrio, de

trabalhar a qualquer hora do dia ou da noite. Escreve depressa e tem um

espírito diabólicamente vivo.»^^- Apesar de satisfeito por acarretar com este

fardo suplementar, Engels estava tão exausto pelas longas horas passadas na

fábrica de algodão que não se podia esperar que escrevesse tudo. Nem Marx

o queria: os numerosos e influentes leitores do Tribune— só a edição semanal

vendia mais de 200 000 exemplares — eram uma atracção irresistível para

um homem acostumado a dirigir-se a audiências de uma dúzia de pessoas

numa sala do andar de cima de uma taberna londrina. Por vezes, enviava para

Manchester um esboço que, a seguir, Engels desenvolvia; outras vezes —

quando, por exemplo, o jornal queria algo sobre guerra ou a «questão orien-

1 6 4 ^ 0 KARI.MARX

tal» -— o secreto escritor-fantasma tinha de a escrever sozinho, pois Marx «não entendia nada» dessas coisas.

No entanto, Marx merece provavelmente o crédito de ter escrito pelo menos metade dos mais ou menos 500 artigos que submeteu ao Tribune. No momentos de maior abatimento, ele por vezes esquecia-se da velha recomendação jornaKstica de captar a atenção do leitor desde o princípio. («Os debates parlamentares da semana oferecem pouco interesse»,'*^ é a pouco motivadora frase inicial de um artigo enviado em Março de 1853), mas a maior parte dos seus comentários, em particular acerca da política britânica, têm a forte marca das impressões digitais de Marx. Segue-se, por exemplo, um relato das eleições de 1852: «Na Grã-Bretanha, os dias de eleições gerais são tradicionalmente bacanais de deboche embriagado, termos convencionais de especulação para desconto da consciência política, a época de colheita mais rica dos patrões... São orgíacos no antigo sentido romano da palavra. O mestre torna-se então servo e o servo em mestre. Se o servo for transformado em mestre por um dia, a brutalidade reinará nesse dia.»"

As suas observações sobre a violenta insurreição dos cipaios, soldados nativos do exército anglo-indiano, ainda são melhores: «Existe algo na história humana que se chama retribuição; e uma regra da retribuição humana é que o instrumento seja forjado não pelo ofendido mas pelo ofensor. O primeiro golpe que caiu sobre a monarquia francesa veio da nobreza, não dos camponeses. A revolta indiana não começou com os camponeses indianos, torturados, desonrados e despojados pelos britânicos mas com os cipaios.

18 vestidos, bem tratados e engordados por eles. E de surpreender — ou, antes, deprimentemente pouco surpreendente

— que nenhum dessas farpas jornalísticas seja encontrada num dicionário de citações. Alguém empalou Palmerston de forma mais letal? «O seu fito não é a substância, mas a simples aparência de sucesso. Quando não consegue fazer nada, imagina qualquer coisa. Onde ousa não interferir, serve de intermediário. Incapaz de se bater contra um inimigo forte, improvisa um que seja fraco... A seus olhos, o movimento da história é apenas um passatempo expressamente inventado para a satisfação pessoal do nobre visconde Palmerston de Palmerston.» " Ou esta sobre o infeKz e tímido lorde John Russell? «Nenhum outro homem provou a tal grau a verdade do axioma bíblico que ninguém consegue acrescentar um centímetro ao seu tamanho natural. Colocado por nascimento, relações e acidentes sociais num enorme

OS LOBOS FAMINTOS a * ^ 165

pedestal, permaneceu sempre o mesmo homúnculo — um anão deforma

do e maligno no alto de uma pirâmide.»

Caso tivesse suficientes espectadores e tempo, Marx podia manter este

tipo de humor indefinidamente e tornar-se ao mais penetrante jornalista do

século. Não conseguia, contudo, deixar de ouvir uma voz importuna sussur-

rar-lhe por detrás das costas: C'est magnifique, mais ce n'est pas la guerre (E for

midável, mas não é a guerra).

E m princípios de Abril de 1851, Marx declarou estar «tão adiantado que

terminarei todo o trabalho de economia em cinco semanas. E, depois dis

so, finalizarei a economia política em casa e dedicar-me-ei a outro ramo de

conhecimento no Museu»^* . N o decorrer dos dois meses seguintes, ficava na

sala de leitura das nove da manhã às sete tarde quase todos os dias. «Marx

leva uma vida muito retirada», dizia Wilhelm Pieper. «Os seus únicos ami

gos eram John Stuart Mill e Loyd [o economista Samuel Jones Loyd] e sem

pre que alguém o vem visitar é recebido com termos económicos em vez de

saudações.»^'

Mas ainda não se via o fim da tarefa hercúlea que ele se dispusera a cum

prir. «O material sobre o qual estou a trabalhar é tão complexo que, por mais

que me aplique, só conseguirei terminar daqui a seis ou oito semanas», dis

se a Joseph Weydemeyer, em Junho. «Além do mais, há interrupções cons

tantes de ordem prática, o que é inevitável nas circunstâncias em que estamos

aqui a vegetar. Mas, apesar disso tudo, a coisa está quase a chegar ao fim.

Chega uma altura em que temos forçosamente de parar.»^^

Isto demonstra um cómico desconhecimento de si mesmo. Marx esta

va disposto a separar-se alegremente, e com impetuoso à-vontade, de todas

as velhas amizades ou associações políticas, mas o mesmo não acontecia em

relação ao seu trabalho — sobretudo este trabalho em particular, um vasto

volume de estaü'stica, história e filosofia que denunciaria finalmente todos

os vergonhosos segredos do capitalismo. Quanto mais estudava e escrevia,

mais o Hvro parecia estar longe do fim: como com a interminável Chave para

Todas as Mitologias, de Casaubon, tva Middlemarch, surgiam sempre novas pistas

a ser seguidas e obscuras investigações a ser feitas. (Dava-se o caso de Marx

gostar dos romances de George Eliot. «Bem, o nosso amigo Dakyns é uma

espécie de Felix Holt menos afectado e com mais conhecimentos», escreveu

à filha Jenny depois de visitar o geólogo J. R. Dakyns, em 1869. «Não pude

impedir-me de brincar com ele e de o avisar para não se aproximar da Sr" EKot

porque, senão, ela faria dele propriedade literária.»)^-'

166 -^' KARI.MARX ;•

«O principal», aconselhou-o Engels em Novembro de 1851, «é que devias lançar publicamente mais um livro... É essencial pôr fim à tua prolongada ausência do mercado literário alemão.» Vítima de «constantes interrupções» — muitas das quais, acrescente-se, eram feitas por ele mesmo, esse projecto foi posto de lado durante os quatro anos seguintes. Imediatamente após o golpe de Estado francês de Dezembro de 1852, ele começou a escrever O Detrito de Brumário de l^uís Bonaparte, a pedido do novo semanário americano, Die devolution, fundado pelo seu amigo Joseph Weydemeyer: escrever livros volumosos talvez o excedessem, mas não tinha perdido nenhum do seu brio panfletário.

Infelizmente, algumas das suas capacidades mais questionáveis também não o tinham desertado e, na Primavera de 1852, Marx desperdiçou vários meses a escrever Os Grandes Homens do Exílio, a sua verbosa sátira sobre os «imbecis mais notórios» e «a canalha democrática» da diáspora socialista. O principal vilão desta galeria de velhacos era Gottfried Kinkel, poeta ocasional e, por vezes, preso poHtico que estava agora a ser homenageado por ilustres anfitriãs de Londres como a baronesa Von Brüningk, châtelaine de um agradável salão em St. John's Wood. Marx passou todo o mês de Junho com Engels em Manchester a temperar o texto com insultos ainda mais elaborados contra Kinkel e companhia. «O processo para secar este bacalhau faz--nos rir até às lágrimas» ' . Felizmente, para a sua reputação, ç-^t-a folie à deux (loucura a dois) foi mantida em privado. Quando Marx confiou o manuscrito a Bangya para o entregar ao editor alemão, o traiçoeiro coronel vendeu-o imediatamente à polícia prussiana nas instalações da qual permaneceu durante quase um século e ninguém que, agora, lesse o livro o consideraria uma grande perda.

Mas Marx ainda não tinha terminado com o bacalhau seco. Em Julho, ouviu contar que Kinkel, no decorrer de um digressão pelos Estados Unidos para angariar fundos, tinha dito diante de uma audiência em Cincinnati, «Marx e Engels não são nenhuns revolucionários, são uns canalhas que foram expulsos das tabernas de Londres pelos trabalhadores». Marx de-safiou-o a confirmar a história. «Espero uma resposta na volta do correio. O silêncio será considerado como uma aceitação»^^. Kinkel replicou que desde que tinha sido atacado por Marx na Neue Kheinische Zeitung, em 1850, enquanto ainda se encontrava preso na Alemanha, «não queria ter mais nada a ver consigo».

OS LOBOS FAMINTOS o < ^ 167

«Se acha que pode... fornecer provas que eu, mentindo, disse ou publiquei algo prejudicial para a sua honra ou a do Sr. Engels, devo indicar--Ihe, como faria com quem não tenho contactos pessoais nem políticos, que os trâmites legais estão abertos a todos que se sintam difamados ou insultados. Excepto assim, não desejo ter mais nada a ver consigo.»^''

Marx ficou irritado por o seu desafio não ser aceite. («Como tudo que possa cheirar a duelo ou coisa parecida é rejeitado calmamente. Nem pensar instaurar um processo por difamação, pois um tribunal britânico não poderia julgar um caso de insultos feitos em Cincinnati. Assumindo que Kinkel ignoraria qualquer correspondência futura com o carimbo dos correios de Soho, Marx planeou um elaborado ardil. Convenceu o líder cartista, Ernest Jones, para endereçar um envelope a Kinkel (pois os seus gatafunhos seriam imediatamente reconhecidos) e, depois, pediu a Wilhelm Wolff para o enviar por correio em Wifidsor. O bühete em papel colorido enfeitado com um ramo de malmequeres e rosas estava cheio das previsíveis insignificâncias que ele costumava lançar aos seus inimigos. Marx garantia ainda ter em seu poder declarações de testemunhas feitas sob juramento e vociferava: «a sua carta prova mais uma vez que a baixeza do dito Kinkel é apenas igualada pela sua covardia».^''

Marx orgulhava-se das suas partidas à miúdo de escola. «O melhor», deleitou-se, «é que ele só se dará conta da piada quando o primeiro episódio dos Grandes Homens do Exílio aparecer. Pouco antes do ataque a Gottfried, vou divertir-me insultando-o directa e pessoalmente enquanto, ao mesmo tempo, me justificarei aos olhos dos lorpas dos emigrados. Para isso, precisava de algo a "branco e preto" de Johann etc. Falemos, agora, de assuntos mais importantes.. .» *

Esses «assuntos mais importantes» eram ainda mais querelas provocadas .pelo começo, em Outubro de 1852, do há muito adiado julgamento dos comunistas de Colónia. Como as provas mais incriminadoras eram livros e relatórios que pregavam a insurreição armada, supostamente furtados da Liga Comunista em Londres, Marx passou o Verão e o Outono juntando depoimentos para provar que os documentos eram falsos. Quando julgamento terminou, ele sentiu-se obrigado a escrever um artigo para repudiar as calúnias contra o «grupo de Marx» que tinham sido proferidas no tribunal de Colónia — e aproveitar a oportunidade para desferir um golpe mortal na facção da Liga Comunista favorável a Willich-Schapper. O artigo adquiriu inevitável-

1 6 8 % ^ ia.RLMARX

mente as proporções de um livro, Revelações a Respeito do Julgamento dos Comunista

de Colónia, o qual, com igual inevitabilidade, foi denunciado por August WüKch.

A seguir, Marx redigiu outro panfleto, «O Cavaleiro da Nobre Consciência»,

criticando ferozmente a «pretensão mesquinha» e «insinuações imundas» dos

seus antigos camaradas. E assim por diante...

Com invulgar discrição, Marx omitiu um pormenor desagradável acer

ca do ignóbil cavaleiro. E m 1852, a baronesa Von Brüningk alojou Willich

em sua casa, a norte de Londres, e, segundo a história transmitida por Marx

a Engels, «a exemplo do que era seu costume fazer com os outros ex-tenen-

tes, ela começou a namoriscar com o velho bode. Um dia, o sangue subiu à

cabeça do nosso asceta e ele assaltou brutalmente a madame, sendo expulso

com escândalo. Acabou-se o amor! E acabou-se o alojamento de borla!»^'^

Pouco depois deste acontecimento e com a reputação de rastos em Londres,

Willich emigrou para a América onde combateu corajosamente durante a

Guerra da Secessão. Muitos anos mais tarde, até mesmo Marx foi obrigado

a conceder que o velho bode se tinha redimido, pelo menos em parte.

Porque desperdiçava Marx o seu talento em vendetas extravagantes? Uma

explicação é que o seu caos doméstico não lhe permitia concentrar-se numa

trabalho mais exigente e importante. «Tudo o que uma pessoa pode fazer é

produzir montes de estrume em miniatura», suspirava) Talvez também a

cicatriz que, em estudante, recebera naquela duelo nunca tivesse cicatrizado.

Quando o jornal alemão de Londres, How Do You Do? sugeriu que ele esta

va secretamente de mecha com o cunhado, Ferdinand von Westphalen, o

repressivo ministro do Interior prussiano, Marx foi à redacção desafiar o

director para um duelo. O aterrorizado homem publicou imediatamente uma

desculpa. E m Outubro de 1852, Marx empregou a mesma ameaça contra o

barão Von Brüningk que o tinha acusado de espalhar o boato que a coquete

baronesa era espia russa. Marx propôs um encontro no qual provou a sua

inocência — «e estou preparado para lhe dar a satisfação habitual entre

cavalheiros caso a minha explicação não lhe baste».

A disputa acabou por ser resolvida sem derramamento de sangue atra

vés de uma troca formal de cartas. Mas, um mês mais tarde, meteu-se nova

mente noutra. Desta vez enviando uma mal-humorada mensagem ao histo

riador de esquerda, Karl Eduard Vehse, o qual, aparentemente, andava a fazer

mexericos «insolentes e impertinentes» em Dresden acerca do panfleto de

Marx sobre Os Grandes Homens do Exílio. «Caso se sinta insultado por esta

carta, basta vir a Londres», concluía após vários parágrafos de invectivas.

OS LOBOS FAMINTOS ^ ¡ » 1 6 9

«Sabe onde vivo e pode ter a certeza de que estarei sempre preparado para

lhe dar as satisfações necessárias.»

As únicas pessoas a tirar satisfação deste canibalismo comunista foram

provavelmente as autoridades prussianas: As vendetas de Marx contra homens

como Willich eram muito mais eficazes do que as fracassadas armadilhas e

sabotagens dos seus Keystone Cops. Embora consciente de que estava a aju

dar o inimigo, Marx argumentava que o verdadeiro perigo eram os conspi

radores que atacava, pois o seu canto de sereia quanto à revolução imediata

poderia seduzir os socialistas a levá-la a cabo de forma prematura e desas

trosa. Os falsos messias, se não fossem denunciados, atraíam mais o povo

do que os monarcas autênticos. Os panfletos adhominem e a ameaça de duelos

ao nascer do dia eram, por conseguinte, intervenções políticas essenciais e

não meras manifestações de despeito e orgulho ferido — ou, pelo menos,

foi disso que ele se convenceu. «Estou empenhado num combate mortal

contra os liberais impostores», dizia^^.

A arma mais letal contra esses poltrões seria a sua magnum opus que de

monstraria de uma vez por todas porquê os revolucionários nunca seriam

bem sucedidos sem estudar primeiro economia. «Os néscios democratas a

quem a inspiração vem "dos céus", não precisam evidentemente de se fati

gar», resmungava. «Porque é que havia essa gente, nascida sob uma boa es

trela, importunar a cabeça com estudos de economia e história? É tudo real

mente tão simples, costumava dizer-me o bravo Willich. Para esse burros, é 33 tudo muito simples^

Os inimigos de Marx, nessa altura e desde aí, atribuíram aos ciúmes a sua

antipatia por Willich e outros «grandes homens do exílio». Depois do ma

logro das revoluções de 1848, muitos dos heróis dessa gloriosa derrocada

chegaram a Londres cobertos de medalhas e glamor romântico — como

Mazzini, de Itália; Louis Blanc, de França; Kossuth, da Hungria; Kinkel, da

Alemanha. As senhoras da alta sociedade suspiraram pela sua atenção, co

piosos banquetes foram dados em sua honra, retratos encomendados. . .

Gottfried Kinkel, que se refugiara em Londres após a sua ousada fuga da

prisão de Spandau, foi elogiado por Dickens em Household Wors e, mais tar

de, fez uma série de palestras sobre teatro e literatura ao espantoso preço de

um guinéu por pessoa. Conforme Marx comentou, «nenhuma pedinchice,

nenhuma publicidade, nenhum charlatanismo, nenhum oportunismo era in

digno dele; em compensação, contudo, não passava despercebido. Gottfried

mirava-se complacentemente no espelho da sua própria fama e no gigantesco

1 7 0 ^ » KARL MARX •- ' ' • •

espelho do Palácio de cristal do mundo!»^'* Apesar de pobre, desconhecido

e quase a morrer de fome, Marx nunca invejou esses libertadores fanfarrões.

Citava frequentemente a máxima de Dante, Segui il tuo corso e lascia dir legenti

— faz o que o teu coração manda e deixa falar os outros. O que ele admi

rava no pioneiro britânico das cooperativas, Robert Owen, era que sempre

que uma das suas ideias se tornava popular, ele dizia imediatamente algo ul

trajante para se tornar de novo impopular.

«Detestava os bons oradores e pobre daquele que usava fraseologia bara

ta», observou Liebknecht. «Insistiu connosco, "a gente jovem", que era neces

sário ter um pensamento lógico e exprimirmo-nos com clareza, e obrigou-nos

a estudar... Enquanto os outros imigrantes planeavam diariamente uma re

volução mundial, intoxicando-se com o lema "Começará amanhã!", nós, a

"malta de mau génio", passávamos o tempo no Museu Britânico a cultivar-

-nos e a prepararmos as armas e a munição para o combate futuro.»

A sua história favorita sobre o perigo de fazer poses tinha a ver com Louis

Blanc, um homem pequenino mas muito vaidoso. Apareceu uma manhã na

rua Dean, e Lenchen convidou-o a aguardar na sala enquanto Marx se ves

tia. Ao espreitar pela porta entreaberta, Karl e Jenny tiveram de se conter para

não desatar a rir: o grande historiador e político, antigo membro do gover

no provisório francês, pavoneava-se de um lado para o outro diante de um

espelho. Ao cabo de uns minutos, Marx tossiu para anunciar a sua presen

ça. O tribuno afastou-se dos prazeres narcisistas do espelho e «tomou apres

sadamente uma atitude tão natural quanto lhe era possível».

Até os trabalhadores ficarem «espiritualmente embebidos» de ideias

socialistas — através da educação não elocução, organização poKtica em vez

de ostentação —, os aplausos da multidão nada valiam. E onde é que era

melhor começar tal tarefa? A Inglaterra não só era o berço do capitalismo

como também o local de nascimento do cartismo. E nquan t o os seus

confrades exilados se contentavam com sociedades secretas e salões, os

nativos já tinham recrutado um enorme exército de resistência proletária.

«Os operários ingleses são os primogénitos da indústria moderna», declarou

Marx. «Não serão certamente os últimos a ajudar a revolução social produ

zida por essa indústria.»

O cartismo tomou o seu nome e inspiração da Carta Popular de Maio de

1838, a qual fazia seis exigências fundamentais: sufrágio masculino univer

sal; boletins de voto secretos; parlamentos anuais; salário para os membro

OS LOBOS FAMINTOS '>:!ÍJ'171

do Parlamento; abolição da propriedade para os parlamentares; e fim dos

bairros miseráveis. Apesar das constantes discussões entre os partidários da

insurreição violenta e aqueles que confiavam na «força moral», os cartistas

continuaram a constituir uma poderosa ameaça para a ordem estabelecida

durante a maior parte da década seguinte. Um dos seus jornais, o Northern

Star, tinha uma circulação superior a 30 000 exemplares por semana e, como

a maior parte era comprada nas fábricas e nas tabernas, os seus leitores eram

muitos mais. Foram travadas verdadeiras batalhas com a polícia, sobretudo

em Birmingham e Monmouthshire, e vários Kderes foram presos ou depor

tados. Uma petição dos cartistas apresentada ao Parlamento, em 1842 — e

inevitavelmente rejeitada—, contava com 3 317 702 assinaturas e tinha mais

de nove quilómetros de comprimento. Nesse Verão, uma greve de duas sema

nas em apoio da Carta paralisou o centro e o Norte da Inglaterra, e certas

regiões do País de Gales.

E m Abril de 1848, enquanto os anciens régimes da Europa vacilavam e

caíam, os cartistas anunciaram que se agrupariam em Kennington Common,

a sul do Tamisa, e marchariam sobre o Parlamento. A notícia provocou tal

pânico entre as classes dirigentes que o próprio duque de Wellington, o

vencedor de Waterloo, foi chamado para impedir que os manifestantes atra

vessassem o rio. Foi o último hurra dos cartistas. Três anos mais tarde, gran

des multidões juntaram-se, de facto, no centro da cidade — mas foi para

assistir à Feira Internacional, em Hyde Park. Com a sua riqueza industrial,

resistência da classe média e a omnipresença da polícia, a Inglaterra tinha

aparentemente superado melhor a tempestade revolucionária do que os seus

vizinhos continentais. Mesmo assim, uma espécie de radicalismo submerso

continuava a rondar por ali. O Hvro de Henry Mayhew, l^ndon luibour and the

Lj)ndon Poor, publicado em 1851, atestava que «os artesão são quase todos

proletários entusiastas com opiniões violentas».

Karl Marx tinha pouco tempo para consagrar ao Hder cartista, Feargus

O'Connor, demagogo irlandês brilhante mas cada vez mais demente. Ficou

mais impressionado com os seus dois lugares-tenentes, George Julian Har

ney e Ernest Jones, que conhecera brevemente aquando da sua primeira vi

sita a Inglaterra no Verão de 1845. Nesse ano, Engels escreveu uma série de

artigos para o jornal dirigido por Harney, Northern Star, e, pouco depois, con-

vidou-o para se juntar à rede de correspondência comunista. Tanto Harney

como Jones assistiram ao segundo congresso da Liga Comunista, que teve

1 7 2 ^ ^ KARL MARX

lugar em Novembro de 1847 e no qual foi solicitado a Marx e Engels a re

dacção do seu manifesto.

Alarmado pelo galopante optimismo destes revolucionários alemães,

Harney puxou desesperadamente as rédeas. «A sua profecia que havemos de

obter a Carta no decorrer do presente ano e a abolição da propriedade pri

vada dentro de três, não será certamente realizada», preveniu Engels em

1846. «O conjunto da nação inglesa, apesar de não ser um povo escraviza

do, está a tornar-se eminentemente pacífico... Conflitos organizados como

os que se passam em França, Alemanha, Itália e Espanha são impossíveis de

ocorrer neste país. Conspirar e organizar uma revolução aqui seria uma

loucura em vão.»^^ Engels ignorou os sinais de aviso e, logo a seguir à de

monstração de Kennington Common, em Abril de 1848, disse ao seu cunha

do comunista, Emil Blank, que a burguesia inglesa teria «uma surpresa

assim que os cartistas entrassem em cena. Dentro de uns meses, o meu amigo

G. Harney. . . substituirá Palmerston. Aposto contigo o que quiseres»-"".

Meses mais tarde — para dizer a verdade, dois anos mais tarde — Palmerston

ainda era o ministro dos Negócios Estrangeiros.

O que é que tinha acontecido de errado? A i de Janeiro de 1848, Marx

passou em revista as abortadas revoluções de 1848 no Neue Tihejmsche Zeitung.

«K Inglaterra, país que transforma nações inteiras em proletariado, que englo

ba todo o mundo no seu imenso amplexo, que já reembolsou o custo de uma

restauração europeia, o país em que as contradições de classe atingiram a

forma mais crítica e sem vergonha — a Inglaterra parece ser o rochedo con

tra o qual as ondas revolucionárias quebram, o país onde a nova sociedade

é asfixiada no útero.» O mercado mundial era dominado peia Inglaterra e esta

era dominada pela burguesia. «Só quando os cartistas dirigirem o Governo

inglês é que a revolução social passará da utopia ã realidade.»

Resumindo, o fuluro da revolução mundial dependia de Harney e dos

seus colegas — Marx impunha-lhes uma pesada responsabiKdade, mas tam

bém prestava homenagem às suas proezas. Mas, infelizmente, os cartistas já

se estavam a dividir em facções e grupos. Encorajado por Marx e Engels,

Harney separou-se de O'Connor em 1849 e fundou uma sucessão de jornais

criativos, mas evanescentes — Democratic Kevieiv, RßdRepublican (cuja maior

realização ao longo de seis meses de existência foi a de publicar a primeira

tradução inglesa do Manifesto Comunista) e Friend of the People.

Para contrariedade de Marx e Engels, Harney praticou o que pregava, a

«irmandade dos homens» — frase que Marx detestava, pois havia muitos

OS LOBOS FAMINTOS a ^ 173

homens que em nenhumas circunstâncias desejava ser irmão. O emoliente

Harney espalhava às mãos largas os seu favores políticos aplaudindo os

«vilmente inimigos» de Marx no seio dos democratas continentais —

Mazzini, Ledru-Rollin, Louis Blanc, Ruge e Shapper, entre outros — e, de

certo modo, arranjando maneira para se dar bem com todos quando a Liga

Comunista se desintegrou. Marx não achava que ele fosse mau, apenas

impressionável — «impressionável, quer dizer, em relação a nomes famo

sos em cuja sombra se sente honrado»^''. Na sua correspondência privada

com Engels, Marx alcunhava o pouco selectivo chefe de banda Chefe Hip-hip-

-hurra — ou, por vezes, O Nosso Querido, referência trocista à sua atenta e

enjoativamente afectuosa mulher, Mary Harney. «Estouya//¿í//deste incen

so público tão incansavelmente utilizado por Harney para encher as narinas

Á.o% petits grands hommes», queixou-se em Fevereiro de ISSL"'^

A promiscuidade ideológica de Harney tinha, porém, um mérito: deixava

mais uma vez Marx sem aliados leais. «Estou muito satisfeito pelo isolamento

público em que nós dois, tu e eu, agora nos encontramos», escreveu a Engels.

«Está totalmente em conformidade com a nossa atitude e os nossos princípios.

O sistema de concessões mútuas e meias medidas toleradas em nome da

decência, e a obrigação de suportar uma parte do ridículo público no partido

juntamente com estes asnos acabou-se... Com a excepção de Pieper, quase

não vejo ninguém aqui [em Londres], e vivo completamente retirado.»

Engels concordou plenamente:

«Acho a inépcia e falta de tacto da parte de Harney mais irritante do

que tudo. Mas aufondt&ca pouca importância. Tenho, finalmente, a opor

tunidade —- pela primeira vez há séculos — de provar que não precisa

mos de popularidade nem do apoio de nenhum partido em nenhum país,

e que a nossa posição é totalmente independente dessas ridículas baga

telas. A partir de agora, somos apenas responsáveis por nós mesmos e,

quando chegar a altura dessa gentalha necessitar de nós, estaremos em

posição de ditar os nossos termos. Até lá, beneficiaremos, pelo menos,

de um pouco de paz e sossego... Como é que pessoas como nós, que fo

gem de eventos públicos como da peste, cabemos num "partido?" E o que

é nós, que cuspimos na popularidade e não sabemos onde nos meter

quando somos populares, temos a ver com um "partido, um rebanho de

asnos que juram por nós porque pensam que somos da mesma espécie

que eles?" Não se perde realmente grande coisa se já formos tidos como

1 7 4 ^ ^ KARL MARX

a "expressão adequada e correcta' dos cretinos com quem nos temos

dado nos últimos anos".»^' dado nos últimos anos".

Ambos desdenhavam o clube que os aceitasse como sócios: «Impiedoso

criticismo de toda a gente» era, agora, o seu lema. «Que mexericos pode todo

o bando de emigrados reunir contra ti», perguntava Engeles, «quando lhes

respondes com a tua economia política?»

Este condescendente desprezo por mexericos era gloriosamente pouco

sincero: Marx e Engels adoravam-nos e, durante o resto da vida, nunca

perderam uma ocasião para divertir ou enfurecer o outro à custa deles.

A pretensa indignação atingiu novas alturas em Fevereiro de 1851, quando

Harney ajudou a organizar um banquete em Londres em que Louis Blanc

era o convidado de honra. Dois dos raros aliados de Marx que ainda lhe res

tavam entre os expatriados alemães, Conrad Schramm e Wilhelm Pieper,

foram enviados para observar a cerimónia — acabando por ser expulsos da

sala, denunciados como espiões e espancados por uma multidão de 200 pes

soas, incluindo numerosos membros do partido de Harney, inapropria

damente chamado Democratas Fraternais. Shramm pediu socorro a um dos

organizadores, Landolphe, mas de nada lhe serviu. A seguir, como Marx

prestamente informou Engels, «quem é que havia de chegar se não o Nos

so Querido em pessoa. Mas, em vez de intervir energicamente, gaguejou que

os conhecia e lançou-se em longas explicações. O remédio ideal para uma

situação daquelas.»"^"

Engels sugeriu que Pieper e Schramm se vingassem esmurrando Lan

dolphe, mas Marx, de forma perfeitamente previsível, era da opinião que nada

menos do que um duelo lavaria uma tal afronta — e «a pessoa a ser desafiada

tem de ser o pequenino escocés, o Hip-hip-hip Hurra, George JuHan Harney

e mais ninguém. O melhor será que ele comece a praticar tiro ao alvo.»

A partir daU, o único uso que Marx e Engels deram ao Cidadão Hip-hip-

-hip-hurra foi o de ser vítima das suas piadas. Mantiveram, contudo, relações

amistosas com Ernst Jones, o qual não fora ao infame banquete. Como Jones

tinha passado a infância na Alemanha, eles consideravam-no «pouco inglês»

— o mais alto cumprimento que podiam prestar a um cidadão britânico. (Em

1846, ainda na primeiro entusiasmo do namoro, Engels tinha descrito

Harney como parecendo «mais francês do que inglês».)' ^ Marx colaborou no

jornal de Jones, o People's Paper, e nos artigos que escrevia para outras publi

cações louvava a insistência dos cartistas em querer •A'à.t^2X o direito ao voto.

OS LOBOS FAMINTOS 175

«Depois das experiências que sabotaram o sufrágio universal na França, em

1848, os europeus continentais estão inclinados a subestimar a importância

e o significado da carta inglesa», escreveu no Neue Oder-Zeitung. «Esquecem-

-se que dois terços da população francesa são camponeses e mais de um terço

citadinos, enquanto em Inglaterra mais de dois terços vivem nas cidades e

menos de um terço no campo. Assim, e a exemplo do que acontece em rela

ção à cidades e ao campo nestes dois países, os resultados do sufrágio uni

versal em Inglaterra devem igualmente ser inversamente proporcionais aos

dos conseguidos em França.»'^^

Em França, o sufrágio constituía uma exigência poKtica, apoiada, em maior

ou menor medida, por quase todas as pessoas «educadas». Na Grã-Bretanha,

tratava-se de uma questão social que marcava a distinção entre a aristocracia

e a burguesia por um lado e «o povo» pelo outro. A agitação em Inglaterra a

favor do sufrágio tinha passado por «um desenvolvimento histórico» antes de

se tornar no slogan das massas; em França, o slogan chegara primeiro sem ne

nhuma gestação. Vemos aqui mais uma vez a curiosa ambivalência da atimde

de Marx em relação ao seu país de adopção. Ao contrário dos seus vizinhos

infestados por camponeses, a Inglaterra tinha um imenso e sofisticado prole

tariado metropolitano: estando, por conseguinte, mais «avançada» e pronta

para a revolução. N o entanto, a Inglaterra também possuía uma burguesia

mxiito segura de si, o rochedo contra o qual as vagas revolucionárias quebra

vam em vão. Às vezes, ele convencia-se de que um cataclismo poKtico na

Grã-Bretanha não só era inevitável como iminente; mas, noutras ocasiões,

ficava desesperado pelo conservadorismo tolo dos seus habitantes. Mas o

que é que se podia esperar? Marx, mais do que qualquer outro pensador da

sua geração, era um conhecedor de contradições e paradoxos — pois eram

essas mesmas contradições que garantiam o fim do capitalismo.

«Há uma grande verdade característica do nosso Xix século, uma verda

de que nenhum partido ousa negaD>, disse em Abril de 1856 no decorrer de

um jantar em Londres para festejar o quarto aniversário do People's Paper. «Por

um lado, foram iniciadas forças científicas e industriais que nenhuma outra

época da história humana jamais suspeitou, e, por outro, existem sintomas

de decadência que ultrapassam o horror dos últimos anos do Império Ro

mano. Nos nossos dias, tudo parece estar prenhe do seu contrário.»'^^

A maquinaria, abençoada com o poder de encurtar e frutificar o labor das

pessoas, tinha-as esfomeado e extenuado. Por alquimia inversa, as novas fon

tes de riqueza tinham-se tornado em fontes de miséria. A Grã-Bretanha —

176 ^^H? KARL MARX

a sociedade mais moderna e rica do mundo — era também a que estava mais

perto da destruição. «A liistória é o juiz — e o seu carrasco, o proletariado.»

Até mesmo jacobinos ingleses sentados à mesa depois de um lauto jan

tar, fortificados com «as iguarias e condimentos mais requintados», devem

ter franzido um sobrolho interrogador perante esta retórica apocalíptica.

Podia a Inglaterra — o centro financeiro e industrial do mundo e do maior

império jamais visto, o coração palpitante do capitalismo — ser realmente

assim tão fi-ágil? Para Marx, o paradoxo era mais aparente do que real. Uma

«máxima antiga historicamente estabelecida» era que as forças sociais obso

letas faziam apelo a todas as suas forças antes da agonia final e, por conse

guinte, embora parecessem intimidadoras, encontravam-se no ponto mais

fraco. «Tal é a situação actual da oligarquia inglesa.»

Perguntamo-nos se algum dos seus ouvintes se lembrou do tom mais

cauteloso que ele tinha usado no ensaio sobre a guerra civil em França que

publicara no Neue Kheinische Zeitung, em 1850. «O processo original ocorre

sempre na Inglaterra: ela é o demiurgo do cosmo burguês», tinha escrito

então. Mas, enquanto a Inglaterra se abandonar à prosperidade burguesa,

«não se poderá falar de uma revolução a sério... Uma nova revolução só é

possível em consequência de uma nova crise».

Há tempos que aguardava com impaciência a chegada da crise — inter

pretando inscrições mágicas, procurando presságios. «Desde que nenhuma

fatalidade aconteça nas próximas seis semanas, a produção de algodão des

te ano será de três milhões de fardos», informou-o Engels em Julho de 1851.

«Se a queda do mercado coincidir com esta gigantesca safra é que vão ser elas.

Só de pensar nisso o Peter Ermen já se está a borrar nas calças.»' '* Tais per

das na indústria têxtil também poriam termo aos subsídios regulares que

Marx recebia de Ermen & Engels, mas isso, aparentemente, era um preço

que vaUa a pena pagar para a ruína geral. «À agradável perspectiva de uma

crise comerciab/^ ele até lambia os beiços. E m Setembro, contudo, nada

aconteceu. E m vez disso, a descoberta de ouro em Victoria, no Sul da Aus

trália, talvez abrisse novos mercados e, a exemplo da corrida ao ouro na

Califórnia em 1848, precipitasse a expansão do comércio mundial e de cré

ditos. «Esperemos que o ouro australiano não interfira com a crise comer

cial», atormentava-se Engels. Consolava-se com a ideia de que, mesmo no

caso do capitalismo ser salvo pelo sucesso nos antípodes, teriam pelo menos

o direito a qualquer coisa: «Em seis meses, a circum-navegação do mundo

OS LOBOS FAMINTOS « ^ 1 7 7

a vapor terá avançado e as nossas previsões a respeito da supremacia do ocea

no Pacífico serão realizadas ainda mais rapidamente do que prevíamos.»'*''

Austrália — esses «estados unidos de assassinos, ladrões, vigaristas e viola

dores deportados» — espantaria então o mundo mostrando que maravilhas

uma nação de bandidos disfarçados podia fazer. «Darão cabo da Califórnia.»

De qualquer modo, a procura do algodão de Lancashire estava ainda a bai

xar agradavelmente e, em breve, «teremos uma tal excesso de produção que

vais ficar todo contente».

Um mês mais tarde houve mais um motivo de contentamento, proveniente

do cavalo de Tróia instalado por Marx na cidadela do capitalismo: «O comér

cio de ferro está totalmente paralisado, e dois dos bancos mais importantes

que lhe dão crédito — em Newport — faliram... Há a possibilidade, se não

a certeza, de que as convulsões da próxima Primavera no continente coin

cidam com uma boa crises. Mesmo que a Austrália pareça incapaz de fazer

grande coisa; desde os tempos da Califórnia que a descoberta de ouro se

tornou uma velha história e o mundo está a começar a ficar indiferente.. .»'"'^

Dois dias depois do Natal de 1851, Marx enviou uma alegre mensagem de

fim de ano ao poeta Ferdinand Freiügrath: «Pelo que Engels me diz, os co

merciantes agora partilham a nossa opinião de que a crise, sustida por toda

a espécie de factores (incluindo, por exemplo, apreensões políticas, o eleva

do preço do algodão no ano passado), deve rebentar o mais tardar no Ou

tono. E, desde os últimos acontecimentos, estou mais convencido do que nun

ca que não haverá nenhuma revolução a sério sem uma crise comercial.»"*^

A queda da administração Whig, de Rüssel, em Fevereiro de 1852 e a nomea

ção de um gabinete tory chefiado por Lorde Derby deu a impressão que o dia

ansiado estava próximo.

«Na Inglaterra, o nosso moviínento pode progredir apenas sob os tories»,

explicou Marx. «Os Whigs conciliam tudo e põem toda a gente a dormir.

E, ainda por cima, há a crise comercial, a qual está cada vez mais perto e cujos

primeiros sintomas estão a verificar-se em toda a parte, l^s choses marchent. (As

coisas estão em marcha).»"*' O comércio livre e uma queda do preço do al

godão talvez mantivessem a economia inglesa à tona de água até ao Outo

no, mas, depois, começaria a brincadeira.

Engels não tinha tanta certeza. Embora a crise devesse certamente che

gar por volta do final de 1852, «de acordo com todas as regras», a força dos

mercados indianos e o baixo preço das matérias-primas sugeriam que poderia

acontecer algo diferente. «Uma pessoa é quase tentada a prever que o pre-

178 KARLMARX

sente período de prosperidade será excepcionalmente de longa duração. De qualquer modo, pode muito bem ser que dure até à Primavera.» '

E foi o que aconteceu; talvez Marx não tivesse ficado totalmente desapontado. «A revolução pode vir mais cedo do que nós gostaríamos», escreveu em Agosto, comentando uma sucessão de falências e safras abaixo da média. «Nada seria pior do que os revolucionários terem de fornecer o pão.» Aqui, ele foi apanhado pela sua própria lógica explosiva: se a revolução dependesse de uma catástrofe económica, como ele insistia, é evidente que herdaria um mundo sem pão. No entanto, ao longo dos dois anos seguintes, ele ainda se sentia jovialmente seguro de que os tempos difíceis se encontravam ao virar da esquina. «Sendo o estado das safras de Inverno o que é, estou convencido de que a crise está para vir.» ^ (Janeiro de 1853); «As condições presentes... a meu ver, conduzirão muito em breve a uma derrocada.» (Março de 1853) ; Les choses marchent merveilleusement (As coisas marcham às mü maravilhas). «Será um pandemonio em França quando a bolha financeira rebentar.» (Setembro de 1853).

Na ausência de uma crise económica terminal, Marx começou a perguntar se outra centelha pegaria fogo à conflagração. Talvez a guerra da Crimeia? «Não nos podemos esquecer de que existe um sexto poder na Europa», escreveu no ^ew York Daily Tribune, de 2 de Fevereiro de 1854, «o qual, a dados momentos, afirma a sua supremacia sobre os chamados cinco "grandes" poderes e os faz tremer. Esse poder é a Revolução... Basta um sinal e este sexto e maior poder europeu surgirá de armadura reluzente e espada na mão, como Minerva a sair da cabeça de OKmpico. A pendente guerra europeia dará esse sinal...»

Mas não teve essa sorte. Aparentemente esquecendo-se de que, conforme insistia, a revolução só era possível em consequência de uma derrocada económica, perscrutou o horizonte à procura de outra nuvem negra. A 24 de Junho de 1855, os cartistas fizeram uma manifestação em Hyde Park para protestar contra a nova lei que bania a abertura de tabernas e a publicação de jornais ao domingo. As senhoras e os cavalheiros que montavam em Rotten Row foram molestados pelos manifestantes e alguns deles tiveram de desmontar para fugir. «Fomos espectadores do princípio ao fim», escreveu Marx no IS^eue Oder Zeitung. «E não julgamos estar a exagerar se dissermos que a revolução inglesa começou ontem em Hyde Park.»^^

Uma manifestação semelhante uma semana mais tarde juntou ainda mais multidão — e Marx voltou a redigir um vivido relato para o ISleue Oder Zeitung.

OS LOBOS FAMINTOS »1:^179

«A poKcia emboscada entrou logo em acção e, sacando dos cacetes do bolso,

pôs-se a bater na cabeça das pessoas até o sangue jorrar, puxando indivíduos

aqui e ali da imensa multidão (um total de 104 pessoas foram presas) e ar-

rastando-os para prisões improvisadas.»''^ Mas a nature2a da cena foi bastante

diferente da guerra do fim de semana anterior:

«No passado domingo, as massas foram confrontadas como indiví

duos pela classe dirigente que, desta vez, surgiu como poder estatal, a lei,

o cacete. Mas, desta vez, a resistência significou insurreição e o inglês tem

de ser provocado durante muito tempo para se revoltar. Assim, a contrade-

monstração foi limitada, em geral, a assobios e vaias contra os carros da

polícia e a isolados e débeis tentativas para libertar a gente presa, mas, aci

ma de tudo, resistência passiva a defender fleumaticamente a sua posição.»

Assim, expirou «a revolução inglesa», apenas sete dias depois da fanfar-

rice de Marx; e tudo porque a timidez dos nativos é deferente perante a ma

jestade do poder institucionalizado. É demasiado parecido com uma cena das

operetas de Gilbert e Sullivan, em que os sangrentos piratas de Penzance

capturam um destacamento de poKcias e ameaçam as suas vítimas de espa

da em punho.

— Rendam-se em nome da rainha Victoria! — ordena o sargento manie

tado no chão.

O chefe dos piratas não tem outro remédio senão obedecer.

— Rendemo-nos já, humildemente, pois, apesar de todas as nossas cul

pas, adoramos a rainha.

Durante toda a vida, a opinião de Marx do proletariado inglês oscilou

entre a reverência e o desprezo. E m Janeiro de 1862, citou o apoio dos tra

balhadores britânicos ao Nor te na Guerra da Secessão americana como

«nova e esplêndida prova da indestrutível largueza de espírito das massas po

pulares inglesas, que constitui o segredo da grandeza da Inglaterra»^''. Mas,

quando manifestantes antigovernamentais destruíram as grades de Hyde

Park em Julho de 1866, ele mostrou-se desesperado pela sua moderação. «O

inglês precisa, primeiro do que tudo, de uma educação revolucionária», es

creveu a Engels. «Se as grades tivessem sido usadas defensiva e ofensivamen

te contra a poHcia e uns quantos fossem derrubados, os militares teriam de

intervir em vez de se limitarem a desfilar. E, então, é que seriam elas. U m

coisa é certa, estes estúpidos John Bulis, cujas cabeças parecem ter sido

1 8 0 ^ ^ KARI.MARX

fabricadas especialmente para os cacetes dos polícias, nunca hão-de chegar a nenhum lado sem um confronto sangrento com as forças do poder.»^^ Conforme concedeu, contudo, não tinha havido grandes combates: os trabalhadores mostraram-se «servis», «enleados» e incuravelmente debilitados por uma «infecção burguesa».

Esta doença tinha pequenos, mas esclarecedores sintomas. O historiador Keith Thomas sugeriu que «as preocupações com a jardinagem, assim como com animais de estimação, pesca e outros passatempos... ajuda a explicar a relativa falta de impulsos poKticos e radicais entre o proletariado britânico»^''. Daí a popularidade dos loteamentos no século XIX e a surpreendente penúria de prédios grandes com apartamentos -— o que «teria privado os trabalhadores de se dedicarem à jardinagem, a qual consideravam uma necessidade». Por cada trabalhador que tinha arrancado grades em Hyde Park havia dúzias que queriam apenas levar os cães a passear ou admirar os canteiros de flores.

Até mesmo Ernst Jones, o líder cartista que Marx mais admirava, em breve se revelou um diletante da classe média ao defender uma coligação entre os cartistas e os radicais burgueses. «O que se passa com Jones é revoltante», escreveu Engels após ouvi-lo discursar numa manifestação em Manchester. «Uma pessoa é quase levada a acreditar que o movimento do proletariado inglês na sua antiga forma cartista tradicional tem de desaparecer completamente antes de poder desenvolver uma nova forma viável.» Mas que forma seria essa? Como Engels notou com lúgubre presciência, «o proletariado inglês está hoje em dia a tornar-se cada vez mais burguês e, aparentemente, aspira possuir uma aristocracia burguesa e um proletariado burguês, bem como uma burguesia.»^^

E foi o que veio a acontecer: actualmente em Inglaterra, tanto os aristocratas como os trabalhadores compram alimentos nas superlojas Tesco e assistem ao sorteio da Lotaria Nacional aos sábados à noite. Se os fantasmas de Marx e Engels voltassem à Terra, também notariam a mais esquisita contradição de todas: uma monarquia burguesa cujos príncipes usam bonés de basebol, comem Big Macs e passam as férias na Disneylândia. Em Hyde Park, onde outrora os cartistas provocavam os aristocratas e Karl Marx julgava que a revolução inglesa tinha começado, o maior ajuntamento popular que há memória ocorreu a 6 de Setembro de 1997 — para o funeral de Diana, princesa de Gales. .

O veredicto final de Marx sobre o seu país de adopção figura numa carta que escreveu, pouco antes de morrer, em 1883. Depois de troçar dos «pobres

OS LOBOS FAMINTOS 0 ^ 1 8 1

burgueses britânicos que gemem à medida que vão aceitando cada vez mais

"responsabilidades" ao serviço da sua missão histórica, enquanto protestam em

vão contra ela», conclui com um grito exasperado: «Ao diabo os Britânicos!»^**

A apostasia de Ernst Jones, ao juntar forças com os liberais da classe

média, incorreu na punição mais severa que Marx e Engels podiam dar: foi

etiquetado de «oportunista». Anos mais tarde, eles proferiram a mesma

sentença contra Ferdinand Lassalle por este ter proposto que os trabalhado

res e os aristocratas prussianos se juntassem contra a burguesia industrial.

Apesar de se opor a estes casamentos de conveniência, Marx andava a for

mar associações oportunistas com tipos bastante esquisitos.

O mais esquisito deles todos era David Urquhart, excêntrico aristocrata

escocês e antigo membro tory do Parlamento, que actualmente é lembrado, se

o for, por ter introduzido os banhos turcos em Inglaterra. «Até ao fim da vida,

Urquhart foi o hei, o chefe, o profeta, praticamente o "enviado divino", para

a maioria dos seus seguidores», declarou um dos seus discípulos. «Para a sua

pequenina filha, que sonhava com o pai. . . , não parecia estranho que o pai,

à maneira dos sonhos, se transformasse em Cristo. "É realmente a mesma

coisa, não é, mamã?", dizia. Mas, para os observadores menos reverentes, ele

não passava de uma velha morsa intratável de bigodes pendentes, laço de es

guelha e opiniões muito controversas. "A arte que pratiquei com mais assidui

dade foi a de fazer os homens odiar-me", gabava-se. "Isso torna-os menos

apáticos. Fá-los falar e, depois, posso apanhar-lhes as palavras e arremessá-

-las contra eles para os abater."»^' Muitas eminências vitorianas são testemu

nhas do sucesso desta técnica: o homem tinha inimigos para dar e vender.

Nascido na Escócia em 1805, educado em França, Suíça e Espanha,

Urquhart descobriu a sua longa obsessão com o Oriente quando, aos 21

anos, partiu — por sugestão de Jeremy Bentham, um admirador — para

tomar parte na guerra da independência da Grécia e foi gravemente ferido

no cerco de Seio. Tendo atraído a atenção de sir Herbert Taylor, secretário

particular de Guilherme IV, Urquhart foi a seguir enviado em missões diplo

máticas secretas para Constantinopla, onde mudou abruptamente de cam

po. «Este tipo foi para a Grécia como helenista e, após ter passado três anos

a combater os turcos, instalou-se na Turquia e apaixonou-se pelos turcos»,

escreveu Marx em 1853, depois de se ter divertido com o livro de Urquhart,

Turkey and Its ^esources?'^

1 8 2 1 ^ I<:ARLMARX

«Entusiasma-se pelo Islão de acordo com o seguinte princípio: «Se

não fosse calvinista, só poderia ser maometano.» Os turcos, principal

mente os do Império Otomano no seu apogeu, são a nação mais perfei

ta que existe à superfície da Terra, e a sua língua é a mais melodiosa do

mundo Se um europeu é maltratado na Turquia, só pode culpar-se a

si mesmo; o turco não odeia a religião dos francos nem o seu carácter,

apenas o facto de as suas calças serem estreitas. A imitação da arquitec

tura, etiqueta, etc. dos turcos é fortemente recomendada. O próprio autor

levou muitos pontapés no rabo dos turcos, mas, subsequentemente, deu-

-se conta de que a culpa fora dele... E m resumo, o turco é um cavalheiro

e a liberdade existe somente na Turquia.»

A sua excessiva turcolilia fascinou os anfitriões de Urquhart em Constan

tinopla. Segundo o Didonário de Biografias Nacionais, «os funcionários turcos

confiavam tanto nele que o informavam acerca de tudo o que o embaixador

russo lhes comunicava. N o entanto. Lorde Palmerston ficou alarmado... e

pediu ao embaixador inglês, Lorde Ponsonby, que o tirasse de Constantinopla,

pois ele era um perigo para a paz na Europa». A parcialidade apaixonada de

Urquhart — pró-turco e anti-russo — antagonizou-o com a poUtica britâni

ca e convenceu-o de que o Governo do seu país era influenciado por forças

sinistras e concluiu que o ministro dos Negócios Estrangeiros, Lorde Pal

merston, devia ser um agente secreto russo. Ao regressar à Grã-Bretanha,

Urquhart encontrou vários jornais e uma rede nacional de comités dispos

tos a disseminar a sua audaz teoria conspiratória. Após ter entrado para o Par

lamento em 1847, fez uma série de discursos solicitando um inquérito ime

diato sobre a conduta do Ministério dos Negócios Estrangeiros «a fim de

destituir o Muito Distinto Henry John Temple, visconde de Palmerston».

Essencialmente um romântico reaccionário, Urquhart conseguiu, con

tudo, convencer alguns radicais de que estava realmente do lado deles e de

fendia os trabalhadores explorados contra os patrões falsos e velhacos.

Apesar dos cartistas mais revolucionários o considerarem um espião tory,

cujas cruzadas populistas contra Lorde Palmerston eram uma manobra de

diversão, os outros louvavam a sua denúncia do «mal causado ao labor e ao

capital deste país pela expansão do Império Russo e da quase universal in

fluência russa, a qual procurava destruir o comércio britânico».

Isto tudo fazia harmoniosamente coro com o ódio e desconfiança que

Karl Marx votava à Rússia czarista. «Excitado, mas não convencido» pelas

OS LOBOS FAMINTOS * ^ 183

alegações de Urquhart, meteu mãos à obra com característica diligência

debruçando-se sobre velhos exemplares do Hansard e dos «Livros Azuis»

diplomáticos à procura de provas. Os seus progresso podem ser seguidos

através do diferente tom das suas cartas a Engels. Na Primavera de 1853,

troçava de Urquhart chamando-o «o membro louco do Parlamento que de

nuncia Palmerston dizendo que ele é pago pela Rússia». Mas, no Verão desse

mesmo ano, já se mostrava mais respeitoso: «Os comentários de D. Urquhart

sobre a questão oriental no Advertiser contêm, apesar das excentricidades,

muita coisa interés sante»''"). E, antes do final do Outono, rendia-se incon

dicionalmente ao urquhartismo — se não ao próprio Urquhart. «Cheguei à

mesma conclusão que esse monomaniaco do Urquhart — nomeadamente

que Palmerston trabalha há várias décadas a soldo dos russos», escreveu a

2 de Novembro. «Estou satisfeito por o acaso me ter levado a observar mais

de perto a política estrangeira — diplomática — dos últimos 20 anos.

Negligenciámos muito este aspecto. Deve-se saber com quem se está a lidar.»

Os primeiros resultados desses estudos foram uma série de artigos para

o New York Tribune, no final de 1853, que descreviam as «ligações» clandes

tinas de Palmerston com o Governo russo. Urquhart, compreensivelmente

deleitado, encontrou-se com o autor em princípios de 1854, fazendo-lhe os

maiores cumprimentos ao dizer que «os artigos pareciam ter sido escritos por

um turco». Marx, um pouco amuado, fez-lhe notar que era um revolucionário

alemão.

«Ele é louco varrido», comentou Marx pouco depois deste estranho

encontro:

«Está firmemente convencido de que, um dia, será primeiro-ministo

do país. Quando reinar a opressão, a Inglaterra virá ter com ele e dizer-

-Ihe: Salva-nos, UrquhartílL, então, ele há-de salvá-la. Tem autênticos ata

ques quando fala, sobretudo quando o contradizem... A sua ideia mais

cómica é a seguinte: a Rússia governa o mundo através de uma onda

cerebral específica. Para lhe fazer face, uma pessoa tem de ter o cérebro

de um Urquhart e, se tiver o infortúnio de não ser o próprio Urquhart,

deveria ser, pelo menos, um urquhartista, quer dizer, acreditar no que

Urquhart acredita, na sua "metafísica", na sua "economia política", etc. etc.

Um pessoa deve ter estado no "Oriente" ou ter absorvido, pelo menos,

o "espírito mrco."»''^

184 ,;,Ä KARL MARX

Quando alguns destes artigos sobre Palmerston no Tribune foram publi

cados como panfleto, Marx ficou horrorizado por descobrir que a polémica

de Urquhart aparecia na mesma série — e imediatamente proibiu outras

reimpressões. «Não desejo fazer parte dos adeptos desse cavalheiro com

quem tenho apenas uma coisa em comum, nomeadamente, a minha opinião

sobre Palmerston», explicou a Ferdinand Lassalle. «Quanto ao resto, sou

diametralmente o oposto.»*^^

, A partir disto, pode-se inferir que quaisquer outros convites ou enco

rajamentos por parte do maníaco seriam rejeitadas com um brusco: «Sai-me

da vista, Satanás!» Mas Marx não pôde manter os seus princípios durante

muito tempo. Importunado por credores impacientes, não conseguiu resistir

a uma encomenda para escrever uma série para um dos jornais de Urquhart,

o Free Press, de Sheffield, no Verão de 1856. «Os urquhartistas estão a ser

muito importunos», rosnou. «Financeiramente, é bom, mas não sei se,poli-

ticamente, devo envolver-me com essa gente.»''^Os artigos eram apropriada

mente sensacionais: declarava ter descoberto, entre os manuscritos diplomá

ticos no Museu Britânico, «uma série de documentos datados do final do

século XVIII à época de Pedro, o Grande, que revelava a secreta e permanente

colaboração do gabinete em Londres com Sampetersburgo.». Facto ainda

mais alarmante, o objectivo da Rússia ao longo de todo esse período era,

nada mais nada menos, a conquista do planeta. «A potítica de Pedro, o Grande,

continua a ser a da Rússia moderna, independentemente das mudanças de

nome, governo ou disposição pelas quais este poder hostil possa ter passa

do. Pedro, o Grande, foi de facto o inventor da política da Rússia moderna,

mas fê-lo despojando o antigo método moscovita do seu carácter meramente

local e as suas acidentais misturas, destilando-o numa fórmula abstracta, ge

neralizando a sua finalidade e exaltando o seu objectivo: da aniquilação de

determinados limites de poder à aspiração de poder ilimitado.»

Havia uma falha evidente na teoria de que a Grã-Bretanha e a Rússia ti

nham sido cúmplices nos últimos 150 anos: a Guerra da Crimeia. Urquhart

e Marx davam uma pronta explicação. A Guerra fora um truque manhoso

para afastar as suspeitas da corrupta aliança de Palmerston com a Rússia; e

a Grã-Bretanha tinha deliberadamente prosseguido a guerra de forma tão in

competente quanto possível. Para os dedicados teóricos de conspirações

tudo é explicável e quaisquer factos inconvenientes constituem simplesmente

mais uma confirmação da diabólica dissimulação das suas vítimas.

OS LOBOS FAMINTOS 185

Marx deve ter-se convencido a si mesmo, mas poucas pessoas foram

persuadidas. Os seu ataques contra Palmerston e a Rússia foram publicados

novamente em 1899, pela filha Eleanor, como dois panfletos, A História

Diplomática Secreta do Século XVIII e .A História da Vida de l^orde Palmerston —

embora algumas das passagens mais provocantes tivessem sido retiradas.

Durante a maior parte do século XX, estiveram fora do mercado e pratica

mente esquecidos. O Instituto do Marxismo-Lenismo de Moscovo não os

incluiu nas suas exaustivas obras completas, presumivelmente porque os

editores soviéticos não podiam admitir que o espírito que encabeçara a re

volução russa fosse um fervoroso russófobo.'''*

Os hagiógrafos marxistas do Ocidente também se mostraram relutantes

em chamar a atenção sobre esta embaraçosa mistura de revolucionário e

reaccionário. U m exemplo típico é A Vida e o ensinamento de Karl Marx, de

John Lewis, publicado em 1965; o leitor curioso pode procurar em vão

qualquer referência a David Urquhart ou à colaboração de Marx para a sua

obsessiva cruzada.

Mais tarde, o próprio Urquhart consagrou-se a outras causas igualmen

te quixotescas. Devoto católico romano, se bem que não ortodoxo, suplicou

durante largos anos ao Papa Pio IX que restaurasse a lei canónica enquanto

continuava infatigavelmente a fazer propaganda dos banhos turcos. («Num

dos Guardians que me enviaste há uma notícia em que David Urquhart figura

como infanticida», escreveu Marx a Engels em 1858. «O pobre diabo deu um

banho turco ao filho de 11 meses que provocou uma congestão cerebral e

a sua morte. O inquérito do médico legista durou três dias, e foi por um triz

que Urquhart escapou a ser condenado.»)''^ A casa de Urquhart em Rick-

mansworth, Hertfordshire, foi descrita por um visitante como «um palácio

oriental com um banho turco. . . cujo luxo não é inferior a nenhum de Cons

tantinopla»''''. Uma sessão nesta decorada câmara de suor talvez tivesse fei

to bem aos furúnculos de Marx, mas, que se saiba, ele nunca teve o prazer

de ter lá estado.

o H E R Ó I A CAVALO

Pouco antes da madrugada de 16 de Janeiro de 1855, Jenny Marx deu

à luz outra filha, Eleanor. Não se pode dizer que o pai tenha ficado extasiado.

<A. infelicidade do "se.-xd"par excellence», disse a Engels. «Se tivesse sido um

í:ãpã.2, seria melhor», disse a Engels'^^^ Já a sua participação da chegada de

Franziska, quatro anos mais cedo, fora igualmente desprovida de alegria.

Seria portanto fácil inferir que Marx sentia pouco afecto pelas filhas; fácil,

mas errado. Todas as cartas e fragmentos autobiográficos testemunham que

o Mouro era um pai extremoso que inspirava devoção dedicada por parte da

sua progenitura. Ao contrário de muitos homens da sua geração, tratava as

raparigas como potenciais adultas inteligentes. Leu Homero, Shakespeare,

o Canto dos Nibelungos, Gundrun, Dom Quixote, as Mile UmaNoites e tudo o mais

tanto a Eleanor como às irmãs antes dela nascer. Quando ela cumpriu seis

anos de idade, ofereceu-lhe o primeiro Hvro, Peter Simples, ao qual se seguiu,

mais tarde, as obras completas de Marryat, Cooper e Walter Scott. Assun

tos considerados tabu diante das crianças em outros lares da classe média

vitoriana — ateísmo, socialismo — não só eram permitidos como também

encorajados. Depois de uma saída familiar para ouvir uma missa cantada

numa igreja católica romana, quando Eleanor tinha cerca de cinco anos, ela

confessou sentir «certos escrúpulos religiosos» e, então, o pai «elucidou-a»

contando-lhe pacientemente a história do carpinteiro que os ricos tinham

morto. «Podemos perdoar muita coisa ao cristianismo porque nos ensinou

a adorar a criança.»

A referência de Marx ao género «infeliz» da filha não deve portanto ser

tomada como prova de misoginia nem frieza paternal. Está simplesmente

1 8 8 ^ » I<:ARLMARX

a encarar a realidade económica e social: como não se esperava que as rapa

rigas da classe média ganhassem a vida ou provessem à sua própria subsis

tência, Eleanor seria mais um fardo financeiro numa situação já periclitante.

Mas, mesmo assim, não há dúvida de que Edgar — o bochechudo e tra

quinas coronelMusch — era o favorito. Rapaz doentio, cuja grande cabeça

parecia demasiado pesada para o seu corpo débil, ele era, contudo, uma ines

gotável fonte de entusiasmo e graça. Quando os pais se deixavam abater, ele

conseguia sempre animá-los cantarolando cantigas absurdas — ou a Marse

lhesa—, com muito sentimento e aos gritos. N o dia em que Edgar cumpriu

cinco anos, Wilhelm Pieper, o secretário de Marx, ofereceu-lhe um saco de

viagem, mas, depois, arrependeu-se e quis recuperá-lo. «Escondi-o bem,

Mouro», confiou Musch ao pai. «E se o Pieper me perguntar onde está, vou

dizer-lhe que o dei a um pobre.»

Marx adorava o pequenino espertalhão, «um amigo que, pessoalmente,

me era mais querido do que qualquer outro»^. Este favoritismo é confirma

do por uma carta de 3 de Março de 1855 a Engels, em que fazia uma lista das

várias maleitas que estavam a transformar o seu apartamento num peque

no hospital: Edgar padecia de uma espécie de febre gástrica; Karl estava de

cama com uma tosse terrível; Jenny tinha uma dolorosa e irritante inflama

ção num dedo; a bebé Eleanor era muito frágil e estava cada vez mais fraca.

«A situação de Edgar, é a pior», comentava Marx, o que era bastante surpreen

dente, pois a vida de Eleanor corria perigo enquanto Edgar «fazia progres

sos e melhorava a olhos vistos».

Mas a recuperação foi cruelmente breve e, quando Edgar piorou grave

mente em fins de Março, o médico diagnosticou uma tuberculose e avisou

que não havia esperança. «Embora o meu coração sangre e sinta a cabeça a

arder, tenho evidentemente de manter a compostura», escreveu Marx. «No

decorrer da sua doença, nunca o meu filho se mostrou um só instante con

trário à sua boa índole»\ Edgar morreu nos braços do pai pouco antes das

seis da manhã de 6 de Abril. Era Sexta-Feira Santa, o dia mais triste do ca

lendário cristão e, assim, o falecimento do rapaz foi marcado pelos sinos das

igrejas. Wilhelm Liebknecht chegou à rua Dean pouco depois e encontrou

Jenny a chorar silenciosamente ao lado do cadáver com Laura e. jennychen

agarradas às sais como para se defenderem da força maligna que lhes rou

bara os irmãos e as irmãs. Marx, quase de cabeça perdida, resistia furiosa e

violentamente a todos as condolências.

o HERÓI A CAVALO 0 ^ 1 8 9

O funeral ocorreu dois dias mais tarde no tabernáculo de Whitefield, em

Tottenham Court Road, local do repouso final de Frawkesy e Franziska. N o

decorrer do curto percurso até ao cemitério, Liebknecht afagou a testa de

Marx e tentou, de forma um pouco estúpida, lembrar-lhe quantas pessoas

gostavam dele — a mulher, as filhas, os amigos. «Não podes devolver-me o

meu filho!», uivou Marx, agarrando fortemente a cabeça. Quando estavam

a baixar o caixão, ele deu um passo em frente e, durante uns instantes, os

presentes julgaram que ele se ia atirar para dentro da cova. Liebknecht agar-

rou-o pelo braço.

Marx mal podia resolver-se a regressar a casa, a qual parecia insuporta

velmente desolada sem o seu bobo da corte. «Já tive o meu quinhão de azar»,

disse a Engels. «Mas só agora sei o que realmente significa a infelicidade.

Sinto-me destroçado.»'* Durante vários dias, ele teve «a boa fortuna» de sentir

tais dores de cabeça que não conseguia pensar, ouvir nem ver. Um das poucas

coisas que o reconfortou foi a amizade de Engels, que convidou Karl e Jenny

a passar uns dias em Manchester para saírem do detestável ambiente do

apartamento de Soho. Anos mais tarde, muito depois de ter mudado de

bairro, Marx declarou que «a área à volta de Soho Square ainda me causa

arrepios quando passo, por acaso, por lá perto.»^

Mas, assim que voltaram a Londres, os antigos vestígios da presença de

Edgar — livros e brinquedos — mergulhou-os num pesar ainda mais pro

fundo. «Bacon afirma que as pessoas realmente importantes têm uma tal

relação com a natureza e o mundo, tantos objectos de interesse, que facil

mente recuperam das perdas sofridas», escreveu a Ferdinand Lassalle três

meses mais tarde. «Não sou uma dessas pessoas importantes. A morte do

meu filho feriu-me mortalmente e sinto a sua perda como no primeiro dia.

A minha pobre mulher também está completamente destroçada.»""

De Julho a Setembro, a família foi morar no subúrbio de Camberwell, no

Sul de Londres, onde o refugiado alemão. Peter Imandt, lhes cedeu o apar

tamento enquanto ele se encontrava na Escócia. Embora lhes agradasse

manterem-se afastados da rua Dean por uns tempos, o motivo principal

daquela mudança era esconderem-se dos credores que andavam outra vez

atrás deles — em particular do vingativo Dr. Freund que, agora, ameaçava

processá-los por falta de pagamento dos seus honorários. E m meados de

Setembro, quando Freund descobriu o seu paradeiro, Marx teve novamen

te de maquinar um plano de fuga — inspirando-se, segundo reivindicou, na

retirada estratégica das tropas russas do Sul de Sebastopol na semana ante-

1 9 0 ^ 9 KARL MARX

rior, após terem sido derrotados pelos franceses na batalha de Chernaya. «Fui

forçado ^otforce supérieure a evacuar a frente sul sem, contudo, destruir tudo

atrás de mim», informou Engels num despacho de guerra proveniente de

Camberwell. «Mas, na verdade, as minhas tropas permanecerão aqui enquan

to eu estiver ausente durante uma ou duas semanas. E m outras palavras, sou

obrigado a retirar para Manchester onde espero chegar amanhã à noite. Terei

de passar incógnito e, por isso, não fales a ninguém da minha presença.»^

Dois dias depois de 1er esta carta, Engels enviou um longo artigo, «Pers

pectivas da Crimeia», ao New York Daily Tribune — sob o nome de Marx —

no qual justificava a luta aparentemente desnecessária dos russos a sul de

Sebastopol. «A resistência numa cidade sitiada é, a longo termo, desmora

lizadora», argumentou. «Implica privações, fadiga, doenças e a presença, não

do perigo crítico que dá forças mas de um perigo crónico que acaba por

cansar o espírito... Não é de admirar que a desmoralização se apodere das

tropas; o que admira é que isso ainda não tenha sucedido há mais tempo.»

É difícil de acreditar que Engels tenha escrito esta avaliação táctica sem ter

em mente a situação precária do seu amigo.

Na Primavera de 1855, entre o aniversário de Eleanor e a mor te de

Musch, deu-se um evento familiar que alegrou imenso Marx. «Fomos in

formados ontem acerca de um ACONTECIMENTO MUITO FELIZ», escreveu

a 8 de Março. "A morte do tio da minha mulher aos 90 anos."» Nada tinha

contra Heinrich Georg von Westphalen, advogado e historiador inofen

sivo, à parte o facto da sua longevidade ter atrasado a repartição da sua con

siderável fortuna. E m casa de Marx, esse tio indestrutível era denomina

do «o nega-heranças». A parte que cabia a Jenny, cerca de cem libras, chegou

no fim desse ano e, no Verão de 1856, ela recebeu mais 120 libras pela morte

da mãe. Nessa ocasião, contudo, até mesmo Marx se mostrou suficiente

mente delicado para não se regozijar abertamente, sobretudo porque Jenny

passara os últimos dias à cabeceira da baronesa em Trier. «Ela parece ter

ficado muito afectada pela morte da velha senhora», notou ele em tom li

geiramente surpreso.

Estas duas heranças inesperadas permitiram-lhe escapar finalmente do

«velha toca» em Soho e, depois de calcar as ruas durante duas semanas à

procura de um alojamento mais salubre, decidiu-se por um prédio de qua

tro andares localizado no número 9 de Grafton Terrace, em Kentish Town,

perto de Hampstead Heath. A renda anual de 36 libras era barata para o norte

o HERÓI A CAVALO t^ií» 191

de Londres — provavelmente porque, como Marx explicou a Engels, esta

parte de Hampstead tinha permanecido «um pouco inacabada». Mais do que

um pouco, deve-se acrescentar: as ruas não eram pavimentadas nem ilumi

nadas, e um enorme estaleiro de construção elevava-se na vizinhança. Até

à década de 1840, tinha sido ocupada por campos verdes, mas a che

gada dos caminhos-de-ferro transformara os arrabaldes rurais de Londres

em subúrbios para a classe média. Como acontece hoje com as urbanizações

em subúrbios distantes, o estilo arquitectónico era uma confusão híbrida e

caprichosa.

O prédio de Grafton Terrace fora oficialmente classificado de «terceira

classe» pelo Departamento Metropolitano de Construção, mas Marx acha-

va-a «muito simpático». Jenny deleitava-se com os prazeres esquecidos do

conforto doméstico e contratou a meia irmã de Helene Demuth, Marianne

Creuz, para ajudar na Hda da casa. «É realmente um alojamento principes

co comparado com os buracos onde vivemos antes», disse a uma amiga. «E

embora tenha sido mobilado de alto a baixo por pouco mais de 40 libras

(sobretudo com mobílias em segunda mão), senti-me ao princípio muito

elegante na nossa confortável sala.»* Depois de ter recuperado a roupa bran

ca e prata dos ArgyU do «tio» — da casa de prego —, era com grande pra

zer que estendia as toalhas de damasco na mesa da casa de jantar. E também

houve celebrações de carácter mais íntimo: poucas semanas depois de se ins

talarem em Grafton Terrace, Jenny ficou grávida pela sétima vez.

As três crianças adoravam a sua nova vida no seio da classe média.

Jennychen e Laura, agora com 12 e 11 anos respectivamente, passaram a fre

quentar o colégio para meninas de South Hampstead, tornando-se dentro

de pouco tempo excelentes alunas em todas as disciplinas. Eleanor, com dois

anos e a quem chamavam Tmsy para rimar com Pussy (gatinha), representava

lindamente o seu papel de minichâtelaine e recebia todas as crianças que dese

jassem visitá-la. Quando estava bom tempo, tomava chá sentada nos degraus

da porta principal antes de ir brincar na rua com as outras meninas. A sua

fama era tal, que a maior parte dos vizinhos tinha alcunhado a família Marx

de os Tussies.

Até mesmo o quintal das traseiras, pouco mais de alguns metros quadra

dos de relva e cascalho, era uma novidade deliciosa. Uma das recordações

da infância de Eleanor é a de Marx transportando-a às cavalitas à volta do

jardim e enfeitando-lhe os caracóis castanhos com flores.

192 \f/-s KARL MARX

«O Mouro era, na opinião de todos, um esplêndido corcel. Nos primei

ros tempos — não me lembro bem, mas ouvi falar deles vezes sem conta

— as minhas irmãs e o meu irmão pequenino — cuja mor te pouco

depois do meu aniversário foi um imenso desgosto para os meus pais —

atrelavam cadeiras ao Mouro, sentavam-se nelas e ele tinha de os puxar. . .

Pessoalmente — talvez por não ter irmãs com a minha idade — pre

feria montá-lo como um cavalo. Sentava-me às suas cavaHtas bem agar

rada à sua crina, a qual era então preta com alguns cabelos grisalhos. Dei

grandes cavalgadas à volta do pequeno jardim e nos campos —- agora

cobertos de construções — que rodeavam a nossa casa. 9

Aos domingos, os Marx e os amigos de visita iam de passeio até Hamps-

tead Heath para fazer um piquenique, frequentemente a sua única refeição

substancial durante toda a semana. Apesar do reduzido orçamento, Lenchen

conseguia normalmente arranjar uma perna de vitela acompanhada de pão,

queijo, camarões e legumes, bem como cerveja comprada na taberna local,

o Castelo, de Jack Straw. Depois do almoço, as crianças iam brincar às escon

didas por entre as moitas enquanto os adultos faziam uma sesta ou liam os

jornais de domingo — no entanto, a exemplo do que acontece com tanta

frequência nos passeios de família, o relutante papá era muitas vezes arras

tado do seu torpor e obrigado a juntar-se à brincadeira dos filhos. «Vamos

ver quem consegue atirar mais castanhas abaixo!», as filhas gritaram um dia,

apontando para o castanheiro carregado de frutos e, durante um hora, ou

duas, Marx bombardeava a árvore até esta ficar completamente nua, fican

do depois incapacitado de mexer o braço direito durante uma semana.

Por vezes, aventuravam-se mais longe, até aos prados verdes e colinas

para lá de Hightgate, à procura de jacintos e malmequeres ignorando alegre

mente os letreiros de «Proibida a Passagem», das propriedades privadas.

Wilhelm Liebknecht, que os acompanhou em várias destas expedições,

admirava-se pela quantidade de flores que cresciam na Primavera no clima

frio e húmido de Inglaterra. «Contemplávamos orgulhosamente dos nossos

prados fragrantes, a poderosa cidade sem limites que se estendia a nossos pés

envolta numa neblina misteriosa», escreveu.

N o caminho de regresso a casa, Marx cantava com as filhas cantigas fol

clóricas alemãs e espirituais negros ou recitava longas passagens de Dante e

Shakespeare. «Julgávamos realmente que vivíamos num castelo encantado,

suspirava Jenny Marx. Mas o encanto dependia de prestidigitações financeiras.

o HERÓI A CAVALO . _ 193

Foi apropriadamente nessa altura que Marx começou a entreter a pequenina

Eleanor com os seus contos de Hans Röckle, o feiticeiro sem dinheiro «que

nunca conseguia cumprir as suas obrigações para com o diabo nem para com

o talho e, por conseguinte, se via constantemente obrigado — apesar do seu

desespero — a vender os brinquedos ao demónio.» A herança de Jenny tinha

sido toda gasta para pagar as dívidas e mobüar a casa, e, uma a uma, as novas

mobílias e a preciosa roupa branca antiga voltaram a ser penhoradas.

«As nuvens que se acumulam por cima do mercado financeiro são deve

ras sombrias», escreveu Engels na própria semana em que os Marx se mu

daram para Grafton Terrace. «Desta vez, haverá uma catástrofe nunca dan

tes vista: toda a indústria europeia em ruínas, todos os mercados com excesso

de stock (já nada é enviado para a índia), todos os proprietários nas lonas, a

burguesia em falência total, guerra e libertinagem até ao último grau. Tam

bém acredito que tudo isso virá a passar-se em 1857 e, quando ouvi dizer que

andavas a comprar de novo mobília, disse para comigo mesmo que a coisa

é certa e aceito apostas. Por hoje, é tudo. Saudades à tua mulher e crian

ças.. .» ' Vistas as circunstâncias, a piada é um pouco insensível.

Assim que se instalou no castelo encantado, Marx apercebeu-se, com

horror, de que não havia dinheiro para a renda. «Aqui estou eu, sem nenhu

mas perspectivas e com crescentes obrigações domésticas, completamente

às aranhas numa casa na qual investi o pouco que possuía e onde é impos

sível viver o dia a dia como fazíamos na rua Dean», escreveu a Engels em

Janeiro de 1857. «Não sei o que fazer e encontro-me numa situação mais

desesperada do que há cinco anos. Julguei que já tinha bebido a amarga taça

da vida até à última gota. Mais non! E o pior é que não se trata de uma sim

ples crise passageira. Não estou a ver como é que vou sair disto.»"

Engels ficou siderado: julgava que, finalmente, tudo estava a correr pelo

melhor — tu a viveres numa casa decente e os teus problemas resolvidos —

mas, afinal, tudo está na mesma.. .»^^ Prometeu enviar cinco libras por mês

mais um suplemento sempre que fosse necessário. «Nem que isso signifique

eu endividar-me. Devias ter-me falado do assunto há duas semanas.» Pois,

como confessou, tinha acabado de comprar um novo cavalo com o dinhei

ro que o pai lhe oferecera no Natal. «Sinto-me muito envergonhado por ter

um cavalo aqui enquanto tu e a tua família estão a atravessar um mau mo

mento em Londres.»

Quem mais sofria com os infortúnios domésticos era Jenny Marx. O ma

rido podia retirar-se para o seu gabinete, barricando-se atrás de livros e jornais;

194''i£,- KARL MARX

e as raparigas distraíam-se com as novas amigas e os deveres escolares. Mas

Jenny não podia refugiar-se em nenhum lado. Sentia a falta das ruas anima

das de West End, dos encontros, dos clubes epubs, e das conversas entre

compatriotas alemães com quem partilhavam a miséria do exílio:

«O acesso à nossa atraente casinha, a qual nos parecia um palácio em

comparação com os sítios em que tínhamos vivido, não era fácil. Não

tinha estrada e havia uma série de construções à volta. Uma pessoa era

obrigada a abrir caminho por entre montes de entulho e, quando chovia,

a lama vermelha colava-se aos sapatos. Chegávamos a casa extenuados

e com os pés pesados. E, além do mais, o bairro era escuro. Por isso, em

vez de termos de enfrentar a escuridão, o entulho e a lama, preferíamos

passar o serão diante da lareira. Passei bastante mal naquele Inverno, sem

pre rodeada de remédios.»"

A 7 de Julho, deu à luz uma criança morta, mas mal teve forças para a

chorar. «Todos os dias me pareciam iguais.» Para além de Grafton Terrace,

o seu único contacto com o mundo era copiar os artigos que Marx escrevia

duas vezes por semana para o Dailj Tribune. Mas, depois, até mesmo isso

acabou. Ao notar que o jornal publicava cada vez menos as suas contribui

ções — e, claro está, ele era pago pelo que era impresso —, Marx entrou em

greve. «É realmente revoltante que uma pessoa seja condenada a conside

rar uma bênção o facto de ser publicado num jornaleco como este», comen

tava, enraivecido. Via-se como um mendigo num hospício a ter de esmiga

lhar ossos para fazer uma sopa.

A sua ameaça de ir trabalhar para outro jornal deu resultado — mas,

apenas, em parte. O director do Tribune, Charles Dana, propôs pagar-lhe uma

coluna por semana quer esta fosse publicado, ou não. «Estão efectivamente

a reduzir a minha colaboração para metade»^*, queixou-se Marx. Como con

cessão, Dana convidou-o então a escrever dois artigos para uma antologia

que iria editar, a New American Cyclopaedia — um sobre grandes generais e

outro sobre a história da guerra. Embora se tratasse de uma tarefa entediante

e mercenária, Marx não se encontrava em posição para recusar os honorá

rios de dois dólares por página.

O pretenso general Engels encarregou-se com prazer da maior parte do

trabalho — dar-lhe-ia uma coisa para fazer à noite, disse — e meteu imedia

tamente mãos à obra: Abensberg, Ajudante, Actium, Alma, Armada, Arti-

o HEROl A CAVALO 195

Iharia... Mas uma crise de febre glandular pô-lo efectivamente fora de com

bate e teve de passar o resto do Verão numas termas de Lancashire apropria

damente chamadas Waterloo. Isto deixou a Marx o espinhoso problema de

ter de explicar a Dana o súbito corte de mantimentos. «O que é que eu vou

dizer-lhe?», gemeu. «Na medida em que continuo a enviar artigos para o

Tribune, não me posso desculpar que estou doente. É uma situação levada da

breca.»" Tentou ganhar tempo fingindo que a remessa se perdera nos cor

reios.

A revolta dos cipaios contra o domínio britânico na índia veio aumen

tar ainda mais os seus problemas, pois o jornal esperava, muito naturalmente,

que o seu perito em assuntos políticos lhes enviasse uma minuciosa análise

da situação. Felizmente, Marx tinha aprendido suficientes manhas com o

falecido Musch para resolver a questão. «Quanto ao caso de DeU», confessou

confidencialmente a Engels, «parece-me que os ingleses terão de retirar logo

que as monções começarem. Sendo obrigado, nas presentes circunstâncias,

a substituir-te como correspondente militar do Tribune, decidi adiantar essa

teoria... É muito possível que seja uma burrice e, assim, formulei a ideia de

modo a poder safar-me com um pouco de dialéctica.»^'' E m Setembro, Engels

sentiu-se suficientemente bem para poder continuar com a enciclopédia e

enviou uma torrente de artigos da ilha de Wight onde estava em convales

cença — sobre Batalhas, Baterias, Blücher e muito mais. Ao visitar Jérsia em

Outubro, passou para a letra seguinte do alfabeto, começando com Canhões.

Podiam Campanha e Cavalaria seguir em breve?

Tal produtividade foi, contudo, interrompida pela mais gloriosa notícia

imaginável: o cataclismo internacional financeiro tinha, finalmente, começa

do. A falência de um banco em Nova Iorque tinha espalhado a crise através

da Austria, Alemanha, França e Inglaterra como uma apocalipse galopante.

Engels voltou apressadamente a Manchester em meados de Novembro para

assistir ao espectáculo —• preços em queda livre, falências e pânico. «O as

pecto geral da Bolsa (de algodão) aqui foi deliciosa», disse a Marx. «Os meus

colegas estão furiosos pela minha súbita e inexplicável boa disposição.»"

O dono de uma fábrica já tinha vendido todos os cavalos e galgos, despe

dido a criadagem e posto a sua mansão para alugar. «Mais duas semanas e

a crise atingirá o seu apogeu.»'**

Seguir-se-ia imediatamente a revolução? Engels duvidava: após um lon

go período de prosperidade, os trabalhadores mostravam-se bastante letárgi

cos. Mas tanto melhor, pois os futuros líderes das massas deviam, primeiro.

1 9 6 « ^ KARL MARX J

preparar-se para o combate. Segundo a visão de Engels, seria ele mesmo quem

comandaria o exército insurrecto para esmagar toda a resistência burguesa

— com cargas de cavalaria através das ruas de Manchester e Berlim —

enquanto Marx dirigiria a facção civil da campanha, elucidando o proleta

riado quanto aos mistérios da economia política. «É um caso de fazer ou

morrer», anunciou Engels, afivelando as esporas. «Isto vai servir para pôr em

prática os meus estudos militares. Vou apresentar sem demora a minha

candidatura às escolas de táctica elementar dos exércitos austríacos, bávaros,

franceses e prussianos e, à parte isso, dedicar-me exclusivamente a montar

a cavalo e à caça à raposa, a melhor de todas as escolas.»^'

Enquan to bebericavam os seus cocktails, os membros do clube de

Cheshire Hunt estavam longe de imaginar que o encantador Sr. Engels es

tava secretamente a preparar-se para vir a ser o Napoleão do Noroeste da In

glaterra. Mas Engels estava a falar muito a sério: «Afinal de contas, queremos

ensinar umas coisas à cavalaria prussiana quando voltarmos à Alemanha. Vai

ser difícil a esses cavalheiros competir comigo, porque já tenho muita prá

tica e faço progressos todos os dias . . . Ando agora a preparar-me para

montar em terreno acidentado; é bastante difícil.»^*' A equitação, julgava ele,

era a «base material» do sucesso militar. Por que é que o malvado Luís Bona

parte era considerado um herói pela pequena burguesia francesa? «Porque

monta com muita elegância.» Estes comentários deviam irritar imenso Marx,

cuja falta de jeito para montar — demonstrada nos passeios domingueiros

de burro em Hampstead Heath — era uma piada de família.

N o fim de Dezembro, os constantes treinos de Engels tinham transforma

do o comerciante de algodão num impetuoso cavaleiro. «Fui a uma caçada à

raposa no sábado — sete horas na sela», escreveu, ofegante, na véspera do

Ano Novo. «Este tipo de exercícios deixa-me num estado de diabólica ex

citação durante dias; é o maior prazer físico que conheço. Apenas duas outras

pessoas, mais bem montadas, eram melhores cavaleiros do que eu. Pelo

menos 20 tipos caíram, dois cavalos rebentaram e matámos uma raposa

(numa acção em que eu estive presente).. . E, agora. Feliz Ano Novo para

toda a tua família e um Bom Ano de combate em 1858.»

Marx, sem estar lá muito convencido de que tudo isto servia para gran

de coisa, perguntava-se como é que iria ganhar mais dólares com a Ciclopae-

dia, enquanto o seu co-autor andava a saltar fossas e sebes. Elstava cheio de

dívidas e os credores andavam novamente a ameaçá-lo. «Não mencionei an

tes o assunto porque a última coisa que desejo é prejudicar a tua saúde».

o HERÓI A CAVALO « * ^ 197

sugeriu amavelmente. «Mas, às vezes, parece-me que, se conseguisses escre

ver um pouco todos os dois dias talvez te acalmasses.»^' Engels recusou:

como é que podia 1er, ou escrever, com a cabeça cheia de visões de «ruína

geral»? Marx acusou o toque. Apesar de todos os seus protestos quanto à

necessidade de ganhar a vida, também ele se sentia contagiado pelo espíri

to melodramático daquele momento . Aceitava o facto do destino o ter

nomeado principal teórico da revolução. Fortificado por «uma simples limo

nada numa mão e uma enorme quantidade de tabaco na outra», sentava-se

no seu gabinete todas as noite do longo Inverno de 1857-58, até às quatro

da madrugada, debruçado sobre os seus estudos de economia «para, pelo

menos, definir as suas linhas gerais antes do déluge.yp-

O dilúvio, porém, nunca veio: as sombrias nuvens tempestuosas eram

apenas anunciadoras de aguaceiros. Mas Marx continuou a construir a sua

de arca, convencido de que, mais cedo ou mais tarde, a terra seria inunda

da. Quando a aritmética escolar se mostrou inadequada para resolver fórmu

las económicas complexas, tirou um curso de álgebra à pressa. Como ele

mesmo explicou, «é essencial tratar a fundo desta matéria para benefício do

público»"\ E, realmente, aquelas suas anotações nocturnas encheram mais

de 800 páginas, as quais só foram tornadas públicas pelo Instituto Engels-

-Marx em 1939 e finalmente publicadas por uma editora alemã em 1953 sob

o ü'tulo Grundrisse der Kritik derPolitischen Oekonomie. A primeira edição inglesa

apareceu 20 anos mais tarde, em 1971.

Grudrisse — nome pelo qual é geralmente conhecida — é uma obra frag

mentária e, por vezes, incoerente e foi descrita pelo próprio Marx como uma

autêntica salgalhada. Mas, como elo de ligação dos Manuscritos Hconómicos e

Filosóficos (1844) com o primeiro volume de O Capital{y 867), dissipa a comum

concepção falsa de que há uma espécie de «ruptura radicab> entre o jovem

e o velho Marx. O vinho pode amadurecer e melhorar engarrafado, mas con

tinua a ser vinho. Há extensas secções sobre a alienação, a dialéctica e o sig

nificado do dinheiro que retomam o que ele omitiu nos manuscritos de Paris,

sendo a diferença mais impressionante o facto de ele, agora, misturar a eco

nomia e a filosofia enquanto, dantes, estas eram tratadas em separado. (Ci

tando Lassalle, ele expôs isto como «um Hegel economista e um Ricardo

socialista».) De resto, a análise do poder laboral e do valor excedentário

antecipa a exposição mais completa destas teorias em O Capitai

Propõe, na primeira página, que o material de produção — «os indivíduos

produzindo em sociedade» — deveriam constituir a base de qualquer inqué-

198 ^ B KARL MARX

rito sério à história económica. «O caçador ou o pescador individual e iso

lado, que constitui o ponto de partida de Smith, ou Ricardo, pertence ãs

insípidas ilusões do século XVIII.» Os seres humanos são animais sociais, e

a crença de que a «produção» começa com pioneiros solitários agindo de for

ma independente «é tão absurda como a ideia do desenvolvimento da lingua

gem sem indivíduos a viver juntos e a falar uns com os outros».

Os subtítolos da introdução — A 'Relação Geral da Produção com Distribui

ção, Troca e Consumo, O Método da Economia Politica, etc. — dão a impressão de

que se trata de um trabalho rigorosamente esquemático. Mas Marx nunca

consegue cingir-se a um programa determinado durante muito tempo e,

muito em breve, começa a entrar em digressões e rodeios pitorescos. Na suas

notas quanto à relação entre a produção e o desenvolvimento geral da so

ciedade em qualquer altura dada, faz subitamente uma pausa para divagar

sobre a persistente atracção dos artefactos culturais. Porque ainda damos

valor ao Partenon, ou à Odisseia, muito embora a mitologia de onde provêm

nos seja, agora, totalmente alheia?

«É a perspectiva da natureza e das relações sociais que deram forma

à arte e imaginação gregas possível na época das máquinas automáticas,

caminhos-de-ferro e telégrafos? Onde figura Vulcano em comparação

com Roberts & Company? Júpiter em comparação com o pára-raios...

É a Iliada compatível com a prensa tipográfica e até mesmo as máquinas

de impressão? O canto, a recitação e as musas, bem como, por conse

guinte, os requisitos indispensáveis da poesia épica, não desaparecem ne

cessariamente com o aparecimento do tipógrafo?»

Pelos vistos, não: Marx escrevia apenas uns anos antes de Alfred Ten

nyson ser laureado como poeta e de o seu Ulisses se tornar num dos poemas

mais populares da nossa época. Porquê, então, a estética da Grécia antiga

continua a ser não apenas uma fonte de prazer, mas também o padrão, ou

modelo, aspirado por tantos artistas e escritores vitorianos?

Excelente pergunta — mas a breve resposta de Marx mal lhe fez justiça.

Embora nenhum homem possa tornar-se uma criança, escreveu, «não apre

cia ele as maneiras naturais das crianças e não tem ele de se esforçar para

reproduzir a verdade num plano mais elevado?» Similarmente, «porque não

deveria exercer encanto a infância da sociedade humana, quando os mais

belos feitos foram alcançados, como a época que nunca mais há-de voltar?»

o HERÓI A CAVALO < * ^ 199

Talvez Marx estivesse a pensar nos seus jogos com as meninas em Hamps-

tead Heath: no interior daquele corpo de 39 anos, prematuramente envelhe

cido, havia um adolescente a esbracejar e a pedir para sair. Por vezes, quan

do observava as crianças a brincar, ansiava juntar-se a elas para clarear o

espírito de todas as misérias acumuladas.

A maior dor de cabeça de todas era a que ele denominava «a merda eco

nómica». Já em 1845, tinha declarado que o seu tratado sobre economia

política estava quase terminado, e no decorrer dos 13 anos seguintes embele

zou e repetiu tantas vezes a mentira que as expectativas dos amigos atingi

ram um clímax impossível. A avaliar pelo tempo que demorou, raciocinaram

eles, deve tratar-se realmente de um magnum opus explosivo que iria fazer

desabar os edifícios, sem alicerces, do capitalismo — as torres que chegavam

às nuvens, os magníficos palácios, os templos solenes, o próprio globo

imenso — sem nada deixar de pé. Tal pretensão foi mantida através de

boletins enviados regularmente de Londres a Manchester a confirmar os seu

progressos na redacção da obra. «Demoli completamente a teoria do lucro

como até agora tem sido formulada», informou triunfalmente a Engels, em

Janeiro de 1858. Mas tudo o que ele tinha para mostrar depois de todos

aqueles longos dia no Museu Britânico e noites ainda mais longas à secre

tária era uma pilha de livros de apontamentos por publicar cheios de gara

tujas redigidas ao acaso.

A publicação no final daquele mês do novo livro de Ferdinand Lassalle

sobre a filosofia de Heraclito — um calhamaço de dois volumes — fê-lo mais

consciente da sua incapacidade em concluir o seu trabalho. Como tinha

Lassalle, que se dizia Hder do socialismo alemão, arranjado tempo para ter

minar uma obra filosófica tão volumosa? Marx lidou com a sua consciência

culpada depreciando o feito de Lassalle e assegurando a Engels que o livro

sobre Heraclito era «uma confecção muito imbecü». É verdade que demons

trava grande erudição — mas «desde que uma pessoa tenha tempo e dinhei

ro, e, como no caso do Sr. Lassalle, a possibilidade de lhe levarem a biblio

teca da universidade de Bona a casa, é bastante fácu reunir uma tal quantidade

de citações. Nota-se que ele se julga muito importante. . . Uma palavra em

duas é uma asneira e extremamente pretensiosa».^'^

Lassalle era sete anos mais novo que Marx e embora tivessem muita coisa

em comum — eram ambos burgueses judeus alemães, desmamados de

Heine e Hegel, com um fraco por mulheres aristocratas —, o contraste em

termos de sorte era dolorosamente nítido. Quando ainda era estudante de

2 0 0 ' ^ ^ KARL MARX

filosofia, Lassalle tinha tomado vigorosamente a defesa da condessa Von

Hatzfeldt que estava a contestar uma famosa acção de divórcio. Parecia uma

heroína pouco provável da causa socialista, mas, para este jovem dogmático,

a situação desesperada dela constituía a prova da velhacaria das classes altas:

o conde roubara efectivamente o dote da mulher, mas, segundo as leis ale

mãs da altura, ela tinha poucas possibilidades de o reaver. Lassalle envol-

veu-se no caso com total desrespeito por questões legais — subornando

testemunhas, sonegando documentos — até, após dez anos de dúzias de

processos, o marido exausto acabou por devolver o produto do saque.

A recompensa que Lassalle recebeu fez a sua fortuna: instalou-se num pa

lacete em Berlim decorado no mais exótico e luxuoso estilo; o seu cama

rote na ópera ficava ao lado do rei e em nada lhe era inferior. Até mesmo

Bismark, que sabia reconhecer um homem bem fadado logo que via um,

vinha cumprimentá-lo.

Não é portanto de admirar que alguns dos trabalhadores que Lassalle

dizia representar não confiassem nas suas intenções — além de se mostra

rem perplexos pelo apoio aparente que Marx lhe dava. Na Primavera de 1856,

os comunistas de Düsseldorf enviaram um emissário a Londres, um certo

Gustav Lewy, na esperança de convencer Marx a cortar relações com

Lassalle. Durante um semana inteira, Lewy regalou o seu anfitrião com his

tórias sobre as traficâncias, oportunismo e ambição ditatorial de Lassalle.

«Lassalle parece ver-se de uma maneira completamente diferente de como

nós o vemos a ele», escreveu Marx a Engels imediatamente depois desse

encontro. «Apesar dos meus preconceitos em favor de Lassalle e da minha

desconfiança em relação aos mexericos dos trabalhadores, tudo isto causou

uma profunda impressão sobre mim e Freiligrath. Disse porém a Lewy que

era impossível chegar a uma conclusão baseando-me nas informações de um

único lado.»^^

Não era comum para Marx dar o benefício da dúvida a alguém, mas

Lassalle não era qualquer um. Ficara muito impressionado pelo seu entusias

mo e ousadia quando se tinham encontrado pela primeira vez na Alemanha

durante a revolução de 48 e, embora a sua amizade desde então fosse pura

mente epistolar, nada tinha ouvido que o fizesse rever a sua opinião. Talvez

Lassalle fosse um tirano potencial, como Lewy o preveniu, um megalómano

perigoso, pronto a esmagar os trabalhadores e a formar alianças com o ab

solutismo prussiano para conquistar o poder; mas tal nunca transparecera,

conmdo, nas cartas que ele lhe tinha escrito. Até mesmo no apogeu da fama

o HERÓI A CAVALO .„ 201

Lassalle manteve-se leal ao seu camarada indigente de Londres — louvando as suas ideias, encorajando-o a terminar o seu livro e enviando ocasionais doações. Deveria repudiar um benfeitor tão generoso simplesmente por causa de mexericos dos trabalhadores? O único conselho de Marx a Lewy e ao comunistas de Düsseldorf foi que «deveriam continuar a mantê-lo debaixo de olho e evitar, por enquanto, qualquer querela pública».

Por volta da Primavera de 1858, Marx teve outro motivo para evitar «qualquer querela púbHca»: Lassalle propunha arranjar-lhe um contrato com um editor de Berlim, Franz Duncker (cuja mulher era amante de Lassalle). Embora dissesse mal do livro sobre Heraclito na sua correspondência privada com Engels, transmitia ao autor um veredicto completamente diferente: «Percorri atentamente o seu Heraclito. A sua reconstrução a partir de fragmentos é brilhante e fiquei igualmente impressionado pela perspicácia dos seus argumentos... Não compreendo como é que arranjou tempo no meio de todos os seus fazeres para conhecer tão bem a filologia grega.»^*" E, depois de dar estas pouco sinceras felicitações, descreve a estriitura do seu próprio trabalho em curso.

«Estou presentemente a redigir uma crítica das categorias económicas ou, se preferir, a fazer uma exposição crítica do sistema da economia burguesa. .. A ser repartida em seis volumes: 1, O Capital (com alguns capítulos introdutórios); 2. A propriedade latifundiária; 3. A mão-de-obra; 4. O Estado; 5. O comércio internacional; 6. O mercado mundial.»^''

Marx desejava que esta obra fosse publicada em fascículos. O primeiro volume — sobre o capital, a competição e o crédito — estaria pronto para ser impresso em Maio, o segundo alguns meses mais tarde e assim sucessivamente.

Os prazos eram bastante apertados e, como acontecia com frequência quando ele se sentia pressionado, o seu organismo revoltou-se. «Tenho andado tão doente esta semana por causa do fígado que me sinto incapaz de pensar, 1er, escrever ou fazer o que quer que seja», disse a Engels a de 2 de Abril. «O meu mal-estar é desastroso pois, até me sentir melhor e os dedos recuperarem a força, não consigo trabalhar no livro para Duncker.» E passou o resto do mês sem escrever uma linha. «Nunca tinha tido uma crise de fígado tão violenta. Cheguei a temer que se tratasse de esclerose... Sempre que me sento e escrevo um par de horas, tenho depois de ficar deitado durante dois dias.»

2 0 2 ^ . KARL MARX

Era um queixume famiUar. «Estamos tão acostumados a estas desculpas

por o trabalho não ser concluído!», comentou Engels muitas vezes ao reler

algumas das cartas de Marx. «Sempre que a sua saúde o impedia de continuar,

ficava muito deprimido e tentava encontrar uma desculpa teórica para jus

tificar o não cumprimento da tarefa que tinha entre mãos.»^^ Uma tal decla

ração assume que a saúde dele sabotava o seu trabalho, mas pode-se argu

mentar que o que se passava era exactamente o contrário. Embora as maleitas

de Marx fossem autênticas, existia indubitavelmente um factor psicosso

mático. Como ele mesmo admitia, «a minha doença tem sempre origem no

meu espírito».^'''

N o Verão de 1851, quando começou a escrever regularmente para o New

York Daily Tribune, sentiu-se imediatamente doente e suplicou a Engels que

o substituísse. Uns meses mais tarde, quando Weydemeyer lhe pediu uma

contribuição para o jornal que publicava. Die 'Revolution, ficou de cama uma

semana. N o Verão de 1857, quando a pobreza o obrigou a trabalhar para a

enciclopédia americana, teve problemas de fígado durante três semanas. E,

agora, que LassaUe e Duncker lhe pediam o envio do manuscrito, qualquer

pessoa que conhecesse Marx adivinharia a reacção dele. Jenny, por exemplo,

não ficou nada surpreendida pelo repentino ataque de bílis. E m Abril de

1858, altura em que Marx estava tão doente que nem conseguia escrever uma

carta, ela contou a Engels que «o facto de ele ter piorado deve-se, em gran

de parte, à sua inquietação mental que, agora, depois de ter assinado o con

trato com o editor, é maior e aumenta todos os dias, pois sente-se incapaz

de terminar o trabalho».^*^

Pouco depois, Marx passou uma semana em Manchester, onde Engels

lhe receitou o seu remédio favorito: exercícios equestres. «O Mouro andou

hoje a passear a cavalo durante duas horas», revelou Engels a Jenny num bo

letim médico, «e sente-se tão bem que está todo entusiasmado.»^^ Mas, as

sim que regressou à sua secretária em Grafton Terrace, todos as antigas an

siedades voltaram-lhe a cair em cima.

Marx era muito irrequieto, sempre à procura de qualquer coisa ou a andar

de um lado para o outro no seu gabinete. (Uma parte da carpete entre a porta

e a janela estava tão bem assinalada como um atalho através de um prado.) Já

em Agosto de 1846, quando a sua «merda económica» já deveria ter sido en

tregue a outro editor alemão, ele expMcou o atraso da seguinte maneira: «Como

o manuscrito do primeiro volume está aqui a apanhar poeira há tanto tem

po, não quero que seja publicado antes de o rever novamente tanto no que

o HERÓI A CAVALO ^ 1 2 0 3

respeita o conteúdo como o estüo. Escusado será dizer que um escritor que trabalha constantemente não pode publicar, palavra por palavra, o que escreveu há seis meses.»^^ Muitos autores conhecem este síndrome — o temor de deixar finalmente um navio ser lançado à água sem lhe passar outra camada de tinta ou apertar mais uns parafiasos. No Verão de 1846, pensava que levaria cerca de seis meses para dar os retoques finais. «A versão revista do primeiro volume estará pronta para publicação no fim do mês de Novembro. O segundo volume, de natureza mais histórica, será entregue pouco tempo depois.»

Uma década mais tarde, a arca de Marx ainda se encontra na doca seca. «Há já alguns meses que trabalho na fase final da minha economia poKtica», escreveu a Lassalle em fins de Fevereiro. «Mas avanço muito lentamente porque assim que me debruço sobre temas a que dediquei anos de estudo, novos aspectos que exigem uma maior reflexão começam a surgir.»^^ Enquanto faltasse uma fonte a consultar, ou um tratado a ser lido — o que estava sempre a acontecer —, não permitia que o manuscrito fosse entregue ao editor.

E, claro está, tinha de debater-se contra os outros inimigos de promessas — a doença, a pobreza e os deveres domésticos. Eleanor adoeceu com tosse convulsa; Jenny estava «uma puha de nervos»; o talho, a casa de prego e demais credores exigiam pagamento. Como Marx brincava lugubremente, «não creio que ninguém tão teso tenha alguma vez escrito sobre dinheiro» ' . A patinhar num charco de vexames, quase nada escreveu ao longo desse Verão; no final de Setembro, clamou que o manuscrito estaria pronto «em duas semanas, mas, um mês mais tarde», admitiu que «só daqui a várias semanas poderei mandá-lo»^^. Tudo parecia conspirar contra ele: a crise económica mundial, tão alegremente esperada, tinha-se desvanecido demasiado depressa e Marx, de «muito mau humor» por causa disso, sofria as consequências físicas previsíveis — «uma dor de dentes horrível e aftas em toda a boca». '

Em meados de Novembro, seis meses depois do prazo previsto, o editor de Berlim começou a perguntar-se se o Hvro não seria uma quimera. Com enorme lata, Marx explicou a Lassalle que aquela delonga «devia-se simplesmente ao esforço para lhe entregar (a Duncker) um manuscrito de valor superior à soma que ele pagara». Como assim?

«O que me preocupava era a forma. O estilo de tudo o que escrevera parecia-me influenciado pelas crises de fígado e eu tinha dois rríotivos para não querer que este trabalho fosse sabotado:

204 » 4 10\RL MARX

1. É o resultado de 15 anos de investigação, os melhores anos da

minha vida.

2. Trata-se de urna perspectiva importante das relações sociais que é aqui

cientificamente exposta pela primeira vez. Devo, assim, ao Partido não dei

xar que, por razões de saúde, o estilo do meu trabalho seja desfigurado...

Comecei agora mesmo a escrevê-lo e deve estar terminado dentro de

quatro semanas.»^^

Só agora começava! Isto deve ter causado um choque bastante grande a

Lassalle e a Duncker, os quais tinham sido informados por Marx, em Feve

reiro, que o texto estava na «fase final». N o entanto, se a obra fosse realmente

tão densa e profunda como Marx assegurava, valia a pena esperar.

A medida que o Natal se aproximava, a casa de Grafton Terrace parecia

cada vez mais desoladora. Ocupada a copiar o manuscrito de Karl entre idas

à casa de prego e respostas às cartas dos credores que chegavam diariamente,

Jenny não tinha tempo para organizar uma festa para as crianças. «A minha

mulher tem razão quando diz que, depois de toda a misère por que teve de

passar, a revolução ainda há-de tornar as coisas piores e dar-lhe a satisfação

de ver todos os charlatães daqui a celebrar novamente a vitória», observou

Marx. «As mulheres são assim, 38

; O livro ficou pronto em finais de Janeiro — mas ele não rinha um tos

tão para os selos nem para o seguro. Após ter arranjado as duas libras neces

sárias, Engels foi recompensado por uma espantosa e horrível notícia: «O

manuscrito tem cerca de 192 páginas e — não te incomodes por isso —

embora se intitule Capital, nada ainda é mencionado sobre esse tópico.»-'''

Engels deve ter suspeitado que se passava qualquer coisa: de forma pouco

característica, Marx tinha recusado mostrar-lhe o que quer que fosse do

trabalho em curso. Depois de tantos anos de gabarolice, era um grande

desapontamento. A montanha tinha parido um rato. Metade deste modes

to volume pouco mais era do que um resumo crítico das teorias de outros

economistas, e a única parte com algum interesse era um prefácio autobio

gráfico descrevendo como ele tinha chegado à conclusão de que «a anato

mia da sociedade civil se encontra na economia poKtica», através da leitura

de Hegel e os anos que passara como jornalista no Rheinische Zeitung.

«O resultado geral a que cheguei e que serviu de fio condutor para os

meus estudos, pode ser brevemente formulado como se segue. Na pro-

o HERÓI A CAVALO . 205

dução social da sua vida, os homens entraram em relações determinadas

que são indispensáveis e independentes da sua vontade, relações de pro

dução que correspondem a uma fase definida de desenvolvimento das

suas forças materiais de produção. A soma total destas relações consti

tui a estrutura económica da sociedade, a verdadeira base sobre a qual a

superstrutura legal e política é construída e à qual correspondem formas

precisas da consciência social. O modo de produção da vida material

condiciona o processo social, poHtico e intelectual em geral. Não é a cons

ciência dos homens que determina o seu ser, mas, pelo contrário, o seu

ser social que determina a sua consciência. »^«

A uma dada fase de desenvolvimentos, estas «relações materiais» tornam-

-se intoleravelmente restritivas e inicia-se, deste modo, uma época de revo

lução social na qual toda a imensa «superstrutura» da consciência — legal,

política, religiosa e estética — se funde tão rapidamente como flocos de neve

numa manhã invernosa de sol. Isso tinha acontecido em todos os modos de

produção anteriores, do asiático ao feudal, e também seria certamente o

destino da tirania burguesa moderna. Mas havia uma diferença: «As relações

burguesas de produção são a última forma antagónica do processo social de

produção — antagónica não no sentido de antagonismo individual mas

resultante das condições sociais da vida dos indivíduos; ao mesmo tempo,

as forças produtivas que se desenvolvem no útero da sociedade burguesa

criam as condições materiais para a solução desse antagonismo. Esta forma

ção social põe fim, por conseguinte, à pré-história da sociedade humana.»

Um «por conseguinte» bastante extravagante, diga-se de passagem. Só

estes parágrafos deram azo a uma inteira indústria de controvérsia, na qual

filósofos marxistas discutem uns com os outros sobre o significado preci

so de «base e superstrutura», enquanto os cépticos se perguntam porquê o

capitalismo vitoriano deve necessariamente ser a última forma de produção

antagonista antes do aparecimento de um estado de nirvana comunista. Não

pode a sociedade burguesa transformar-se simplesmente numa versão mais

contrastada, embora mais subtil, de si mesma, com instrumentos de tortu

ra mais sofisticados e justificações mais persuasivas para a sua hegemonia?

Uma Contribuição para a Crítica da Hconomia Política, como Marx lhe chamou,

dava muito que pensar — mas pouco para satisfazer a fome dos seus admi

radores. A data de publicação aproximava-se e ele continuava a apregoar que

o livro seria admirado e traduzido em todo o mundo civilizado. Mas o seu

206 ;;> KARL MARX

organismo não se deixou enganar: em meados de Julho de 1859, pouco

depois das provas finais terem chegado a Londres, foi «contaminado por uma

espécie de cólera devido ao calor e vomitava de manhã à noite»'*^ Não era de

admirar. A reacção dos amigos, quando, finalmente, tiveram a oportunidade

de 1er a obra há tanto tempo prometida, foi de consternação. E Wilhelm Lieb

knecht chegou a afirmar que «nunca um livro o tinha desapontado tanto».

Não houve publicidade e as críticas foram poucas: a bomba explosiva não

passava de um foguete. «A secreta esperança que todos nós alimentámos em

relação ao Uvro de Karl foi reduzida a nada pela conspiração de silêncio dos

alemães, o qual só foi quebrado por um par de miseráveis artigos à& feuilleton

que se Umitaram a falar do prefácio e a ignorar o conteúdo do Hvro» quei-

xou-se Jenny no fim do ano. «Esperemos que o segundo volume desperte

os críticos da sua letargia.. .»" ^

Ah, pois . . . o segundo volume — devido poucos meses depois do pri

meiro ou, pelo menos, assim tinha prometido o autor. Marx ajustou ligeira

mente os prazos, impondo o mês de Dezembro de 1859 como «data-limite»

para completar a sua tese sobre o capital, tópico que fora tão excentricamente

omitido do primeiro volume. Aqueles que conheciam os hábitos de traba

lho de Marx teriam imediatamente predito que ele não cumpriria o plano —

e, claro está, durante o ano seguinte os seus Uvros de apontamentos sobre

economia permaneceram fechados em cima da secretária, enquanto ele se

distraía com uma espectacular e fútil disputa contra um certo Karl Vogt,

professor de Ciências Naturais na Universidade de Berna.

A causa deste absurdo interludio foi uma observação acidental proferi

da pelo escritor radical Karl Blind que participava, juntamente com Marx,

numa manifestação anti-russa organizada pelos urquhartistas em Maio de

1859. Assim que dois ou três socialistas alemães se juntavam, era quase certo

que começavam logo a falar mal de outros refugiados e, nessa ocasião, BHnd

mencionou que Karl Vogt — antigo membro liberal da assembleia de Frank

furt agora exilado na Suíça — andava a receber dinheiro de Napoleão III às

escondidas.

Como Vogt tinha recentemente escrito um panfleto político favorável à

causa bonapartista, Marx achou este mexerico suficientemente interessan

te para o passar ao jornalista Elard Biskamp, o qual o publicou prontamen

te no seu novo semanário londrino. Das Volk. Entretanto, Blind escreveu um

folheto anónimo repet indo a acusação que foi transcrito no Augsburg

o HERÓI A CAVALO « ^ ^ 2 0 7

Allgemeine Zeitung, um respeitável jornal alemão. Vogt, assumindo erronea

mente que Marx era o autor, processou o jornal — enquanto o homem res

ponsável por aquela confusão. Blind, entrou em pânico e recusou testemu

nhar, dizendo que o folheto nada tinha a ver com ele. Embora o caso fosse

arquivado, Vogt reivindicou uma vitória moral, pois a defesa não consegui

ra provar as suas alegações. (Documentos encontrados nos arquivos fran

ceses anos mais tarde provavam que ele tinha de facto recebido dinheiro de

Bonaparte.)

Isto podia ter ficado por aqui, mas Vogt decidiu vangloriar-se do seu su

cesso num pequeno livro intitulado Mein Process gegen die Allgemeine Zeitung

(O Meu Processo Jurídico contra o Allgemeine Zeitung, no qual denunciava Marx

como sendo um charlatão revolucionario que explorava os trabalhadores e

se dava com a aristocracia. E também o identificava como líder de um «bando

de Brimstone», que chantageava os comunistas alemães ameaçando-os

denunciá-los se não lhes dessem dinheiro. As inúmeras páginas de provas a

apoiar as suas acusações incluíam uma carta particularmente importuna de

Gustav Techow, ex-oficial da campanha de Baden, que descrevia uma reu

nião da Liga Comunista pouco depois da sua chegada a Londres em 1850:

«Primeiro bebemos vinho do Porto, depois clarete (Bordeaux unto) e,

a seguir, champanhe. Depois do vinho tinto, ele (Marx) ficou completa

mente embriagado. Era exactamente o que eu queria, pois ele estaria,

assim, mais aberto. Fui elucidado sobre muitas coisas, as quais, até ali,

tinham sidomeras suposições. Apesar do seu estado, Marx dominou a

conversa até ao último momento.

Deu-me a impressão de não só possuir rara superioridade intelec

tual como também uma personalidade fora de comum. Se tivesse tanto

coração quanto intelecto e tanto amor quanto ódio, estaria disposto a

sacrificar-me por ele. E isto apesar de, por vezes, me ter dado a enten

der que sentia desprezo por mim, o que acabou por manifestar aberta

mente no fim. É o primeiro e o único entre todos nós a demonstrar

capacidade de liderança, mas, ao tratar de assuntos importantes, perde

tempo com ninharias.

Dado os nossos objectivos, lamento que este homem, possuidor de

um grande intelecto, não tenha nobreza de alma. Estou convencido de

que a sua perigosa ambição pessoal devorou tudo o que havia de bom

nele. Assim como se ri dos comunistas à la Willich e da burguesia, troça

208 < ^ I<J\RLMARX

igualmente dos imbecis que repetem o seu catecismo proletário. As únicas

pessoas que respeita são o aristocratas, os genuínos, aqueles que têm

consciência de o ser, e moldou o seu sistema aos interesses do proleta

riado, porque só neles encontra apoio para os expulsar do Governo. Fui-

-me embora com a impressão de que a finalidade de todos os seus esfor

ços era adquirir poder pessoal.

Engels e os seus velhos associados, apesar dos seus inúmeros talen

tos, não lhe chegam aos calcanhares. E se, um dia, eles ousassem esque-

cer-se disso, Marx pô-los-ia imediatamente no seu lugar com um desca

ramento digno de Napoleão.»'*^

Apesar de alguns críticos modernos acharem este retrato «mais do que

credível», como aconteceu com Karl Vogt, trata-se de uma caricatura grosseira.

Marx pode ter-se sentido orgulhoso da nobreza nata de Jenny, mas não exis

tem provas de que ele admirasse a aristocracia como classe social. Tinha mais

respeito pela burguesia, como o provou no Manifesto Comunista com a Krica

celebração dos feitos progressistas do capitalismo. E a representação de Engels

como mero subordinado é ridícula. N o entanto, a descrição do estilo domi

nador de Marx é suficientemente verosímil para prejudicar a sua reputação.

O livro de Vogt alcançou imediatamente um grande sucesso na Alema

nha, mas era difícil de encontrar em Londres. Durante algumas semanas,

Marx dependeu do que se contava sobre a «horrível virulência» e «calúnias

absurdas» incluídas nas suas páginas. «Escusado será dizer que ocultei este

assunto mesquinho da minha mulher», apressou-se a avisar Engels. «Mas ela

depressa se deu conta de tudo.» Em fins de Janeiro de 1860, o National-Zeitung

de Berlim publicou um longo artigo sobre a acusação de Vogt, confirman

do a suspeita de Marx que ele «está obviamente a tentar fazer-me passar por

um canalha burguês insignificante e velhaco»; e iniciou um processo por

difamação contra o jornal. Quando o Hvro chegou a 13 de Fevereiro, encon

trou «apenas merda, pura trampa».

Defender a sua honra iria ser dispendioso. Só os selos custaram várias

libras, pois enviou dúzias de cartas a convidar vários camaradas — alguns

dos quais não via desde 1848 — para servir de testemunhas da sua idonei

dade moral. Teve de dar um sinal de 15 táleres a um advogado de Berlim,

J. M. Weber, que tinha contratado, e pagar a um funcionário da Embaixada

austríaca, «esse filho da mãe do Zimmerman», que tratara da procuração a

Weber. «Deves ter percebido pelo o que disse antes que fiquei sem um tos-

o HERÓI A CAVALO Í3«:: « 209

tão», disse a Engels. Chegou a pedir uma libra emprestada ao padeiro —

gesto saborosamente irónico da parte de um homem refutando a insinua

ção que ele explorava os trabalhadores.

O processo poderia não lhe ter custado nada se, em vez de intentar um

processo particular por difamação, ele tivesse utilizados os serviços do pro

curador prussiano, mas Marx duvidava que esse cavalheiro «mostrasse um

zelo especial na defesa da honra do meu nome». E tinha toda a razão: sem

Marx ter conhecimento, o advogado dele tinha tentado essa abordagem e

fora informado que o caso não servia nenhum interesse púbuco. Tentou levar

a cabo um processo civil, mas isso foi igualmente rejeitado (a 5 de Junho de

1860) pois, segundo a decisão do tribunal, os artigos do Natíonal-Zeitungm&o

excediam os limites da crítica legítima» e não tinham «a intenção de insultar».

(«Como a história do turco que cortou a cabeça de um grego sem intenção

de o magoar», resmungou Marx).

Muito bem: haveria então de encontrar outra maneira de se vingar. A única

surpresa é que ele não tenha desafiado Voigt para um duelo: ou foi o preço

da viagem à Suíça que o dissuadiu ou, então, começava a sentir o peso da

idade. Refugiou-se no seu gabinete e redigiu um vociferante contra-ataque

que, tanto em tamanho quanto em ferocidade, excedia de longe o panfleto

original ao qual pretendia responder. «Taco a taco, as represálias fazem o mun

do andar à volta!», trauteava alegremente dando livre curso ao seu sarcasmo

ao longo de mais de 300 páginas. Ora Vogt era um Cícero a preço reduzido,

ora não passava de um Falstaff sem humor. Era um palhaço, um fala barato,

um cão de circo, mas, sobretudo, um texugo — «o qual tem apenas uma

maneira para se defender nos momentos de perigo: um odor nauseabundo».

Todos os que tinham alguma vez ajudado ou encorajado o infame Vogt

eram tratados do mesmo modo. Vários baldes fumegantes de insultos esca

tológicos foram vertidos sobre um jornal londrino que tinha publicado os

artigos do Natíonal-Zeitung:

«Por meio de um engenhoso sistema de canalização, todas as retretes

de Londres vertem os detritos físicos no Tamisa. Empregando o mesmo

método, a capital do mundo vomita os seus detritos sociais através de um

sistema de penas de ganso para uma grande cloaca de papel — o Daily

Telegraph... A entrada do esgoto, estão escritas as seguintes palavras em

cores sombrias: Hk quisquam faxit oletuml, as quais Byron traduziu poe

ticamente, "Caminhante, pára e. . . mijal'V"*

2 1 0 ^ ^ I<L\RL]VIARX

Quando Marx se encontrava neste estado de espírito, não havia manei

ra de o deter. Joseph Moses Levy, o director do Telegraph, foi sujeito a mui

tas páginas de sarcasmos anti-semitas e de mau gosto por ter mudado a or

tografia do seu apelido, Levi.

«Levy está decidido a ser anglo-saxão e, por conseguinte, ataca a po

lítica pouco inglesa do Sr. Disraeli pelo menos uma vez por mês, pois

Disraeli, «o mistério asiático», não tem, ao contrário do Telegraph, ascen

dência anglo-saxónica. Mas o que é que Levy lucra em atacar o Sr. Disraeli

e em mudar o <d» em «y» quando a mãe Natureza lhe inscreveu da for

ma mais nítida possível as suas origens no meio da sua cara? O nariz do

misterioso estrangeiro de Slawkenbergius (ver Tristam S handy), o qual

recebeu o mais lindo nariz do promontório de narizes, foi apenas uma

maravilha ao longo de nove dias em Estrasburgo, enquanto o nariz de

Levy fornece um tema de conversa durante todo o ano em Londres. . .

Na verdade, o grande talento do nariz de Levy consiste na sua capacidade

de titilar com o cheiro a podre, de cheirá-lo a quilómetros de distância e

de o atrair. Assim, o nariz de Levy serve o Daily Telegraph como tromba de

elefante, farol e telégrafo.»

Bastante divertido, principalmente vindo de um homem cujos antepas

sados rabínicos também se chamavam Levi, nome que tinham abandonado

para melhor se assimilarem à sociedade prussiana.

Todos os editores alemães recusaram publicar o livro e, assim, Marx

imprimiu Herr Vogt em Londres depois de fazer um peditório para cobrir os

custos de produção: Lassalle e a condessa Von Hatzfeldt deram 12 libras,

mais 12 libras vieram do negociante de vinhos, Sigismund Borkheim, um ve

lho aliado dos tempos da revolução de 48; e Engels enviou cinco libras.

Quem 1er hoje o Hvro poderá sentir que esses benfeitores lhe teriam prestado

um melhor serviço se o tivessem convencido a não perder tanto tempo com

aquuo; mas, aparentemente, a loucura de Marx era contagiosa. Engels consi

derou Herr Vogt «a melhor obra polémica que jamais escreveste», até mes

mo superior ao Dezoito Brumário de Touts Bonaparte;]enny, que transcreveu o

manuscrito, achou-o uma fonte de «admiração e prazer constante».

Como de costume, Marx esperava causar sensação e tornar-se no único

tópico de conversa em toda a Alemanha, se não de toda a Europa; mas, como

o HERÓI A CAVALO s*GJ211

de costume, ficou decepcionado. Herr Fög/foi recebido a 1 de Dezembro de

1860 com tão poucos aplausos e fanfarras como a Economía Crítica.

Consolou-se da maneira habitual. «Uma circunstancia que me ajudou

imenso foi ter uma grande dor de dentes», escreveu a Engels na semana em

que o Uvro foi pubMcado. «O dente foi arrancado anteontem. O dentista (que

se chama Gabriel) extraiu a raiz, magoando-me multo, mas deixou um bo

cado do dente; e, agora, tenho o rosto todo dorido e inchado. Esta pressão

física contribui para eu deixar de pensar e poder abstrair pois, como diz

Hegel, puro pensamento, ou puro ser, ou nada, é uma e a mesma coisa.»"^^

Esta anestesia mental era mais necessária do que nunca; à parte o seu

desapontamento pelo insucesso de ¥íerr Vogt, também a mulher tinha sido

atacada pela varíola há duas semanas. Enquanto Marx e Helene tratavam da

inválida, as filhas foram para casa dos Liebknecht durante um mês — em

bora viessem às vezes espreitar a mãe pela janela a fim de que esta pudesse,

ao menos, vê-las da cama. «As pobres crianças estão muito assustadas», disse

Marx a Engels. O médico, o Dr. Allen, explicou que, se Jenny já não tivesse

sido vacinada duas vezes, teria sucumbido; e a descrição que ela mesma fez

numa carta a Louise Weydemeyer confirma que a sua vida tinha corrido

graves riscos:

«A varíola tomou proporções horrorosas e eu sentia-me cada hora

mais doente. Sofria imenso. Dores a queimadura no rosto, insónias e

ansiedade mortal quanto a Karl, que cuidava de mim com o maior cari

nho, e, finalmente, a perda de todas as minhas faculdades exteriores,

enquanto as interiores — a consciência — permaneciam enubladas.

Passei todo o tempo deitada junto a uma janela aberta para que o ar frio

de Novembro me arejasse, com as chamas do inferno na lareira e gelo nos

lábios a arder entre os quais me deitavam de vez em quando umas gotas

de clarete. Mal conseguia engolir, ouvia cada vez menos e, finalmente, os

meus olhos fecharam-se e eu não sabia se não iria ficar para sempre

envolta naquela escuridãq.

Quando, por fim, as minhas filhas foram autorizadas a regressar a casa

na véspera do Natal, desataram a chorar ao ver a sua mãe adorada. Há

cinco semanas, ela era uma mulher de 46 anos bem conservada e sem um

cabelo branco; comparada à frescura das filhas, não tinha muito mau

aspecto. Mas, agora, tinha o rosto desfigurado por cicatrizes e uma tez

vermelha arroxeada. Via-se como um hipopótamo, ou um rinoceronte,

212 *î -:- KARL MARX

e o seu lugar era mais num jardim zoológico do que no seio da raça cau

casiana. Entretanto, o marido, ansioso e exausto, padecia mais uma vez

do fígado; e, depois, havia o problema de como pagar as exorbitantes

consultas médicas, pois há mais de um mês que não arranjava emprego.

A única coisa agradável que nos aconteceu naquele triste Natal foi a

prenda do Engels de umas garrafas de vinho do Porto que a Jenny achou

ser um remédio muito eficaz. Mas até mesmo isto foi negado ao Karl,

cujo médico lhe tinha imposto uma rigorosa dieta de limonada e óleo de

fígado de bacalhau.'"' «Estou a ser tão atormentado como Job», gemeu

ele. «Apesar de não ser tão temente a Deus.>/^

Segundo todas as leis da aerodinâmica, o zangão não deveria ser capaz

de voar. Marx possuía um talento semelhante que desafiava a gravidade:

quando estava a ponto de cair sob o peso da desgraça, chegaram notícias da

Alemanha que o mantiveram no ar. A 12 de Janeiro de 1861, o novo rei da

Prússia, Guilherme I, celebrou a sua coroação proclamando a amnistia de

todos os refugiados políticos e dando, assim, a Marx a esperança de poder

recuperar a sua cidadania há tanto tempo perdida; uma semana mais tarde.

Lassalle propôs que Marx e Engels regressassem à pátria para pubMc^r um

novo «órgão do partido» nos moldes do Neue Rheinische Zeitung.

Apesar de Marx não ter nenhuma fé no projecto e declarar que «a maré

na Alemanha ainda não subiu o suficiente para suportar o nosso barco»,

deixou-se contudo tentar — especialmente quando soube que a condessa

Von Hatzfeldt investira 300 000 táleres no jornal. Agora que o New York Daily

Tribune tinha-o mais ou menos abandonado por causa da Guerra da Seces

são, precisava de uma fonte de rendimentos mais desesperadamente do que

nunca. A proposta de Lassalle justificava, pelo menos, uma viagem de reco

nhecimento imediata. Viajando com um passaporte falso e dinheiro que

Lassalle lhe emprestou, partiu para a Alemanha no fim de Fevereiro —

parando em Zaltbommel, na Holanda, onde o tio. Lion Philips, lhe passou

um adiantamento de 160 libras sobre a herança que receberia quando Hen

riette Marx esticasse o pernil.

Lassalle e a condessa receberam faustosamente Marx durante a sua es

tada de um mês em Berlim — mostrando, assim, que não o conheciam lá

muito bem, pois a última coisa que um antimonárquico deseja é ser tratado

como um rei. Levaram-no, uma noite, a ver uma nova comédia à glória da

Prússia que ele detestou. Na noite seguinte, foi à ópera, e obrigado a assis-

o HERÓI A CAVALO « ^ 2 1 3

tir a um hallet («mortalmente chato») durante três horas num camarote a pou

cos metros do rei Guilherme em pessoa. N o decorrer de um jantar em sua

honra, a que um enxame de celebridades foi convidado, Marx ficou senta

do ao lado da editora literária Ludmilla As sing («a criatura mais feia que ja

mais vi na vida»), que passou a noite a namoriscar com ele — «eternamente

a sorrir e a fazer esgares, sempre a falar em prosa poética, tentando constan

temente dizer qualquer coisa de extraordinário, fingindo-se entusiasmada e,

no transe dos seus êxtases, lançando perdigotos para cima do seu ouvinte».'*^

Após ter sido sujeito à intolerável hospitalidade de Lassalle durante um

mês, Marx uivava de tédio. «Sou tratado como uma espécie de leão e força

do a conhecer uma data de "inteligências" profissionais, tanto homens como

mulheres», escreveu ao poeta alemão Cari Siebel, amigo de Engels. «É hor

rível.» O único motivo para prolongar aquela estopada era que tinha de

aguardar uma decisão quanto ao seu pedido de cidadania, o qual Lassalle

tinha entregue em pessoa ao chefe da poKcia prussiana. A resposta chegou

a 10 de Abril. Como Marx tinha voluntariamente rejeitado os seus direitos

de cidadão prussiano em 1845, «era considerado estrangeiro», não poden

do, por conseguinte, usufruir da amnistia real.

A condessa supHcou-lhe que ficasse para mais jantares e divertissements. «É

então assim que nos agradece a amizade que lhe temos demonstrado», ra-

Ihou-lhe. «Agora que tratou dos seus assuntos, vai já partir de BerHm.» Mas

não suportava mais aquele lugar: a presença de homens fardados e mulhe

res literatas faziam-no sentir-se extremamente inconfortável. Caso uma

pessoa não fosse obrigada a viver na Alemanha, decidiu, o país era muito

bonito. «Se fosse livre e se, além disso, não fosse importunado por uma coisa

chamada "consciência poiïtica", nunca trocaria a Inglaterra pela Alemanha,

sobretudo a Prússia, nem muito menos por Berlim.»'*'' Também Jenny se

opunha veementemente a mais mudanças. Enquanto Marx estava ausente,

ela confiou a Engels: «Sinto poucas saudades da pátria, dos «caros» alemães

tão dignos de confiança, essa mater dolorosa de poetas. Quanto às minhas

filhas, só a ideia de abandonar o país do seu querido Shakespeare põem-nas

doentes; tornaram-se inglesas de gema e agarram-se ao solo da Inglaterra

como lapas.»^" E, além do mais, Jenny não desejava ver as filhas cair sob a

influência do estonteante «círculo de Hatzfeldt».

O próprio Marx gostava da condessa — «senhora distinta, nada literata,

com grande intelecto natural e muita vivacidade. Está profundamente inte

ressada no movimento revolucionário e tem uma atitude aristocrática muito

2 1 4 ^ ^ KARL MARX

superior às caretas pedantes das "sabichonas" profissionais»^' — e isto ape

sar de usar demasiada maquilhagem para ocultar a idade e os estragos do tem

po. Para ele, o principal argumento para não aceitar um emprego em Berlim

era não querer ser colega, nem vizinho, de Ferdinand LassaUe. E m mais de

dez anos de correspondência regular, não tinha conseguido detectar a vai

dade e a incipiente megalomania do indivíduo, mas, após ter passado um mês

com ele debaixo do mesmo tecto, compreendeu porquê os comunistas de

Düsseldorf tinham tentado preveni-lo. Nas suas cartas a Engels, LassaUe

passou a ser alcunhado Lábaro, Barão Ii^ ou o Preto Judeu. Este último epíteto

começou por brincadeira; embora LassaUe fosse, de facto, escuro — como,

aUás, Marx — não tinha sangue negro, mas Marx repetiu a graça tantas vezes

que acabou por acreditar nela: «Parece-me, agora, óbvio — como a forma

da cabeça e a maneira do cabelo dele crescer atestam — que ele descende dos

negros que acompanharam a fuga de Moisés do Egipto (a não ser que a mãe

ou avô paterno, se tenha cruzado com um preto)», escreveu. «Essa mistura

de judeu e alemão, por um lado, e a origem negroide por outro, tem inevi

tavelmente de dar origem a um produto pecuUar. O seu carácter importu

no também é de preto.»^^ A exemplo dos seus comentários a propósito do

nariz do Sr. Levy, director do Daily Telegraph, deve-se assumir que, na época,

isto tinha piada.

A viagem à Alemanha não foi totalmente improdutiva: antes de abando

nar o país, Marx passou dois dias em Trier com a mãe, a qual recompensou

esta rara manifestação de solicitude fUial anulando várias das suas dívidas para

com ela. Marx regressou assim a Londres a 29 de Abril com 160 Ubras do

tio Lion e o bolso cheio de vales rasgados. E m meados de Junho, contudo,

estava novamente a pedir dinheiro emprestado a Engels. «O facto de eu ter

já gasto o que trouxe não te há-de surpreende»), escreveu-lhe, «pois, além das

dívidas contraídas por causa da viagem, há quase quatro meses que não

ganho nada. Só a escola e o médico me custaram 40 Ubras»- . Voltou, den

tro de pouco tempo, aos velhos subterfúgios e medidas de emergência.

Sempre que o senhorio vinha cobrar a renda, Jenny expUcava-lhe que Karl

se encontrava ausente em viagem de negócios — quando, na realidade, ele

estava escondido no andar de cima — e mandava-o embora de mãos a

abanar. Foram de novo obrigados penhorar coisas, incluindo as roupas das

filhas «até às botas e sapatos». Durante o Inverno de 1861-62, Jennycòen es

teve continuamente doente e Marx deduziu que, aos 17 anos, «ela já tinha

idade para sentir a pressão e o estigma das nossas circunstâncias, e acho que

^ o HERÓI A CAVALO 4 | J Í 2 1 5

é isso que a indispõe fisicamente.» Engels enviou-lhe imediatamente o seu

medicamente patenteado para «sangue fraco» — oito garrafas de clarete,

quatro de vinho branco do Reno e dez de sherry —, que lhe levantou o âni

mo, mas não produziu efeito no seu corpo emaciado.

O estado de espírito em casa de Marx tornou-se ainda mais deprimente

no Verãode 1862 enquanto Londres festejava a segunda Grande Exposição,

uma gabarolice de orgulho e feitos vitorianos. «O desejo diário da minha

mulher é estar, juntamente com as filhas, na sepultura, e eu sinceramente não

a culpo, pois as humilhações e tormentos por que temos de passar na pre

sente situação são indescritíveis», escreveu. «Sinto ainda mais pena das in

felizes crianças por isto acontecer durante a Exposição. Todas as amigas delas

se divertem, enquanto elas passam os dias receosas que alguém as venha

visitar e se dê conta da miséria em que vivem... Ainda bem que ninguém me

vem ver.»

Mas enganou-se. Três semanas mais tarde, estando o Barão I^^ Lassalle

na cidade, para ver as maravuhas industriais exibidas em Hyde Park, veio ba-

ter-lhe à porta. Era uma altura odiosamente inoportuna, mas Marx sentiu-

-se no dever de lhe retribuir a hospitalidade que aceitara — embora sem

prazer — o ano anterior em Berlim. Tudo o que não estava pregado às

paredes ou aparafusado ao chão foi parar à casa de prego e, no decorrer das

três semanas seguinte. Lassalle representou o papel do convidado vindo dos

infernos — comendo e bebendo como um glutão esfomeado enquanto

falava pelos cotovelos dos seus talentos e ambições sem limites. Apesar de

saber que Marx já não recebia dinheiro do New York Daily Tribune, Lassalle

mostrou-se espantosamente insensível em relação à sua situação económica;

gabou-se de ter perdido cem Hbras em especulações na Bolsa, como se fos

se uma ninharia, e gastou mais de uma libra por dia em táxis e charutos sem

nada oferecer aos seus anfitriões. E teve a insolência de pedir a Karl e a Jenny

que lhe cedessem uma das filhas adolescentes para fazer companhia à la

Hatzfeldt — uma espécie de aia de luxo.

«O tipo tem-me feito perder imenso tempo», anotou Marx na terceira

semana daquela aflição. «E, ainda por cima, essa besta ousou dizer-me que,

como eu não tinha agora nenhum "assunto" a tratar e andava apenas a fazer

um "trabalho teórico", poderia passar tempo com ele!» Toda a família tinha

agora de acompanhar LassaMe nos seus passeios por Londres — e até mais lon

ge, a Windsor e Virginia Water — e ouvir os seus intermináveis monólogos.

Ao admirar a Pedra da Roseta, no Museu Britânico, ele virou-se para Marx e

216 «¿> • KARL MARX

perguntou: «Acha que eu deva passar seis meses a estudar isto para criar nome

como egiptólogo?» Se Marx não estivesse tão furioso com «este oportunista

carregado com sacos de dinheiro», talvez achasse aquilo divertido.

«Desde a última vez que o vi, há um ano, que ele enlouqueceu», disse a

Engels. E, agora, não somente se julga o maior erudito, o pensador mais

profundo, o cientista mais brilhante e assim por diante, como também um

D.Juan e um cardeal Richelieu revolucionário. Acrescente-se a isto o pairar

incessante em voz estridente, os gestos histriónicos e poucos estéticos, e o

tom dogmático!»^^ Um dia. Lassalle revelou o «profundo segredo» que os

libertadores italianos, Manzini e Garibaldi, a exemplo do Governo prussiano,

eram piões dirigidos pelas suas mãos. Incapazes de se conter, Karl e Jenny

começaram a arreliá-lo por causa daquelas fantasias napoleónicas e, então,

o Messias alemão perdeu a cabeça e desatou a gritar que Marx era demasiado

«abstracto» para perceber a realidade da política. Depois de LassaUe se ter

ido deitar, Marx desapareceu no seu gabinete para escrever outra carta a

Engels em que troçava das características «negroides» do seu convidado.

O relato de Jenny da invasão de LassaUe é menos rancoroso e mais bem

humorado:

«Ele era quase esmagado pelo peso da fama que adquirira como eru

dito, pensador, poeta e político. A coroa de louros que lhe cingia a fron

te oKmpica e a divina cabeleira ou antes, a sua carapinha de negro, ainda

estava fresca. Tinha acabado de sair vencedor da campanha na Itália —

um novo golpe poKtico estava a ser planeado por outros homens de acção

notáveis — e batalhas sangrentas destroçavam-lhe a alma. Ainda havia

campos da ciência a ser explorados! Os segredos da egiptologia aguarda-

vam-no: "Deveria eu causar o espanto do mundo como egiptólogo ou

demonstrar a minha versatilidade como homem de acção, poHtico ou mi

litar?" Era um dilema esplêndido. Hesitava entre os pensamentos e senti

mentos do coração e exprimia com frequência esse debate em tons realmente

estrondosos. Como transportado pelas asas do vento, caminhava pela

nossa casa gesticulando e perorando em voz tão alta e estridente que os vi

zinhos ficavam assustados e perguntavam o que é que estava a acontecer.

Era o debate interior do "grande" homem a jorrar desordenadamente.»^''

Só quando já estava de partida, a 4 de Agosto, é que LassaUe se deu conta

da situação desesperada de Marx — como não podia deixar de ser, pois o

o HERÓI A CAVALO ^ 1 2 1 7

senhorio e outros credores tinham escolhido aquele preciso momento para

vir bater à porta e ameaçar chamar a poKcia. Mas, mesmo assim, a sua ge

nerosidade foi bastante limitada. Prontificou-se a emprestar 15 libras a Marx

a curto prazo, mas só depois de Engels prometer servir de fiador.

Nos dois meses seguintes, Lassalle fez tanto rebuliço a propósito deste

insignificante empréstimo — insistindo para que Engels assinasse um com

promisso e se marcasse uma data de pagamento —, que Max lamentou ter

aceite o dinheiro. Após uma furiosa troca de correspondência, contudo, ele

apresentou uma meia desculpa. «Vamo-nos zangar por causa disto?... Espe

ro que, apesar disto tudo, as nossas relações continuem como eram dantes.»^^

Era um homem sentado num barril de pólvora, um infeliz desesperado à

beira do suicídio: não era isto suficiente para desculpar a sua ingratidão?

Lassalle deu como pretexto «motivos financeiros» para o fim da relação,

mas as diferenças políticas entre os dois homens teriam, de qualquer modo,

provocado uma ruptura dentro de pouco tempo. Lasalle tinha um respeito

hegeliano pelo poderio do Estado prussiano e, agora, defendia a coopera

ção entre a antiga classe dirigentej>/«/èí?r (representada por Bismark) e o novo

proletariado industrial (representado, claro está, por ele mesmo) para fazer

frente às aspirações políticas da burguesia liberal. E m Junho de 1863, duas

semanas após a fundação da Associação dos Trabalhadores Alemães, Lassalle

escreveu ao Chanceler de Ferro gabando-se do poder absoluto que tinha

sobre os seus membros, «facto que talvez lhe cause inveja! Isto há-de certa

mente convencê-lo de que a classe operária, uma vez convencida de que a

ditadura servirá os seus interesses, se sente instintivamente atraída por ela.

E como por conseguinte estaria inclinada, como lhe disse recentemente, ape

sar de todos os sentimentos repubUcanos — ou, talvez, a esse título — a ver

a Coroa como portadora natural da ditadura social, em contraste com o

egoísmo da sociedade burguesa»^*^. (Esta carta desmente a reivindicação de

um dos biógrafos de Marx, Fritz J. Reddatz, que «a famosa conspiração com

Bismark nunca existiu».) O que os trabalhadores queriam não era uma

monarquia criada pela burguesia, como a de Luís Filipe em França, mas uma

«monarquia que ainda se ergue moldada na sua massa original e de espada

empunho . . . »

É de perguntar se o rei prussiano se sentiria Lisonjeado por esta estranha

imagem de uma baguette à espadeirada. Talvez não: apesar da sua exuberan

te fidelidade, Lassalle encarava a possibilidade de um triunvirato formado

pelo rei Guilherme, Bismark e ele mesmo. E, logo que a classe média fosse

218 . I<J^RLMARX

posta no seu lugar pela força, deixaria de necessitar dos dois socios. Este

plano ditatorial, excelentemente descrito como «cesarismo social», era aná

tema para Marx — e tanto mais irritante porque a sua retórica plagiava in

solentemente muitas passagens do Manifesto Comunista, às quais Lassalle ti

nha acrescentado comentários reaccionários para proveito próprio. Ele era

o Mestre, o Redentor, o Herói a Cavalo. Já aos 20 anos, num «Manifesto de

Guerra Contra o Mundo», o seu egoísmo melodramático tinha-se revelado

inesgotável: «Para mim, todos os meios são iguais; nada é sagrado ao ponto

de me fazer recuar; e ganhei o direito do tigre, o direito de dilacerar... En

quanto tiver poder sobre a mente de um indivíduo, hei-de abusar sem pie

dade.. . Só força de vontade da cabeça aos pés.» Se ele não tivesse existido,

Nietzsche tê-lo-ia inventado.

Era nesse estado de espírito que vivia—e viria a morrer. E m 1864, Lassalle

enamorou-se de uma bela jovem com cabelos à Ticiano chamada Helene von

Dönniges, prometida a um certo Janko von Rakowitz, príncipe romeno. O

pobre noivo desafiou o super-herói para um duelo à pistola e acertou-lhe fa

talmente na barriga. LassaUe nem sequer apontou a arma contra ele, Hmitan-

do-se a sorrir enigmaticamente enquanto o rival fazia pontaria. Teria acabado

por acreditar na sua invencibilidade? Ou tinha decidido que uma morte pre

matura e romântica lhe garantiria fama imortal? Foi tudo um grande misté

rio. Como Engels comentou: «Uma coisa destas só podia ter acontecido a

Lassalle. Era um homem com uma estranha e única mistura de frivolidade e

sentimentalidade, cavalheirismo e características judaicas.»^' A notícia pertur

bou Marx mais do que ele esperava. O que quer que pudesse ter sido, Lassalle

era «o inimigo dos nossos inimigos», um da velha guarda dos quarante-huitards.

«Só Deus sabe como as nossas fileiras estão a ser reduzidas e não há refor

ços à vista.»*^" Ofereceu à condessa Von Hatzfeldt a consolação de que, pelo

menos, «ele morreu jovem, num período de triunfo, como Aquiles».''^

E m tais circunstância, foi um tributo generoso. Dois anos antes, Marx

quase se tinha arruinado para receber Lassalle em Grafton Terrace; fora

recompensado com irritabilidade, desconfiança e, finalmente, suêncio. Desde

aquela vista — e, em parte, por causa dela, suspeitava Marx — as finanças

da família tinham evoluído de más a piores. E m Agosto de 1862, uns dias

depois de LassaUe partir de Londres, Marx deslocou-se a Zaltbommel na

esperança de conseguir outro empréstimo de Lion Phiups, mas o tio encon-

trava-se ausente. Dirigiu-se então a Trier, mas a mãe recusou dar-lhe o que

quer que fosse. N o Natal desse ano, Jenny Marx tentou ganhar a simpatia de

o HERÓI A CAVALO ^ ^ 2 1 9

Monsieur Abarbanel, banqueiro francês seu conhecido, mas os resultados

ainda foram mais desastrosos. O barco para Bolonha quase se afundou numa

tempestade e o comboio que ela tomou até à casa de Abarbanel atrasou-se

duas horas; quando ela finalmente chegou, o banqueiro tinha tido uma

apoplexia que o deixara paralisado. Ao regressar a Londres de mãos a aba

nar, Jenny foi vítima de mais acidentes: o autocarro onde estava virou-se e

o táxi que tomou em Londres chocou com outro veículo, perdendo uma

roda. Ao chegar a Grafton Terrace a pé, acompanhada por dois rapazes que

transportavam a bagagem, foi informada que Madame Creuz, a meia irmã de

Helene Demuth, tinha morrido de um ataque cardíaco duas horas mais cedo.

Imagine-se a cena: uma criada morta na sala da frente, outra a chorar de

mágoa, uma mulher exausta e toda enlameada — e o dono da casa a pergun-

tar-se onde é que raio iria encontrar sete libras e dez para pagar ao canga-

Iheiro. Marx permitiu-se um comentário sarcástico perante este quadro

tragicómico: «Um Hndo Natal para as coitadas das crianças.»''^

Por uma vez, porém, esta desgraça grotesca não teve o habitual efeito

nocivo sobre a sua saúde e produtividade. Os sarcasmos de Lassalle quanto

às suas «teorias» espicaçaram-no a terminar o Uvro que fora tão catastrófi

camente interrompido por causa da querela com Vogt. «Se pelo menos

soubesse como montar um negócio qualquer!», escreveu a Engels num

momento de depressão pouco depois da viagem de Lassalle a Londres.

«Todas as teorias, meu caro amigo, são pardas e só os negócios, verdes vi

çosos. Mas, infelizmente, apercebi-me disso demasiado tarde.»*"^

Foi por volta desta altura que Marx se candidatou a um emprego admi

nistrativo nos caminhos-de-ferro, mas foi rejeitado por causa da sua letra.

Não importa: ainda podia tirar partido da escrita desde que Jenny transcre

vesse os seus gatafunhos de forma legível. Com poucas encomendas jor

nalísticas para o distrair, começou a escrever o segundo volume da sua eco

nomia crítica.

«É curioso e até certo ponto significativo que o país onde Karl Marx é

menos conhecido seja aquele onde viveu e trabalhou durante os últimos 30

anos», comentou o economista John Rae na Contemporary Review, de Outu

bro de 1881, dois anos antes da morte de Marx. «A sua palavra percorreu

toda a Terra e evocou em certos círculos ecos que os governos não deixam

viver nem morrer; mas, aqui, onde foi pronunciada, o seu som mal foi ou-

vido.»^"* Quando Engels enviou uma análise pormenorizada de O Capita/k

220-^^v^ KARL MARX

liberal Fortnightly Review, em 1869, a direcção devolveu-a com a uma breve

nota explicando que era «demasiado científica para os leitores ingleses da

RemiP»''^. Uns anos mais tarde, no decorrer de uma palestra proferida por um

economista inglês sobre a «harmonia dos interesses sociais», um socialista

na assistência questionou a desatinada suposição de que todas as classes da

sociedade tinham os mesmos interesses, referindo-se a O Capital pãía sus

tentar o seu cepticismo. «Não conheço tal obra», retorquiu o conferencista.

Quase nenhum dos principais livros de Marx foi traduzido em inglês du

rante a sua vida e a excepção mais importante, o Manifesto Comunista, só era

conhecida do punhado de cartistas que assinavam o Red Republican, de George

Julian Harney, em Novembro de 1850. Dez mais tarde, conmdo, um exemplar

foi enviado tardiamente ao The Times, o qual se apressou a prevenir os seus

leitores quanto às «publicações de má qualidade que contêm as mais anárqui

cas e disparatadas doutrinas... nas quais a religião e a moral são pervertidas e

ridicularizadas, e todas as regras de conduta sancionadas pela experiência, das

quais a própria existência da sociedade depende, são abertamente atacadas»''''.

Seguiam-se dois extractos do Manifesto—embora a origem não fosse mencio

nada, pois The Times «não estava ansioso em nomear os seus autores nem

promover aquela obra». O político conservador John Wilson Croker tentou

assustar mais as pessoas com o perigo vermelho, denunciando a «Literatura

Revolucionária» (com as mesmas citações do Manifesto) n'a Quarterly Review, de

Setembro de 1851. Mas ninguém se mostrou interessado, e o Manifesto Comu

nista desapareceu da circulação em Inglaterra até Samuel Moore publicar uma

nova tradução em 1888, cinco anos depois da morte do seu autor.

John Rae pode ter achado «curioso» que os ingleses tenham prestado tão

pouca atenção à presença da velha toupeira enfiada no centro de Londres,

mas isso era perfeitamente razoável. Como é que podiam ter ouvido falar

dele? Depois de se ter zangado com o radical Harney e o louco Urquhart,

Marx perdeu os seus meios de comunicação com os intelectuais e trabalhado

res ingleses. Os artigos com que suportava a família na década de 1850 fo

ram publicados no f^ew York Tribune. Para o público inglês, ele era pratica

mente invisível. Passava os dias no museu e as noites na companhia de

compatriotas alemães. E m Maio de 1869 juntou-se à Real Sociedade para a

Promoção das Artes, Manufacmras & Comércio, que se tinha tornado famosa

pelo seu envolvimento no decorrer das Grandes Exposições de 1851 e 1862,

mas não há provas de que ele tenha assistido às suas conferências ou usado

a biblioteca^^. Pode ter sido desencorajado pela sua experiência durante a

o HERÓI A CAVALO sr*^-221

festa estival da Sociedade, uma Conversazione que teve lugar no museu de

South Kensington a 1 de Julho de \8>69. Jennychen, a sua companhia nessa

noite, enviou um relatório completo a Engels:

«Entre todos os mais entediantes eventos, as conversai^ones são certa

mente as piores. Que jeito têm os ingleses para inventar diversões abor

recidas! Imagina uma multidão de sete mu pessoas em traje de cerimónia

tão apertadas umas contra as outras que não se podiam mexer ou sen-

tar-se nas cadeiras que algumas senhoras idosas tinham tomado de assal

to . . . Não se via outra coisa senão sedas, cetins, brocados e rendas, e isto

nos modelos mais feios — em mulheres vulgares, de traços grosseiros,

olhos baços, pequenas e curtas ou altas e desengonçadas. Não havia tra

ços da tão falada beleza da aristocracia inglesa, e vimos apenas duas ra

parigas razoavelmente bonitas. Entre os homens, havia um punhado de

rostos interessantes, provavelmente artistas, mas a grande maioria era

gente com ar insípido e demasiado gorda.»*"^

O pai à& Jennychen aliviou o tédio embriagando-se e rindo ostensivamente

de um boletim distribuído entre todos os convidados e intitulado «Assalto

a Pessoas Distintas», solicitando que fosse permitida a livre passagem dos

aristocratas e outras eminências sem ser molestados. Como Jennychen pro

meteu, «não nos apanharão aqui outra vez».

Os encontros de Karl Marx com os nativos foram quase sempre desas

trosos, em particular quando ele tinha bebido uns copos. Uma noite, foi com

Edgar Bauer e Wilhelm Liebknecht a Tottenham Court Road com a inten

ção de beber pelo menos uma cerveja em todos os bares entre a rua Oxford

e Hampstead Road. Como o itinerário incluía cerca de 18 bares, ele estava

pronto para uma zaragata quando chegaram ao último. Um grupo de pes

soas que jantava tranquilamente foi acostado por este trio de bêbedos que

se pôs a troçar da cultura inglesa. Só a Alemanha, declarou Marx, podia

produzir mestres como Beethoven, Mozart, Handel e Haydn; a hipócrita e

pretensiosa Inglaterra era uma terra de gente inculta.

— Raio de estrangeiros! — rosnou um dos clientes, enquanto os outros

cerraram os punhos.

Escolhendo a melhor estratégia, os truculentos alemães fugiram. Lieb

knecht deixou-nos um relato do resto da história:

222 ^ ^ v : ICARLMARX

«Agora, já estávamos fartos de cerveja e, para nos acalmarmos, ace

lerámos o passo até Edgar Bauer tropeçar num monte de pedras. "Eureca,

tenho uma ideia!" E em memória das partidas de estudantes, pegou numa

pedra e zás! quebrou um candeeiro a gás. As acções absurdas são conta

giosas — Marx e eu não nos ficámos e partimos quatro ou cinco can

deeiros —, deviam ser umas duas da manhã e as ruas estavam desertas...

Mas o barulho atraiu um polícia que, por sua vez, avisou os colegas que es

tavam a fazer a mesma ronda. A nossa situação tornou-se crítica. Fugimos

com três ou quatro polícias no nosso encalço. Marx deu provas de uma

agilidade invejável. A perseguição durou uns minutos, mas, felizmente,

conseguimos meter por uma viela e os pob'cias perderam o nosso rasto.

Estávamos salvos. Desconheciam a nossa identidade e pudemos chegar

tranquilamente a casa.»*"

Quando passeava pelas ruas de Londres, Marx detinha-se muitas vezes para

fazer uma festa na cabeça de um miúdo sentado à soleira de uma porta e meter-

-Ihe uma moeda na mão. Mas a experiência ensinou-lhe que os adultos britâ

nicos não vêem com bons olhos os estrangeiros com sotaque estranho. Um

dia, ao passar por Tottenham Court Road de autocarro, ele e Liebknecht re

pararam numa grande multidão apinhada à porta de uma taberna e ouviram

a voz lancinante de uma mulher a gritar por socorro. Embora Liebknecht tenha

tentado detê-lo, Marx saltou do autocarro e abriu caminho. Mas a mulher,

completamente bêbada, estava apenas a discutir com o marido; a chegada de

Marx teve o condão de aHar o casal que descarregou a sua fúria contra o im

portuno. «A multidão cercou-nos», recordou Liebknecht, «e tomou uma ati

tude ameaçadora contra o raio dos estrangeiros. A mulher, em particular, fi

cou furiosa com Marx e concentrou-se na sua magnífica barba preta luzidia.

Tentei acalmar, em vão, a situação. Se não tivessem aparecido dois robustos

poKcias a tempo, teríamos pago bastante caro a nossa filantrópica intervenção.»

A partir dessa altura, notou Liebknecht, Marx mostrou-se «um pouco mais

prudente» nos seus contactos com o proletariado londrino.

Como o historiador Kirk Willis observou, «por volta de 1860, Marx não

estava interessado em ter discípulos, ou propagandistas, ingleses, pois tinha

outros planos mais importantes — a destruição intelectual da economia

política clássica»^*'. Nos quatro anos seguintes, refugiou-se novamente no

anonimato da sala de leitura do Museu Britânico a fim de se preparar para

o assalto final ao capitalismo. «Quanto a mim, estou a trabalhar imenso e, por

o HERÓI A CAVALO rt^ 223

estranho que pareça, a minha matéria cinzenta está a funcionar melhor do

que nunca no meio da misère que me rodeia», disse a Engels em Junho de

1862, acrescentando que tinha descoberto «uma ou duas agradáveis e sur

preendentes novidades» na sua análise^^ Entre 1861 e 1862, preencheu mais

de 1500 páginas. «Estou a expandir este volume», expHcou, «pois os velhacos

dos alemães julgam o valor de um Mvro em termos de capacidade cúbica.»

A solução de problemas teóricos que dantes não consegtiia encontrar,

surgia-lhe agora cristalina e revigorante como um copo à&gin. A questão das

rendas agrícolas, por exemplo — ou esta «merda da questão das rendas»,

como dizia: «Há muito que tinha apreensões quanto à exactidão absoluta da

teoria de Ricardo e, por fim, lá cheguei ao fiindo da vigarice.» Ricardo tinha

simplesmente confiandido o valor e o preço de custo. Na Inglaterra de mea

dos da época vitoriana, o preço dos produtos agrícolas eram mais elevados

do que o seu valor real (por exemplo, o tempo laboral envolvido) e o pro

prietário embolsava a diferença sob a forma de rendas mais altas. Sob o

socialismo, contudo, este excedente seria redistribuído em benefício dos tra

balhadores. Assim, mesmo que o preço de mercado permanecesse o mes

mo, o valor dos produtos — o seu «carácter social» -— mudaria totalmente.

Estava tão satisfeito com os seus progressos que, às vezes, era ganho pelo

optimismo — como na ocasião em que um médico de Hanôver, Ludwig

Kugelmann, lhe escreveu em fins de 1862 a perguntar quando é que seria

publicada a continuação de Uma Contribuição para a Crítica da Economia Política.

«Fiquei encantado por me dar conta, através da sua carta, do caloroso interesse

que você e os seus amigos manifestam pela minha crítica da economia polí

tica», respondeu imediatamente Marx. <A. segunda parte está finalmente ter

minada, mas terá de ser passada a Hmpo e revista antes de ir para a tipografia.»^^

Concluía sugerindo «escreva-me de vez em quando para me dar notícias

da situação na Alemanha.» E assim começou uma amigável correspondên

cia que iria durar dez anos, até Marx decidir subitamente que não queria ter

mais nada a ver com aquele coca-bichinhos.

Claro que o manuscrito não estava nada acabado: ainda era necessário

muito trabalho de carpintaria antes de poder levar os «retoques finais». Mas,

pelo menos, já tinha a madeira para construir a grande obra-prima barroca

que iria finalmente emergir em 1867. O desajeitado título provisório — Uma

Contribuição para a Crítica da Economia Crítica, Volume II— foi abandonado. Por

lógica inversa, os livros grandes mereciam títulos pequenos e, assim, ele

revelou pela primeira vez na carta a Kungelmann, será chamado O Capital.

OS B U L D O G U E S E A H I E N A

Jenny Marx nunca poderia partilhar a afeição do marido por Friedrich

Engels. É evidente que estava grata pela generosidade dele, bem como apre

ciava a sua companhia intelectual e os encorajamentos que dava a Karl. E o

interesse que ele demonstrava pelas crianças, as quais adoravam o avuncular

«General», também a tocava. Para Jenny, contudo, ele continuaria sempre a

ser o Sr. Engels. Mulher que dificilmente se deixava chocar e que contem

plava com satisfação o advento de revoluções violentas e a derrocada da

burguesia, ela ainda tinha suficientes preconceitos da classe média — ou

melindres — para se escandalizar com a ideia de um homem e de uma mu

lher a viverem juntos sem ser casados, especialmente quando a mulher em

questão era uma operária analfabeta.

Engels tinha conhecido Mary Burns aquando da sua primeira visita a

Manchester, em 1842, para reunir material destinado ao seu livro. As Condições

da Classe Operária em Inglaterra. E m breve se tornaram amantes e, embora esta

animada ruiva de origem proletária irlandesa fosse bastante ignorante, ensinou

tanto a Engels quanto aprendeu com ele. Engels admirava nela, assim como

na irmã Lydia, a qual se juntou a eles num ménage à trois, «a paixão pela sua classe,

que era nata. Tinha imicnso valor para mim e mantivera-se ao meu lado em

todos os momentos críticos, dando-me melhores provas do que todas as

delicadezas das raparigas "inducadas" e "sintimentais" da burguesia».

O romance foi reatado quando Engels voltou com Marx em 1845 e ele

então convidou Mary para ficar com ele uns tempos em Bruxelas. Depois

de se resignar a uma vida dedicada ao vil comércio em Manchester, Engels

instalou-a numa pequenina casa perto da dele e, no final da década de 1850,

226 ^ í* KARL MARX

começaram a viver juntos. Nas raras ocasiões em que Jenny foi obrigada a

reconhecer a existência de Mary, referia-se a ele como «a tua mulher», em

bora a relação nunca tivesse sido realmente legalizada. O facto de Lydia

(Li^^J se ter juntado ao casal constituiu uma maior afronta à sensibilidade

puritana de Frau Marx. Mas Engels não se ralou.

A sua dedicação a Mary Burns também provocou o único momento de

frieza ao longo da calorosa e ininterrupta relação com Karl Marx. Apesar de

Marx não ter objecções quanto ao pouco ortodoxo comportamento domés

tico do amigo (e até lhe provocar uma certa titilação por procuração), a sua

tendência foi de subestimar a importância das irmãs Burns por deferência para

com Jenny. Tal tendência nunca se manifestou de forma mais desastrosa

quando, a 7 de Janeiro de 1863, recebeu um breve e horrível bilhete de Engels:

Caro Mouro,

A Mary morreu. Deitou-se cedo ontem à noite e, quando -L?^,^ de

cidiu ir para a cama pouco depois da meia-noite, encontrou-a já morta.

Tudo se passou muito rapidamente. Uma apoplexia ou um ataque car

díaco. Só fui informado esta manhã; na noite de segunda-feira ainda

estava bem. Não consigo transmitir como me sinto. A pobre da rapariga

amava-me profundamente.

Teu,

F E

Marx respondeu no dia seguinte. <A. notícia da morte de Mary surpreen-

deu-me tanto quanto me transtornou. Era tão bem-disposta, espirituosa e

afeiçoada a ti.» Até aqui, tudo bem; mas isto era apenas o começo de um lon

go rol das suas próprias desgraças. «Só o diabo sabe porquê o azar se aba

teu agora sobre todos nós. Já nem sei para que lado me hei-de virar...» As

tentativas para angariar dinheiro na Alemanha e em França não tinham dado

resultado e já ninguém lhe vendia nada a crédito. Estava a ser importunado

por causa da mensalidade da escola das filhas e da renda, e era impossível

prosseguir o seu trabalho. Após mais queixumes deste género, Marx lem-

brou-se do desgosto do amigo. «É horrivelmente egoísta da minha parte

contar-te estes horreurs nesta, altura», concedeu. «Mas é um remédio homeo

pático. Uma calamidade distrai-nos das outras. E, no final de contas, que mais

posso eu fazer?» . :

OS BUIDOGUES E A HIENA •: ,¿j» 227

Bem, para começar, poderia ter tentado dar os pêsames com mais tacto.

É verdade que a situação de Marx era realmente calamitosa: desde o Natal

que as filhas não tinham voltado para a escola, em parte porque a conta do

período anterior ainda não fora paga mas também porque a única roupa e

sapatos decentes que possuíam se encontravam no prego. Até mesmo as

últimas palavras de despedida de Marx tinham mais a ver com os seus pro

blemas do que com a perda de Engels: «Em vez de Mary, não deveria antes

ter sido a minha mãe que está cheia de maleitas e já viveu o suficiente? Estás

a ver as ideias estranhas que surgem na cabeça de "homens civilizados"

pressionados por certas circunstâncias. Salut.»

Engels leu tudo isto com espanto e raiva. Como ousava Marx falar de

dinheiro numa altura destas — em particular sabendo que ele próprio se

encontrava numa situação financeira difícil por causa da queda dos preços

de algodão? Manteve-se em silêncio durante cinco dias, e depois enviou um

ríspido agradecimento. As suas cartas começavam, normalmente, por «Caro

Mouro», mas tal informalidade já não servia:

«Caro Marx,

Hás-de compreender que devido ao meu infortúnio e à maneira fria

como o encaraste me foi impossível responder-te mais cedo. Todos os

meus amigos, incluindo meros conhecidos, deram-me nesta ocasião mais

provas de amizade e simpatia do que eu esperava. Achaste que era o

momento adequado para afirmar a superioridade da "indiferença do teu

modo de pensar". Seja!»^

Agora, não havia nada de indiferente quanto ao modo de pensar de Marx

e, no decorrer das três semanas seguintes, amargas recriminações foram

trocadas à volta da mesa da cozinha em Grafton Terrace, enquanto Jenny

censurava Karl por não ter alertado Engels mais cedo acerca da estado das

suas finanças e ele a censurava por julgar que podiam depender das subven

ções provenientes de Manchester para todo o sempre. («Como as mulheres

têm o hábito de desejar o impossível, a pobre coitada tinha de sofrer por algo

quanto ao qual estava de facto inocente», comentou indelicadamente Marx

mais tarde. <A.s mulheres, mesmo aquelas dotadas de inteligência, são cria

turas esquisitas.») Após muitas e longas discussões, concordaram que Karl

deveria declarar-se falido diante do tribunal. Jennychen e Laura poderiam

228' '^'«~ KARL MARX •

procurar emprego como governantas. Lenchen iria trabalhar para outra casa,

e a pequenina Tussy e os pais mudariam para um alojamento reservado aos

indigentes.

Teve realmente Marx essa intenção ou foi este martírio de autopunição

um ardil para comover Engels? É difícil de dizer. Mas não há dúvidas quanto

à sinceridade do seu acto de contrição:

r. «Fiz muito mal em escrever-te uma carta daquelas e lamentei-o assim

que a pus no correio. N o entanto, o que aconteceu nada tem a ver com

crueldade. Como a minha mulher e as minhas filhas poderão testemu

nhar, fiquei tão abatido quando a tua carta chegou (de manhã cedo) como

se se tratasse do meu parente mais querido. Porém, ao escrever-te à noite,

fi-lo pressionado por circunstâncias extremamente desesperadas. O se

nhorio tinha chamado um oficial de diligências, o homem do talho insistia

em ser pago, escassez de carvão e provisões e a pequenina Jenny de cama.

Regra geral, em tais circunstâncias, o meu único recurso é o cinismo.»^

Apesar desta autolaceração ainda estar misturada com piedade por si

mesmo, esta carta constitui o único pedido sincero de desculpas que Marx

jamais enviou a alguém.

Engels, com a sua habitual generosidade, reconheceu imediatamente

o arrependimento do amigo. «Caro Mouro», escreveu, retomando o seu tra

tamento carinhoso:

«Obrigado por seres tão franco. Percebes agora a má impressão que

a tua penúltima carta provocou em mim. Não se pode viver com uma mu

lher durante anos e não ser terrivelmente afectado pela sua morte. Senti

como se, juntamente com a Mary, eu também estivesse a enterrar os

liltimos vesti'gios da minha juventude. Quando a tua carta chegou, ela ain

da não fora para o cemitério e essa carta obcecou-tne durante uma se

mana inteira; não conseguia tirá-la da cabeça. Mas, agora, já não impor

ta. A tua última carta reconciliou tudo e estou contente por, ao perder

•• a Mary, também não perdi o meu mais antigo e melhor amigo.»^

A desavença não voltou a ser mencionada e, sem mais histórias, Engels

tratou de salvar a família Marx da falência. Incapaz de pedir dinheiro empres

tado, tirou simplesmente um cheque de cem libras enviado a Ermen & Engels

OS BULDOGUES E A HIENA • . - ' J î 229

e endossou-o a Marx. «Foi uma acção excessivamente ousada da minha parte»,

reconheceu, «mas tem de se correr riscos.» Seguiram-se 250 libras uns meses

mais tarde para Marx poder aguentar-se até ao fim do Verão — o que veio

mesmo a calhar, pois uma crise de fiirúnculos impediu-o quase de trabalhar.

E m Novembro, chegou um telegrama de Trier anunciando a morte de

Henriette Marx aos 75 anos. Ela previra o seu fim com precisão suspeita —

às 16 horas do dia 30 de Novembro, a mesma hora e dia do seu quinquagé-

simo aniversário de casamento — mas ninguém parece ter-se interrogado

quanto a isso. O único comentário de Karl ao ouvir a notícia foi, como era

de esperar, fleumático: «O destino reclamou um dos nossos parentes. Eu, por

mim, já estive com um pé para a cova. Vistas as circunstâncias, eu sou mais

preciso do que a minha mãe.»'^ Engels enviou dez libras para pagar a viagem

a Trier, mas nem uma palavra de pêsames: conhecia suficientemente Marx

para saber que lamentações falsas seriam mais ofensivas do que nenhumas.

A execução o testamento arrastou-se durante meses e, depois de todos

os adiantamentos e empréstimos do tio Lion terem sido descontados, a parte

de Marx ficou reduzida a pouco mais de cem libras. N o entanto, foi suficiente

para justificar uma leviandade. N o seu desprezo pela prudência financeira

burguesa, Marx praticava o que pregava: se não havia dinheiro, ele sobrevi

via através de expedientes; mas, logo que arranjava umas libras, esbanjava-

-as sem pensar no dia de amanhã. Os Marx tinham mudado para Grafton

Terrace em 1856 à custa da pequena herança que Jenny recebera de Caroline

von Westphalen, embora soubessem que a renda da casa era superior aos

seus meios. Agora, a mesma loucura repetia-se. E m Março de 1846, assim

que o dinheiro da herança de Henriette começou a chegar, alugaram uma es

paçosa casa no número 1 de Modena Villas, em Maidand Park, por três anos.

A nova morada ficava apenas a 200 metros de Grafton Terrace, mas a um

mundo de distância em termos de estilo e estatuto — o tipo de residencia

preferido por advogados e médicos abastados com um grande jardim, uma

«encantadora estufa» e espaço suficiente para cada uma das meninas ter o seu

quarto de dormir. Uma sala do primeiro andar que dava para o parque foi

escolhida por Marx para ser o seu escritório.

A renda anual de Modena Villas era de 65 libras, quase o dobro da de

Grafton Terrace. Como é que Marx esperava pagar todo este luxo é um

mistério: mas, como aconteceu tantas vezes, a sua fé foi vindicada. A 9 de

Maio de 1864, Wilhelm L.upm Wolff morreu com uma meningite, legando

«todos meus livros, mobília, dinheiro que me é devido e todas as minhas

230 «C^ KARL MARX •>•

propriedades, bens imóveis, alugados, ou que venha a ter direito ou poder

para dispor, ao dito Karl Marx»^. Wolff era um dos raros antigos companhei

ros da década de 1840 que sempre se mantivera fiel a Marx e a Engels. Ti

nha trabalhado com eles no Comité de Correspondência Comunista, em

Bruxelas; durante a revolução de 1848 em Paris, e quando Marx fora director

do Neue Rheinische Zeitung, em Colónia. A partir de 1853 tinha vivido tran

quilamente em Manchester, ganhando a vida como professor de b'nguas e a

par das notícias políticas através de Engels. «Não acredito que alguém em

Manchester tenha sido tão universalmente amado como o nosso querido

amigo», escreve Karl a Jenny após ter proferido a oração fúnebre no decor

rer da qual se desfez em lágrimas várias vezes.

Como executantes do testamento, Marx e Engels ficaram espantados ao

descobrir que o modesto Lupus tinha amassado uma pequena fortuna à custa

de trabalho árduo e poupanças. Mesmo após terem sido deduzidas as des

pesas do funeral, impostos, cem libras para E,ngels e outras cem para o mé

dico de Wolff, Louis Borchardt — o que muito irritou Marx, pois conside

rava este «bombástico incompetente» responsável pela morte do amigo —,

ainda ficavam 820 libras para o principal herdeiro. Isto era muito mais do que

Marx jamais tinha ganho com a escrita e explica porquê o primeiro volume

de O Capital (pubHcado três anos mais tarde) é dedicado ao «meu inesque

cível amigo, Wilhelm Wolff, intrépido, fiel e nobre protagonista do proleta

riado», e não ao mais óbvio e valioso candidato, Friedrich Engels.

Os Marx não perderam tempo a gastar aquele dinheiro caído do céu.

Jenny mobilou e redecorou a casa de novo, explicando que «achei melhor

usar o dinheiro nisto do que gastá-lo aos poucos em ninharias». Foram com

prados animais de estimação para as crianças (três cães, dois gatos e dois

pássaros), que receberam os nomes das bebidas favoritas de Karl, incluin

do Whisky e Toddy. E m Julho, Marx levou toda a família a passar férias em

Ramsgate durante três semanas, embora a erupção de um furúnculo malig

no na ponta do pénis tenha estragado a diversão e o obrigasse a ficar de cama

na pensão bastante amuado. «O teu amigo filisteu, e ainda mais a sua cara-

-metade e a sua progenitura feminina, estão aqui a divertir-se à grande», ob

servou, contemplando a praia com inveja através da janela.«É quase deprimen

te ver o venerável oceano, esse antigo Titã, a ter de suportar estes pigmeus a

gozar ã sua frente e a servir-lhes de diversão.»'' Os furúnculos tinham substi

tuído os oficiais de diligência como fonte principal de irritação. Mas, a maior

parte das vezes, ele tratava-os com o mesmo desprezo negligente. Nesse

OS BULDOGUES E A HIENA «IÍÍÍ* 231

Outono, deu um grande bañe na nova moradia em honra ác Jennychen e Laura,

que tinham passado muitos anos a recusar convites para festas por recearem

não poder retribuir a atenção. Cinquenta dos seus jovens amigos divertiram-

-se até às quatro da manhã, e restou tanta comida que a pequenina Tussy foi

autorizada a convidar as crianças da vizinhança no dia seguinte.

Numa carta á Lion Philips, escrita no Verão de 1864, Marx revelou um

pormenor do seu novo estilo de vida ainda mais notável:

«Lima coisa que não deixará de te surpreender é que tenho andado a

especular na Bolsa — em parte em fundos americanos e, em especial, em

acções inglesas, as quais estão a crescer como cogumelos este ano (para

espanto de todas as sociedades de acções imagináveis e inimagináveis) e

a atingir níveis pouco razoáveis para, depois, na maior parte, cair. Ganhei,

desta forma, mais de 400 libras, e agora que a complexidade da situação

política permite mais oportunidades, vou começar tudo de novo, Trata-

-se de um tipo de operação que não exige muito tempo e que, embora

se corra alguns riscos para subtrair dinheiro ao inimigo, vale a pena.»^

Como não há provas de tais transacções, alguns historiadores assumiram

que Marx inventou simplesmente esta história para impressionar o tio. Mas

pode muito bem ser verdade. Mantinha-se certamente inform^ado quanto ao

preço das acções e, ao falar com Engels sobre o próximo pagamento prove

niente das propriedades de Lupus, mencionou que «se eu tivesse tido dinhei

ro nestes últimos dez dias, teria feito um grande negócio na Bolsa daqui. Com

esperteza e uma quantia modesta pode-se ganhar dinheiro em Londres.»^

A especular no mercado, a dar festas e a passear os cães no parque, Marx

corria o grande perigo de se tornar respeitável. Um dia, recebeu um curio

so documento anunciando que fora eleito, sem o saber, para a sinecura

municipal de «Grande Oficial da Ordem de São Pancrácio». Engels achou

isto hilariante: «Salut, ô connétable de Saint Pancrace! Agot2i devias arranjar um

traje adequado: uma camisa de noite vermelha, uma touca branca, chinelos,

calças brancas e um cachimbo comprido.»'^ Mas Marx boicotou a cerimónia

de investidura, seguindo o conselho de um vizinho irlandês que «eu devia

dizer-lhes que era estrangeiro e que fossem para o diabo que os carregue»."'

Desde a ruptura da Liga Comunista que Marx estava determinado a não

se juntar ao que quer que fosse e rejeitava os comités e partidos que tenta

vam recrutá-lo. «Agrada-me imenso o isolamento público em que nós dois,

232 p ' KJ\RLMARX

tu e eu, actualmente vivemos», tinha já dito a Engels em Fevereiro de 1851,

e certamente que seria preciso mais do que os filisteus de São Pancrácio para

o tirar dessa longa hibernação. Após 30 anos de «autêntico isolamento» (em

bora nem sempre pacífico e tranquilo), Marx ainda não estava preparado para

emergir. A primeira indicação de um novo estado de espírito pode ser de

tectada na sua entusiástica reacção ao levantamento de 1863 na Polónia

contra a opressão czarista. «O que é que pensas do que se está a passar na

Polónia?», perguntou a Engels a 13 de Fevereiro. «Uma coisa é certa, a tem

porada das revoluções abriu novamente na Europa.» Quatro dias mais tar

de, ele tomou a decisão que a intervenção da Prússia a favor do czar contra

os insurgentes polacos «impele-nos a falar». Nessa altura, ele estava simples

mente a pensar em escrever um panfleto ou um manifesto — e, de facto,

publicou uma breve Proclamação sobre a Polónia, em Novembro. Mal podia

então imaginar que, dentro de 11 meses, seria o verdadeiro líder do primeiro

movimento de massas da classe operária internacional.

A vida adulta de Marx tem um ritmo de maré em que as vagas espuman

tes, que avançam, são seguidas por um longo rugido de recuo. Este movi

mento alternativo de envolvimento e isolamento ultrapassava em grande

parte o seu controlo, o qual era ditado por acidentes e circunstâncias —

doença, exílio, catástrofes domésticas, reserva política, amizades destroçadas.

Mas também pode ser visto como a obstinada necessidade de reconciliar a

teoria e a prática, a contemplação privada e o empenho social. A exemplo

de muitos escritores, ele era uma espécie de solitário gregário que ansiava por

um pouco de solidão, a fim de poder trabalhar ininterruptamente, mas que

também desejava o estimulo da acção e do debate. Marx sentia esse dilema

mais profundamente do que a maioria, pois a separação dos indivíduos da

sociedade constituía uma das suas principais obsessões.

• N u m ensaio de 1835 cheio das simples certezas de um rapaz de 17 anos

que acabou de comprar a sua primeira navalha de barbear, o problema era

eliminado tão facilmente como os pelos da barba de um jovem. «Directiva

principal que nos deve guiar na escolha de uma profissão é o bem-estar da

humanidade e a nossa própria perfeição», escreveu. «Não se deve pensar que

estes dois interesses sejam conflituosos.» E porque não? Porque a natureza

hpmana era constituída de modo a que os indivíduos alcançassem o apogeu

da perfeição através da sua dedicação aos outros. Aquele que trabalha só para

si mesmo «pode talvez tornar-se famoso, um grande erudito ou um poeta

OS BULDOGUES E A HIENA - ' - 233

excelente, mas nunca pode ser um homem verdadeiramente perfeito e no

tável». A história aclama apenas quem se enobrece enriquecendo a sua tri

bo e «a própria religião ensina-nos que o ser ideal que todos se esforçam por

imitar se sacrificou para salvar a humanidade... Quem ousaria não tomar isto

em conta?»

O próprio Marx, por exemplo. Após perceber que a religião não era cura

para a alienação, mas simplesmente um opiáceo para amenizar a dor, viu-se

forçado a procurar a perfeição noutro sítio — em primeiro lugar, na auto

consciência unificadora da filosofia hegeliana e, depois, no materialismo

histórico. Mas não havia meio de escapar ao velho argumento teológico da

fé contra o trabalho, o qual meramente assumia uma forma secular — teo

ria contra prática ou palavras contra feitos.

«Os filósofos limitaram-se a interpretar o mundo de várias maneiras; o

ponto fundamental é mudá-lo», declarou em 1845, como se abolisse a divi

são do trabalho de uma penada: no futuro, toda a gente seria filósofo e sol

dado, assim como todos nós deveríamos guardar os rebanhos de manhã,

pintar um quadro à tarde e pescar ao anoitecer. Nessa época, Marx, toma

do de fervor existencialista, não tinha paciência para com a mentalidade

daqueles que viviam em torres de marfim. N u m artigo pouco conhecido de

1847, ridicularizou o jornalista belga, Adolphe Bartels, que se tinha assus

tado com as actividades revolucionários dos refugiados alemães:

«O Sr. Adolphe Bartels declara que, para ele, a vida púbuca terminou.

E, de fato, retirou-se para o conforto da vida privada e não faz tenção de lá

sair; limita-se a protestar sempre que ocorre qualquer manifestação públi

ca e a proclamar em voz alta que é dono de si mesmo, que o movimento

foi feito sem ele, Sr. Bartels, apesar dele, Sr. Bartels, e que tem o direito

de lhe recusar a sua sanção suprema. Temos de concordar que isto é uma

maneira de participar na vida pública como qualquer outra e que, através

de todas estas declarações, proclamações e protestos, o homem público

se esconde por detrás da aparência modesta do indivíduo privado. E deste

modo que o génio pouco apreciado e mal compreendido se revela.»"

E m alguns anos, porém, Marx veio a acreditar que um génio mal com

preendido como ele podia muito bem participar na vida pública, lançando

protestos e proclamações da solidão da sua secretária. Há uma altura para

tudo: altura para estragar e outra para remendar; tempo de guerra e tempo

234 KARLMARX

de paz. Ou, então, para confundir as referências, porquê imitar a acção do tigre quando o clamor da guerra se calou?

Daí o impressionante contraste entre o seu sardónico ataque a Bartels e o prefácio autobiográfico em Uma Contribuição para a Crítica da Economia Politica (1859), onde confessou que o encerramento do Rheinische Zeitung, em 1843, tinha-lhe dado a oportunidade há muito aguardada «de trocar a vida pública pelo estudo» que ele «avidamente aproveitou». Esse prefácio foi escrito no decorrer de um afastamento muito mais longo dos assuntos públicos — uma abstinência que ele não mostrou desejo de pôr fim, muito embora os jornais alemães censurassem por vezes a sua inactividade. E m 1857, um grupo de revolucionários de Nova Iorque escreveu-lhe suplicando que restaurasse a velha Liga Comunista em Londres; levou mais de um ano a responder e, quando o fez, foi para explicar que «não estou associado com nenhuma organização desde 1852, e que estou firmemente convencido de que os meus estudos teóricos são de maior importância para a classe operária do que me misturar com associações que já passaram de moda no continente». Como contou a Ferdinand Freiligrath, em Fevereiro de 1860, «enquanto tu és poeta, eu sou crítico e, para mim, as experiências de 1849-52 chegaram-me. A Liga, como a maior parte da société des saisons em Paris e centenas de outras, foi simplesmente um episódio na história de um partido que está a germinar naturalmente em toda a parte do solo da sociedade moderna»^^. Esta metáfora orgánica é a descrição mais apta de como a Associação Internacional do Operariado emergiu à luz do dia quatro anos mais tarde.

Parece quase paradoxal dizer que uma organização com o nome de Internacional podia ter começado em Inglaterra, onde a insularidade há muito não só tem sido um capricho geográfico como um modo de vida; gerações e crianças aprenderam a recitar o poema de Shakespeare sobre esta ilha coroada, este outro Paraíso:

Esta pedra preciosa incrustada no mar de prata, O qual lhe serve de muralha, Ou fosso defensivo de uma casa. Contra a inveja de nações menos afortunados, Este terra abençoada, este reino, esta Inglaterra...

Quando os ingleses falam da «Europa», ou «o Continente», não inclui o seu próprio país: referem-se ao estrangeiro, um lugar estranho e selvagem onde os nativos urinam nos sapatos e comem alho na cama. Claro que se

OS BULDOGUES E A HIENA ««".•• 235

pode visitar o estrangeiro — e conquistá-lo para criar o maior império que

jamais existiu —, mas a finalidade de tais expedições, quer por diplomatas

vitorianos apoiados por força armada ou modernos vândalos do futebol, é

para lembrar ao estrangeiro que ele será sempre inferior. Afinal de contas,

que outra nação pode gabar-se de se ter erguido do oceano azul por ordem

dos céus? O humorista do século XIX, Douglas Jerrold, amigo de Dickens

e colaborador da revista Punch, não estava a brincar ao escrever: «A melhor

coisa que conheço entre a França e a Inglaterra é. . . o mar.» Estas meias pia

das ainda são comuns nas manchetes dos tablóides ingleses. A própria ideia

de Inglaterra chega a transformar pessoas inteligentes em vendedores de

banha de cobra. «Ao regressar a Inglaterra de um país estrangeiro, tem-se

imediatamente a sensação de respirar um ar diferente», escreveu George

Orwell num ensaio famoso e exageradamente elogiado. «Nos primeiros

minutos, dúzias de pequenos pormenores conspiram para dar essa sensação.

A cerveja é mais amarga, as moedas mais pesadas, a erva mais verde . . .»"

Pobres países estrangeiros: nem sequer sabem cultivar relva decente.

Juntamente com a fanfarronice e a xenofobia, existe ainda outra tradição

— mais discreta, mas não menos persistente — do internacionalismo inglês,

em particular entre os sindicalistas. Basta pensar na sua campanha contra o

apartheid sul-africano e na sua recusa em produzir artigos para a ditadura

chilena na década de 1970: pelo menos alguns operários britânicos quiseram

mostrar, repetidas vezes, uma solidariedade instintiva com os oprimidos.

Como disse o cartista George Julian Harney aquando da insurreição portu

guesa em 1847: «As pessoas estão a começar a compreender que tanto as

questões estrangeiras como as domésticas as afectam; que uma agressão à

Liberdade no Tejo é uma ofensa aos amigos da liberdade no Tamisa; que o

sucesso do republicanismo em França é o fim da tirania em outros países;

e que o triunfo da carta democrática em Inglaterra é a salvação de milhões

de pessoas na Europa.»^"^ Seria fácil pensar, como as classes dirigentes des

sa época fizeram, que os amigos da liberdade e do Tamisa só existiam na ima

ginação de Harney. Porque outro motivo se manteve a Inglaterra imune à

epidemia revolucionária que se alastrou pelo resto da Europa em 1848? O

partido dos Democratas Fraternais de Harney — cujo comité incluía refu

giados de França, Alemanha, Suíça e Escandinávia — podia organizar reu

niões para debater os empolgantes acontecimentos que ocorriam no Con

tinente, mas estavam os operários britânicos interessados na luta que se

travava em países distantes e sobre a qual nada sabiam?

236 j ^ , KARL MARX

A resposta foi proporcionada pelo espantoso «incidente Haynau», em

1850 — o qual, por feliz coincidência, teve lugar mesmo à beira do Tamisa.

O marechal barão Von Haynau era um comandante austríaco brutal, conhe

cido por a Hiena; tinha ganho tal alcunha por ter torturado prisioneiros e

chicoteado mulheres na supressão de revoltas na Itália e Hungria. E m Agos

to de 1850, e para repousar de obrigações tão fatigantes, foi passar umas cur

tas férias a Londres, onde o seu itinerário turístico incluiu uma visita à torre

de Barclay e à fábrica de cerveja Perkins na margem sul do Tamisa. Embo

ra George Julian Harney tivesse encorajado todos os amigos da Liberdade

para protestar contra essa visita, tinha poucas esperanças de sucesso — e

ficou tão surpreendido como os outros com o que aconteceu a seguir. «As

sim que a Hiena entrou na fábrica de cerveja, um grupo de trabalhadores

atirou-lhe com um fardo de palha à cabeça e lançou-lhe uma saraivada de

estrume. O barão fugiu para a rua, mas outras pessoas juntaram-se à perse

guição — rasgando-lhe a roupa, arrancando-lhe tufos do bigode e gritando:

"Abaixo o carniceiro austríaco!"»^^ Haynau tentou esconder-se num caixo

te do lixo da George Inn, em Bankside, mas foi descoberto e apedrejado.

Quando a polícia chegou à estalagem e o levou de barco para a outra mar

gem do Tamisa, o esfarrapado e humilhado marechal já não estava ern es

tado para prosseguir as férias. E m poucas horas, uma nova canção ressoava

nas ruas de Southwark:

i, Ponham-no daqui para fora,

Tirem-no desta margem do Tamisa,

Deixem-no ir ter com os tories

E as senhoras finas.

E pavonear-se em West End,

Mas nunca mais há-de voltar a Bankside.

O jornal Red Republican, de Harney, viu neste incidente a prova dos «pro

gressos alcançados pela classe operária em matéria poKtica, do seu incorruptível

amor da justiça e do seu intenso ódio pela tirania e a crueldade». Tanta gente

compareceu a uma celebração em Farringdon Han, no decorrer da qual Engels

discursou, que muitas pessoas não puderam entrar. Inúmeras associações de

trabalhadores — de Paris a Nova Iorque — enviaram felicitações e até mes

mo Palmerston ficou secretamente divertido, considerando que a administra

ção de um pouco do remédio do marechal ao próprio não lhe faria mal ne-

OS BULDOGUES E A HIENA ::„_. 237

nhum. Mas os jornais conservadores, como o Quarterly Keview, não acharam

piada nenhuma: os motins de Bankside eram uma alarmante «indicação de

influência estrangeira no meio do nosso povo» — influência estrangeira era

o eufemismo-padrão do século XIX para o temível vírus do socialismo.

O Quarterly Keview não precisava de se preocupar; pelo menos por en

quanto. Ao longo dos dez anos seguintes, o espírito de Bankside permaneceu

invisível e os poucos grupos socialistas na Grã-Bretanha — a Liga Comu

nista, os Cartistas, os Democratas Fraternais — adormeceram ou desapare

ceram. Só por volta de 1860 é que o proletariado acordou do seu longo sono.

Conforme o historiador Eric Hobsbwan observou, esse despertar manifes-

tou-se numa «curiosa amálgama de acção política e industrial, de vários

géneros de radicalismo — do democrático ao anárquico —, de lutas de

classe, alianças entre classes sociais e governo, e concessões capitalistas.

Mas, acima de tudo, era internacional, não apenas porque, como o despertar

do Liberalismo, ocorreu simultaneamente em vários países, mas porque era

inseparável da solidariedade internacional das classes operárias»."'

O Conselho Comercial de Londres, fundado em 1860, estava por detrás

de grande parte dessa actividade. Organizou uma demonstração (a qual atraiu

uma multidão de cerca de 50 000 pessoas) para receber o libertador italiano

Giuseppe Garibaldi, e, em Março de 1863, em plena Guerra de Secessão,

apoiou uma reunião pública em St. James' Hall para apoiar a luta de Abraham

Lincoln contra a escravidão. Marx, que se deslocou de propósito para a oca

sião, teve o prazer de notar que «os próprios operários exprimiram-se real

mente muito bem sem vestígios de retórica burguesa».^'' Mas não se pode

ignorar a involuntária contribuição de Napoleão III, o qual convidou uma

delegação de trabalhadores franceses a visitar Londres durante a Exposição

de 1862, proporcionando-lhes assim a oportunidade de estabelecer contacto

com indivíduos como George Odger, secretário do Conselho Comercial.

Quando vários desses representantes voltaram a Londres em Julho de 1863

para celebrar a insurreição polaca, Odger fez uma alocução em norae do ope

rários de Inglaterra aos operários de França, propondo que formalizassem

a sua solidariedade. Foi convocada outra reunião para o dia 28 de Setembro

de 1864 — desta vez no cavernoso St Martin's Hall, em Convent Garden —,

a fim de consagrar essa nova união e a criação da Associação Internacional

dos Trabalhadores.

O nome da associação merece ser comentado: se isto viesse a ser mais

do que uma mera aliança anglo-francesa, deviam ter pelo menos acrescen-

238 « , KARL MARX

tado outras figuras simbólicas provenientes de outros países. Exactamente

por isso é que, uma certa manhã de Setembro de 1864, um jovem francês

chamado Victor Le Lubez foi bater à porta do número 1 de Modena Villas

e pediu a Karl Marx para sugerir alguém que falasse em nome dos «trabalha

dores alemães». O próprio Marx era demasiado burguês para ser elegível e,

assim, recomendou Johann Georg Eccarius, alfaiate refugiado e velho alia

do da Liga Comunista. É de admirar que Le Lubez e Odger não tivessem

pensado em Eccarius, pois conheciam-no bem devido à sua participação no

Conselho Comercial de Londres. Talvez a familiaridade tivesse dado azo a

desprezo, sentimento que Eccarius despertava com frequência: os seus

modos desajeitados e sem humor antagonizaram quase toda a gente que

trabalhou com ele e eles devem ter julgado que Maiií conseguiria arranjar um

orador proletário mais inspirado.

Vale a pena fazer uma pequena pausa para considerar o que o apoio de

Marx a Eccarius nos diz acerca do seu próprio carácter. Segundo a lenda

incansavelmente divulgada pelos seus críticos, Marx era um snob incorrigí

vel que desprezava os socialistas da classe operária e os considerava uns

burros que tinham adquirido ideias que os ultrapassavam. O biógrafo Robert

Payne, por exemplo, fala do «desprezo de Marx pela humanidade, *em, par

ticular o sector chamado proletariado»^*^. Até mesmo o sofisticado especia

lista de Marx, o professor Shiomo Avineri, escreve que «a céptica perspec

tiva de Marx quanto à capacidade do proletariado conceber os seus próprios

objectivos e concretizá-los sem ajuda intelectual exterior tem sido frequen

temente documentada. Isto confirma a sua observação de que as revoluções

nunca começam com as "massas", mas têm a sua origem em grupos de elite»^^.

Onde é que essas perspectivas e observações se encontram documentadas?

Não nas obras de Marx nem nas notas de Avineri^°. Este menciona que Marx

tinha uma atitude arrogante em relação a Wñhelm Weitiing, mas, como vimos,

ele até o tratou com bastante generosidade, argumentado que não se devia ser

demasiado brutal com um pobre alfaiate que sofrera realmente por causa das

suas crenças. E o que provocou a sua zanga não foi desdém pelas classes

baixas, mas exaspero perante as ilusões políticas e religiosas de um ego

cêntrico insuportável. N o caso de Weitling ter sido um intelectual da classe

média, Marx tê-lo-ia tratado de forma muito mais brutal.

O que nos traz à segunda prova de Avineri. «Até mesmo um dos seus

adeptos mais leais, George Eccarius, também alfaiate de profissão, foi víti

ma de desprezo imerecicio por parte do seu mestre e professor.» Mas, mais

OS BULDOGUES E A HIENA 239

uma vez, não cita quaisquer fontes: é evidente que o desprezo de Marx por

alfaiates, sapateiros e outras vis profissões era tão universalmente conheci

do que nem sequer precisava de ser comprovado.

Isto é exactamente o oposto da verdade. Foi Marx quem deu a primeira

oportunidade a Eccarius ao publicar o seu artigo, «Alfaiate em Londres», no

efémero jornal londrino NRZ Review. «O autor deste artigo», informou Marx

os leitores, «trabalha numa das alfaiatarias de Londres. Perguntamos à bur

guesia alemã quantos autores possui que sejam capazes de apreender o

movimento genuíno de maneira semelhante?... O leitor notará como, aqui,

em vez das críticas de ordem sentimental, moral e psicológica usadas con

tra as condições existentes por Weitling e outros trabalhadores, uma com

preensão puramente materialista e mais livre, isenta de caprichos sentimen

tais, confronta a sociedade burguesa e o seu movimento.»^^

Não há nisto quaisquer sinais de desprezo. Ao longo dos maus momen

tos da década de 1850, Marx manteve-se atento e complacente, ajudando

Eccarius a publicar artigos em jornais de língua alemã no estrangeiro com

a esperança de o salvar do árduo trabalho que o ocupava das cinco da manhã

até às oito da noite na alfaiataria. «Se houver dinheiro, sugiro que Eccarius

seja o primeiro a receber para que não tenha de passar todo o dia a trabalhar»,

aconselhou um colega jornalista em Washington. «Tenta, se for possível,

arranjar-lhe algum dinheiro.» Por mais dramática que fosse a sua própria

situação financeira, insistia sempre para que Eccarius tivesse prioridade.

Quando Eccarius adoeceu com tuberculose, em Fevereiro de 1859, Marx

descreveu o mal do companheiro como «a coisa mais trágica que vivi aqui

em Londres»^^. Uns meses mais tarde, observou tristemente que Eccarius

«andava de novo a passar um mau bocado na alfaiataria»^^ e pediu a Engels

que enviasse umas garrafas de vinho do Porto ao pobre homem para o

animar. E m 1860, obrigado por motivos de saúde a desistir do emprego

durante uns tempos, Eccarius foi viver para um quarto à custa de Marx, o

qual também lhe arranjou trabalho na imprensa americana a três dólares por

artigo. Quando três dos filhos de Eccarius morreram durante a epidemia de

escarlatina, em 1862, foi também Marx que, apesar de estar quase na misé

ria, angariou fundos para cobrir as despesas do funeral, e, finalmente, quando

lhe pediram para nomear um orador para a histórica assembleia pública de

1864, foi ele novamente quem deu o nome do seu velho amigo. Eccarius

«saiu-se admiravelmente», disse, depois, Marx a Engels, acrescentando que

ficara muito contente por ter permanecido calado. N o entanto, muitos his-

240 %, KARL MARX

toriadores continuam a repetir ainda hoje que Marx desdenhava gente de

profissão modesta.

A verdade é que foi a presença de muitos trabalhadores autênticos — e

a refrescante falta de diletantes da classe média pretensiosos — que o atraí

ram para o encontro inaugural da Internacional persuadindo-o «a abando

nar a minha habitual atitude de declinar esse tipo de convites». E, apesar de

ter estado presente em St Martin's Hall apenas como observador, foi eleito

para o Conselho-Geral no fim da sessão.

Parece haver aqui um ligeiro paradoxo. Na medida em que Marx era in

discutivelmente um intelectual burguês, não iria ele diluir a pureza prole

tária que tanto admirava ao juntar-se a esse conselho? Para responder a esta

pergunta precisamos de olhar mais de perto para a composição da Interna

cional. O Conselho-Geral era formado por dois alemães (Marx e Eccarius),

dois italianos, três franceses e 27 ingleses — quase todos da classe operá

ria. Tratava-se de uma mistura confusa: sindicalistas ingleses defendiam

apaixonadamente o interesse de liberalizar as negociações colectivas, mas

não estavam interessados na revolução socialista; adeptos franceses de

Proudhon que sonhavam com a utopia, mas não gostavam de sindicatos;

mais alguns republicanos, discípulos de Mazzini e defensores da liberdade

polaca. Discordavam sobre quase tudo — em particular do papel, se tal

fosse o caso, que a classe média esclarecida desempenharia na Internacio

nal. Numa carta a Engels, escrita dois anos depois da sua fundação, Marx

informava-o de um contratempo típico:

«Para exasperar os cavalheiros franceses — que queriam excluir toda

a gente excepto os trabalhadores manuais de ser membros da Associa

ção Internacional ou, pelo menos, de ser eleitos como delegados do con

gresso — os ingleses propuseram-me ontem para Presidente do Conse

lho-Geral. Declarei que em nenhumas circunstâncias aceitaria tal coisa

e propus Odger (o líder sindical inglês), que foi então reeleito, embora

algumas insistissem em votar por mim apesar da minha declaração.»^"^

O livro de minutas desta assembleia regista que Marx «se considerou

incapacitado porque era um trabalhador cerebral e não manual, mas não foi

assim tão simples. (O seu desejo de continuar a escrever O Capita/deve ter

tido influência.) Uns anos mais tarde, quando um médico chamado Sexton

foi proposto como membro, houve os habituais comentários: «Se deviam ser

OS BULDOGUES E A HIENA --*" * 241

acrescentados profissionais no Conselho; segundo as minutas, "o cidadão

Marx achou que, embora a grande maioria do Conselho fosse composta por

trabalhadores, a admissão de profissionais não era de temer".»^^ E m 1872,

quando houve receio de que várias seitas americanas excêntricas se infiltras

sem na Internacional, foi o próprio Marx quem propôs — com sucesso —

que nenhuma fosse autorizada a filiar-se a não ser que pelo menos dois terços

dos seus membros fossem trabalhadores assalariados.

E m resumo, embora aceitasse que a maior parte da direcção e dos mem

bros pertencesse à classe trabalhadora, Marx não se intimidou por não ter

credencias proletárias: homens como ele ainda tinham muito para oferecer

à associação, desde que não abusassem da sua posição hierárquica nem ar

massem em vedetas. Engels seguiu este exemplo, mas sendo um capitalista

abastado mostrava-se compreensivamente mais relutante em se impor.

Depois de ter vendido a sua parte na firma da família e mudar-se para Lon

dres em 1870, aceitou um lugar no Conselho-Geral quase imediatamente,

mas recusou ser tesoureiro. «O cidadão Engels objectou que só um traba

lhador deveria ser nomeado para um cargo relacionado com finanças», está

assente nas minutas. «O cidadão Marx achou que tal objecção não era defen

sável, pois um homem com experiência comercial era o mais indicado para

desempenhar tal cargo.»

Engels manteve a sua recusa — e tinha provavelmente razão. Como o

historiador marxista Hal Draper sublinhou, lidar com dinheiro era o posto

mais susceptível de uma associação de trabalhadores, pois acusações de irre

gularidade financeira eram bastante comuns sempre que havia um conflito

político; e um homem de negócios recentemente chegado de Manchester era

um alvo óbvio para qualquer «cavalheiro francês» que quisesse criar sarilhos.

Marx pode ter preferido trabalhar nos bastidores, mas a verdade é que

trabalhou a valer: sem os seus esforços, a Internacional talvez se tivesse

desintegrado dentro de um ano. O Conselho reunia todas as terças-feiras na

sua miserável sede em Greek Street, no Soho — no sítio onde, quase um

século mais tarde, comediantes como Lenny Bruce e Peter Cook iriam em

pregar técnicas diferentes para sabotar os poderes estabelecidos. Os livros

de minutas mostram que ele estava satisfeito por fazer o seu trabalho. («Os

cidadãos Fox, Marx e Cremer foram delegados para assistir a Sociedade de

Compositores. . . O cidadão Marx propôs e o cidadão Cremer apoiou que o

Conselho-Geral agradeça ao cidadão Cottam a sua generosa doação. . . O

cidadão Marx declarou que sociedades na Basileia e em Zurique se tinham

242 V " ' I<j\RLMARX

juntado à Associação... O cidadão Marx informou ter recebido três libras

da Alemanha para cartões de sócios que ele devidamente entregou ao secre

tário financeiro...») A sua influência foi aparente desde o princípio. O assun

to que deu início à primeira assembleia do Conselho-Geral, a 5 de Outubro

de 1864, foi a proposta de Marx que Wüiam Randal Cremer, do Conselho Co

mercial de Londres, devia ser nomeado secretário. (O Sr. Cremer foi eleito por

unanimidade.) Mais tarde, nessa mesma noite, Marx foi eleito para um

subcomité, cuja tarefa era redigir as regras e princípios da nova Associação.

Até aqui, tudo bem. Mas, depois, Marx adoeceu, faltando assim às duas

reuniões seguintes. Levantou-se da cama a 18 de Outubro por causa de uma

carta urgente de Eccarius avisando-o de que, se não viesse ao Conselho-

-Geral naquela noite, uma série de medidas confusas e insípidas seriam apro

vadas na sua ausência. Marx dirigiu-se a custo à rua Greek e ouviu, aterra

do, o bravo Le Lubez 1er «uma declaração de princípios cheia de clichés e mal

escrita, em que Mazzini transparecia por debaixo de uma crosta dos mais

insubstanciais fragmentos de sociaKsmo francês» " . Após um longo deba

te, Eccarius propôs que este pouco apetitoso menu fosse revisto por um

subcomité, mas, para evitar tal manobra parecesse suspeita, prometeu

manhosamente que o seu «conteúdo» seria mantido.

Era a oportunidade que Marx necessitava. Tomando a sua expressão mais

inocente, sugeriu que o subcomité se reunisse dois dias mais tarde em sua

casa, a qual oferecia maior conforto (e uma cave mais abastecida de garra

fas de vinho) do que a pequena sala na rua Greek. Quando os delegados

apareceram, Marx pôs-se a discursar sobre regulamentos durante tanto tem

po que, por volta da uma da manhã, aitida não tinham chegado ao que in

teressava. Como é que a declaração estaria pronta a tempo para a próxima

assembleia do Conselho-Geral, cinco dias mais tarde? Os seus extenuados

colegas aceitaram então, a bocejar e com gratidão, que Marx se encarregas

se do assunto, e todos os documentos foram deixados com ele quando se

foram deitar.

«Vi logo que era impossível fazer qualquer coisa com aquilo para justificar

a alteração do conteúdo», contou a Engels. «Redigi então Um Comunicado à

Classe Operária (o que não fazia parte do plano original: uma espécie de revi

são das tribulações da classe operária desde 1845) e, a pretexto de que todos

os factos importantes se encontravam aí incluídos e que não devíamos repe

tir a mesma coisa três vezes seguidas, alterei o preâmbulo, excluí a déclaration

des principes e, finalmente, reduzi os 40 regulamentos a dez.»

OS BULDOGUES E A HIEN7\ •::«243

Para apaziguar os membros mais devotos e menos revolucionarios, in

cluiu umas referências à verdade, moral, dever e justiça, evitando o belige

rante floreado retórico que tinha animado o Manifesto Comunista. Como ex

plicou a Engels: «Até podermos novamente usar uma linguagem ousada, vai

demorar certo tempo. Temos áefortiter in re, suaviter in modo.» O que significa,

essencialmente, falar de forma amena com um varapau na mão.

Apesar dos anos passados em reclusão, Marx não tinha perdido nenhu

ma da sua antiga astúcia. Na reunião de 1 de Novembro, data marcada em

parte por sugestão dele, o Conselho-Geral admitiu vários novos membros,

entre os quais se encontravam Karl Pfänder, o veterano da Liga Comunista

que outrora examinara o crânio de Wilhelm Liebknecht; Hermann Jung,

relojoeiro suíço; Eugène Dupont , fabricante francês de instrumentos mu

sicais; e Friedrich Lessner, o alfaiate que, em 1848, tinha levado o manuscrito

do Manifesto Comunista à pressa. Todos eles apoiavam resolutamente Marx —

e este precisava de todo o apoio que pudesse arranjar, pois alguns dos mem

bros ingleses não estavam nada contentes com o novo texto. Uma das su

gestões mais amenas, conforme consta nas minutas, era que «devia ser dada

uma explicação (em nota de pé de página) quanto aos termos "nitrogénio"

e "carbono". (Marx achou isto desnecessário. «Não há necessidade de lem

brar ao leitor que», comentou em tom enfastiado na nota, «além dos elemen

tos da água e determinadas substâncias inorgânicas, o carbono e o nitrogénio

constituem as matérias-primas da alimentação humana.») A queixa mais

hostil proveio de um tipógrafo, William Worley, o qual, na última reunião,

tinha criticado a expressão, «o capitalista opunha-se ao trabalhador». Desta

vez, a sua consciência reformista sentia-se ofendida por Marx descrever os

capitalistas de «exploradores» e, por 11 votos contra dez, o conselho concor

dou em omitir a palavra inflamatória. A alocução foi a seguir aceite.

A aceitação unânime desta «revisão das tribulações da classe operária» é

um tributo à capacidade de Marx saber até onde podia ir. Não havia vaticí

nios nem espectros ou papões revolucionários a pairar sobre a Europa —

muito embora ele tivesse tentado arrepiar o leitor descrevendo a indústria

britânica como um vampiro que sobrevivia à custa do sangue de crianças.

Permitia, sobretudo, que os factos falassem por si, entremeando o documen

to com estatísticas oficiais tiradas da obra que estava a escrever, O Capital,

a fim de justificar a reivindicação que «a miséria da massa operária não di

minuiu de 1848 a 1864». Mas, como sempre, a sua tentativa para imaginar

uma alternativa era informe. «Como o trabalho escravo, ou o servil, a mão-

2 4 4 ^ ^ KARL MARX

-de-obra contratada é apenas uma forma inferior e transitória destinada a

desaparecer perante o trabalho colectivo exercido com determinação, espí

rito alerta e coração alegre.»

A alocução terminava com as palavras, «Proletários de todo o mundo,

uni-vos!»; a frase igualmente familiar encorajando-os para se livrarem das

correntes era diplomaticamente omitida. Mesmo assim, não se pode deixar

de perguntar com que profundidade foi o texto escrutinado pelos seus

colegas antes de ser aprovado. «Os senhores da terra e os senhores do ca

pital hão-de sempre utilizar os seus privilégios políticos para defender e

perpetuar o seu monopólio económico», anunciava nas páginas finais. «Con

quistar o poder poKtico tornou-se, por conseguinte, o dever da classe ope

rária.» Tais ideias eram anátema para muitos dos representantes ingleses do

Conselho-Geral que julgavam que o maior dever da classe operária era formar

sindicatos a fim de negociar melhores pagamentos e condições, deixando a

política para o Parlamento. Tal era certamente a opinião do impecavelmente

moderado secretário-geral, William Randal Cremer, o qual foi nomeado mais

tarde membro parlamentar da ala liberal e terminou a carreira como cavalei

ro do reino. O facto de até ele ter votado a favor da alocução demonstra os

poderes de persuasão de Marx. Como os veteranos da Liga Comunista sa

biam, entre os quais Pfänder e Lessner, a presença intimidadora de Marx —

os olhos negros, a ironia cortante, o seu formidável cérebro analítico ^ ha

veria sempre de dominar qualquer comité. Há pouco mais de um mês que

se sentara silenciosamente em St. Martin's Hall e já controlava tudo.

Mas a mera força da sua personalidade não era suficiente para apaziguar

as animosidades e querelas que inevitavelmente caracterizavam uma orga

nização tão híbrida e incongruente como a Internacional. Até mesmo o

pequeno contigente francês estava dividido em duas facções irreconciliáveis

de republicanos e adeptos de Proudhon. Os republicanos, representados por

Le Lubez, eram fundamentalmente radicais da classe média — partidários

da liberté, égalité etfranternité, mas menos entusiastas quanto a discussões so

bre a indústria ou propriedade. Os conscienciosos discípulos de Proudhon,

chefiados pelo gravador Henri Louis Tolain, consideravam as repúblicas e

os governos tiranias centralizadas que não serviam os interesses dos artesãos

e pequenos lojistas, cuja causa defendiam; tudo o que queria era uma rede

de sociedades de crédito mútuo e cooperativas a pequenas escala. Outro

proudhonista que se tinha tornado membro do Conselho-Geral em 1866 era

o jovem estudante de medicina, Paul Lafargue, que viria a casar-se com Laura

OS BULDOGUES E A HIENA ;; 245

Marx. Os seus primeiros encontros com o futuro sogro não foram lá mui

to prometedores. «O raio do jovem Lafargue está sempre a irritar-me com

as suas ideias protagonistas», queixou-se Karl a Laura. «E não há-de descan

sar até eu lhe pregar uma boa descompostura.»^^

Depois de um dos muitos discursos de Lafargue que afirmavam que as

nações e as nacionalidades eram puras tolices, Marx provocou a risota en

tre os seus colegas ingleses assinalando que «o nosso amigo Lafargue, assim

como os outros que aboliram a nacionalidade, dirigem-se a nós em francês,

uma Kngua que nove décimos da audiência não compreende»^*. E acrescen

tou ainda maldosamente que, ao negar a existência da nacionalidade, o jo

vem fanático «parecia implicar inconscientemente que fora absorvido pela

nação francesa».

Os bravos sindicalistas ingleses divertiam-se à custa destas disputas de

sabor francês, mas ficavam completamente espantados por Mazzini — uma

figura heróica em Londres — ser tratado pelos alemães e franceses como um

imbecil, cuja paixão pela liberação nacional tinha eclipsado a consciência de

classe. «A nossa posição, agora, é difícil», admitiu Marx após outra tumul

tuosa sessão na rua Greek, «pois, por um lado, temos de contrariar o imbe

cil italianismo dos ingleses e, por outro, a errada polémica dos franceses».

Era uma tarefa em que se perdia demasiado tempo. Numa carta a Engels

de Março de 1865, Marx descreveu o trabalho típico de uma semana: terça-

-feira à noite era consagrada ao Conselho-Geral; Tolain e Le Lubez tinham

brigado até à meia-noite e, depois, ele ainda tivera de se instalar numa tasca

da vizinhança para assinar 200 cartões de sócio. N o dia seguinte, tinha as

sistido em St Martin's Hall à comemoração do aniversário da insurreição

polaca. Reuniões de subcomités no sábado e na segunda-feira dedicadas à

«questão francesa», ambas as quais tinham durado até à uma da manhã, E,

na terça-feira seguinte, outra tempestuosa sessão do Conselho-Geral «dei

xara sobretudo os ingleses com a impressão de que a bancada francesa pre

cisava realmente de um Bonaparte!» Entre essas sessões, havia «gente que

surgia de todos os lados para falar comigo» sobre um sufrágio a ter lugar na 29 semana seguinte. «Que desperdício de tempo!»'

Engels pensava a mesma coisa e, após a morte de Marx, disse que «a vida

do Mouro sem a Internacional teria sido um anel de diamantes com o diamante

lascado»-'^ mas que, ao princípio, não conseguia compreender porquê o ami

go gostava de passar horas em lúgubres salas do fundo no Soho quando podia

muito bem estar sentado no seu gabinete de Hampstead a escrever O Capital.

246 KARL MARX .

«Estive sempre meio convencido de que a ingénua fraternidade que reinava na

Associação Internacional não duraria muito tempo», comentou presunçosa

mente em 1895, depois de outra zaragata entre os franceses. «Hás-de passar

por muitas mais destas crises e vais perder muito do teu tempo.»-^^ Até se re

tirar para Londres em 1870, Engels nunca participou nessas sessões.

Por volta de 1865, Marx era o verdadeiro líder da Internacional, embo

ra o seu título oficial fosse «secretário corresponde para a Alemanha». Mas

mesmo isso era um erro: a morte de Lassalle tinha-o deixado com poucos

amigos em toda a Alemanha — Wilhelm Liebknecht e o ginecologista Lud

wig Kugelmann —, e a maior parte da sua «correspondência» era uma tro

ca de gracejos sobre a alegada homossexualidade do sucessor de Lassalle,

Johann Baptist von Schweitzer, mais umas desdenhosas observações quanto

ao consternante atraso político da raça teutónica. «Não há nada que, de

momento, possa fazer na Prússia», escreveu ao Dr. Kugelmann. «Prefiro cem

vezes mais a agitação que passo aqui na Associação Internacional. O efeito

sobre o proletariado inglês é directo e da maior importância. Estamos ago

ra a tratar da questão do sufrágio-geral, cujo significado é evidentemente 32 maior do que na Prússia.

Ampliar o direito de voto era o problema parlamentar dominante do

momento — embora se deva acrescentar que as várias propostas de refor

ma apresentadas por tories e whigs, em meados da década de 1860, deviam

menos a princípios elevados do que a lutas para obter vantagens partidárias.

Havia inúmeros debates que, hoje em dia, parecem tão remotos e incom

preensíveis como a questão Schleswig-Holstein sobre os direitos de voto dos

«proprietários de terras com escritura», «tributários a seis libras» e «arrenda

tários vitalícios a 50 libras». Mas, no meio de todos os arcanos argumentos

quanto a caprichosos direitos de voto e voto colectivo, uma coisa era aceite

por todos os pares e membros do Parlamento: tinha de haver um tipo de

qualificação de propriedade qualquer para impedir que a populaça tivesse

uma palavra a dizer sobre os assuntos do país. «O que eu temo», escreveu

Walter Bagehot no seu livro, English Constitution, «é que ambos os nossos

partidos soHcitem o apoio do trabalhador e que ambos prometam fazer o que

ele quer.. .» Até mesmo a União de Reforma Nacional, um presumível gru

po de pressão radical, desejava apenas a emancipação de proprietários e

inquilinos que pagavam impostos.

Na Primavera de 1865, após uma reunião à cunha em St. Martin's Hall,

foi fundada uma liga reformadora para fazer campanha pelo sufrágio uni-

OS BULDOGUES E A HIENA ^ ^ 247

versal masculino. (A possibilidade que as mulheres quisessem ou tivessem

a capacidade de votar era aparentemente demasiado esquisita para merecer

consideração.) Marx e os colegas da Internacional dominaram o evento:

«Toda a liderança encontra-se nas nossas mãos», informou triunfalmente

Engels. N o ano seguinte, e enquanto se ocupava simultaneamente da Inter

nacional, da redacção de O Capital, das exigências da família e dos credores

— e, claro está, dos furúnculos no rabo, os quais era mais prolíficos do que

nunca, Marx envolveu-se com entusiasmo na cruzada. Atirou-se aos seus

adversários de navalha em punho, contemplando com viciosa satisfação

aquele derramamento de sangue. Por vezes, depois de passar várias noites

seguidas a deitar-se às quatro horas da manhã, sentia-se «infernalmente

esgotado» e desejava nunca ter acordado do seu estado de hibernação.

Valia o jogo tantas noites à luz da vela? Convenceu-se de que sim. «Se

conseguirmos reelectrificar o movimento político dos trabalhadores ingle

ses», escreveu depois e lançar a Liga Reformadora, «a nossa Associação já

terá feito mais pela classe operária europeia do que seria possível de outra

maneira. E há boas perspectivas de sucesso.»^-^ Mas tal não aconteceu. Os lí

deres sindicais reformistas, como Cremer e Odger, em breve fizeram con

cessões, decidindo que ficariam bastante satisfeito corno o voto dos donos

de casa em vez de um voto por homem. E foi isso, mais ou menos, o que

obtiveram. N o Verão de 1867, o Parlamento aprovou a Lei da Reforma de

Disraeli, a qual baixou a qualificação de propriedade para os eleitores rurais

e ampliou o direito de voto a todos os proprietários urbanos — duplican

do, assim, o número do eleitorado. Mas a vasta maioria da população ope

rária permaneceu sem direito a voto.

A Internacional nunca foi fiel ã hipérbole de Marx. Houve alguns suces

sos ao princípio, nomeadamente na sabotagem das tentativas dos patrões

ingleses contratarem mão-de-obra estrangeira como furadores de greves, e

a fama assim conseguida convenceu várias pequenas corporações a filiarem-

-se — entre as quais empresas com nomes exóticos como os Cordoeiros

Amalgamados de DarUngton, a Sociedade de Tanoeiros de Mãos Dadas, os

Marceneiros de West-End, os Encadernadores Diurnos, os Cabeleireiros

Ambulantes Ingleses, a Sociedade dos Tecedores de Teia Elástica e os Fa

bricantes de Charutos. Mas os grandes sindicatos industriais mantiveram-se

afastados. William Allen, secretário-geral dos Sociedade Amalgamada de

Engenheiros, chegou a recusar encontrar-se com uma delegação da Inter

nacional. Ainda mais exasperante foi o fiasco de não conseguirem a parti-

248 ¿ î « KARL MARX

cipação do Conselho Comercial de Londres, muito embora o seu secretário,

George Odger, ser também presidente da Internacional. Por altura do pri

meiro congresso europeu da Associação, que teve lugar em Genebra no

Verão de 1866, o número total de firmas filiadas era de 25 173 — número de

modo algum desprezível, mas longe de constituir prova que o proletariado

inglês fora «reelectrificado». A Internacional tinha de alargar os seus hori

zontes para além dos Cordoeiros de Darüngton, a fim de se expandir e fa

zer mais jus ao seu nome.

Apesar de Marx não ter ido ao congresso em Genebra, conseguiu, no

entanto, dominar os debates. Quando os proudhonistas franceses comuni

caram o seu bem ensaiado protesto contra os sociaMstas da classe média («to

dos os homens com o dever de representar a classe operária deveriam ser

operários»), WiUiam Randal Cremer defendeu o currículo dos poucos tra

balhadores não manuais que faziam parte do Conselho-Geral. «Entre esses

membros, nomearei apenas um, o cidadão Marx, que dedicou a vida ao triun

fo da classe operária.» Tal defesa foi a seguir retomada por James Carter, dos

Cabeleireiros Ambulante:

«O cidadão Marx acabou de ser mencionado; compreendendo per

feitamente a importância deste primeiro congresso, onde só deveriam

participar delegados da classe operária, ele recusou o convite do Conse

lho-Geral. Mas não é este o motivo que o impediu, a ele ou a qualquer

outra pessoa, de se juntar a nós. Pelo contrário. Aqueles que se dedicam

totalmente ã causa do proletariado são demasiado raros para nós os afas

tarmos. A classe média só triunfou quando, apesar de poderosa e rica, se

aliou a homens de ciências...»

Após este depoimento de barbearia, até mesmo o Mder da facção proud-

honista, Henri Tolain, se sentiu obrigado a felicitar o herói ausente. «Como

trabalhador, agradeço ao cidadão Marx por não ter aceite ser delegado. A sua

recusa mostra que este congresso deve contar apenas com a presença de

trabalhadores manuais.» A intenção do cidadão Marx não era de mostrar

nada disso e não existem provas de que ele não se tenha deslocado a Gene

bra para evitar ofender a sensibilidade proletária. Uma explicação mais pro

vável é que não esteve para aturar as enfadonhas arengas dos exclusionistas

franceses e poder, assim, continuar a trabalhar, sem ser interrompido durante

alguns dias, na redacção de O Capital.

OS BULDOGUES E A HIENA ,#G;,: 249

N o ano anterior, dissera a Engels que o manuscrito precisava apenas de uns

«retoques», os quais seriam feitos em Setembro de 1865. «De momento, ando

a trabalhar como um cavalo.» O seu amigo tinha ouvido muitas destas previ

sões optimistas ao longo dos anos, mas, dessa vez, Marx parecia realmente estar

na recta final — apesar da velha pileca ir a trote e não a galope. Tinha passa

do o Verão daquele ano a vomitar todos os dias («por causa do tempo quente

e consequentes crises hepáticas»), e uma repentina invasão de convidados

ainda mais o distraira. O pateta do irmão de Jenny, Edgar von Westphalen,

veio instalar-se em casa deles durante seis meses, esvaziando todas as garrafas

de vinho que havia na cave e «reflectindo sobre as necessidades do seu es

tômago de manhã à noite»; incluídos nas demais visitas figuravam o cunha

do de Marx que vivia na Africa do Sul, uma sobrinha de Maastricht e a fa

mília de Freiligrath. Foi o preço que ele teve de pagar por se ter mudado para

uma casa com quartos livres, mas era um preço que ele dificilmente podia

suportar. «Há dois meses que vivo exclusivamente à custa da casa de prego»,

resmungava, arreliado. «Tenho uma data de credores a bater-me à porta e a

situação está a tornar-se cada dia mais insustentável.»-^'^

N o entanto, no centro deste turbilhão, a sua obra-prima estava a apro-

ximar-se do fim. Por volta de 1865, O Capilal tinha 1200 páginas, uma con

fusão barroca de gatafunhos, riscos e manchas de tinta. N o primeiro dia do

Ano Novo de 1866, sentou-se para redigir uma versão Hmpa e pohr o estilo

— «lambendo o recém-nascido depois de longas dores de parto». Mas, então,

os furúnculos voltaram ao ataque. Por ordem médica, exilou-se durante um

mês em Margate onde pouco mais fez do que banhar-se no mar, tomar

arsénico três vezes ao dia e sentir pena de si mesmo. «Posso cantar como o

moleiro solitário: "Não me importo com ninguém e ninguém se importa

comigo." N o fim deste tratamento, os furúnculos desapareceram — sendo

substituídos por reumatismo e dores de dentes. A seguir, os velhos proble

mas de fígado voltaram e, mesmo nos dias em que ele se sentia suficiente

mente bem para trabalhar, aconteciam novas desgraças, como quando a pa

pelaria recusou fornecer mais resmas de papel até ser paga.

Com requintada falta de oportunidade, Paul Lafargue escolheu a altura

para pedir Laura Marx, que contava então 20 anos, em casamento. Após ter

conhecido Marx através da Internacional, o estudante crioulo de medicina

tinha transferido a sua atenção para a filha de olhos verdes e começara a fa-

zer-lhe a corte com um entusiasmo que Karl achava absolutamente indeco

roso. Lafargue era de qualquer modo suspeito, não pelas suas tendências

250 I<CARLMARX

proudhonistas como também por ter exótica ascendencia franco-hispano-

- afro-indiana, o que, para o eventual sogro, sugeria uma certa leviandade ge

nética. Assim que arranjou papel de carta, Marx escreveu uma carta ao ze

loso pretendente digna do mais vitoriano chefe de família.

«Meu caro Lafargue,

Permita-me fazer as seguintes observações:

1. Se desejar continuar as suas relações com a minha filha, terá de

abandonar a sua presente maneira de lhe fazer a corte. Sabe muito bem

que não há nenhum compromisso e que tudo está ainda por decidir.

E que mesmo que ela fosse oficialmente a sua noiva, não deveria esque-

cer-se que se trata de um assunto que demora muito tempo. A prática de

excessiva intimidade é especialmente inadequada, pois os dois namora

dos terão de viver no mesmo lugar por um período necessariamente

prolongado de purgatório e testes severos... Quanto a mim, o verdadei

ro amor exprime-se em reticências, modéstia e até mesmo timidez por

parte do namorado em relação ao seu objecto de veneração sem dar rédea

• solta à paixão em prematuras demonstrações de familiaridade. Se argu

mentar em sua defesa o seu temperamento crioulo, será naeu dever inter

por o meu sólido bom senso entre o seu temperamento e a minha filha. Se,

na presença dela, for incapaz de a amar em conformidade com a latitude

londrina, terá de se resignar e amá-la à distância.»^^

• • Na verdade, foi Marx, e não Lafargue, que atribuiu esse ardor — e qua

se tudo o mais — ao «temperamento crioulo». Ainda falava do assunto em

Novembro de 1882, contando a Engels que «Lafargue possui o defeito que

se encontra habitualmente nas tribos negras — nenhuma noção da vergonha, quer

dizer, nenhuma vergonha em fazer figura de parvo».'*''

Antes de dar o seu consentimento, Marx exigiu ao jovem uma lista com

pleta das suas perspectivas futuras. «Sabe que sacrifiquei toda a minha for-

mna à causa revolucionária», escreveu a Lafargue. «Não estou arrependido.

Muito pelo contrário. Se tivesse de viver de novo a minha vida, faria exac

tamente o mesmo. Mas não me casaria. Desejo quanto possível poupar a

minha filha aos escolhos onde a mãe dela arruinou a vida... Tem de realizar

algo na vida antes de pensar em casar e você e Laura terão de passar por um

longo período de provações.»^^^ Mas não foi assim tão longo. O noivado de

Laura Marx com Paul Lafargue foi anunciado em Setembro de 1866, apenas

OS BULDOGUES E A HIENA a ^ - 251

urn mês depois de Marx ter enviado essa carta, e casaram-se em St. Paneras,

a 2 de Abril de 1868. Marx, em veia pouco romântica, descreveu o casamento

como «um grande alívio para toda a família, pois era como se Lafargue vi

vesse connosco, o que aumentava perceptivelmente as despesas»'^^. Du

rante a festa, Engels contou tantas piadas sobre a noiva que esta fundiu-se

em lágrimas.^'

Sem a vivacidade de Jennychen e Eleanor, Laura nunca gostou de ser o

centro das atenções. «Como tenho o costume de me manter na sombra, sou

muitas vezes esquecida e ignorada pelos outros.)/'^ De todas as filhas de Marx,

ela era a mais parecida com a mãe: enquanto as irmãs sonhavam com car

reiras no palco, a única ambição de Laura era ser boa esposa. O primeiro

filho, Charles-Etienne (a quem chamavam Schnapps), nasceu a 1 de Janeiro

de 1869, quase exactamente nove meses depois do casamento, e foi segui

do por uma filha e outro rapaz no espaço de dois anos. Todos morreram

ainda bebés. Era impossível escapar àqueles escolhos onde a vida da mãe fora

destroçada. «Em todas estas lutas pela vida, somos nós, as mulheres, que

temos de suportar a parte mais difícil, porque é a mais insignificante», escre

veu Jenny Marx, chorando a morte dos netos. «Um homem tira forças do seu

combate com o mundo exterior, e a vista do inimigo, mesmo que seja uma

legião, revigora-o. Mas nós ficamos em casa a remendar peúgas.»'*^

10

o CÃO P E L U D O

Há muito que a casa em Modena Villas, 1 caiu em ruínas, mas Paul Lafar-

gue deixou uma descrição evocadora do caótico covil no andar de cima onde

Marx trabalhava, que deve alegrar o coração de todos os escritores desarru

mados do mundo:

«Do lado oposto à janela e em ambos os lados da lareira, havia estan

tes alinhadas contra as paredes cheias de livros e pilhas de jornais e ma

nuscritos até ao tecto. Diante da lareira, a um dos lados da janela, duas

mesas com livros e papéis empilhados em cima; no meio do gabinete,

uma pequena e simples secretária (90x60 centímetros) bem iluminada e

uma poltrona de madeira; entre esta e a estante, um sofá de cabedal onde

Marx costumava deitar-se de vez em quando para descansar. Mais livros,

charutos, fósforos, caixas de tabaco, pesos de papel e fotografias da mu

lher e das filhas de Marx, de Wilhelm Wolff e de Friedrich Engels co

briam a cornija da lareira...

Nunca deixava ninguém arrumar os livros e papéis — ou desarrumá-

-los. A desordem em que se encontram era apenas aparente, todo estava

na realidade onde devia estar e, assim, era fácil para ele encontrar o uvro

ou o documento que precisava. Mesmo enquanto conversava, fazia por

vezes uma pausa para mostrar num determinado Hvro a citação que ti

nha acabado de mencionar. Ele e o seu gabinete constituíam uma só en

tidade: controlava os livros e papéis que lá se encontravam tão bem como

os seus próprios membros.»^

2 5 4 * ^ KARL MARX

Isto é quase idêntico à descrição do relatório sobre a casa de Marx da rua

Dean, no Soho, escrito 12 anos antes pelo espião da polícia prussiana: «Ma

nuscritos, livros e jornais, bem como brinquedos de crianças, trapos e objec

tos do cesto de costura da mulher, várias chávenas partidas, facas, garfos,

lâmpadas, um tinteiro, dedais, cachimbos de espuma, tabaco, cinza — numa

palavra, mdo espalhado em desordem total.» Os seus hábitos de trabalho não

tinham mudado: continuava a gastar centenas de fósforos para acender o ca

chimbo e a abandonar charutos que se esquecia de fumar até ao fim. «O Ca

pital», disse a Lafargue, «nem sequer há-de pagar os charutos que fumei

enquanto o escrevia.»

A impossibilidade de fumar bons Havanas inspirou-lhe uma fantasiosa

ideia para fazer economias ao reparar numa tabacaria em Holsborn que, atra

vés do slogan «quanto mais fuma, mais poupa», vendia charutos ainda mais

baratos e malcheirosos do que os que ele fumava habitualmente. Ao mudar

para a nova marca, explicou aos amigos que, assim, economizava um xelim

e seis cêntimos por caixa, e, por conseguinte, se fumasse bastante poderia, um

dia, viver das suas economias. A teoria foi posta à prova com tantos ataques

de tosse que o médico da família teve finalmente de intervir e ordenar-lhe

que arranjasse outra maneira de enriquecer.

Marx passou o Inverno de 1866-67 com as doenças do costume, mas

mesmo elas já não podiam contrariar a sua determinação de terminar o pri

meiro volume de O Capital. Escreveu as últimas páginas de pé, pois os fu

rúnculos impediam-no de se sentar. (O habitual analgésico, arsénio, «embota-

-me demasiado o espírito e eu tenho de me manter bem atento».) O olho

experiente de Engels notou imediatamente certas passagens no texto «em que

os furúnculos tinham deixado marca», e Marx concordou que a febre devia ter

dado um tom lívido à prosa. «Espero que, em todo o caso, a burguesia há-de

lembrar-se dos meus furúnculos até morrer. São uma cambada de suínos!»^

N o entanto, após 20 anos de gestação, o ovo estava finalmente chocado.

«Tinha resolvido não te escrever até poder anunciar o fim do livro», disse a

Engels a 2 de Abril de 1867, «e tal é agora o caso.» Uma semana mais tarde,

e depois de ter enviado a inevitável carta a Engels a pedir-lhe dinheiro para

tirar a roupa e o relógio do prego, partiu para Hamburgo a fim de entregar

o manuscrito ao editor, Meissner. «Também não deixar a família sem um

tostão e com os credores cada vez mais atrevidos. Para terminar e antes que

me esqueça, todo o dinheiro que tinha para gastar com champanhe para

Laura desapareceu e ela, agora, quer vinho tinto da melhor qualidade. Voilà

o CAO PELUDO te<'íj;255

la situation.y? Como sempre, E-ngels resolveu a situation enviando-lhe sete

notas de cinco libras pelo correio.

Tendo-se despedido dos fiarúnculos e de O Capital, Marx deixou a Ingla

terra sentindo-se «tão voraz como 500 javalis»: até mesmo uma horrível

viagem de 52 horas com fortes rajadas e chuva não conseguiu diminuir o seu

entusiasmo. «Com toda aquela gente enjoada e a ser atirada de um lado para

o outro, poderia ter sido incómodo se um determinado núcleo não tivesse

aguentado», informou. O núcleo incluía um negociante de gado («um autên

tico John Buli, bovino em todos os aspectos»), um explorador alemão que

há 15 anos vagueava pelo Peru e uma senhora de idade com sotaque de

Hanôver muito devota. «O que é que fascinava esta bela criatora em circuns

tâncias tão hostis? Por que é que ela não se retirou para os seus aposentos?

O nosso aventureiro alemão regalava-nos com um excitante relato das de

pravações sexuais dos selvagens.»"^

Marx entregou a sua preciosa carga a Meissner que, por sua vez, a enviou

para a tipografia a fim de ser publicada em fins de Maio. O exultante autor

alojou-se no mês seguinte em casa do Dr. Ludwig Kugelmann, em Hanôver,

para rever as provas. «O Kugelmann é um médico muito famoso na sua

especialidade, a ginecologia», escreveu a Engels. «E, em segundo lugar, é um

adepto fanático (e, para meu gosto, demasiado vestfaHano) das nossas ideias

e, em particular, de nós dois. Por vezes, o seu entusiasmo incomoda-me.. .»

Embora os dois homens não se conhecessem pessoalmente, há anos que

Kugelmann lhe enviava cartas admirativas. Além do mais, Kugelmann pos

suía uma colecção mais completa das obras de Marx e Engels do que os

próprios interessados: durante a sua estada em casa do médico, Marx depa

rou com A Sagrada Vamília, livro que nunca mais vira desde que tinha per

dido o seu próprio exemplar pouco depois da publicação.

Apesar da sufocante adulação de Kugelmann, Marx escreveu, «ele com

preende e é, deveras, um homem excelente; mais importante ainda é o facto de

estar absolutamente convencido. Tem uma mulher encantadora (Gertrude) e

uma filha de oito anos (Franziska) que é um amor»^ Marx deu-lhes logo

alcunhas, sinal seguro de aprovação: a Sra. Kugelmann passou a ser a «senho

ra condessa» por causa da sua elegância social e bons modos, enquanto o

marido foi apelidado «Wenzeb>, nome de dois antigos dirigentes boémios de

contrastada reputação. «O meu pai era muito franco em relação às suas

antipatias e simpatias», recordou Franciska Kugelmann. «E Marx, em con

formidade com as atitudes dele, chamava-lhe o bom ou o mau Wenzel.»

2 5 6 ^ ^ I-ÍARLMARX

Quando o médico começava a discutir política na presença de Franziska ou

da senhora condessa, Marx silenciava-o imediatamente: «Não são conversas

para senhoras jovens, falaremos disso mais tarde.» E, em vez disso, o prazen

teiro erudito entretinha as senhoras com graças, anedotas literárias e canções

folclóricas. A única vez que se irritou foi quando uma visita lhe perguntou

quem engraxaria os sapatos num regime comunista. «Você», retorquiu Marx,

zangado. A Sra. Kugelmann interveio brincando com ele e comentando que

não conseguia imaginá-lo a viver numa sociedade verdadeiramente igualitária

pois os seus gostos e hábitos eram aristocráticos. «Eu também não consigo

imaginar tal coisa», concordou ele. «Esses tempos hão-de vir, mas nós já cá

não havemos de estar.» Certa vez, sentiu-se imensamente lisonjeado por

Kugelmann o achar parecido com um busto de Zeus que se encontrava na

sala — a poderosa cabeça, a cabeleira abundante, a fronte olímpica, a expres

são bondosa, mas autoritária.

Não foram só os Kugeknann que acolheram triunfalmente Marx enquanto

ele permaneceu em Hanôver. «A reputação que nós ambos temos na Alema

nha», escreveu a Engels, «em particular entre os funcionários "educados", é de

uma ordem muito diferente do que imaginávamos. Assim, o director do de

partamento de estatística aqui, Merkel, veio visitar-me no outro dia e disse-me

que tinha andado a estudar assuntos relacionados com dinheiro há anos sem

nenhum resultado, mas que eu o esclarecera imediatamente de uma vez por

todas.» Marx foi convidado para jantar pelo director da companhia de cami-

nhos-de-ferro local, que lhe agradeceu profusamente «dar-lhe tal honra». Ainda

mais lisonjeiro foi a chegada de um emissário de Bismark que lhe anunciou que

o Chanceler desejava «utilizá-lo, a si e ao seu enorme talento, para o bem do

povo alemão». E Rudolf von Benningsen, chefe da ala conservadora do Par

tido Nacional Liberal, compareceu em pessoa para lhe render homenagem.

Não admira que Marx se sentisse tão jovial. A sua saúde era excelente,

sem furúnculos à vista, e, apesar dos jantares bem regados todas as noites,

não havia traços de complicações hepáticas. Os anos sem dormir devido a

doenças, esqualidez e obscuridade encontravam-se, agora, nos caixotes do

lixo da história. «Tive sempre a sensação de que esse raio de Hvro, com que

andaste às voltas durante tanto tempo, era a causa de todos os teus infortú

nios», escreveu-lhe Engels a 27 de Abril. «E que nunca conseguirias safar-

-te até te veres livre dele.» •

Um atraso na tipografia fez com que ele só recebesse as provas a 5 de

Maio, dia do seu quadragésimo nono aniversário; mas até mesmo essa incon-

o CÃO PELUDO «^:j'257

veniência, a qual noutra altura teria provocado grande irritação durante um

dia ou dois, não conseguiu suprimir a sua boa disposição. «Espero e confian

temente creio que, dentro de um ano, hei-de resolver a minha situação finan

ceira e tornar-me, novamente, independente», predisse. Novamente? ^^L sua

vida adulta, nunca tinha havido um momento em que Marx não precisasse

de ajuda. Como ele mesmo admitiu numa carta a Engels: «Sem ti, nunca teria

sido capaz de terminar o meu trabalho e posso assegurar-te que o facto de

deixares a tua energia ser desperdiçada e enferrujar num trabalho comercial,

sobretudo por minha causa, além de partilhares as minhas pequenas misé

rias, sempre pesou como um pesadelo na minha consciência.» Umas frases

mais adiante, contudo, a angústia e o desânimo recomeçaram mais uma vez

a vir ao de cima. O editor aguardava o envio do segundo e do terceiro vo

lume antes do final do ano; os credores em Londres aprontavam-se para lhe

bater à porta assim que ele chegasse; «e, depois, os tormentos da vida fami

liar, os conflitos domésticos e as importunações constantes em vez de me

instalar para trabalhar calmo e sem cuidados».

As aflições de um londrino da classe média não são as mesmas dos in

digentes. O seu primeiro pedido a Engels, depois de ter regressado a Lon

dres, foi várias caixas de clarete e vinho do Reno, porque «as minhas filhas

têm de convidar outras raparigas para um baile no dia 2 de Julho. Não pu

deram convidar ninguém durante todo o ano nem aceitar convites e, por con

seguinte, estão quase a baixar de casta»''. Enquanto outrora se tinha batido

para arranjar uns cêntimos para comprar pão e jornais, agora as suas neces

sidades domésticas eram as de um suburbano ansioso para manter aparên

cias. Ao saber que o poeta FreiHgrath, depois de ter perdido o emprego na

filial londrina de um banco suíço, vivia actualmente em grande estilo à cus

ta da cotização de admiradores britânicos, americanos e alemães, sentiu-se

«muito vexado». O melhor tratamento era enviar as filhas para passar férias

em Bordéus (financiado por Engels, claro está), a fim de poder rever, sem

interrupções, as provas de O Capital. Comentários entre aqueles que tinham

lido partes da obra levaram-no a esperar que, no dia seguinte à publicação,

o seu nome e fama ressoariam por toda a Europa. Johann Georg Eccarius dis

sera a amigos que o «próprio Profeta está mesmo agora a publicar a quinta-

-essência de toda a sabedoria».

Marx terminou a revisão e correcção das provas do primeiro volume na

madrugada de 16 de Agosto e enviou um sincero agradecimento ao seu

patrocinador. «Este volume, portanto, está terminado. Devo-o só a ti! Sem

258 ^ W KARL MARX

OS teus sacrifícios por mim nunca conseguiria ter lidado com o imenso tra

balho exigido pelos três volumes. Um abraço cheio de reconhecimento.. .

Salut, meu estimado e querido amigo.»**

Exactamente um século depois da sua publicação, o primeiro-ministro

britânico, Harold Wilson, gabou-se de nunca ter lido O Capital. «Só li as duas

primeiras páginas... onde há um nota de roda pé quase do comprimento de

uma página. Achei que era demasiado para apenas duas frases do texto.»^

Wilson era formado em ciência política, filosofia e economia, mas pensou

que confessar a sua ignorância agradaria à classe média educada, a qual, em

particular na Grã-Bretanha e nos EUA, tem o perverso orgulho de não 1er

Marx. Daí os exasperantes e viciosos argumentos das pessoas que nem

chegaram à segunda página. «O Capitale absurdo.» E como é que sabem isso?

«Porque não vale a pena ser lido.»

Uma objecção mais requintada é feita pelo filósofo Karl Popper: não se

pode dizer se Marx escreveu coisas absurdas, ou não, porque as suas «leis

férreas» quanto ao desenvolvimento capitalista não são mais do que incon

dicionais profecias históricas, tão vagas e incompreensíveis como as de Nos

tradamus. Ao contrário das hipóteses científicas adequadas, não podem ser

demonstradas nem — o teste popperiano crucial — falsificadas. «Em ciên

cia, as previsões normais são condicionais», declara Popper. «Demonstram

que certas mudanças (de temperatura da água numa chaleira, por exemplo)

serão acompanhadas por outras mudanças (fervura da água, por exemplo).»

Na realidade, seria fácil submeter as afirmações sobre economia de Marx a

uma experiência semelhante estudando o que aconteceu, na prática, duran

te o século passado. A medida que o capitalismo vai amadurecendo, previu,

assistiremos a recessões periódicas, a uma dependência crescente da tecno

logia e ao crescimento de enormes corporações quase monopolistas que

estenderão os seus tentáculos por todo o mundo à procura de mercados para

explorar. Se nada disto tivesse acontecido, poderíamos ser levados a concor

dar que o velhote estava a dizer balelas. N o entanto, os ciclos de expansão

da economia ocidental no século XIX, como o domínio da Microsoft, de BiUy

Gates, por exemplo, sugerem que ele tinha razão.

Ah, pois, dizem os críticos, mas, então, o que dizer do facto de Marx ter

acreditado na «miséria progressiva» do proletariado? Não previu ele que a

prosperidade do capitalismo seria alcançada através de uma redução abso

luta do salário e dos padrões de vida do trabalhador? Vejam a classe opera-

o CÃO PELUDO 259

ria de hoje com carros e antenas parabólicas: não estão lá muito miseráveis,

pois não? O economista Paul Samuelson declarou que toda a obra de Marx

pode, com segurança, ser ignorada, pois o empobrecimento do trabalhador

«simplesmente nunca ocorreu» — e na medida em que os manuais de

Samuelson são há gerações a dieta dos estudantes de economia, tanto na Grã-

-Bretanha como nos EUA, isto tornou-se aceite. Mas trata-se de um mito

baseado numa interpretação incorrecta da «lei geral da acumulação capita

lista» de Marx, inscrita no capítulo 25 do primeiro volume. «A indigência»

constitui uma condição da produção capitalista e do desenvolvimento capi

talista de riqueza. Faz parte das despesas incidentais da produção capitalis

ta: mas o capital sabe habitualmente como se desfazer delas e as passar para

a classe operária e a pequena burguesia.»^" Neste contexto, porém, ele não

se refere à indigência de todo o proletariado, mas à dos «sedimentos mais

baixos» da sociedade — os desempregados, os miseráveis, os doentes, os

velhos, as viúvas e os órfãos. Pode alguém negar que tal subclasse ainda

existe? Outro pária judeu disse uma vez que «os pobres estarão sempre entre

nós», mas ainda nenhum economista sugeriu que os ensinamentos de Jesus

estavam desacreditados pela sua previsão de miséria perpétua.

O que Marx previu foi que, sob o capitalismo, haveria um declínio rela

tivo — e não absoluto — dos salários. Isto é obviamente verdadeiro: poucas

firmas, se houver alguma, com um lucro de 20 por cento, aumentam ime

diatamente em 20 por cento o salário dos seus empregados. E, assim, por

muitos microndas que o trabalhador possa comprar, a mão-de-obra distan-

cia-se cada vez mais do capital. «Segue-se, por conseguinte, que à medida que

o capital se acumula, a situação do trabalhador, quero seu salário seja elevado ou

baixo, torna-se pior.»" (Os itálicos são do autor.)

Como no caso de Cristo, a definição de pobreza de Marx era tão espiri

tual quanto económica. Qual é o proveito de um homem ganhar o mundo

e perder a alma? Ou, como Marx escreveu em O Capital, os meios através dos

quais o capitalismo aumenta a produtividade,

«reduzem o trabalhador a um fragmento de homem, degradam-no ao

nível de um apêndice de máquina e destroem o conteúdo do seu traba

lho transformando-o num tormento; alienam-no das potencialidades in

telectuais do processo laboral na mesma proporção em que a ciência está

incorporada nele como poder independente; deformam as condições em

que trabalha e sujeitam-no a um despotismo odioso; trans for mam-lhe o

260 * i ^ KARL MARX

tempo de vida em tempo de trabalho, arrastando a mulher e o filho para

baixo das engrenagens do capital... A acumulação de rique2a a um deter

minado pólo corresponde simultaneamente uma acumulação de miséria,

tormento laboral, escravidão, ignorância, brutalÍ2ação e degradação mo

ral no pólo oposto.»

A última frase, isolada, podia ser dada como exemplo de outra previsão

do empobrecimento absoluto dos trabalhadores, mas apenas um idiota —

ou um conferencista de temas económicos — manteria esta interpretação

depois de 1er a condenação que a precede.

«Deve-se ter em mente», admite Leszek Kolakowski, um dos mais in

fluentes críticos modernos do marxismo, «que o empobrecimento material

não constituía uma premissa natural da análise de Marx sobre a desumaniza

ção do salário laboral ou da sua predição quanto à inevitável ruína do capi

talismo»^^. Correcto. Mas, a seguir, Kolakowski ignora o seu próprio conselho

e coloca outro naco de queijo na velha ratoeira de Karl Popper. «Como in

terpretação dos fenómenos económicos», adverte, «a teoria de valores de

Marx não satisfaz os requisitos normais da hipótese científica, em particu

lar os da falsificação.»^^ Bem, claro que não: nenhum papel tornasol, micros

cópio electrónico ou programa informático pode detectar a presença de algo

tão intangível como a «alienação» e a «degradação moral».

O CapitaloÃo é realmente uma hipótese cienti'fica, nem sequer um trata

do económico, embora os fanáticos de ambos os campos tenham insistido

em considerá-lo assim. O próprio autor foi bastante claro quanto às suas

intenções. «No que respeita ao meu trabalho, vou dizer-te a pura das verda

des», escreveu a Engels a 31 de Julho de 1865. «Ainda tenho de escrever mais

três capítulos para terminar a parte teórica... Mas não consigo enviar nada

até ter tudo à minha frente. Independentemente dos defeitos que possam ter,

a vantagem dos meus escritos é que constituem um todo artístico...» Ou

tra carta escrita uma semana mais tarde refere-se ao livro como uma «obra

de arte», e cita «considerações artísticas» como motivo do atraso em apre

sentar o manuscrito.

N o caso de Marx desejar produzir um texto de economia clássica em vez

de uma obra arti'stica, poderia tê-lo feito. E fê-lo realmente: duas palestras

em Junho de 1865, mais tarde publicadas sob o título Valor, Preço eVucro dão

um resumo conciso e lúcido das suas conclusões:

o CÃO PELUDO « 1 ^ 2 6 1

Como os valores permutáveis dos artigos são apenas funções sociais

dessas coisas e nada têm a ver com as suas qualidades naturais, temos pri

meiro de perguntar: qual é o elo social comum de todos os artigos? É o

trabalho. Uma certa quantidade de trabalho tem de ser exercida para pro

duzir um artigo. E não me refiro simplesmente ao trabalho, mas ao tra

balho social. Uma pessoa que produz um artigo para uso pessoal imediato

cria wvaproduto, não um artigo... Um artigo tem um 2^ií/orporque é a cris-

tali^ção do trabalho social... O preço, tomado por si só, não passa da expressão

monetária do valor... O que o trabalhador vende não é directamente o seu

trabalho mas o ?,e\ípoder laboral, o qual põe temporariamente à disposição

do capitalista... Suponhamos agora que um trabalhador precisa de uma

média de seis horas diárias para produzir. Suponhamos ainda que são

necessárias seis horas em média para produzir uma quantidade de ouro

equivalente a três xelins. O preço, ou a expressão monetária do valor diá

rio do poder laboral desse homem, seria então de três xelins... Mas, ao

pagar-lhe o valor diário, ou semanal, do pode laboral, o capitalista adqui

riu o direito de utiHzar o poder laboral durante todo o dia ou toda a semana.

E, por conseguinte, fá-lo-á trabalhar diariamente por exemplo M horas. . .

Ao dar três xelins, o capitalista realiza um valor de seis xelins pois, pa

gando um valor no qual seis horas de trabalho estão cristalizadas, rece

berá, em compensação, um valor no qual 12 horas de trabalho estão cris

talizadas. Ao repetir diariamente este mesmo processo, o capitalista

pagara diariamente três xelins e meterá diariamente seis xelins ao bolso,

metade dos quais servirá para pagar novamente salários e a outra meta

de para formar um valor excedentário pelo qual o capitalista não pagou a

soma equivalente. É sobre esta espécie de permuta entre o capital e o tra

balho que se funda a produção capitalista, ou o sistema de salários, o que

resulta constantemente na reprodução do trabalhador como trabalhador

e do capitalista como capitalista.^'*

Independentemente dos seus méritos como análise económica, pode ser

entendido por uma criança inteligente: não há metáforas elaboradas nem

temas metafísicos, digressões confusas, tiradas filosóficas ou floreados lite

rários. Porquê então o estilo de O Capital, que trata exactamente do mesmo

assunto, é tão totalmente diferente? Será que Marx perdeu de repente o dom

de falar com simplicidade? É evidente que não: na altura em que deu essas

conferências, estava também a terminar o primeiro volume de O Capital.

262 KARL MARX

Encontramos uma pista numa das raras analogias que se permitiu fazer em

Valor, Preço e l^ucro para explicar que o lucro resulta em vender artigos ao

preço «real» e não — como se poderia assumir — em acrescentar um valor

adicional. «Isto parece ser um paradoxo e contrário à observação diária», es

creveu. «Também é um paradoxo a Terra mover-se à volta do Sol e a água

ser formada por dois gases altamente inflamáveis. A verdade científica é sem

pre paradoxal quando vista através da experiência diária, a qual capta ape

nas a natureza ilusória das coisas.»

Isto parece um convite para avaliar a sua obra-prima através de padrões

científicos. Mas ouçamo-lo mais de perto: ele está a Mdar com «a natureza ilu

sória das coisas», assunto que não pode ser limitado a um género como a

economia política, antropologia ou história. Como Marx indica: «A primeira

vista, um artigo parece ser uma coisa muito trivial e facilmente compreendida.

Mas a sua anáuse demonstra que, na verdade, é uma coisa muito bizarra cheia

de subtilezas metafísicas e pontos teológicos.» Admirava o que era objectivo,

a metodologia sem sentimentalismos de Ricardo e Adam Smith: de facto, os

aspectos de O Capitalc^c são mais frequentemente ridicularizados hoje em dia

-— como a teoria laboral do valor — derivavam destes economistas clássicos

e eram a ortodoxia prevalecente da época. N o entanto, sentia que, apesar de

todas as suas realizações, «a ciência burguesa da economia tinha chegado aos

limites para além dos quais não conseguia passar»^^ As medidas empíricas

nunca poderiam quantificar o custo humano da exploração e da alienação.

Marx descobrira no Museu Britânico um banco de dados sobre a práti

ca capitalista — registos governamentais, gráficos estatísticos, relatórios de

inspectores de fábricas e de funcionários da saúde pública — que ele utili

zou com o mesmo efeito devastador que Engels em As Condições da Classe

Operária em Inglaterra. Mas a sua outra fonte principal, menos notada, foi a

ficção literária. Ao debater o efeito das máquinas sobre o poder laboral, uti-

Uza números do consenso de 1861, estatística essa para demonstrar que há

mais criados domésticos do que trabalhadores empregados nas indústrias

mecanizadas, como as tecelagens e as siderurgias. («Que resultado notável

este da exploração capitalista das máquinas!») Como podem os capitalistas

negar as suas responsabilidades pelas vidas humanas perdidas ao longo do

progresso tecnológico? Pondo de lado estas estatísticas, Marx cita o discurso

de Bnl Sykes, personagem do livro de Charles Dickens, Oliver Tmst. «Senhores

jurados, não há dúvida de que este caixeiro-viajante foi degolado, explicou

Sykes. Mas a culpa não é minha. A culpada é a faca. Devemos abolir o uso

o CÃO PELUDO ^ # 2 6 3

das facas por causa desta temporaria inconveniencia?... Se abolirem a faca

— voltam a atirar-nos para as profundezas do barbarismo.»

Poderemos tirar mais valor de utilização e até mais lucro se lermos O Ca

pital coxxxo uma obra de ficção: um melodrama vitoriano ou um denso ro

mance gótico cujos heróis são escravizados e consumidos pelo monstro que

criaram («o capital que vem ao mundo conspurcado da cabeça aos pés e

sangrando por todos os poros»); ou, talvez, uma utopia satírica, como a terra

dos Houyhnhnms, de Jonathan Swift, onde tudo é agradável e só o homem

é vil. Na visão marxista da sociedade capitalista, como no pseudoparaíso

equídeo de Swift, o falso Éden é criado reduzindo vulgares humanos ao es

tatuto àç.yahoos exilados e impotentes. Tudo o que é sólido derrete no ar,

escreveu Marx no Manifesto Comunista; mas já em O Capital, tudo o que é

realmente humano se torna congelado, ou cristalizado, numa força material

impessoal, enquanto os objectos mortos se animam de forma ameaçadora

e vigorosa. O dinheiro, outrora nada mais do que expressão de va lor— uma

espécie de língua franca na qual o artigo de consumo se torna o próprio valor.

N o mais simples dos mundos, o valor de troca mal existe; as pessoas

produzem para satisfazer as suas necessidades — uma perna de carneiro, pão,

uma vela — e negoceiam apenas quando esses artigos excedem os seus

requisitos. Mas vem então o homem do talho, o padeiro e o fabricante de

velas, todos os três corruptos. Para comprar os seus atraentes produtos,

temos de nos tornar salariados; em vez de vivermos do nosso trabalho, tra

balhamos para viver. Somos arrastados gradual e inevitavelmente para a

conjunção social dos artigos de consumo e salários, preços e lucros, uma terra

de fantasia onde nada é o que parece. Leiam a primeira frase do primeiro

capítulo de O Capital: «A riqueza das sociedades, nas quais o modo capita

lista de produção prevalece, surge como uma "imensa acumulação de arti

gos de consumo"; os artigos individuais surgem como a sua forma mais ele

mentar.» O que deve impressionar imediatamente o leitor mais alerta é a

escolha do verbo, repetido para dar ênfase — «surgir como». Embora me

nos dramática do que a frase de abertura do Manifesto Comunista, tem uma fi

nalidade semelhante: entramos num mundo de espectros e aparições. Como

ele regularmente nos lembra ao longo das mil páginas seguintes.

- «O valor de troca parece ser'algo acidental e puramente relativo... Va

mos olhar para o resíduo dos produtos de trabalho. Nada resta em todos

os casos senão a mesma o\i)Q.ctN'\ÒAdL(í fantasma... Isto levou à ascensão

264 y. I^RLMARX

de um sistema mercantil restaurado que vê no valor apenas uma forma

social, ou, antes, o fantasma insubstancial àc?,^2L forma... A diferença entre

trabalho complexo e simples, "trabalho especializado" e "não especiali

zado", é, em parte,/i/^nz ilusão... Em vez de revelar a relação-capital, eles

[os economistas políticos] mostram-nos a semelhança falsa de uma rela

ção.. .» (Os itálicos são do autor)

Expor a diferença entre aparência heróica e a realidade inglória — des

pindo o disfarce de galante cavaleiro a fim de revelar um homenzinho re

chonchudo em cuecas — é, evidentemente, um dos métodos clássicos da

comédia.

As coisas absurdas encontradas em O Capital, e que foram prontamente

usadas por aqueles que desejam denunciar Marx como louco, reflectem a

loucura do assunto e não a do autor. Desde o princípio, quando ele mergu

lha numa furiosa meditação cada vez mais surrealista sobre os valores rela

tivos de um casaco e 20 metros de linho, que isso é quase óbvio.

«É verdade que a fabricação do casaco é um trabalho concreto, dife

rente da tecelagem que faz o linho. Mas equacionar a fabricação do ca

saco com a tecelagem reduz o primeiro ao que é realmente igual nestes

dois tipos de trabalho, às características que têm em comum pelo facto

de ambos constituírem trabalho humano... N o entanto, o casaco em si,

o aspecto físico do casaco-artigo, é puro valor de utilização. Um tal ca

saco não exprime mais valor do que a primeira peça de unho com que

deparamos. Assim como alguns homens contam mais quando metidos

numa farda com galões dourados, isto prova que, na sua relação de va

lor com o linho, o casaco significa mais do que fora dessa relação.»^''

Esta absurda comparação devia prevenir-nos de que, na realidade, esta

mos a 1er uma história sem pés nem cabeça, o que se torna cada vez mais evi

dente à medida que Marx prossegue:

<A.pesar de abotoado, o Unho reconhece nele [no casaco] uma alma

gémea, a alma do valor. O casaco, contudo, não pode representar valor

para o linho a não ser que, para este, o valor assumir simultaneamente a

forma de um casaco. Por exemplo, um indivíduo. A, não pode ser "Sua

Majestade" para outro indivíduo, B, a não ser que a majestade aos olhos

o CÃO PELUDO ^ ^ 2 6 5

de B assuma a forma física de A, e, além do mais, modifique as feições,

o cabelo e muitas outras coisas com cada "novo pai do seu povo". . . Como

valor de utiMzação, o Knho é algo palpavelmente diferente do casaco; como

valor, é idêntico ao casaco e, por conseguinte, parece o casaco.»

A seguir, e ña altura em que a cabeça do leitor começa a rodopiar incon-

trolavelmente, Marx chega à seguinte conclusão:

«O Hnho adquire, assim, uma forma de valor diferente da sua forma

natural. A sua existência como valor é manifestada através da sua igual

dade com o casaco, assim como a natureza de carneiro do cristão é re

velada pela sua semelhança com o anho de Deus.»

A não ser que tivesse mandado imprimir a página às avessas e a tinta

verde, Marx não poderia dar-nos melhor a entender que nos embarcou numa

picaresca odisseia através do reino do absurdo. Vem-nos à cabeça as últimas

linhas de Tristam Shandy, livro que ele adorava:

« — Deus meu! — exclamou a minha mãe. — Que história é essa?

— É a de um galo e um boi — disse Yorick. — E uma das melhores

do género que ouvi.»"

Quando da sua primeira paixão de juventude por Laurence Sterne, Marx

tentou escrever uma história cómica sem pés nem cabeça e, quase 30 anos

depois, encontrou finalmente um tema para a escrever. Segundo o biógra

fo de Sterne, Thomas Yoseloff, este escritor «quebrou com as tradições da

literatura contemporânea e o seu romance tanto podia ser lido como um

ensaio de filosofia, como uma autobiografia ou como uma sátira local em

estilo de panfleto. Escreveu como falava e pensava; o livro não era estru

turado e estava cheio de pormenores curiosos e difíceis de entender.. .»^^ O

mesmo poderia ser dito da epopeia de Marx. A exemplo de Tristam Shandy,

O Capital está repleto de sistemas e silogismos, paradoxos, metafísica, teo

rias, hipóteses, explicações complicadas e ironia absurda. Uma das passagens

tem como protagonista um capitalista em embrião, o Sr. Moneybags. «A

fim de poder extrair valor do consumo de um determinado artigo, o nosso

amigo. Moneybags, tem de ter a sorte de encontrar, dentro da esfera de cir

culação, no mercado, um artigo cujo valor de utilização possua a propriedade

266 Vi)«-. KARL MARX

particular de ser fonte de valor. . . e, consequentemente, criar valor.» Por

sorte, o velho Moneybags encontra exactamente esse artigo na força laboral,

a qual tem a capacidade única de multiplicar o seu próprio valor.

Para fazer justiça à demente lógica do capitalismo, o texto de Marx está

saturado, por vezes inundado, de ironia — ironia essa que há mais de uín

século tem escapado a quase todOs os leitores. Uma das raras excepções é o

crítico Hterário americano, Edmund Wilson, que saudou Marx como «o maior

escritor satírico desde Swift». Trata-se de um tributo de tal modo extravagan

te que podem ser requeridas provas de apoio e, assim, vamos citar uma pas

sagem de Teorias de Valor Excedente, o quarto volume de O Capital.

DIVAGAÇÃO SOBRE O TRABALHO PRODUTIVO

Um filósofo produz ideias; um poeta, poemas; um clérigo, sermões;

um professor, manuais, e assim por diante. Um criminoso produz crimes.

Se nos debruçarmos sobre a relação entre este último ramo de produção

e a sociedade como um todo, livrar-nos-emos de muitos preconceitos.

O criminoso não só produz crimes como também leis criminais e, com

estas, igualmente o professor que ensina a legislação criminal e o inevi

tável manual em que o mesmo professor lança no mercado as suas lições

como «artigos de consumo». . . Além disso, o criminoso produz toda

polícia e justiça criminal, agentes, juízes, carrascos, jurados, etc; e todas

estas diferentes linhas de negócio, as quais formam igual número de

categorias da divisão social do trabalho, desenvolvem capacidades dife

rentes da mente humana, criam novas necessidades e novas maneiras de

as satisfazer. Só a tortura deu origem às mais engenhosas invenções

mecânicas e empregou muitos honestos artesãos na produção desses

instrumentos. O criminoso produz uma impressão, em parte moral e em

parte trágica, consoante o caso, e assim, estimulando os sentimentos

morais e estéticos do público, presta um «serviço». Não somente produz

manuais sobre a lei criminal, códigos penais e legisladores, como também

arte, literatura, romances e até mesmo tragédias — como o provam

Schuld, de Müllner; Rauher, de Schiller; e também Édipo e acardo III... Os

efeitos do crime sobre o desenvolvimento do poder produtivo podem ser

ilustrados em pormenor. Teriam as fechaduras alcançado o seu actual

grau de excelência sem ladrões? A fabricação das notas de banco teria

atingido a sua presente perfeição sem falsificadores?... E, pondo o sector

o CAO PELUDO ^ . 267

do crime privado de parte, teria o mercado mundial jamais sido criado

sem a existencia de crimes a nivel nacional? Teriam até mesmo nações

sido criadas? E a Arvore do Pecado não tem sido simultaneamente a Ár

vore do Conhecimento desde os tempos de Adão?''''

Isto pode ser comparado à modesta proposta feita por Swift de conven

cer os pobres a comer os bebés a mais a fim de solucionar o problema da

miséria na Irlanda. (Talvez valha a pena notar que, em 1870, Marx comprou

uma edição das obras completas de Jonathan Swift em 14 volumes, pelo pre

ço de quatro xelins e seis cêntimos.) Como Edmund Wilson justamente ob

serva, o propósito das abstracções teóricas de Marx —- a dança dos artigos

de consumo, os fantásticos ziguezagues lógicos — sobretudo irónicos, jun

tamente com sinistros retratos bem documentados da miséria e sujidade que,

na prática, as leis capitalistas criam. «O significado das fórmulas aparente

mente impessoais que Marx produz com ar tão científico é, lembra-nos ele

de tempos a tempos assim como não quer a coisa, dinheiro retirado do bolso

do trabalhador, suor espremido do seu corpo e satisfação natural negada à

sua alma», prossegue Wilson. «Ao competir com as autoridades em econo

mia, Marx escreveu algo como uma paródia.. .»^^

N o final, contudo, até mesmo Edmund Wilson perde o fio da intriga:

umas páginas depois de ter elevado Marx ao panteão dos génios satíricos, ao

lado de^wift, protesta contra «a crueza da motivação psicológica subjacente

à visão mundial de Marx», e queixa-se de que a teoria apresentada em O

Capital é «simplesmente, como a dialéctica, uma criação do metafísico que

nunca abdicou perante o economista existente em Marx». Essa queixa nem

sequer tem o mérito de ser original: alguns críticos alemães da primeira edição

acusaram Marx de «sofismo hegeliano», acusação que ele alegremente acei

tou e no posfácio da segunda edição alemã, publicada em 1873, lembrou-lhes

que tinha criticado o «lado mistificador da dialéctica hegeUana», quando esta

ainda estava na moda, há quase 30 anos. «Mas, quando ainda trabalhava no

primeiro volume de O Capital, os arrogantes, mal-humorados e medíocres

epígonos que, agora, se pavoneiam nos círculos intelectuais alemães trata

vam Hegel. . . de "cão morto" . Declarei-me então abertamente discípulo

desse notável pensador e, no capítulo sobre a teoria, namorisquei aqui e ali

com os modos de expressão que lhe eram particulares.»

Estes namoros dialécticos que ofenderam Edmund Wilson têm a ver

com a ironia que ele tanto apreciou: ambas as técnicas empregam a realida-

2 6 8 1 ^ KARL MARX

de aparente para expor a verdade oculta. «Os fingidos e incongruentes es

pecialistas de economia alemã resmungaram quanto ao estilo do meu livro»,

escreveu Marx em 1873. «Ninguém pode aperceber-se dos defeitos literários

de O Capital meVaot do que eu.» Mas os demais críticos, até mesmo aqueles

hostis às suas teorias, elogiaram as qualidades estilísticas. A Staurãaj B^view,

revista londrina, comentou que «a visão do autor pode ser tão perniciosa

como achamos que é, mas não há dúvidas quanto à plausibilidade da sua

lógica, o vigor da sua retórica e a sedutora mestria cotn que trata dos pro

blemas mais enfadonho da economia poKtica»^^ A Contemporary Repkw, em

bora patrióticamente desinteressada da economia alemã («não cremos que

Karl Marx tenha muito para nos ensinar»)^^ cumprimentou o autor por não

ter omitido «o interesse humano — "o esfomeado e sedento interesse" sub

jacente à ciência». Marx ficou particularmente sensibilizado por um artigo

no Sampetersburgo Journal c[ue louvava o <ánvulgar vigor» da sua prosa. «Quanto

a isso», acrescentava, «o autor não se parece de modo algum... com a maior

parte dos eruditos alemães cuja Hnguagem é tão seca e obscura.. . que racha

a cabeça do comum dos mortais.»

Apesar de ser lindamente escrito, o primeiro volume de O Capita/ ainda

era bastante perigoso para a cabeça do comum dos mortais, cuja tarefa se

tornou ainda mais difícil pela decisão de Marx em colocar os capítulos mais

impenetráveis logo no princípio do livro. «O começo é sempre difícil em

todos os livros científicos», explicou no prefácio. <A. compreensão do pri

meiro capítulo, em particular a secção que contém a análise dos artigos de

consumo, apresentará por conseguinte as maiores dificuldades. Popularizei

as passagens que dizem respeito à substância e à magnitude do valor tanto

quanto foi possível.» Já a forma de valor, assegurou os leitores, era a simpli

cidade personificada. «No entanto, a mente humana esforçou-se durante

mais de dois mil anos para a compreender. . . Portanto, com excepção da

secção sobre a forma de valor, este volume não pode ser criticado por cau

sa das dificuldades. Suponho, evidentemente, que o leitor quer aprender algo

novo e pensar por si próprio.»

Suposição bastante ambiciosa, como veio a provar-se. Enquanto o livro

estava a ser impresso, Engels aconselhou-o a esclarecer os pontos abstractos

subdividindo-os em secções mais curtas e dando-lhes títulos. «O Hvro teria

mais aspecto de manual, mas muitos leitores compreendê-lo-iam melhor.»^^

Marx fez algumas modificações nas provas, mas não passavam de simples

anotações nas margens. «Como é que pudeste deixar a estrutura exterior do

o CÃO PELUDO o»G^269

livro na forma presente!», perguntou Engels, um pouso exasperado, após ter

examinado as provas finais. «O quarto capítulo tem quase 200 páginas e

apenas quatro subsecções... Além do mais, o fio do pensamento é constan

temente interrompido por exemplos e, como o ponto a ser exemplificado

nunca é resumido depois de dares o exemplo, o leitor está sempre a passar do

exemplo de um determinado ponto para a exposição de outro ponto. Tor-

na-se terrivelmente cansativo e confuso.» Mas acrescentava de forma pou

co convincente, «de qualquer modo, isso não tem importância».^'*

Até mesmo alguns dos mais apaixonados discípulos de Marx ficaram

vidrados ao tentar perceber estes obscuros primeiros capítulos. «Por favor

previna a sua mulher», escreveu a Ludwig Kugelmann, «que os capítulos

sobre " O Dia de Trabalho", "Cooperação, Divisão do Trabalho e Maquina

ria" e "Acumulação Primitiva" são os que se lêem com maior faciMdade. Terá

de lhe expHcar a terminologia mais incompreensível. Se houver outras dú

vidas, terei o maior prazer em ajudar.»^^ Quanto ao famoso socialista inglês,

William Morris, «sofreu horrores» ao 1er O Capital'unos mais tarde: «Li o que

podia e espero ter absorvido alguma informação.» Pura incompreensão e não

preconceitos poKticos podem explicar a reacção quando O Capitalíd\ publi

cado. «O silêncio com que o meu Hvro foi recebido põe-me nervoso», escre

veu Marx a Engels, em Outubro, a propósito das noites de insónia que ti

nham voltado a importuná-lo. «A origem da minha doença é mental.»^''

Engels fez o possível para criar interesse à volta da obra, enviando críticas

hostis sob um pseudónimo à imprensa burguesa alemã e encorajou os

amigos de Marx a fazer o mesmo. «O importante é que o Uvro seja discuti

do de qualquer maneira», comunicou a Kugelmann. «E como Marx não é

nenhum publicitário e, ainda por cima, é tímido como uma donzela, cabe-

-nos a nós fazer isso.. . Citando o nosso velho amigo, Jesus Cristo, temos de

ser inocentes como pombas e manhosos como serpentes.»^^ O Dr. Kugel

mann fez o melhor que pôde e remeteu artigos para um ou dois jornais de

Hanover, mas de pouco serviram, pois ele mesmo mal tinha compreendi

do o livro. «Kugelmann está a tornar-se cada dia mais palerma», queixou-se

Engels. Jenny Marx mostrou-se mais amável: o acólito de Hanover talvez

fosse idiota, mas tinha, pelo menos, boas intenções. Deprimida pela indife

rença universal com que a magnum opus do marido era acolhida e alarmada

pela saúde dele estar a piorar, agradecia todos os gestos de apoio. «Poucos

livros foram escritos em circunstâncias tão más», comentou, «e tenho a

2 7 0 ^ 0 KARL MARX

certeza de que eu poderia escrever uma história secreta a contar os inúme

ros tormentos, aflições e ansiedades porque Karl passou. Se os trabalhado

res soubessem dos sacrifícios que foram necessários para terminar este livro,

escrito por causa deles, talvez se mostrassem um pouco mais interessados.»^^

Dois dias antes do Natal de 1867, estava Jenny na cozinha a preparar tris

temente um bolo enquanto Marx se encontrava de cama com furúnculos,

quando ouviu uma voz chamar do fundo das escadas: «Chegou uma gran

de estátua.» Era o busto de Zeus, apenas ligeiramente lascado da longa via

gem, que Kugelmann enviara da Alemanha como presente de Natal. «Nem

imaginam o prazer e a surpresa que nos causaram», escreveu ela a agradecer

ao médico. «Obrigado também pelo seu interesse e infatigável esforços em

favor do livro de Karl.»^' A forma de aplauso preferida pela maior parte dos

alemães, acrescentava amargamente, «é o mais absoluto silêncio».

Durante os primeiros três meses de 1868. Marx foi incapaz de trabalhar.

O furúnculo na parte interior da coxa roçava nas calças incapacitando-o de

se deslocar ao Museu Britânico; sentado à secretária, o furúnculo no rabo

obrigava-o passado pouco tempo a ir deitar-se, de lado, no divã; e, quando

tentava escrever, o furúnculo localizado abaixo da omoplata vingava-se

dolorosamente. Até as suas cartas a Engels se tornaram distintamente mais

curtas. «Padeci de inúmeras inflamações durante toda a semana passada;

sobretudo na axila esquerda», comunicou-lhe a 23 de Março. «Mas sinto-me

bastante melhor...» Não por muito tempo: no dia seguinte, enquanto üa um

Hvro, «uma espécie de véu negro toldou-me a vista e tive uma terrível dor de

cabeça acompanhada de contracções no peito». Se, pelo menos, não tivesse

ainda de escrever «o raio dos dois volumes» de O Capital c\u& faltavam e

procurar um editor inglês, poderia partir para a Suíça. E m Londres, o custo

de vida dos Marx era de 400 a 500 libras por ano, mas, em Genebra, ele

calculava que poderiam viver confortavelmente com cerca de 200.

Os únicos motivos para permanecer em Londres eram as duas institui

ções que ocupavam a maior parte do seu tempo — o Museu Britânico e o

Conselho-Geral da Associação Internacional do Operariado. N o entanto,

outra razão talvez lhe tenha atravessado o espírito: Genebra era agora o lugar

onde vivia Michail Bakunine, o qual Marx já identificara como sendo o ho

mem que poderia vir a destruir a Internacional.

11

o ELEFANTE VELHACO

Michail Bakunine era um russo gigantesco e hirsuto, o modelo em pessoa de um revolucionário, todo ele feito de impulso, paixão e força de vontade. Conta-se que o compositor Richard Wagner, seu camarada de armas durante a sublevação de 1849 em Dresden, inspirou-se nele para criar o personagem de Siegfried, e a sua presença também pode ser notada em Os Possessos, de Dostoïevski. Há naturalmente muitas lendas à volta de Bakunine, mmtas delas inventadas por ele mesmo. Conta-se, por exemplo, a história de como, durante uma revolta em ItáKa, o destemido colosso saiu de uma casa cercada e atravessou uma multidão de soldados sem que nenhum deles ousasse tocar-lhe. Percorreu o mundo clamando ser o líder de uma imensa Irmandade, ou Liga, insurreccional, a qual, segundo se vinha a verificar, não passava de uma dúzia de companheiros de bar. Possuía um entusiasmo juvenil por conspirações — códigos, palavras de passe, tinta invisível. Marx chamava-lhe o hierofante russo, mas Engels sugeriu que elefante seria mais apropriado: a sua estatura gigantesca, o andar de lenhador e o hábito de pisar tudo o que se atravessasse no seu caminho.

Bakunine é com frequência apelidado o Pai do Anarquismo Moderno (o principal rival a este tímlo é Proudhon), mas ele não legou grandes teorias. A sua herança foi a ideia fixa que o Estado era pernicioso e devia ser destruído. Os estados comunistas não eram melhores do que os capitalistas; a autoridade continuava a ser centralizada nas mãos de uns quantos e mesmo que o Estado fosse governado por «trabalhadores», estes depressa se tornariam tão corruptos como os tiranos que tinham derrubado. E m vez disso, propôs portanto uma forma de anarquia federal, na qual o poder estaria tão disperso que ninguém poderia abusar dele.

2 7 2 ^ ' « KARL MARX

Ou, pelo menos, era nisso que os seus discípulos queriam que acreditás

semos. É extraordinário como ainda existem tantos: em vida, Bakunine pode

ter sido um general sem exército, ou um maometano sem Corão, mas, no

século XX, atraiu uma legião de admiradores — muitos deles nada anarquistas

nem revolucionários —, que o aclamaram como aquele que tinha previsto

que as ideias marxistas poderiam apenas conduzir •àogulag. Os dois homens

)ustapõem-se consistentemente e sempre para descrédito de Marx. «Ainda

hoje, a luta entre os dois reside no âmago de todos os debates sobre a his

tória do movimento dos trabalhadores», escreve o especialista alemão de

Marx, professor Fritz Raddatz. «Não há maneira de evadir a resposta... Marx

e Bakunine são iguais a Estaline e Trotsky.»^

Comparando Bakunine e Marx, o historiador britânico, E. H. Carr, fala

do «homem com impulsos generosos e incontroláveis e do homem cujos

sentimentos eram tão perfeitamente sujeitos ao seu intelecto que observa

dores superficiais não acreditavam que os tivesse... o homem de personali

dade magnética e o homem cuja frieza intimidava e repelia»^. Carr concede,

contudo, que Bakunine era por vezes indiferente e incoerente, mas mesmo

esses defeitos tornaram-se virtudes quando comparados à disciplina desu

mana e glaciar da máquina calculadora marxista.

Segundo Isaiah Berlin, «Bakunine diferia de Marx assim como a poesia

difere da prosa»^. A implicação aparente — que Bakunine era um espírito

livre e lírico, e Marx um tipo prosaico — pouco mais é do que a citação

erudita dita em outras palavras da crua fórmula Trotsky/Estaline: o defen

sor da liberdade humana contra o impiedoso autoritário. Trata-se de um mito

com suficiente verdade para o manter vivo. Bakunine era, de facto, um in

divíduo com emoções puras que desprezava o meticuloso racionalismo de

Marx. A sua falta de interesse pelo complexo mecanismo do capital era

compensada pelo desdém de Marx por atitudes clandestinas. Além disso,

contudo, quase tudo o que se diz e escreve sobre esta luta de gigantes é absurdo.

Encontraram-se em Paris em 1844 e, depois, em Bruxelas, pouco depois

da insurreições de 1848, quando Bakunine ainda era mais comunista do que

anarquista. Apesar de quatro anos mais velho do que Marx, reconhecia a eru

dição superior do jovem («Nessa altura, eu nada sabia de economia políti

ca»), e adivinhava que os seus temperamentos irreconciliáveis nunca permi

tiriam «nenhuma intimidade sincera». Nesse Verão, o Nene Rheinische Zeitung

de Marx publicou uns mexericos de Paris, atribuídos a George Sand, que ale

gavam ser Bakunine um agente secreto do czar: a vontade de Marx em es-

o ELEFANTE VELHACO π^ 273

palhar o boato deve-se provavelmente à sua instintiva desconfiança da Rússia

e dos russos. N o entanto, não se fez rogado para publicar uma carta de

George Sand negando tal responsabilidade, onde incluiu um breve editori

al pedindo desculpa pelo engano. Umas semanas mais tarde, os dois homens

encontraram-se por acaso em Berlim. «Sabe uma coisa», ter-lhe-ia dito

melodramáticamente Marx, «sou actualmente chefe de uma sociedade secre

ta comunista tão bem disciplinada, que se eu pedisse a um dos membros para

o matar, ele matá-lo-ia»'^. Como a fonte desta história é o próprio Bakunine,

um mitómano incorrigível, não devemos necessariamente acreditar nela. Se

Marx tivesse realmente proferido essa ameaça, teria o temperamental russo

voltado a dirigir-lhe a palavra?

Deu-se o caso de não se verem novamente durante 16 anos, mas isso foi

uma separação puramente geográfica. Após as suas aventuras com Richard

Wagner em 1849, Bakunine passou os oito anos seguintes como um peripa

tético prisioneiro em Dresden, Praga e Sampetersburgo. E m 1857, a seguir à

morte do czar Nicolau, a sua sentença foi comutada para «exílio perpétuo» na

Sibéria. Escapou quatro anos mais tarde, escondendo-se a bordo de um bar

co com destino a São Francisco, de onde regressou à Europa via Nova Iorque.

Como com Lassalle, e por muito que não apreciasse os ares de determi

nada pessoa, Marx sabia reconhecer um homem notável de longe. Engels fez

notar isso muito bem ao denunciar publicamente, em 1849, o plano de

Bakunine para criar uma nação pan-eslava: «Bakunine é nosso amigo. Mas

isso não nos impede de criticar o seu panfleto.»^ Ou troçar dos seus hábitos,

já agora. A exemplo de Lassalle, Bakunine era motivo de chacota na corres

pondência entre Marx e Engels. «Bakunine transformou-se num monstro,

uma enorme massa de carne e gordura que mal consegue andar», assinalou

alegremente Marx em 1863. «E, ainda por cima, é sexualmente perverso e

ciumento da rapariga polaca de 17 anos que casou com ele na Sibéria por

causa do seu martírio. Encontra-se presentemente na Suécia, onde está a ma

quinar revoluções com os finlandeses.»*" Na altura em que escreveu isto, Marx

não tinha voltado a pôr-lhe a vista em cima desde 1848, mas renovaram

relações no Outono de 1864, quando Bakunine, vindo da Suécia, fez escala

em Londres a caminho da Itália para encomendar uns fatos ao alfaiate so

cialista Friedrich Lessner.

Alguns historiadores afirmaram que Marx sempre detestou Bakunine,

mas os pormenores desse encontro provam o contrário. E m primeiro lugar

porque foi Marx a solicitar o encontro quando soube, através de Lessner (seu

2 7 4 ^ ^ I<:ARLMARX

colega no Conselho-Geral da Internacional), que Bakunine se encontrava em

Londres. Porquê dar-se ao incómodo de procurar uma pessoa que despre

zava? A carta enviado por Marx a Engels no dia seguinte confirma que se

tratou de uma reunião amigável. «Devo dizer que gostei muitíssimo dele,

mais do que dantes. . . Ele é uma das raras pessoas que, na minha opinião,

fez progressos ao longo destes 16 anos.»'' Semanas mais tarde, numa men

sagem exuberantemente afectuosa, Bakunine tratava Marx por «meu muito

querido amigo», elogiava o seu discurso de abertura da Internacional e pe-

dia-lhe uma fotografia autografada.

Bakunine confessou, no decorrer das conversas que os dois homens ti

veram em Londres, que abandonara a obsessão juvenil com conspirações e

sociedades secretas: de ora em diante, prometeu, dedicar-se-ia exclusivamen

te ao «movimento socialista», quer dizer, a Internacional. Mas, após ter

chegado a Itália, em breve voltou aos seus antigos esquemas — ajudado por

uma nova patrocinadora rica, a princesa Obolensky, a qual, pelos vistos,

achou irresistível este homem gordo e desdentado. E, ao longo dos três anos

seguintes, Bakunine não teve quaisquer contactos com a Internacional.

E m 1867, a princesa e o seu anarquista de estimação instalaram-se na

Suíça, onde Bakunine rapidamente notou que a Internacional se estava a es

tabelecer com significativa força. Para compensar o tempo perdido decidiu

apoderar-se da organização, e concebeu para o efeito o que o seu biógrafo,

E. H. Carr, denomina «um ousado plano». Ousado, mas também incrivel

mente absurdo. Como pretenso Hder da Aliança Internacional da Democra

cia Socialista — o mais recente dos seus minigrupos com nome grandioso

— escreveu à internacional propondo uma fusão, uma fusão em termos

iguais, claro está, para, desse modo, se tornar efectivamente co-presidente

da nova organização. Muito naturalmente, Marx e os seus camaradas do

Conselho-Geral recusaram tal ideia: juntamente com as associações e sindi

catos filiados, representavam dezenas de milhares de trabalhadores, enquanto

a totalidade dos membros da Aliança Internacional de Bakunine não con

tava com mais de 20. Ao ver este seu ataque frontal desdenhado, Bakunine

decidiu então entrar pela porta das traseiras em bicos dos pés e informou o

Conselho-Geral que a Aliança Internacional deixara de existir. Mas a sua

nova organização, denominada simplesmente AHança para a Democracia So

cialista, desejava, como qualquer outra secção local, tornar-se uma humilde

filiada da Internacional. Marx não viu nenhum mal nisso e recomendou que

a proposta fosse aceite.

o ELEFANTE VELHACO. » ^ 275

Aqueles que retratam Bakunine como um heroico oponente do poder

centralizado e hierarquias rígidas têm dificuldade em explicar o seu compor

tamento subsequente — e deve ser por isso que, na maior parte dos casos,

preferem ignorá-lo completamente. N o primeiro e único congresso da In

ternacional em que participou (em Basileia, em 1869), defendeu «a funda

ção de um estado internacional composto por milhões de trabalhadores,

estado esse que seria construído pela Internacional» — esquecendo-se tem

porariamente que «estados» de qualquer tipo eram anátema para um verda

deiro anarquista como ele. N o decorrer de outro debate, ele chegou mesmo

a propor que o poder do Conselho-Geral fosse fortalecido, a fim de ter a

possibiKdade de vetar a admissão de novos membros ou de expulsar os que

já existiam. E não admira: como o próprio Carr admite, «a ambição de Ba

kunine nesta fase era conquistar o Conselho-Geral e não destruí-lo».

Quanto mais nos debruçamos sobre este ponto, mais se torna evidente

que a sua posterior raiva contra o Conselho-Geral devia-se menos à aversão

que sentia pela autoridade do que ao facto de não ter conseguido controlá-lo.

Nos bastidores, continuava a fazer maquinações como de costume. U m

bom exemplo do modus operandi àt Bakunine é a conversa, citada por E. f I. Carr,

com um dos seus acólitos, Charles Perron:

«Bakunine assegurou-lhe que a Internacional era uma instituição ex

celente em si, mas que havia algo melhor a que Perron deveria também

aderir — a Aliança. Perron concordou. A seguir, Bakunine disse que,

mesmo no seio da Aliança, havia indivíduos que não eram revolucio

nários autênticos, que prejudicavam as suas actividades e que, por con

seguinte, a Aliança deveria ter um grupo de "Irmãos Internacionais".

Perron concordou novamente e, quando voltaram a encontrar-se uns dias

mais tarde, Bakunine declarou que os "Irmãos Internacionais" era uma

organização demasiado grande e que, por detrás deles, deveria haver um

Directório constituído por três pessoas — entre as quais Perron. Este riu-

-se e voltou a concordar.»**

Assim falava o grande defensor do poder popular.

N o congresso de 1869, em Basileia, foi acordado que os delegados de

veriam voltar a reunir-se um ano mais tarde em Paris. Mas este projecto foi

cancelado com o rebentar da Guerra Franco-Prussiana, em Julho de 1870

— última tentativa desesperada de Napoleão III consolidar o seu vacilante

276 '-^y 'S KARL MARX

Segundo Império desafiando o poderoso Bismark. Há muito que a Interna

cional se tinha preparado para este momento. O seu congresso de 1868, em

Bruxelas, tinha passado uma moção apelando para uma greve geral assim que

a guerra começasse — apesar de Marx ter descartado a ideia como sendo

uma «absurdidade belga» e declarado que a classe trabalhadora «ainda não

está suficientemente organizada para pesar de forma decisiva na balança».

Na sua opinião, tudo o que devia fazer-se era emitir uma adequada «decla

ração pomposa e cheia de frases pretensiosas» para o efeito, dizendo que uma

guerra entre a França e a Alemanha seria ruinosa para ambos os países e para

a Europa.

E foi exactamente o que ele fez. A 23 de Julho de 1870, quatro dias depois

da declaração das hostilidades, o Conselho-Geral aprovou uma alocução

escrita por Marx. A derrota da sua velha bete mire, Luís Bonaparte, foi jovial

(e correctamente) predita. Mas avisou que, sé os trabalhadores alemães

permitiam que a guerra perdesse «o seu carácter estritamente defensivo» e

degenerasse num ataquem ao povo francês, tanto a vitória como a derrota

seriam igualmente desastrosas. Felizmente, a classe trabalhadora alemã era

demasiado esclarecida para deixar que tal acontecesse:

«Independentemente do rumo que esta horrível guerra possa tomar,

as alianças das classes trabalhadoras de todos os países porá fim à guer

ra. O próprio facto, sem paralelo na história, dos trabalhadores fran

ceses e alemães se enviarem mensagens de paz e de boa vontade enquan

to, oficialmente, a França e a Alemanha estão envolvidas numa luta

fratricida, permite vislumbrar um futuro mais brilhante. E prova que, em

contraste com a sociedade antiga, com a sua miséria e delírio poKtico, se

está a constituir uma nova sociedade cuja regra Internacional será a P Ö ^

pois o seu governante natural será o mesmo por toda a parte — o Tra

balho! O Pioneiro dessa nova sociedade é a Associação Internacional dos

Trabalhadores.»^

Tudo muito inspirador. John Stuart Mill enviou as suas felicitações, de-

clarando-se «muito agradado com a alocução. Não há uma única palavra que

não deveria lá estar; nem poderia ter sido escrita com menos palavras».^*' N o

entanto, e embora mantivesse uma neutralidade oficial, Marx não podia

resistir, em privado, a calcular as vantagens e a ruminar sobre o resultado que

mais conviria aos seus objectos.

o ELEFANTE VELHACO g ^ l l l

Já em Fevereiro de 1859, ele tinha dito a Lassalle por carta que uma guerra

entre a França e a Alemanha «teria naturalmente graves consequências; as

quais, a longo termo, seriam certamente revolucionárias. Mas, ao princípio,

haveria de apoiar o bonapartismo em França e fazer recuar o movimento

interno em Inglaterra e na Rússia, despertar de novo paixões mesquinhas

quanto ao problema do nacionalismo na Alemanha e ter, na minha opinião,

um efeito sobretudo contra-revolucionário em todos os aspectos»." Ao lon

go de 11 anos, este jogo de consequências tinha-se tornado uma obsessão.

«Há quatro noites que não consigo dormir por causa do reumatismo», disse

a Engels, em Agosto de 1870. «Passo o tempo a fantasiar sobre Paris, etc.»'^

Uma dessas fantasias era que ambas as facções se gladiariam, enfraquecendo

tanto Bonaparte como Bismark. Mas, depois, os alemães haveriam de ven

cer. «Desejo que tal aconteça porque a derrota definitiva de Bonaparte há-

-de provavelmente provocar a revolução em França, enquanto a derrota de

finitiva da Alemanha prolongaria a actual situação durante uns 20 anos.»"

Nem a mulher nem o seu melhor amigo necessitavam tantas justificações

complicadas por ele tomar um determinado partido. Jenny achava que a

França merecia uma boa sova por ter rido o atrevimento de tentar exportar

a sua «civilização» para o solo sagrado da Alemanha. «Todos os franceses, até

mesmo o insignificante número dos melhores, têm uma molécula chauvinista

a um canto do coração», escreveu a Engels. «E isto tem de lhes ser extirpa

do.» '* Engels, que passou a guerra de modo lucrativo fazendo análises mi

litares para a Pali Mali Gazette, também sentia essa mesma fidelidade atávica.

«A minha confiança nas proezas militares alemãs aumenta diariamente»,

entusiasmava-se. «Parece realmente que ganhámos as primeiras batalhas.»*^

Uma vez que Bonaparte fosse esmagado, os seus pacientes cidadãos pode

riam, finalmente, tomar o poder.

Mas tinham os parisienses os meios, ou os Kderes, para levar a cabo uma

revolução e, simultaneamente, resistir ao exército prussiano? Esta questão,

mais do que qualquer outra, atormentava Marx durante as noites de insónia.

«Não se pode ocultar o facto desta farsa bonapartista, que dura há 20 anos,

ter provocado uma grande desmoralização», escreveu a Engels. «Não se pode

contar com heroísmo revolucionário. O que é que pensas disto?»''' Engels

mal teve tempo de responder a esta pergunta: Bonaparte rendeu-se em Sedan

e um novo regime — a III República — foi proclamado em Paris.

Se aguardamos à beira do rio, acabamos por ver os cadáveres dos nossos

inimigos a flutuar. 20 anos mais cedo, a nomeação do diminuto Napoleão ti-

278 ^ > » KARL MARX -,

nha levado Marx a escrever Debito de Brumário de IJÍÍS Bonaparte; agora, ele tinha

o prazer de redigir o obituário. A 9 de Setembro, a Internacional distribuiu

uma segunda alocução sobre a guerra que começava com a presumida afir

mação de que «não nos enganámos quanto à vitalidade do Segundo Impé

rio». E Marx prosseguia, «a nossa apreensão caso a guerra "perdesse o seu

carácter estritamente defensivo e degenerasse numa guerra contra o povo

francês" também não era incorrecta»". Quem tenha presente a primeira

alocução talvez se lembre que ele tinha, realmente, negado essa possibilida

de e insistira que a heróica classe trabalhadora alemã se anteciparia a isso. Mas

a campanha puramente «defensiva» tinha terminado com a capitulação em

Sedan e, agora que os alemães pediam a anexação de Alsácia e Lorena, ele

rescrevia a história a fim de não passar por uma vergonha.

Não devemos ser demasiado críticos em relação a Marx. O seu primeiro

tributo à contenção alemã tinha sido um triunfo da esperança sobre a expe

riência, mas com a notável excepção que a sua leitura era espantosamente

correcta. O que é que fazia se a fortuna das armas e a arrogância do sucesso

levava a Prússia a desmembrar a França? Na segunda alocução, ele preveniu

que a Alemanha se tornaria «o confesso instrumento do engrandecimento

da Rússia ou, após um breve interregno, se prepararia para mais uma guer

ra «defensiva», não uma dessas modernas guerras "localizadas", mas uma

guerra de raças — uma guerra das raças romanas e eslavas combinadas».

Uma carta ao organizador americano da Internacional, Friedrich Adolph

Sorge, era ainda mais presciente. «O que os burros prussianos não vêem é

que a presente guerra conduz. . . a uma inevitável confrontação entre a Ale

manha e a Rússia. E essa guerra n.° 2 será a parteira da inevitável revolução

social na Rússia.»^** Marx não viveu para assistir ao drama de 1917, mas não

teria ficado minimamente surpreendido. Por vezes, parecia estar a olhar ainda

para mais longe:

«Se por interesse militar forem estabelecidos limites, as reivindicações

não terão fim, pois todas as linhas militares são necessariamente incor

rectas e só poderão ser melhoradas anexando mais território; além do

mais, nunca poderão ser fixadas de forma final e razoável, pois são im

postas pelo conquistador ao conquistado e, por conseguinte, transpor

tam com elas a semente da discórdia.»

o ELEFANTE VELHACO ö G # 279

Os que se referem aos ocasionais erros de Marx como prova da sua mio

pia histórica, talve2 não se importem de nos dizer que outras figuras dessa

época tiveram uma premonição tão precisa da ascensão de Hitler.

A segunda alocução de Marx saudava a nova República Francesa (Vive

la République!), mas não sem apreensões. «Essa república não subverteu o

trono, apenas ocupou o seu lugar quando ficou vazio», fez notar. «Foi pro

clamada, não como uma conquista social, mas como medida nacional de

defesa.»

O governo provisório era uma instável coligação de orleanistas e repu

blicanos, bonapartistas e jacobinos que podia vir a tornar-se numa ponta para

a restauração da realeza. N o entanto, os trabalhadores franceses tinham de

cumprir o seu dever como cidadãos e banir toda a ideia de revolução. «Qual

quer tentativa para derrubar o novo governo na crise actual, quando o ini

migo está quase a bater às portas de Paris, seria uma loucura desesperada.»

A loucura desesperada era, claro está, o passatempo favorito de Michail

Bakunine que seguia as notícias na sua vivenda suíça em França. Ao ouvir

falar de uma insurreição em Lyons após a derrota em Sedan, apressou-se a

lá ir imediatamente, entrou com ar importante na Câmara Municipal e no-

meou-se chefe do «comité de Salvação Nacional». E , a seguir, numa procla

mação da varanda do edifício, declarou a aboução do Estado — acrescen

tando [muito libertariamente) que quem discordasse dele seria executado. O

estado sob a forma de um pelotão da Guarda Nacional, penetrou pronta

mente por uma porta da câmara que, por inadvertência, não se encontrava

guardada e obrigou o Messias de Lyons a fugir para as margens seguras do

lago de Genebra.

A admoestação de Marx para a situação não balançar o barco não teve

mais influência do que as vangloriosas palhaçadas de Bakunine. Adolphe

Thiers, veterano advogado liberal, foi nomeado Presidente da Terceira Re

pública e dentro de pouco tempo soHcitou a paz com a Prússia em nome do

seu desajeitadamente chamado «Governo de Defesa Nacional». A raiva dos

parisienses perante esta rendição redobrou quando ele anunciou que as repara

ções seriam financiadas pelo pagamento imediato de todas as contas e rendas

suspensas durante o cerco. A 18 de Março de 1871, uma multidão indigna

da invadiu as ruas — apoiada pela Guarda Nacional da cidade, que se recusa

va obedecer à ordem de entregar as armas ao governo. Thiers e os seus adep

tos fugiram para Versalhes, deixando a capital nas mãos dos seus cidadãos.

2 8 0 % ^ ICARLMARX

O galo gaulês tinha, mais uma vez, cantado. Ao princípio, os governantes

da Europa fíngiram-se de surdos, na esperança de que, se não lhe dessem

ouvidos, o cacarejar talvez desvanecesse. Quando isto falhou, o pânico que

se apoderou deles foi delicioso de ver. The Times, de Londres, bradou con

tra «este perigoso sentimento da democracia, esta conspiração contra a ci

vilização na sua capital». O próprio Karl Marx, informava, tinha ficado tão

horrorizado por aquela insurreição que enviara uma dura repreensão aos

membros firanceses da Internacional. O jornal teve depois de publicar um

desmentido de Marx, o qual revelou que alegada carta era «uma falsificação

impudente»^'. («Não deves acreditar numa só palavra do que se escreve nos

jornais burgueses sobre o que se está a passar em Paris», aconselhou Liebk

necht, que se encontrava na Alemanha. «São tudo mentiras. Nunca a vilania

dos jornais burgueses se manifestou de forma tão esplêndida.»^*'

A excitação de Marx quanto «ao que se estava a passar em Paris era apenas

temperada pelo receio de que os revolucionários pudessem ser demasiado

decentes para o seu próprio bem. E m vez de marchar imediatamente sobre

Versalhes para acabar com Thiers e a sua desgraçada equipa, perderam

«momentos preciosos» a organizar uma eleição geral para a Comuna. Marx

também desaprovou a sua decisão de permitir que o Banco Nacional pros

seguisse as suas actividades normais: se fosse ele a mandar, há muito que os

cofres teriam sido postos a saque. Mesmo assim, era uma bênção estar vivo

naquela madrugada. «Que resiliência, que iniciativa histórica, que capacida

de de sacrifício a desses parisienses!», exclamou. «Após seis meses de fome

e ruína provocadas por traição interna e não inimigos de fora, erguem-se por

debaixo das baionetas prussianas como nunca tivesse havido uma guerra

entre a Alemanha e a França e o inimigo ainda não se encontrasse às portas

de Paris! A história não tem outro exemplo de tal grandeza!»^^

Dos 92 partidários da Comuna eleitos por sufrágio popular a 28 de Mar

ço, 17 eram membros da Internacional. N o decorrer de uma reunião em

Londres nesse mesmo dia, o Conselho-Geral concordou por unanimidade

que Marx deveria fazer uma nova «alocução ao povo de Paris». Mas, depois,

nada aconteceu. Ao longo dos dois meses que durou a Comuna, a Internacio

nal não fez qualquer declaração púbHca e, quando Marx proferiu a sua alocução

de 50 páginas, foi mais como um epitáfio: As tropas de Thiers tinham recon

quistado a cidade há três dias e pedras de Paris estavam vermelhas com o

sangue de, pelo menos, 20 000 partidários da Comuna assassinados.

o ELEFANTE VELHACO «*<^ 281

Qual a razão de tal demora? Na maior parte dos casos, os seus biógra

fos atribuem-na à «ambivalencia pessoal de Marx em relação à Comuna»^^.

É verdade que receava que esta falhasse, mas apreensão não é a mesma coisa

que ambivalencia. A principal razão, mais banal e familiar, é que, durante

Abril e Maio, teve bronquite e problemas de fígado, o que o impediu de

participar no Conselho-Geral — quanto mais reunir as provas necessárias

para render uma homenagem de 50 páginas à histórica levée en masse (levan

tamento em massa) dos Parisienses. «A presente situação causa intenso

sofrimento ao nosso querido Moura», escreveu a filha, Jenny, em meados de

Abril. «É sem dúvida essa a razão principal da sua doença. Muitos dos nos

sos amigos fazem parte da Comuna.»^-^ Um deles era Charles Longuet, direc

tor do àiúÁo Journal Officiel, que se mudou para Londres depois da queda da

Comuna e se casou com Jennychen em 1872.

Outro partidário da Comuna, Olivier Lissagaray, tornou-se mais tarde o

noivo secreto de Eleanor Marx — embora o noivado acabasse por ser des

feito. Paul e Laura Lafargue tinham fugido de Paris pouco antes dos Prus-

sianos cercarem a capital, mas continuavam a fazer campanha em favor da

Comuna de Bordéus.

Doente e cheio de maus pressentimentos, Marx também tinha de lutar

contra o seu obsessivo perfeccionismo: quer em O Capital ou num simples

panfleto, mostrava-se relutante em publicar uma opinião definitiva sobre

qualquer assunto sem reunir primeiro todas a informação necessária. Duran

te os dias da Comuna, escreveu dúzias de cartas a camaradas que viviam no

Continente, importünando-os para lhe enviarem documentação e recortes

de jornais. A julgar pelas passagens mais caluniosas da sua há muito aguar

dada alocução -— a qual foi finalmente publicada sob o título de A. Guerra

Civil em França —, a sua pesquisa também incluiu um estudo aprofundado

das colunas de mexericos. Logo nas primeiras páginas oferece-nos este en

cantador retrato do ministro dos Negócios Estrangeiros de Thiers: «Jules

Favre, que vive em concubinagem com a mulher de um bêbedo residente em

Argel, arranjou meio de se apoderar, em nome dos filhos resultantes do seu

adultério e através de uma série de ousadas vigarices feitas ao longo de muitos

anos, de uma grande herança que o tornou rico.» O ministro das Finanças,

Ernest Picard, é alcunhado o Joe Miller ào Governo de Defesa Nacional» —

um comediante londrino de musicais. Como os conhecimentos de Marx

sobre a cultura popular inglesa eram quase nulos, adivinha-se que foram as

filhas, apaixonadas por teatro, que sugeriram o nome.

282<<¿?t KARLMARX ;

Mas o resto do ataque a Picard é puro Marx, e cada novo tópico desta lista

de acusações é redigido com floreados legalistas. Ficamos a saber que Picard

«é irmão de um certo Arthur Picard, indivíduo expulso da Bolsa de Paris por

vigarice (ver relatório da Prefeitura da PoKcia datado de 31 de Julho de 1867),

e condenado pelo roubo de 300 000 francos efectuado, segundo ele mesmo

confessou, quando era gerente da Société Générale, rua Palestro, 5 (ver re

latório da Prefeitura da Polícia, 11 de Dezembro de 1868). Arthur Picard foi

nomeado pelo irmão director do jornal, l'ÉlecteurI^ibre...» Os partidários da

Comuna podem não ter tocado nos cofres bancários, mas foi certamente

com muito prazer que revistaram os arquivos da polícia.

Depois de ter introduzido os actores secundários, Marx faz a apresenta

ção de Thiers em pessoa — o «gnomo monstruoso»:

«Mestre em vigarice a pequena escala, virtuoso do perjúrio e da difa

mação, artista em todos os estratagemas mesquinhos, planos manhosos

e perfídia da guerrilha parlamentar; sem escrúpulos, quando não parti

cipa no governo, de provocar uma revolução e de a suprimir num banho

de sangue caso seja primeiro-ministro; os preconceitos de classe substi

tuem nele as ideias e aqueles são, por sua vez, substituídos pela vaidade;

a sua vida privada é tão infame quanto a sua vida pública é odiosa —

mesmo agora, em que desempenha o papel de um Sula francês, não

consegue compensar os seus feitos abomináveis através da sua ridícula

ostentação.»

A seguir, Marx faz um esboço das origens da Comuna. Longe de ser uma

espécie de sublevação contra um Governo legítimo, foi uma tentativa para

salvar a III República da ordem inconstitucional de Thiers, para que a Guarda

Nacional entregasse as armas e deixasse Paris indefeso. Marx acrescenta

ainda orgulhosamente que a insurreição popular de 18 de Março não fora

afectada «pelos actos de violência que caracterizam as revoluções, e sobre

tudo as contra-revoluções, das "classes superiores"».

E para dar um exemplo do comportamento dessas classes superiores,

menciona o próprio Presidente sem esconder nada aos leitores:

«A segunda campanha de Thiers contra Paris teve início em Abril.

A primeira leva de prisioneiros parisienses trazida para Versalhes foi su

jeita às mais revoltantes atrocidades, enquanto Ernest Picard, de mãos

o ELEFANTE VELHACO «s*^ 283

nos bolsos, os injuriava, e as senhoras Thiers e Favre, no meio das suas

damas de companhia, aplaudiam da varanda os ultrajes cometido pelo

povo de Versalhes. Os soldados capturados foram massacrados a sangue-

fi-io; o nosso valente amigo, general Duval, foi fuzilado sem julgamento.

GaUifet, o amante da mulher dele, a qual se tornou sobejamente conheci

da pelas suas desavergonhadas exibições nas orgias do Segundo Império

gabou-se, numa proclamação, de ter ordenado o assassínio de um pe

queno grupo de guardas nacionais... Com a prosápia de um Polegarzi-

nho parlamentar autorizado a desempenhar o papel de Tamerlão, Thiers

negou aos revoltosos todos os direitos de uma guerra civilizada, incluin

do a neutralidade das ambulâncias. Como previu Voltaire, não há nada mais

horrível do que ver um macaco dar livre curso aos seus instintos de tigre.»

A fim de não sobrecarregar o leitor com todo esta fiaria e violência, Marx

muda de tom e faz uma pausa para nos falar da lição aprendida com a

Comuna. Cita um manifesto de 18 de Março, em que se lia que os proletá

rios de Paris se tinham tornado «donos do seu próprio destino ao apodera-

rem-se do poder governamental». Que ilusão ingénua, comenta. A classe tra

balhadora não pode simplesmente «da maquinaria estatal já estabelecida e

utilizá-la para os seus próprios fins»: mais valeria então tentar tocar uma

sonata para piano com um gaita de beiços.

Felizmente, a Comuna entendeu rapidamente isso e livrou-se da polícia

política, substituindo-a por um exército de populares armados, desesta

bilizando a Igreja, libertando o ensino da influência dos bispos e instituin

do concursos para todos os funcionários públicos — incluindo os juízes —

para estes serem «responsáveis e revogáveis». A constituição recuperou para

a sociedade todas as forças até então absorvidas pelo Estado, e tal acção

tornou-se imediatamente visível: «As alterações introduzidas em Paris pela

Comuna foram realmente maravilhosas!... Paris deixou de ser o local de

encontro de latifundiários britânicos, foragidos irlandeses, esclavagistas

americanos e gente suspeita. Já não há cadáveres na morgue nem roubos à

noite; pela primeira vez, desde Fevereiro de 1848, as ruas de Paris são segu

ras e não se vê nenhum polícia.»

Mas esse estado de coisas não durou muito tempo. Como Marx assina

la, Thiers não podia ter tudo: se a Comuna era obra de um punhado de

«usurpadores» que mantivera os parisienses como reféns durante dois me

ses, por que é que, então, os carniceiros de Versalhes tinham tido de assas-

284 « 5 ^ KARI.MARX

sinar dezenas de milhares de pessoas para debelar a revolução? E, assim,

conclui as suas observações com outro rugido de saeva indignation perante a

brutalidade do governo e a promessa de que o espírito da Comuna não será

suprimido nem em França nem em nenhuma outra parte do mundo.

«O solo do qual germina é a própria sociedade moderna e não pode

ser espezinhado por quaisquer carnificinas. Para o espezinhar, os gover

nos teriam de espezinhar o despotismo do capital sobre o trabalho —

condição da sua existência de parasita.

Com a Comuna, os trabalhadores parisienses serão para sempre ce

lebrados como os gloriosos fundadores de uma nova sociedade. Os seus

mártires estão guardados como relíquias no coração da classe trabalha

dora e os seus exterminadores já se encontram amarrados ao pelouro da

história. As preces dos seus sacerdotes nunca conseguirão redimi-los.»

A- Guerra Civil em França foi um dos mais inebriantes panfletos de Marx

— mas demasiado tóxico para os sindicalistas ingleses, Benjamin Lucraft e

George Odger, que se demitiram do Conselho-Geral logo que o texto foi

aprovado, protestando que a Internacional não tinha de se envolver em

política. (E, a partir dessa data, prosseguiram as suas modestas ambições

como membros do velho e apolítico Partido Liberal.) As primeiras duas

edições de três mu exemplares foram esgotadas em duas semanas e, logo de

pois, seguiram-se as edições alemãs e francesas. O feito mais impressionante

de Marx foi talvez o de fazer com que as facções rivais da esquerda esque

cessem as suas rixas. «A tradução francesa átA. Guerra Civil tevt um efeito

excelente sobre os refugiados», escreveu a sua filha, Jenny. «Pois agradou a

todos os partidos — blanquistas, proudhonistas e comunistas.»

E foi igualmente excelente para a reputação de Karl Marx e da sua As

sociação. Aqueles que apoiam o status quo não acreditam que as pessoas

possam ou queiram desafiá-lo, e, assim, qualquer acto de desobediência civil

é invariavelmente seguido pela tentativa de captar o seu instigador — seja ele

uma pessoa importante ou «um grupo de gente politicamente motivada».

(Um dos mais deliciosos exemplos desta tendência paranóica é o romance

de Agatha Christie, The Secret Adversary, publicado em 1922, em que os des

temidos detectives, Tomrny e Tuppence, investigam urna repentina série de

greves industriais. «Os bolchevistas estão por detrás dos motins laborais»,

informam-nos, «mas quem está por detrás dos bolchevistas é este homem.»

o ELEFANTE VELHACO jtÛJ 285

E acabam por descobrir que quem planeou e manipulou toda a revolução

russa sem dar nas vistas é um inglês chamado Sr. Brown,) As versões

vitorianas de Tommy e Tuppence não tiveram de ir muito longe para des

cobrir a força criminosa por detrás da Comuna de Paris. A prova encontra-

va-se na última página de A Guerra Civil em França. «A desconfiada mente bur

guesa julga que a Associação Internacional de Trabalhadores está a preparar

uma conspiração e que os seus dirigentes ordenam, de tempos a tempos,

explosões em países diferentes», anotou sarcasticamente Marx. «Na realida

de, a nossa associação é apenas o elo internacional entre os trabalhadores

mais progressivos do mundo civilizado. É portanto natural que os seus

membros figurem em primeiro plano sempre que a luta de classes ganhe

consistência.»

Embora alguns dos seus membros fizessem parte da Comuna, a Inter

nacional em si nada tinha dito ou feito no decorrer daqueles dois meses à

parte ter encarregado Marx de compor uma alocução que apareceu dema

siado tarde para ter qualquer influência sobre o resultado. Mas a exagerada

afirmação de Karl Marx de que ela se figurava «no primeiro plano» desen

cadeou umi clamor de protestos em toda a Europa. Jules Favre, que era no

vamente ministro dos Negócios Estrangeiros, solicitou a todos os governos

europeus que ilegalizassem imediatamente a Internacional, e um jornal fran

cês, alegando que Marx «organizara» a insurreição de 18 de Fevereiro do seu

covil em Londres, identificou-o como o «chefe-supremo» dos conspirado

res. Dizia-se que a Internacional contava com sete milhões de membros,

todos eles à espera das ordens de Marx para se revoltar.

O grande Mazzini, herói romântico do nacionalismo republicano, apro

veitou a oportunidade para ajustar contas antigas e informou a imprensa

italiana e britânica que Marx era «um homem dominador, ciumento da in

fluência dos outros e governado por crenças desonestas e ateias. Receio que

haja mais raiva do que amor no seu temperamento.»^^

Outros governos europeus atearam o pânico. A Espanha expulsou refii-

giados da Comuna e o embaixador alemão, em Londres, incitou Lorde Gran

ville, ministro dos Negócios Estrangeiros britânico, a tratar Marx como um

criminoso por causa das suas ultrajantes «ameaças contra a vida e a proprie

dade». Depois de ter consultado o primeiro-ministro e a rainha, Grandville

replicou que «as opiniões socialistas radicais não pareciam ter ganho qual

quer influência sobre a classe trabalhadora deste país» e, «que se saiba, a filial

inglesa dessa Associação não tomou nenhumas iniciativas de ordem prática

286^5^ KARL MARX • . í '

em outros países estrangeiros». E, além do mais, não se podia prender nin

guém que não tinha infringido a lei.

Lorde Aberdare, o ministro do Interior, foi constantemente importunado

para agir contra Marx e a Internacional, em particular por um ruidoso

membro do Parlamento chamado Alexander Baillie-Cochrane. Antes de

emitir um parecer, Aberdare pediu ao seu secretário particular para obter

cópias da suposta incendiária propaganda da Internacional. Marx teve o

maior gosto em cooperar e, a 12 de Julho, enviou ao Ministério do Interior

uma resma de papéis que incluía a alocução inaugural, os regulamentos

provisionais e uma cópia de A Guerra Civil em Trança. Ao ouvir esta notícia,

Bakunine denunciou Marx como sendo um «traiçoeiro espião da polícia» —

difamação que, desde essa altura, tem sido periodicamente repetida. Um dos

mais recentes biógrafos de Marx, Robert Payne, conclui que há «alguma

verdade nessa acusação».

Mas porquê não haveria Marx de tentar esclarecer um mal-entendido que,

de outro modo, poderia levar o Governo britânico a tomar uma acção drás

tica? Ao contrário de Bakunine, ele não tinha tempo para conspirações.

A Internacional era uma associação de sindicatos legalmente constituída e,

por isso, porquê se comportar então como se houvessem segredos compro

metedores? Essa atitude franca foi plenamente vindicada quando Aberdare,

depois de examinar os documentos, garantiu ao Parlamento que Marx e os

seus adeptos descontentes inofensivos que necessitavam apenas de receber

«alguma educação religiosa» para seguir pelo bom caminho. The Times não ficou

convencido pois temia que os sólidos sindicalistas ingleses, os quais nada mais

queriam do que «um razoável salário diário por um honesto dia de trabalho»,

fossem corrompidos por «estranhas teorias» importadas do estrangeiro.^''

Graças ao panfleto de Marx, os jornais britânicos encontravam-se, ago

ra, em estado de alerta e de olhos postos no inimigo vindo do interior.

«Apesar de pouco vermos ou ouvirmos abertamente da influência da Inter

nacional, esta tornou-se a verdadeira força motivadora cuja mão oculta

guiava toda a máquina da Revolução com misterioso e temível poder», no

ticiou Traser's Magazine, em Junho de 1871^^. Uma revista católica. Tablet,

preveniu os seus leitores quanto ao sinistro significado de uma modesta li

vraria localizada no centro de Londres. «Deveríamos considerá-la superior

a um palácio ou monumento, pois é o quartel-general de uma sociedade cujas

ordens são obedecidas de Moscovo a Madrid e tanto no Mundo Novo como

o ELEFANTE VELHACO , ^ 2 8 7

no Antigo. Os seus discípulos já declararam uma guerra desesperada a um

governo e juraram declarar guerra a todos os demais. Trata-se da maléfica

e ubíqua Associação Internacional do Operariado.»^^ Um editorial do Spec

tator, embora louvasse o estilo da prosa de Marx («tão vigoroso como o de

Cobbett»), achou que a sua alocução era «possivelmente o mais maléfico e

significativo sinal dos tempos»^'. Até mesmo a Pali Mali Ga^iette, para a qual

Engels tinha colaborado durante a guerra fi-anco-prussiana, se juntou à ca

çada às bruxas, descrevendo Marx como «um israelita de nascimento» que

se proclamara chefe de «uma vasta conspiração cujo objectivo era implan

tar o comunismo poKtico».

Após anos passados na obscuridade, Karl Marx descobriu repentinamen

te que era «infamoso». «E sem dúvida verdade que o secretário daquela

organização, que faia e escreve em seu nome, é um alemão temperamental,

impetuoso e provocador chamado Karl Marx», informou os Quarterly Revkw.

«E também é verdade que muitos dos seus colegas ingleses estão fartos da

sua violência e resistem ao seu comportamento imperativo, recusando ser

arrastados num banho de sangue, coisa que a ele não repugna.»-''* Ao prin

cípio, Marx sentiu-se lisonjeado por todo o alvoroço. «Tenho a honra de,

neste momento, ser o homem mais caluniado e ameaçado de Londres», con

fessou seu amigo alemão, Ludwig Kugelmann. «Depois de um aborrecido

idíHo de 20 anos nas berças, isso faz-me realmente bem. O jornal do Governo

— o Observer— ameaça processar-me. Atrevam-se! Não me ralo nada com

esses patifes!»-'^

Mas, à medida que a imprensa continuava a publicar falsidades e fanta

sias quase diariamente, essa despreocupada gabarolice deu lugar a um sen

timento de orgulho ofendido e, quando Jenny se ofereceu para exigir um

pedido de desculpa em nome dele à revista semanal Public Opinion, Marx deu-

-Ihe instruções para enviar igualmente o seu antigo cartão-de-visitas (Sra. Jenny

Marx, baronesa Von Westphalen) — qual, segundo ele esperava, «amedron

tará esses conservadores». N o entanto, Karl preferia, a maior parte das vezes,

métodos menos subtis de contra-ataque. «Se o seu jornal continuar a publi

car essas mentiras, ver-me-ei obrigado a instaurar-vos um processo», avisou

ele o director do jornal francês em Londres, Ulnternational, que tinha afirma

do que os «pretensiosos» trabalhadores europeus se estavam a endividar para

dar a Marx «uma vida confortável em Londres». Recentes difamações noti

ciadas na PO//MÍZZ/GÍ?.-^«?//!? provocaram outra reacção:

2 8 8 1 ^ I ARLMARX

Sr. Director,

Li na secção da correspondência de Paris do seu jornal de ontem que,

embora me tivesse instalado em Londres, eu fora preso na Holanda a pe

dido de Bismark-Favre. Mas talvez isso não passe de mais uma das inume

ráveis histórias sensacionais sobre a Internacional que, nos últimos dois

meses, a polícia franco-prussiana não se cansa de inventar, a imprensa de

Versalhes de publicar e o resto da imprensa europeia de reproduzir.

Com os meus cumprimentos,

Karl Marx

1, Modena Villas, Maidand Park^^

A ¥allMall Gazette retaliou, acusando Marx de caluniar o poKtico fran

cês, Jules Favre — e o obediente correspondente de Modena ViUas escre

veu nova carta. «Você não passa de um difamador», chamou ao director,

Frederick Greenwood. «Não tenho culpa de que, além de ignorante, seja

arrogante. Se vivêssemos na Europa continental, exigir-lhe-ia uma explica

ção e resolveríamos o assunto de outra maneira. Sinceramente, Karl Marx.»^^

É evidente que para os leitores ingleses, a publicação desta carta meramen

te confirmou os seus piores receios quanto a este perigoso rufia alemão.

E m meados de Julho, um correspondente do World, de Nova Iorque,

deslocou-se expressamente a Modena Villas para visitar a fera no seu covil.

A primeira surpresa foi que a aparência de Marx era a de um homem abas

tado da classe média — género agente próspero da Bolsa.

«O apartamento onde mora é o de um homem com gosto e dinhei

ro, o conforto personificado, mas sem nada que caracterize a persona

lidade do seu dono. N o entanto, um excelente álbum com paisagens do

Reno sobre a mesa dava uma indicação quanto à sua nacionalidade.

Espreitei prudentemente para dentro de um jarro à espera de encontrar

uma bomba. Farejei o ar, mas tudo o que senti foi o odor a rosas e não

o de explosivos. Voltei a sentar-me e aguardei nervosamente o pior.

Ele entrou e cumprimentou-me cordialmente. Sentámo-nos diante

um do outro. Sim, estou agora a conversar com a revolução em carne e

osso, o fundador e guia espiritual da Associação Internacional, o autor

da alocução que ameaça o capital e o previne para não se meter com os

trabalhadores — numa palavra, o apologista da Comuna de Paris. Lem-

bram-se da prisão de Sócrates, o homem que preferiu morrer a ter de

o ELEFANTE VELHACO o < ^ 289

aceitar os deuses da sua época — o filósofo de nobre perfil, cuja fi'onte ampia desee arrebitando ligeiramente no nariz? Guardem na mente este busto, pintem a barba de preto com pelos grisalhos aqui e ali, coloquem a cabeça assim feita num corpo imponente de altura média e eis Marx à nossa frente. Tapem~lhe a parte superior do rosto com um véu e vão julgar que se encontram na companhia de um membro do clero. Note--se na feição essencial, o imenso sobrolho e damo-nos imediatamente conta de que temos de lidar com a mais formidável das forças — um sonhador que pensa, um pensador que sonha.»-''

A entrevista em si não é comparável a esta elaborada encenação. Era Marx o manipulador invisível por detrás da Internacional? «Não há nenhum mistério para desvendar, meu caro senhoo), riu-se ele. «A não ser talvez o mistério da estupidez humana, daqueles que teimam em ignorar que a nossa Associação é pública e que as suas actas são publicadas para quem as queira 1er. Pode comprar os nossos estatutos por nmpenny e um xelim gasto em panfletos ensinar-lhe-á quase tanto sobre nós como nós mesmos sabemos.»

O jornalista americano não ficou, contudo, convencido. A Internacional era provavelmente uma sociedade de trabalhadores autênticos, mas não eram eles meros instrumentos nas mãos de um génio maléfico disfarçado num respeitável cidadão da classe média? «Não existe nada que possa provar tal coisa», respondeu Marx com rispidez.

Começou ficar cansado de refutar os boatos sensacionalistas que corriam por toda a Europa ocidental e até para lá das suas fronteiras. Um jornal francês, UA-Venir Libéral, publicou a notícia de que ele tinha morrido; e Marx leu o seu próprio obitoário no World, de Nova Iorque, que elogiava «um dos defensores mais dedicados, mais destemidos e menos egoístas do povo e de todas as classes oprimidas». Não deixava de ser bastante gratificante, mas, na medida em que a sua saúde era frágil, também era uma desagradável lembrança da mortalidade. Em meados de Agosto, o médico diagnosticou «fadiga excessiva» e recomendou-lhe duas semanas de repouso à beira-mar. «Não trouxe o remédio para o fígado comigo», escreveu Marx a Engels do Hotel Globe, em Brighton. «Mas o ar faz-me muito bem.» Esqueceu-se de acrescentar que não parava de chover e que tinha apanhado uma grande constipação.

A fama seguia-o por toda a parte. Pouco depois de ter chegado a Brighton, reconheceu um homem que o espiava a uma esquina — tratava-se do inepto espião que costumava muitas vezes segui-lo, a ele e a Engels, em Londres.

290 t ^ I<ARLMARX

Uns dias mais tarde, farto de ser seguido a cada passo, Marx estacou de repente, virou-se e lançou um olhar ameaçador ao homem que o perseguia. Este baixou humildemente o chapéu e desapareceu para sempre.

Se estes espiões soubessem a verdade, teriam poupado muitas solas de sapato. O enorme e disciplinado exército de revolucionários comandado por Marx existia apenas na imaginação dos políticos e directores de jornais excitáveis. Logo após a Comuna ter sido esmaga, a Internacional começou a desintegrar-se. A secção francesa foi ilegalizada e os seus membros mortos ou enviados em exílio para as colónias da Nova Caledónia; os líderes ingleses dos sindicatos juntaram-se ao Partido Liberal de Gladstone e muitas das filiais americanas passaram a ser controladas pelos adeptos de duas extravagantes irmãs, Victoria Woodhull e Tennessee Claflin, as quais advogavam o espiritualismo, a necromancia, o amor livre, a abstinência alcoólica e a linguagem universal. (WoodhuU, que usava os seus indubitáveis encantos para extrair grandes somas de dinheiro ao milionário Cornelius Vanderbüt, tinha começado a sua carreira como vendedora de banha da cobra. Beneficiara da política marxista da porta aberta, a qual estipulava que todos os que aceitassem mais ou menos os objectivos da Associação seriam admitidos; mas ele acabou por perder a paciência quando ela anunciou a sua intenção de se apre; sentar às eleições presidenciais americanas como candidata da Associação Internacional dos Trabalhadores e da Sociedade Nacional de Espiritoalistas.) Durante a ausência de Marx à beira-mar, vários parisienses refugiados em Londres foram eleitos para o Conselho-Geral, mas como a maior parte era proudhonista, as antigas querelas recomeçaram novamente.

E, claro está, ainda havia a ameaça de Michail Bukanine, o qual observava a Internacional moribunda como uma hiena esfomeada. Andava agora a intrigar mais brutalmente que nunca com o seu novo acólito, Sergei Nechayev, um louco anarco-terrorista russo que se refugiara na Suíça em 1869. Ba-kunine, não menos fantasista, deixou-se impressionar pela gabarolice de Nechayev, que tinha organizado uma rede de células revolucionárias por toda a Rússia, e pelo relato da sua sensacional fuga da fortaleza de Pedro e Paulo em Sampetersburgo. Embora ambas estas coisas fossem pura ficção, a violência de Nechayev era bastante autêntica; antes de fugir da Rússia, tinha assassinado um colega estudante simplesmente porque queria provar que era capaz de o fazer. Depois de se juntar a Bakunine, publicou uma série de proclamações e artigos incendiários, provenientes ostensivamente da Internacional, a anunciar vingança.

o ELEFANTE VELHACO Ï # * ^ 291

As acções bizarras dos bakuninistas dividiu a Federação Romande, a

secção suíça da Internacional, e provou uma confusão sem fim — especial

mente porque ambas as facções continuaram a emitir comunicados em nome

da extinta Federação. Para resolver a disputa, o quartel-general em Londres

convocou um congresso extraordinário em Setembro de 1871, o qual teve

lugar na taberna Blue Posts, em Tottenham Court Road. «Foi uma tarefa

difícil», escreveu Marx à mulher que, à cautela, tinha ido para Ramsgate.

«Sessões de manhã e de noite, com outras sessões nos intervalos, para ouvir

testemunhas, redigir relatórios, etc. Mas como não havia assistência e não

tínhamos portanto de encenar comédias retóricas, fizemos mais do que em

todos os outros congressos juntos.»^^

Marx, que actuava sempre muito bem em tabernas, dominou as sessões

e chamou a atenção sobre o facto de que, embora Bakunine tivesse prome

tido dissolver a sua Aliança da Democracia Socialista para se juntar à Inter

nacional, «a Aliança nunca foi realmente dissolvida e tem mantido uma

espécie de organização». Bakunine não foi directamente condenado, mas os

delegados passaram uma moção: Nechayev, que nunca fora membro nem

agente da Internacional, «tem fraudulentamente usado o nome da Asso

ciação Internacional de Trabalhadores a fim de enganar gente na Rússia».

E também mandava os bakuninistas deixarem de empregar o nome da Fe

deração Romande, permitindo-lhes apenas formar uma secção suíça sepa

rada com o nome de Federação do Jura.

Tinham-se mostrado tolerantes em relação a Bakunine, mas este sabia

que Marx se preparava para um ajuste de contas final, pois a Internacional

não era suficientemente grande para ambos. Pouco depois do congresso de

Londres, a nova Federação do Jura reuniu-se na cidade suíça de SonvilUer

onde houve muitas discussões sobre a «falta de representatividade» do con

gresso de Londres. O que era verdade: 13 membros do Conselho-Geral ti

nham marcado presença na taberna Blue Posts, mas apenas dez represen

tavam o resto do mundo — dois suíços (ambos anti-Bakunine), um francês

e outro espanhol, e, pelo menos, seis belgas.

A reunião em Sonviliier foi, porém, ainda menos representativa: 16 de

legados, todos pró-Bakunine. Produziram uma circular que foi distribuída

em todas as filiais da Internacional do continente europeu: «Uma verdade

que não se pode negar e que foi provada vezes sem conta é o efeito corrup

tivo da autoridade sobre aqueles em que cujas mãos tal autoridade é posta. . .

292 ^ * B K J M I L M A R X

As funções dos membros do Conselho-Geral têm vindo a ser encaradas

como propriedade privada por uns quantos indivíduos... Tornaram-se uma

espécie de governo e consideram natural que as suas próprias ideias cons

tituam a doutrina oficial da Associação e a única que é autorizada, enquan

to as ideias divergentes dos outros grupos já não lhes parecem uma legíti

ma expressão de opinião com valor igual à deles, mas sim uma autêntica

heresia.» O único remédio contra o autoritarismo, decidiram, era despojar

o Conselho-Geral do seu poder e reduzi-lo a uma simples «caixa de correio».

Nos meses seguintes, Bakunine enviou uma série de circulares histéricas

aos membros da Internacional em Espanha e Itália, apresentando-se como a

vítima de «uma conspiração de judeus alemães e russos fanaticamente dedica

dos ao seu tirânico messias, Marx». Só a «raça latina», acrescentava lisonjeira

mente, podia pôr fim aos planos secretos dos hebreus para dominar o mundo.

«Todo este mundo judeu constitui uma única seita de exploradores

que suga o sangue das pessoas. É uma espécie de parasita colectivo, voraz

e organizado não só através das fronteiras mas também através das di

ferentes opiniões poiïticas. Este mundo, pelo menos em grande parte,

está actualmente nas mãos de Marx por um lado e, por outro, dos Roths-,

chüds. Sei que os Rothschilds, reaccionários como são e deveriam ser, dão

grande valor aos méritos do comunista Marx e que este, por sua vez, se

sente irresistivelmente atraído — atracção essa instintiva e cheia de res

peitosa admiração — pelo génio financeiro de Rothschild. Essa poderosa

solidariedade judaica tem-se mantido ao longo de toda a história e une-os.»^""

Estas pútridas elucubrações eram, pelo menos, sinceras. E m 1869, ele

tinha escrito uma volumosa tirada contra os judeus («isentos de qualquer

sentido moral e de dignidade pessoal») em que nomeava somente cinco

excepções à regra: Jesus Cristo, São Paulo, Espinosa, Lassalle e Marx. E,

quando um amigo lhe perguntou porquê Marx fora absolvido, Bakunine

explicou que queria alertar o inimigo: «Pode ser que, dentro de pouco tem

po, tenha de lhe dar luta... Mas há tempo para tudo e a hora da batalha ainda

não chegou.» Mas, agora que essa batalha tinha começado, já não precisava

de esconder os seus verdadeiros sentimentos.

Há aqui uma distinção importante a fazer. Até à Segunda Guerra Mun

dial, escritores populares, como Agatha Christie, faziam por vezes observa

ções anti-semitas nos seus livros («Claro que ele é judeu, mas muito simpá-

o ELEFANTE VELHACO o d ^ 293

tico»); no entanto, nunca ninguém acusou Christie de querer eliminar seis

milhões de judeus. D o mesmo modo, o estereótipo do «judeu avarento» era

quase universal no século XIX e o próprio Marx usou-o num dos seus primei

ros ensaios, Sobre a Questão Judaica. Bakunine, contudo, dirigia as suas vicio

sas diatribes contra os «judeus louros» independentemente da sua religião,

métodos de negócio, classe social ou ideologia política. Enquanto Marx

argumentava que a emancipação da humanidade libertaria os judeus da tira

nia do Judaísmo, o desejo de Bakunine era apenas de os aniquilar. «Os judeus

são detestados em todos os países», escreveu numa circular à secção da Inter

nacional em Bolonha. «Odeiam-nos tanto que, como consequência natural,

todas as revoluções populares são acompanhadas por massacres de judeus...»

Compreensivelmente, o Conselho-Geral sentiu-se obrigado a distanciar-

-se dessas tendências genocidas, em particular numa altura em que todos os

directores dos jornais europeus queriam conspurcar a Associação Interna

cional do Operariado. E, em Junho de 1872, publicou um panfleto escrito

por Marx, A.s Fictícias Divisões na Internacional— o título era negado logo na

primeira página, pois confirmava a existência de uma divisão tão vasta como

o canal da Mancha: «Desde a sua fundação que a Internacional não atravessa

uma crise tão grave.»^^ E Bakunine era acusado de instigar uma «guerra ra

cial» e de, como parte do seu plano anarquista, organizar sociedades secre

tas para destruir o movimento dos trabalhadores.

Bakunine retaliou exigindo a convocação de um congresso para resolver

a disputa uma vez por todas. Como desde 1869 não tinha sido realizado ne

nhum congresso — em primeiro lugar por causa da Guerra Franco-Prussiana,

e, depois, por causa das perseguições policiais que se seguiram à Comuna de

Paris — o Conselho-Geral dificilmente poderia recusar e, por conseguinte,

anunciou uma sessão plenária para o dia 2 de Setembro de 1872 em Haia.

Isto provocou ainda mais uivos de protesto por parte de Bakunine, que que

ria que o congresso tivesse lugar na sua praça-forte, Genebra, mas o Con

selho-Geral fez-lhe notar que três dos quatro congressos da Internacional

já tinham ocorrido na Suíça e que não se podia ter tudo. Bakunine decidiu,

então, boicotar o evento e instruiu os seus adeptos «para enviar os delega

dos a Haia com "mandatos imperativos", ordenando-lhes para abandonar

o congresso por solidariedade assim que a maioria votasse a favor de Marx

sobre qualquer questão».

Depois destas escaramuças preliminares, o congresso abriu em Haia num

ambiente de frenesim conspiratório no inadequadamente chamado Salão da

294 <¿.--« líARLMARX ' .' '

Concórdia. Havia 65 delegados, mas muito mais repórteres, espiões e curio

sos que tinham vindo para ver de perto os perigosos revolucionários, como

se estes fossem leões de circo. Um jornal belga publicou a triste noü'cia que

o Dr. Marx, padrinho do terrorismo e do caos, parecia um «cavalheiro ru

ral». O liberal jornalista holandês, S. M. N. Calisch, assinalou que Marx tinha

parentes em Amesterdão. «Se isso é verdade, então a família não verá incon

venientes em apresentá-lo à alta sociedade ou em tomar chá com ele no café

Zoo. Com o seu fato cinzento de flanela, tem um aspecto absolutamente cor

recto, e quem não o conhecer e não souber da sua relação com a temida In-38 ternacional, tomá-lo-á por um turista a dar um passeio a pé.»

Mesmo assim, os ourives trancavam as lojas com medo que os comunis

tas quebrassem as montras e roubassem as jóias. Um jornal local, o Haager-

-Dagblaad, aconselhou as mulheres e as crianças a não sair à rua.

Para consternação da polícia e da imprensa, o congresso teve início à

porta fechada, enquanto a boa intenção dos delegados era verificada. Um

espião enviou um deprimente relatório para Berlim informando que «não era

permitida a entrada no primeiro andar onde corriam as sessões e nem sequer

se conseguia ouvir uma palavra do que se passava lá dentro pela janela aber

ta»^'. O correspondente de The Times conseguiu encostar o ouvido à fecha

dura, mas tudo o que ouviu foi «o tilintar de uma campainha acima de uma

algazarra de vozes irritadas»'*'^. Os debates foram irados e longos: as facções

rivais gladiaram-se durante três dias para obter vantagens pondo em questão

as credenciais de quase todos os oponentes. E quando foi dito que Maltman

Barry, representante dos trabalhadores alemães de Chicago, era na realidade

um conservador londrino e «não um líder reconhecido dos trabalhadores

tagleses», Marx replicou que isso não era nenhuma novidade, pois «quase todos

os reconhecidos líderes dos trabalhadores ingleses estavam vendidos a

Gladstone» — observação que não se pode dizer ter sido calculada para ga

nhar os votos dos representantes ingleses. N o entanto, podia, pelo menos,

confiar nos alemães e nos franceses, nas fileiras dos quais se encontrava o noivo

át Jennychen, Charles Longuet. O genro. Paul Lafargue, tinha-se manhosamente

juntado à delegação espanhola e o resto era a favor de Bakunine.

Ao cabo de uma maratona de três dias, tornou-se evidente que os anar

quistas estavam em minoria. Alguns delegados, impossibilitados de se man

terem afastados da sua vida profissional durante mais tempo, voltaram para

casa sem aguardar o fim dos debates e a votação, enquanto outros partiram

à procura de discussões mais estimulantes nos bordéis locais.

o ELEFANTE VELHACO * ^ 295

«Assistimos, finalmente, a uma auténtica sessão do congresso da Internacional», informou o jornal L Í Français quando as portas foram abertas ao púbMco na noite de 5 de Setembro, «com uma assistência dez vezes superior ao que a sala podia comportar, aplausos, interrupções, empurrões, vaias, ataques pessoais, declarações extremamente radicais, mas, ao mesmo tempo, extremamente conflituosas, recriminações, denúncias, protestos, chamadas à ordem e, por fim, o encerramento da sessão às dez horas, no meio da maior confusão e de um calor tropical.»'' ^

Apesar de Marx tentar passar despercebido e se sentar discretamente atrás de Engels, ninguém duvidou que era aquele «cavalheiro rurab> quem dirigia o espectáculo. Logo no primeiro debate sobre a extensão dos poderes do Conselho-Geral, um delegado de Nova Iorque argumentou que a Internacional necessitava de uma cabeça forte «com miolos». Ouviram-se risos quando todos os olhos se viraram para Marx. A moção foi aprovada: 32 votos a favor e seis contra com 16 abstenções.

Quando este resultado foi anunciado, Engels ergueu-se subitamente e pediu licença para «fazer uma comunicação ao congresso». Perante a manifesta falta de unidade no seio da Internacional e a impossibilidade de reconciliar franceses e espanhóis ou alemães e ingleses, ele e Marx desejavam propor que a sede do Conselho-Geral mudasse para Nova Iorque.

Não podendo acreditar no que tinham ouvido, os delegados ficaram sentados em silêncio estupefacto durante um minuto ou dois. No dizer de um observador inglês. «Foi um verdadeiro golpe de Estado e todos se entreolhavam ã espera que um deles quebrasse o silêncio.»''^ Como a Comuna de Paris tinha mostrado há pouco mais de um ano, a Europa era o berço do novo movimento revolucionário: como poderia a Internacional alimentar e educar os seus filhos do outro lado do Atiântico? O tributo de Engels à superior «capacidade e zelo» do trabalho organizado nos EUA era particularmente pouco convincente, pois todos sabiam que, nos últimos dois anos, a secção americana da Internacional andava preocupada com a luta contra Victoria WoodhuU e a sua extravagante seita. Era verdade que um Conselho--Geral constituído exclusivamente por americanos talvez fosse palco de menos querelas entre protagonistas, blanquistas e comunistas, mas também não poderia contar com as poderosas qualidades intelectuais de Karl Marx. Assim como muitos dos seus aliados votaram contra essa ideia, alguns dos seus piores inimigos aprovaram-na por essa mesma razão. «A sua direcção e supervisão pessoais são absolutamente essenciais», argumentou um marxis-

296 _ ,>- KAR1.MARX

ta em pânico. E outro disse que mais valia então transferir a sede para a Lua. No entanto, e graças ao veto anarquista, Marx e Engels conseguiram o que queriam com 26 votos a favor, 23 contra e seis abstenções.

Ao exilar a Internacional para os EUA, Marx condenava-a deliberadamente à morte. «A estrela da Comuna já ultrapassou a sua não muito elevada altitude mediana», comentou o Spectator, em 14 de Setembro. «E, a não ser na Rússia, nunca a veremos novamente tão alta.»

Então, por que é que ele fez tal coisa? Historiadores marxistas têm tratado a questão como um enigma sem solução, mas não há nenhum mistério: ele estava simplesmente exausto pelo esforço de manter unidas as tribos que se guerreavam. Um ou dois camaradas já estavam a par do segredo. «Ando tão fatigado e isso interfere tanto nos meus estudos que, depois de Setembro, penso afastar-me do "negócio"» (nome de código para o Conse-Iho-Geral), escreveu a um amigo russo três meses antes do congresso, «é de uma grande responsabilidade, sobremdo para mim, pois tem, como sabe, ramificações por todo o mundo e eu já não consigo combinar duas coisas tão diferentes.»'*-' Numa carta ao socialista belga César de Paepe, datada de 28 de Maio de 1872, parecia ainda mais desmotivado: «Estou ansioso para que o novo congresso comece. Será o fim da minha escravidão. Quando terminar, voltarei a ser Uvre e nunca mais aceitarei funções administrativas.. .»'' "

Marx sabia que, sem a sua presença, o Conselho-Geral se desintegraria, mas que, antes de expirar, poderia prejudicar seriamente o comunismo. Mais valia pôr fim ao sofrimento do animal ferido.

Após a decisão de mudar o quartel-general da Internacional para Nova Iorque, os subsequentes debates do congresso em Haia tornar-se-iam menos importantes. Mas, antes de abandonar o palco, Marx tinha encenado mais um golpe teatral. Duas semanas antes de se deslocar à Holanda, tinha obtido um documento proveniente de Sampetersburgo que parecia provar que Michail Bukanine era um maníaco homicida. Ia agora mostrá-lo e desencadear uma fogueira de vaidades final.

No Inverno de 1869, Bakunine, como de costume sem dinheiro, aceitou 300 rublos de um editor chamado Lyubavin para traduzir O Capital çxa russo. Era difícil pensar em alguém menos inadequado para tal tarefa: além de ser um preguiçoso incorrigível, era pouco provável que Bakunine estivesse disposto a enaltecer a reputação de Marx. Mas, aparentemente, Lyubavin nada sabia disso e, passados alguns meses, lembrou-lhe amavelmente que o manuscrito ainda não fora entregue. Como resposta, recebeu uma raivosa carta

o ELEFANTE VELHACO * ^ 297

de Sergei Nechayev, o cão de fila de Bakunine, em que este clamava agir em nome de urna organização secreta de assassinos revolucionários. Denunciava Lyubavin como parasita e extorsionarlo e dizia que este queria impedir Bakunine de «ajudar a causa suprema do povo russo», forçando-o a fazer trabalhos literários. Nechayev ordenava-lhe ainda que rasgasse o contrato e não obrigasse Bakunine a reembolsar o dinheiro — caso contrário...

«Sabendo com quem está a lidar, fará, por conseguinte, o necessário para evitar a nefasta possibilidade de nos dirigirmos a si uma segunda vez de forma menos civilizada... Somos muito rigorosos e calculámos o dia exacto em que irá receber esta carta. Deverá sujeitar-se às nossas ordens de modo a não termos a necessidade de recorrer a medidas extremas... Depende inteiramente de si mantermos relações mais amigáveis ou sermos obrigados a tomar uma atitude desagradável.»

Com os melhores cumprimentos, sinceramente seu...

Como indicação da natureza dessas «medidas extremas», Nechayev decorou o papel de carta com uma pistola, um machado e um punhal.

Não é uma técnica que recomendamos a um escritor que não cumpra o prazo de entrega. Mais tarde, Bakunine insistiu que não tinha conhecimento dessa carta, assim como não estava a par de que Nachayev fosse procurado pela morte de um estudante em Sampetersburgo: logo que soube a verdade, na Primavera de 1870, repudiou imediatamente o seu violento associado. Desde então, historiadores e biógrafos aceitaram os seus protestos de inocência, mas essa declaração de Bakunine é tão digna de confiança como tudo o que emana dele.

A verdade encontra-se nos arquivos da Biblioteca Nacional de Paris onde, em 1966, o professor Michael Confino descobriu uma longa carta de Bakunine a Nechayev datada de Junho de 1870 — quer dizer, após o pai do anarquismo ter, supostamente, deserdado o filho delinquente. Longe de o repudiar, Bakunine propunha-lhe que continuassem a conspirar e a maquinar planos juntos com a condição de Bay (como apeüdava ternamente Nechayev) ser futuramente mais discriminatório na escolha das vítimas. «Esta simples regra deve constituir a base da nossa actividade: verdade, honestidade e confiança mútua entre todos os Irmãos e em relação a todos os que possam e desejem juntar-se à nossa irmandade; as mentiras, a manha e, se necessário.

298*1?-:' KARL MARX ' '

a violencia são reservadas aos nossos inimigos.»"^^ Eis o que pode ser dito quanto à rejeição do «gangsterismo» feita por Bakunine.

Essa outra carta incriminatória, a de Nechayev ao pobre Lyubavin, teve o efeito desejado quando Marx a mostrou aos delegados em Haia. No último dia do congresso, e por uma maioria de 27 votos contra sete, foi acordado que Bakunine deveria ser expulso.

A Internacional caiu em rápido declínio após a sua sede ter sido radicada em Nova Iorque e dissolveu-se formalmente em 1876. Michail Bakunine morreu no mesmo ano, e Nechayev, o seu Boy adorado, foi deportado da Suíça no Outono de 1872 para a Rússia, condenado por homicídio e enviado para a fortaleza de S. Pedro e Paulo onde, após dez anos de solitária numa húmida masmorra, morreu com 35 anos. Marx sobreviveu a todos eles.

12

O OURIÇO TOSQUIADO

O paradoxo, a ironia e a contradição, os espíritos que animam a obra de Marx, também constituíam a maliciosa trindade que moldaram a sua própria vida. Supõe-se que ele teria aplaudido o credo de Ralph Waldo Emerson: «Uma consistência insensata é o papão das mentes mesquinhas e é adorada por estadistas, filósofos e divindades insignificantes. Com consistência, uma grande alma não tem, muito simplesmente, nada que fazer.»

Não é surpreendente, portanto, que um homem perpetuamente sem dinheiro através de toda a sua carreira profissional, só tenha acabado por encontra segurança financeira quando desistiu de ganhar a vida. No Verão de 1870, Engels vendeu a sua parte na empresa da família a um dos irmãos Ermen e, com o lucro do negócio, garantiu ao imprevidente amigo uma pensão de 350 libras por ano. «Fiquei estarrecido pela tua generosa amabilidade», confessou Marx, espantado.

Durante duas décadas, Engels sustentou uma vasta tribo — as irmãs Burns, a família Marx, Helene Demuth —, enquanto também escrevia e promovia energicamente a sua causa política. Nunca se queixou nem sequer uma vez. Como Jenny Marx disse: «Mostra-se sempre alegre, saudável, vigoroso, bem disposto e gosta imenso de beber cerveja (em particular a vienense).»^ Acompanhado por Lizzy Burns e a sua retardada sobrinha, Mary EUen (Pumps) — mais uma pobre coitada por quem tinha assumido a responsabilidade — Engels mudou-se para Londres, alugando uma elegante casa em Regent's Park Road, 122.

Nem todas as ironias do destino foram tão benignas. Os anos de conflito na Internacional tinham dado a Marx uma violenta alergia aos socialistas

300 i p * ICARLMARX

franceses, os quais tivera a esperança de curar ao demitir-se do Conselho--Geral; mas agora, castigo do destino, dois desses irritantes indivíduos eram seus genros. A 2 de Outubro de 1872, um par de semanas depois do congresso em Haia, Jemjcòen tinha-se casado com Charles Longuet numa cerimónia civil em São Pancrácio.

A mãe da noiva, que nem sempre partilhava dos mais extremos preconceitos de Karl, aprovou o casamento de pleno agrado. Quase tudo nos franceses a irritava — a sua hauteur, o seu élan, o seu savoir faire, as suas idées fixes, as suas grandes passions e, muito provavelmente, um certo^é' ne sais quoi. «Longuet é muito dotado», escreveu a Liebknecht quando o noivado foi anunciado. «É um homem bom, honesto e decente... Mas não consgo encarar a sua união sem um certo desconforto, e teria realmente preferido que a Jenny tivesse escolhido (por uma vez) um inglês, ou um alemão, em vez de um francês, o qual, embora possua todas as encantadoras qualidades do seu país, também tem as suas fraquezas e incapacidades.»^

Como era de esperar. Longuet provou ser um bruto enfadonho e egoísta que condenou a mulher à lida da casa. «Apesar de eu trabalhar como um preto», confessou ela à irmã, Eleanor. «Ele passa o tempo a gritar comigo e a resmungar sempre que está em casa.»^ Para Karl Marx, a única consolação desse casamento miserável foi o nascimento de netos — cinco rapazes, um dos quais morreu em tenra idade —, e o facto de Longuet ter um ordenado regular como professor na Universidade de Londres. (Dois anos antes do casamento, quando as finanças da família estavam bastante em baixo. Jennychen vira-se forçada a procurar trabalho com governanta.)

O marido de Laura, em contrapartida, parecia ser um caso perdido. Paul Lafargue tinha abandonado os estudos de medicina porque a morte dos três filhos o fizera perder a confiança nos médicos; dedicou-se aos negócios e comprou a patente de um «novo processo de emulsão fotográfica». O empreendimento foi prejudicado desde o princípio por causa das constantes discussões com o sócio, o refugiado da Comuna, Benjamin Constant Le Moussu, e, para salvar a honra da família, Marx viu-se na obrigação de adquirir a parte de Longuet (financiado, inútil será dizer, pelo bom velho Engels). Mais tarde, o próprio Marx desentendeu-se com Le Moussu sobre a propriedade de uma determinada patente. Em vez de suportar o embaraço e a despesa de recorrer ao tribunal, decidiram submeter a disputa ao arbítrio particular de um advogado de esquerda, Frederic Harrison, o qual menciona o episódio nas suas memórias:

o OURIÇO TOSQUIADO a < ^ 301

«Antes de fazerem qualquer depoimento, pedi-lhes que prestassem

juramento sobre a Bíblia, conforme é requerido por lei. Ambos ficaram

horrorizados. Marx protestou que não se rebaixaria a tal coisa e Le Moussu

declarou que nunca seria acusado de cometer um acto tão vu. Discutiram

durante meia hora, cada um deles recusando ser o primeiro a prestar

, juramento na presença do outro. Consegui, por fim, convencê-los a che

gar a um compromisso: tocariam ao mesmo tempo na Bíblia sem pro-

: ferir uma palavra. Pareceu-me que, assim como Mefistófeles na cena da

ópera em que tem de enfrentar a cruz, ambos receavam a poluição do

livro sagrado. Quando chegou a altura de apresentarem o caso, foi o

esperto Le Moussu quem ganhou pois as provas dadas por Marx eram

. totalmente confusas.»"*

í Esta derrota fortaleceu a convicção de Marx de que, por debaixo das suas

«peneiras francesas», os socialistas parisienses eram todos uma cambada de

mentirosos e velhacos. Le Moussu foi imediatamente incluído no seu bes

tiario particular de gente desonesta e classificado de vigarista, «que extorquiu

elevadas somas de dinheiros a mim e a outi-os e que, depois, recorreu a in

fames calúnias para limpar a sua reputação e se apresentar como uma pes

soa inocente cuja magnânima alma não fora devidamente apreciada»^. Mas,

muito em breve, a ira de Marx virou-se contra Paul Lafargue, o pateta incom

petente que o tinha metido neste sarilho. A parte as suas «fraquezas e inca

pacidades», tanto Lafargue como Longuet eram uns irresponsáveis que re

cusavam dar ouvidos aos numerosos conselhos e sermões do exasperado

sogro. «Longuet como último proudhonista e Lafargue como o último

bakuninista!», queixou-se a Engels. «Que o diabo os carregue a ambos!»"^

Que franceses lhe tivessem tirado duas filhas podia ser considerado uma

desgraça; mas perder uma terceira às mãos dessa gente era impensável. Pode-

-se portanto imaginar a reacção de Marx quando Eleanor se apaixonou pelo

elegante Hippolyte Prosper Olivier Lissagaray, o qual, com 34 anos, tinha

exactamente o dobro da idade dela. Lissagaray teve a infelicidade de chegar

a Modena Villas quando as guerras gaulesas contra Lafargue e Longuet já ti

nha começado; em outras circunstâncias, ele até talvez fosse bastante acei

tável. «Com uma única excepção, todos os livros que até agora apareceram

sobre a Comuna são lixo. Essa excepção à regra-geral, é a obra de Lissagaray»,

disse Jennjchen aos Kugelmanns em 1871, repetindo, aparentemente, a opi

nião do pai.^

302 4£5^. KARL MARX ^ ' '

Quando, anos mais tarde, Lissagaray publicou uma História da Comuna mais completa, Marx chegou a ajudar Eleanor a preparar uma tradução em inglês. No entanto, o homem era indubitavelmente francês: caracol colado à testa, sorriso desdenhoso e ostentação negligente, tudo parecia indicar um individualista caprichoso. Lissagaray tinha por conseguinte de dar provas de que poderia vir a ser um marido responsável. «Nada lhe pedi», escreveu Marx a Engels, «a não ser provas, em vez de palavras, que era melhor do que a sua reputação e que havia boas razões para confiar nele... A chatice é que tenho de ser muito circunspecto e indulgente por causa da minha filha.»^

Não era verdade: proibiu 'Tussy de ver Ussa durante longos períodos enquanto a realmente circunspecta e indulgente Jenny Marx era cúmplice do seu namoro secreto. Mas esses encontros às escondidas agravavam ainda mais a dor da separação. Em Maio de 1873, Eleanor aceitou um posto de ensino num seminário para senhoras em Brighton, na esperança de escapar ao pai (e, possivelmente, à sua dependência financeira); regressou a casa por volta de Setembro com uma depressão nervosa. Se tivesse de escolher entre o pai e o amante, não poderia desafiar a força gravitacional da devoção filial -— mas porquê essa escolha deveria se imposta? Uma carta que deixou em cima da secretária do pai uns meses mais tarde revelou o seu desespero e eterna obediência:

Meu «' //o querido Mo//rö, Vou pedir-te uma coisa, mas, primeiro, quero que me prometas não

ficar muito zangado. Quero saber, querido Mouro, quando poderei voltar a ver L. Custa-me tanto nunca o ver. Faço o possível por ser paciente, mas é tão difícil que sinto que não consigo aguentar mais. Não espero que digas que ele pode vir cá. Nem sequer devo desejar tal coisa, mas não poderei eu ir dar um passeio com ele de vez em quando?...

Quando me encontrava muito doente em Brighton (numa altura em que desmaiava duas ou três vezes ao dia), o L. veio ver-me e, após cada visita, sentia-me mais forte e feliz; e mais capaz de suportar o pesado fardo sobre as minhas costas. [Marx, evidentemente, não estava a par de tais visitas.] Há tanto tempo que não o vejo que, apesar de todos os meus esforços para ser alegre, estou a começar a sentir-me muito infeliz.

De qualquer modo, meu muito querido Mouro, se não posso vê-lo agora, podes pelo menos dizer-me quando o poderei fazer. Dar-me-ia esperança e seria menos difícil ter de esperar.

o OURIÇO TOSQUIADO ^ 303

Meu queridíssimo Mouro, por favor não te zangues por eu ter escrito

isto e perdoa-me ser egoísta ao ponto de te causar novas preocupações.

Tua,

Tussy.'

Marx recusou ceder.

E Eleanor, a exemplo do pai, tentou distrair-se mantendo-se ocupada.

Inscreveu-se num curso de actores dado por uma certa Sra. Vezin, na espe

rança de iniciar uma carreira no palco e realizar o seu sonho de infância;

juntou-se, depois, à Nova Sociedade de Shakespeare e à Sociedade Browning,

dois dos muitos grupos fundados pelo professor socialista Fredrick James

Furnivall; como Marx antes dela, descobriu o caloroso santuário do Mu

seu Britânico, dedicando-se à pesquisa e a traduções. (Foi enquanto traba

lhava na sala de leitura que conheceu um jovem irlandês chamado, George

Bernard Shaw, recentemente chegado a Inglaterra, que se tornou num bom

amigo.) Anos mais tarde, após ter dado um recital no decorrer do encontro

anual da Sociedade Browning, em Junho de 1882, escreveu excitadamente

2. Jennychen:

«O local estava à cunha — e, ao ver todos a aqueles literatos e gente

fina, senti-me ridiculamente nervosa, mas prossegui. A Sra. Sutherland

Orr (irmã de Frederick Leighton, o presidente da Academia Real) quer

que eu vá com ela visitar Browning e lhe recite os seus próprios poemas!

Também me convidaram para ir esta tarde a uma festa em casa de Lady

Wilde. E mãe daquele jovem muito malcriado, Oscar Wilde, que tem

andado a fazer uma tal figura de burro nos EUA. Como o filho ainda não

regressou é muito simpática, sou capaz de lá ir.

Que coisa maravilhosa é o entusiasmo!»^"

Os pontos de exclamação, bem como o facto de citar gente conhecida,

são dignas de Charles Footer.

Apesar do entusiasmo lhe trazer alguma alegria e consolação, isso não

podia distraía-la completamente do romance com Lissagaray. O que mais

pesava a Eleanor era que Jenny, que nunca a tinha compreendido, fosse tão

simpática com ela enquanto o adorado Mouro parecia nem sequer reparar no

seu sacrifício — muito embora «os nossos temperamentos fossem tão iguais».

Como muitas visitas notaram, também havia uma espantosa semelhança

3 0 4 - , KARI.IVIARX

física entre os dois: uma testa baixa e larga por cima de olhos brilhantes e escuros, e um nariz proeminente. Se desenharmos uma barba numa fotografia de Eleanor, teremos diante de nós a imagem do jovem Karl Marx. «Infelizmente, só herdei o nariz do meu pai», costumava ela brincar. «E não o seu génio.»"

Quando comparava as filhas, Marx reconhecia que «Jenny é a que se parece mais comigo, mas Tiissy sou eu exactamente». Seguindo o exemplo dele, Eleanor tentava acalmar os nervos fumando sem parar, hábito bastante comum entre gente literária, mas raro e chocante para uma menina bem educada da época vitoriana.

Até mesmo as maleitas de pai e filha se sincronizavam de forma estranha. As depressões de Tussy manifestavam-se através de dores de cabeça, insónias e quase todos os outros sintomas (excepto furúnculos). «Nem o papá, nem os médicos, nem ninguém hão-de jamais compreender uma coisa», queixa-va-se Eleanor. «O que me afecta são sobretudo preocupações de ordem mentab> — estranho lapso para um homem que tinha uma vez admitido que «a origem da minha doença é a mente»^^. Durante a maior parte da década de 1870, estes semi-invaHdos percorreram as termas da Europa à procura de tratamento, mas é difícil não chegar à conclusão que eles prejudicavam a saúde um do outro.

Em Agosto de 1873, quando Tussy tinha repetidos desmaios em Brighton, Marx escreveu a um camarada em Sampetersburgo a seguinte carta, «Há meses que sofro imenso e durante algum tempo pensei que o meu estado de saúde era crítico por causa do excesso de trabalho. A minha cabeça estava tão gravemente afectada que julguei que iria ter um ataque.. .» - Duas semanas mais tarde, ao tomar uma colher de vinagre de amora na esperança de melhorar, engasgou-se. «O meu rosto enegreceu, etc. Mais um segundo e eu teria morrido.»^* Após o regresso de Tussy a Londres, ele começou a pensar na «séria possibilidade de ter uma apoplexia»". Ao princípio, o médico julgou que ele talvez tivesse sofrido um ataque cardíaco, mas, depois, chegou à conclusão de que se tinha tratado de exaustão nervosa. A 24 de Novembro, e para alívio de Jenny Marx, pai e filha foram para umas termas em Harrogate.

Ambos desfrutaram as três semanas de repouso e banhos, mas Marx não poupou o seu torturado cérebro e passou o tempo a 1er Saint-Beuve, autor que nunca apreciara. «Este homem deve ter-se tornado famoso em França porque encarna, sob todos os aspectos, a vanitéítancesã... pavoneando-se em trajes românticos e falando idiomas recentemente cunhados», escreveu

o OURIÇO TOSQUIADO ^ ^ 3 0 5

a Engels. «Não era o livro ideal para o fazer esquecer aquele outro francês por quem a filha estava apaixonada. Mas parecia estar bastante alegre, e isso apesar do facto de ter uma crise de furúnculos ao chegar a Modena Villas e os jornais publicarem uma série de mexericos a propósito da sua saúde. «Não dando sinais de vida, eu mesmo permito que a imprensa inglesa noticie a minha morte de vez em quando», explicou a Kugelmann. «Estou-me nas tintas para o púbMco e, se por vezes a minha doença é exagerada, isso tem a vantagem de me poupar toda o tipo de solicitações (teóricas e outras) por parte de pessoas que não conheço e provenientes dos quatro cantos do mundo.»^^

Ao regressar a Londres, tinha passado um dia em Manchester para ser examinado por um amigo de Engels, o Dr. Eduard Gumpert, que detectou «uma certa dilatação do fígado» e lhe recomendou uma temporada na cidade termal de Carlsbad, na Boémia. Como isso o obrigava a atravessar a Alemanha e arriscar-se a ser preso como elemento subversivo, Marx achou que não era possível. Mas teve então uma ideia: um refugiado que vivia em Inglaterra há mais de um ano tinha direito à nacionalidade britânica e usufruía, por conseguinte, de toda a protecção de Sua Majestade Britânica contra os guardas da fronteira. Após ter submetido o seu requerimento ao Ministério do Interior, juntamente com atestados de quatro vizinhos de Hampstead a testemunhar a sua «idoneidade moral», ele e Eleanor partiram para a Alemanha a 15 de Agosto de 1874, julgando que o certificado de naturalização lhe seria remetido dentro de alguns dias. A 26 de Agosto, contudo, o secretário do Ministério do Interior escreveu-lhe para o informar que o seu pedido fora rejeitado. Não foi dado nenhum motivo, mas uma carta confidencial de 17 de Agosto enviada pela Scotland Yard ao Ministério do Interior e actualmente no Departamento de Arquivos Públicos, revela o seguinte:

Cari Marx — Naturalização

Com referência ao assunto acima, informo que se trata de um famoso agitador alemão, Hder da Internacional e defensor de princípios comunistas, e que não tem sido leal em relação ao seu próprio rei e país.

Os abonadores, Srs. Seton, Matheson, Manning e Adcock são cidadãos britânicos e respeitáveis e os atestados por eles assinados quanto ao interessado estão correctos.

W Reimers, sargento R Williamson, superintendente"

3 0 6 % ^ KARL MARX

Deu-se o caso de Marx chegar a Carlsbad sem ter de solicitar a assistência

da rainha Victoria nem dos seus plenipotenciarios — provavelmente por ir

acompanhado de Eleanor, cidadã britânica por nascimento. Mas mostrou-

-se prudente e registou-se no Hotel Germania sob o nome de «Sr. Charles

Marx», para que ninguém descobrisse a sua identidade. Apesar da poiïcia

local se aperceber imediatamente de quem ele era, foi obrigada a admitir

que Marx não dera motivos de suspeita depois de ter passado um mês a vigiá-

-lo constantemente — o que não era de surpreender, pois o seu tratamento

não lhe dava tempo para fomentar uma revolução entre os pacientes e os

médicos.

«Ambos seguimos rigorosamente os regulamentos», escreveu a Engels.

«Vamos para as nossas fontes respectivas às seis da manhã e bebemos sete

copos de água. De dois em dois copos temos de fazer uma pausa de um quarto

de hora, durante a qual andamos de um lado para o outro. Depois do último

copo, passeamos durante uma hora e, finalmente, tomamos café. E, à noite,

bebemos mais outro copo de água antes de nos deitarmos.»^*^ A tarde, explo

ravam as falésias de granito arborizadas de Schlossberg e os outros pacientes

ficavam escandalizados por ver Eleanor a fumar cigarro atrás de cigarro.

Toda aquela água mineral deve ter feito maravilhas ao fígado de Marx,

mas também lhe causava uma grande irritação — a qual não melhorou com

a chegada de Ludwig e Gertrude Kugelmann que se instalaram no quarto ao

lado. Ultimamente, andava cada vez mais irritado com o carácter enfadonho

e as indiscrições deste autodenominado discípulo e, agora, não conseguia

dormir porque ouvia, através das finas paredes do hotel, Herr Kugelmann

a ralhar com a mulher. «Perdi finalmente a paciência quando ele começou a

impor-me essas cenas domésticas», escreveu Marx a Engels. <A. verdade é que

este arquipedante, este mesquinho filisteu burguês meteu na cabeça que a

mulher não o compreende; que é incapaz de compreender o seu carácter

digno de Fausto com as suas elevadas aspirações e é por isso que ele ator

menta da maneira mais repulsiva a pobre coitada, a qual, em todos os aspec

tos, é superior a ele.»^'' Marx acabou por mudar para um quarto num andar

mais alto e nunca mais voltou a dirigir a palavra ao Dr. Kugelmann.

Era de esperar que Marx tivesse perdido a cabeça com o tédio e estrei

teza de espírito que reinavam nas termas, mas a verdade é que em breve se

tranformou num aficionado e, em 1875 e 1876, voltou a passar férias em

Carlsbad; mais tarde, quando as leis alemãs anti-socialistas tornaram a via-

o OURIÇO TOSQUIADO ^ ^ 3 0 7

gem demasiado perigosa, transferiu o seu afecto para a insuperavelmente burguesa ilha de Wight, as termas preferidas da rainha Victoria e de Lorde Tennyson. Onde quer que fosse, os outros visitantes ficavam espantados ao dar-se conta de que o aterrador papão comunista era, na realidade, a alma da festa. No decorrer da sua visita a Carlsbad, em 1875, um jornal vienense descreveu-o com sendo o contador de histórias mais popular da cidade:

«Tem sempre a palavra justa, um atraente sorriso e a piada mais engraçada. Se partilhamos a sua sociedade acompanhados por uma senhora de espírito — as mulheres e as crianças são os melhores agents provocateurs em. conversas, pois apreciam as generalidades e favorecem os encontros pessoais —, Marx brinda-nos com punhados de ricos tesouros da sua memória. Prefere falar do tempo passado quando o romantismo entoava o seu último canto livre, quando... Heine trazia poemas com a tinta ainda fresca no bolso.» *

Signficativamente, o mesmo jornal informava que «Marx tem agora 63 anos» quando, na verdade, contava apenas 57. Três anos mais tarde, um entrevistador do Chicago Tribune sublinhava que «ele devia ter mais de 70 anos». Embora ainda a trabalhar nos dois volumes seguintes de O Capital quando o médico lho permitia, era como se ele tivesse tacitamente aceite a derrota e, satisfeito por limitar-se a cumprir o seu papei e a recordar, se dedicasse, agora, a contar histórias benignas. Os anos de militância apaixonada — panfletos e petições, reuniões e manobras — tinham terminado.

Com as duas filhas mais velhas casadas e instaladas algures em Hampstead, a vivenda em Maitland Park Road tinha-se tornado demasiado grande para as necessidades do seu reduzido ménage. Em Março de 1875, os restantes membros da casa — Karl, Jenny, Eleanor, Helene — mudaram-se para o número 44 da mesma rua, uns cem metros mais longe. Era uma casa de quatro andares e um terraço, ligeiramente mais pequena e muito mais barata, onde Marx morou até morrer.

A medida que envelhecia, os hábitos de Marx tornaram-se mais moderados e regulares. Já não tinha energia para as tabernas cheias de gente de Tottenham Court Road, épicas partidas de xadrez ou para passar a noite inteira sentado à secretária. Como qualquer outro cavalheiro da classe média, acordava a horas convencionais, üa The Times enquanto tomava o peque-

3 0 8 ^ 0 KARL MARX

no-almoço e, depois retirava-se para o seu gabinete onde passava o resto do

dia. Ao anoitecer, vestia o seu manto preto e punha o chapéu de feltro na

cabeça e passeava pelas ruas de Londres durante mais ou menos uma hora.

Estava agora muito míope e, às vezes, ao voltar desses passeios, metia a chave

na porta da casa de um vizinho.

Os domingos eram dedicados à famíMa: roast-heef ao almoço (maravilho

samente cozinhado por Helene) seguido por uma longa caminhada até Heath

juntamente com Lauta., Jennjcòen e os filhos desta. August Bebei, um dos

fundadores da democracia social alemã, foi «agradavelmente surpreendido

ao reparar nos modos afectuosos e ternos com que Marx, descrito nessa

época como o pior dos misantropos, brincava com os netos e no amor que

estes lhe manifestavam»^^ Aos 18 meses, o pequenino Edgar Longuet fora

apanhado a mordiscar um rim cru julgando que era chocolate — e mesmo

depois de o prevenirem do engano, continuou a mastigá-lo. Marx alcunhou-

-o logo de Wo/f, alcunha que foi mais tarde mudada para Mr. Tea por causa

da sua sede insaciável.

As visitas eram desencorajadas a aparecer durante o dia, excepto ao do

mingo, mas como o médico (e a mulher) não o deixavam trabalhar de noi

te, ele adorava desempenhar o papel de anfitrião cordial ao jantar, servindo

vinho e contando histórias aos peregrinos estrangeiros que vinham conhe

cer o grande homem.

«Era muito afável», recordou o revolucionário russo, Nikolai Morozov.

«Ao contrário do que me garantiram muitas vezes, não achei que tivesse ar

distante nem enfadado.»^'^

Todos os que visitaram Maitland Park Road, descobriram a mesma coi

sa espantosa: havia um gatinho brincalhão e a ronronar por debaixo daque

la juba leonina. «Não era nada como a imagem que eu tinha feito dele e falava

com o tom de voz calmo e impassível de um patriarca», declarou o jornalis

ta alemão Eduard Bernstein. «Das descrições que tenho ouvido contar prin

cipalmente, devo confessar, pelos seus inimigos, esperava encontrar um

velho enfadonho e irasdvel, mas deparei com um cavalheiro de cabelo bran

co, cujos olhos pretos e risonhos eram amigáveis e as palavras doces. Quando

uns dias mais tarde exprimi a minha surpresa a Engels, este disse-me: «Bem,

mas olha que o Marx ainda pode levantar um vendaval.»^^

Outro socialista alemão, Karl Kautsky, chegou a Maitiand Park Road,

quase catatónico de ansiedade, pois tinha ouvido contar uma data de histó

rias sobre essas tempestades. Tinha medo de fazer figura de parvo — como

o OURIÇO TOSQUIADO ^ ^ 3 0 9

o jovem Heinrich Heine que, ao conhecer Goethe, ficou tão intimidado que só conseguiu falar das deliciosas ameixas que se encontravam ao longo da estrada entre Jena e Weimar. Mas Marx não era de modo algum tão distante, ou antipático, como o velho Goethe, e recebeu Kautsky com um sorriso amigável, perguntando-lhe se era parecido com a mãe, a popular escritora, Minna Kautsky. Nem por isso, respondeu Kautsky jovialmente sem se aperceber que Marx, o qual antipatizara de imediato com os seus ruidosos modos juvenis, felicitava mudamente a Sra. Kautsky pela sorte que tinha tido.

«Independentemente do que Marx possa ter pensado de mim», escreveu Kautsky muitos anos mais tarde. «A verdade é que nunca me manifestou o mais pequeno sinal de má vontade.» '' Como Marx, em privado, considerava Karl Kautsky um «medíocre imbecil», tal tolerância prova que o seu carácter se tornara mais ameno.

Já não se arreliava com as difamações nem com as faltas de precisão dos seus adversários. «Se tivesse de contestar tudo o que tem sido dito e escrito sobre mim», confessou a um entrevistador americano em 1879. «Precisaria de uma data de secretários.»^^ Uma biografia «tendenciosa» publicada por um editor de Haarlem foi desdenhosamente ignorada. «Não respondo a picadas», explicou ao ser convidado para comentar o Uvro por um jornal holandês. «Na minha juventude, reagia por vezes com violência, mas uma pessoa torna-se mais sensata com a idade e não desperdiça energia inutilmente.»^'' A idade também lhe conferia eminência; até mesmo os ingleses, que o tinham ignorado durante 30 anos (quando não o denegriam como assassino), começavam agora a manifestar certa curiosidade e respeito pela sua pessoa. Em 1879, a princesa coroada, Victoria, filha da rainha inglesa e mulher do futuro imperador alemão, Frederico Guilherme, pediu a um velho político liberal que lhe contasse o que sabia sobre esse tal Marx. O membro do Parlamento, Sir Mountstuart Elphinstone Grant Duff, teve de admitir que nada sabia, mas prometeu que iria convidar o «Doutor Terrorista Vermelho» para almoçar e que, depois, a viria informar.

A julgar pelas posteriores cartas de Sir Mountstuart à princesa, Marx portara-se lindamente durante o almoço de três horas que tivera lugar no Devonshire Club, em St. James.

«É baixo e tem barba e cabelo grisalhos que contrastam de forma estranha com o bigode ainda preto. O rosto é um pouco arredondado, a testa ampla e bem desenhada — o olhar duro, mas toda a sua expressão

3 1 0 ^ ^ KARLMARX

é agradável e de modo algum a de um homem que, ao contrário do que

a polícia pensa dele, tem por hábito comer crianças de berço ao pequeno-

-almoço.

A sua conversa é a de uma pessoa culta e bem informada — interes-

sa-se imenso por gramática comparada, o que levou a estudar eslavo

antigo e outros tópicos pouco comuns — variada e com apartes de hu

mor cáustico...»^^

Depois de esgotar as possibilidades da gramática eslava, Marx começou

a falar de poKtica. Previa a irrupção de «acontecimentos graves e próximos»

na Rússia, reformas e o fim do czarismo e, depois, uma revolta contra «o

sistema miutar em vigoD> na Alemanha. Quando Grant Duff sugeriu que os

governantes da Europa poderiam antecipar-se à revolução reduzindo a sua

despesa em armamento e aliviando, desse modo, o fardo económico sobre

o povo, Marx assegurou-lhe que isso era impossível devido a «toda a espé

cie de receios e invejas». «À medida que a ciência for progredindo, esse far

do tornar-se-á cada vez pior», declarou. «Pois os melhoramentos na arte da

destruição acompanharão o progresso e, todos os anos, mais dinheiro será

investido em dispendiosos engenhos de guerra.»

Está bem, concordou Grant Duff, mas, se houver de facto uma revolu

ção, esta não concretizará necessariamente todos os sonhos e planos dos

comunistas. «Certamente», respondeu Marx. «Mas todos os grandes movi

mentos são lentos. Será certamente um passo em frente em direcção a uma

vida melhor como aconteceu com a vossa revolução de 1688.» Touché!

Apesar de ignorar que os seus comentários seriam anotados, Marx foi

suficientemente prudente e sensato para evitar as pequenas armadilhas do

astucioso político inglês. Conforme Sir Mountstuart informou mais tarde a

princesa:

«No decorrer da conversa, Karl Marx mencionou várias vezes Sua Al

teza Imperial e a princesa coroada sempre com o devido respeito. E mes

mo quando falou de indivíduos eminentes de forma menos respeitosa

nunca manifestou azedume nem má-fé — muitas críticas azedas e corro

sivas, mas nada que se compare ao tom que Marx emprega normalmente.

Falou como qualquer pessoas respeitável faria de todas as horríveis

coisas atribuídas à Internacional...

o OURIÇO TOSQUIADO 0 ^ 3 1 1

E m resumo, e tendo em conta que as suas opiniões são o oposto das

minhas, devo admitir que a minha impressão não foi totalmente desfa

vorável e teria muito prazer em voltar a encontrar-me com ele. Não será

Karl Marx, quer ele queira ou não, que virará o mundo ao avesso...»

E m momentos mais deprimentes, Marx receava por vezes a mesma coisa.

«Tinha deparado com a exacta descrição da sua ansiedade no romance de

Balzac, A Obra-Prima Desconhecida, história de um artista brilhante tão obce

cado pela perfeição que passou muitos anos a pintar e retocar o retrato de

uma cortesã, a fim de conseguir «a representação mais completa da realida

de» ^ . Mas, quando mostra a obra-prima a um amigo, todo o que vêem é uma

massa disforme de cor e linhas desenhados ao acaso. «Nada! Nada! Após dez

anos de trabalho...» Acaba por lançar o quadro às chamas — «o fogo de

Prometeu» — e morre nessa mesma noite.

N o entanto, a obra-prima desconhecida de Karl Marx tinha, pelo menos,

um leitor famoso que a apreciava — ou assim julgava. E m Outubro de 1873,

uns meses depois da publicação da segunda edição alemã de O Capital, tinha

recebido a seguinte carta:

Downe, Beckenham, Kent

Caro Senhor:

Agradeço-lhe a honra que me fez ao enviar-me a sua grande obra, O

Capital, e desejaria de todo o coração ser mais digno de a receber para

melhor compreender os importantes e profundos temas da economia

política. Embora os nossos respectivos interesses sejam bastante diferen

tes, acredito que ambos desejamos honestamente propagar o conheci

mento. A longo prazo, esta obra não deixará certamente de tornar a

humanidade mais feliz.

Fielmente seu.

Charles Darwin^^

Marx e Darwin foram os dois mais influentes e revolucionários pensa

dores do século XX; e, como viviam apenas a uns 30 quilómetros de distân

cia um do outro, durante a maior parte da sua idade adulta e tinham vários

amigos comuns, a tentação de procurar um elo de ligação entre eles é difícil

de resistir. Engels fez essa conexão no cemitério de Highgate quando o cai

xão de Marx estava a ser baixado para a cova. «Assim como Darwin deseó-

312 "-^w KARL MARX

briu a lei da evolução da natureza humana», declarou. «Também Marx descobriu a lei da evolução da história humana.» O pequeno grupo de pessoas presentes incluía um amigo íntimo de Darwin e Marx, o professor Edwin Ray Lankester, o qual, aparentemente, não fez qualquer objecção contra esta associação entre o evolucionista e o revolucionário. E o próprio Marx, o único que podia ter protestado, não estava em situação de o poder fazer.

A sua reacção à obra de Darwin, A Origem das Espéães, publicada em 1867, parece justificar a opinião póstuma de Engels. «Apesar de ser redigido em estilo rudimentar», escreveu em Dezembro de 1860, «este Hvro contém os fundamentos da história natural.»^'' Um mês mais tarde, Marx disse a Lassalle que «o livro de Darwin é extremamente importante e constitui a minha base, em história natural, para a luta de classes em história»^^ Mas o seu entusiasmo inicial modificou-se e diluiu ao longo dos anos seguintes: embora a «luta pela sobrevivência» de Darwin possa ser aplicada à fauna e à flora, como explicação da sociedade humana conduzia à fantasia malthusiana que o excesso de população era a força motriz da economia poKtica.

O ódio de Marx por Malthus obrigou-o a refugiar-se numa teoria ainda mais aberrante, proposta pelo naturalista francês Pierre Trémaux, em 1865. No seu livro Origem e Transformação do Homem e Outros Seres, Trémaux postulava que a evolução era governada por transformações geológicas e químicas do solo. Esta ideia atraiu pouca atenção na época e, agora, está totalmente esquecida, mas Marx não pensou em outra coisa durante algumas semanas. «Representa um progresso muito significativo em relação a Darwin», escreveu. «Pois determinadas questões, como a nacionalidade, etc., só aqui foi encontrada uma base na natureza.»^^

Assim como o segredo de como «o tipo comum de negro é uma degeneração de um tipo muito mais elevado» podia ser encontrado nas savanas poeirentas de Africa, a «formações à superfície» da paisagem russa transformara os eslavos em tártaros e mongóis. Engels, que habitualmente exprimia as suas críticas a Marx o mais delicada e respeitosamente possível, não se deu ao trabalho de ocultar a opinião de que o seu amigo tinha perdido a cabeça. Pouco tempo depois, Trémaux foi discretamente retirado do panteão marxista e Darwin reabilitado. A edição de O Capital, que ele enviou em 1872 com a inscrição ao «Sr. Charles Darwin da parte do seu sincero admirador, Karl Marx», incluía uma nota de rodapé referindo-se à influência de :A Origem das Espécies.

Se não fosse por causa de outra carta, a qual foi encontrada há 70 anos e que, desde então, tem iludido inúmeros historiadores marxistas, o episó-

o OURIÇO TOSQUIADO a < ^ 313

dio da associação entre Marx e Darwin poderia ter terminado nessa altura.

A data dessa carta é de 13 de Outubro de 1880:

Downe, Beckenham, Kent

Caro Senhor:

Agradeço-lhe imenso a sua amável carta assim como a encomenda

junta. A publicação, sob qualquer forma, das suas observações sobre os

meus escritos não necessitam de qualquer consentimento da minha parte.

Seria ridículo da minha parte. Preferia que o capítulo, ou volume, não me

fosse dedicado (embora lhe agradeça a honra que me faz), pois isso im

plicaria, até certo ponto, a minha aprovação da publicação em geral quan

to à qual nada sei — além do mais, e embora seja um vigoroso defensor

do livre pensamento em todos os assuntos, parece-me (quer correcta

mente ou não) que directos argumentos contra o cristianismo e a cren

ça numa criação divina não produzem qualquer efeito sobre o púbHco;

a liberdade de pensamento é melhor promovida pela gradual iluminação

da mente humana, a qual segue o progresso da ciência. Por conseguinte,

evitei sempre escrever sobre a religião e tenho-me limitado à ciência.

Posso, contudo, ter sido indevidamente influenciado pelo pesar que daria

a alguns membros da minha família se apoiasse de forma directa quais

quer ataques contra a religião — Lamento recusar o seu pedido, mas

estou velho, restam-me poucas forças para 1er provas tipográficas (como

me dei conta pela presente experiência) fatiga-me muito.

Queira aceitar, caro Senhor, os meus melhores cumprimentos.

Seu, Ch. Darwin^^

Esta carta foi publicada pela primeira vez em 1931 num jornal soviéti

co. Sob a Bandeira do Marxismo, o qual formulou a hipótese de a «encomen

da» ter sido dois capítulos da edição inglesa de O Capitúlele tinham a ver com

a teoria da evolução. É evidente que isso é absurdo, pois o livro só foi tra

duzido para o inglês em 1886, três anos depois da morte de Marx.

E, a seguir, Isaiah Berlin aumentou ainda mais a confusão, afirmando no

seu influente ensaio sobre Marx, publicado em 1939, que fora a edição origi

nal alemã que Marx tinha querido dedicar a Darwin, «por quem tinha uma

maior admiração intelectual do que por qualquer outro dos seus contempo

râneos». Segundo Berlin, «Darwin declinou a honra numa carta deUcada e

prudente, dizendo que, infelizmente, nada sabia de economia, mas desejando

3 1 4 ^ ^ KARL MARX . . ':

ao autor boa sorte para alcançar o que ele assumia ser o objectivo comum de ambos — o progresso do conhecimento humano» '*. Berlin conseguiu, assim, fundir as duas cartas numa, negligenciando completamente o facto de O Capital— com a sua dedicatória a Wühelm Wolff — ter aparecido em 1867, 13 anos antes de Marx ter, supostamente, oferecido tal «honra» a Darwin,

Desde a Segunda Guerra Mundial que todos aqueles que escreveram sobre Marx (e mmtos sobre Darwin) têm aceitado a lenda da dedicatória recusada, diferindo apenas entre eles na questão de saber de que edição se trata. «Marx desejava certamente dedicar a segunda edição de O Capitais, Darwin», escreveu David McLellan na sua biografia de 1973 — afirmação que ainda podemos ver na mais recente edição em livro de bolso (1995). Isto não é mais plausível do que a teoria de Isaiah Berlin: somente depois da morte de Marx é que o volume II foi composto por Engels a partir de vários manuscritos e notas. Darwin não pode ter sido solicitado para «1er provas tipográficas» em 1880, pois tais páginas não existiam. Além disso, a introdução de Engels ao segundo volume confirma que «o segundo e o terceiro livro de O Capital eram para ser dedicados, como o Mouro declarara repetidas ve:(es, à mulher.»

Tudo sobre a segunda «carta a Marx» soa a falso. Por que é que Darwin se apoquentaria com «ataques contra a religião», quando o livro que lhe tinham mandado era sobre economia política? No entanto, nenhum sobrolho se ergueu de perplexidade até 1967, ano em que o professor Shlomo Avineri argumentou na revista Encounter o^ç. as apreensões de Marx quanto à aplicação política do darwinismo tornou «impensável» a possibilidade do grande comunista pedir a aprovação do grande evolucionista. Como explicar, então, a carta de 1880? «A dedicatória de O Capital-x Darwin foi, claro está, feita por ironia...», propôs ele de forma pouco convincente.. ?^

O cepticismo de Avineri — se não a conclusão a que chegou — comunicou algo a Margaret Fay, jovem Hcenciada da universidade da Califórnia, quando esta leu o artigo da Encounter sett anos mais tarde. <A. impressão que senti nas entranhas levou-me a ir inúmeras vezes e ao acaso à biblioteca de biologia», escreveu Fay. «Onde vagueei folheando várias biografias de Darwin e interpretações marxistas da sua teoria da evolução para ver se haveria, afinal de contas, algum significado poKtico na obra de Darwin que me tivesse escapado.» Mas em vez disso, e por sorte, ela encontrou um pequeno volume intitulado Darwin para Estudantes. Nada tinha de especial, apenas uma exposição bastante escolar da teoria da evolução. O que lhe cha-

o OURIÇO TOSQUIADO o » ^ 315

mou a atenção, porém, foi a data de pubHcação, 1881, e o nome do autor — Edward B. Aveling, o futuro amante de Eleanor Marx. E se a segunda carta de Darwing não tivesse sido dirigida a Marx, mas sim a Aveling?

Num momento de inspiração, Margaret Fay tinha resolvido o enigma que escapara a Isaiah Berlin e a outros numerosos ao longo de meio séculos. Darwin para Estudantes era o segundo volume de uma série chamada «A Biblioteca Internacional de Ciência e Livre Pensamento» e editada por ateus convictos, Annie Besant e Charles Bradiaugh. Daí a referência de Darwin a «capítulo ou volume» de uma publicação mais geral «sobre o qual nada sei» e a sua relutância em ser associado com «argumentos contra o cristianismo e a crença numa criação divina». A intuição de Fay foi confirmada pela descoberta, no meio dos papéis de Darwin na biblioteca da Universidade de Cambridge, de uma carta de Edward Aveling, com a data de 12 de Outubro de 1880, apensa a uns capítulos de Darwin para Estudantes. Depois de solicitar «o ilustre apoio do seu consentimento», Aveling acrescentava que «proponho, sujeito mais uma vez à sua aprovação, honrar o meu nome dedican-do-lhe a minha obra.»

A única pergunta que restava — como a carta de Aveling fora parar aos arquivos de Marx — era fácil de responder. Em 1895, Eleanor Marx e Edward Aveling começaram a seleccionar as cartas e manuscritos do pai que tinham ficado em sua posse depois da morte de Engels. Dois anos mais tarde, Aveling escreveu um artigo comparando os seus dois heróis e no qual citava a carta de 1873, mencionando de passagem que também ele se correspondera com Darwin. Depois de terminar o seu trabalho, guardou todo o material de investigação num envelope sem se aperceber que estava a dar uma pista falsa — a qual seria seguida por montes e vales durante a maior parte do século seguinte. Recentemente, em Outubro de 1998, o historiador britânico. Paul Johnson, escreveu que «ao contrário de Marx, Darwin era um autêntico cientista que, numa ocasião famosa, tinha delicada mas firmemente recusado o convite de Marx para fazerem um negócio das Arábias».^''

De facto, o único contacto que se conhece entre estes dois sábios vitorianos é a carta indiscutivelmente genuína de agradecimento que Marx mostrava com orgulho a amigos e parentes como prova de que Darwin tinha considerado O Capitalwraà, «obra notável». Mas o Hvro em questão, o que ainda hoje se encontra numa estante em Downe House, em Kent, conta uma história infelizmente diferente. Não tem nenhuma das notas a lápis com que Darwin embelezava habitualmente tudo o que lia, e apenas as 105 primeiras páginas

3 1 6 % ^ KARI.MARX

do volume de 822 páginas foram abertas. É-se forçado a concluir que ele só lançou uma vista de olhos ao primeiro ou segundo capítulo antes de enviar os seus agradecimentos — e nunca mais voltou a pôr-lhe a vista em cima.

«Um inglês ti'pico», teria Marx provavelmente resmungado se soubesse a verdade. Ao 1er pela primeira vez A Origem das E.ípécies, tinha prevenido Engels que «uma pessoa tem, claro está, de tolerar o desajeitado estilo inglês de argumentação». E a reacção incompreensível muda a O Capitai conv&a-ceu-o de que «o particular dom de cretinice fleumática» era um direito adquirido por todos os ingleses à nascença.

Graças a outra farsa do destino, o mestre da dialéctica tinha sido exilado para o país mais filisteu do planeta — uma terra governada por instinto e empirismo grosseiro, onde a palavra «intelectual» era um insulto mortal. «Apesar de Marx viver há muito tempo em Inglaterra», o advogado Sir John MacdonneU escreveu no número de Março de 1875 da ¥ortnightlj Remm «Ele é aqui quase a sombra de um nome. As pessoas podem fazer-lhe a honra de abusar dele, mas não o lêem.»-' O facto de não ter sido pubHcada nenhuma edição inglesa de O Capita/ durante a sua vida, parecia a Marx um sintoma, e não uma causa, da miopia nacional. («Agradecemos-lhe muito a sua carta», escreveu Macmillan & Co. a um amigo de Engels, Carl Schorlemmer, professor de química orgânica da Universidade de Manchester. «Mas não acolhemos favoravelmente a proposta de uma tradução de Das Kapital») A barreira linguística era um obstáculo intransponível para os raros ingleses que desejavam realmente 1er o livro. Um antigo camarada da Internacional, Peter Fox, disse que, ao oferecerem-lhe um exemplar, se sentiu como um homem a quem tinham dado um elefante e não sabia o que fazer com ele. Por entre os papéis de Marx há várias cartas desesperadas de um trabalhador escocês, Robert Banner, a pedir ajuda:

«Não há esperança que venha a ser traduzido? Não há nenhuma obra em inglês que defenda a classe trabalhadora, todos os livros em que nós, jovens socialistas, pomos as mãos em cima são escritos no interesse do capital e é por isso que a nossa causa não avança neste país. Com uma obra sobre economia cujo ponto de vista fosse socialista, dentro de pouco tempo veríamos aqui um movimento que acabaria com esta coisa, filha da mãe.» ''

Aqueles que melhor apreciariam o livro eram os menos capazes de o compreender, enquanto a elite educada que o podia 1er não se mostrava in-

o OURIÇO TOSQUIADO ^ ^ 3 1 7

teressada nisso. O socialista inglês. Henry Hyndman, queixava-se: «Acostu

mados como estamos hoje em dia, sobretudo em Inglaterra, a esgrimir com

protecções na ponta das nossas espadas, as terríveis estocadas de Marx sobre

os adversários, com a lâmina nua, pareciam tão impróprias que era impos

sível para os nossos distintos e falsos combatentes e ginastas mentais acre

ditar que este controverso e impiedoso esgrimista que atacava furiosamen

te o capital e os capitalistas era realmente o pensador mais profundo dos

tempos modernos.»'"^

O próprio Hyndman era uma excepção a esta regra — e a todas as ou

tras. Produto de Eton e do Trinity College, em Cambridge, e antigo jogador

do Sussex Country Cricket Club, dizia-se que ele tinha-se tornado socialis

ta «por rancor, pois não fora incluído no clube de críquete de Cambridge»'*^

(Há muito dele no personagem de P. G. Wodehouse, Psmith, o qual se con

verteu ao marxismo por ter sido expulso de Eton e não poder, por conse

guinte, ter a honra de jogar críquete contra Harrow, em Lord's; a partir des

sa altura, passou a tratar toda a gente por «camarada».)

Hyndman nunca chegou a desembaraçar-se dos floreados da sua classe

social e comparecia frequentemente nas reuniões socialistas de

chapéu alto. A sua política era igualmente de haut en has: q proletariado não

podia ser Libertado pelos próprios trabalhadores, mas somente por «aque

les com um estatuto social diferente, que são treinados desde tenra idade para

usar as suas faculdades.» N o entanto, convenceu-se (embora não tenha con

vencido mais ninguém) de que era o radical mais vermelho e honesto que

havia. «Não poderia continuar», disse. «Se não esperasse que a revolução re

bentaria às dez da manhã da próxima segunda-feira.» N o começo de 1880, e

depois de ter lido uma tradução francesa de O Capital, bombardeou Marx com

tantas e extravagantes homenagens que este acabou por aceitar recebê-lo.

«O nosso método de conversa foi muito particulaD>, escreveu Hyndman

a propósito do primeiro encontro em Maitland Park Road, 41. «Quando

profundamente interessado numa discussão, Marx tem o hábito de andar de

um lado para o outro, como se estivesse a passear no convés de um galeão.

Também tenho o mesmo hábito, adquirido no curso das minhas longas

viagens, quando a minha mente está muito ocupada. Consequentemente, o

mestre e o discípulo podiam ser visto a andar em sentido contrário de um

lado para o outro durante duas ou três horas, discutindo assuntos passados

e actuais.»**^ Embora Hyndman alegasse que estava «ansioso por aprendcD),

Marx dizia que quem falava mais era o antigo estudante de Eton.

318 pi KARL MARX

Tendo ganho acesso a casa de Marx e sabendo que o médico o proibia

de trabalhar à noite, Hyndman adquiriu o hábito de passar em Maitland Park

Road depois do jantar sem ser convidado. Toda a família de Marx achava isto

muito maçador — em particular nas noites em que o grupo de amigos de

Eleanor, o Dogberry Club, se reunia na sala de visitas para representar uma

peça de Shakespeare. Marx adorava essas representações e insistia sempre

em jogar às adivinhas depois («rindo até as lágrimas lhe escorrerem pelas

faces abaixo quando achava graça a qualquer coisa», segundo disse um dos

membros do Dogberry Club)'^^; mas Hyndman entrava pela casa adentro e

desatava a dar opiniões sobre o Sr. Gladstone. Como Marx escreveu a

Jennychen depois de uma dessas ocasiões:

«Fomos invadidos por Hyndman e a mulher, cujo poder para se in

crustar como lapas é notável. Eu até gosto dela por causa da sua manei

ra brusca e inconvencional de pensar e falar, mas é divertido ver como

ela sorve admirativamente as palavras do marido, que é uma autêntica

picareta falante! A mamã estava tão estafada (eram quase dez e meia da

noite) que acabou por se retirar.»" "

A inevitável ruptura ocorreu em Junho de 1881 quando Hyndman pu

blicou o seu manifesto socialista, A Inglaterra para Todos. Marx ficou espan

tado ao descobrir que dois dos capítulos plagiavam à grande O Capital Uma

referência no prefácio admitia que «muito do material contido nos capítu

los 11 e III deve-se ã obra de um grande pensador e escritor original que,

segundo confio, em breve poderá ser lida pela maioria dos meus compatrio

tas». Marx achou tudo aquilo bastante inadequado. Por que é que Hyndman

não citava O Capitalç: o seu autor pelo nome? A reles explicação de Hyndman

foi que os ingleses tinham «horror do socialismo» e «não gostavam de rece

ber lições de um estrangeiro». N o entanto, como Marx indicou, era pouco

provável que o livro apaziguasse esse horror evocando «o demónio do socia

lismo» na página 86, e o leitor inglês mais obtoso podia dar-se conta logo no

prefácio que o anónimo pensador era estrangeiro. Tratava-se pura e simples

mente de uma apropriação desavergonhada — à mistura com a inserção de

erros imbecis nos raros parágrafos que não tinham sido tirados directamente

de O Capital Hyndman foi banido de Maitiand Park Road. Nas suas memó

rias, escritas 30 anos depois, ele balbucia umas coisas sobre o entusiasmo de

Marx por novas ideias, acrescentando, «se bem tivesse razões para se queixar,

o OURIÇO TOSQUIADO Í ^ 319

não se preocupava muito que o plagiassem». Como tanta gente da sua classe

social, Hyndman tinha a sensibilidade de um rinoceronte anestesiado.

Felizmente, assim que Marx se zangava com um discípulo inglês, surgia

logo outro — muito embora, desta vez, ele tivesse tomado a precaução de

nunca o conhecer pessoalmente, pois receava ver-se a braços com outra

complacente picareta falante. Ernest Beifort Bax, nascido em 1854, provi

nha de uma família da classe média de fabricantes de impermeáveis e cris

tãos devotos, mas a Comuna de Paris tinha-o radicalizado quando ainda an

dava na escola. E m 1879, a revista mensal de cultura, Modern Thought, iniciou

a publicação de uma longa série de artigos sobre os líderes intelectuais da época,

incluindo pareceres de Schopenhauer, Wagner e, em 1881, Marx. Tendo es

tudado filosofia hegeliana na Alemanha, Bax era o único socialista inglês da

sua geração a aceitar que a dialéctica era a força motriz interior da vida. Des

creu O Capital como um livro «que formula o funcionamento de uma dou

trina em economia comparável, na sua natureza revolucionária e importân

cia global, ao sistema astronómico de Copérnio ou à lei da gravidade»."*^

Marx ficou todo contente: tinha, finalmente, encontrado um «bife» que

o compreendia. «É a primeira publicação do género imbuída de um verda

deiro entusiasmo por ideias novas que ousa enfrentar a burguesia britânica»,

escreveu a Friedrich Adolph Sorge, veterano de '48 que vivia nos EUA'^''. Mas

o melhor foi que 2L Modern Thought •àn^on cartazes anunciando o artigo nas

paredes do bairro de West End, em Londres. Quando Marx leu os comen

tários de Bax à mulher doente, esta melhorou imediatamente.

O plágio e a falta de educação foram sem dúvida os principais motivos que

levara à expulsão de Hyndman do pequeno círculo à volta de Marx, mas ele

talvez tivesse razão em suspeitar que a doença de Jenny tinha perturbado Marx

e «dispusera-o a só ver o lado mau das coisas». N o Verão de 1880, Karl estava

tão inquieto por causa de Jenny que a levou a Manchester para ser consulta

do pelo seu amigo, o Dr. Eduard Gumpert. Este diagnosticou que ela sofria

de uma grave doença de fígado e receitou-lhe uma temporada de dolcefar

niente, de preferência à beira-mar, e, assim, toda a tribo partiu para passar

férias em Ramsgate — Engels, Karl e Jenny, Laura e Paul Lafargue, Jenny e

Charles Longuet, mais as crianças, Jean, Henri e Edgar. «A estada está a ser

particularmente benéfica a Marx que, espero, ganhará novas forças», escre

veu Engels a um camarada comunista em Genebra. <A. mulher, infelizmente,

continua doente, mas anda tão bem-disposta quanto lhe é possível.»"*^

3 2 0 1 ^ KARL MARX

E m outras palavras, não estava nada bem-disposta. Pouco satisfeito com

o diagnóstico do Dr. Gumpert, Marx encorajou-a a consultar um especia

lista em Carlsbad, o Dr. Ferdinand Fleckles — o qual, como não conhecia

Jenny, pediu um relato pormenorizado sobre o seu estado físico. «O que

talvez tenha agravado a minha saúde», disse-lhe ela depois de ter feito uma

lista dos sintomas. «É a grande ansiedade que nós, os velhos, sentimos.»

Agora que o Governo francês tinha amnistiado os refugiados políticos, não

havia nada que impedisse o seu genro, Paul Lafargue, de regressar a Paris e

de ela ficar sem a filha e os netos. «Caro e bom doutor, gostaria tanto de viver

um pouco mais. Como é estranho que à medida que tudo se aproxima do fim,

mais uma pessoa se agarra a este "vale de lágrimas".»"*^ Apesar de Marx nunca

ter lido esta carta, compreendia os terrores mortais da mulher: depois de

passar um mês de ociosidade em Ramsgate, informou que a doença de Jenny

«se tinha repentinamente agravado a um ponto que ameaça ser fatal».

O próprio Marx sentiu-se ligeiramente mais restabelecido pelo tratamen

to e o repouso, mas voltou a piorar dentro de pouco tempo por causa do

Inverno frio e húmido que «me abençoou com uma constipação constante

e tosse que não me deixa dormir, etc.», conforme escreveu a um correspon

dente em Sampetersburgo, expHcando-lhe que mal conseguia responder às

cartas que recebia quanto mais terminar os volumes de O Capitúlele falta

vam. «O pior é que, apesar de recorrer aos melhores médicos de Londres,

o estado de saúde da Sra. Marx se torna diariamente mais grave e de eu ter,

além do mais, inúmeros problemas domésticos.»'^' Um desses problemas

tinha sido a partida repentina de Jennichen e os filhos para Paris, onde Charles

Longuet fora nomeado director do diário radical de Georges Clemenceau,

Injustice. «Tendo em conta o estado actual da Sra. Marx, esta separação é

muito dolorosa. Os nossos netos, três rapazinhos, eram, tanto para ela como

para mim, uma fonte inesgotável de deleite e vida.» Às vezes, ao ouvir vo

zes de crianças na rua, ele precipitava-se para a janela esquecendo-se momen

taneamente que as adoradas crianças viviam, agora, do outro lado do canal

da Mancha. E, um dia, ao atravessar o parque de Maitiand, sentiu terríveis

saudades quando o guarda lhe veio perguntar pelo pequeno «Johnny», aliás,

Jean Longuet. Ainda pior foi não ter assistido ao nascimento, em Abril de

1881, de um novo neto, Marcel, na nova morada dos Longuet em Argenteuil.

Talvez seja essa a causa do tom rabugento com que enviou os parabéns à filha

e ao genro. «Fui, claro está, encarregado pela mamã e pela Tussy... de vos

desejar todas as felicidades, mas não vejo que esses "desejos" sirvam para o

o OURIÇO TOSQUIADO 321

que quer que seja, excepto atenuar a nossa própria impotência.» N o entan

to, a criança era, pelo menos, um rapaz. Embora Jenny Marx desejasse uma

neta, «por mim, prefiro que as crianças nascidas neste momento da história

sejam do sexo masculino. Têm diante delas a época mais revolucionária

jamais vivida pelo homem. Ser "velho" e poder apenas prever e não ver é que

é mau». *^

Tanto ele como a mulher sentiam ter a idade de Matusalém. Karl toma

va banhos turcos para tratar a perna tolhida pelo reumático e Jenny estava

cada vez mais magra e passava dias seguidos na cama. Iam passear de vez em

quando ou, então, ao teatro, mas Marx sabia que não havia cura. Jenny tinha

um cancro. «Aqui entre nós, a doença da minha mulher é, infelizmente,

incurável», escreveu em Junho de 1881 ao seu velho amigo, Sorge. «Vou levá-

-la a passar uma temporada à beira-mar, em Eastbourne, dentro de alguns

dias.»^^ Enquanto lá estiveram, ela foi obrigada a andar numa cadeira de rodas

— «coisa que eu, um "p&àtsttepar excellence, teria considerado abaixo da minha

dignidade há uns meses».

Depois de passar duas semanas na costa sul, Jeny}' ganhou suficientes

forças para atravessar o canal com Karl, a fim de visitar o novo neto. Mas,

ao chegar a Argenteuil, teve uma crise de diarreia. A anfitriã também não es

tava lá muito bem. «A casa da Jennychen tem muitas correntes de ar e a asma

dela piorou», escreveu Marx a Engels. «Mas, como sempre, mostra-se herói-

ca.»^^ Foi então que chegou a notícia de Inglaterra de que Tussy fora atacada

por uma doença terrível, mas não especificada, e regressou apressadamen

te a Londres sozinho para se dar conta do que tinha acontecido. Encontrou

a filha num estado de «abatimento nervoso total» que, actualmente, seria dia

gnosticado de anorexia. «Há semanas que não come quase nada», escreveu

a Engels. «Donkin [o médico] diz que não há nenhum problema orgânico.

O coração e os pulmões estão bons, e a causa do seu estado deve-se funda

mentalmente ao facto de o estômago não funcionar por se ter desabituado

à comida (complicação que ela tornou pior porque bebe muito chá, coisa que

ele imediatamente lhe proibiu de tomar) e a uma grave perturbação do sis

tema nervoso.»^^

Jenny Marx voltou a Londres umas semanas mais tarde, acompanhada

pela infatigável Helene Demuth, e caiu logo de cama. E m princípios de

Outubro, Marx convenceu-se de que a vida dela «estava a aproximar-se do

fim»^'^. Ele mesmo estava de cama com bronquite, mas reanimou ao saber

que o Partido Social Democrata alemão tinha ganho 12 lugares Reichstag.

3 2 2 - ^ ^ KARLÎvIARX

«Se houve um acontecimento exterior que contribuiu para pôr Marx mais ou

menos bom de novo, foram estas eleições», escreveu Engels a Eduard Bern

stein no fim de Novembro. «Nunca o proletariado se portou de modo tão

magnífico... Na Alemanha, após três anos de perseguições sem preceden

tes e pressões constantes durante os quais qualquer forma de organização

pública e até mesmo de comunicação era impossível, os nossos rapazes

voltaram à carga, não só com toda a sua antiga força mas realmente mais

fortes do que dantes.»^^

Jenny Marx morreu a 2 de Dezembro de 1881. Durante as últimas três

semanas, ela e o marido nem sequer conseguiram ver-se; a pleurisia tinha

compHcado a bronquite de Marx e ele fora confinado num quarto ao lado

sem poder mexer-se. As últimas palavras dela foram para o chamar e gritar-

-Ihe em inglês: «Karl, estou a perder as forças...» O médico proibiu-o de

assistir ao funeral, o qual teve lugar três dias mais tarde a um canto de terra

não consagrada do cemitério de Highgate. Entretanto, a consolação de Karl

Marx foi a lembrança do raspanete que Jenny dera a uma enfermeira um dia

antes de morrer, a propósito de uma formalidade negligenciada: «Nós não 56 somos gente externa dessa!

A outra distracção do pesar que ele sentia era o seu próprio estado de

saúde. Tinha de esfregar o peito e o pescoço com tintura de iodo várias vezes

ao dia. «Só existe um único antídoto eficaz para o sofrimento mental: a dor

física», escreveu. «O fim do mundo não é comparável a uma dor de dentes.»

Engels afirmou que Marx tinha, a partir daquele momento, morrido —

observação cruel que continha, contudo, uma terrível verdade. Durante os

últimos dias de vida de Jenny, exausto por insónias e falta de exercício, ele

contraiu a doença que acabaria por matá-lo. Embora o editor alemão tenha

escolhido esta inoportona altura para lhe pedir uma nova edição de O Capi

tal, Marx não podia pensar em trabalhar. A conselho do médico e acompa

nhado por Eleanor, passou duas semanas no «cHma mais quente e ar seco»

da üha de Wight — debaixo de tempestade e chuva, além de temperaturas

abaixo de zero. Graças aos caprichos do tempo, o catarro brônquico piorou

e um médico local teve de lhe dar uma máscara de oxigénio para ele poder

passear em Ventnor.

O comportamento de Eleanor, que continuava sem comer nem dormir

como devia ser, oscilava entre um silêncio mal-humorado e crises de «natu

reza alarmantemente histéricas». As suas ambições de uma carreira teatral

tinham-se agora tornado numa necessidade quase física, e até esta fome ser

o OURIÇO TOSQUIADO *vlj"'323

saciada não conseguia alimentar os seus outros apetites. O dia em que regres

saram de Ventnor, 16 de Janeiro de 1882, coincidiu com o aniversário de

Eleanor (27 anos), dolorosa lembrança que os seus melhores anos estavam

a ser sacrificados no altar do dever famüiar. Marx sabia que tinha de a libertar.

«Quanto a planos para o ñituro», escreveu a Engels a 12 de Janeiro, <A. minha

primeira consideração é de dispensar Tussy do papel de me fazer compa

nhia. .. A rapariga encontra-se sob tal pressão mental que a sua saúde está

a deteriorar-se a olhos vistos. Nem viagens, nem mudanças de cUrna, nem

os médicos podem fazer nada neste caso.»

N o entanto, para Marx, uma mudança de clima era urgentemente neces

sária: não havia alívio para o seu catarro — «esta maldita doença inglesa» —

a não ser que fugisse do Inverno na Inglaterra. Como não podia entrar em

Itália (um homem tinha recentemente sido preso em Milão apenas porqué

se chamava Marx), decidiu abandonar a Europa pela primeira vez e, a 18 de

Fevereiro, partiu para a Argélia de barco.

Assim começou um ano de vagabundagem constante: três meses na

Argélia, um mês em Monte Cario, outros três meses com os Longuet em

Argenteuil, um mês na estância suíça de Vevey. Com cómica consistência,

a sua chegada a estes lugares era acompanhada de chuvas torrenciais e tem

pestades, mesmo nos sítios onde há pouco o sol brilhava. Voltou a Londres

em Outubro, mas o frio e a humidade obrigaram-no a partir de novo para

Ventnor, onde permaneceu até Janeiro de 1883. Na década de 1840, tinha

andado pelas capitais europeias varrido pelas rajadas da revolução e da

reacção, mas, agora, movido apenas por uma irritação nos brônquios, tor-

nara-se novamente num nómada. A história repetia-se, desta vez como uma

farsa um tanto enfadonha. Na Argélia, raramente se dava ao incómodo de

1er jornais, preferindo visitar os jardins botânicos, conversar com pessoas

hospedadas no mesmo hotel ou simplesmente contemplar o mar. Para que

é que, agora, serviam o materialismo e a dialéctica? Contou uma fábula ára

be numa carta a Laura que parecia aparentar-se com a sua situação actual:

«Um barqueiro aguarda passageiros para atravessar as águas tempes

tuosas de um rio. U m filósofo que deseja chegar à outra margem entra

no barco. Segue-se o seguinte diálogo:

FILÓSOFO: Sabes alguma coisa de história, barqueiro?

BARQUEIRO: N ã o !

3 2 4 ^ » KARL MARX

FILÓSOFO: Quer dizer, então, que desperdiçaste metade da tua vida! Estudaste matemática?

BARQUEIRO: Não!

FILÓSOFO: Então desperdiçaste mais de metade da tua vida.

Mal o filósofo tinha acabado de dizer estas palavras, uma onda virou

o barco e eles foram parar dentro de água. O barqueiro grita então ao fi

lósofo, «Sabes nadar?»

FILÓSOFO: Não!

BARQUEIRO: Então desperdiçaste toda a vida.»^^

A aparência exterior de Marx ainda era imponente: um inglês que o

conheceu por volta dessa altura lembrava-se dele como «um homem gran

de em todos os sentidos»: uma grande cabeça e uma cabeleira como «São

Pedro costumava usar a dele»^^. Ou, então, como Sansão, no poema de John

Milton, com «pelos eriçados como os que cobrem o dorso dos javalis selva

gens ou ouriços despenteados». Mas durante os últimos anos de vida, enfra

quecido pela bronquite e pleurisia, Marx já não tinha força para pôr em

debandada os filisteus, armado com uma queixada de burro. Por fim, e re-

signando-se à perda de vigor, ofereceu a sua preciosa juba a um barbeiro ar

gelino. «Desembaracei-me da minha barba de profeta e da minha gloriosa

coroa», contou a Engels a 28 de Abril de 1882.

Sem olhos em Gaza e sem cabelo em Argel. É quase impossível imagi

nar um Karl Marx careca e barbeado de fresco — e ele certificou-se de que

a posteridade nunca o veria daquela maneira. Tirou uma fotografia, hirsuto

e de olhos cintilantes, antes de ser tosquiado para as filhas não se esquece

rem do homem que tinham conhecido. É a última fotografia em nosso po

der: um Júpiter cordial, um pai-Natal intelectual. Como ele mesmo disse por

brincadeira: «Ainda estou a encarar as coisas com entusiasmo.» E estava real

mente, pelo menos diante da família. A pleurisia resistia teimosamente a

tratamentos e, quando ele se encontrava em Monte Cario, um especialista

local confirmou que a bronquite era, agora, crónica; mas não contou nada

disso às filhas. «O que eu escrevo e digo às minhas filhas é verdade, mas não

toda», explicou. «Não há razão para as alarmar.»^'

'Entretanto, Jennychen também lhe escondia um segredo: tinha um cancro

na bexiga. Apesar de grávida e exausta (tinha de cuidar de quatro filhos

pequenos) conseguiu ocultar o seu sofrimento quando o pai a veio visitar em

Argenteuil no Verão de 1882 — ajudada, sem dúvida, pela chegada de

o OURIÇO TOSQUIADO . .,. 325

Eleanor e Helene. Desde que tinha partido de França que o pequeno Johnny

Longuet andava endiabrado («tornou-se traquinas por tédio», deduziu Marx)

e, quando Eleanor voltou a Londres em meados de Agosto, levou-o miúdo

de seis anos com ela, prometendo educá-lo e discipliná-lo durante alguns

meses. A esperança de escapar à escravatura do dever tinha-se gorado: de en

fermeira do pai passara a governanta do sobrinho em menos de um ano. Mas

esta nova responsabilidade proporcionou grandes alegrias a Eleanor e, den

tro de pouco tempo, tratava Johnny como se fosse filho dela. Os irmãos,

Edgar e LIarry, foram passar férias com o pai a Calvados no fim de Agosto,

deixando Jennjcòen apenas com o bebé, Marcel. Mas ela continuava fatigada

e com dores constantes. E, finalmente, depois de dar à luz uma menina

(baptizada Jenny, mas mais conhecida por Memé), acabou por confessar o

seu mal numa carta a Eleanor: «Não desejo a ninguém as torturas que sofro

há oito meses; são indescritíveis e, agora ter de dar de mamar ao bebé torna

a minha vida no inferno.»'''^ Insistia para que a irmã nada dissesse ao Mouro.

Mas um Verão passado debaixo do mesmo tecto tinha dado inúmeras indi

cações que havia algo de grave. Da sua residência de Inverno na ilha Wright,

Marx escreveu regularmente a pedir notícias da «pobre Jennychen» e do bebé.

«Aflige-me imenso, pois receio bem que ela não possa suportar um fardo

desses», disse a Eleanor.

Marx nada podia fazer para aliviar tal fardo. Passou a maior parte do mês

de Dezembro sem poder sair do seu alojamento, em St. Boniface, 1, por

causa de uma crise de catarro na traqueia — apesar da pleurisia e da bron

quite se encontrarem, agora, temporariamente controladas. («Isto é bastan

te encorajador, pois a maior parte dos meus contemporâneos, quer dizer,

gente da mesma idade, estão a esticar o pernil como tordos.»)''^

A 5 de Janeiro de 1883, foi informado por Lafargues que a doença de

Jennychen tinha atingido um ponto crítico e, na manhã seguinte, Marx acor

dou com um ataque de tosse tão violento que julgou que ia morrer sufocado.

Havia, por acaso, alguma relação entre estes dois acontecimentos? Pergun

tou a um médico local, um amável jovem originário de Yorkshire chamado

James Williamson, se a angústia mental tinha «influência sobre o fluxo da

mucosidade».''^

Jenny Longuet morreu às cinco da tarde do dia 11 de Janeiro, com 38 anos

de idade e Eleanor partiu para Vantoor assim que soube da notícia.

326 ^ f c I<CARL MARX

«Vivi muitas horas tristes, mas nenhuma tão triste como esta. Senti

que levava ao meu pai a sua sentença de morte. Ao longo de toda a via

gem, dei voltas à cabeça para encontrar uma maneira de lhe transmitir a

notícia. Mas não houve necessidade de o fazer, porque a expressão do meu

rosto denunciou-me, e o Mouro disse imediatamente, "a no^y^y. Jennychen

morreu". E, a seguir, insistiu logo comigo para que fosse a Paris tratar das

crianças. Queria ficar com ele, mas ele não me deixou. Há meia hora que

tinha chegado a Ventnor e já era obrigado a voltar a Londres e, de lá, para

Paris. Estava a fazer o que o Mouro queria por causa das crianças.

Nada mais direi sobre o meu regresso. Sempre que penso que nesse

momento tenho arrepios. A angústia e o tormento que foi. Mas já chega.

Eu voltei e o Mouro regressou a casa para morrer.»""^

Antes de partir de Ventnor, Marx escrevinhou um recado ao Dr. Wil

liamson explicando-lhe a sua partida apressada. «Por favor, caro doutor,

envie-me a conta para Maitiand Park, 41, Londres N W Lamento não ter tido

tempo para me despedir de si. A àót de cabeça que sinto dá-me um certo

alívio. A dor física é o único "analgésico" do sofrimento mental.» Que se

saiba, esta é a última carta que escreveu. Marx junto uma fotografia dele

como recordação e dedicou-a com mão trémula, «com os desejos de um Feliz

Ano Novo».

Como Eleanor sabia, o pai tinha regressado a casa para morrer. Sofren

do de laringite, bronquite, insónias e suores à noite, estava demasiado fraco

para 1er os romances vitorianos que tantas vezes o tinham aliviado. Contem

plava o espaço ou folheava ocasionalmente catálogos de editores com os pés

metido num banho de mostarda. Helene Demuth tentava animá-lo cozi

nhando pratos exóticos, mas Marx preferia seguir uma dieta inventada por

ele -— um copo diário de leite (que ele dantes detestava) acompanhado de

generosas doses de rum ou brandy. E m Fevereiro, contraiu um abcesso no

pulmão e refugiou-se na cama. Engels anotou a 7 de Março que a saúde de

Marx «não está realmente a fazer os progressos que devia. Se fosse há dois

meses, o calor e o ar teriam dado resultado, mas com vento de nordeste e

flocos de neve, quase uma tempestade, como é que uma pessoa se pode curar

de um caso de bronquite aguda!»"''

A 14 de Março, uma quarta-feira, Engels chegou a casa de Marx às duas

e meia da tarde, hora a que habitualmente o visitava. Lenchen desceu as

escadas para lhe dizer que Marx estava «meio adormecido» na sua poltrona

o OURIÇO TOSQUIADO - ^ 327

favorita junto à lareira, mas, quando entraram na sala, um ou dois minutos

mais tarde, encontraram-no morto. «A Humanidade ficou uma cabeça mais

pequena», escreveu Engels a um camarada nos EUA. — A cabeça mais 65 notável da nossa época.

Karl Marx foi enterrado a 17 de Março de 1883, num distante canto do

cemitério de Highgate, no mesmo lote onde a mulher fora enterrada 15 anos

mais cedo. Apenas 11 pessoas assistiram ao funeral. N u m discurso fúnebre

à beira da sepultura, Engels descreveu-o como um génio revolucionário que

se tinha tornado o mais caluniado e odiado homem da sua época, predizendo

que «o seu nome e a sua obra hão-de perdurar ao longo dos séculos». Os

jornais socialistas franceses, russos e americanos publicaram os panegíricos

sob títulos semelhantes — O Melhor A^migo e Professor da Classe Operária, Uma

Desgraça para a Humanidade, Muito depois dos Reis Serem esquecidos, a Sua Recor

dação Perdurará, Um dos Homens mais Nobres a Caminhar nesta Terra. Mas a sua

morte passou quase despercebida no país onde tinha vivido mais de meta

de dos seus 65 anos.

«Foi anunciada a morte do Dr. Karl Marx, sociaKsta alemão», informou

o Daily News. «Viveu para ver partes das suas teorias, as quais outrora ater

rorizaram imperadores e chanceleres, desaparecerem... A classe operária

inglesa não se identificou com tais princípios.»'''' The Times publicou um

obituário de um só parágrafo, com um erro em todas as frases, afirmando

que le tinha nascido em Colónia e emigrara para a França aos 20 anos. Só a

Pali Mali Ga^tte adivinhou que ele seria lembrado: «O Capital, embora ina

cabado, dará origem a inúmeras obras mais pequenas e exercitará uma

influência crescente sobre os homens de todas as classes sociais que se in

teressam por questões sociais.»'^''

Que epitáfio teria Marx escolhido para si mesmo? Quando, no Verão de

1880, passava férias em Ramsgate, tinha encontrado um jornalista america

no, John Swinton, que escrevia uma série dedicada a «viagens em França e

Inglaterra» para o New York Sun. Swinton observou o velho patriarca a brin

car na praia com os netos («Karl Marx entende a arte de ser avô de forma

não menos admirável do que Victor Hugo») e, ao anoitecer, Marx concedeu-

-Ihe uma entrevista.

Enquanto os nossos copos tiniam por cima do mar, conversámos so

bre o mundo, o homem, o tempo e as ideias. O comboio não espera por

3 2 8 ^ 0 KARI.MARX , . : "

ninguém e a noite está próxima. Sobre os pensamentos e a destruição do tempo e dos tempos, sobre a conversa do dia e das cenas da noite, surgiu no meu espírito uma questão que tinha a ver com a lei final do ser, cuja resposta eu procuraria obter deste homem sábio. Descendo às profundidades da Hnguagem e ascendendo ao cume da ênfase, interrompi, durante um espaço de silêncio, o revolucionário e filósofo com estas palavras fatais: «O que é?»

E, enquanto ele olhava para o mar revolto diante dele e a multidão irrequieta na praia, parecia que a mente dele se tinha invertido um instante. «O que é?», tinha eu perguntado e ele respondeu em tom profundo e solene: «A luta!»

Ao princípio pensei que tinha ouvido o eco do desespero, mas era porventura a lei da vida. ^

POS^ESCRITO 1:

CONSEQUÊNCIAS

Karl Marx morreu sem nacionalidade e sem deixar testamento. Os seus bens foram avaliados em 250 libras, baseado sobretudo no valor da mobília e dos livros da casa em Maitland Park Road, 41. Estes, juntamente com a vasta colecção de cartas e apontamentos, foram guardados por Engels — assim como por Helene Demuth, que foi governanta em Regent's Park Road, 122, até vir a falecer de cancro intestinal, a 4 de Novembro de 1890.

Engels dedicou-se a reunir as notas e manuscritos para O Capital. O volume II foi publicado (na Alemanha) em Julho de 1885 e o Volume III, em Novembro de 1894. A primeira tradução inglesa oficial (1887) vendeu-se mal, mas uma edição pirata em Língua inglesa, de cinco mil exemplares, es-gotou-se em pouco tempo — provavelmente porque o editor enviou uma circular aos banqueiros de Wall Street a dizer que o livro revelava «como acumular capitai». Eingels morreu de cancro no esófago a 5 de Agosto de 1895. Cerca de 80 pessoas assistiram ao seu funeral no crematório de Woking; Eleanor Marx e três amigas deslocaram-se a Eastbourne, foram de bote a seis milhas de Beachy Head e lançaram as cinzas de Engels ao mar.

Após a morte de Engels, a tarefa de guardar e seleccionar os papéis de Marx coube a Eleanor Marx e ao seu amante, Edward Aveling. Embora espantosamente feio e merecedor de pouca confiança, Aveling era um sedutor que «precisava apenas de meia hora de avanço sobre o mais belo homem de Londres para seduzir qualquer mulheD>. Ele e Eleanor viveram juntos às claras, mas como a maior parte dos amigos eram actores, livres pensadores e boémios, ninguém se escandalizou. O que chocava muitos dos seus convidados era a maneira grosseira como ele a tratava: o escritor Oliver Schreiner

330 *Ä> KARL MARX

descreveu Aveling como sendo um «rufia»; e, na opinião de WiUiam Morris, ele não passava de «um tipo com péssima reputação». Eleanor deu-se conta de como eles tinham razão em Março de 1898 ao descobrir que ele se tinha casado em segredo com uma actriz de 22 anos no Verão anterior. A solução de Aveling para resolver a crise foi propor suicidarem-se juntos. Eleanor redigiu obedientemente um terno bilhete de despedida e tomou o ácido prússico que ele lhe deu. Escusado será dizer que Aveling nunca tencionou cumprir tal pacto e, logo que ela tomou a dose letal, saiu de casa. Apesar de não ter sido condenado, não há dúvida de que foi ele quem a matou.

Laura e Paul Lafargue foram viver para os arredores de Paris à custa do dinheiro que tinham conseguido sacar a Engels. Em Novembro de 1911, quando ele tinha 69 anos e ela 66, decidiram que não valia a pena viver e suicidaram-se juntos. Um dos oradores do seu funeral foi um representante dos comunistas russos, um certo Vladimir Ilyich Lenine, que afirmou que as ideias do pai de Laura viriam a reaHzar-se mais cedo do que se julgava.

Quatro dos filhos de Marx morreram antes dele e os dois sobreviventes mataram-se. O único membro da família a escapar esta maldição foi Freddy Demuth, que viveu e trabalhou tranquilamente na zona leste de Londres. Morreu aos 77 anos, vítima de um ataque cardíaco, a 28 de Janeiro de 1929. Nem ele nem ninguém nunca suspeitaram que pudesse ser o filho de um homem cujo rosto e nome eram já então conhecidos no mundo inteiro.

POS-ESCRITO 2:

CONFISSÕES

Todas as três filhas de Marx adoravam o jogo de salão vitoriano «Con

fissões» — actualmente mais conhecido pelo Questionário de Proust —

e em meados da década de 1860 convidaram o pai a sujeitar-se a um inqué

rito. Seguem-se as suas respostas:

A virtude preferida:

Jí virtude masculina preferida:

A virtude feminina preferida:

A sua principal característica:

A sua ideia de felicidade:

A sua ideia de desgraça:

O defeito que mais tolera:

O defeito que mais ,

A sua aversão:

Ocupação preferida:

Poeta preferido:

Escritor preferido:

Herói preferido:

Heroina preferida:

Flor preferida:

Cor preferida:

Nome preferido:

a simplicidade

a força

a firaqueza

a obstinação

o combate

a submissão

deixar-se enganar

o servilismo

Martin Tupper

(escritor popular vitoriano)

a leitura

Shakespeare, Esquilo, Goethe

Diderot

Espar taco, Kepler

Gretchen

o vermelho

Laura, Jenny

332 ^ o KARL MARX

Prato preferido: peixe Máxima preferida: Nihil humani a me alienum puto

(Tudo o que é humano me interessa) Divisa preferida: De omnibus dubitandum

(De\e-sc duvidar de tudo)

POS-ESCRITO 3:

REGICIDA

No decorrer da sua visita à Alemanha, em 1867, e enquanto aguardava as provas de O Capital, Karl Marx foi convidado a uma festa dada pelo mestre de xadre2, Gustav R. L. Neumann. Sobreviveu a anotação de uma partida que jogou naquela noite contra um indivíduo chamado Meyer.

Marx Meyer

1. e2-e4 e7-e5 16. Cd5xf4 Cc6-e5 2. f2-f4 e5-e4 17. Df3-e4 d7-d6 3. Cgl-f3 g7-g5 18. h2-h4 Dg5-g4 4. Bfl-c4 g5-g4 19. Bc4-f7 Tg8-f8 5. 0-0 g4xNf3 20. Bf7-h5 Dg4-g7 6. Ddtxf3 Dd8-f6 21. d3-d4 Ce5-c6 7. e4-e5 Df6-e5 22. c2-c3 a7-a5 8. d2-d3 Bf8-h6 23. Cf4-e6 Bc8xCe6 9. Cbl-c3 Cg8-e7 24. TflxfS Dg7xTf8 10. Bel-d2 b8-c6 25. De4-xBe6 Ta8-a6 11. Tal-el De5-f5 26. Tel-fl Df8~g7 12. Cc3-d5 Re8-d8 27. Bh5-g4 Cc6-b8 13. Bd2-c3 Th8-g8 28. Tfl-f7 Negras

14. Bc3-f6 Bh6-g5 abandonam

15. Bf6-xBg5 DfSxBgS

A G R A D E C I M E N T O S

Agradeço a colaboração das seguintes instituições: Instituto Internacional

de História Social, Amesterdão, onde se encontram as cartas e manuscritos

de Karl Marx bem como muitos outros arquivos socialistas da época; Mu

seu Karl Marx (Fundação Friedrich Elbert), em Trier, e a sua filial Centro de

Estudos Karl Marx, sobremdo por me ajudar a encontrar a anotação de uma

das últimas partidas de xadre2 jogadas por KM; Biblioteca Memorial Marx,

Londres; Biblioteca Britânica; Biblioteca de Londres; Depar tamento de

Arquivos Públicos, Kew; Departamento Estatístico. Os meus agradecimen

tos também às pessoas que me proporcionaram livros e documentos que, de

outro modo, me teriam escapado: Anna Cuss, da Sociedade Real das Artes,

Paul Foot, Mark Garnett, Ed Günert, Ronald Gray, Bruce Page, Christopher

Hawtree, professor Colin Matthews, Bob O'Hara, Nick Spurrier. Ambas as

minhas agentes, Pat Kavanagh e Victoria Barnsley, de Fourth State, respon

deram afirmativamente à minha sugestão de escrever uma biografia de Marx

com calorosa alacridade. A minha maior dívida de amor e gratidão é para

com Julia Thorogood, a qual nunca perdeu o entusiasmo mesmo nos mo

mentos em que a minha fé e pálpebras descaíam. Jack, Frank e George Anna

Thorogood também me encorajaram. Quaisquer erros quanto a factos e in

terpretação são, claro está, da exclusiva responsabilidade dos meus adorados

filhos Bertie e Archie.

NOTAS FINAIS

As seguintes abreviaturas foram usadas:

MECW Karl Marx, Frederick Engels, Collected Works (47 volumes publicados desde 1975

por Progress Publishers, Moscovo, e preparados em colaboração com

International Publishers Co. Inc., Nova Iorque, and Lawrence & Wishart,

Londres).

RME K.eminiscences of Marx and Engels (Foreign Languages Publishing House,

Moscovo, sem data)

KMIR Karl Marx: Interviews and RecoUecüons

1. O MARGINAL

1. Carta de KM a FE, 21 de Junho de 1854

2. De Karl Marx, de Eleanor Marx, RME, p. 25

3. De Meetings mth Marx, de Maxim Kovalevsky, em RME, p. 299

4. MECW, Vol. I, p. 4

5. Eleanor Marx a Wilhelm Liebknecht eva Mohr und General: Erinnerungen anMarx undEngels

(Dietz Verlag, Berlim, 1965)

6. «A Campanha Francesa», de Goethe, citado em Karl Marx, Man and Fighter, de Boris

Nicolaievsky e Otto Maenchen-Helfen (Methuen, Londres, 1936; edição revista

publicada por Penguin, Harmondsworth, 1973)

7. De The Baptism of Karl Marx, de Eugene Kamenka, The Hibbertjournal. Vol. LVI (1958),

pp. 340-51

8. Carta de Henriette Marx a KM, 29 de Novembro de 1835

9. Carta de KM a FE, 8 de Janeiro de 1863

3 3 8 ^ ^ KARL MARX

10. Carta de Heinrich Marx a KM, 18 de Novembro de 1835

11. Carta de Heinrich Marx a I<M, 18 de Novembro de 1835

12. De Speech of Dr. Marx on Protection, Free Trade, and the Working Class, Northern Star, 9

de Outubro de 1847

13. Carta de Heinrich Marx a KM, 18-25 de Novembro de 1835

14. Carta de Heinrich Marx a KM, princípios de 1836

15. Carta de Henriette Marx a KM, princípios de 1836

16. Certificado de Dispensa da Universidade de Bona, 22 de Agosto de 1836, MECW,

Vol I,pp. 657-8

17. Carta de Heinrich Marx a KM, cerca de Maio/Junho de 1836

18. Carta de KM a Jenny Marx, 15 de Dezembro de 1863

\9. T)e Reminiscences of Marx, de Vaul hãía.rgae,RME, Ç. 74

20. Carta de KM a FE, 10 de Abril de 1856

21. De Karl Marx and World Uterature, de S.S. Prawer (Oxford University Press, 1976), p. 209

22. Carta de KM a Jenny Marx, 21 de Junho de 1856

23. Posfácio à segunda edição alemã de O Capital, MECW, Vol. 35, p. 9

24. De On Hegel de Karl Marx, MECW, Vol. I, p. 576

25. Carta de Heinrich Marx a KM, 9 de Dezembro de 1837

26. Carta de KM a Heinrich Marx, 10-11 de Novembro de 1837

27. Do texto original de 1852 de O Dei^oito Brumário, MECW, Vol. II, p. 103

28. Carta de Heinrich Marx a KM, 9 de Dezembro de 1837

29. Carta de Heinrich Marx a KM, 2 de Março de 1837

2. O PEQUENO JAVALI SELVAGEM

1. Carta de Georg Jung a Arnold Ruge, Marx-Engels Gesamtausgabe, I i (2), p. 261

2. De The Early Texts, de Karl Marx (Oxford University Press, 1971), p. 13

3. Carta de Jenny von Westphalen a KM, 10 de Agosto de 1841

4. Carta de KM a Arnold Ruge, 20 de Março de 1842

5. Carta de KM a Arnold Ruge, 17 de Abril de 1842

6. Carta de Jenny von Westphalen a KM, 10 de Agosto de 1841

7. Artigo em Rheinische Zeitung, 14 de Julho de 1842, traduzido em MECW, Vol. I, p. 195

8. Artigo em Rheinische Zeitung, 19 de Maio de 1842, traduzido em WECW, Vol. I, p. 172

9. De Briefwechsel de Moses Hess, ed. E. SEberner (Haia, 1959), traduzido em KMIR, pp. 2-3

10. De The Insolently Threatened Yet Miraculously Rescued Bible, publicado como panfleto

anónimo em Dezembro de 1842, traduzido em MECW, Vo. 2, p. 336

11. Excepção solitária é o grande investigador americano, Hal Draper, que incluiu uma

divertida nota final sobre Marx e a Pilosidade em Karl Marx's Theory of Revolution, Vol II:

The Politics of Social Classes (Monthly Review Press, Nova Iorque e Londres, 1978

NOTAS FINAIS « * ^ 339

12. De Great Men of the Exile, de Karl Marx e Friedrich Engels, traduzido em The (

Communist Trial (Lawrence & Wishart, Londres, 1971), p.l66

13. Carta de FE a Marie Engels, 29 de Outubro de 1840.

14. Marx-Engels Gesamtausgabe, I i (2), p. 257, traduzido em Karl Marx, de Werner Blumenber

. (NewLeftBooks, Londres, 1972)

15. De Erlebtes, de Kari Marx (Boston, Mass., 1874), em KMIR, pp. 5-6

16. Yet Against the Current: TheUfeof KarlHein^ien 1809-80, de Carl Wittke (University of

Chicago Press, 1945)

17. De Karl Marx: Biographical Memoirs, de Wilhelm Liebknecht, traduzido por E. Unter

mann (Londres, 1901)

18. Rheinische Zeitung, 16 de Outubro de 1842, traduzido em MECIV, Vol. I, p. 220

19. Carta de KM a Arnold Ruge, 30 de Novembro de 1842

20. D e ^ Contribution to the Critique of Political Economy (1859), traduzido em The Portable Karl

Marx (Penguin Books, Nova Iorque, 1983), p. 158

21. Rheinische Zeitung, 25 de Outubro de 1842, traduzido em MECW, Vol. I, p. 225

22. Carta de KM a Arnold Ruge, 9 de Julho de 1842

23. De Kari Marx ais Mensch, de Wilhelm Bios, Die Glocke v (1919), traduzido em KMIR,

pp. 3-4 24. Carta de KM a Arnold Ruge, 25 de Janeiro de 1843

25. Carta de KM a Arnold Ruge, 25 de Janeiro de 1843

26. Carta de KM a Arnold Ruge, 13 de Março de 1843

27. Carta de Jenny von Westphalen a KM, 10 de Agosto de 1841

28. De Red Jenny: A Eife with Karl Marx, de H. F. Peters (Allen & Unwin, Londres, 1986)

29. Carta de Jenny von Westphalen a KM, c. 1839-40

30. Carta de KM a Ludwig Feuerbach, 3 de Outubro de 1843

31. Carta de KM a Ludwig Feuerbach, 11 de Agosto de 1844

32. Carta de KM a FE, 30 de Julho de 1862

33. Karl Marx: Early Writings, traduzido por Rodney Livingstone e Gregor Benton (Pelican

Books, Londres, 1975), pp. 212-41

34. KarlMarx: Early Writings, traduzido por Rodney Livingstone e Gregor Benson (Pelican

Books, Londres, 1975), pp. 243-57

3. O REI CORRUPTO

1. De Zwei Jahre in Paris, de Arnold Ruge (Leipzig, 1846)

2. De 1848: Briefe von und an Herwegh, editado por Marcel Herwegh (Munique, 1898), tra

duzido em KMIR, pp. 6-7

3. Tie Arnold Ruge Briefwechsel und Tagebuchblätter 1825-80, editado por P. Nerrlich (Berlim,

1886), traduzido em XMJR, pp. 9-9

3 4 0 ^ ^ KARL MARX

4. Carta de Arnold Ruge a Julian Fröbel, 4 de Junho de 1844

5. Carta de Jenny Marx a KM, 21 de Junho de 1844

6. De MikhailBakunin andKarlMarx, de K. Kenafick (Melburne, 1948), p. 25

y.DeiÖWZR, p. 10

8. De Karl Marx: Man and Fighter, de Boris Nicolaievsky e Otto Maenchen-Helfen

(Methuen, Londres, 1936)

9. T>e ArnoldKugeBriefwechselundTagebuchblätter 1825-80, editado por O. Nerrlich (Berlim,

1886), traduzido em Karl Marx: Man andFighter

10. Carta de Jenny Marx a KM, 11 -18 de Agosto de 1844

11. De Fünffunsteh^tg]ahre. in der alten und neuen Welt, de Heinrich Börnstein (Leipzig, 1881)

12. De «Notas Críticas Marginais sobre o artigo: "O Rei da Prússia e a Reforma Social."

Por um Prussiano» Vorwärts!, 7 e 10 de Agosto de 1844. Traduzido pem MECW, Vol.

3, pp. 189-206

13. Carta de KM a FE, 4 de Dezembro de 1863

14. Carta de KM a FE, 17 de Dezembro de 1863

15. De KarlMarw: A Few Stray Notes, de Eleanor Marx, RME, pp. 252-1

16. De Karl Marx: Biographical Memoirs, de Wilhelm Liebknecht, traduzido por E. Unter

mann (Londres, 1901)

17. De On the History of the Communist League, por FE, 1885, traduzido em The Cologne

Co«?«?««?>/Tm/(Lawrence & Wishart, Londres, 1971)

18. De Friedrich Engels: A Biography, de Gustave Mayer, traduzido por Gilbert e Helen

Higher, editado por R. H. S. Crossman (Chapman & Hall, Londres, 1936)

19. Carta de FE a Friedrich e Wilhelm Graeber, 1 de Setembro de 1838

20.MECir,Vol. I l , p . 4

21. Carta de FE a Wilhelm Graeber, 17-18 de Setembro de 1838

22. Carta de FE a Friedrich e Wilhelm Graeber, 1 de Setembro de 1838

23. Carta de FE a Friedrich Graeber, 8 de Abril de 1839

24. Carta de FE a Friedrich Graeber, 24 de Abril de 1839

25. The Condition of the Working Class in England, de Friedrich Engels (Londres, 1892)

26. Carta de FE a Eduard Bernstein, 25 de Outubro de 1881

27. Carta de FE a KM, princípios de Outubro de 1844

28. Carta de FE a KM, 19 de Novembro de 1844

29. Carta de FE a K, 22 de Fevereiro-7 de Março de 1845

30. Carta de FE a KM, 17 de Março de 1845

31. Carta de KM a FE, 24 de Abril de 1867

NOTAS FINAIS * < ^ 341

4. O RATO NO SÓTÃO

1. Vorwärts!, 17 de Agosto de 1844, traduzido em MBCW, Vol. 3, pp. 207-10

2. Carta de FE a KM, 22 de Fevereiro-7 de Março de 1845

3. De My Recollections of Karl Marx, de Marian Comyn, em Nineteenth Century and After,

Vol. XCI(1922),pp. 161ff

4. Carta de Jenny Marx a KM, após 14 de Agosto de 1845

5. Carta de KM a Karl Leske, 1 de Agosto de 1846

6. De Teses sobre Feuerbach, de Karl Marx, MECW, Vol. 5, pp. 3-5

7. A Ideologia Alemã, de Karl Marx e Friedrich Engels, MECW, Vol. 5, pp. 19-531

8. De Notas Marginais Críticas sobre o Artigo por um Prussiano, de Karl Marx, Vorwärts!, 10 de

Agosto de 1844

9. Carta de Joseph Weydemeyer a Louise Lüning, 2 de Fevereiro de 1846, publicada no

Münchner Post, 30 de Abril de 1926

10. De «Sobre a Historia da Liga Comunista», de Friedrich Engels, MECW, Vol. 26, p. 320

11. Citado em To the Filand Station, de Edmund Wilson, (Macmülan, Londres, edição de

1972), pp. 193-4

12. De A Wonderful Ten Years, de Pavel Annekov, em RME, pp. 269-72

13. De Circular Against Kriege, por Marx e Engels, 11 de Maio de 1846, traduzido em MECW,

Vol. 6, pp. 35-51

14. Carta de KM a Pierre-Joseph Proudhon, 5 de Maio de 1846

15. Confessions d'un révolutionnaire, de Pierre-Joseph Proudhon (Paris, 1849)

16. Misère dé la Philosophie, de Karl Marx (publicado por A. Frank, Paris, e CG. Vogler,

Bruxelas, 1847)

17. Carta de FE ao Comité de Correspondência Comunista, 19 de Agosto de 1846

18. Carta de FE a KM, 18 de Setembro de 1846

19. Carta de FE a KM, cerca de 18 de Outubro de 1846

20. Carta de FE a I<M, 9 de Março de 1847

21. Carta de FE a KM, 9 de Março de 1847

22. De «Regras da Liga Comunista», adoptadas durante o I Congresso, Junho 1847

23. Carta de KM a Herwegh, 26 de Outubro de 1847

24. De A Circular of the 1" Congress of the Communist Eeague to the Eeague Members, 9 de Ju

nho de 1847, traduzido em MECW, Vol. 6, p. 589

5. O PAPÃO ATERRADOR

1. De Rascunho de uma Confissão de Fé Comunista, de Friedrich ILn.gds,MECW, Vol. 6, pp. 96-103

2. Carta de FE a KM, 25-26 de Outubro de 1847

342 ^ X » KARLMARX

3. De Principios do Comunismo, de Friedrich Engels, MECW, Vol. 6, pp. 341-57

4. De Anies de 1848 e Depois, de Friedrich Lessner, em RME, pp. 149-66

5. De Gründungsdokument des Bundes der Kommunisten (Juni bis September 1847), editado por Bert

Andreas (Hamburgo, 1969)

6. De Die Communisten-Verschwörungen des neun^enhnten Joahrhunderts, de Karl Wermuth e

Wilhelm Stieber (BerHm, 1853)

7. Citado em O Manifesto Comunista de KarlMarx e Friedrich Engels, editado por David

Ryazanov (Russell & Russell, Nova Iorque, 1963)

8. De AJl That is S olid Melts in the Air: The Experience of Modernity, de Marshall Berman (Verso,

Londres, 1982)

9. Deutsche-Brüssels Zetung, 27 de Fevereiro de 1848

10. Carta de FE a KM, 15 de Novembro de 1847

l l .MECir ,Vol . 6,p. 649

12. De Short Sketch of an Eventful Eife, de Jenny Marx, RAÍE, p. 223

13. Ver «Ao Editor de Northern Stan>, de Friedrich Engels, Northern Star, 15 de Março de

1848, e carta de Karl Marx em Ea Réforme, 8 de Março de 1848

14. Carta de FE a I-OM, 25 de Abril de 1848

15. De Erinnerungen eines Achtundviersigers, de Stephan Born (Leipzig, 1898), traduzido em

KMJR,p. 16

16. Neue Rheinische Zeitung, 1 de Junho de 1848

17. The Reminiscences of CarlSchm\ (Londres, 1909), Vol. I, p. 138

18. Publicado em Neue Rheinische Zeitung, 13 de Setembro de 1848

19. Neue Rheinische Zeitung, 9 de Setembro de 1848 '

20. Kölnische Zeitung^ 4 de Outubro de 1848

21. Neue Rheinische Zeitung, 12 de Outubro de 1848

22. Neue Rheinische Zeitung, 29 de Outubro de 1848

23. De From Paris to Berne, por Friedrich Engels, MECW, Vol. 7, pp. 505-29

24. Carta de KM a FE, primeira quinzena de Novembro de 1848

25. Carta de KM a FE, 29 de Novembro de 1848

26. De «The Revolutionary Movement», Neue RJoeinische Zeitung, 1 de Janeiro de 1849

27. Deutsche Eondoner Zeitung, 16 de Fevereiro de 1849

28. Carta do coronel Engels a Oberpräsident Eichman, 17 de Fevereiro de 1849

29. Carta de KM ao coronel Engels, 3 de Março de 1849; ver igualmente carta de FE a Karl

Kautsky, 2 de Dezembro de 1885

30. De «Marx and the Neue Rheinische Zeitung), de Friedrich Engels, publicado em Der

Sozialdemokrat, 13 de Março de 1884

31. Carta de FE a Jenny Marx, 25 de Julho de 1849

32. Carta de KM a FE, 7 de Junho de 1849

NOTAS FINAIS *G# 343

33. Carta de I<M a FE, fins de Julho de 1849

34. Carta de KM a FE, 23 de Agosto de 1849

35. HO 3/53, Departamento de Arquivos Públicos, Londres

36. Carta de KM a FE, 23 de Agosto de 1849

6. O MEGALOSSAURO

1. Bleak House, de Charles Dickes (Cahpman & Hall, Londres, 1853), p. 1

2. The Times, 5 de Julho de 1849

3. Carta de KM a Ferdinand Freiügrath, 5 de Setembro de 1849

4. Carta de KM a Louis Nauer, 30 de Novembro de 1849

5. Carta de FE a Jakob Lukas Schabelitz, 22 de Dezembro de 1849

6. Northern Star, 1 de Dezembro de 1849

7. De Karl Marx: Biographical Memoirs, de Wilhelm Liebknecht, traduzido por E. Untermann

(Londres, 1901)

8. Westdeutsche Zeitung, 8 de Janeiro de 1850

9. Carta de KM a Joseph Weydemeyer, 19 de Dezembro de 1849

10. De ^ j Liitas de Classe em Trança, 1848-1850, traduzido em MECW, Vol. 10, pp. 47-145

11. De Karl Marx: A Study in Fanaticism, de E.H. Carr (}. M. Dent & Sons, Londres, 1934)

12. Carta de Jenny Marx a Joseph Weydemeyer, 20 de Maio de 1850

13. Carta de KM a Joseph Weydemeyer, 27 de Junho de 1850

14. Carta de Jenny Marx a Joseph Weydemeyer, 20 de Maio de 1850

15. Carta de Jenny Marx a FE, 2 de Dezembro de 1850

16. Carta de FE a KM, 25 de Novembro de 1850

17. Carta de F a KM, 6 de Julho de 1851

18. FE a KM, 10 de Março de 1853

19. Spectator, 15 de Junho de 1850

20. FO 64/317, Departamento de Arquivos Públicos, Londres

21. Mtí^, de Robert Payne (WH. Allen, Londres, 1968)

22. Carta de Jenny Marx a Adolf Cluss, 30 de Outubro de 1852

23. Carta de KM a FE, 19 de Novembro de 1850

24. Carta de KM a Eduard von Müller-Tellering, 12 de Março de 1850

25. Relatório de um espião anónimo da polícia alemã, em KMIR, pp. 34-6

26. Original no Instituto Internacional de História Social, Amesterdão; publicado pela

primeira vez em Karl Marx, de Werner Blumenberg (Rowohlt, 1962; edição inglesa

publicada por Verso, Londres, 1972)

27. De Eleanor Marx: Volume One, Family Eif 1855-1883, de Yvonne Kapp (Lawrence and

Wishart, Londres, 1972)

344 ^ ^ KARL MARX

28. Friedrich Engels: His Tife and Thought, de Terrell Carver (Macmillan, Londres e

Basingstoke, 1989)

29. Carta de Terrell Carver, Sunday Times, Londres, 27 de Junho de 1982

30. Carta de KM a Joseph Weydemeyer, 2 de Agosto de 1851

31. Carta de FE a KM, 20 de Abril de 1852

7. OS LOBOS FAMINTOS

1. Carta de KM a FE, 22 de Abril de 1854

2. Carta de FE a KM, 1 de Junho de 1853

3. Carta de KM a FE, 13 de Fevereiro de 1856

4. Carta de KM a FE, 10 de Abril de 1856

5. Carta de KM a FE, 27 de Julho de 1854

6. Carta de KM a FE, 23 de Abril de 1857

7. Carta de I<CM a FE, 7 de Janeiro de 1858

8. Carta de KM a FE, 21 de Junho de 1854

9. Carta de KM a FE, 13 de Agosto de 1858

10. Carta de KM a FE, 15 de Julho de 1858

11. Carta de KM a FE, 31 de Julho de 1865

12. Carta de FE a KM, 16 de Julho de 1858

13. Carta de FE a KM, 11 de Janeirol853

14. Carta de I<CM a Ludwig Kugelmann, 25 de Outubro de 1866

15. Carta de KM a Adolf Cluss, 18 de Outubro de 1853

16. New York Daily Tribune, 15 de Março de 1853

17. New York Daily Tribune, 4 de Setembro de 1852

18. New York Daily Tribune, 16 de Setembro de 1857

19. New York Daily Tribune, 19 de Outubro de 1853

20. Carta de KM a FE, 2 de Abril de 1851

21. Carta de Wilhelm Pieper a FE, 27 de Janeiro de 1851

22. Carta de I<M a Joseph Weydemeyer, 27 de Junho de 1851

23. Carta de KM a Jenny Marx (filha), 10 de Junho de 1869

24. Carta de KM a Jenny Marx, 11 de Junho de 1852

25. Carta de KM a J.G. Kinkel, 22 de Julho de 1852

26. Carta de J.G. Kinkel a KM, 24 de Julho de 1852

27. Carta de KM a J.G. Kinkel, 24 de Julho de 1852

28. Carta de KM a Adolf Cluss, 30 de Julho de 1852

29. Carta de KM a FE, 22 de Maio de 1852

NOTAS FINAIS « « ^ 345

30. Carta de KM ao barão A. von Brüningk, 18 de Outubro de 1852

31. Carta de KM a Karl Eduard Vehse, fins de Novembro de 1852

32. Carta de KM a Karl Eduard Vehse, fins de Novembro de 1852

33. Carta de KM a Joseph Weydemeyer, 27 de Junho de 1851

34. De Os Grande Homens do Exilio, de Karl Marx e Friedrich Engels, em «The Cologne

Communist Trial»(Lawí:ence & Wishart, Londres, 1971), p. 167

35. Carta de George Julian Harney a FE, 30 de Março de 1846

36. Carta de FE a Emil Blank, 15 de Abril de 1848

37. Carta de KM a FE, 23 de Fevereiro de 1851

38. Carta de KM a FE, 11 de Fevereiro de 1851

39. Carta de FE a KM, 13 de Fevereiro de 1851

40. Carta de KM a FE, 24 de Fevereiro de 1851

41. Ver carta de George Julian Harney a FE, 30 de Março de 1846

42. De Neue Oder Zeitung, 8 de Junho de 1855

43. Discurso feito por KM a 14 de Abril de 1856, publicado em People's Paper, 19 de Abril

de 1856

44. Carta de FE a KM, 30 de Julho de 1851

45. Carta de KM a FE, 31 de Julho de 1851

46. Carta de FE a KM, 23 de Setembro de 1851

47. Carta de FE a KM, 15 de Outubro de 1851

48. Carta de FM a Ferdinand Freiligrath, 27 de Dezembro de 1851

49. Carta de KM a Lassaile, 23 de Fevereiro de 1852

50. Carta de FE a KM, 20 de Abril de 1852

51. Ver Cartas de KM a FE, 29 de Janeiro 1853,10 de Março de 1853,28 de Setembro de

1853

52. Neue Oder Zeitung, 28 de Junho de 1855

53. Neue Oder Zeitung, 5 de Julho de 1855

54. Die Presse (Viena), 2 de Fevereiro de 1862

55. Carta de KM a FE, 27 de Julho de 1866

5().T>c Man and theNatural World: Changing Attitudes in England 1500-1800, ácVdáÚiT^h.om-às

(Allen Lane, Londres, 1983), p. 240

57. Carta de FE a KM, 7 de Outubro de 1858

58. Carta de KM a Eleanor Marx, 9 de Janeiro de 1883

59. De David Urquhart: Some Chapters in the Ufe of a Yictorian Knight Errant of Justice andUberty,

de Gertrude Robinson (Basil Blackwell, Oxford, 1920)

60. Carta de I<CM a FE, 10 de Março de 1853

61. Carta de KM a FE, 18 de Agosto de 1853

62. Carta de KM a FE, 9 de Fevereiro de 1854 -

63. Carta de KM a Ferdinand Lassalle

346 « 5 ^ KARL MARX

64. Carta de KM a Jenny Marx, 8 de Agosto de 1856

65. Os textos ofensivos foram retirados das obras completas alemãs e russas, mas foram

finalmente publicados na edição inglesa — embora apenas em 1986 e após muitos anos

de tenaz discussão entre os editores britânicos e as autoridades em Moscovo

66. Carta de KM a FE, 5 de Março de 1858

67. In the Days of the Dandies, de Lorde Lamington (Londres, 1890)

8. O HERÓI A CAVALO

L Carta de KM a FE, 17 de Janeiro de 1855

2. Carta de KM a Amalle Daniels, 6 de Novembro de 1855

3. Carta de KM a FE, 30 de Março de 1855

4. Carta de KM a FE, 12 de Abril de 1855

5. Carta de KM a FE, 13 de Fevereiro de 1863

6. Carta de KM a Ferdinand Lassalle, 28 de Julho de 1855

7. Carta de KM a FE, 11 de Setembro de 1855

8. Carta de Jenny Marx a Louise Weydemeyer, 11 de Março de 1861

9. De Karl Marx: A Few Stray Notes, de Eleanor Marx, em KME, pp. 250-1

10. Carta de FE a KM, posterior a 17 de Setembro de 1856

11. Carta de ¥M a FE, 20 de Janeiro de 1857

12. Carta de FE a KM, cerca de 22 de Janeiro de 1857

13. De Short Sketch of an Even ful Efe, de Jenny Marx, traduzido em RME, pp. 229-30

14. Carta de KM a FE, 24 de Março de 1857

15. Carta de KM a FE, 29 de Junho de 1857

16. Carta de KM a FE, 15 de Agosto de 1857

17. Carta de FE a KM, 15 de Novembro de 1857

18. Carta de FE a KM, 7 de Dezembro de 1857

19. Carta de FE a KM, 15 de Novembro de 1857

20. Carta de FE a KM, 11 de Fevereiro de 1858

21. Carta de KM a FE, 5 de Janeiro de 1858

22. Carta de KM a FE, 8 de Dezembro de 1857

23. Carta de KM a FE, 18 de Dezembro de 1857

24. Carta de KM a FE, 1 de Fevereiro de 1858

25. Carta de KM a FE, 5 de Março de 1856

26. Carta de KM a Lassalle, 31 de Maio de 1858

27. Carta de KM a Lassalle, 22 de Fevereiro de 1858

28. Carta de FE a Nikolai Danielson, 13 de Novembro de 1885

29. Carta de KM a FE, 19 de Outubro de 1867

NOTAS FINAIS ^ à * 347

30. Carta de Jenny Marx a FE, 9 de Abril de 1858

31. Carta de FE a Jenny Marx, 11 de Maio de 1858

32. Carta de KM a Cari Friedrich Julius Leske, 1 de Agosto de 1846

33. Carta de KM a Lassalle, 22 de Fevereiro de 1858

34. Carta de KM a FE, 21 de Janeiro de 1859

35. Carta de KM a FE, 22 de Outubro de 1858

36. Carta de KM a FE, 10 de Novembro de 1858

37. Carta de KM a Lassalle, 12 de Novembro de 1858

38. Carta de KM a FE, 11 de Dezembro de 1858

39. Carta de KM a FE, 13-15 de Janeiro de 1859

40. Do Prefácio ÍLA Critique of Political Economy, de Karl Marx, traduzido em MESW, Vol.

I, pp. 361 ff

41. Carta de KM a FE, 22 de Julho de 1859

42. Carta de Jenny Marx a FE, 23 ou 24 de Dezembro de 1859

43. De Mein Process gegen die Allgemeine Zeitung, de Karl Vogt (Genebra, 1859), traduzido em

KMIR, pp. 17-19

44. De Herr Vogt, de Karl Marx, em MECW, Vol. 17, p. 243

45. Carta de KM a FE, 28 de Novembro de 1860

46. Carta de Jenny Marx a Louise Wydemeyer, 11 de Março de 1861

47. Carta de KM a FE, 18 de Janeiro de 1861

48. Carta de KM a Antoinette Philips, 24 de Março de 1861

49. Carta de KM a Antoinette Philips, 13 de Abril de 1861

50. Carta de Jenny Marx a FE, princípios de Abril de 1861

51. Carta de KM a Antoinette Philips, 24 de Março de 1861

52. Carta de KM a FE, 30 de Julho de 1862

53. Carta de KM a FE, 19 de Junho de 1861

54. Carta de KM a FE, 18 de Junho de 1862

55. Carta de KM a FE, 30 de Julho de 1862

56. De Short Sketch of an Eventful Eife, de Jenny Marx, traduzido em KME, p. 234

57. Carta de KM a Lassalle, 7 de Novembro de 1862

58. Carta de Lassalle a Bismark, 8 de Junho de 1863, traduzida em Karl Marx's Theory of

Revolution, Volume TV: Critique of Other Socialisms, de Hal Draper (Monthly Review Press,

Nova Iorque, 1990), p. 55

59. Carta de FE a KM, 4 de Setembro de 1864

60. Carta de KM a FE, 7 de Setembro de 1864

61. Carta de KM a Sophie von Hatzfeldt, 12 de Setembro de 1864

(,2. Caita, de KM a FE, 24 de Dezembro de 1862

63. Carta de KM a FE, 20 de Agosto de 1862

3 4 8 1 ^ KARL MARX

64. De The Socialism of Karl Marx and the Young Hegelians, de John Rae, Contemporary Kepiem,

vol. XL, Outubro de 1881, p. 585

65. Carta de KM a Collet Dobson Collet, 6 de Setembro de 1871

66. The Times, 2 de Setembro de 1851

67. Ver The "Ked Doctor" Amongst the Virtuosi: Karl Marx and the Society, de D. G. C. Allan,

Journal of the Royal Society of Arts, Vol. 129 (1981), pp. 259-61 e 309-311

68. Carta de Jenny Marx (filha) a FE, 2 de Julho de 1869

69. De Karl Marx: Biographical Memories, de Wilhelm Liebknecht, traduzido por E. Unter

mann (Londres, 1901)

70. De The Introduction and CriticallReception of MarxistThought in Britain, 1850-1900, de Kirk

Wilüs, The Historical Journal, 20, 2 (1977), pp. 417-459

71. Carta de KM a FE, 18 de Junho de 1862

72. Carta de KM a Ludwig Kugelmann, 28 de Dezembro de 1862

9. OS BULDOGUES E A HIENA

1. Carta de FE a KM, 13 de Janeiro de 1863

2. Carta de KM a FE, 14 de Janeiro de 1863

3. Carta de FE a KM, 16 de Janeiro de 1863

4. Carta de KM a FE, 2 de Dezembro de 1863

5. De «As últimas vontades e testamento de Johann Friedrich Wolfß>, Manchester Probate

Court, Registo N.° 1 (1864), Folio 606

6. Carta de KM a FE, 25 de Julho de 1864

7. Carta de KM a Lion Philips, 25 de Junho de,1864

8. Carta de KM a FE, 4 de Julho de 1864

9. Carta de FE a KM, 28 de Junho de 1868

10. Carta de KM a FE, 27 de Junho de 1868

11. De «Observações sobre o Artigo do Sr. Adolphe Bartels», de Karl Marx, Deutsche-

Brüsseler-Zeitung, 19 de Dezembro de 1847

12. Carta de KM a Ferdinand Freiiigrath, 29 de Fevereiro de 1860

13. The Tion and the Unicom: Sodalism and the English Genius, de George Orwell (Seeker &

Warburg, Londres, 1941)

14. Northern Star, 19 de Junho de 1847

15. Para relatos do caso Haynau, ver The Chartist Challenge:A Portrait of George Julian Harney,

de A. R. Schoyen (Heinemann, Londres, 1958); A History of the Chartist Movement, de

Julius West (Constable, Londres, 1920); The Common People 1746-1938, de G. D. H. Cole

e Raymond Pistgate (Methuen, Londres, 1938) e o editorial de Harney no Red Republican,

14 de Setembro de 1850 ' : ,

NOTAS FINAIS o < ^ 349

16. The Age of Capital, E.J. Hobsbawn (Abacus, Londrs, 1977), pp. 134-5

17. Carta de KM FE, 9 de Abril de 1863

18. Marx, de Robert Payne (W H. Allen, Londres, 1968), p. 322

19. The Social and Political Tought of Karl Marx, de Schlomo Avineri (Cambridge University

Press, 1968), p. 63

20. Para uma minuciosa dissecação dos erros de Avineri, ver apêndice em Karl Marx's

. Theorrj of K£volution — Volume II: The Politics of Social Classes, de Hal Draper (Monthly

Review Press, Nova Iorque, 1978), pp. 635ff

21. De Neue Rheinische Zeitung, Politisch-ökonomische Revue, N.°' 5-6, 1850

22. Carta de KM a FE, 9 de Fevereiro de 1859

23. Carta de KM a FE, 18 de Maio de 1859

24. Carta de KM a FE, 26 de Setembro de 1866

25. Todas as citações das minutas são tiradas de The General Council of the First International

compilação em cinco volumes dos registos do Conselho, publicada por Foreign Lan

guages Publishing House, Moscovo

26. Carta de KM a FE, 4 de Novembro de 1864

27. Carta de KM a Laura Marx, 20 de Março de 1866

28. Carta de KM a FE, 20 de Junho de 1866

29. Carta de KM a FE, 13 de Março de 1865

30. Carta de FE a Laura Lafargue (nascida Marx), 24 de Junho de 1883

31. Carta de FE a KM, 12 de Abril de 1865

32. Carta de KM a Ludwig Kugelmann, 1865

33. Carta de KM a FE, 1 de Maio de 1865

34. Carta de 1<M a FE, 31 de Julho de 1865

35. Carta de KM a Paul Lafargue, 13 de Agosto de 1866

36. Carta de KM a FE, 11 de Novembro de 1882

37. Carta de KM a Paul Lafargue, 13 de Agosto de 1866

38. Carta de KM a FE, 6 de Março de 1868

39. Ver carta de Laura Lafargue a FE, 6 de Março de 1893, na Correspondência Engels-

-Lafargue, Vol. III, pp. 246-7

40. Carta de Laura Marx a FE, 16 de Outubro de 1893, na Correspondência Engels-

• -Lafargue, Vol. III, p. 304

41. Carta de Jenny Marx a Wilhelm Liebknecht, 26 de Maio de 1872

10. O CAO PELUDO

1. De «Reminiscencias de Marx», de Paul Lafargue, em RAÍE, p. 73

2. Carta de KM a FE, 22 de Junho de 1867

3501?*:: KARL MARX

3. Carta de KM a FE, 2 de Abril de 1867

4. Carta de KM a FE, 13 de Abril de 1867

.5. Carta de KM a FE, 24 de Abril de 1867

6. Carta de I<:M a FE, 7 de Maio de 1867

7. Carta de KM a FE, 22 de Junho de 1867

8. Carta de KM a FE, 16 de Agosto de 1867

9. Conversations, de Kenneth Harris (Hodder & Stoughton, Londres, 1967), p. 268. Wüson

repetiu a afirmação numa entrevista para The Times, 2 de Agosto de 1976

10. De O Capital: «Uma Crítica da Economia PoKoca», Vol. I, de Karl Marx, traduzido por

BenFowltes (PelicanBoolcs, Londres, em associação com ÍVÍ?»^LÍ/?RÍW>», 1976), p. 797

11. Ibid., p. 799

12. Main Currents of Marxism: Its Rise, Growth and Dissolution, Vol. I, de Leszek Kolakowski

(Clarendon Press, Oxford, 1978), p. 291

13. Ibid., p. 329

14. Conferências de Karl Marx no Conselho-Geral da Primeira Internacional, 20 e 27 de

Junho de 1865, publicadas no panfleto Value, Price andProfit, editado por Eleanor Marx

— Aveling (Londres, 1898)

15. Posfácio à segunda edição alemã de O Capital, 1873

16. O Capital, Vol. I, pp. 142-3

17. De The Tife and Opinions of Tristam Shandj, Gent, de Laurence Sterne, em The Works of

Taurence Sterne, Vol. I (Bickers & Son, Londres, 1885)

ÍS.LMurence Sterne: A. Fellow of Infinite Jest, de Thomas Yoseloff (Francis Aldor, Londres,

1948), p. 87

19. M E C I F ; Vol. 30, pp. 306-310

20. To the Finland Station, de Edmund Wilson (MacmiUan, Londres, 1972), pp. 340-2

21. Saturday Review of Politics, Uterature, Science and Art, Londres, 18 de Janeiro de 1868

22. Contemporary Review, Londres, Junho de 1868

23. Carta de FE a KM, 16 de Junho de 1867

24. Carta de FE a ÍCM, 23 de Agosto de 1867

25. Carta de KM a Kugelmann, 30 de Novembro de 1867

26. Carta de KM a FE, 19 de Outubro de 1867

27. Carta de FE a Ludwig Kugelmann, 8 e 20 de Novembro de 1867

28. Carta de Jenny Marx a Ludwig Kugelmann, 24 de Dezembro de 1867

29. Ibid.

NOTAS FINAIS ö ^ 351

II. O ELEFANTE VELHACO

1. Karl Marx: A Political Biography, de Fritz J. Raddatz, traduzido por Richard Barry,

(Weidenfeld & Nicholson, Londres, 1978), p. 207

2. Karl Marx, de E.H. Carr (J. M. Dent & Sons, Londres, 1934), p. 224

3. Karl Marx: His Ufe and Environment, de Isaiah Berlin (Butterworh, Londres, 1939), p. 79

4. Archives Bakounine, editado por A. Lehning (International Institute for Social History,

Amesterdão, 1967)

5. Democratic Pan-Slavism, de Friedrich Engels, Neue RJjeinische Zeitung, 15 de Fevereiro de

1849

6. Carta de KM a FE, 12 de Setembro de 1863

7. Carta de I<M a FE, 4 de Novembro de 1864

8. Michael Bakounin, de E. H. Carr (Vintage Books, Nova Iorque, 1961)

9. Discurso «Aos Membros da Associação Internacional dos Trabalhadores da Europa e

dos EUA» publicado por IWMA, Julho de 1870

10. Minutas do ConselhoGeral, 22 de Agosto de 1870

11. Carta de KM a Ferdinand Lassalle, 4 de Fevereiro de 1859

12. Carta de KM a FE, 17 de Agosto de 1870

13. Carta de KM a Paul e Laura Lafargue, 28 de Julho de 1870

14. Carta de Jenny Marx a FE, 10 de Agosto de 1870

15. Carta de FE a KM, 31 de Julho de 1870

16. Cartade KM a FE, 8 de Agosto de 1870

17. Discurso «Aos Membros da Associação Internacional dos Trabalhadores da Europa

e dos EUA», publicado por IWMA, Setembro de 1870

18. Carta de KM a Friedrich Adolph Sorge, 1 de Setembro de 1870

19. Ti)í Tiwé-J, 22 de Março de 1871

20. Carta de KM a Wilhelm Liebknecht, 6 de Abril de 1871

21. Carta de KM a Ludwig Kugelmann, 12 de Abril de 1871

22. Ver, por exemplo, Karl Marx: A Biography, de David McLellan, p. 359

23. Carta de Jenny Marx (filha) aos Kugelmann, 18 de Abril de 1871

24. The Civil War in France (Edward Truelove, Londres, Junho de 1871)

25. «A Internacional Dirigida à Classe Operária», de Joseph Mazzini, Contemporary Revue,

XX (Julho de 1872), 155

26. The Times, 16 de Abril de 1872

27. The Commune of 1871, de EBM, Fraser's Magai^ine, Junho de 1871

^8. The Tablet, 15 de Julho de 1871

29. jr íí-/«/or, 17 de Junho de 1871

30. «O Proletariado numa Falsa Pista», de W. R. Gt&^, Quarterly Revieiv CXXXII (Janeiro

de 1872), p. 133

3 5 2 * 1 ^ KARL MARX

31. Carta de KM a Ludwig Kugelmann, 18 de Junho de 1871

32. Ml Mall Gazette, 9 de Junho de 1871

33. P«//M«//G«^í//í, 3 de Julho de 1871

34. The World, Nova Iorque, 18 de Julho de 1871

35. Carta de KM a Jenny Marx, 23 de Setembro de 1871

36. Archives Bakounine, traduzido em Karl Marx's Theory of Revolution, Volume IV: Critique of

Other Sodalisms, p. 296

37. lues Prétendues Scissions dans l'Internationale (Co-operative Press, Genebra, 1872)

38. Ein Zesdaagsch International Débat (Dordrecht, 1872), traduzido em KMIR, pp. 114-15

39. Nicolaievsky e Maenchen-Helfen, p. 382

40. TA? T/Ä'iJ, 7 de Setembro de 1872

41. Nicolaievsky e Maendhen-Helfen, p. 384

42. «Relatório do V Congresso Geral Anual da Associação Internacional dos Trabalha

dores, ocorrido em Haia, Holanda», 2-9 de Setembro de 1872, Maltman Barry (Lon

dres, 1873)

43. Carta de KM a Nicolai Danielson, 28 de Maio de 1872

44. Carta de KM a César de Paepe, 28 de Maio de 1872

45. Violence dans la violence: le débat Bakounine-Necaev, de Michael Confino (Maspero, Paris,

1973), p. 88; ver igualmente Karl Marx's Theory of Revolution, Volume IV: Critique of Other

Socialisms, p. 302

12. O OURIÇO TOSQUIADO

1. Carta de Jenny Marx a Friedrich Adolphe Sorge, 20 ou 2Ide Janeiro de 1877

2. Carta de Jenny Marx a Wilhelm Liebknecht, 26 de Maio de 1872

3. Carta de Jenny Marx (filha) a Eleanor Marx, 10 de Abril de 1882, citada em Eleanor Marx,

Volume I: Family Ufe /á'i5-/á'á'i, de Yvonne Kapp (Lawrence & Wishart, Londres, 1972),

p. 240

4. T)c Autobiographic Memoirs, de Frederic Harrison (Londres, 1911), Vol. II, p. 33

5. Carta de KM a Friedrich Adolphe Sorge, 4 de Agosto de 1874

6. Carta de KM a FE, 11 de Novembro de 1882

7. Carta de Jenny Marx (filha) a Ludwig e Gertrud Kugelmann, 21-22 de Dezembro de

1871

8. Carta de KM a FE, 31 de Maio de 1873

9. Carta de Eleanor Marx a KM, 23 de Março de 1874; traduzida em Eleanor Marx, Volu

me I: Family Ufe 1855-1883, de Yvonne Kapp (Lawrence & Wishart, Londres, 1972), pp.

153-4

10. Carta de Eleanor Marx a Jenny Longuet, 1 de Julho de 1882

NOTAS FINAIS fi*G<» 353

11. Carta de Eleanor Marx a Karl Kautsky, 28 de Dezembro de 1896

12. Carta de Eleanor Marx a Jenny Longuet, 8 de Janeiro de 1882

13. Carta de KM a Nikolai Danielson, 12 de Agosto de 1873

14. Carta de KM a FE, 20 de Agosto de 1973

15. Carta de KM a Friedrich Adolphe Sorge, 27 de Setembro de 1873

16. Carta de KM a Ludwig Kugelmann, 19 de Janeiro de 1974

17. Ficha H045/9366/36228 no Departamento de Arquivos Públicos, Londres

18. Carta de KM a FE, 1 de Setembro de 1874

19. Carta de KM a FE, 18 de Setembro de 1874

20. De Sprudel (Viena), 19 de Setembro de 1875, traduzido em KMIR, pp. 124-5

21. De Going to Canossa, de August Bebei, RME, p. 216

22. De Visits to Karl Marx, de Nikolai Morozov, RME, p. 303

23. De Aus den Jahren meines Exils: Erinnerungen eines Socialisten, de Eduard Bernstein (Berlim,

1919), traduzido em EMIK, pp. 152-3

24. Tie Aus denErü^toeit des Marxismus, de Karl Kautsky (Praga, 1935), traduzido em KMIR,

pp. 153-6

25. Chicago Tribune, 5 àe]ã.neito de 1&79

26. Carta de KM a Ferdinand Dómela Nieuwenhuis, 22 de Fevereiro de 1881

27. Carta de Sir Mountstuart Elphinstone Grant Duff, membro do Parlamento, à princesa

real Victoria, 1 de Fevereiro de 1879; primeiro publicada em «A Meeting with Karl

Marx»j Times Literary Supplement, 15 de Julho de 1949

28. Ver Karl Marx. Persönliche Erinnerungen, de Paul L,a.ia.i:gae, Die Neue Zeit, Vol. IX, p. 1

(1890-1), traduzido em KMIR, p. 73; e também Karl Marx and the Promethean Complex,

de Lewis S. Feuer, Encounter, Vol. XXXI, N.° 6 (Dezembro de 1968), p. 15

29. Carta de Charles Darwin a KM, 1 de Outubro de 1873

30. Carta de KM a FE, 19 de Dezembro de 1860

31. Carta de KM a Lassalle, 16 de Janeiro de 1861

32. Carta de KM a FE, 7 de Agosto de 1866

33. Carta de Charles Darwin a Edward Aveüng, 13 de Outubro de 1880. Esta e a outra carta

de Darwdn de O umbro de 1873 podem ser encontradas no HSH, Amesterdão. Ambas

têm borrões idênticos onde alguém — provavelmente o próprio Aveling — entornou

tinta; como tais borrões estão ligeiramente desbotados na carta de Marx, deduz-se que

estas missivas estavam juntas na sua secretária, com a carta de 1880 por cima, quando

o acidente ocorreu. Para mais pormenores sobre o mito Marx-Darwin, consultar o

seguinte: «Os Contactos entre Karl Marx e Charles Darwin», e Ralph Colp]t., Journal

of the History of Ideas, Vol. XXXV, N.° 2 (Abril-Junho de 1974), pp. 329-38; «Quis Marx

Dedicar O Capital a Charles Darwin?», de Margaret A. V'ny, Journal of the Histoty of Ideas,

Vol. XXXIX, N.° 1 Qaneiro-Março de 1978), pp. 133-46; «O Caso da Carta Marx-

-Darwin», de Lewis S. Feuer, Encounter, Vol. LI, N.° 4 (Outubro de 1978), pp. dl-ll;

354 < j ^ KARI.MARX

«Marx e Darwin: Uma História Policial Literária», de Margaret A. Fay, Monthly Review

(Nova Iorque), Vol. 31, N.° 10 (Março de 1980), pp. 40-57; «O Mito da Carta Marx-

-Darwin», de Ralph Colp Jr, History of Political Economy (Duke University, CaroHna do

Norte, Vol. 14, N.° 4 (Inverno de 1982), pp. 461-82

34. De Karl Marx, por Isaiah Berlin (Thornton Butterworth, Londres, 1939) p. 218

35. «De Brincadeira a Dogma: Uma nota de rodapé sobre Marx e Darwin», de Schlomo

Avineri, Encounter, Vol. XXVIII (Março de 1967) pp. 30-32

36. Spectator, 17 de Outubro de 1998

37. «Karl Marx e o Socialismo Alemão», de John Macdonneil, Fortnightly Review, 1 de Março

de 1875

38. Carta de Macmillan & Co. (Londres) ao professor Carl Schorlemmer, 25 de Maio de

1883

39. Carta de Robert Banner a KM, 6 de Dezembro de 1880

40. The Record of an Adventurous Life, de H. M. Hyndman (Macmillan, Londres, 1911)

pp. 271-2

41. V&c The Proud Tower: A Portrait of the World Before the War, 1800-1914, de Barbara Tuch-

man (Macmillan, Londres, 1980), p. 360

42. Hyndman, p. 273

43. «As Minhas Recordações de Karl Marx», de Marian Comyn em Nineteen Century and

_4r/f;r (Londres, 1922), pp. 161 ff.

44. Carta de KM Jenny Longuet, 11 de Abril de 1881

45. Ver The Victorian Encounter with Marx: A Study of Ernest Beifort Bax, de John Cowley

(British Academy Press, Londres & Nova Iorque, 1992)

46. Carta de KM a Friedrich Adolphe Sorge, 15 de Dezembro de 1881

47. Carta de FE a Johann Philipp Becker, 17 de Agosto de 1880

48. Citado em EleanorMarx, Vol. I, de Yvonne Kapp (Lawrence & Wishart, Londres, 1972),

pp. 215-16

49. Carta de KM a Nikolai Danielson, 19 de Fevereiro del 881

50. Carta de KM a Jenny Longuet, 29 de Abril de 1881

51. Carta de KM a Friedrich Adolphe Sorge, 20 de Junho de 1881

52. Carta de KM a FE, 9 de Agosto de 1881

53. Carta de KM a FE, 18 de Agosto de 1881

54. Carta de KM a Kari Kautsky, 1 de Outubro de 1881

55. Carta de FE a Eduard Bernstein, 30 de Novembro de 1881

56. Ver carta de KM a Jenny Longuet, 7 de Dezembro de 1881

57. Carta de KM a Laura Lafargue, 13 e 14 de Abril de 1882

58. A mulher era Virginia Bateman, mãe do romancista Compton Mackenzie. As suas

reminiscências podem ser encontradas em My Efe and Times, de Compton Mackenzie

(Londres, 1968), Vol. VII, p. 181

NOTAS FINAIS ^ J 355

59. Carta de KM a FE, 20 de Maio de 1882

60. Carta de Jenny Longuet a Eleanor Marx, 8 de Novembro de 1882

61. Carta de KM a Laura Lafargue, 14 de Dezembro de 1882

62. Carta de KM ao Dr. James M. Williamson, 6 de Janeiro de 1883. Ver igualmente

Prometheus Bound: Karl Marx on the Isle of Wight, de Dr. A. E. Lawrence e Dr. A. N. Insole

(Departamento dos Serviços Culturais do Conselho do Condado da Ilha de Wight,

Newport, 1981)

63. De RME, p. 128

64. Carta de FE a August Bebel, 7 de Março de 1883

65. Carta de FE a Friedrich Adolpe Sorge, 15 de Março de 1883

66. Dailj News (Londres), 17 de Março de 1883

67. PallMall Gazette, 16 de Março de 1883

68. New York Sun, 6 de Setembro de 1

INDICE REMISSIVO

Aberdare, Lorde, 288 Agoult, condessa Marie d', 65 Aliança Internacional da Democracia

Socialista, 276, 293 Allgemeine Uteratur-Zeitung, 83 Anneke, Friedrich, 123-24 Annenkov, Pavel, 97, 98 Antigo Testamento, 10 Arnim, Bettina von, 51 Assembleia Nacional Alemã, 122-123 Assembleia Nacional Prussiana, 131,133 Associação Educativa dos Trabalhadores

Alemães {ver também Liga dos Justos), 93, 109-110,115,137,138-140,150-51

Associação Internacional do Operariado, 236-250, 272, 276-283, 286-300

Associação dos Trabalhadores de Colónia, 122-23,127,149-50

Aveling, Edward B , 317, 321-22 Avineri, professor Shlomo, 276, 316

Babeuf, Gracchus, 92 Bachmann, Dr. Carl Friedrich, 37 Bakunine, Michail, 63-66, 272-277, 281, 292-

-296, 298-300 Bangya, coronel, 164 Bartels, Adolphe, 235-236 Barthélémy, Emmanuel, 148-149 Bauer, Bruno, 32, 35-36, 37-39, 42, 56-57, 83,

90, 104

Bauer, Edgar, 73, 82, 223-24 Bauer Heinrich, 93 Bauer, Louis, 138 Bax, Ernest Beiford, 321-22 Becker, Hermann, 125 Berlin, Isaiah, 315-16 Bernays, Karl Ludwig, 66 Hleak Mouse (Dickens), 135-37 Blind, Karl, 208-9 Bios, Wilhelm, 47 Börnstein, Heinrich, 66 Brandeburgo, conde, 129 Breve Esboço à: Uma VidaPlena (J. Marx), 156-57 Burns, Lydia, 227-28, 301 Burns, Mary, 19,78, 227-30

Capital, O (Marx), 140 censurado, 260-271 dedicação, 232, 315-18 influência dos economistas ingleses sobre,

264 influência de Engels em, 79-80, 232 influência da literatura de ficção sobre,

264-70 Karl Marx termina o volume I, 259-60 nascimento de, 149, 168-169, 199, 221-22,

225, 250-51, 256-57 opinião de Darwin sobre, 313-318 plagiado, 320-321 publicação dos volumes, II e III, 331

358 KARL MARX

Teorias do Valor Excedente, 268-69 tradução inglesa de, 318-19, 331

Carr, E.H, 142, 274 Carter, James, 250 Carver, professor Terrell, 155-56 Cartismo, 78,121,172-73 Claflin, Tennessee, 292 Clube dos Trabalhadores Alemães, 118 Comité Comunista de Correspondência, 96,

101-5 Comuna de Paris, 282-88, 292, 298, 303 Condições da Classe Operária em Inglaterra, As,

78-9, 86-7, 264 Conselho Comercial de Londres, 239-40, 244,

250 Cremer, Randal, 243-44, 245-47, 248-50

Daily Telegraph, 211-12, 216 Dana, Charles, 165 Darwin, Charles, 313-317 Demuth, Helene, 87,114, 117, 153-58,194,

323, 328, 331 Demuth, Henry Frederick, 153-158, 332 Deutsche-Brüsseler Zeitung, 110,115-16 Deutsche-Tran^ösiche Jahrbücher, 50, 54, 62, 63-

-66,73 Deutsche Jahrbücher, 39, 47, 49 Dickens, Charles, 135-137 Dolleschall, Laurenz, 47-48 Dronke, Ernst, 120-21, 124, 126 . , Duff, Sire Mountstuart Eiphinstone Grant,

311-13 Duncker, Franz, 203-4, 206

Eccarius Johann Georg, 240-42, 259 Engels, Frederick,

acompanhando Karl Marx para a Bélgica, 86 alistamento no exército, 133 amizade com Karl Marx, 79-81 apetite carnal, 103-4, 145, 227-231 carácter, 79-81 cavaleiro, 198-99 com Julian Harney, 174-177 com Weitling, 95-6 começa a trabalhar na firma Ermen &

Engels, 144-5 , , . ;

conhecimento das infidelidades de Karl Marx, 154-55

contribuição para a A Ideologia Alemã, 88-93 contribuição pzïaA Sagrada Familia, 81-2 contribuição para O Manifesto Comunista,

107-111 críticas à estrutura de O Capital, 270-71 críticas ao jornalismo de Karl Marx, 120-21 denuncia Heinzen, 43-4 desavença com Karl Marx, 229-31 discurso fúnebre no fiinerai de Karl Marx, 329 em Paris (1846), 101-5 em poder do hirsuto, 41-2 encontros com os revolucionários da classe

operária, 92-5 encontrou Karl Marx morto, 328-29 escritor fantasma das fichas de Karl Marx

para a New American Cyclopaedia, 196-99 escritor fantasma dos artigos de Karl Marx

para o Tribune, 165-66, 191-3 expulso da Bélgica, 1848,126 fuga de Colónia, 1848,125-6 infância, 74-79 na Alemanha, 120-1, 125 na Assembleia Nacional Alemã, 122 na contribuição de Karl Marx para a

Internacional, 247-48 na preferência alemã, 324 nas revoluções de 1848, 115-16 no cataclismo internacional financeiro,

1885,197-98 no Marxismo, 67 no Neue VJoeinishe Zeitung, 132-33 no proletariado inglês, 182 nos hábitos burgueses de Karl Marx, 233 ódio ao funcionalismo prussiano, 125 passeios pior França, 127-8 predição da crise no mundo de negócios,

178-81,195 primeiras impressões de Karl Marx, 40, 72-73 relacionamento com os pais, 74, 76-77, 78,

79, 85-86 reunir notas para O Capital, 331 suporte financeiro para Karl Marx, 81, 87,

128-29,137-39,144-45,162-165,195-96, 206-207, 216-17, 218-19, 229-31, 232, 257, 258, 301

NOTAS FINAIS 359

tentativas de criar interesse à volta de O Capital, 271

trabalhos, 72-3, 77-80, 86-7

Engels, coronel Friedrich, 131-2 Ermen & Engels, 74, 78,144-5, 230 Ewerbeck, August Hermann, 102-3 EstaHne, 10-11

Favre,Jules, 287, 290-91 Fay, Margaret, 316-7 Feuerbach, Ludwig, 23, 35, 54-5, 82, 89-90 Flocon, Ferdinand, 116 Frankenstein (M. Shelley), 70 Freiligrath, Ferdinand, 137, 179, 236, 259 Freyberger, Louise, 154-6 Filosofia da Pobrei^a, A., 100

Gans, Eduard, 30, 35 Garibaldi, Giusepp, 239 Goethe, Johann Wofgang von, 17-8, 31-2 Gottschalk, Andreas, 122-4, 132 Grande Exposição, A, 217 Granville, Lorde, 287 Grün, Karl, 99-100, 102-3, 104 Guerra Franco-Prussiana, 277-9, ,295 Guilherme I, rei, 214-5 Guilherme IV, rei Frederico, 36, 39, 48-9, 85-

-6, 146-7, 149 Guilherme II, Frederico, 129

Harney, JuHan, 173-7, 237-8 Healey, Denis, 20 Hecker, Friedrich, 127 Hegel, G. W. F , 27-32, 35-40, 53-4, 70-1, 88-

-9,110,206,213,269 Heine, Heinrich, 28, 64-65, 66-67, 76, 96 Heinzen, Karl, 43-5, 86, 138 Herwegh, George, 62, 66-7, 104, 118-9 Hess, Moses, 40, 45, 82, 86, 99,108 Hon' dojou do?, 170 Hyndman, Henry, 319-21

«Incidente Haynau», 238-9 Inglaterra para Todos, ^ (Hyndman), 320-21

Jane Eyre (Bronte), 52 Jones, Ernest, 169, 173, 176, 182-3

Kinkel, Gottfried, 138, 168-172 Koppen, Karl Friedrich, 42-3 Kriege, Hermann, 98-9 Kugelmann, Ludwig, 248, 257-8, 271-2, 308-9

Lö BJforme, 116, 118 Lafargue, Paul, 26, 246, 252-3, 296, 302-4,

332 Lassale, Ferdinand, 55, 183, 186, 201-6, 212,

214-6,217,221,248,275 Le Lubez, Victor, 240, 244, 246 Le Moussu, Benjamin Constant, 302 Lenine, Vladimir Iliych, 10, 332 Leopoldo I, 86 Leske, Karl, 88 Lessner Friedrich, 41, 94,109,115, 154, 245,

246 Lev)r, Joseph Moses, 212-3, 216 Liebknecht, Wilhelm, 41, 72-3, 113-4,139-40,

191,194,208,223-24,248 Liga Comunista, 104, 108-10, 118, 119-21,

122-23, 137,138-39,148-49,165,169-70, 173-4, 208-10, 233-4

Liga dos Justos, 92-4 Liga dos Marginais, 92, 102-4,108 Lissagaray, Prosper Olivier, 283, 303, 305 Longuet, Charles, 283, 296, 302, 303-304, 322 Lucas, Betty, 51 Luis FiHpe, rei, 61-2, 86, 115

Manifesto Comunista, O (Marx e Engels) celebração da burguesia de, 111-3, 210 comparações com O Capital, 265-6 comparadas com as «Exigencias do Partido

Comunista», 118-20 concluindo a ameaça, 12 contribuição de Engels para, 108-10 críticas a, 113 estilo, 107-10,113-15 inconsistências em, 121-2 paralelismo com trabalhos mais antigos, 58-9 plagiado, 219-20 primeira tradução inglesa, 174-5

3 6 0 % ^ KARL MARX

recepção em Inglaterra, 222 ressonância contemporânea, 114 versões antigas de, 107-110

Mao, presidente, 9-10 Marx, Edgar, 104, 159,190-2 Marx, Eleanor, 14, 24, 53, 63, 68,152-53,154,

185,187-8,191-3,203,231,281,301-8,314, 318,322,324-6,329-30

Marx, Franziska, 157-8, 189 Marx, Heinrich (anteriormente Hirschel Marx),

18-9,20-5,33-4,116 Marx, Heinrich Guido («Fawkesp), 137,144,150 Marx, Henriette, 17, 19, 25,116, 212, 214, 229 Marx, Jenny (Jennychen), 24-5, 61,191,203,214,

216, 221, 228, 230-1, 294, 300, 301, 324-6 Marx, Johanna Bertha JuUe Jenny (anteriormente

Von Westphaler) atitude em relação ao casamento, 48 casa com Karl Marx, 50 casamento com Karl Marx, 22-5, 34-6 deprimida pela indiferença para com O

Capital, 269 efeitos perante a pobreza, 203-4, 215, 218-9,

227-8 elogios à vitalidade de Engels, 225-6 herança, 190, 229-30 intimidada por Karl Marx, 49-50 lamentos pela perda dos netos, 251 morte de, 322 opinião da Bélgica, 85 paternidade incompetente, 61 perseguida por Willich, 145-6 preocupada com a fidelidade de Karl Marx,

64 prisão, 115,124 procura angariar suporte financeiro para a

família, 140-1, 143

reacções à infidelidade de Karl Marx, 151-2, 153-56

saúde, 203-4,211-3, 319-22 segundo plano, 22-5 sobre a Alemanha, 213-14 sobre a fraca recepção de Críticas de Economia

Política, 206 sobre a Guerra Franco-Prussiana, 277 sobre Ferdinand Lassalle, 216-17

sobre Grafton Terrace, 190-93 sobre o carácter de Engels, 299 sobre o esforço da família Marx para sobre

viver, 139-41 torna-se secretária de Karl Marx, 160

Marx, Karl, Carácter

absorvido de imediato com as circunstâncias, 133-135

agente do Diabo, 9 alienação de si próprio, 68-70 amante de charutos, 254 apetência para duelos, 20-1, 145-6, 168,

207-8 arrogância, 237-241 consumismo, 61 denunciando rivais, 25-6, 42-3, 52-3, 59,

80-1,86-8,95-101,121-3,148-50,165-71, 209-11,213-14,309-10

desafiando as limitações fisicas, 18-9 desespero com dinheiro, 50-51 desordenação, 31-2, 60-1, 150-1, 253-4 distraidíssimo, 41 efeito da barba na percepção dos outros,

10, 38-40, 324-325 excesso estíh'stico, 56-57 falta de calma, 150 fanfarrão intelectual, 42-44, 94-96, 97,121-

-122,136-138, 206-208, 285-86 gregário isolado, 232-234 hábitos de bebida, 19-20,31-32,35-37,41-

-42, 44, 70-71, 84-85,150-151, 221-222 hábitos de trabalho, 31-32, 51-52, 60-61,

107-109, 202-204, 206, 253-54 impassibilidade, 47-48, 49, 226-229 isolado de si próprio, 231-233, 307-308 manuscritos ilegíveis, 78-80 paixão pelo xadrez, 111-2, 333 paixão por pseudónimos, 135-136 paternidade incompetente, 61-62 patriarca burguês, 70-1,158-62,190-4,229-

-30, 231, 257-8, 288-9, 293-4, 306-10 perfeccionismo obsessivo, 117-119, 202-

-203,281-282,311 prática oratória, 40-41 presença dominante, 106-108

ÍNDICE REMISSIVO ^ J 361

propensão para a folia, 20-21, 31-32, 35--37, 40-42, 44, 70-71, 84-85, 221-222

protelação, 107-109 prudência diplomática, 45-7 qualidade para o ensino, 138 Questionário Proust, 331-332 talento como contador de histórias 15, 68-

-69, 193 técnica de argumentação, 138-139

Infância e Mocidade Precoce

antigas ambições literárias, 26-29 doutorou-se em Filosofia, 35 infância, 14, 18-19,23-24 Local de nascimento, 13-18 Universidade de Berlim, 33-35 Universidade de Bona, 19-21, 35

Artigos, ensaios, peças jornalísticas e manuscritos, críticas e ¡

«A Última Trompeta do Juízo Final contra o Ateu Anticristo Hegel», 35

«Circular contra Kriege», 96-98 «Exigências do Partido Comunista», 117-118 «O Cavaleiro da Nobre Consciência», 168 «Para uma Crítica da Filosofia do Direito, de

Hegel: Uma Introdução», 55-57 «Sobre a Questão Judaica», 53-54, 61 «A Diferença entre as Filosofias Demo

crática e Epicurista», 33-35 A História da Vida de LMrde Palmerston, 185 A História Diplomática Secreta do Século XV7II,

185 A Ideologia Alemã, 86-91, 99 A Sagrada Família, 79-81, 255 As Fictícias Divisões na Internacional, 293 Crítica Económica e PoKtica, 86-87 Grandes Homens do Exílio, 136,149-150,166,

167-169 Grundrisse der Kritik derPolitischen Oekonomie,

197-198 Guerra Civil em França, A, 281-288 Herr Vogt, W),2\Çi-2\\ Manuscritos de Paris. 65-71, 197-198 Manuscritos filosóficos, yéírManuscritos de

Paris

O Debito Brumário de Fuis Bonaparte, 15,29, 166, 210, 277

Pobreza da Filosofia, 59, 98-100 Proclamação sobre a Polónia, 232 'Revelações a Respeito do Julgamento dos Comu

nistas da Colónia, 168 trabalhos antigos com título, 26-27 Um Comunicado à Classe Operária, 242-244 Valor, Preço e Fuero, 260-61

Fama

antiga, 37-38 na Grã-Bretanha, 219-223, 309-11, 316-320 torna-se infame, 284-290, 293-294

Família

afecto por Edgar Marx, 157-158,188-189 afecto pelas filhas, 23-25, 187-188, 191-

-193, 214-15, 303-304, 317-18, 320, 322-23, 325-26

afecto pelos netos, 307-8, 324-25 anfitrião de u m baile para as filhas, 230-31

desconfiança dos genros, 244-45, 249-251, 300-303

desmazelo com os pais, 31-32, 34-35, 228-29

filho ilegítimo, 151-155 influência paterna, 13-15 mãe segura o património, 35-36 opinião da sua mãe, 17-18 reacção à morte de Franziska Marx, 156 reacção à morte de Heinrich Georg Marx,

190-191 reacção à morte de Henrich Guido Marx,

148

Finanças

ã beira da pobreza, 140-142 doar dinheiro aos trabalhadores alemães

para armas, 114-115 efeitos da pobreza no trabalho, 203-204 especulações na Bolsa de Valores, 231 esperança na caridade de Engells, 79-80,

84-85,126-7,135-36,142,157-158,159--164,193-94,214,216-17,226-231,254--55, 256-57, 299

3 6 2 1 ^ KARL MARX

extravagâncias, 135-136,158-162,190-193, 229-30

fortunas aproveitadas, 190-192, 230-232 fugas aos credores, 189-191, 214-15 herança,35-36,114-115,118-119,212-13,

228-231

honorários do jornalismo, 158 mãe cancela dívidas, 214-15 na casa de penhores, 161-162 objecto de procedimento de dívidas, 34-35 património, 329 pedido de empréstimo ao padeiro, 208-209 recebe uma herança de Wilhelm Wolff,

229-230 sorte com o rendimento regular, 61,101-102 tentativa para arranjar um emprego lucra

tivo, 162-63, 219-20

tentativa para conseguir empréstimos, 220

Saúde

adolescente, 19-20 colapso nervoso, 29-30 deterioração grave, 321-328 efeito de escrever O Capital, perto de, 256-

-257 furúnculos insuportáveis, 68,150, 228-29,

230, 246-247, 249-50, 253-55, 270 influência psicossomática, 28-30,201-202,

203-04,210-12,268-70,280-81,304-305 visita a centros clínicos, 304-307

Influências

Bakunine, Tll-TlS Cartismo, 127-128, 170-176, 178-179 Darwin, 311-313 Engels, 70-72, 79-81 Feuerbach, 52-53, 86-87 Harney, 173 Hegel, 25-32, 33-38, 204-205, 211, 232-

-233, 267 Heine, 62-63 : Lasalle, 199-201,212-214 Owen, 170 Proudhon, 98-102 Ricardo, 223, 262 Shakespeare, 23-25

Smith (Adam), 223, 262 Swift, 263, 266-67 tradição de Trier, 14-16 Trémaux, 311-313 Tristram Shandy, 29, 265-266 Urquhart, 181-185 Von Westphalen (barão), 22-24 Welding, 92-97

Obras literárias

Escorpião e Félix, 29 Oulanem, 9-10, 29-30 poesia juvenil, 26-29

]/ida amorosa

apaixonado, 21-22 casamento, 51 compromisso, 22-25, 34-35, 47-49 pai de filho ilegítimo, 151-156

Movimentos

9 Grafton Terrace, 190-229 28 Dean Street, 147-190 44 Maidand Park Road, 307-328 64 Dean Street, 135-147 aplicados aos cidadãos ingleses, 305-306 Bélgica (1845), 83-114 Bona (1841), 35 chegada à Grã-Bretanha, 132-136 cidadania prussiana, 117-119, 212-214 Colónia (1842), 35-40, 41-48 Colónia (1848-49) «o ano louco», 118-132 expulso da Bélgica, 114 expulso de Paris, 84 Modena ViUas, 229-307 Paris (1843-45), 59-85 Paris (1848), 114-118 Paris (1849), 131-132 passeio pela Europa (1882), 322-325 saída da Alemanha (1848), 59-60 visita a Alemanha (1862), 212-215 visita a Alemanha (1867), 254-258

Molestamente policial

briga com os censores, 45-48

ÍNDICE REMISSIVO ^ > 363

molestado pelas autoridades prussianas, 122-124,125,128-132

preso, 114 sob espionagem, 144-46,150-151,157,289-

-90, 292

envolvimentos políticos

Associação Educativa dos Trabalhadores Alemães, 107-08,113,135,136-138,148--149

Associação Internacional do Operariado, 237-248, 270, 273-281, 284-298, 300

Clube dos Doutores, 29-30, 34, 36, 37-38, 39-40

Liga Comunista, 102, 106-108, 115-16, 117-119,120-121, 135,136-37, 146-47, 163,167-68,171-73, 206-07, 232

Liga Reformadora, 246-48

Pensamentos e ideias

advogados anulam herança, 116-117 à espera da revolução inglesa, XIA-Xl') anti-semitismo, 53-55, 209-211, 213-215,

292-293 atitude ambivalente para com a Grã-Bre-

tanha, 174-180 atitude para com o proletariado inglês, 179-

-181 aversão aos socialistas franceses, 300-304 bem-vinda III República, 278-279 carência antiga da visão de uma grande

arquitectura, 68-70 críticas à burguesia alemã, 126-127 críticas ao Governo belga, 124-125 descobertas comunistas, 44-45 desdém pela vida do campo, 89 esboço sobre as desvantagens de um estado

capitalista, 116-117 estudando o capitalismo, 10-11 experiência no comunismo patriarcal, 60 fantasias acerca do resultado da Guerra

Franco-Prussiana, 276-278 fascinação com a lenda de Prometeu, 49-

-50, 68-69 homossexualidade de Hegel, 51-53 materiaüsmo histórico, 88-90,98-101,232-33

mencionar Paris como centro da revolução europeia, 59

movimento do idealismo para o materialismo, 36-38

opinião da Gra-Bretanha, 219-223 opinião do carácter de um poeta, 25 opiniões do comunismo libertino, 63-64,

70 pensamento antigo de esforço do trabalho,

56-57 questões da inacessibilidade inglesa para a

revolução, 127-128 recusa perceptiva de que a Revolução

Francesa de 1848 será um malogro, 139--140

sobre a natureza da burguesia, 108-111 sobre a natureza da revolução, 64-65 sobre a tirania da religião, 54-57 sobre capital, 65-67 sobre comodidade, 260-263 sobre destino, 30-31, 36-37 sobre interesses militares, 278-279, 310 sobre o proletariado europeu, 65 sobre produtividade, 259-260 sobre propriedade, 67-68 sobre trabalho^ 67-69 vaga humanista, 69-70

Marx, Laura, 24, 154, 191, 227-229, 244-245,

249-251,254,281,300,330 Marx, Louise, 14 Marx, Sophie, 23 Marx-Engels Institute (Moscovo), 197 Mazzini, Giuseppe, 240-241, 285-286 Mein Pro:(ess gagen die Algemeine Zeitung (Vogt),

209-210 Metternich, principe Klemens Wenzel Nepo-

muk Lothar, 63-64, 113 Meyen, Eduard, 44 Mill,John Stuart, 276 Modern Thought, 321-322 Moll, Joseph, 91,102 Moore, Samuel, 113, 152

Napoleão III, 237, 275-276 National Zeitung, 208-209 Nechayev, Sergei, 290-291, 296-298

364 ^ > B KARL MARX

Neue Oder-Zeitung, 158,175, 178 Neue Rheinische Zeitung, 117-131, 148,166, 172,

272 Neue Rheinische ZeitungPolitisch-ökonomische Revue,

139-140 New York Daily Tribune, 163-16A, 178,183-84,

202-3,212,215,220 New Yorker, 10 Nicolau I, czar, 47-48 Northern Star, 137, 170-172 Novos hegelianos, 28, 29-30, 33, 37-38, 43-

-47,70-71,75,86-87,87-88

Obolensky, princesa, 276 Observer, 289 O'Connor, Feargus, 173 Odger, George, 239-40, 249-50, 286

Pali Mall Gazette, 279, 289, 290-1 Palmerston, Lorde, 147, 174, 184-7, 238 Partido Social Democrata Alemão, 20,139, 323 Partido Trabalhista Britânico, 12, 20 Payne, Robert, 11,240,288 People's Paper, 177-8 Perron, Charles, 277 Pfander, Karl, 139, 154, 245-6 Philips Lion, 144-5, 214, 216, 220, 231, 233 Pieper, Wilhelm, 26, 160-63, 167, 176, 190 Popper, Karl, 260 Prawer, professor S.S, 26 Prometeu Ubertado (Shelly), 51-2, 70 Proudhon, Pierre Joseph, 61, 72, 99-103, 104,

242,246

Quarterly Review, 239, 289 Que é a propriedade. Oí", 11

Red Republican, 114, 174, 238 Rheinishe Zeitung, 38-40, 41, 42, 44-50, 54, 73,

206, 236 Ricardo, David, 67, 69, 225, 264 Ruge, Arnold, 32, 39, 47, 49-50, 53-54, 57,

62-67,152 Rutenberg, Adolf, 39, 45-6, 48 ' Ryazanov, David, 67

Sand, George, 275 Schapper, Karl, 93, 104, 118, 119, 125, 169 Schramm, Conrad, 141, 148-9, 176 Schramm, Rudolph, 150-2 Schurz, Carl, 123-4 Schwarzschild, Leopold, 10-11 Semprun, Jorge, 16 SheUey, Mary, 70 Smith, Adam, 67, 69-70, 225, 264 Sorge, Friedrich Adolph, 280, 321 Southcott, Joanna, 11 Spectator, The, 145-6 Stahl, Julius, 35 Stern, Laurence, 267-8 Stieber, Wilhelm, 146 Stirner, Max, 90-2 Sue, Eugène, 83 Sung, Kim 11,10 Swift, Jonathan, 265-6

Thiers, Adolphe, 281-5 Tiwj.Tk, 281,288,296 Tolain, Henri-Louis, 246-7, 250-1 Trémaux, Pierre, 314-15 Trista Shandy (Sterne), 31, 267 Turkey and Its Resources (Urquhart), 183-4

Uma Contribuição para a Crítica da Economia PoKüca, 200-8, 225, 235-6

União Soviética, 10-12 Universidade de Jena, 36-7 Urquhart, David, 183-7

Vehse, Karl Eduard, 170 Viagens de Gulliver, As, 265 Vida e o Ensinamento de KarlMarK, A (Lewis),

187 Vogt, Karl, 151,208-211 von Bornstedt, Adalbert, 118-9 von Brüningk, barão, 170 von Brüningk, baronesa, 168,170-71 von Hatzfeldt, condessa, 212, 214-6, 220 von MüUer-Tellering, Eduard, 150-1 von Savigny, Friedrich Karl, 30-1 von Schaper, Oberpräsident, 48 von SchelHng, F W, 36-7, 54

INDICE REMISSIVO 4^5^-365

von Schweitzer, Johann Baptist, 248 von Struve, Gustav, 138, 152 von Westphalen, barão Ludwig, 24-6, 37, 49 von Westphalen, baronesa Caroline Heubel,

25,52,63,87,192,231 von Westphalen, Edgar, 25, 86, 251 von Westphalen, Ferdinand, 25, 146,170 von Westphalen, Heinrich Georg, 192 Vorwärts!, 65-6, 85-6, 103

Wagner, Richard, 273, 275 Was Karl Marx a Satanist? (Era Karl Marx um

adepto de Satã?) (Wumbrand), 11 Weber,J.M,210 Weitung, Wilhelm, 93-9, 105, 240 Weydemeyer, Joseph, 86-7, 95-6, 138,142,

157-8, 167-8 WilHch, August, 133-4,148-9,169-171 Wilson, Edmund, 268, 269-70 Wilson, Harold, 260 Wolff, Wilhelm, 104,119-20, 231-2, 316 WoodhuU, Victoria, 292, 297 World, 290^1

Wurmbrand, reverendo Richard, 11-2 Wyttenbach, Hugo, 20-21

INDICE

Introdução 9 1. O Marginal 15 2. O Pequeno Javali Selvagem 35 3. O Rei Corrupto 61 4. O Rato no Sótão 85 5. O Papão Aterrador 105 6. O Megalossauro 133 7. Os Lobos Famintos 157 8. O Herói a Cavalo 187 9. Os Buldogues e a Hiena 225

10. O Cão Peludo 253 11. O Elefante Velhaco 271 12. O Ouriço Tosquiado 299

P.S. 1: Consequências 329 P.S. 2: Confissões 331 P.S. 3: Regicídio 333 Agradecimentos 335 Notas Finais 337 índice Remissivo 357

rancis wheen e um jornalista e escritor

e reconhecido talento.Trabalhou como

freelancer em jornais e revistas, entre os quais

The Statesmanjhe Independente

The Guardian. Foi ainda como locutor na BBC.

Na sua obra constam títulos como a famosa

biografia de Tom Driberg, que esteve nomeada

para o prémio Whitbread. KarlMarxM

considerado pela crítica especializada

o melhor livro do ano de 1999.

ó ' • ; HEMINGWAY

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t ; : : / ARMINDO MONTEIRO

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