Wieviorka

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5 Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 9(1): 5-41, maio de 1997. ESTRATÉGIAS DE INTERVENÇÃO PO- LICIAL NO ESTADO CONTEMPORÂNEO O novo paradigma da violência MICHEL WIEVIORKA RESUMO: O autor procura redimensionar o conceito de violência dentro do atual estado de globalização mundial. Crise internacional, narcotráfico, derrocada do bloco socialista no leste europeu, políticas assistenciais de organismos internacionais, conceitos de desenvolvimento e de sub- desenvolvimento, terrorismo, sectarismo político e religioso, novas conceituações culturais e sociais são temas trabalhados pelo autor com vistas ao estabelecimento de um novo paradigma da violência. violência não é a mesma de um período a outro. Nesse sentido, o historiador Charles Tilly faz um esclarecimento útil quando se propõe a caracterizar cada grande época histórica que ele estuda por seu “repertório” específico das formas da ação, e mais par- ticularmente da violência (cf .Tilly, 1986). Precisamente, as transformações recentes, a partir dos anos 60 e 70, são tão consideráveis que elas justificam explorar a idéia da chegada de uma nova era, e, assim, de um novo paradigma da violência, que caracterizaria o mundo contemporâneo. Quer se trate das manifestações tangíveis do fenômeno, e suas representações ou da maneira como as ciências sociais o abordam, mudanças tão profundas estão em jogo que é legítimo acentuar as inflexões e as rupturas da violência, mais do que as continuidades, que por isso se deve para tanto subestimar. Acrescentemos que, deixando de lado como aqui o faremos, a questão do aperfeiçoamento tecnológico e científico no domínio das armas, estaremos nos privando de elementos que certamente vão no sentido da idéia de um novo paradigma 1 . UNITERMOS: violência, Estado, violência do Estado, criminalidade, segurança, políticas públicas, políticas internacionais, globalização. A Diretor do Centre d’Analyse et d’Inter- vention Sociologiques CNRS-Paris, França

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  • 5WIEVIORKA, Michel. O novo paradigma da violncia. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 9(1): 5-41, maio de 1997.Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 9(1): 5-41, maio de 1997. ESTRATGIAS DEINTERVENO PO-LICIAL NO ESTADOCONTEMPORNEO

    O novo paradigma da violnciaMICHEL WIEVIORKA

    RESUMO: O autor procura redimensionar o conceito de violncia dentro doatual estado de globalizao mundial. Crise internacional, narcotrfico,derrocada do bloco socialista no leste europeu, polticas assistenciais deorganismos internacionais, conceitos de desenvolvimento e de sub-desenvolvimento, terrorismo, sectarismo poltico e religioso, novasconceituaes culturais e sociais so temas trabalhados pelo autor com vistasao estabelecimento de um novo paradigma da violncia.

    violncia no a mesma de um perodo a outro. Nesse sentido, ohistoriador Charles Tilly faz um esclarecimento til quando seprope a caracterizar cada grande poca histrica que ele estudapor seu repertrio especfico das formas da ao, e mais par-

    ticularmente da violncia (cf .Tilly, 1986). Precisamente, as transformaesrecentes, a partir dos anos 60 e 70, so to considerveis que elas justificamexplorar a idia da chegada de uma nova era, e, assim, de um novo paradigmada violncia, que caracterizaria o mundo contemporneo. Quer se trate dasmanifestaes tangveis do fenmeno, e suas representaes ou da maneiracomo as cincias sociais o abordam, mudanas to profundas esto em jogoque legtimo acentuar as inflexes e as rupturas da violncia, mais do que ascontinuidades, que por isso se deve para tanto subestimar. Acrescentemosque, deixando de lado como aqui o faremos, a questo do aperfeioamentotecnolgico e cientfico no domnio das armas, estaremos nos privando deelementos que certamente vo no sentido da idia de um novo paradigma1.

    UNITERMOS:violncia,Estado,violncia do Estado,criminalidade,segurana,polticas pblicas,polticasinternacionais,globalizao.

    ADiretor do CentredAnalyse et dInter-vention SociologiquesCNRS-Paris, Frana

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    1. Mudanas

    a. Novos significadosA violncia, hoje, renovou-se profundamente nos significados de

    suas expresses mais concretas, e insistiremos aqui, no essencial, nas mudan-as que a caracterizam desde o fim dos anos 60. Uma perspectiva de maislonga durao, tomando por exemplo como perodo de referncia o sculoque passou, no comprometeria a hiptese de um novo paradigma que vamosexaminar; ela sugeriria simplesmente, talvez, que entre as significaes maisdecisivas de hoje, algumas se assemelham s que caracterizaram o incio daera industrial, quando as classes contestadoras nascentes eram percebidas comoclasses perigosas ou que, em um pas como a Frana, fenmenos de bandos econdutas de violncia juvenil imputadas aos Apaches ocupavam as colunasdos jornais2.

    a1. Importantes nos anos 70 e ainda nos 80, a violncia poltica e oterrorismo de extrema-esquerda ligados longa desestruturao das ideolo-gias, dos regimes e dos partidos de inspirao marxista-leninista, assim comoa uma recusa cada vez mais artificial em perceber o declnio histrico domovimento operrio regrediram em toda parte; Ao Direta, BrigadasVermelhas, Clulas Revolucionrias, Faco Exrcito Vermelho, etc. Esse ti-po de organizao est esgotado em praticamente todo o mundo, quaseliquidado historicamente o que no quer dizer que ser preciso excluir, nofuturo, o retorno de ideologias marxistas-leninistas e violncias que nelas seinspiram, como j se v hoje no Mxico, onde a guerrilha do ERP (ExrcitoPopular Revolucionrio) adota orientaes que lembram sob vrios aspectos,os anos 60 e 70.

    Quase simetricamente, a violncia de extrema-direita, animada porprojetos de tomada do poder do Estado, tambm regrediu, muitas vezes subs-tituda por condutas que no visam mais assegurar a seus atores o controle doEstado mas, ao contrrio, a manter atividades privadas fora do controle doEstado. A experincia italiana constitui um caso espetacular. Nos anos 70 eat a metade dos anos 80, os terrorismos de extrema-esquerda e de extrema-direita queriam, uns, acabar com o Estado imperialista das multinacionais,outros, criar o clima favorvel a um golpe de Estado com a ajuda de umaestratgia da tenso. Desde ento, as violncias maiores contra o Estadoforam antes de tudo destinadas a proteger as atividades econmicas particularesde grupos mafiosos.

    a2. A partir dos anos 50, lutas de libertao nacional, eventualmen-te associadas a orientaes marxistas-leninistas e que s vezes assumiam afeio de guerrilha, deram origem a novos regimes e a novos Estados. Suaviolncia no mais to importante, em escala mundial, como nos anos 50 e70, mesmo se algumas se perpetuaram, como por exemplo na Europa (a expe-rincia basca), na Irlanda do Norte e no Oriente Mdio, com o movimento

    1 Sobre esse ponto, cf.

    Michaud (1996).2 Sobre os Apaches,

    esses jovens cujasbrigas e condutas de-linqentes fazem decerta maneira pensarnos jovens dos atuaisbairros de relgation*,quando tomados deraiva ou dio, e cujaexperincia foi imor-talizada no cinemape lo pe r sonagemCasque dor (1952) in-terpretado por SimoneSignoret, cf. Pierret(1996).

    * O termo relgationsignificava uma pena-lidade que consistiana internao perp-tua dos reincidentescriminais em algumacolnia francesa. Ad-quiriu, depois, o signi-ficado de exlio emum lugar determinadosem que haja perda dedireitos civis ou pol-ticos, lugar este sepa-rado, desqualificado emediocre. Assume,atualmente, a deno-minao dos lugaresnos quais vivem osexcludos ou se-gregados da socieda-de francesa, como osretratados pelo filmeLa Haine (1995), deMathieu Kassovitz,ganhador do Csar nomesmo ano. Comono existe termo equi-valente em portugus,optamos por manter ooriginal em francs[nota do editor].

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    palestino, e outras novas surgiram, mais recentemente, particularmente naChechnia. Essa constatao no quer dizer que assistimos dissoluo doslaos que associam eventualmente violncia e nao, pois estes podem revestir-se de outras significaes afora aquelas que dizem respeito ao tema dalibertao nacional. Com efeito, o nacionalismo, inclusive no interior dos pasesmais potentes, constitui um fenmeno contemporneo maior, freqentementeligado a uma temtica de extrema-direita, mas menos diretamente vinculado aexpresses marcadamente violentas do que o discurso espontneo tende asugerir. Na Europa, pelo menos, o nacional-populismo e a emergncia dasdireitas radicais so fenmenos que, no conjunto, no esto associados amanifestaes violentas, simplesmente porque a violncia, ainda que surjaaqui ou ali, torna-se rapidamente contraditria com a respeitabilidade requeridapor um projeto de acesso ao poder pela via eleitoral. A violncia nacionalista,desse ponto de vista, limitada, freqentemente mais tnica, ou at racial, doque propriamente nacionalista, e associada no tanto idia de assegurar alibertao de uma nao, mas de proteg-la de ameaas externas e purg-la detudo que poderia manchar sua homogeneidade. A idia de nao, ontem foraconsidervel de emancipao, hoje associa-se no tanto a condutas violentas,mas, muito mais, a ideologias reativas cultivadas por uma comunidade ou poralguns de seus segmentos preocupados com o fechamento econmico e com apureza cultural, e mesmo racial (cf. Wieviorka, 1997).

    a3. O declnio do movimento operrio e a perda do lugar centraldas relaes de produo industriais tornam improvveis a idia de uma liga-o entre importantes violncias sociais e a insero de seus agentes numconflito estrutural de classe, no sentido habitual da expresso. No mais aluta contra a explorao, a sublevao contra um adversrio que mantm comos atores uma relao de dominao, e sim a no-relao social, a ausncia derelao conflitual, a excluso social, eventualmente carregada de desprezocultural ou racial, que alimentam hoje em toda parte do mundo, inclusive naEuropa ocidental, condutas amotinadoras ou uma violncia social mais difu-sa, fruto da raiva e das frustraes. Nesse contexto, a violncia no somenteum conjunto de prticas objetivas: ela tambm uma representao, um predi-cado que, por exemplo, grupos, entre os mais abastados, atribuem even-tualmente, e de maneira mais ou menos fantasmtica, a outros grupos, geral-mente entre os mais despossudos.

    a4. Enfim, o elemento mais espetacular da renovao da violnciahoje dado pelas referncias crescentes de seus protagonistas a uma identi-dade tnica ou religiosa. Essas constituem um recurso cultural eventualmentemobilizado de maneira violenta para fins polticos, por vezes alimentandotambm uma barbrie homicida extrema, bem alm dos simples problemaspolticos. Tais referncias podem aparecer como ressurgimento, como se oespao de violncias tradicionais, ou clssicas, apenas se ampliasse sob o efeitode condies favorveis. De fato, apesar de uma atitude efetivamente tradi-cional, e at fundamentalista, trata-se no mais das vezes, de construes his-

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    tricas recentes que nada tm de natural, e que Jean Franois Bayart analisabem ao explicar que esto no essencial relacionadas com uma estratgia na-cional, por um lado, com sonhos e pesadelos, por outro, aos quais ns aderi-mos porque eles nos encantam ou nos aterrorizam (cf. Bayart, 1996).

    Jean Baudrillard tem razo ao afirmar que em lugar de lastimar oressurgimento de uma violncia atvica, preciso ver que nossa prpriamodernidade, nossa hipermodernidade, que produz esse tipo de violncia eesses efeitos especiais dos quais o terrorismo tambm faz parte (cf.Baudrillard, 1995).b. Percepes e representaes.

    A violncia mudou, tambm, pois se considera no mais o fenmenono que ele apresenta de mais concreto, de mais objetivo, mas as percepesque sobre ele circulam, nas representaes que o descrevem. No interior dospases ocidentais, a comear pela Frana, a violncia subjetiva, tal qual sentida, apresenta como primeira caracterstica fundamental a de parecer terperdido qualquer legitimidade no espao poltico, quase a ponto de significaro mal absoluto; ela o que a sociedade, unnime, deve proscrever e combatercompletamente, tanto em seu interior como em seu exterior. Nos anos 60 e 70,a violncia podia ainda ser justificada ou compreendida por intelectuais queeventualmente se inscreviam eles prprios em uma tradio revolucionria,anarquista ou ainda marxista-leninista; ela podia ser teorizada ou sustentadacom uma certa adeso, e ser tolerada na esfera poltica. Uns admiravam asguerrilhas e faziam do Che seu heri; outros exaltavam mais a violnciasocial ou se esforavam em suscit-la ou anim-la. O pensamento de FrantzFanon, centrado na experincia colonial, continha a idia de ruptura violenta,uma teorizao que Jean-Paul Sartre radicalizava em seu clebre prefcio aolivro Os condenados da terra (cf. Sartre, 1961) o mesmo Sartre que, algunsanos mais tarde, encorajaria aos caminhos de uma ao violenta os maostascom os quais debatia (Gavi, Sartre & Victor, 1974). Algumas das reaes nomomento da revoluo iraniana, saudada por exemplo na Frana por MichelFoucault, constituem talvez uma ltima expresso dessas correntes de opi-nio e dessas simpatias polticas e intelectuais em relao ao processo e aosagentes tendo como recurso a violncia e adquirindo uma legitimidade cadavez maior que tratava de trazer resposta, de resto o mais das vezes limitada, satrocidades e aos abusos cometidos por um poder ditatorial ou autoritrio dotipo, por exemplo, dos que caracterizaram a Amrica latina at os anos 80.Desde ento, o espao intelectual e poltico no qual a violncia poderia ser oobjeto de tomadas de posio compreensivas, ou mesmo abertas, limitou-sede forma singular: o fenmeno necessariamente a marca do que precisorecusar, e o consenso muito grande. No h nenhum debate filosfico, moralou tico a respeito da violncia, e se vozes se fazem ouvir a partir da sociedadecivil para pedir ao Estado que faa uso de sua fora no estrangeiro, porexemplo, em situaes dramticas do ponto de vista dos direitos humanos,

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    numa perspectiva humanitria, eventualmente combinada causa ecolgica,em termos nos quais toda referncia positiva violncia banida. Os intelec-tuais, num mundo que no mais estruturado a partir da bipolaridade Leste/Oeste, em sociedades onde o princpio de diviso e conflito inerente s rela-es de produo industrial tornou-se secundrio confrontado com identida-des nacionais ou religiosas cujos combates eles se recusavam a apoiar, em geraldistanciaram-se da idia de violncia.

    Essas mudanas tm por toda parte uma implicao fcil de se obser-var: na falta de debate, na falta de agentes polticos ou intelectuais capazes deromper o consenso relativo violncia, esta transforma-se necessariamenteem objeto de percepes e de representaes que funcionam por excesso e porcarncia.

    Por excesso: a alteridade, a diferena cultural, religiosa ou de outrotipo, so objeto de fantasmas e medos. Os atores que supostamente as incar-nam so suscetveis de serem diabolizados, a tal ponto que lhes freqente-mente imputada uma violncia virtual que seria quase natural, essencial, aopasso que na verdade eles dela mantm grande distncia, se que ela de fatoexiste. sobretudo o caso da imigrao, nos pases que a recebem, porque osimigrantes so muitas vezes tratados como raas perigosas; igualmente ocaso, que eventualmente prolonga o anterior da religio, a comear pelo Isl,correntemente associado ao Islamismo. Este ltimo est muitas vezesefetivamente associado a violncias extremas, como o martrio mortfero dosbassidj iranianos, por exemplo, to bem estudados por Farhad Khosrokhavar(1992); mas tambm objeto de suspeitas que podem eventualmente consti-tuir um indicador da cegueira geral de uma sociedade sobre si mesma. Assim,o atentado de Oklahoma City, nos Estados Unidos (19/04/95, 168 mortos,muitas dezenas de feridos) foi a princpio atribudo maciamente ao terrorismoislmico, antes que o pas, estupefato, descobrisse os autores: dois antigosmilitares americanos de ideologia de extrema-direita.

    Por carncia: a violncia, na medida em que se inscreve no pro-longamento de problemas sociais clssicos, ou que no questiona asmodalidades mais fundamentais da dominao, suscetvel de ser negada oubanalizada. assim, para continuar com o exemplo dos Estados Unidos, queno somente esse pas dificilmente reconhece sua violncia internacontempornea, como teve de esperar os anos 60 para aceitar dedicar-seseriamente a enfrentar algumas das pginas mais violentas de sua histria3;do mesmo modo na Frana, as violncias sociais dos pequenos comerciantesou dos agricultores, figuras solidamente instaladas em um lugar perfeitamenterespeitvel do imaginrio nacional, so minimizadas em relao principalmentequelas que se desenvolvem nos bairros de relgation e que so objeto deuma dramatizao e de uma amplificao meditica considervel, eeventualmente fantasmtica, sem base tangvel. Do mesmo modo ainda, foramprecisos muitos anos, sempre na Frana, para que fosse aceita a idia de umaligao entre o sentimento de insegurana, potente nesse pas desde o fim dos

    3 Cf. Yves Michaud(1978), que lembratoda a importncia dacomisso criada em1968 a pedido doPresidente LyndonJohnson, tendo comofuno ir to longequanto o conheci-mento pode faz-lo napesquisa das causasda violncia e dosmeios de preveni-la,tendo como projeto,descobrir a violnciadissimulada sob ahistria pacfica dosEstados Unidos.

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    anos 70, e a violncia objetivamente crescente da criminalidade, da delinqnciae sobretudo das pequenas incivilidades: essa idia chocava muito a sensibilidadepoltica que acabava de chegar aos negcios com a primeira eleio presidencialde Franois Mitterand (1981) e que, para poder encontrar um amplo espaode debate, parecia excessivamente ligada s representaes e ao discursosecuritrio da direita para poder ser aceita, e mesmo ouvida, esquerda.

    No somente a violncia no possui hoje legitimidade no espaopblico das democracias ocidentais, em seus debates polticos e intelectuais,em sua capacidade de tambm se engajar em intervenes armadas quepoderiam fazer mortos de seu lado, mas alm disso e essa uma segundacaracterstica importante da poca contempornea, ela funciona cada vez maiscomo categoria geral para apreender a vida social bem como as relaesinternacionais. Ela constitui assim uma categoria bem mais central do que erapara pensar o interno e o externo, a sociedade e o meio que a cerca. O caso daFrana impressionante, e talvez mesmo excepcional, pois a violncia invadeos meios de comunicao e a opinio pblica, quer se trate dos subrbios ebairros de relgation, da escola pblica, dos meios de transporte, dasincivilidades que alimentam essencialmente o sentimento de insegurana, oudo terrorismo islmico, cujas expresses mais recentes permitem fundir emum mesmo sentimento a imagem de uma ameaa interna, social, juvenil eurbana, e a de uma ameaa vinda de fora, religiosa e rabe4.

    possvel que no futuro se reabra um espao de legitimidade polticae intelectual para a violncia, conforme sugere, ainda muito modestamente, aimagem de mrtir que caracteriza hoje em alguns bairros de relgation, KhaledKelral, um dos protagonistas do vero de 1995 na Frana. Por outro lado,conforme veremos mais adiante, certas violncias sociais, como as dosagricultores por exemplo, mal so percebidas enquanto tais, e se beneficiamde uma ampla compreenso por parte da opinio pblica. Enfim, o renasci-mento de correntes de esquerda contestadora, e o apoio intelectual que aacompanha, neo-esquerdista, seno neomarxista, esboa-se em alguns pases,a comear pela Frana, e poderiam contribuir, tambm neste caso, para areinveno de temticas sensveis idia de que a violncia revolucionria,parteira da histria, traz uma forma de resoluo das contradies quesupostamente se encontram no centro do sistema social. Enfim, e sobretudo,as percepes e as representaes da violncia aqui analisadas, do ponto devista da Frana, podem mudar consideravelmente, como se v por exemploem pases onde ela tolerada ou suportada, percebida quase como inscrita nofuncionamento normal da sociedade. Assim , por exemplo, no caso do Brasilou da Rssia. Mas, no conjunto, estamos bem distantes dos debates dos anossessenta e setenta.

    c. As cincias sociais face violnciaEnfim, a violncia muda se consideram-se os modos de abordagem

    que, para apreend-la nas cincias sociais, no podem mais ser os que antes

    4Sobre esse terroris-mo e seus efeitos so-bre o funcionamentoda democracia e doEstado de direito, to-marei a liberdade deremeter ao meu livro(Wieviorka, 1995).

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    eram utilizados.H diversos raciocnios suscetveis de constituir instrumentos de

    compreenso da violncia, diversas tradies sociolgicas, e pode-se mesmoconsiderar que no h teoria geral que no seja capaz de contribuir com umenfoque especfico para a anlise da violncia. Mas, se possvel apresentaros principais modos de abordagem da violncia5, indicando para cada um suaquota de contribuio e seus limites, e refletir sobre as possibilidades que hde acumular conhecimentos, logo integrando as diversas proposiesdisponveis em teorias complexas, talvez ainda mais interessante ver como,segundo as pocas, certas idias exercem uma influncia ou tm um impactopredominante.

    Ao fim da II Guerra Mundial houve, por um momento, o sonho deconstruir uma abordagem total da violncia, integrando a contribuio de todasas disciplinas das cincias sociais e humanas, psicologia, antropologia, hist-ria, o que devia permitir ir do indivduo e de sua psicologia s relaesinternacionais. Foi o projeto da UNESCO, que Pierre Hassner (1995) resga-tou recentemente6, e que devia ento assegurar a compreenso, num mesmoesforo geral, tanto dos conflitos entre pai e filho quanto das tenses nascidasda Guerra Fria. Projeto que foi um fracasso. E se muitos raciocnios podemser identificados dessa poca, os mais influentes nos anos 50 e, depois, 60,oscilavam entre dois pontos de vista, eventualmente combinados. Por um lado,a violncia estava ligada noo de conflito; e por outro, ela era associada imagem da crise e analisada ento como a conseqncia ou a manifestao deum estado mais ou menos patolgico do sistema considerado, por exemplo, osistema social. Tratar da violncia, com efeito, consistia em considerar que elapossua seu lugar nos clculos e nas estratgias dos agentes que tomavamparte num conflito, ou admitir que ela vinha traduzir uma insuficiente integra-o dos agentes num sistema.

    No primeiro caso, a violncia relevava interaes entre agentescapazes de utiliz-la de um modo instrumental; ela podia ser pensada nocontexto de modos de aproximao que apelavam para a teoria dos jogos, oua dos conjuntos organizados. Nessa perspectiva, ela era um elemento virtualou atual no funcionamento e nas transformaes de sistemas societais ouintersociais, o que ilustra bem as idias de Thomas Schelling (1963) queexerceram uma influncia considervel, que davam uma grande importncia racionalidade dos atores e ao fato de que suas decises, inclusive as de usar daviolncia, eram interdependentes.

    No segundo caso, a violncia era largamente concebida no quadrode um neofuncionalismo para o qual ela vinha traduzir as disfunes, ascarncias, e suas conseqncias sobre os atores, em termos de frustraorelativa, por exemplo7. E, para alguns pesquisadores, essas carncias edisfunes faziam parte do conflito, da capacidade dos agentes de funcionarcom base no conflito considerado necessrio integrao da sociedade, ou detodo sistema de relaes internacionais. A idia era, como lembra oportuna-

    5 Cf. James B. Rule(1989) e, em francs,o anexo terico demeu livro (Wieviorka,1988).

    6 Cf. as pginas 83-84

    que que retomam umtexto de 1964.

    7 Cf. o que foi a ten-

    tativa mais ambici-osa, e que veio comefeito a encerrar essapoca: Ted RobertGurr (1970).

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    mente Pierre Hassner, de que os conflitos podem, numa certa medida,contribuir para a integrao de sistemas ou organizaes, cuja integraoinsuficiente pode ser uma fonte dos conflitos e de sua queda na violncia(Hassner, 1995, p. 90).

    O que nos coloca frente a duas idias, mais opostas que com-plementares. A primeira de que a violncia pode inscrever-se em relaes,sob uma forma sobretudo instrumental, e dispensar a comunicao e a relaoentre atores; a segunda de que ela pode vir a traduzir, ao contrrio, um dficitou dificuldades nas relaes, na comunicao e no funcionamento da relaoentre atores, o que a leva a funcionar ento sobretudo de maneira expressiva.Mas preciso acrescentar imediatamente duas observaes. A primeira quea violncia instrumental pode ser utilizada por um ator para tentar penetrar ointerior de um sistema de relaes institucionalizadas a idia principal dateoria dita da mobilizao dos recursos, qual os nomes de Charles Tilly(1978) e de Anthony Oberschall (1972) esto particularmente ligados, e cujainfluncia foi considervel nos anos 70 e 80. E que mesmo no interior de umarelao estrutural ou sistmica, o comum da violncia ter sempre umadimenso que ultrapasse o quadro da simples racionalidade instrumental, umadimenso que poderamos chamar (um pouco rapidamente sem dvida)irracional, espontnea, ou expressiva, e que vai alm do conflito o que jpercebia Karl von Clausewitz em De la guerre, quando definia a guerra comouma estranha trindade composta da violncia original de seu elemento que preciso considerar como uma pulso natural cega, do jogo da probabilidade edo acaso que fazem dela uma livre atividade da alma, e da natureza subordinadade um instrumento poltico, pelo qual ela salta para a pura compreenso (apudHassner, 1995, p. 37).

    Para tomar a medida das principais mudanas tericas relativas anlise da violncia pelas cincias sociais, o melhor considerar o caminhopercorrido desde a poca em que o fenmeno podia ser massiva e diretamenterelacionado a conflitos, a seu funcionamento ou s suas disfunes, ou a umacrise. Hoje, a anlise insiste cada vez mais em dois tipos de idias, s quaisretornaremos, e que so resumidas atravs de expresses como: fragmenta-o, caos, decomposio. Todas essas idias sugerem um grande distancia-mento com relao s noes de conflito e de crise. A violncia continuacertamente a ser pensada atravs de categorias em que a oposio entre ins-trumentalidade e expressividade encontra seu lugar, mas nem sua eventualinstrumentalidade, nem sua capacidade de atingir os piores extremos, semlimites, no remetem imagem de um conflito, ou mesmo de crise. Nos casosextremos, ela parece autonomizar-se, tornar-se um fim em si, ldica, puramentedestruidora ou autodestruidora, por exemplo. O que a transforma em certoscasos em um fenmeno de pura afirmao do sujeito. A anlise neste casotende a dissociar o sistema e os atores. Ela centra-se mais sobre um, ou maissobre os outros, e, em todo caso, ela constata sua separao sem propor aimagem de mediaes conflituais entre esses dois plos da reflexo, sem

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    tambm dar a pensar que ela traduz uma simples desregulao do sistema emquesto trata-se muito mais de uma mutao, uma mudana radical, o queexprime alis muito bem o recurso corrente a expresses com ps (ps-industrial, ps-colonial, etc.), que designam todas uma superao, bem maisque um simples estado de um sistema. A violncia, inclusive em suas expressesmais localizadas ou limitadas, explicada por mudanas em nvel mundial, aglobalizao da economia, ou o fim da Guerra Fria, temas que retomaremos;ou ento ela reduzida aos clculos ou subjetividade dos atores,eventualmente sua loucura; e, entre os dois registros, o do sistema e o doator, o pensamento insiste sobre o que desfeito, liquidado, as relaes sociaisda era industrial, o sistema bipolar das relaes internacionais at a queda domuro de Berlim, por exemplo, sem mostrar-se capaz de desenhar a imagem deconflitos, ou mesmo de processos de desestruturao de relaes conflituais,ou ainda a das disfunes sistmicas.

    Para que haja conflito, sistema de atores em relaes conflituais, preciso de um lado atores, de outro problemas que eles reconhecem comocomuns, e de outro ainda possibilidades para eles de se oporem sem se destruir,e, portanto, de mecanismos polticos ou institucionais. E para que se possafalar da crise, necessrio que haja um sistema, em dificuldade, certo, masque permanea ainda perceptvel como tal. Se a violncia parece hoje toameaadora ou dramtica, no pelo fato da multiplicao dos anti-atores,protagonistas externos a qualquer sistema de ao, ou de uma violncia exclu-sivamente vinculada lgica da fora e do poder, sem debate nem relaopossvel com eles bem como no tambm em virtude das carncias no queconcerne aos procedimentos e processos que permitem o funcionamento doconflito, a relao; no ainda porque os sistemas que funcionaram desde ofim da II Guerra Mundial, sociais, ou internacionais, fazem mais do que setransformar: eles se desfazem a ponto de a noo de crise ser to frgil paradar conta de sua desestruturao? No tambm porque pessoas e grupos sepercebem como negados, impossibilitados de manifestarem sua prpriasubjetividade, arrebentados ou destrudos pelo desprezo de outras pessoas egrupos melhor situados e que se recusam a reconhec-los como sujeitos?

    Ainda que importantes distines oponham hoje os pensamentosmais bem estabelecidos, eles apresentam um ponto em comum: a maior parteconsidera que o mundo cada vez mais um universo sem atores, eexclusivamente atrado por essa lei da selva que o mercado, pelo caos oupelo choque das identidades e das culturas, bem mais do que por relaesmais ou menos negociadas que implicam em um mnimo de reconhecimentomtuo. Quer se trate, no interior das sociedades, do funcionamento do sistemados partidos, com uma clivagem esquerda-direita que freqentemente seesmaeceu e por vezes desarmonizou-se, do enfraquecimento geral do sindica-lismo e dos sistemas de relaes profissionais, dos modos de gesto do Estado-providncia e, mais amplamente, de todas as formas de relaes inventadaspelas sociedades industriais a partir do sculo XIX; quer se trate, nas relaes

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    internacionais, do funcionamento bipolar que estruturava a oposio entre osEstados Unidos e a extinta Unio Sovitica, ou dos insucessos reiterados dasgrandes organizaes internacionais, a comear pela ONU e seus Boinas Azuisna Bsnia, na Somlia ou no Lbano, como no ver que efetivamente osprocedimentos e mecanismos institucionais so muitas vezes substitudos pelosimples uso da fora? Nem tudo , ou continua sendo conflitualizvel, daquiloque antes podia s-lo. Assim, alguns pesquisadores falam de clash das ci-vilizaes, seguindo de perto Samuel Huntington (1993), outros, de modomais pertinente, constatam que intensas tenses interculturais operam no seiomesmo das prprias civilizaes e no somente entre elas (cf. LeBot, 1996);alguns vem o mundo como unipolar, com os Estados Unidos como nicapotncia, outros o percebem como totalmente eclodido, ou mesmo a caminhodo caos generalizado e molecular, outros ainda procuram desenhar umamultipolaridade, o que corresponde a outras representaes dos EstadosUnidos. Mas alm desses debates8, quem fala ainda de atores coletivos capazesde engajar-se em conflitos em que a negociao e os jogos polticos laSchelling encontrariam um espao importante? Quem resiste s imagens,certamente fortes e plenas, da violncia como expresso, precisamente, daincapacidade da era atual em colocar no lugar e fazer funcionar sistemas deatores? Difcil de preencher, pelo pensamento, com atores e conflitos, o mundo povoado pelas imagens e pelos temores da violncia e da insegurana, comtodos os deslocamentos que podem encorajar essas imagens e esses temores, eprincipalmente a demonizao do outro que v, por exemplo, um terroristaatrs de cada muulmano alis, agora na Frana, utiliza-se cada vez menoso qualificativo muulmano e cada vez mais correntemente o islamista.

    Assim, tanto como realidade histrica quanto como representaocoletiva e como objeto de anlise e de reflexo para as cincias sociais, aviolncia contempornea parece modelar um novo paradigma. Do ponto devista terico, esse paradigma pede que a violncia seja analisada no interiorde um espao terico complexo, capaz de integrar o campo do conflito e o dacrise. Indo mais alm, ampliando-se, de um lado no sentido de levar emconsiderao o sujeito, impossvel, frustrado ou que funciona fora de qualquersistema ou de normas, e de outro levando em considerao condutas que maisalm da crise so reveladoras de uma verdadeira desestruturao ou de desvioscapazes de levar ao caos e barbrie.

    2. Quatro nveis de anlise

    A idia de um novo paradigma portanto comportada pelo examedas mudanas que remetem aos significados, s percepes e aos modos deabordagem da violncia. Nem por isso ela se encontra totalmente estabelecidaou demonstrada, mesmo porque inflexes e reverses de tendncia semprepodem ocorrer em uma evoluo histrica. Por isso mesmo, ela demanda in-vestigaes complementares, a comear por aquelas que podem referir-se s

    8 Para uma til leitu-

    ra em perspectiva apartir da experinciaamericana, cf. JohnMason (1995).

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    mudanas relativas s principais fontes de violncia desde os anos 70. clssico, na anlise da violncia, distinguir nveis. Nos anos 60,

    por exemplo, Pierre Hassner sugeria que fossem feitas trs diferenciaes. Aprimeira era a do sistema internacional, o qual, ele diz, remetia ento aoequilbrio bipolar da dissuaso e, na Europa, diviso territorial dos doisblocos (Hassner, 1995, p. 11); a segunda era a dos Estados, com suaspreocupaes internas e diplomticas, e a terceira, a das sociedades, no interiordos Estados, cada qual com seu sistema poltico, suas estruturas e sua din-mica. Essa distino, que ns j utilizamos em trabalhos referentes aoterrorismo dos anos 70 e 80 (cf. Wieviorka, 1988), permite refletir sobre ascondies gerais da mudana de paradigma da violncia, e ns a retomaremosaqui, acrescentando simplesmente um quarto nvel, o do indivduo, no paraintroduzir qualquer psicologia em nossas anlises, mas para insistir sobre umfenmeno contemporneo da maior importncia, que tem um peso enormesobre a produo da violncia contempornea: o crescimento do individua-lismo moderno. Em cada um desses quatro nveis, as mudanas recentes soconsiderveis, e, lev-las em conta, j constitui uma contribuio til para oesclarecimento til dos fenmenos de violncia. Esse esclarecimento completado e precisado se a anlise levar em conta, alm disso, as trans-formaes que afetam as relaes entre os nveis, suas articulaes, sua cor-respondncia, ou, se preferirem, sua integrao.a. O sistema internacional.

    Duas mudanas maiores afetaram esse primeiro nvel, com efeitosconsiderveis sobre toda sorte de expresso da violncia.

    O primeiro o do fim da Guerra Fria, que significa tambm adissoluo do imprio sovitico, e o declnio da bipolaridade Leste/Oeste.Com essa transformao decisiva, a diviso da Europa tambm liquidada,ou melhor, requer outras categorias para ser pensada: no h, por exemplo, ospases do antigo imprio, principalmente a Polnia, a Hungria e a RepblicaCheca, que se inclinam para o oeste politicamente (a democracia) eeconomicamente (o mercado), enquanto que os outros hesitam em se liberardos antigos modelos comunistas, ou s em partem o conseguem? O fim daGuerra Fria tambm o incio de uma nova era do ponto de vista das armasnucleares. A dissuaso nuclear no pode mais ser concebida hoje como o eraontem: ela tem mais razo de ser num universo bipolar estruturando o essencialdas relaes internacionais a partir das duas superpotncias, e o nuclear torna-se o smbolo de riscos maiores de crise, de desestabilizao, eventualmente deterrorismo, sem falar da simples catstrofe que podem causar um dia ou outroa proliferao das armas nucleares e a disseminao de matrias fsseis a par-tir da ex-Unio Sovitica. Como diz Pierre Hassner, as armas nuclearestornam-se o exemplo extremo no da ordem, mas do fosso entre o carterglobal e difuso dos problemas e o carter parcial e especializado dos organis-mos encarregados de geri-las ou de control-las (Hassner, 1995, p. 55), e

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    somos tentados a acrescentar que nem sempre possvel vislumbrar, com adesintegrao do sistema sovitico e o fim da guerra fria, quais os organismoscapazes, mesmo parcialmente, de agir de maneira eficaz face aos problemascomo os colocados pela disseminao nuclear.

    A Guerra Fria tornava pouco provvel, ou menos provvel, a guerraentre vrios Estados, pois trazia um controle parcial e desigual, mas real, daviolncia, uma ordem efetivamente planetria pois, combinada ao princpioda bipolaridade, ela inibia o aumento das violncias ao extremo, no caso duassuperpotncias, mas tambm em toda parte no mundo: todo deslocamento deum equilbrio, mesmo local, implicava no risco de gerar uma escalada na tensoe desequilbrios de grande porte. O planeta saiu da ordem nuclear, para retomara expresso de Philippe Delmas (1995), sem com isso ter entrado numa eraps-nuclear. Desde ento, conflitos e violncias localizados, de baixaintensidade, tm mais espao para surgir e torna-se difcil impedir que elesdegenerem em uma barbrie macia da qual os massacres de Ruanda ou daex-Iugoslvia so talvez apenas as primeiras expresses. O fim da GuerraFria em si mesmo nada deve a violncias significativas, ao passo que devemuito decomposio e ao esgotamento do regime sovitico; mas trouxe comele violncias, das quais as mais imediatas so aquelas que surgem no interiordo antigo imprio sovitico, a comear pelas do Cucaso e a da guerra daRssia de Bris Ieltsin com a Chechnia.

    possvel que a Guerra Fria tenha funcionado tambm como fatorde obscurecimento com relao aos determinantes e aos significados locais dediversas experincias de violncia ocorridas entre os anos 50 e 60, e o queparece novo a importncia dos fatores ligados ao desempenho dos atores emcampo, e no mais de influncias externas longnquas tenha-se tornado narealidade mais visvel, ou mais perceptvel. Mas a anlise detalhada de algu-mas dessas experincias feita por autores atentos e essa hiptese mostra que ofim da guerra fria trouxe realmente modificaes considerveis (cf. Jean &Rufin, 1996).

    Uma segunda mudana importante que a expresso globaliza-o da economia se popularizou em todo o mundo. O fenmeno no novo,e poderamos encontrar em numerosos autores do sculo XIX, como porexemplo, Karl Marx, anlises que remetem idia de uma mundializao daeconomia. Decisiva, ao contrrio, mesmo se essa idia combatida, aacelerao do fenmeno, que a maior parte dos economistas remetem metadedos anos 80. A noo de globalizao significa que as economias nacionaisso cada vez mais interdependentes, que o crescimento de suas trocas su-perior ao de sua produo, que os investimentos e os fluxos financeiros semundializam sob o efeito conjugado da liberalizao dos mercados e dosavanos tecnolgicos (cf. OBrien, 1992). A mundializao da economiamerece seguramente mais que afirmaes rpidas e cada vez maisestereotipadas, que fazem daquilo que menos adequadamente se chama deglobalizao um mito recorrente, segundo a expresso de Eli Cohen, que

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    nos convida a evitar as iluses de uma retrica encantatria em que essa noodesempenha um papel central (cf. Cohen, 1996). Entretanto, no intil evocaros vnculos entre a mundializao, e o neoliberalismo que a fundamentaideologicamente, e a violncia. Com efeito, esta ltima se alimenta, no mni-mo indiretamente, das desigualdades e da excluso que se reforam com omercado generalizado, a livre iniciativa, o rigor oramentrio e o livre comr-cio, e sensvel s evolues que tornam a troca mais importante do que aproduo e que ameaam o trabalho, tanto do ponto de vista de seu significa-do central, enquanto sentido da experincia humana, como enquanto fatorestreitamente associado ao crescimento. Alm disso, a violncia pode se ins-crever no prolongamento da fragmentao cultural que a mundializao daeconomia encoraja, segundo processos que Benjamin Barber foi um dosprimeiros a descrever, desde o incio dos anos 90 (cf. Barber, 1992, p. 53-60).Contrariamente a uma idia simplista, a mundializao, com efeito, inclusiveem seus aspectos ligados difuso de bens culturais (programas de televiso,por exemplo) no contribui somente para homogeneizar culturalmente oplaneta. Ela tem, tambm, e sobretudo, o efeito de estimular processos maisou menos reativos de retraimento identitrio, do comunitarismo, do nacionalis-mo retrado voltado para a defesa da nao, contra a cultura cosmopolita outransnacional sob hegemonia norte-americana, etc. processos que contri-buem eles prprios para alimentar o mesmo fenmeno. E, ento, no difcilde compreender como a violncia vem traduzir eventualmente em atos a vontadedefensiva, e mesmo contra-ofensiva, de grupos desejosos de afirmar sua iden-tidade cultural. Paradoxalmente, o resultado pode ser o mesmo quando umgrupo se apia em uma identidade desse tipo no para resistir economiamundializada, mas para dele melhor participar.

    Essas dimenses da mundializao podem ser interpretadas, emescala mundial, tambm como fraturas, sociais e culturais, que separam ospases ou as regies bem localizadas, in, das que no o so, out. Mas elastm tambm um papel, e muito importante, no interior das sociedades maisdesenvolvidas, onde esto presentes a misria, a excluso, e as formas dediscriminao social e racial que caminham geralmente junto, bem como afragmentao cultural, com suas eventuais modalidades comunitrias, tribais,ou ainda, raciais. A mundializao econmica inscreve-se em uma relaodialtica que ao mesmo tempo a alimenta e que ela aprofunda: a fragmenta-o social e cultural que ela mesma prolonga atravs de processos de natura-lizao e, mais precisamente, de racializao da vida coletiva, com tudo o queisso implica em termos de violncias racistas. o caso da violncia e da inse-gurana que reinam em numerosas cidades dos Estados Unidos e no maissomente em numerosas cidades do Terceiro Mundo: o aumento de uma violnciade base racista e xenfoba, na Alemanha ou na Gr-Bretanha, fenmeno queem alguns anos teve um crescimento preocupante9. Pode-se ento dar um passoa mais e considerar que a mundializao da economia, e sua ligaes diretascom a fragmentao cultural e social, contribui para a mundializao da

    9 Cf. os textos deAngelina Peralva,sobre a experinciaalem, e de KristinCouper e DaniloMartuccelli, sobre aexperincia britnica,em Wieviorka (1994).

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    violncia, com suas formas fragmentrias. Por exemplo, til falar de desterri-torializao e pensar globalmente e no apenas em seu contexto nacional asviolncias islmicas, da Arglia ao Paquisto, passando por inmeros outrospases, e notar a a existncia de redes, de modos de comunicao. Mas, aomesmo tempo, constatar que essas violncias no so unificadas em um projetomundial, e sim o contrrio, posto que pem a maior parte do tempo em jogosignificaes inscritas na cena local ou regional onde surgem.

    Por fim, a anlise do sistema internacional do ponto de vista dassuas grandes mudanas, para ser completa, deve ser sensvel importncia e intensidade das migraes internacionais, nem todas redutveis a simples fluxosde imigrao, e que do freqentemente a imagem de relaes transnacionais,diaspricas, entre dois pases. As disporas, particularmente, desempenhamum papel essencial no plano da economia criminosa e no apoio a movimentosarmados papel que no novo, mas que se acentuou e reforou atravsdaquilo que Aline Angoustures e Valrie Pascal designam como fenmenosde rede (1996).b. Os Estados

    O Estado est tradicionalmente no centro da anlise da violncia, ea sociologia clssica associa correntemente os dois temas, quando mais nofosse na frmula clebre de Max Weber, que escreveu, em 1919, que o Estado s pode ser definido sociologicamente pelo meio especfico que lhe prprio,assim como a todo grupo poltico, a saber, a violncia fsica. (...) Em nossosdias, a relao entre Estado e violncia particularmente ntima. (...). precisoconceber o Estado contemporneo como uma comunidade humana que, noslimites de um territrio determinado (...) reivindica com sucesso para seuprprio benefcio o monoplio da violncia fsica legtima. O que comefeito prprio de nossa poca que ela s concede a todos os outros grupos,ou aos indivduos, o direito de apelar para a violncia medida que o Estadoo tolera: este passa a ser, ento a nica fonte do direito violncia (Weber,1963, p. 124-125). Definio cuja ambigidade havia sido notada por RaymondAron que sublinhou que no se sabe muito bem se o conceito proposto porMax Weber remete a uma categoria abstrata, puramente terica, ou a umacategoria concreta, histrica, empiricamente observvel10.

    Ser que a definio analtica que prope Max Weber aplica-se tobem, quanto sua poca, aos Estados que podemos observar hoje? De muitospontos de vista, os Estados contemporneos, ou pelo menos alguns dentreeles esto enfraquecidos. A mundializao faz com que eles constituam me-nos facilmente que antes seu quadro territorial, administrativo e poltico davida econmica, posto que os fluxos, as decises, os mercados, a circulaodos homens, dos capitais, das informaes, efetuam-se em escala mundial, ealis em parte sob formas ilegais que permitem falar de uma globalizao docrime organizado, principalmente no que concerne s drogas. Cada vez menoscapaz de controlar a economia, o Estado parece, em numerosas situaes,

    10 Max Weber no es-colheu entre conceitospuramente analticose conceitos semi-his-tricos, escreveuRaymond Aron (1971,p. 559 apud Bouretz,1996, p. 263).

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    obrigado a recuar frente s atividades informais, ao mercado negro e ao traba-lho clandestino; o recolhimento de recursos fiscais torna-se difcil de exigir oujustificar, aleatrio, e ao mesmo tempo que a economia se privatiza, a violn-cia se privatiza, meio de pilhar o Estado ou de se atribuir os recursos que eledeveria controlar. O Estado est assim atravessado, por dentro e por fora,tanto mais na medida em que se criam ou se reforam solidariedades infra etransestatais (principalmente diaspricas), inscritas ou no em territriosprecisos, cujo espao de funcionamento j no corresponde ao seu. Alm disso,o Estado, pela interveno de seus agentes, pode praticar ou encobrir umaviolncia ilegtima, contrria a seu discurso oficial, como acontece em pasesdemocrticos onde existem a tortura, os abusos policiais ou militares de todognero, ou ainda a delegao do uso da fora a atores privados que a exercemem proveito de seus prprios interesses (cf. Pinheiro, 1996)11. Ainda precisoacrescentar aqui que um debate merece ser aberto, e que, como mostram ostrabalhos de Frdric Ocqueteau sobre a segurana privada, os efeitos daprivatizao do uso da fora no tm necessariamente sentido unvoco (cf.Ocqueteau, 1990, 1993 e 1995).

    cada vez mais difcil para os Estados assumirem suas funesclssicas. O monoplio legtimo da violncia fsica parece atomizada e, naprtica, a clebre frmula weberiana parece cada vez menos adaptada srealidades contemporneas.

    A fragmentao cultural contribui tambm para essa tendncia ge-ral. Ela torna mais delicada a frmula do Estado-nao, j que a nao nopode to facilmente como antes reclamar para si o monoplio ou o primadoabsoluto da identidade cultural das pessoas reunidas no seio da comunidadeimaginria que ela constitui, segundo a expresso de Benedict Anderson(1983): outras identidades se afirmam, exigem ser reconhecidas no espaopblico, e os choques interculturais podem transformar-se em guerrascomunitrias. Onde o Estado antigo, como na Europa, ele se enfraquece,onde ele recente, na frica, na sia, puro produto de importao segundouma frmula criada por Bertrand Badie e Pierre Birnbaum, ele freqentementecorrompido, ineficaz, deslegitimado, em virtude de suas prprias carncias, aponto de se poder falar em pane de Estado e ver a uma fonte maior deinsegurana para o planeta: a primeira questo de segurana hoje no so asambies de poder, a pane dos Estados (Delmas, 1995, p. 9).

    Alguns falam, seno do declnio do Estado, ao menos do declniodo modelo que ele pde constituir, evocando como exemplo um retorno Idade Mdia, um neomedievalismo para descrever o enfraquecimento dosEstados-naes e para dar conta de uma imagem que se fixaria em umapluralidade de comunidades e de investiduras, hierarquias ou entrelaamen-tos (Hassner, 1995, p. 56) tema posto em pauta desde os anos 70 porUmberto Eco (1995, p. 56). Outros insistem num fenmeno paradoxal, que a existncia, principalmente em situaes em que o Estado moderno resultouem corrupo, em ineficincia ou em ilegitimidade, de exigncias de insero

    11 Ver texto publicadoneste volume, p. 43-52.

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    numa ordem internacional em que a proteo dos territrios viria de potnciasque funcionariam a partir do modelo do imprio Ghassan Salam fala deapelos de imprio, tendo este, explica, uma relao mais flexvel que oEstado-nao com o territrio (Salam, 1996, p. 21). Retorno ao imprio,nova Idade Mdia: as frmulas podem variar, o fato que elas tanto marcama idia de uma superao da forma contempornea do Estado, como, ao mesmotempo, uma reinveno daquilo que foi experimentado no passado.

    Essa constatao merece no entanto ser matizada. A princpio, no certo que seja preciso, em toda parte onde o Estado recente, falar de seuenxerto em sociedades antes organizadas de maneira diversa, em reinos e emimprios, por exemplo, como um malogro; e muitos argumentos militam emfavor da idia, defendida principalmente por Jean-Franois Bayart, segundo aqual prossegue, na frica e na sia, a universalizao de alguns dos elemen-tos fundamentais da civilizao ocidental, incluindo-se eventualmente o Estado(cf. Bayart, 1996, p. 6). Nem tudo enfraquecimento, decomposio, no queconcerne ao Estado. Em termos mais gerais, diversas experinciascontemporneas sugerem que o conceito analtico de Estado est longe deestar ultrapassado historicamente. Assim, Olivier Roy, interessando-separticularmente pelo Oriente Mdio e pela sia Central, mostra que ali o Estadopermanece como o horizonte intransponvel das recomposies polticas, eque os grupos de solidariedade infraestatais dos quais observa os movimentose progressos fundados, por exemplo, no tnico, no podem dispensar o Estado os contrabandistas necessitam de fronteiras (cf. Roy, 1996). difcil proporuma representao unificada e linear da evoluo atual da frmula do Estadoe de sua adequao aos problemas polticos de nossa poca; e ainda que acei-tando a imagem de um enfraquecimento de inmeros Estados do ponto devista de sua capacidade, que classicamente os define, de arrogar-se concre-tamente o monoplio legtimo da violncia fsica e faz-la funcionar, precisoento ser prudente e reconhecer que tendncia crise da frmula clssica doEstado (e mais ainda do Estado-nao), pode-se opor a imagem, menos forte,mas ainda assim pertinente, de sua perenidade, e mesmo de seu futuro.

    A concepo contempornea da violncia perseguida pela idiade um declnio-superao do Estado. Este cada vez menos descrito comocausa, fonte ou justificativa da violncia, como ocorria quando se tratava deexplicar, nos anos 60 e 70, as lutas ditas de libertao, nacional ou social, oupromover projetos revolucionrios; o Estado agora novamente, como noessencial da tradio da filosofia poltica, pelo menos a partir de Hobbes, afrmula poltica que deveria poder inibir a violncia fsica fora de seu campode ao e de controle, e que a chegaria cada vez menos a esse resultado.Poder-se-ia certamente evocar inmeras experincias em que a violncia uma resposta brutalidade do Estado, a um poder ditatorial ou a uma opressodo tipo neocolonial, por exemplo. Poder-se-ia ainda indicar como, quandomais no seja, no caso da experincia palestina, ela tem a ver com o desejo deconstruir um Estado dotado de todos os atributos da soberania nacional. Mas

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    a tendncia dominante outra, ela se define atravs de experincias, muitomais numerosas, em que a violncia surge ou se desenvolve em meio s ca-rncias do Estado.

    Um paradoxo reside no fato de que as formas mais espetaculares daviolncia no correspondem necessariamente s situaes de maior carncia,debilidade ou ausncia do Estado.

    Assim, comparando a violncia urbana dos jovens em duas situa-es que apresentam vrios pontos em comum, j que se trata de bairros emdificuldade nas periferias de Lyon e Milo, Paola Rebughini (1994) constataque na regio de Lyon, a violncia muitas vezes revestiu-se de uma foraamotinadora e espetacular, e mesmo meditica, enquanto que, em Milo, ela mais difusa, mais prxima da delinqncia e do crime organizado. Uma dasfontes dessa diferena remete ao Estado: mais presente na Frana, ele , aomesmo tempo, o ator que causa a violncia (por exemplo, a partir do racismopolicial) e o ator que a violncia tem por vocao interpelar, por razes tantoinstrumentais quanto expressivas: um motim chama a ateno da imprensa, eocasiona a partir da, a vinda ao bairro de responsveis polticos, queeventualmente podero trazer meios e recursos novos para esse bairro.Diferentemente, na Itlia, os espaos em questo vivem margem do Estado,a economia clandestina ou ilegal traz para l importantes recursos, e umaviolncia excessivamente visvel, do tipo do motim, precisamente, s fariaatrair a ateno dos meios de comunicao, o que no se deseja. A violnciaassegura, bem mais, seja a sobrevivncia de uns e de outros (delinqncia),seja o controle de territrios cuja privatizao implica em que o Estado sejamantido o mais possvel distncia; e como o Estado italiano no tem realmentevocao para intervir, fcil, compreender que a violncia assume uma feiodiferente daquela que se observa na Frana.

    Acrescentemos uma ltima observao, mais geral, emprestada aGhassan Salam: se o Estado territorial clssico se desagrega, a forma deviolncia que est mais diretamente ligada a ele, a guerra entre Estados, passaa ter, ento, tambm menos importncia, em benefcio de outras formas, guerrascivis, massacres intertnicos, por exemplo12. Essas formas de violncia figu-ram entre as mais macias e espetaculares do mundo contemporneo.c. Mutaes societais

    Nos anos 50 e 60, o pensamento evolucionista, sob hegemonia norte-americana, desenvolvia a idia de um one best way, segundo o qual as so-ciedades, no mundo inteiro, eram chamadas a se engajar nos mesmos trilhosde uma modernizao que era vista em termos econmicos o desenvolvi-mento e em termos polticos a democratizao. Nessa perspectiva, ohorizonte estava desenhado pelas sociedades industriais mais avanadas, eento, em primeiro lugar, pelos Estados Unidos, prevendo-se que a violnciaregrediria na mesma medida do progresso.

    Sabemos hoje que h muitos modelos de desenvolvimento, que os

    12 Assim como a e-mergncia do Estadoterritorial, h dois outrs sculos, era a-companhada de umaguerra entre Estados,explicando-a e nu-trindo-se dela, a pul-verizao do Estadoterritorial e a proli-ferao das guerrascivis so na realidadedois processos que sereforam mutuamen-te, um iluminando efavorecendo o outro(Salam, 1996, p. 95).

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    progressos econmicos e polticos no significam necessariamente a regres-so da violncia, e que as sociedades avanadas podem muito bem combinarvivas dificuldades sociais e ps-industrializao. Nas sociedades ocidentais,com efeito, a perda da centralidade da indstria clssica caminhafreqentemente junto com fenmenos de desemprego e de precarizao, asrelaes de explorao no trabalho e na produo cedem lugar excluso nadefinio da questo social. O emprego e o crescimento se separam, e nessetipo de mudanas, o princpio de estruturao conflitual da vida social ine-rente oposio entre o movimento operrio e os senhores do trabalho sedecompe. A partir da, o sindicalismo e os sistemas de relaes profissionaisse enfraquecem, inclusive ali onde eles tinham uma grande vitalidade, comona Alemanha ou nos pases escandinavos, o par clssico esquerda-direita cessade representar um conflito social ao nvel poltico, as expectativas polticas seexacerbam sem encontrar lugar de mediao, os populismos se desdobram, deRoss Perot nos Estados Unidos Liga do Norte na Itlia, passando pelonacional populismo da Frente Nacional na Frana, e a crise social se combinacom a questo das identidades culturais, nacionais, tnicas e religiosas, paraalimentar violncias que instigam, algumas, as tendncias fragmentao dassociedades nacionais, outras, os apelos reativos ordem que se desfaz.

    Transformaes comparveis afetam as sociedades dos antigospases do Leste, para as quais o fim da experincia sovitica representa tambma desestruturao de um modelo centrado no local de trabalho, queproporcionava a cada um garantias, muitas das quais eram administradas apartir da empresa emprego, alojamento, acesso sade, ao lazer, consumode base, etc. Mas no cabe deduzir dessas constataes a idia de uma violnciasocial ou poltica diretamente ligada ao esgotamento das relaes sociaisprprias indstria clssica. Se h certamente uma ligao entre a violncia eessas mudanas sociais, tal ligao no automtica e imediata, a violnciadeve ser concebida a partir dessas mediaes. Ela no surge diretamente damobilidade social descendente, ou da crise; assim, os motins dos bairros difceisda Frana ou da Inglaterra, os das grandes metrpoles americanas, sobrevmpor ocasio de excessos policiais ou de decises inadequadas da justia, bemmais do que como um protesto contra o desemprego; a raiva e o dio dosjovens exprimem-se certamente tendo por trs um cenrio marcado por difi-culdades sociais, mas correspondem acima de tudo a sentimentos fortes deinjustia e de no reconhecimento, de discriminao cultural e racial. Odesemprego e a pobreza, inclusive quando eles traduzem uma queda social bruta,como nos pases do antigo imprio sovitico, no se transformam imediata-mente ou diretamente em violncias sociais o que se sabia desde o estudoclssico de Lazarsfeld sobre os desempregados de Marienthal (cf. Lazarsfeld,1981) mas sobretudo alimentam frustraes que transitam eventualmente porum nacionalismo exacerbado, ou um apelo ao retorno dos comunistas. E, sealimentam violncias coletivas, estas so mais racistas e anti-semitas, maisligadas a referncias nacionalistas do que propriamente sociais.

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    d. O individualismo contemporneoO individualismo, tal qual se manifesta com uma fora crescente no

    mundo contemporneo, apresenta duas faces complementares, e eventualmenteopostas. Por um lado, o indivduo moderno quer participar da modernidade,do que ela oferece, do que ela promete, do que ela mostra atravs dos meios decomunicao e das solicitaes de um consumo de massa cujo espetculo estdoravante mundializado. Ele tem a inteno de consumir, continuar a consu-mir se j o fez, comear a faz-lo se ele ainda no o pde. Por outro lado, oindivduo quer ser reconhecido como sujeito, construir sua prpria existncia,no ser totalmente dependente de papis e normas, poder distanciar-se delessem ser no entanto obrigado a faz-lo. Ele pretende por exemplo efetuar es-colhas que o autorizem a referir-se a uma identidade coletiva, sem estar total-mente subordinado a ela, produzir-se, e no somente reproduzir-se.

    Essas duas faces do individualismo no so uma novidade, e deuma certa maneira, mile Durkheim a elas se refere quando distingue oindivduo, ligado ao modo profano, e a pessoa, que a seus olhos est referidaao sagrado (cf. Durkheim, 1968). Cada uma delas mantm, hoje, uma relaomuito forte com a violncia, mesmo coletiva. O ator de muitas violncias ins-trumentais, por exemplo, engaja-se com finalidades econmicas, ele quer odinheiro para consumir, comprar, para si mesmo e eventualmente para os seus.De modo bem distinto a violncia pode assumir uma feio extrema, ilimita-da, relacionada com um desejo, frustrado, de aceder aos frutos da modernida-de e sem que se trate de utiliz-los como recurso para alcanar determinadosfins. Isso a aproxima de condutas informadas pela a raiva de no ser re-conhecido, pelo sentimento de uma injustia vivida, pela interdio de o in-divduo tornar-se sujeito, e que pode assumir diferentes formas: motins ex-plosivos, mas tambm ldicos; ou para falar como David Le Breton (1991),informados pelas paixes do risco que podem ento vir a tornar-se ordli-cas ou autodestruidoras, retornando contra si mesmo a impossibilidade criadapelo sistema ou pela situao de ser um ator de sua prpria existncia. Aviolncia neste caso , ou busca, a produo do sentido, esforo para produzirpor meios prprios aquilo que antes lhe era dado pela cultura ou pelasinstituies, projeo de si mesmo at a morte eventual; ou ento apelo subjetividade impossvel ou infeliz, expresso de recusa pela pessoa em darprosseguimento a uma existncia em que ela se sente negada. Nessa ltimaperspectiva, o racismo, em particular e em expanso em inmeras sociedades, uma experincia amplamente vivida pelos que dele so vtimas como umaprofunda negao de sua individualidade, o que pode transformar-se em raivae da em violncia, por exemplo amotinadora. Tudo isso no certamentenovo; mas os progressos da mundializao do maior intensidade do que davamno passado a tudo o que remete ao individualismo, bem como s fragilidadespessoais que vm junto, sobretudo, quando se trata de combinar os doisregistros, da eficcia instrumental, estratgica, e da construo de umasubjetividade autnoma (cf. Ehrenberg, 1995): ningum agora, com efeito,

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    ignora o que o mundo moderno pode oferecer ou prometer, tanto comopossibilidades de consumo, quanto em matria de produo de si mesmo. Mas bem difcil ser, ao mesmo tempo, consumidor e produtor de sua existncia,eficaz e racional de um lado, autnomo e distanciado em relao s normas deoutro. A violncia encontra aqui um trplice feixe de condies favorveis:seja que a pura racionalidade estratgica induza a fazer dela, mais ou menoscinicamente, um recurso; seja que a preocupao em identifica-se com umaidentidade coletiva resulte no fanatismo ou num sectarismo belicoso: seja enfim,em processos de fuso de sentido, em que a dupla impossibilidade de funcionarcomo consumidor e como produtor de sua prpria existncia termine porresolver-se atravs da inveno de um sentido imaginrio tanto mais violentoquanto no encontre hic et nunc os meios concretos de se traduzir em prticas.

    Acrescentemos que o individualismo exerce seus efeitos no so-mente sobre as significaes, mas tambm sobre as formas de que pode reves-tir-se a violncia contempornea. Assim, tirando as lies de um conjunto deestudos referentes s violncias urbanas na Frana, Jean Paul Grmy constataque as gangues de jovens, ou seus agrupamentos por ocasio de motins nosbairros de relgation trazem a marca de um individualismo que torna par-ticularmente difceis as negociaes com vistas a por fim s violncias (Grmy,1996, p. 11).

    A separao entre nveis ou registros pode tambm constituir-senum instrumento til de anlise. Acrescentemos tambm que nem por isso eladeve conduzir a uma fragmentao intelectual, em que os pesquisadores seespecializariam em um outro desses nveis ou registros. Ao contrrio, a refle-xo sobre a violncia s tem a ganhar, no somente se levar em consideraosubconjuntos claramente delimitados o sistema internacional, o Estado, etc.,mas tambm se for capaz de pensar a complementaridade entre eles, suaarticulao, ou ao contrrio, sua dissociao. Talvez inclusive as observaesanteriores apontem para uma sugesto: no valeria mais a pena, contraria-mente tradio intelectual da cincia poltica, partir de baixo, doindividualismo ou das transformaes que afetam as relaes sociais, e irlevando a anlise at o nvel internacional, cujas mudanas, atravs de suasformas reais ou mais ou menos mticas (a globalizao) se alimentam dotrabalho dos atores e das sociedades sobre si mesmas, pelo menos tanto quan-to os influenciam?

    3. Dvidas e incertezas

    a. Violncia objetiva, violncia subjetivaApresentadas certamente de modo rpido, as mudanas que afetam

    os quatro nveis que distinguimos pedem uma sociologia capaz de estud-losde maneira analtica, separadamente, mas tambm de abord-los globalmente.No existe uma sociologia integrada da violncia capaz de propor uma teoria

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    unificada satisfatria, que permita abraar simultaneamente os nveis dapersonalidade e do indivduo, os da sociedade, do Estado e do sistema derelaes internacionais; mas isso no impede o esforo para no separ-los nareflexo, e particularmente a hiptese de que uma das fontes fundamentais daviolncia contempornea reside precisamente em sua tendncia dissociao.Por exemplo, tentador analisar de um lado a personalidade dos jovenssicrios, assassinos de aluguel que, na Colmbia, parecem guiados por umdesejo de dinheiro e de consumo potente e desprovido de barreiras morais, epor outro lado, tratar da economia mundial da droga ou das relaes entre osEstados Unidos e a Colmbia; mas muito mais til mostrar como a violnciainstrumental do jovem assassino de aluguel de Medellin oscila entre a polticae a criminalidade, e se inscreve num tecido de relaes sociais e polticas, aonvel do bairro, da cidade, do pas e do continente, que no se limita imagemde dois universos separados, internacional (a droga e sua economia), e pessoalou psicolgico (a ausncia de normas interiorizadas que torne possvel o fatode ser um assassino) (cf. Ortiz Sarmiento).

    Quanto mais se mergulha nesse tipo de anlise, mais torna-se tilperguntar qual a parte da violncia subjetiva, e a da violncia objetiva. Entre oator finalmente reduzido sua personalidade ou de sua subjetividade, e osistema, referido a processos planetrios dos quais a noo de mundializaotornou-se smbolo, a violncia vem preencher o vazio deixado por atores erelaes sociais e polticas enfraquecidas. Mas um vazio real, ou um vazionas representaes? A tarefa de uma sociologia da violncia mostrar as me-diaes ausentes, os sistemas de relaes cuja falta ou o enfraquecimento criamo espao da violncia: se essas mediaes, se esses sistemas de relaesparecem mais escondidos, incompreendidos ou ignorados que realmentecarentes ou ausentes, porque a sociedade em questo, suas elites polticas,seus intelectuais, sua opinio se recusam a reconhec-los e a debat-las, entoa violncia deve ser analisada antes de tudo como uma representao, como asubjetividade de grupos, ou mesmo de uma sociedade inteira, incapazes de secompreender e de compreender o que as cerca; se so tangveis, se possvelestabelecer empiricamente que h um dficit de atores e de mediaes atravsde sistemas de relaes, a violncia constitui certamente uma forte realidadeobjetiva. A sociologia deve ento distinguir os problemas, mostrando como aviolncia contempornea se renova, tanto em suas percepes subjetivas quantoem suas realidades histricas.

    Por isso, a hiptese de uma mudana do paradigma da violnciaremete tambm a um problema clssico da sociologia do conhecimento: omodo como falamos da violncia e de suas mudanas contemporneas, inclusiveno discurso cientfico, deriva do estado do fenmeno e de suas transformaesobjetivas ou de outros tipos de mudanas que interferem nos diferentes nveisque foram enunciados aqui, mas de maneira relativamente autnoma em rela-o aos fatos de violncia, influenciando nossas percepes e modelandorepresentaes que s de maneira mais ou menos artificial corresponderia s

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    expresses concretas do fenmeno? De uma experincia concreta a outra, aresposta no pode seno variar: o essencial aqui insistir sobre a necessidadeque h de se colocar a questo.b. Desarticulao

    Se a violncia tem a ver com mudanas que afetam no apenas cadaum dos quatro nveis considerados na anlise, mas tambm o seu conjunto, antes de tudo porque esses nveis parecem desarticular-se a partir do momentono qual os consideramos em suas expresses concretas, e no somente comocategorias analticas. O mais decisivo remete aqui crise do Estado-nao,enfraquecido em seu papel de quadro ou de espao principal, territorial, poltico,administrativo e intelectual da vida coletiva. Assim, h um hiato entre a escalados problemas, planetrios, colocados pela economia e pela ecologia, e osinstrumentos institucionais, essencialmente estatais, de que se dispe para trat-los. At mesmo no interior de cada pas, torna-se muitas vezes complicadoestabelecer uma forte correspondncia entre diversas polticas, tornar coerentes,por exemplo, a poltica econmica e comercial e a poltica externa. Ou ainda, difcil conciliar a diplomacia, e mesmo a participao de um Estado eminstituies internacionais, e a sensibilidade individual crescente ao tema dosdireitos humanos, que pode ser uma incitao a intervenes outras que noestatais, ligadas ao direito da ingerncia. A desarticulao ainda maisespetacular nos casos em que sociedade, Estado e cultura formavam umconjunto relativamente integrado, no seio daquilo que, conforme sugeriu AlainTouraine, possvel designar-se atravs do termo sociedades nacionais (cf.Touraine, 1992), nas quais relaes sociais prprias tpicas da era industrial,instituies que asseguravam igualdade individual, solidariedade coletiva eidentidade nacional formavam um sistema bastante coerente, auto-suficienteou quase, que hoje se desestrutura sob o efeito do neoliberalismo e damundializao.

    A violncia, desse ponto de vista, pode resultar do esforo de certosatores para manter de maneira cada vez mais artificial ou voluntria aquiloque se desfaz; ela se exprime, eventualmente, atravs de agresses contra osque so acusados ou suspeitos de encarnar e de preparar a desintegraosociopoltica da sociedade nacional, e de ser o vetor da heterogeneidade cul-tural que a ameaa. Ela visa ento, prioritariamente, os imigrantes e, maisamplamente, os grupos humanos que podem ser mais facilmente racializados.O racismo na Europa, inclusive em suas expresses mais ativas, maisdestruidoras e assassinas, tem muito a ver com a recusa reativa de umadecomposio das sociedades nacionais.c. Um mundo sem referncias?

    Para pensar as formas e a importncia da violncia, no til dis-por de referncias que permitam distinguir, no espao, zonas relativamentehomogneas? Trs respostas principais, eventualmente combinadas, podem

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    tentar trazer uma resposta construtiva a esta interrogao: polticas (ougeopolticas), econmicas e culturais.

    Nos anos da Guerra Fria, a violncia podia ser apreendida a partirde um recorte geopoltico levando em conta a bipolaridade do mundo. Elapossua tanto menos chances seno de surgir, pelo menos de estender-se erevestir-se de uma feio poltica na medida em que ela comportava o risco decomprometer os equilbrios fundamentais entre o Leste e o Oeste. A Europaestava no centro desses equilbrios, o que no podia impedir graves violncias,mas lhe interditava toda sada poltica ou geopoltica maior. Era ento possveldistinguir trs mundos ou subconjuntos de pases: o ocidente, incluindo aAmrica do Norte e a Europa Ocidental, o mundo comunista, e por fim, ospases em vias de desenvolvimento, o Terceiro Mundo, com seus conflitosinternos, s vezes muito violentos, e poderes de Estado mais frgeis e inst-veis. Com a queda do muro de Berlim, a dificuldade para pensar o mundo apartir de distines polticas ou geopolticas tornou-se to considervel quese pode falar do fim da histria (cf. Fukuyama, 1992).

    Uma outra distino, econmica, ope o Norte, rico e pouco susce-tvel de ser afetado por graves violncias, e o Sul, excludo das malhas e dosfluxos principais da mundializao, e propcio s piores violncias civis, tni-cas ou outras. Mas a excluso causa estragos to profundos no prprio seiodas sociedades mais avanadas, e as diferenas internas nos pases do Sul soto considerveis que difcil pensar a violncia a partir dessa clivagem.

    Por fim, uma terceira clivagem, cultural, foi recentemente propostapara distinguir civilizaes, com a idia que a violncia se desenvolveria, nomundo contemporneo, entre as grandes civilizaes, onde elas se entrecho-cam tese de Samuel Huntington respeito da qual vimos o quanto custasubestimar as tenses e as diferenas culturais produzidas e reproduzidas noprprio seio de cada civilizao13.

    Hoje, o Terceiro Mundo est no centro das sociedades maisdesenvolvidas, o comunismo desmoronou e com ele a idia de uma oposioLeste-Oeste, esboam-se novas potncias, principalmente no Pacfico Sul, aviolncia surgiu, particularmente assassina, no Norte, e especialmente na ex-Iugoslvia; ela combina por toda parte afirmaes culturais e demandas scio-econmicas. Tudo se confunde, a ponto de Ghassan Salam falar do de-saparecimento dos quatro pontos cardeais. Acrescentemos que os melhoresanalistas explicam que a noo de Terceiro Mundo, to utilizada no passado,era uma comodidade de linguagem j bem artificial poca, um conceitoamalgamado de realidades heterogneas.

    Para pensar de maneira diferenciada o surgimento e o desen-volvimento da violncia no espao, no h mais princpio geopoltico slido,as distines econmicas so insuficientes, e a tese do choque das civiliza-es revela-se imprpria. Num mundo ao mesmo tempo fragmentado eglobalizado, as probabilidades de graves violncias localizadas so grandesem toda parte, e ao mesmo tempo os problemas, mesmo os mais limitados,

    13 Para Susan George,Samuel Huntington eFrancis Fukuyamaparecem levados pelamesma corrente ideo-lgica, o que se con-firmaria pelo fato deque os dois se bene-ficiaram dos fundosOlin, destinados areforar as institui-es econmicas, po-lticas e culturais so-bre as quais se apiaa empresa privada(cf. Le Monde Diplo-matique, agosto de1996).

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    tm bem mais que no passado todas as chances de serem deslocados,exportados, prolongados fora de seu espao inicial ou natural. A violncia,quando est ligada a uma causa nacional, pode tomar um carter diasprico, eintroduzir complexidade onde no se esperava. Por exemplo, a questo curdatornou-se de uma importncia no negligencivel na vida interna e diplomti-ca da Alemanha, onde violncias puderam surgir em virtude da presena nessepas de uma forte populao imigrante originria da Turquia. Do mesmo mo-do, no porque a imigrao de origem argelina na Frana desenvolve umesforo macio para integrar-se que no exista em seu seio uma sensibilidadediasprica, e at mesmo redes, algumas das quais funcionando em escalainternacional e que podem estar ligadas a atividades de violncia armada. Ouainda, possvel estabelecer ligaes entre a crise deste ou daquele Estadocentral, e a deste ou daquele Estado do Terceiro Mundo, o que aparece demaneira espetacular se se considera o carter no somente lastimvel, mastambm escandaloso, de algumas intervenes polticas ou militares, comoaquelas que recebeu a Somlia. As intervenes dos pases do Centro (maisou menos ao estilo da ONU) [escreveu Alain Joxe], no so puras tentativasde reordenamentos a partir das sociedades ordenadas, mas aes elas prpriasdesordenadas e desordenadoras, reflexo antes de mais nada da crise centraldas representaes e dos atores da escala legtima do monoplio da violncia,os Estados. H complexidade e confuso nas duas pontas da expedio (Joxe,1995, p. 85).

    O que nos permite precisar a idia de um novo paradigma daviolncia: e esta deve ser efetivamente abordada, doravante, com conceitosque no podem mais ser os do mundo bipolar, nem os de um mundo onde aeconomia permitia pensar diretamente as relaes internacionais em termosde dominao e de explorao, ou da modernizao mais ou menos avanada.Ela deve ser apreendida atravs de uma de suas novidades radicais: o fato deser ao mesmo tempo globalizada, posto que relativa a fenmenos planetrios,e localizada; geral, e, para utilizar o termo de Hans Magnus Enzensberger(1995), molecular: ela prpria mundializada, e fragmentada ou eclodida. Elano forosamente diferente segundo se considere o centro ou a periferia,noes que ela veio contribuir para enfraquecer, pois, por exemplo, h muitassemelhanas entre os jovens atores dos movimentos islamistas enraivecidosdas periferias francesas, quer sejam ou no muulmanos. Esse carter singu-lar da violncia contempornea nos obriga a refletir ainda a mais, indo de umextremo, scio-histrico, a outro, centrado na pessoa. A violncia nos interro-ga, no porque, mais do que em outros momentos, caminharamos para o caosgeneralizado, ou porque, mais do que em outros momentos estaramos mer-gulhados na incerteza crescente do ps Guerra Fria, mas porque devemosaprender a conceb-la de outra forma, com a mais viva conscincia de umanova situao histrica e poltica. Devemos desconfiar das afirmaesexcessivamente apressadas que querem ver apenas o neo, ou, o retorno, alionde os fenmenos considerados, ou so realmente to novos que requerem

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    uma renovao total de nossas categorias, ou so mais antigos e mais comple-xos do que sugerem esses termos, aos quais logo faltam nuanas. Assim comodevemos resistir idia de evolues lineares ou de conseqnciasunidimensionais deste ou daquele fenmeno a mundializao da economia,por exemplo, no exerce efeitos uniformes: ela acentua de maneira ambiva-lente algumas tendncias como as que, simultaneamente, asseguram ainternacionalizao do consumo de massa, ou de produtos televisuais, e afragmentao cultural. Embora a Frana tenha demorado consideravelmentepara descobri-la, nem por isso se trata de um fenmeno recente.

    4. Violncia e crise da modernidade.

    Consideremos, na perspectiva de Alain Touraine (1992), que amodernidade implica em um dualismo sob tenso entre a razo e a cultura,entre o mundo objetivo e o mundo da subjetividade, entre a racionalizao e asubjetivao. Nessa perspectiva, o mundo contemporneo pode ser apreen-dido como submetido a riscos crescentes de dilaceramento entre os dois plosque definem a modernidade. De um lado, o mundo da tcnica, dos mercados,da cincia e da economia neoliberal; de outro, o das identidades comunitriasou sectrias. De um lado, o reino do instrumentalismo, do clculo, do poder;do outro, o das culturas desbaratadas ou agressivas. De um lado, o sistema; dooutro, os atores: a crise da modernidade e, em seu prolongamento, a tentaops-moderna envolvem a dissociao completa desses pares cuja tenso de-fine a modernidade.

    Desse ponto de vista, a violncia contempornea pode ser analisa-da como um vasto conjunto de experincias que, cada uma sua maneira,traduzem o risco de imploso ps-moderna, e mesmo seu esboo. E nessesdilaceramentos, uma primeira hiptese merece ser explorada: a de umafragmentao dos espaos polticos e de uma distoro do espectro geral daviolncia a partir de suas dimenses polticas. A violncia pode continuarinstalada ao nvel poltico, mas tambm devemos ser sensveis s dimensesque fazem com que ela se complete, e talvez mais do que antes, com formasque a invadem por baixo e por cima.

    Nos anos 60 e 70, conforme j dissemos, a violncia poltica, namedida em que visava os sistemas polticos e os Estados, revestia-se de umaimportncia considervel. Sem base social real, o terrorismo de extrema-esquerda vinculava-se a projetos revolucionrios de tomada de poder do Estado,o de extrema-direita tinha objetivos da mesma ordem; os movimentos delibertao nacional tinham a inteno de libertar uma nao de uma dominaoestrangeira para constituir seu prprio Estado. H certamente, hoje como ontem,numerosas e importantes experincias de violncia poltica no mundo. Masuma tendncia no negligencivel aparece e desloca o fenmeno paraorientaes que so de um lado infrapolticas, de outro, metapolticos. O quetambm constata Pierre Hassner, para quem a chave da evoluo contempor-

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    nea parece residir no dficit poltico no interior das sociedades atuais e, maisainda, em mbito internacional (cf. Hassner, 1996, p. 153).a. A violncia infrapoltica.

    A privatizao crescente da economia, onde ela era mais controladapelo Estado, onde ela o seria em situaes mais tradicionais, constitui umencorajamento massivo privatizao da violncia, cujo carter poltico seatenua ou se dilui. Em muitos casos, com efeito, trata-se para os protagonistasda violncia no de visar o poder do Estado para aceder a ele, ou de tentarpenetrar no centro de um sistema poltico, mas de manter o Estado distnciapara dedicar-se atividades econmicas, ao trfico de drogas, de objetosroubados, mas tambm de crianas ou de rgos humanos, etc. Vem-se assimguerrilhas se transformando em gestoras de territrios onde podem se associarao narcotrfico, ou se apropriar dele, como na Colmbia: atores envolvidos naespiral do terrorismo e da violncia poltica extrema se revelam eventualmentecomo traficantes, pensando em termos de acesso ao dinheiro tanto quantotalvez ao poder poltico, como sugerem as anlises da luta armada na Arglia,onde alguns episdios tornam-se incompreensveis sem referncia a conflitosentre grupos islmicos, ou entre alguns desses grupos e as foras armadaspara se apropriarem de um monoplio local da extorso ou do trfico, otrabendo, que pode lidar tanto com gneros ilegais quanto com produtosconvencionais, alimentares, por exemplo14. Vem-se tambm mfias ousimilares desenvolvendo-se, particularmente no antigo imprio sovitico,dispostas a recorrer fora para defender seus interesses, e seus agentes sosuscetveis de entrar em choque com o Estado, se este se mostrar muito pre-sente em seus assuntos a experincia italiana dos anos 90, com os assassina-tos de altos representantes do Estado , nesse sentido, um exemplo impressio-nante. Onde a prtica do seqestro, muito limitada, correspondia a fins polti-cos nos anos 70, como no Brasil por exemplo, ela continua a desenvolver-sehoje, mas para fins estritamente nefandos observao que poderia referir-sebem a outras prticas ilegais e brutais de extorso de bens. A privatizao daviolncia pode passar por uma perverso quando os que detm o uso legtimoda fora a polcia, as foras armadas a ela recorrem para fins hediondos,abusando de suas armas e de sua impunidade. Isso no significa forosamentea barbrie, a lei da selva. Mas disso se aproxima, autorizando condutas maisou menos selvagens que podem, em situaes extremas, visar impedir peloterror qualquer oposio aos interesses e ao poder dos atores que exercem afora assim privatizada.

    Ligada ao controle e acumulao de recursos econmicos, aviolncia no necessariamente a arma dos pobres. Assim, um estudo sobreas dimenses econmicas da violncia na Colmbia constatou que a anlise,ao nvel municipal, da evoluo dos diferentes atores organizados da violnciamostra, mais do que um confronto ideolgico, um conflito pelo territrio epelos frutos das atividades econmicas mais lucrativas. por isso que os

    14 Cf. sobre o trabendo,Svrine Labat (1995).Luis Martinez (1995,p. 26) considera mes-mo que os GIA assu-miram com xito osnegcios da PME e daimportao-exporta-o liberada da tutelado Estado e que aguerra civil, trs anosaps seu desencadea-mento, parece cadavez mais um instru-mento de promoosocial e de enrique-cimento pessoal oque constitui umaviso que pode parecerexcessiva pois aqui opoltico se diluiu.

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    conflitos e as violncias se desenvolvem o mais das vezes nas regies maisdinmicas e menos freqentemente nas cidades menos avanadas, com umafrgil atividade econmica (Castilla, 1995, p. 78). Uma questo que se coloca,aqui como em outros momentos, a novidade desses fenmenos. Desse pontode vista, o essencial reside, ao que tudo indica, na sua extenso recente, na suamultiplicao, igualmente constatada por Jean-Christophe Rufin para quema omisso das grandes potncias e o desastre econmico que afetou numero-sos pases arruinados pela guerra levaram os movimentos da guerrilha a praticarabertamente e em grande escala aquilo que haviam adquirido o hbito de fazerdiscretamente e modestamente (...) As guerrilhas dos anos 90 tendem a seapoiar sobre verdadeiras economias de troca, e at de produo (...) A mudanado contexto internacional vinculado ao fim da guerra fria no criou ex nihiloesses novos mecanismos de alimentao dos conflitos. Mas ele certamentecontribuiu para generalizar certas prticas at ento marginais (Rufin, 1996,p. 43-44).

    Num outro registro, a violncia infrapoltica igualmente, nasdemocracias, uma caracterstica dos fenmenos racistas e xenfobos, que nodispem seno de legitimidade, ao menos de legalidade no espao pblico.Quando um partido de extrema-direita, de ideologia racista e xenfoba, sedesenvolve, no lhe possvel apelar claramente para condutas violentas, nemmesmo reconhec-las ou solidarizar-se com elas, como se v na Frana com aFrente Nacional, cuja preocupao com a respeitabilidade e a inscrio nocampo poltico probe a violncia. Esta aparece nos confins do poltico, elaprocura a instalar-se, mas ela essencialmente infrapoltica, feita deimportunao (racial harassment dizem os britnicos), e de condutasfragmentrias.

    Mas no nos enganemos. Se em algumas experincias o carterinfrapoltico da violncia est ligado a uma degenerescncia do fenmeno,que perde suas caractersticas polticas em favor de uma privatizao ligadaao desejo de se controlar recursos econmicos, dinheiro, um territrio, emoutras traduz uma hesitao do ator, que oscila entre os dois nveis sem saberem qual se fixar, e em outras ainda, constitui uma forma mais pr-poltica queinfrapoltica, o comeo de uma trajetria suscetvel de elevar-se a prazo aonvel poltico. Por exemplo, houve jovens que realmente oscilaram entredelinqncia e terrorismo poltico de extrema-esquerda no comeo dos anos80 em Milo (cf. Calvi, 1982). Observa-se que os jovens desclassificados deBrazzaville formam grupos do tipo milcia poltica, mas tambm, conforme apoca, do tipo gangues armadas (cf. Bezenguissa-Ganga, 1996)15; mas cons-tata-se tambm que nos Estados Unidos, a raiva social dos pobres coitadosda sociedade americana, segundo Laurent Zecchini16, alimenta rancores quese cristalizam sob a forma de milcias de extrema-direita racistas, anti-semitas,hostis ao Estado federal e s organizaes internacionais, como a ONU. Asgrandes transformaes planetrias e a crise dos Estados constituem um fatorfavorvel privatizao da violncia, que se torna ento infrapoltica; mas

    15 Encontramos fenme-nos comparveis eminmeras outras expe-rincias urbanas, co-mo na frica (cf. Marchal, 1993).

    16 Os Freemen co-mo muitas vezes sochamados os mem-bros das milcias deextrema-direita soos pobres coitadosda sociedade ameri-cana (Le Monde, 30/07/96, p. 2).

  • WIEVIORKA, Michel. O novo paradigma da violncia. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 9(1): 5-41, maio de 1997.

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    elas so tambm um fator inverso, de encorajamento aos olhos de atores quepodem ser tentados, por exemplo, a transformar uma raiva ou uma clerasocial em violncia poltica. Nos anos 70 e 80, a violncia poltica traduziusobretudo o fim de uma poca, a decomposio de sistemas sociais, polticose estatais. Ela combinava a reao contra uma ordem estatal, percebida antesde mais nada como repressiva, e o apelo revolucionrio mudana. Neste fimde sculo, a violncia social, a dos motins, por exemplo, ou aquele que sevincula a uma identidade, tnica ou religiosa, constitui uma tendncia queprevalece sobre a violncia poltica, mas nada impede de postular que a prazoesta venha a se reconstituir, preldio talvez de uma recomposio de sistemassociais, polticos e estatais hoje enfraquecidos. Pode-se assim criar a hiptesede que o aparecimento do terrorismo interno nos Estados Unidos, onde eleparecia improvvel, anuncia ou constitui o esboo de mudanas polticas ousociais importantes nesse pas, e no somente a expresso de uma rebeliocontra o Estado federal enfraquecido. Mas, no conjunto, a importncia daviolncia infrapoltica no mundo contemporneo deriva do fato de que elaparece bem mais ligada ao enfraquecimento dos Estados e a prticas refe-rentes ao crime organizado, e mesmo criminalidade mais banal, pormcrescente, desenfreada, do que emergncia de conflitos sociais e polticosdos quais ela constituiria a fase primitiva. O crime organizado vem muitasvezes junto, no meio da populao, com opinies muito negativas sobre oEstado, a justia, a polcia; mas ela dificilmente pode ser interpretada como aexpresso de revoltas em busca de si mesmas, na expectativa por exemplo deuma caracterizao ideolgico-poltica como oferecida pelo socialismo e pelocomunismo no passado. verdade que alguns traficantes so vistos em nvellocal, sobretudo nas zonas de produo de drogas, como benfeitores que tra-zem recursos, renda, e mesmo em alguns casos, garantias mnimas, por exem-plo, em matria de sade; que, muitas vezes, criminosos so o objeto de umjulgamento mais positivo por parte da populao dos lugares onde surgem doque o Estado, as instituies e seus representantes. Mas difcil de aplicar aosatores do crime organizado o papel pr-poltico de anunciadores de umacontestao popular, ou de ver a uma figura comparvel ao do bandido social,tal qual foi analisado por Eric Hobsbawm (1968).

    Mas no reduzamos a violncia infrapoltica exclusivamente s suasdimenses de violncia privada, instrumental; sob vrios aspectos, a violn-cia gratuita, ldica, eventualmente ligada ao gosto do risco, a um desejo deaventura, ao esforo para produzir ou atingir um acrscimo de sentido esttambm relacionada com esse nvel, bem como aquele que constitui o con-trrio da busca de sentido, e implica muito na abolio de qualquer tipo desentido no puro