WINDSOR MALAQUIAS CORDEIRO · inaugurando uma nova forma de estruturação do processo, chamada...

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ FACULDADE DE DIREITO PROGRAMA DE PÓS-GRAUDAÇÃO EM DIREITO CURSO DE MESTRADO ACADÊMICO O DEVER DE COOPERAÇÃO NO DIREITO PROCESSUAL CIVIL: propostas para a promoção de sua eficácia e efetividade WINDSOR MALAQUIAS CORDEIRO FORTALEZA-CE 2018

Transcript of WINDSOR MALAQUIAS CORDEIRO · inaugurando uma nova forma de estruturação do processo, chamada...

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

    FACULDADE DE DIREITO

    PROGRAMA DE PÓS-GRAUDAÇÃO EM DIREITO

    CURSO DE MESTRADO ACADÊMICO

    O DEVER DE COOPERAÇÃO NO DIREITO PROCESSUAL CIVIL:

    propostas para a promoção de sua eficácia e efetividade

    WINDSOR MALAQUIAS CORDEIRO

    FORTALEZA-CE

    2018

  • WINDSOR MALAQUIAS CORDEIRO

    O DEVER DE COOPERAÇÃO NO DIREITO PROCESSUAL CIVIL:

    propostas para a promoção de sua eficácia e efetividade

    Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Ceará, no Curso de Mestrado Acadêmico, na área de concentração Ordem Jurídica Constitucional, como requisito parcial para a obtenção do Grau de Mestre em Direito, sob a orientação do Professor Doutor Hugo de Brito Machado Segundo e sob a coorientação do Professor Doutor Carlos Marden.

    FORTALEZA-CE

    2018

  • DEDICATÓRIA

    A principal missão e o desafio de um pesquisador é enfrentar um relevante

    problema científico que se impõe em seu tempo. O trabalho acadêmico, mormente quando se

    propõe a sair do plano meramente descritivo da realidade, gera angústia, pois recai sobre o autor

    mais dúvidas do que certezas. O autor, ao levantar as suas hipóteses, fica mais próximo do erro

    do que do acerto.

    O que acalenta é saber que a contribuição ora entregue à comunidade acadêmica,

    mesmo com a reconhecida pequenez, servirá pelo menos para manter acesa a chama da

    discussão sobre os problemas da eficácia e da efetividade do dever de cooperação no direito

    processual civil brasileiro.

    A presente pesquisa é fruto de muita superação.

    Superação pelo desafio acadêmico assumido, cujo tema, terreno poroso e

    escorregadio, é ainda timidamente tratado pela doutrina nacional.

    E, principalmente, superação pessoal. Durante a feitura deste trabalho, enfrentei

    problemas familiares e um crescente agravamento do quadro de saúde da minha mãe, que, ao

    lado do meu pai, são as pessoas a quem mais amo nesta vida e as minhas maiores referências.

    O que nos define, entretanto, não é o que nos acontece, mas como reagimos.

    Dedico esta pesquisa à William e Lúcia, meus amados pais.

    Dedico, em especial, à Cléo, meu amor, meu suporte.

  • AGRADECIMENTOS

    Agradeço à Jesus, minha força e minha paz, ao meu Divino Espírito Santo, à Nossa

    Senhora de Fátima e ao meu São Miguel Arcanjo, pela iluminação e proteção.

    Agradeço ao Prof. Hugo Segundo, por despertar em mim a análise crítica do

    conhecimento científico e um olhar não dogmático do Direito. Os aprofundados estudos, em

    sua disciplina no Curso de Mestrado do Programa de Pós-Graduação strictu sensu da Faculdade

    de Direito da Universidade Federal do Ceará, foram essenciais para o meu amadurecimento

    enquanto pesquisador. Agradeço, ainda, pelo apoio e pela paciência diante de tudo que envolveu

    a minha caminhada acadêmica.

    Agradeço ao Prof. Carlos Marden, por sempre me passar confiança e tranquilidade

    e por me proporcionar, com as suas aulas e obra, subsídios para entender as novas perspectivas

    teóricas do processo civil brasileiro contemporâneo.

    Agradeço ao Prof. Juraci Mourão, por me instigar, a partir dos seus comentários, a

    abordar o tema para além do nível superficial do Direito, bem como a encontrar sustentação

    teórica para o dever de cooperação entre as partes no processo civil.

    Agradeço ao Programa de Pós-Graduação strictu sensu da Faculdade de Direito da

    Universidade Federal do Ceará, nas pessoas da Profa. Tarin Mont’Alverne, Marilene e Heloísa,

    pelo acolhimento e pela oportunidade de aprender tanto.

  • Somos craques em fazer leis. A nossa dificuldade é cumpri-las.

    Ministra Carmen Lúcia (Presidente do STF, em palestra, no dia 21/05/2018,

    no Centro Universitário de Brasília – UniCeub)

  • RESUMO

    O modelo de conformação do Direito – e, por conseguinte, do Direito Processual – guarda direta relação com o modelo de conformação do Estado e da sociedade. Especialmente após o segundo pós-guerra, pautando-se no escopo principal de transformar a realidade, isto é, de transformar o status quo, e no ideal democrático, desenvolve-se, em evolução ao Estado de Direito Liberal e ao Estado de Direito Social, um novo modelo de organização estatal, qual seja, o Estado de Direito Democrático. A Constituição brasileira de 1988, nossa Lei maior, elege, expressamente, no caput do seu art. 1°, esse novel modelo como paradigma a ser seguido. Quanto ao ideal de sociedade, a Constituição incorpora a solidariedade social como objetivo da República (art. 3°, I – norma-fim), em franca harmonia com a passagem do pensamento moderno ao pensamento contemporâneo. Com efeito, desde meados do século XX, é cada vez mais crescente a doutrina solidarista, a qual cria bases para a construção de uma sociedade solidária, cooperativa, mormente no que tange aos aspectos econômicos e jurídicos. Na mesma linha, é dizer, em sintonia com as irrefutáveis transformações sociais, o Direito Processual Civil, produto cultural de sua época, passou, nas últimas décadas, por uma reconstrução dos seus aportes teóricos. Em nosso país, o símbolo maior dessa mudança de curso é refletido no Código de Processo Civil de 2015 (CPC de 2015), que teve positivado, em seu art. 6°, o princípio da cooperação, inaugurando uma nova forma de estruturação do processo, chamada pela doutrina abalizada de modelo processual cooperativo. Trata-se de modelo que visa, à luz da democracia pluralista, equilibrar a divisão de trabalho entre os sujeitos do processo, sem protagonismo do juiz nem das partes no iter processual. Assim, na gestão cooperativa ou compartilhada do processo, é dado uma nova dimensão ao papel do juiz e das partes. E, enquanto regra de conduta, a cooperação gera uma série de deveres aos sujeitos processuais. Ocorre que o art. 6° do CPC/2015 – e, em geral, o Direito como um todo – não expressa a natureza do ser. Tradicionalmente, o juiz brasileiro, na condução do processo, não se coloca no mesmo plano das partes. Por sua vez, os jurisdicionados e os seus procuradores ainda se pautam, em grande medida, na ultrapassada cultura do litígio, que trata o processo, em uma visão demasiadamente limitada e pessimista da realidade, como um “embate”, uma “rinha”, um “vale tudo”. Esses resquícios histórico-culturais, repise-se, mormente atinentes ao centralismo judicial e à mencionada cultura do litígio, são obstáculos ao desenvolvimento da recente transição paradigmática ocorrida no processo civil. Certo da necessidade de um corte temático frente às inúmeras nuances da cooperação, investiga-se os problemas da eficácia e da efetividade do dever de cooperação no direito processual civil brasileiro. Analisa-se, na presente dissertação, as dimensões normativa e valorativa da cooperação processual, enquanto fenômeno jurídico, a partir de uma abordagem epistemológica e axiológica. O trabalho tem como principal objetivo apresentar propostas que possam contribuir para a promoção da eficácia e da efetividade do dever normativo de cooperação processual. Para alcançar esse objetivo, utiliza-se, como metodologia, a pesquisa qualitativa, do tipo bibliográfica e documental, com viés propositivo e com apoio do raciocínio dedutivo. Palavras-chave: Cooperação Processual. Dever de Conduta. Eficácia. Efetividade.

  • ABSTRACT

    The conformation model of the Law – and, thus, of the Procedural Law– holds direct relation with the conformation model of the State and society. After the second post-war, specially, relating itself with the main scope of transforming reality, that is, of transforming the status quo, and in the democratic ideal, alongside the evolution to the Liberal Rule of Law and the Social Law State, a new model of state organization is developed, which is, the State of Democratic Law. The Brazilian Constitution of 1988, our major law, elects, expressively, in the caput of its article n.1, this new model as a paradigm to be followed. In regards to the society ideal, the Constitution incorporates the social solidarity as an objective of the Republic (article n.3, I – norma-fim), in frank harmony with the passage of the modern thought to the contemporary thought. Indeed, since the beginning of the XX century, the solidarity doctrine is increasing even more, which creates basis for the construction of a solidary, cooperative society, in what, mostly, has to do with economic and juridical aspects. In the same line, it is to say, in harmony with the irrefutable social transformations, the Civic Procedural Law, cultural product of its time, passed through, in the last decades, a reconstruction of its technical contributions. In our country, the greatest symbol of this change of path is reflected on the Procedural Civic Code of 2015 (PCC of 2015), that affirmed, in its article n.6, the principle of cooperation, beginning a new way of structuring the process, called by the qualified doctrine of procedural cooperative model. It is a model which aims, in the light of the pluralist democracy, to balance the division of work between the procedural subjects, without protagonism of the judge and nor of the parts in the procedural iter. Therefore, in the cooperative or produre-shared management, it is given a new dimension to the role of the judge and the parts. Moreover, while following rule of conduct, the cooperation generates a series of duties to the procedural subjects. It occurs that in the article n.6 of the PCC/2015 – and, in general, Law as a whole does not expresses the nature of the being. Traditionally, the Brazilian judge, in the conduct of the process, does not put themselves in the same plane of the parts. On the other hand, the adjudicated and their attorneys still guides themselves, largely, by the outdated culture of litigation, which handles the procedure in an overly limited vision and pessimistic in regards to reality, as a “quarrel”, a “ruffle”, a “free-for-all”. Assured of the necessity of a thematic court against the innumerable nuances of the cooperation, we investigate the effectivity of the cooperation duty of the judge and the parts in the Brazilian Civic Procedural Law. We analysed, in the present essay, the normative and value dimensions of the procedural cooperation, while a juridical phenomenon, based on an epistemological and axiological approach. There are two main objectives in this essay, namely: (i) to demonstrate that, due to the cultural and historical remnants, regarding mainly the juridical centralism and the litigation culture, which tends to obscure the development of the recent paradigmatic transition occurred in the civic procedure, the duty of procedural cooperation, in the manner which it is attributed in the Brazilian juridical ordination, lacks effectivity; and (ii) to promote the cooperation through positive stimuli, such as punctuating the juridical education in Law Schools in cooperative procedural practices, as well as through the negative pressure (coercive measures) regarding the example of the increase, without loss of the sanctions of procedural nature and of the disciplinary sanctions. To reach these objectives, we utilized, as a methodology, the qualitative research, of the bibliographic and documental kind, with propositional bias and with the support of the deductive logic. Key words: Procedural Cooperation. Duty of Conduct. Effectiveness. Effectivity.

  • SUMÁRIO

    INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 10

    CAPÍTULO 1

    A (RE)CONSTRUÇÃO TEÓRICA DA COOPERAÇÃO PROCESSUAL ..................... 14

    1.1 Conceitos Jurídicos Processuais ......................................................................................... 14

    1.2 Conceito de Processo, de Processo Jurisdicional e de Processo Jurisdicional

    Cooperativo .............................................................................................................................. 19

    1.3 Bases para a (re)construção do Conceito de Cooperação Processual ................................. 29

    1.3.1 Princípio Jurídico ..................................................................................................... 30

    1.3.1.1 Conteúdo Negativo ...................................................................................... 33

    1.3.1.2 Conteúdo Positivo ........................................................................................ 35

    1.3.2 Modelo de Processo .................................................................................................. 35

    1.3.3 Sistematização do Conceito ...................................................................................... 41

    1.4 Fundamentos da Cooperação Processual ............................................................................ 43

    1.5 Funcionalidade da Cooperação Processual ........................................................................ 48

    CAPÍTULO 2

    A POSITIVAÇÃO NORMATIVA DA COOPERAÇÃO PROCESSUAL ....................... 52

    2.1 Cláusula Geral de Cooperação Processual ......................................................................... 52

    2.2 Conteúdo Normativo da Cooperação Processual ............................................................... 56

    2.3 Deveres de Cooperação Processual .................................................................................... 62

    2.3.1 Dever de Esclarecimento .......................................................................................... 64

    2.3.2 Dever de Consulta (ou de Diálogo ou de Debate) .................................................... 66

  • 2.3.3 Dever de Prevenção .................................................................................................. 70

    2.3.4 Dever de Lealdade .................................................................................................... 72

    2.3.5 Dever de Proteção .................................................................................................... 77

    2.3.6 Dever de Auxílio (ou de Assistência) ...................................................................... 77

    2.3.7 Dever de Respeito ao Autorregramento da Vontade no Processo ............................ 79

    2.4 Mapa do Dever de Cooperação Processual no CPC de 2015 ............................................. 82

    CAPÍTULO 3

    OS PROBLEMAS DA EFICÁCIA E DA EFETIVIDADE DO DEVER DE

    COOPERAÇÃO PROCESSUAL ......................................................................................... 84

    3.1 Processo Jurisdicional Cooperativo: o processo como ele deve ser ................................... 84

    3.2 Cooperação Processual e Ensino Jurídico no Brasil ........................................................... 86

    3.3 Efetividade da Norma de Conduta: coercibilidade e sanção .............................................. 89

    3.3.1 Sanção à Conduta Processual Anticooperativa ........................................................ 90

    3.3.1.1 Sanções Disciplinares: propostas ................................................................. 91

    CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 93

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................. 96

    ANEXOS ............................................................................................................................... 102

  • INTRODUÇÃO

    A divisão de trabalho entre juiz e partes na organização interna do processo é tema

    dos mais relevantes e complexos da Ciência do Direito Processual, uma vez que envolve o

    arcabouço teórico e normativo de conformação do Direito Processual.

    A presente pesquisa parte da premissa de que o modelo de conformação do Direito

    – e, por conseguinte, do Direito Processual – guarda direta relação com o modelo de

    conformação do Estado e da sociedade.

    O Estado de Direito passou por diversas transformações, as quais, inegavelmente,

    influenciaram diretamente no amoldamento do processo jurisdicional, ora com viés mais liberal

    (processo como coisa das partes) ora com viés mais publicista-socializador, com o juiz colocado

    acima das partes e dotado de poderes capazes de diminuir o papel delas no processo.

    O advento do Estado Democrático de Direito e do ideal contemporâneo de

    sociedade solidária, especialmente após as suas respectivas releituras constitucionais pela ótica

    dos direitos fundamentais (neoconstitucionalismo), impõem a necessidade teórica e normativa

    de construção de um novo modelo de organização para o processo civil, pautado na divisão de

    trabalho equilibrada entre juiz e partes.

    Nesse sentido, defende-se que o modelo processual cooperativo é o mais adequado

    ao Estado Constitucional brasileiro, o qual, por sua vez, reúne as qualidades de Estado de

    Direito e de Estado Democrático, consoante se depreende do art. 1°, caput, da Constituição

    Federal de 19881 (CF de 1988)2. De igual modo, é o modelo de processo mais adequado ao

    ideal de sociedade solidária, expressamente almejado pelo art. 3°, inciso I, da CF de 1988

    (norma-fim).

    Em sendo uma decorrência valorativa do Estado Democrático de Direito e do ideal

    de sociedade solidária, a cooperação processual, além de modelo de processo, é princípio

    jurídico, melhor dizendo, princípio constitucional processual, em vigor, independentemente de

    1 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em:

    . Acesso em: 21 jul. 2018. 2 Nas citações futuras, para referir-se a esse Constituição, utilizar-se-á a sigla “CF de 1988”.

  • 11

    enunciado normativo expresso.

    A processualística contemporânea é chamada a mudar as suas bases teóricas, isto é,

    as suas premissas epistemológicas. O processo precisa ser pensado como uma “comunidade de

    trabalho”, modelada pelas exigências constitucionais, dentre outras, da igualdade, da boa-fé, do

    contraditório e do respeito à autonomia privada.

    O Código de Processo Civil brasileiro de 2015 (Lei n° 13.105, de 16 de março de

    2015 – CPC de 2015)3-4, em franca sintonia com a cultura de seu tempo, estrutura-se a partir

    do dever de cooperação processual, o qual, para que não reste dúvida, está expressamente

    consagrado em seu art. 6°, sendo norma fundamental do processo civil.

    Ocorre que o art. 6° do CPC de 2015 – e, em geral, o Direito como um todo – não

    expressa a natureza do ser. Tradicionalmente, o juiz brasileiro, na condução do processo, não

    se coloca no mesmo plano das partes. Por sua vez, os jurisdicionados e os seus procuradores

    ainda se pautam, em grande medida, na ultrapassada cultura do litígio, que trata o processo, em

    uma visão demasiadamente limitada e pessimista da realidade, como um “embate”, uma

    “rinha”, um “vale tudo”.

    Esses resquícios histórico-culturais, repise-se, mormente atinentes ao centralismo

    judicial e à mencionada cultura do litígio, são obstáculos ao desenvolvimento da recente

    transição paradigmática ocorrida no processo civil.

    Certo da necessidade de um corte temático frente às inúmeras nuances da

    cooperação, investiga-se os problemas da eficácia e da efetividade do dever de cooperação no

    direito processual civil brasileiro. Analisa-se, na presente dissertação, as dimensões normativa

    e valorativa da cooperação processual, enquanto fenômeno jurídico, a partir de uma abordagem

    filosófica, a saber, epistemológica e axiológica.

    O trabalho se estrutura em três capítulos. No primeiro capítulo, busca-se

    sistematizar a (re)construção teórica da cooperação processual. Com isso, a abordagem se dá

    tanto no plano da Epistemologia do Processo quanto no plano da Ciência do Direito Processual.

    No segundo capítulo, o estudo da cooperação processual se dá no nível do Direito positivo. No

    terceiro e último capítulo, enfrenta-se diretamente os problemas da eficácia e da efetividade do

    3 BRASIL. Lei n. 13.105/2015, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Brasília, DF, 16 mar. 2015.

    Disponível em: . Acesso em: 21 jul. 2018.

    4 Nas citações futuras, para referir-se a esse Código, utilizar-se-á a sigla “CPC de 2015”.

  • 12

    dever de cooperação processual e fazem-se propostas, visando a promover a cooperação entre

    todos os sujeitos do processo.

    Com efeito, o trabalho tem como principal objetivo apresentar propostas que

    possam contribuir para a promoção da eficácia e da efetividade do dever normativo de

    cooperação processual.

    Para alcançar esse objetivo, utiliza-se, como metodologia, a pesquisa qualitativa,

    do tipo bibliográfica e documental, com viés propositivo e com apoio do raciocínio dedutivo.

    No que concerne às premissas de natureza metodológica que pautam este trabalho,

    esclarece-se que a abordagem será prescritiva, e não meramente descritiva da realidade.

    Discorrer sobre como é o processo se faz tão necessário quanto insuficiente quando se adota a

    postura científica5.

    O conceito de processo jurisdicional possui uma finalidade no plano do dever ser,

    que, por sua vez, nem sempre corresponde à finalidade para a qual ele é usado na prática. Assim,

    limitar-se à descrição de que as partes mentem, de que os juízes decidem de qualquer jeito, de

    que juiz e partes, quando se valem das técnicas processuais no seu dia-a-dia, não buscam uma

    decisão de mérito, justa, efetiva e em tempo razoável etc., não nos leva a nenhum lugar. É dizer,

    a abordagem limitada ao plano descritivo não acrescenta em nada, não contribui com progresso

    da ciência.

    Nesse diapasão, em que pese o conceito de processo seja ao mesmo tempo

    prescritivo e descrito, o esforço acadêmico será no sentido de teorizar o processo cooperativo

    no plano do dever ser.

    Registre-se, ainda, que, apesar de o berço da formulação da ideia de cooperação no

    processo civil ser na Alemanha e de existir propostas teóricas e normativas atualmente sendo

    discutidas e implementadas em outros países europeus, tem-se em mente que o direito brasileiro

    é próprio. O que, entretanto, não nos impede de fazer a devida (e, inclusive, necessária)

    referência à origem do instituto e às discussões que o cercam no direito alienígena.

    Por fim, como última premissa metodológica, pautando-se nas lições de Karl

    Popper, adota-se o raciocínio falibilista. A ciência não é profissão-de-fé, não é dogma. Se se

    pretende mesmo fazer do direito uma ciência, o primeiro passo é não dogmatizá-la.6 Portanto,

    5 MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. Fundamentos do Direito. São Paulo: Atlas, 2010, p. 5. 6 Por todos, MACHADO SEGUNDO, Hugo de brito. Por que Dogmática Jurídica? Rio de Janeiro: Forense, 2008;

    O Direito e sua Ciência: Uma Introdução à Epistemologia Jurídica. São Paulo: Malheiros, 2016.

  • 13

    não se pode almejar uma ciência dogmática do processo, pautada em um arcabouço de conceitos

    inquestionáveis. Assim, no iter da pesquisa, assinala-se as concordâncias e as discordâncias

    com esta ou aquela teoria, com este ou aquele autor, pois certo é que nunca se escreve um

    trabalho acadêmico sozinho. Ele é sempre fruto de um bom diálogo.

  • 14

    CAPÍTULO 1

    A (RE)CONSTRUÇÃO TEÓRICA DA COOPERAÇÃO PROCESSUAL

    1.1 Conceitos Jurídicos Processuais

    Etimologicamente, epistemologia deriva do grego, das palavras episteme e logos.

    A primeira significa conhecimento científico, ciência. A segunda, discurso, estudo de.

    Epistemologia é, em suma, o ramo da filosofia que estuda como se produz, como se desenvolve,

    o conhecimento, em especial o conhecimento científico. Trata das peculiaridades inerentes à

    relação que se estabelece, em movimento circular, entre o sujeito que conhece e o objeto (ou a

    realidade) que é conhecido(a).

    Essa disciplina filosófica, também chamada de Teoria do Conhecimento ou

    Filosofia da Ciência7, tem se aproximado cada vez mais da ciência jurídica. Nesse passo, é

    oportuno registrar que se adota, neste trabalho, uma concepção popperiana de ciência8, na qual

    tudo pode ser objeto de uma perspectiva científica, a exemplo do Direito, desde que seja

    formado por enunciados cujos resultados sejam passíveis de refutação.

    A aproximação entre a Epistemologia e o Direito visa proporcionar uma melhor

    compreensão do fenômeno jurídico, tendo relevância e repercussão tanto no campo da Teoria

    do Direito quanto no campo da Teoria do Direito Processual, sendo certo que esta é uma teoria

    parcial daquela9.

    Michele Taruffo, jurista expoente, mormente no que tange ao estudo dos

    fundamentos epistemológicos da prova no processo civil, afirma que, no que tange à busca da

    verdade, a atividade do juiz se assemelha “nos mínimos detalhes” à atividade do pesquisador10.

    Salienta que, “para um juiz que vive na sociedade atual, dominada pela ciência e pela

    7 MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. Epistemologia Falibilista e Teoria do Direito. Revista do Instituto de

    Direito Brasileiro da Universidade de Lisboa. Ano 3. 2014, n.1, p. 198. Disponível online em , último acesso em 26 jun. 2018.

    8 POPPER, Karl. A vida é aprendizagem. Epistemologia evolutiva e sociedade aberta. Tradução de Paula Taipas. Lisboa: Edições 70, 2001.

    9 DIDIER JR., Fredie. Teoria Geral do Processo, essa desconhecida. 3. ed. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 74/75. 10 TARUFFO, Michele. Uma Simples Verdade: o juiz e a construção dos fatos. São Paulo: Marcial Pons, 2012, p.

    225.

  • 15

    tecnologia, em uma situação em que a ciência entra cada vez mais rápido nos tribunais, não é

    excessivo se requerer um nível adequado de informação epistemológica.”11

    Registre-se, ainda, que Karl Popper, considerado por muitos como o filósofo mais

    influente do século XX a tematizar a ciência, defende, originalmente no livro The Logic of

    Scientific Discovery (A Lógica da Pesquisa Científica)12, cuja edição primeira data de 1934, um

    não dogmatismo para a ciência13, contrariando a máxima difundida até então de que o que

    estivesse cientificamente comprovado seria irrefutável.

    Assim, em vez de as verdades científicas serem definitivas, sob o argumento de que

    passaram por um processo de experimentação prévio, Popper sustenta que as verdades

    científicas são provisórias, porque são consideradas verdadeiras até que se demonstre a sua

    falsidade. Isso, é dizer, a característica da provisoriedade, é perfeitamente aplicável aos

    conceitos jurídicos.14

    Ressalte-se que essa conclusão filosófica vai ao encontro das descobertas que se

    teve com o avanço da biologia e da neurociência15. É dizer, o cérebro humano funciona a toda

    hora se valendo de um raciocínio falibilista. Em verdade, o raciocínio derrotável, base da ideia

    de Popper, nada mais é do que uma consequência da falibilidade humana.16

    Com efeito, o cérebro humano tem um acesso limitado à realidade, seja porque a

    nossa capacidade sensorial (de sentidos17) é imperfeita seja porque a nossa capacidade de

    conhecer (de cognição) é intermediada pelos nossos preconceitos, os quais, por sua vez, podem

    11 Ibidem, p. 248/249. 12 POPPER, Karl P. A Lógica da Pesquisa Científica. Tradução de Leonidas Hegenberg e Octanny Silveira da

    Mota. São Paulo: Editora Cultrix, 2001. 13 POPPER, Karl. A vida é aprendizagem. Epistemologia evolutiva e sociedade aberta. Tradução de Paula Taipas.

    Lisboa: Edições 70, 2001, p. 22. 14 MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. Por que dogmática jurídica? Rio de Janeiro: Forense, 2008. 15 MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. O Direito e sua Ciência: uma introdução à Epistemologia Jurídica.

    São Paulo: Malheiros, 2016, p. 10. 16 [...] apresenta-se o falibilismo, segundo o qual, ainda que não se possa ter certeza a respeito da veracidade ou do

    acerto de afirmações feitas a respeito da realidade, é possível submetê-las a testes, a fim de que sejam consideradas verdadeiras enquanto não for demonstrada a sua falsidade. Essa atitude, que corresponde, em alguma medida, à forma como se comportam os seres vivos em geral e o ser humano em particular, parece ser a forma mais adequada de lidar com o risco de estar errado, equilibrando a busca pela verdade, de um lado, com a necessidade prática de se tornarem decisões imediatas, de outro. Diante da sensação de sede, e da imagem de um copo de água diante de si, o sujeito não ficará por horas a refletir se realmente é sede o que sente, e se é água o que vê à sua frente, ou se está sonhando ou realmente acordado. Ele simplesmente beberá a água. Mas se, no meio do processo, ao aproximar-se do copo, perceber, pelo odor, tratar-se de outra substância, retificará a imagem inicialmente formada, corrigindo o curso de suas ações. In MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. O Direito e sua Ciência: uma introdução à Epistemologia Jurídica. São Paulo: Malheiros, 2016, p. 46.

    17 Tradicionalmente, afirma-se que os seres humanos possuem 05 (cinco) sentidos principais, a saber: visão, olfato, paladar, audição e tato.

  • 16

    ser tanto preconceitos culturais (pré-compreensões) quanto preconceitos naturais (institutos

    impregnados em nosso DNA).

    Uma vez que o conhecimento é imperfeito, adota-se uma postura falibilista (ou

    falsificacionista) para a análise e (re)construção dos conceitos jurídicos trabalhados nesta

    pesquisa.

    Assevere-se, ainda, que equivocada seria a tentativa de compreensão e aplicação do

    dever de cooperação processual tomando-se por base apenas a sua disciplina legal constante no

    Código de Processo Civil de 2015.

    À luz das lições de Juraci Mourão Lopes Filho, que, por sua vez, pauta-se em Raimo

    Siltala, responsável e acertada será a abordagem de qualquer tema jurídico que perpasse pelos

    três níveis do Direito, quais sejam: (i) o nível superficial do Direito positivo e sua dogmática

    estrita; (ii) o nível das estruturas profundas, que se ramifica nos aspectos ideológico e

    propriamente teórico; e, por fim, (iii) o nível infraestrutural, marcado pelos elementos pré-

    jurídicos condensados pela Filosofia que influenciam o assunto.18

    Adverte o referido autor que “esses níveis interagem, e a existência ou não de

    alinhamento entre eles é critério definitivo para se acusar ou não a existência de erros de

    abordagem”. Continua, atestando que “não são estanques ou mesmo possíveis de um

    isolamento absoluto, mas bem se prestam para uma clareza de estudo”.19

    A seu turno, conforme se extrai dos ensinamentos de Fredie Didier Jr., o processo

    pode ser objeto de estudo em diferentes planos (dimensões ou níveis). Veja-se. Em um primeiro

    plano, tem-se o fato processo, estudado sob o viés da Sociologia do Processo. Em um segundo

    plano, tem-se o direito processual, isto é, a lei produzida pelo legislador, e, portanto, linguagem.

    Em um terceiro plano, tem-se a Ciência do Direito Processual, que é metalinguagem, é dizer,

    linguagem sobre linguagem. É aqui que a doutrina, o cientista do processo, cria os conceitos

    jurídico-positivos processuais20, a exemplo do conceito de processo jurisdicional cooperativo.

    Em um quarto e último plano, tem-se a Epistemologia da Ciência do Direito

    Processual ou a Filosofia da Ciência do Direito Processual, que é metametalinguagem, é dizer,

    é linguagem sobre a metalinguagem. É aqui que a doutrina produz os conceitos jurídicos

    18 LOPES FILHO, Juraci Mourão. Os Precedentes Judiciais no Constitucionalismo Brasileiro Contemporâneo. 2.

    ed. rev. e atual. Salvador: JusPODIVM, 2016, p. 135/136. 19 Ibidem, p. 136. 20 DIDIER JR., Fredie. Teoria Geral do Processo, essa desconhecida. 3. ed. Salvador: JusPODIVM, 2016, p. 76.

  • 17

    fundamentais processuais (ou conceitos lógico-jurídicos processuais), a exemplo do próprio

    conceito de processo, bem como dos conceitos de norma processual, de decisão, de prova, de

    presunção, de capacidade de ser parte, de capacidade postulatória etc.21

    É no plano da Epistemologia do Processo que a Teoria Geral do Processo é

    estruturada, sendo por isso mesmo uma disciplina filosófica, de viés epistemológico,

    responsável pela construção e reconstrução dos conceitos fundamentais relacionados ao

    processo.22

    Uma vez que todos os outros conceitos fundamentais trabalhados na Teoria Geral

    do Processo (ou Teoria Geral do Direito Processual) e, por conseguinte, na Ciência do Processo

    (ou Ciência do Direito Processual) dependem do que se entende por “processo”, enquanto

    fenômeno jurídico, o conceito de processo é o conceito jurídico fundamental processual

    primário (ou conceito lógico-jurídico processual primário) dessas disciplinas jurídicas.23

    Pautando-se em maior medida nos ensinamentos de Humberto Ávila24-25 e Fredie

    Didier Jr.26-27, apresenta-se o seguinte quadro esquemático:

    Plano 1 – Processo • Sociologia do Processo:

    � Disciplina parcial da Ciência do Direito. � Estuda o Fato Processo.

    Plano 2 – Direito Processual • É a lei, o direito posto.

    � Direito Processual: Civil, Penal, Eleitoral etc.

    • É linguagem, do tipo normativa. � Papel do legislador. � Aqui, há a produção de normas processuais, e não de conceitos.

    • Sociologia do Direito Processual:

    � O que faz determinada sociedade escolher um ou outro caminho? Plano 3 – Ciência do Direito Processual • Ciência do Processo:

    � Disciplina parcial da Ciência do Direito.

    21 Ibidem, p. 55. 22 Ibidem, p. 75. 23 Ibidem, p. 76. 24 ÁVILA, Humberto Bergmann. A distinção entre princípios e regras e a redefinição do dever de

    proporcionalidade. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, 215: 151-179, jan./mar. 1999. 25 ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 16. ed. rev. e atual.

    São Paulo: Malheiros, 2015. 26 DIDIER JR., Fredie. Teoria Geral do Processo, essa desconhecida. 3. ed. Salvador: JusPODIVM, 2016. 27 DIDIER JR. Fredie. Curso de Direito Processual Civil: Parte Geral e Processo de Conhecimento. 18. ed.

    Salvador: JusPODIVM, 2016, p. 36-39.

  • 18

    • É metalinguagem (linguagem sobre linguagem). � É linguagem doutrinária sobre linguagem normativa. � Papel do cientista do processo, do doutrinador, do processualista. � Aqui, há a produção de conceitos, e não de normas.

    • Produz conceitos jurídico-positivos.

    � Construído em uma perspectiva individual, particular a determinado ordenamento jurídico.

    • Trabalha tanto com os conceitos jurídico-positivos quanto com os conceitos jurídicos fundamentais.

    • Ciência do Direito Processual: 1. Processo Jurisdicional:

    � Jurisdição Estatal: a) Civil

    Disciplina: Teoria do Processo Civil Conceito jurídico-positivo produzido pela TPC: conceito de processo jurisdicional cooperativo. Cooperação Processual enquanto Princípio Jurídico e Modelo de Processo. Caráter deontológico do Princípio: determina o que deve ser.

    b) Penal c) Trabalhista d) Militar e) Eleitoral

    � Jurisdição Negocial (ou Privada):

    o Processo Jurisdicional Negocial (ou Privado) o Disciplina: Teoria do Processo Negocial o Conceito jurídico-positivo: Autonomia Privada (ou Autorregramento da Vontade). o Princ. do Respeito ao Autorregramento da Vontade no Processo o Métodos de Solução Consensual de Conflitos:

    - Por Heterocomposição: a) Arbitragem:

    Processo Arbitral – Lei n° 9.307, de 23 de setembro de 1996. - Por Autocomposição:

    b) Conciliação c) Mediação

    2. Processos Não-Jurisdicionais:

    a) Administrativo b) Legislativo

    Plano 4 – Filosofia (Epistemologia) da Ciência do Direito Processual • Filosofia (Epistemologia) do Processo.

    � Epistemologia é um ramo da Filosofia, é uma disciplina filosófica.

    • É metametalinguagem (linguagem sobre metalinguagem). � É linguagem doutrinária sobre linguagem doutrinária. � Papel do filósofo, do teórico, do processualista.

    • Produz conceitos jurídicos fundamentais (ou conceitos lógico-jurídicos).

    � Construído em uma perspectiva universal, filosófica, aplicável a qualquer ordenamento jurídico. � O conceito jurídico fundamental primário é o fundamento de todos os outros conceitos jurídicos

    fundamentais.

    • Disciplina: Teoria Geral do Processo (ou Teoria do Processo) ou Teoria Geral do Direito Processual (ou Teoria do Direito Processual). � Conceito jurídico fundamental primário da TGP: conceito de processo. � Quem sistematiza a TGP é o doutrinador, e não o legislador. � Ramificações:

    1. Teoria Geral do Processo Jurisdicional

  • 19

    Conceito jurídico fundamental primário da TGPJ: conceito de processo jurisdicional. 2. Teoria Geral do Processo Administrativo 3. Teoria Geral do Processo Legislativo 4. Teoria Geral do Processo Negocial

    • Filosofia do Direito:

    � Epistemologia Jurídica � TGD: O que é Direito? Norma. • Filosofia do Processo:

    � Epistemologia do Processo � TGP: O que é Processo? Método de Produção de Norma Jurídica. 1. TGPJ: O que é Processo Jurisdicional? Método de Produção de Decisão Judicial.

    � Axiologia do Processo: disciplina filosófica que estuda os valores que orientam a atividade processual.

    Cooperação Processual enquanto valor. Caráter Axiológico do Valor: determina o que é melhor.

    Analisa-se, na presente dissertação, as dimensões normativa e valorativa da

    cooperação processual, enquanto fenômeno jurídico, a partir de uma abordagem filosófica, a

    saber, epistemológica e axiológica.

    Para Karl Popper, a pesquisa não tem fim e o trabalho do pesquisador tem de ser no

    sentido de tornar os conceitos cada vez mais refinados. Segundo o referido filósofo, “as teorias

    são redes, lançadas para capturar aquilo que denominamos de ‘o mundo’: para racionalizá-lo,

    explicá-lo, dominá-lo. Nossos esforços são no sentido de tornar as malhas da rede cada vez

    mais estreitas”28.

    Passa-se, então, à distinção entre os conceitos (jurídicos) de processo, de processo

    jurisdicional e de processo jurisdicional cooperativo.

    1.2 Conceito de Processo, de Processo Jurisdicional e de Processo

    Jurisdicional Cooperativo

    Não se consegue compreender o mundo sem conceitos pré-definidos. É certo que

    os conceitos nunca abarcam o que ocorre no mundo, isto é, nunca abarcam a realidade.

    Entretanto, são, inegavelmente, essenciais à racionalização do mundo e à estruturação da

    Ciência e da Filosofia.

    28 POPPER, Karl P. A Lógica da Pesquisa Científica. Tradução de Leonidas Hegenberg e Octanny Silveira da

    Mota. São Paulo: Editora Cultrix, 2001, p. 61-62.

  • 20

    No Direito, não é diferente. O Direito, enquanto Ciência e Filosofia, é construído e

    pensado a partir de conceitos jurídicos. Por isso, Fredie Didier Jr. afirma que tanto a Teoria

    Geral do Processo quanto a Ciência do Direito Processual são sistemas de conceitos29.

    Há os conceitos jurídicos fundamentais, os quais possuem pretensão de

    universalidade. Valendo-se das lições de Karl Popper30 e aplicando-as ao Direito, o retro citado

    processualista baiano assevera que os conceitos jurídicos fundamentais “servem à compreensão

    do fenômeno jurídico, onde quer que ele ocorra”, qualquer que seja o conteúdo do ordenamento

    jurídico31. A título de exemplo, tem-se o conceito de norma jurídica, produzido pela Teoria

    Geral do Direito, e os conceitos de processo e de prova, ambos produzidos pela Teoria Geral

    do Processo. Também denominados de conceitos lógico-jurídicos, estes conceitos possuem

    natureza epistemológica, isto é, filosófica.

    Imperioso se faz registrar, que, em todo sistema de conceitos, há o conceito

    primário, o qual é o fundamento de todos os outros conceitos fundamentais. Para a Teoria Geral

    do Processo e, por conseguinte, para a Ciência do Direito Processual, o conceito de “processo”

    é o conceito jurídico fundamental primário.32

    O processo pode ser analisado sob diferentes perspectivas e diferente será, pois, a

    sua definição. O processo, enquanto fenômeno jurídico, pode ser compreendido como ato

    jurídico complexo (procedimento), como conjunto de relações jurídicas e como método de

    criação de normas jurídicas33.

    Ocorre que nenhuma dessas acepções de processo se excluem. Na primeira, revela-

    se o que é processo. Na segunda, o que ele gera. Já na terceira, para que ele serve.34

    Destarte, em resumo, sob o enfoque epistemológico, tem-se que processo é o ato

    jurídico complexo que gera relações jurídicas entre os sujeitos processuais e tem por finalidade

    a produção de normas jurídicas.

    Enquanto método de criação de normas jurídicas, o processo deve ser estudado sob

    o enfoque da Teoria da Norma Jurídica, que é teoria parcial da Teoria Geral do Direito. Por sua

    29 DIDIER JR., Fredie. Teoria Geral do Processo, essa desconhecida. 3. ed. Salvador: JusPODIVM, 2016, p. 75. 30 Para quem é de “fundamental importância a distinção entre conceitos ou nomes universais e individuais”, in

    POPPER, Karl. A lógica da pesquisa jurídica, cit., p.67. 31 DIDIER JR., Fredie. Teoria Geral do Processo, essa desconhecida. 3. ed. Salvador: JusPODIVM, 2016, p. 49. 32 Ibidem, p. 76. 33 Ibidem, p. 78. 34 Ibidem, p. 85.

  • 21

    vez, a Teoria Geral do Processo é, consequentemente, uma teoria parcial da Teoria Geral do

    Direito.35

    Nesta esteira, saliente-se que a Teoria Geral do Processo é gênero do qual são

    espécies a Teoria Geral do Processo Jurisdicional, a Teoria Geral do Processo Administrativo,

    a Teoria Geral do Processo Legislativo e a Teoria Geral do Processo Negocial.36

    Fala-se, atualmente, em direito fundamental à processualização, mormente pelo

    fato de que o poder de criação de normas só pode ser exercido processualmente. Nesse sentido,

    transcreve-se pertinente aporte doutrinário:

    O poder de criação de normas (poder normativo) somente pode ser exercido processualmente. Assim, fala-se em processo legislativo (produção de normas gerais pelo Poder Legislativo), processo administrativo (produção de normas gerais e individualizadas pela Administração) e processo jurisdicional (produção de normas pela jurisdição). É possível, ainda, conceber o processo negocial, método de criação de normas jurídicas pelo exercício da autonomia privada. Rigorosamente, o processo é de construção de atos normativos – leis, atos administrativos, decisões judiciais e negócios jurídicos; a partir da interpretação desses atos normativos, surgirão as normas jurídicas.37

    Em sendo o processo jurisdicional o conceito jurídico fundamental primário da

    Teoria Geral do Processo Jurisdicional, Fredie Didier Jr. arremata que “é possível definir o

    processo jurisdicional como ato jurídico complexo pelo qual se busca a produção de uma norma

    jurídica por meio do exercício da função jurisdicional”38.

    Oportuno, então, registrar que, neste trabalho, admite-se, sob o prisma

    epistemológico, a fragmentada compreensão de processo como método de exercício da

    jurisdição. No entanto, avançando-se para o plano da Ciência do Direito Processual, não é

    qualquer processo (método-processo) que legitima o exercício da função jurisdicional.

    O processo jurisdicional que se busca será aquele modelado pela Constituição e

    pelo direito processual vigente. É dizer, a clausula geral do devido processo (constitucional e

    legal) será necessariamente conformada pelo direito posto.

    A seu turno, admite-se também, neste trabalho, sob o prisma epistemológico, a

    fragmentada compreensão de processo como relação jurídica. Entretanto, da mesma forma, é

    preciso ter em mente que, avançando-se para o plano da Ciência do Direito Processual, o

    35 Ibidem, p. 74-75. 36 Ibidem, p. 86. 37 DIDIER JR. Fredie. Curso de Direito Processual Civil: Parte Geral e Processo de Conhecimento. 18. ed.

    Salvador: JusPODIVM, 2016, p. 32. 38 DIDIER JR., Fredie. Teoria Geral do Processo, essa desconhecida. 3. ed. Salvador: JusPODIVM, 2016, p. 85.

  • 22

    conteúdo dessa relação jurídica será preenchido pelo direito positivado. Nessa linha, em

    sintonia com o entendimento de Dierle José Coelho Nunes39, Fredie Didier Jr.40 afirma que:

    Assim, não basta afirmar que o processo é uma relação jurídica, conceito lógico-jurídico que não engloba o respectivo conteúdo desta relação jurídica. É preciso lembrar que se trata de uma relação jurídica cujo conteúdo será determinado, primeiramente, pela Constituição e, em seguida, pelas demais normas processuais que devem observância àquela.

    Em síntese, sustenta-se, nesta Dissertação, que, em que pese a perspectiva

    epistemológica acima expendida seja irrefutável e necessária à boa compreensão do conceito

    filosófico de processo, quando se pretende dar forma ao modelo de processo jurisdicional

    almejado pelo ordenamento jurídico, isto é, quando a abordagem se dá no nível da Ciência do

    Direito Processual, faz-se imprescindível uma análise normativa e axiológica do modelo de

    organização do Estado e da sociedade consagrado na Constituição Federal.

    Outrossim, frise-se que tanto por razões epistemológicas quanto por razões

    axiológicas, rechaça-se, neste trabalho, todo e qualquer entendimento que retire o processo do

    centro da teoria do processo jurisdicional.

    Cândido Rangel Dinamarco, professor aposentado de Direito Processual da

    Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), uma das maiores referências da

    Escola Instrumentalista do Processo, defende que o processo se destina à solução de conflitos

    (pacificação social) e à realização de escopos metajurídicos (políticos, sociais, jurídicos etc.)

    do Estado. Assevera que isso só é possível pela jurisdição, manifestação do poder estatal,

    exercido pelos juízes. Portanto, a jurisdição, enquanto “poder”, é o centro da teoria processual.

    O citado professor paulista sustenta que o processo não pode ser colocado como

    elemento central porque ele, “em si próprio, como conjunto ou modelo de atos, traz profunda e

    indisfarçável marca de formalismo”41.

    Trata-se de tese com viés axiológico, disposta no livro intitulado A

    Instrumentalidade do Processo, o qual teve a sua primeira edição publicada em 1987.

    Dinamarco foi precursor e referencial teórico para a fase metodológica do direito processual

    civil brasileiro até então prevalente, denominada de instrumentalismo.

    39 NUNES, Dierle José Coelho. Processo Jurisdicional Democrático. 1ª ed. (ano 2008), 4ª reimpr. Curitiba: Juruá.

    2012, p. 208-250. 40 DIDIER JR. Fredie. Curso de Direito Processual Civil: Parte Geral e Processo de Conhecimento. 18. ed.

    Salvador: JusPODIVM, 2016, p. 35. 41 DINAMRCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 79.

  • 23

    En passant, saliente-se que Enrico Tulio Liebman, jurista italiano responsável pela

    disseminação de ideias com eixo na jurisdição, função típica de um Estado Social, veio para o

    Brasil durante a Segunda Guerra Mundial e lecionou direito na Universidade de São Paulo

    (USP). Iniciou-se, então, na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (também

    conhecida como “Arcadas”), a corrente de pensamento chamada de Escola Paulista de

    Processo. Vários foram os discípulos de Libman, sendo os mais destacados Alfredo Buzaid,

    autor do projeto que deu origem ao Código de Processo Civil de 197342 (CPC de 1973)43, e

    Cândido Rangel Dinamarco.44

    Especialmente nos últimos onze anos, com destaque para a contraposição feita por

    Carlos Alberto Alvaro de Oliveira na obra Do Formalismo no Processo Civil, com a primeira

    edição publicada em 1997, as conclusões obtidas pela tese do instrumentalismo vêm sendo

    completamente falseadas. Inclusive, erros terminológicos vêm sendo gradativamente apontados

    nas recentes pesquisas acadêmicas.

    Note-se que Dinamarco, em sua proposição, desconsidera a distinção entre forma,

    formalidade e formalismo. Esclarece Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, capitaneando a Escola

    Gaúcha de Processo, que formalismo (ou forma em sentido amplo) compreende “não só a

    forma, ou as formalidades, mas especialmente a delimitação dos poderes, faculdades e deveres

    dos sujeitos processuais, a coordenação de sua atividade, a ordenação do procedimento e a

    organização do processo, com vistas a que sejam atingidas suas finalidades primordiais”45.

    Ressalte-se, ainda, que o próprio título do livro de Dinamarco é apontado como

    impreciso. Veja-se:

    Nessa perspectiva, muito embora Dinamarco tenha se referido, já no título de sua obra, à instrumentalidade do processo, quem figura, em rigor, como instrumento para a realização dos direitos e da justiça são os juízes, não o processo. Propôs-se, então, sob certa ótica, a instrumentalidade dos juízes, e não propriamente a instrumentalidade do processo.46

    42 BRASIL. Lei n. 5.869/1973, de 11 de janeiro de 1973. Código de Processo Civil. Brasília, DF, 11 jan. 1973.

    Disponível em: . Acesso em: 21 jul. 2018. 43 Nas citações futuras, para referir-se a esse Código, utilizar-se-á a sigla “CPC de 1973”. 44 MARDEN, Carlos. A razoável duração do processo: o fenômeno temporal e o modelo constitucional processual.

    Curitiba: Juruá, 2015, p. 119-120. 45 OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. Do Formalismo no Processo Civil: proposta de um Formalismo-

    Valorativo. 3. ed. rev., atual. e aumentada. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 8. 46 MADUREIRA, Claudio. Fundamentos do novo Processo Civil Brasileiro: o processo civil do formalismo-

    valorativo. Belo Horizonte: Fórum, 2017, p. 55, nota 160.

  • 24

    Importantes contribuições para a superação teórica da fase instrumentalista também

    advieram da Escola Mineira de Processo, com destaque para Rosemiro Pereira Leal47-48 e, a

    partir do ano de 2008, André Cordeiro Leal49 e Dierle José Coelho Nunes50. Sustenta-se, nesta

    Escola, a noção de processo como garantia.51 Importante perceber, entretanto, que esta Escola

    trabalha o conceito de processo a partir de uma compreensão do modelo constitucional de

    processo estabelecido na Constituição brasileira. Trata-se, portanto, de uma perspectiva

    individual, e não universal (epistemológica). Transcreve-se passagem doutrinária que sintetiza

    o particular entendimento desta Escola de Processo:

    Para superar estes obstáculos e promover uma releitura do conceito de duração razoável do processo, impõe-se, já num primeiro momento, o abandono da matriz teórica da Escola Instrumentalista do Processo em favor da adoção do conceito de modelo constitucional de processo como sendo o novo marco teórico a ser utilizado. Passa-se, então, a entender que existe um direito fundamental ao processo enquanto metodologia de garantia de direitos fundamentais; sendo que o processo a ser configurado e assegurado deve necessariamente ser organizado com base na ideia de que os direitos fundamentais processuais (duração razoável, ampla defesa/argumentação, contraditório, imparcialidade e fundamentação das decisões) formam uma base principiológica harmônica e uníssona.52

    Os processualistas brasileiros contemporâneos, portanto, defendem que o

    instrumentalismo é um pensamento, um estágio metodológico da teoria processual, que não se

    sustenta mais, isto é, que não mais explica adequadamente o processo civil à luz do

    neoconstitucionalismo.

    Antes do instrumentalismo, a doutrina identifica o praxismo (ou sincretismo) e o

    processualismo como estágios metodológicos do direito processual civil. É dizer, costuma-se

    dividir em três fases a evolução histórica do direito processual.

    47 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria Geral do Processo: primeiros estudos. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016. 48 Ressalte-se que o livro Teoria Geral do Processo de Rosemiro Leal teve a sua 1ª edição publicada em 2004 pela

    editora Síntese Ltda. e Thomson – IOB. 49 LEAL, André Cordeiro. Instrumentalidade do Processo em crise. Belo Horizonte: Mandamentos, Faculdade de

    Ciências Humanas/FUMEC, 2008. 50 NUNES, Dierle José Coelho. Processo Jurisdicional Democrático. 1ª ed. (ano 2008), 4ª reimpr. Curitiba: Juruá.

    2012. 51 Dierle Nunes e Flaviane de Magalhães defendem que “a noção de processo com garantia tem sua base na

    Constituição, sendo codependente dos direitos fundamentais. Assim, o que sustenta a noção de processo como garantia são os princípios constitucionais do processo definidos no texto constitucional”. NUNES, Dierle; BARROS, Flaviane de Magalhães. As reformas processuais macroestruturais brasileiras. In: BARROS, Flaviane de Magalhães; BOLZAN DE MORAIS, Jose Luis (Coord.). Reforma do Processo Civil: perspectivas constitucionais. Belo Horizonte: Fórum, 2010, p. 24.

    52 MARDEN, Carlos. A razoável duração do processo: o fenômeno temporal e o modelo constitucional processual. Curitiba: Juruá, 2015, p. 203.

  • 25

    Na primeira fase, denominada de praxismo (ou sincretismo), não havia distinção

    entre o direito material e o direito processual. Este era apenas um apêndice daquele. Portanto,

    o processo era marcado pelo caráter privatista.

    Na segunda fase, intitulada de processualismo, é reconhecida a autonomia do

    direito processual, havendo um desenvolvimento científico das categorias processuais, com

    destaque para a obra de Oskar Von Bülow53, que inaugura o conceito de relação jurídica

    processual. Em busca da pureza científica, o direito processual civil se distancia do direito

    material e dos valores sociais.

    Na terceira fase, designada de instrumentalismo (fase instrumentalista), em que

    pese se reconheçam as diferenças funcionais entre o direito processual e o direito material,

    sustenta-se entre eles uma “relação circular de interdependência: o direito processual concretiza

    e efetiva o direito material, que confere ao primeiro o seu sentido. [...] Além disso, há grande

    preocupação com a efetividade do processo, tema que não existia até então [...]”54.

    Há, atualmente, entretanto, uma indefinição doutrinária quanto ao nome a ser dado

    à quarta e atual fase metodológica da teoria processual brasileira, a qual colocou o processo no

    cento da teoria e provocou uma releitura do processo a partir dos direitos fundamentais.

    Com efeito, a doutrina contemporânea defende que os direitos fundamentais

    processuais conferem uma estrutura mínima ao processo jurisdicional, sendo uma garantia aos

    jurisdicionados. O formalismo processual, que diz respeito à totalidade formal do processo55,

    tem por principal objetivo, portanto, assegurar às partes o direito a um processo justo, livre de

    autoritarismo e de arbitrariedades do Estado-juiz, o que é desejável em um Estado Democrático

    de Direito. Nessa nova perspectiva, o processo não pode mais ser visto como instrumento da

    jurisdição.

    A indefinição terminológica do atual estágio da teoria do processo é absolutamente

    normal, pois ainda estamos vivendo a precitada transformação paradigmática. Os conceitos e

    rótulos jurídicos estão, portanto, em plena construção e reconstrução.

    53 BÜLOW, Oskar Von. Teoria das Exceções e dos Pressupostos Processuais. Tradução e notas de Ricardo

    Rodrigues Gama. Campinas/SP: LZN Editora, 2005. 54 DIDIER JR. Fredie. Curso de Direito Processual Civil: Parte Geral e Processo de Conhecimento. 18. ed.

    Salvador: JusPODIVM, 2016, p. 46. 55 MADUREIRA, Claudio. Fundamentos do novo Processo Civil Brasileiro: o processo civil do formalismo-

    valorativo. Belo Horizonte: Fórum, 2017, p. 55.

  • 26

    Fala-se em: (i) Formalismo-Valorativo, expressão cunhada por Carlos Alberto

    Alvaro de Oliveira56; (ii) Processo Civil no Estado Constitucional, expressão que vem sendo

    trabalhada por Daniel Mitidiero57; (iii) Neoprocessualismo, denominação mencionada por

    Fredie Didier Jr.58 e empregada por Eduardo Cambi59; e (iv) Processualismo (ou Formalismo)

    Constitucional Democrático, designação que vem sendo trabalhada, dentre outros, por Dierle

    Nunes60-61.

    Todas são boas expressões. Há nelas aspectos linguísticos positivos e negativos,

    mas todas são razoavelmente aptas a designar a nova maneira de pensar o direito processual

    civil brasileiro. Não obstante, parece ganhar mais espaço na academia a designação

    “formalismo-valorativo”, desenvolvida pelo professor Carlos Alberto Alvaro de Oliveira,

    importante liderança na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o qual foi um

    precursor na reflexão e contraponto à Escola Instrumentalista do Processo.

    No que tange ao aspecto técnico atinente à precisão terminológica, concorda-se,

    nesta pesquisa, que a expressão “formalismo-valorativo” é a mais adequada. Passa-se, em

    apertada síntese, às principais razões pelas quais se chega a essa conclusão.

    A designação “neoprocessualismo” está diretamente ligada ao

    neoconstitucionalismo, o que, a bem da verdade, não é necessariamente um aspecto positivo,

    pois provoca um “esfumaçamento do pano de fundo teórico – em termos de teoria geral do

    direito – com que o processo civil necessariamente tem de lidar”62.

    56 OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. Do Formalismo no Processo Civil: proposta de um Formalismo-

    Valorativo. 3. ed. rev., atual. e aumentada. São Paulo: Saraiva, 2009. 57 Destaca-se que a referida expressão foi título de livro coordenado por Daniel Mitidieo, o qual reuniu ensaios

    dos seus alunos da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). A coletânea foi publicada no ano de 2012 (MITIDIERO, Daniel [coord.]. O Processo Civil no Estado Constitucional. Salvador: JusPODIVM, 2012). Note-se, ainda, que, a partir da 3ª edição do seu livro Colaboração no Processo Civil, publicado no ano de 2015, Mitidiero deixou de utilizar a expressão “formalismo-valorativo”, passando a se valer de “Processo Civil no Estado Constitucional” para designar a quarta e atual fase metodológica da teoria processual brasileira (MITIDIERO, Daniel. Colaboração no Processo Civil: pressupostos sociais, lógicos e éticos. 3. ed. São Paulo: RT, 2015, p. 48).

    58 DIDIER JR. Fredie. Curso de Direito Processual Civil: Parte Geral e Processo de Conhecimento. 18. ed. Salvador: JusPODIVM, 2016, p. 44-47.

    59 CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e Neoprocessualismo. São Paulo: Almedina, 2016. 60 NUNES, Dierle José Coelho. Processo Jurisdicional Democrático. 1ª ed. (ano 2008), 4ª reimpr. Curitiba: Juruá.

    2012. 61 PEDRON, Flávio Quinaud; BAHIA, Alexandre Melo Franco; NUNES, Dierle; THEODORO JÚNIOR,

    Humberto. Novo CPC: Fundamentos e Sistematização. 3. ed. rev., atual e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 30.

    62 MITIDIERO, Daniel. Colaboração no Processo Civil: pressupostos sociais, lógicos e éticos. 3. ed. São Paulo: RT, 2015, p. 48-49.

  • 27

    A seu turno, a designação “processo civil no Estado Constitucional” é por demais

    vaga. Como bem adverte Claudio Madureira, essa expressão não singulariza, em termos

    linguísticos, o momento atual do desenvolvimento do processo civil brasileiro. Transcreve-se

    importante passagem da referida crítica, ipsis litteris:63

    O que é um Estado Constitucional se não um Estado organizado a partir de uma Constituição? Aceita essa definição, o Brasil é um Estado Constitucional desde a sua primeira Constituição, que data do longínquo ano de 1824; ou, talvez, desde a sua primeira Constituição Republicana, promulgada em 1891 [...]

    Por fim, a expressão “processualismo constitucional democrático” ou “formalismo

    constitucional democrático”, possui muitos méritos ao ressaltar o ideal democrático e, portanto,

    a intensa participação, no âmbito do processo jurisdicional. No entanto, sem negar que os

    direitos fundamentais processuais, ou melhor dizendo, o modelo constitucional de processo,

    fornecem a estrutura mínima do modelo de processo civil, é preciso se ter em mente que a

    Constituição atualmente vigente é a “mesma” do paradigma processual anterior.

    O que se defende nesta Dissertação é que é preciso deixar claro que a releitura que

    se fez do processo não parte do direito posto, mas sim dos aportes teóricos da Teoria Geral do

    Direito e, por conseguinte, da Teoria Geral do Processo. E isso, a meu sentir, é o que deve estar

    prioritariamente refletido na designação que sintetiza o atual estágio metodológico do processo

    civil.

    Ressalte-se que não se está a apontar que uma teoria é verdadeira e a outra é falsa.

    Essa não é a preocupação aqui. Todos os marcos teóricos acima citados possuem relevantes

    contribuições. O que se quer salientar, neste ponto, é que, além das razões de ordem técnica,

    cabe ao pesquisador zelar pela precisão terminológica para que a ciência possa ser inteligível,

    o que, consequentemente, contribuirá para o seu progresso.

    Comunga com a mesma preocupação, pautando-se nas lições de Hermes Zaneti

    Júnior, Cláudio Madureira, ipsis litteris:

    [...] Zaneti nos chamava a atenção para a circunstância de os nomes atribuídos aos institutos e às teorias (ou doutrinas) nem sempre corresponderem às designações que melhor representavam seus conteúdos. Mas sempre nos advertia sobre a necessidade de que a academia estabeleça, em seus escritos, soluções de compromisso que permitam preservar essas denominações, para que não se verifique, na prática, confusão semântica proporcionada pela

    63 MADUREIRA, Claudio. Fundamentos do novo Processo Civil Brasileiro: o processo civil do formalismo-

    valorativo. Belo Horizonte: Fórum, 2017, p. 71.

  • 28

    atribuição de nomes distintos às mesmas coisas, com sérios prejuízos ao desenvolvimento da Ciência.64

    Da expressão “formalismo-valorativo”, extrai-se, principalmente, a compreensão

    de que por todo o arco procedimental incidirão os valores consagrados pelo ordenamento

    jurídico vigente. Consequentemente, ressalta-se que o processo, enquanto fenômeno jurídico, é

    produto cultural e, por isso mesmo, deve se estruturar de acordo com a cultura de sua época.

    Desse modo, defende-se, nesta pesquisa, que o processo civil brasileiro,

    especialmente com o advento do CPC de 2015, é o processo civil do formalismo-valorativo.

    A gota d’água para o fim do que se convencionou chamar de instrumentalismo

    certamente foi o advento do Código de Processo Civil de 2015, o qual trouxe, como reflexo da

    mudança paradigmática ocorrida no plano da Teoria do Processo Civil, a expressa positivação

    do princípio da cooperação processual no seu art. 6° e uma série de regras de conduta espalhadas

    por todo o código, consubstanciando o que se convencionou chamar de modelo cooperativo de

    processo. Esse modelo rechaça exatamente a ideia de processo centrado na figura do juiz. O

    polo metodológico não é mais a jurisdição, mas sim o trabalho em conjunto de todos os sujeitos

    que participam do processo. O próprio processo passa, assim, a ser o centro do direito

    processual civil brasileiro.

    Relembre-se que, além dos conceitos jurídicos fundamentais (lógico-jurídicos), há,

    ainda, os conceitos jurídico-positivos. Esses, como visto no item acima, são criados pela

    Ciência do Direito e servem à compreensão do direito positivo. Variam, portanto, conforme

    varia o direito posto, a lei. É dizer, são conceitos construídos “a partir da observação de uma

    determinada realidade normativa e, por isso mesmo, apenas a ela é aplicável. [...] São conceitos

    contingentes, históricos: descrevem realidades criadas pelo homem em certo lugar, em certo

    momento”65. Dito de outro modo, “expressam realidades contingenciais criadas pelo homem

    em dado momento histórico”66. Cita-se, por exemplo, os conceitos de estupro, de casamento e

    do recurso de apelação.

    À luz das lições retro expendidas, sustenta-se, neste trabalho, que o conceito de

    processo jurisdicional cooperativo é um conceito jurídico-positivo produzido pelos

    processualistas, cientistas do processo, a partir da análise de determinado ordenamento jurídico.

    64 MADUREIRA, Claudio. Fundamentos do novo Processo Civil Brasileiro: o processo civil do formalismo-

    valorativo. Belo Horizonte: Fórum, 2017, p. 72. 65 DIDIER JR., Fredie. Teoria Geral do Processo, essa desconhecida. 3. ed. Salvador: JusPODIVM, 2016, p. 49. 66 Ibidem, p. 53.

  • 29

    No presente caso, a partir da análise do ordenamento jurídico brasileiro, máxime da

    Constituição Federal de 1988 e do Código de Processo Civil de 2015.

    Outrossim, apoiando-se nas terminologias de Popper, pode-se dizer que, enquanto

    o conceito de processo é um conceito jurídico universal, o conceito de processo jurisdicional

    cooperativo é um conceito jurídico individual, particular.

    Saliente-se que o processo jurisdicional civil tem o seu conteúdo epistemológico

    preenchido, particularizado, individualizado, pelo direito positivo. É dizer, pode-se afirmar que

    o processo jurisdicional civil tem uma finalidade prescrita pela lei; tem uma finalidade no plano

    do “dever ser” indicada pela ordem jurídica.

    Em nota conclusiva, assevera-se que o processo jurisdicional cooperativo é o

    modelo de conformação do processo que, através da divisão de trabalho equilibrada entre todos

    os participantes do processo, isto é, sem protagonismo do juiz nem das partes, tem por fim a

    produção de decisão judicial qualificada pelo ordenamento jurídico.

    Neste passo, passa-se ao estudo crítico das bases teóricas que pretendem delinear o

    conceito de cooperação processual, a qual é expressão gênero que comporta tanto uma

    perspectiva normativo-principiológica quanto uma perspectiva de modelo de processo. Propõe-

    se, em item apartado, uma sistematização deste conceito para fins didáticos.

    1.3 Bases para a (re)construção do Conceito de Cooperação Processual

    Ao tratar do conceito de processo jurisdicional, Fredie Didier Jr., seguindo

    parâmetro aristotélico, afirma que “ao elaborar uma definição, deve-se seguir a lição clássica:

    determina-se o ‘gênero próximo’ a que o objeto definido pertence e assinalam-se as suas

    especificidades”. 67 Nessa linha, depreende-se que um conceito deve revelar basicamente dois

    aspectos do objeto definido: o que é e para que serve.

    As lições do citado processualista, mutatis mutandis, são úteis para se delimitar,

    nesta Dissertação, o conceito de cooperação processual, que é premissa teórica cara para esta

    pesquisa.

    Assim, investiga-se, a seguir, a natureza jurídica e a finalidade da cooperação

    processual.

    67 DIDIER JR., Fredie. Teoria Geral do Processo, essa desconhecida. 3. ed. Salvador: JusPODIVM, 2016, p. 85.

  • 30

    1.3.1 Princípio Jurídico

    As discussões sobre cooperação processual surgem originalmente na Alemanha, a

    partir do desenvolvimento da ideia, em meados do século XX, de encarar o processo civil como

    uma “comunidade de trabalho” (Arbeitsgemeinschaft) entre os seus participantes,

    destacadamente juiz e partes.68

    Em que pese o início do debate tenha ocorrido no século passado, a cooperação

    processual ainda é tema pouco enfrentando pela maior parte da doutrina, especialmente a

    nacional. É dizer, debruçando-se detida e especificamente sobre a cooperação entre os sujeitos

    processuais, há escassa literatura.

    Os primeiros processualistas brasileiros a investigarem seriamente o assunto foram

    José Carlos Barbosa Moreira69, tratando, na segunda metade da década de 1980, de forma ampla

    da “divisão de trabalho” entre juiz e partes, e Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, quem, em

    1997, primeiro empregou a expressão “comunidade de trabalho” na doutrina brasileira70 e, em

    2003, especificamente abordou a cooperação como modelo de processo71.

    Dando sequência às proposições de Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, Daniel

    Mitidiero, em tese de doutoramento defendida em outubro de 2007, junto ao Programa de Pós-

    Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, apresenta um dos mais

    relevantes estudos sobre a colaboração no processo civil, que mais tarde, precisamente no ano

    de 2010, viria a ser publicado em formato de livro pela editora Revista dos Tribunais.72 Nesse

    trabalho, aborda-se a dimensão axiológica da cooperação processual.

    Por zelo à presente pesquisa, deve-se registrar que, na Alemanha, em que pese tenha

    sido o berço do ideal cooperativo, a cooperação processual não é tida como princípio jurídico.

    68 MITIDIERO, Daniel. Colaboração no processo civil: pressupostos sócias, lógicos e éticos. 3. ed. rev., atual. e

    ampl. de acordo com o novo código de processo civil. São Paulo: Editora Revista do Tribunais, 2015, p. 65, nota 219.

    69 Cf. Os poderes do juiz na direção e na instrução do processo (1984). Temas de direito processual. São Paulo: Saraiva, 1989, 4ª Série; O problema da “divisão de trabalho” entre juiz e partes: aspectos terminológicos (1985). Temas de direito processual. São Paulo: Saraiva, 1989, 4ª série; e Sobre a “participação” do juiz no processo civil (1987). Temas de direito processual. São Paulo: Saraiva, 1989, 4ª Série.

    70 Cf. Do formalismo no processo civil. São Paulo: Saraiva, 1997, p.72. Informação obtida em MITIDIERO, Daniel. Colaboração no processo civil: pressupostos sócias, lógicos e éticos. 3. ed. rev., atual. e ampl. de acordo com o novo código de processo civil. São Paulo: Editora Revista do Tribunais, 2015, p. 65, nota 219.

    71 Cf. Poderes do Juiz e Visão Cooperativa do Processo. Revista da Ajuris. n. 90. Porto Alegre: s/ed., 2003. 72 MITIDIERO, Daniel. Colaboração no Processo Civil. São Paulo: RT, 2010. A 2ª edição foi lançada em 2011.

    E a 3ª e última edição, rev., atual. e ampl. de acordo com o novo código de processo civil, foi lançada em 2015.

  • 31

    Esse posicionamento, entretanto, não é pacífico e vem sendo, nos últimos anos, radicalmente

    revisto.

    Nesse sentido, transcreve-se o alerta de Reinhard Greger, professor e juiz na

    Alemanha, em artigo publicado no ano 2000:

    [...] o processo civil alemão ameaça entrar em isolamento internacional, se ele não se abrir mais fortemente para o ideal cooperativo. A Inglaterra, até hoje aprisionada ao tradicional sistema adversarial (adversary sistem), com o juiz passivamente entronado acima das partes rivais, acaba de passar por nós no caminho da modernidade processual, na Part 1 do novo Civil Procedure Rules de 1998 está estabelecido como mais alto princípio que o juiz e as partes devem colaborar para que se alcance o objetivo de um processo justo, correto e econômico. A tarefa do juiz é, agora, “active case management” – isso significa, por exemplo, nos processos mais importantes ter uma case management conferece, na qual são discutidos com as partes o curso do processo, as questões a serem esclarecidas sobre os fatos, sobre o direito, sobre as despesas e as possibilidades de um ajuste alternativo do conflito. Que o juiz deve trabalhar para a cooperação das partes está em primeiro lugar de suas obrigações.73

    A despeito do debate alemão sobre a natureza jurídica da cooperação processual,

    consoante bem esclarece Lorena Miranda Santos Barreiros, o certo é que o § 139 da ZPO alemã

    (Código de Processo Civil alemão), que trata da condução material do processo, compreende

    regras de cooperação, isto é, deveres de cooperação, instigando o juiz (órgão julgador) a adotar

    uma postura mais ativa diante do contraditório e da condução processual.74

    Já em Portugal, país europeu onde o ideal cooperativo parece ter avançado mais, a

    cooperação é tida pela doutrina como princípio e modelo de processo. Há discussão, entretanto,

    se, a partir da reforma empreendida no processo civil daquele país nos anos de 1995/1996, é

    possível assegurar que o modelo de direito processual passou, de fato, de inquisitorial para

    cooperativo.

    Importantes processualistas portugueses entendem que sim, a exemplo de Mariana

    França Gouveia, para quem, desde a reforma havida nos anos de 1995/1996, houve uma

    “mudança ideológico-paradigmática no processo civil português, na medida em que a sua pedra

    angular passou a se consubstanciar no princípio da cooperação, que traduz uma nova visão do

    73 GREGER, Reinhard. Cooperação como Princípio Processual. Traduzido por Ronaldo Kochem. Revista de

    Processo, São Paulo, Ano 37. v. 206, p. 123-134, abr. 2012. 74 BARREIROS, Lorena Miranda Santos. Fundamentos constitucionais do princípio da cooperação processual.

    Salvador: JusPODIVM, 2013, p. 209.

  • 32

    processo e da postura a ser adotada pelos seus sujeitos processuais, em especial as partes e o

    juiz”75.

    Quanto ao plano do direito positivo português, o princípio da cooperação é

    expressamente previsto tanto no antigo Código de Processo Civil (Decreto-Lei n° 44129 de

    1961) quanto no vigente diploma processual (Lei n° 41 de 2013). Frise-se, inclusive, que a

    mesma redação do art. 266, 1, do CPC revogado foi mantida no art. 7°, 1, do CPC vigente,

    recentemente aprovado. Veja-se, in verbis:

    Art. 7° do CPC/2013 (Art. 266 do CPC/1961):

    Princípio da Cooperação.

    1 – Na condução e intervenção no processo, devem os magistrados, os mandatários judiciais e as próprias partes cooperar entre si, concorrendo para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio. [...]

    À luz do exposto acima, importante notar que mesmo sem haver uma positivação

    expressa no Direito Alemão, há doutrina que defende a existência do princípio da cooperação76.

    Ora, de fato, a sua não previsão expressa no ordenamento não é problema. Pautando-se nas

    lições de Humberto Ávila, é perfeitamente possível defender que a ausência de dispositivo

    dando suporte à norma não nega a sua vigência normativa77.

    Além disso, é imperioso, ainda, tomar de lição que, mesmo em países

    marcadamente centrados no sistema processual Adversarial, a exemplo da Inglaterra78, ou no

    sistema processual Inquisitorial, a exemplo de Portugal, – em que pese possa não receber o

    status de modelo de processo nestes países – é possível que o princípio da cooperação

    componha o leque de princípios fundamentais que serve de farol ao respectivo ordenamento

    jurídico.

    75 GOUVEIA, Mariana França. Os poderes do juiz cível na acção declarativa: em defesa de um processo civil ao

    serviço do cidadão. Julgar, Coimbra, n. 01, jan./abr. 2007, p. 48-50, apud BARREIROS, Lorena Miranda Santos. Fundamentos constitucionais do princípio da cooperação processual. Salvador: JusPODIVM, 2013, p. 169.

    76 GREGER, Reinhard. Cooperação como Princípio Processual. Traduzido por Ronaldo Kochem. Revista de Processo, São Paulo, Ano 37. v. 206, p. 123-134, abr. 2012.

    77 Ávila defende que “[...] O importante é que não existe correspondência entre norma e dispositivo, no sentido de que sempre que houver um dispositivo haverá uma norma, ou sempre que houver uma norma deverá haver um dispositivo que lhe sirva de suporte. Em alguns casos há norma mas não há dispositivo. Quais são os dispositivos que preveem os princípios da segurança jurídica e da certeza do Direito? Nenhum. Então há normas, mesmo sem dispositivos específicos que lhes deem suporte físico. [...]”. In ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 16. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 50.

    78 GREGER, Reinhard. Cooperação como Princípio Processual. Traduzido por Ronaldo Kochem. Revista de Processo, São Paulo, Ano 37. v. 206, abr. 2012, p. 133.

  • 33

    No que concerne à evolução do tema na doutrina pátria, ressalte-se que, em 2005,

    Fredie Didier Jr., em uma abordagem calcada marcadamente na dimensão normativa, já

    sustentava o status de princípio jurídico à cooperação processual.79

    Desde então, mesmo com alguma resistência de parte minoritária da doutrina,

    importantes progressos teóricos, no que tange ao ideal cooperativo, têm sido alcançados.

    O entendimento de que a cooperação processual tem natureza de princípio jurídico

    vem sendo consolidado nos últimos anos. Avança-se para defender que, por ter fundamento

    normativo na Constituição Federal de 1988, o princípio da cooperação processual está em vigor

    independentemente de enunciado expresso80.

    Como decorrência valorativa do Estado Democrático de Direito e da sociedade

    solidária, modelos de Estado e de sociedade consagrados nos artigos 1°, caput, e 3°, inciso I,

    da CF de 1988, constrói-se normativamente o princípio da cooperação processual.

    Além disso, entre nós, conclusão que ora se expõe e defende nesta Dissertação,

    parece cada vez mais sedimentado o entendimento de que a cooperação é princípio fundamental

    apto a dar forma a todo o arco procedimental do direito processual. Desse modo, além de

    princípio, a cooperação é modelo de processo constitucionalmente adequado ao processo civil

    brasileiro81.

    1.3.1.1 Conteúdo Negativo

    Quando se pretende conceituar algo, tão importante quanto saber o que é o objeto

    definido é saber o que não é. Nesse ensejo, com o fito de evitar ou pelo menos minorar as

    imprecisões, faz-se necessário delimitar fronteiras no campo da significação.

    Em regra, a cooperação no processo contraria a natureza do ser. Para o juiz, seria

    muito mais fácil não se colocar no mesmo plano das partes na condução do processo. A seu

    turno, para as partes seria mais natural, por exemplo, agir fora dos limites normativos da boa-

    fé objetiva.

    79 DIDIER JR. Fredie. O Princípio da Cooperação: uma apresentação. Revista de Processo, São Paulo, n. 127, p.

    75-79, set./2005. 80 BARREIROS, Lorena Miranda Santos. Fundamentos constitucionais do princípio da cooperação processual.

    Salvador: JusPODIVM, 2013. 81 SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito

    Constitucional. 6. ed. São Paulo: saraiva, 2017, p. 773.

  • 34

    Ocorre que a cooperação processual, enquanto fenômeno jurídico, é estudada, nesta

    Dissertação, na sua dimensão normativa e axiológica, e não na sua dimensão fática. Faz-se uma

    abordagem epistemológica, e não estratégica.

    O Direito integra a ordem do dever ser; não é um código de descrição de fenômenos

    que ocorrem necessariamente.82 Sabedor da fraqueza moral do homem, cabe ao legislador dotar

    o direito positivo de uma reserva de força.83

    Em sintonia com os aportes da Filosofia do Direito, Humberto Theodoro Jr., Dierle

    Nunes, Alexandre Bahia e Flávio Quinaud, em obra coletiva, asseveram que:

    [...] cabe ao direito, dentro de seu pressuposto contrafático, ofertar uma base normativa que induza um comportamento de diálogo genuíno no qual estes comportamentos não cooperativos sejam mitigados.

    Isto induz à assunção do processo como um locus normativamente condutor de uma comunidade de trabalho, na qual todos os sujeitos processuais devam atuar em viés interdependente e auxiliar, com responsabilidade, na construção dos pronunciamentos judiciais e em sua efetivação.84

    O aspecto da coercibilidade necessária à cooperação processual será objeto do

    terceiro capítulo desta Dissertação. Agora, imperioso é perceber que “seria equivocado

    relacionar a ideia de cooperação no processo à colaboração harmônica das partes ou à imagem

    do juiz como terapeuta social”85.

    Na mesma linha, Alexandre Freitas Câmara, processualista e Desembargador no

    Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, ipsis litteris:

    Seria evidentemente uma ingenuidade acreditar que os sujeitos do processo vão se ajudar mutuamente. Afinal, litigantes são adversários, buscam resultados antagônicos, e seria absurdo acreditar que o demandante vai ajudar o demandado a obter um resultado que lhe interesse (ou vice-versa). Mas não é isso que se trata.86

    Por fim, arremata-se com as considerações de Fredie Didier Jr., para quem o dever

    de cooperação “nada tem a ver com a transformação do processo em um diálogo de lordes

    ingleses. Os deveres de cooperação surgiram [...] no próprio direito material, e não eliminam a

    82 NADER, Paulo. Filosofia do Direito. 24. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 106. 83 Ibidem, p. 97. 84 PEDRON, Flávio Quinaud; BAHIA, Alexandre Melo Franco; NUNES, Dierle; THEODORO JÚNIOR,

    Humberto. Novo CPC: Fundamentos e Sistematização. 3. ed. rev., atual e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 87-88.

    85 GREGER, Reinhard. Cooperação como Princípio Processual. Traduzido por Ronaldo Kochem. Revista de Processo, São Paulo, Ano 37. v. 206, p. 123-134, abr. 2012.

    86 CARVALHO FILHO, Antônio; SAMPAIO JUNIOR, Herval [Org.]. Os Juízes e o Novo CPC. Capítulo 1. CÂMARA, Alexandre Freitas. As Normas Fundamentais do Processo Civil Brasileiro. Salvador: JusPODIVM, 2017, p. 27.

  • 35

    existência de óbvios interesses contrapostos entre os sujeitos envolvidos; em verdade, servem

    para tornar mais leal, ou menos bárbara, a luta por tais interesses”87.

    1.3.1.2 Conteúdo Positivo

    Etimologicamente, cooperar significa trabalhar com outros; atuar, juntamente

    com outros, para um mesmo fim; contribuir com trabalho, esforços, auxílio; colaborar.

    Perceba: co-operar é operar junto, operar com. É trabalhar junto, trabalhar com

    outros, para um fim comum. Ex. 1: os jogadores da seleção brasileira cooperaram com o técnico

    Tite para o sucesso do time na fase das Eliminatórias para a Copa do Mundo de 2018. Ex. 2:

    Trump e Putin falam em cooperar para a paz.

    Esse sentido etimológico é aplicado à terminologia jurídica. Veja-se:

    O princípio da cooperação deve ser compreendido no sentido de que os sujeitos do processo vão “co-operar”, operar juntos, trabalhar juntos na construção do resultado do processo. Em outros termos, os sujeitos do processo vão, todos, em conjunto, atuar ao longo do processo para que, com sua participação, legitimem o resultado que através dele será alcançado. Só decisões judiciais construídas de forma comparticipativa por todos os sujeitos do contraditório são constitucionalmente legítimas e, por conseguinte, compatíveis com o Estado Democrático de Direito.88

    Destarte, cooperação processual significa entender o processo como uma

    “comunidade de trabalho”. Esse é o seu sentido positivo.

    1.3.2 Modelo de Processo

    Quanto à análise dos modelos de organização do processo civil, é imperioso

    esclarecer que Fredie Didier Jr., Daniel Mitidiero e Dierle Nunes, destacados doutrinadores

    brasileiros que abordam o tema, adotam pressupostos metodológicos diferentes.

    Fredie Didier Jr. afirma que os tradicionais modelos de estruturação do direito

    processual são o modelo processual Adversarial (ou Dispositivo) e o modelo processual