Winnicott, d.w. - o Brincar e a Realidade

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    D.W.WINNICOTT

    O Brincar &

    a RealidadeColeo Psicologia Psicanaltica

    Direo de Titulo original:Plaving and Reality.Traduzido da primeira edio inglesa publicada .

    em 1971 por Tavistock Publications Ltd.,11 Ncw Fetter Lane, London EC 4.Copirraite (E) 1971 de D. W. Winnicott.

    Editorao

    Coordenador:PEDRO PAULO DE SENA MADUREIRA

    Traduo:JOSE OCTVIO DE AGUIAR ABREU e VANEDE NOBRE

    Reviso:FRANCISCO DE ASSIS PEREIRACapa:LEON ALGAMIS

    1975

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    Direitos para a lngua portuguesa adquiridos por

    IMAGO EDITORA LTDA.,Av. N. Sra. de Copacabana 330, 109 andar, tel.: 255-2715, Rio de Janeiro,

    que se reserva a propriedade desta traduo.

    Impresso no .BrasilPrinted in Brazil

    JAYME SALOMO

    Membro-Associado daSociedade Brasileira de Psicanlise doRio de Janeiro. Membro da Associao Psiquitrica do Rio de

    Janeiro. Membro da Sociedade de Psicoterapia Analtica deGrupo do Rio de Janeiro.

    Rio de Janeiro

    IMAGO EDITORA LTDA.

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    SumrioAGRADECIMENTOS...................................................................................... 5

    INTRODUO............................................................................................... 6

    OBJETOS TRANSICIONAIS E FENMENOS TRANSICIONAIS....................... 10

    SONHAR, FANTASIAR E VIVER ................................................................... 48

    O BRINCAR (Uma Exposio Terica) ........................................................ 65

    O BRINCAR (A Atividade Criativa e a Busca do Self).................................. 88A CRIATIVIDADE E SUAS ORIGENS ........................................................... 108

    O USO DE UM OBJETO E RELACIONAMENTO

    ATRAVS DE IDENTIFICAES ................................................................. 139

    A LOCALIZAO DA EXPERINCIA CULTURAL ......................................... 152

    O LUGAR EM QUE VIVEMOS.................................................................... 165

    O PAPEL DE ESPELHO DA ME E-DA, FAMILIA NO DESENVOLVIMENTO

    INFANTIL .................................................................................................. 175

    INTER-RELACIONAR-SE INDEPENDENTEMENTE DO IMPULSO INSTINTUAL E

    EM FUNO DE IDENTIFICAES CRUZADAS ......................................... 187

    CONCEITOS CONTEMPORNEOS DE DESENVOLVIMENTO ADOLESCENTE ESUAS IMPLICAES PARA A EDUCAO SUPERIOR'............................... 219

    BIBLIOGRAFIA .......................................................................................... 239

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    AGRADECIMENTOS

    Quero agradecer Sra. Joyce Coles por sua ajuda na preparao do

    original.

    Devo muito tambm a Masud Khan por suas crticas construtivas

    de meus trabalhos e por estar sempre (assim me parece) disponvel

    quando uma sugesto prtica se faz necessria.

    Na dedicatria, j expressei minha gratido a meus pacientes.

    Por sua permisso para reproduzir matrias que j apareceram

    impressas, meus agradecimentos aos Redatores-Chefes de Child

    Psychology and Psychiatry,deFortim,do International Journal of Psycho-Analysis,dePediatrics,da International Library of Psycho-Analysis; ao Dr.

    Peter Lomas e aHogarth Press Ltd.,Londres.

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    INTRODUO

    Este livro constitui um desenvolvimento de meu artigo 'Objetos

    Transicionais e Fenmenos Transicionais' (1951). Em primeiro lugar,

    desejo reenunciar a hiptese bsica, ainda que isso acarrete uma

    repetio. Depois, quero apresentar desenvolvimentos posteriores,

    efetuados em meu prprio pensar e em minha avaliao do materialclnico. Quando volto o olhar para a ltima dcada, fico cada vez mais

    impressionado pela maneira como essa rea de conceptualizao tem

    sido negligenciada no s na conversao analtica que est sempre se

    efetuando entre os prprios analistas, mas tambm na literatura

    especializada. Essa rea de desenvolvimento e experincia individuais

    parece ter sido desprezada, enquanto a ateno se focalizava na realidade

    psquica, pessoal e interna, e sua relao com a realidade externa ou

    compartilhada. A experincia cultural no encontrou seu verdadeiro lugar

    na teoria utilizada pelos analistas em seu trabalho e em seu pensar.

    Naturalmente, possvel ver que aquilo que pode ser descrito

    como uma rea intermediria encontrou reconhecimento na obra dos

    filsofos. Na teologia, assume forma, especial na eterna controvrsiasobre a transubstanciao, aparecendo em plena fora na obra

    caracterstica dos chamados poetas metafsicos (Donne e outros). Minha

    prpria abordagem deriva de meu estudo sobre bebs e crianas, e, ao

    considerar a posio desses fenmenos na vida da criana, h que

    reconhecer a posio central de Winnie the Pooh*; alegremente

    *Personagens de histrias para crianas muito populares; do primeiro, criado por A.A.

    Milne, nada foi publicado no Brasil, ao que consta. J os segundos experimentam

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    acrescento uma referncia aos desenhos de Peanuts, de Schulz. Um

    fenmeno que universal, como o que estou considerando neste livro,

    no pode, na realidade, estar fora do campo daqueles cujo interesse a

    magia do viver imaginativo e criador.

    Coube a mim ser um psicanalista que, talvez por ter sido pediatra,

    sentiu a importncia desse fator universal nas vidas dos bebs e das

    crianas, e que quis integrar sua observao com a teoria cujo processo

    de desenvolvimento ocupao que toma todo o nosso tempo.

    hoje geralmente reconhecido, acredito, que aquilo a que me

    refiro nesta parte de meu trabalho no o pano nem o ursinho que obeb usa; no tanto o objeto usado quanto o uso do objeto. Chamo a

    ateno para o paradoxo envolvido no uso que o beb d quilo que

    chamei de objeto transicional. Minha contribuio solicitar que o

    paradoxo seja aceito, tolerado e respeitado, e no que seja resolvido. Pela

    fuga para o funcionamento em nvel puramente intelectual, possvel

    solucion-lo, mas o preo disso a perda do valor do prprio paradoxo.

    Esse paradoxo, uma vez aceito e tolerado, possui valor para todo

    indivduo humano que no esteja apenas vivo e a viver neste mundo, mas

    que tambm seja capaz de ser infinitamente enriquecido pela explorao

    do vnculo cultural com o passado e com o futuro. essa ampliao do

    tema bsico que me interessa neste livro.

    Ao escrever este livro sobre a questo dos fenmenos

    transicionais, descobri-me continuando a relutar em fornecer exemplos.

    Minha relutncia tem a ver com o motivo que dei no artigo original, ou

    seja, que os exemplos podem comear a fixar espcimes e iniciar um

    atualmente uma onda de popularidade no mundo inteiro, e no Brasil, alm deaparecerem em jornais e revistas, vm tendo suas histrias publicadas tambm em livro(N. do T.).

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    processo de classificao de tipo antinatural e arbitrrio, ao passo que

    aquilo a que me refiro universal e de variedade infinita. Trata-se de algo

    bastante semelhante descrio do rosto humano quando o

    descrevemos em funo do formato, dos olhos, do nariz e das orelhas;

    ainda assim, porm, permanece o fato de no existirem dois rostosexatamente iguais, e o de muito poucos serem, mesmo, semelhantes.

    Dois rostos podem ser semelhantes quando em repouso, mas, to logo se

    animam, tornam-se diferentes. Entretanto, e apesar de minha relutncia,

    no desejo desprezar completamente esse tipo de contribuio.

    Como esses temas pertencem aos estdios primitivos do

    desenvolvimento de cada ser humano, existe um campo clnico aberto,

    espera de investigao. Exemplo disso seria o estudo feito por Olive

    Stevenson (1954), levado a cabo quando ela estudava assistncia infantil

    (child care) na Escola de Economia de Londres. Fui informado pelo Dr.

    Bastiaans de que, na Holanda, tornou-se prtica rotineira dos estudantes

    de medicina incluir a investigao dos objetos e fenmenos transicionais,

    quando tomam nota das histrias clnicas de crianas relatadas pelos pais.

    Os fatos podem ensinar.

    Naturalmente, os fatos que podem ser conseguidos precisam ser

    interpretados e, para se fazer uso pleno das informaes fornecidas ou

    das observaes efetuadas diretamente sobre o comportamento dos

    bebs, eles tm que ser posicionados em relao a uma teoria. Dessamaneira, os mesmos fatos podem parecer ter determinado significado

    para certo observador e um significado diferente para outro. No

    obstante, trata-se de um campo promissor para a observao direta e a

    investigao indireta e, de tempos em tempos, um estudante ser levado,

    pelos resultados de suas indagaes nesse campo restrito, a reconhecer a

    complexidade e a significncia dos estdios primitivos da relao de

    objeto e da formao de smbolos.

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    Tenho conhecimento de certa investigao formal sobre esses

    temas e desejo convidar o leitor a ficar atento para publicaes oriundas

    dessa direo. A Professora Renata Gaddini, de Roma, est elaborando

    um estudo dos fenmenos transicionais, utilizando trs grupos sociais

    distintos, e j comeou a formular idias baseadas em suas observaes.Encontro valor no emprego que a Professora Gaddini d idia de

    precursores, de maneira a poder incluir na totalidade do tema os

    exemplos bastante primitivos de sugar o punho, o dedo, o polegar e a

    lngua, e todas as complicaes que cercam o uso de um simulacro ou

    chupeta. Ela tambm inclui o tema do embalo, tanto o movimento rtmico

    do corpo da criana quanto o embalo prprio dos beros e do acalantohumano. Puxar os cabelos configura um fenmeno afim.

    Outra tentativa de trabalhar sobre a idia de objeto transicional

    chega-nos de Joseph C. Solomon, de San Francisco, cujo artigo 'A Idia

    Fixa como um Objeto Transicional Internalizado' (1962) introduziu um

    novo conceito. No estou certo de at onde concordo com o Dr. Solomon,

    mas o importante que, com uma teoria de fenmenos transicionais

    disponvel, muitos problemas antigos podem ser encarados sob novo

    ngulo.

    Minhas prprias contribuies neste livro devem ser relacionadas

    ao fato de no me encontrar hoje em posio de fazer as observaes

    clnicas diretas de bebs que, na verdade, constituram a base principal detudo o que erigi em teoria. Contudo, ainda estou em contacto com as

    descries que os pais podem fornecer de suas experincias com os filhos,

    caso saibamos proporcionar-lhes oportunidade de recordar sua prpria

    maneira e ocasio. Tambm estou em contacto com as referncias das

    prprias crianas a seus prprios objetos e tcnicas significantes.

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    OBJETOS TRANSICIONAIS EFENMENOS TRANSICIONAIS

    Neste captulo, forneo a hiptese original, tal como formulada em

    1951, e, depois, acompanho-a com dois exemplos clnicos.

    I - HIPTESE ORIGINAL1

    sabido que os bebs, assim que nascem, tendem a usar o punho,

    os dedos e os polegares em estimulao da zona ergena oral, para

    satisfao dos instintos dessa zona, e tambm em tranqila unio.

    igualmente sabido que, aps alguns meses, bebs de ambos os sexospassam a gostar de brincar com bonecas e que a maioria das mes

    permite a seus bebs algum objeto especial, esperando que eles se

    tornem, por assim dizer, apegados a tais objetos.

    Existe um relacionamento entre esses dois conjuntos de

    fenmenos que so separados por um intervalo de tempo, e um estudo

    do desenvolvimento do primeiro para o ltimo pode ser lucrativo e

    utilizar importante material clnico que tem sido tanto negligenciado.

    1Publicado no International Journal of Psycho-Analysis, Vol. 34, Parte 2 (1953), e em

    D.W. Winncott, Collected Papers: Through Paediatrics to Psycho-Analysis (1958a),Londres, Tavstock Publcations.

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    A PRIMEIRA POSSESSO

    Aqueles aos quais acontece estar em contacto ntimo com os

    interesses e problemas das mes j se tero dado conta dos padres

    bastante abundantes, normalmente apresentados por bebs em seu usoda primeira possesso que seja 'no-eu'. Esses padres, uma vez

    apresentados, podem ser submetidos observao direta.

    Pode-se encontrar ampla variao numa seqncia de eventos que

    comea com as primeiras atividades do punho na boca do beb recm-

    nascido e que acaba por conduzir a uma ligao a um ursinho, uma

    boneca ou brinquedo macio, ou a um brinquedo duro.

    claro que algo mais importante aqui, alm da excitao e da

    satisfao orais, embora estas possam ser a base detodo o resto. Muitas outras coisas importantes podem ser

    estudadas, tais como:

    1. A natureza do objeto.

    2. A capacidade do beb de reconhecer o objeto como 'no-eu'.

    3. A localizao do objeto fora, dentro, na fronteira.

    4. A capacidade do beb de criar, imaginar, inventar, originar,produzir um objeto.

    5. O incio de um tipo afetuoso de relao de objeto.

    Introduzi os termos 'objetos transicionais' e 'fenmenos

    transicionais' para designar a rea intermediria de experincia, entre o

    polegar e o ursinho, entre o erotismo oral e a verdadeira relao de

    objeto, entre a atividade criativa primria e a projeo do que j foi

    introjetado, entre o desconhecimento primrio de dvida e oreconhecimento desta (Diga: "bigado" ').

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    Por essa definio, o balbucio de um beb e o modo como uma

    criana mais velha entoa um repertrio de canes e melodias enquanto

    se prepara para dormir, incidem na rea intermediria enquanto

    fenmenos transicionais, juntamente com o uso que dado a objetos que

    no fazem parte do corpo do beb, embora ainda no sejam plenamentereconhecidos como pertencentes realidade externa.

    Inadequao do Enunciado Costumeiro da Natureza Humana

    geralmente reconhecido que um enunciado da natureza humana

    em termos de relacionamentos interpessoais no suficientemente bom,

    mesmo quando so levadas em conta a elaborao imaginativa de funo

    e a totalidade da fantasia, tanto 14 consciente quanto inconsciente,

    inclusive o inconsciente reprimido. Existe outra maneira de descrever

    pessoas, oriunda de pesquisas realizadas nas duas ltimas dcadas. De

    todo indivduo que chegou ao estdio de ser uma unidade, com uma

    membrana limitadora e um exterior e um interior, pode-se dizer que

    existe uma realidadeinternapara esse indivduo, um mundo interno quepode ser rico ou pobre, estar em paz ou em guerra. Isso ajuda; mas

    suficiente?

    Minha reivindicao a de que, se existe necessidade desse

    enunciado duplo, h tambm a de um triplo: a terceira parte da vida de

    um ser humano, parte que no podemos ignorar, constitui uma reaintermediria de experimentao, para a qual contribuem tanto a

    realidade interna quanto a vida externa. Trata-se de uma rea que no

    disputada, porque nenhuma reivindicao feita em seu nome, exceto

    que ela exista como lugar de repouso para o indivduo empenhado na

    perptua tarefa humana de manter as realidades interna e externa

    separadas, ainda que inter-relacionadas.

    costume fazer referncia ao 'teste da realidade' e efetuar uma

    distino clara entre apercepo e percepo. Reivindico aqui um estado

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    intermedirio entre a inabilidade de um beb e sua crescente habilidade

    em reconhecer e aceitar a realidade. Estou, portanto, estudando a

    substncia da iluso, aquilo que permitido ao beb e que, na vida

    adulta, inerente arte e religio, mas que se torna marca distintiva de

    loucura quando um adulto exige demais da credulidade dos outros,forando-os a compartilharem de uma iluso que no prpria deles.

    Podemos compartilhar do respeito pela experincia ilusria, e, se

    quisermos, reunir e formar um grupo com base na similaridade de nossas

    experincias ilusrias. Essa uma raiz natural do agrupamento entre os

    seres humanos.

    Espero que se entenda que no me refiro exatamente ao ursinho

    da criana pequena ou ao primeiro uso que o beb d a seu punho

    (polegar, dedos). No estou estudando especificamente o primeiro objeto

    das relaes de objeto. Estou interessado na primeira possesso e na rea

    intermediria entre o subjetivo e aquilo que objetivamente percebido.

    Desenvolvimento de um Padro Pessoal

    Existem muitas referncias na literatura psicanaltica ao progresso

    da 'mo na boca' para a 'mo no genital', mas talvez existam menos ao

    progresso posterior para o manuseio de objetos verdadeiramente 'no-

    eu'. Mais cedo ou mais tarde, no desenvolvimento de um beb, surge por

    parte dele uma tendncia a entremear objetos 'diferentes-de-mim' nopadro pessoal. At certo ponto, esses objetos representam o seio, mas

    no especialmente esse ponto que est em debate.

    No caso de certos bebs, o polegar colocado na boca, enquanto

    se faz com que os dedos acariciem o rosto por movimentos de pronao e

    supinao do antebrao. A boca acha-se ento ativa em relao ao

    polegar, mas no em relao aos dedos. Os dedos que acariciam o lbiosuperior ou alguma parte, podem ser ou tornar-se mais importantes do

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    que o polegar que ocupa a boca. Alm disso, essa atividade acariciante

    pode ser encontrada sozinha, sem a unio mais direta polegar-boca.

    Na experincia normal, uma das seguintes possibilidades acontece,

    complicando uma experincia auto-ertica como a de sugar o polegar:1. com a outra mo, o beb leva um objeto externo (uma

    parte do lenol ou do cobertor, digamos) boca,juntamente com os dedos, ou

    2. de uma maneira ou outra, o pedao de tecido segurado echupado, ou no concretamente chupado; os objetos

    naturalmente usados incluem babadores e(posteriormente) lenos, dependendo do que estejapronta e seguramente disponvel, ou

    3. o beb comea, desde os primeiros meses, a colher l, areuni-la e a us-la para a parte acariciante da atividade;menos comumente, a l engolida, ainda que causandoproblemas, ou

    4. movimentos bucais acompanhados por sons de'mammum', balbucios, rudos anais, as primeiras notasmusicais, e assim por diante.

    Pode-se supor que pensar, ou fantasiar, se vincule a essas

    experincias funcionais.

    Tudo isso estou chamando de fenmenos transicionais. De tudo

    isso, tambm (se estudarmos qualquer beb), pode surgir alguma coisa ou

    algum fenmeno talvez uma bola de l, a ponta de um cobertor ou

    edredo, uma palavra ou uma melodia, ou um maneirismo que, para o

    beb, se torna vitalmente importante para seu uso no momento de ir

    dormir, constituindo urna defesa contra a ansiedade, especialmente a

    ansiedade de tipo depressivo. Talvez um objeto macio, ou outro tipo de

    objeto, tenha sido encontrado e usado pelo beb, tornando-se ento

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    aquilo que estou chamando de objeto transicional. Esse objeto continua

    sendo importante. Os pais vm a saber de seu valor e levam-no consigo

    quando viajam. A me permite que fique sujo e at mesmo mal-cheiroso,

    sabendo que, se lav-lo, introduzir uma ruptura de continuidade na

    experincia do beb, ruptura que pode destruir o significado e o valor doobjeto para ele.

    Sugiro que o padro dos fenmenos transicionais comea a surgir

    por volta dos quatro e seis aos oito e doze meses de idade.

    Intencionalmente, deixei campo para amplas variaes.

    Os padres estabelecidos na tenra infncia podem persistir nainfncia propriamente dita, de modo que o objeto macio original continua

    a ser absolutamente necessrio na hora de dormir, em momentos de

    solido, ou quando um humor depressivo ameaa manifestar-se. Na

    sade, contudo, d-se uma ampliao gradual do mbito de interesses e,

    por fim, esse mbito ampliado mantido, mesmo quando a ansiedade

    depressiva se aproxima. A necessidade de um objeto especfico ou de umpadro de comportamento que comeou em data muito primitiva pode

    reaparecer numa idade posterior, quando a privao ameaa.

    Essa primeira possesso usada em conjuno com tcnicas

    especiais, derivadas da infncia muito primitiva, as quais podem incluir as

    atividades auto-erticas mais diretas, ou existir isoladamente delas:

    Gradativamente, na vida do beb, ursinhos, bonecas e brinquedos duros

    so adquiridos. Os meninos, at certo ponto, tendem a passar a usar

    objetos duros, ao passo que as meninas se inclinam a progredir em

    seguida para a aquisio de uma famlia. importante notar, contudo,

    queno h diferena digna de nota entre menino e menina em seu uso da

    possesso original 'no-eu',que estou chamando de objeto transicional.

    medida que o beb comea a usar sons organizados ('mum', 'ta',

    'da'), pode surgir uma 'palavra' para designar o objeto transicional. O

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    nome dado pelo beb a esses primeiros objetos freqentemente

    significativo e em geral apresenta uma palavra empregada pelos adultos,

    parcialmente incorporada a ele. Por exemplo, 'b' pode ser o nome e o 'b'

    pode provir do emprego que os adultos fazem da palavra 'beb'(baby)ou

    'urso'(bear).

    Devo mencionar que, s vezes, no h objeto transicional,

    exceo da prpria me, ou, ento, um beb pode ser to perturbado em

    seu desenvolvimento emocional, que o estado de transio no pode ser

    frudo, ou, ainda, a seqncia dos objetos usados rompida. A seqncia,

    no obstante, pode manter-se s ocultas.

    Resumo das Qualidades Especiais na Relao

    1. O beb assume direitos sobre o objeto e concordamos comesse assumir. No obstante, uma certa ab-rogao daonipotncia desde o incio constitui uma dascaractersticas.

    2. O objeto afetuosamente acariciado, bem comoexcitadamente amado e mutilado.

    3. Ele nunca deve mudar, a menos que seja mudado pelobeb.

    4. Deve sobreviver ao amar instintual, ao odiar tambm e

    agressividade pura, se esta for uma caracterstica.

    5. Contudo, deve parecer ao beb que lhe d calor, ou que semove, ou que possui textura, ou, que faz algo que pareamostrar que tem vitalidade ou realidade prprias.

    6. Ele oriundo do exterior, segundo nosso ponto de vista,mas no o , segundo o ponto de vista do beb. Tampouco

    provm de dentro; no uma alucinao.

    7. Seu destino permitir que seja gradativamente

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    descatexizado, de maneira que, com o curso dos anos, setorne no tanto esquecido, mas relegado ao limbo. Comisso quero dizer que, na sade, o objeto transicional no'vai para dentro'; tampouco o sentimento a seu respeitonecessariamente sofre represso. No esquecido e no

    pranteado. Perde o significado, e isso se deve ao fato deque os fenmenos transicionais se tornaram difusos, seespalharam por todo o territrio intermedirio entre a'realidade psquica interna' e 'o mundo externo, tal comopercebido por duas pessoas em comum', isto , por todo ocampo cultural.

    Nesse ponto, meu tema se amplia para o do brincar, dacriatividade e apreciao artsticas, do sentimento religioso, do sonhar, e

    tambm do fetichismo, do mentir e do furtar, a origem e a perda do

    sentimento afetuoso, o vcio em drogas, o talism dos rituais obsessivos,

    etc.

    Relao do Objeto Transicional com o Simbolismo

    verdade que a ponta do cobertor (ou o que quer que seja)

    simblica de algum objeto parcial, tal como o seio. No entanto, o

    importante no tanto seu valor simblico, mas sua realidade. O fato de

    ele no ser o seio (ou a me), embora real, to importante quanto o fato

    de representar o seio (ou a me).

    Quando o simbolismo empregado, o beb j est claramente

    distinguindo entre fantasia e fato, entre objetos internos e objetos

    externos, entre criatividade primria e percepo. Mas o termo objeto

    transicional, segundo minha sugesto, abre campo ao processo de tornar-

    se capaz de aceitar diferena e similaridade. Creio que h uso para um

    termo que designe a raiz do simbolismo no tempo, um termo quedescreva a jornada do beb desde o puramente subjetivo at a

    objetividade, e parece-me que o objeto transicional (ponta do cobertor,

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    etc.) o que percebemos dessa jornada de progresso no sentido da

    experimentao.

    Seria possvel compreender -o objeto transicional, embora sem

    compreender plenamente a natureza do simbolismo. Parece que osimbolismo s pode ser corretamente estudado no processo do

    crescimento de um indivduo, e que possui, na melhor das hipteses, um

    significado varivel. Se considerarmos, por exemplo, a hstia da Sagrada

    Comunho, simblica do corpo de Cristo, penso que tenho razo se disser

    que, para a comunidade catlico-romana, ela o corpo e, para a

    comunidade protestante, trata-se de um substituto, de algo evocativo,

    no sendo essencialmente, de fato, realmente o prprio corpo. Em ambos

    os casos, porm, trata-se de um smbolo.

    DESCRIO CLNICA DE UM OBJETO TRANSICIONAL

    Para qualquer pessoa que esteja em contacto com pais e filhos,

    existe uma quantidade e uma variedade infinitas de material clnicoilustrativo. As ilustraes que se seguem so fornecidas simplesmente

    para recordar aos leitores materiais semelhantes em suas prprias

    experincias.

    Dois Irmos: Contraste no Uso Primitivo das Possesses

    Deformao no uso do objeto transicional.X,hoje um homem

    sadio, teve de abrir fora seu caminho para a maturidade. A

    me 'aprendera a ser me' em seu trato de X quando este era

    beb, e conseguira evitar cometer certos equvocos com as

    outras crianas devido ao que aprendera com ele. Existiam

    tambm motivos externos para explicar por que ela estava

    ansiosa na poca de seu trato bastante solitrio de X,quando

    este nascera. Levara sua tarefa de me muito a srio e o

  • 5/21/2018 Winnicott, d.w. - o Brincar e a Realidade

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    alimentara ao seio durante sete meses. Achava que, no caso

    dele, isso fora demais, e X tinha sido muito difcil de

    desmamar. Nunca chupara o polegar ou os dedos e, quando o

    desmamara, 'ele no teve nada para o que se voltar'. Nunca

    tivera mamadeiras, chupetas ou qualquer outra forma dealimentao. Tiverauma ligaomuito forte e precocea ela

    prpria, como pessoa, e era de sua pessoa real que ele

    necessitava.

    A partir dos 12 meses,Xadotou um coelho que acariciava, e

    sua estima afetuosa pelo coelho acabou por se transferir para

    coelhos reais. Esse coelho especfico durou atXcontar cinco

    ou seis anos de idade. Poderia ser descrito como um

    confortador, mas nunca possura a verdadeira qualidade de

    um objeto transicional. Nunca fora, como um verdadeiro

    objeto transicional teria sido, mais importante do que a me,

    uma parte quase inseparvel do beb. No caso especfico

    desse menino, os tipos de ansiedade, que chegaram ao auge

    devido ao desmame aos sete meses, produziram

    posteriormente asma, que s aos poucos ele superou. Foi-lhe

    importante ter encontrado emprego bastante longe da

    cidade natal. Sua ligao me ainda muito forte, embora

    ele caiba na definio ampla do termo normal ou sadio. Esse

    homem no se casou.

    Uso tpico do objeto transicional.O irmo mais moo de X,Y,

    desenvolveu-se de maneira bastante direta. Tem hoje trs

    filhos saudveis. Foi alimentado ao seio durante quatro

    meses e, depois, desmamado sem dificuldade. Y chupou o

    polegar nas primeiras semanas e isso, mais uma vez, 'tornou

    o desmame mais fcil para ele do que para o irmo mais

    velho'. Pouco depois do desmame, com cinco a seis meses,

  • 5/21/2018 Winnicott, d.w. - o Brincar e a Realidade

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    adotou a ponta de um cobertor, onde a costura termina.

    Ficava contente com que um pedacinho de l sobressasse ao

    canto, com o qual fazia ccegas no nariz. O cobertor muito

    cedo tornou-se o seu 'Baa'; ele mesmo inventou essa palavra

    para o cobertor (blanket), assim que pde usar sonsorganizados. A partir da poca em que contava um ano de

    idade, pde substituir a ponta do cobertor por um macio

    jrsei verde, com um lao vermelho. No se tratava de um

    'confortador', como no caso do depressivo irmo mais velho,

    mas de um 'acalmados'. Constitua um sedativo que sempre

    funcionava. Trata-se de um exemplo tpico do que estouchamando deobjeto transicional.Quando Y era bem menino,

    era sempre certo que, se algum lhe desse seu 'Baa', ele

    imediatamente o chupava e perdia a ansiedade, e, de fato,

    caa no sono em poucos minutos, se a hora de dormir se

    aproximava. Sugar o polegar continuou ao mesmo tempo,

    durando at ele ter trs ou quatro anos de idade, e ele se

    lembra desse sugar e de um ponto duro num dos polegares,

    que resultou disso. Hoje, mostra-se interessado (como um

    pai) no sugar o polegar pelos filhos e no uso que estes fazem

    de 'Baas'.

    Polegar Objeto Transicional Tipo de crianaX Menino O Me Coelho (confortador) Fixado na meY Menino + 'Baa' Jrsei (acalmador) Livre

    G-meos

    Menina O Chupeta Burro (amigo)Maturidadetardia

    Menino O 'Ee' Ee (protetor) Psicopata latente

    Filhosde Y Menina O 'Baa'

    Cobertor

    (tranqilizador)

    Desenvolvendo-

    se bem

    Menina + Polegar Polegar (satisfao)Desenvolvendo-se bem

  • 5/21/2018 Winnicott, d.w. - o Brincar e a Realidade

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    A histria de sete crianas comuns nessa famlia apresenta os

    seguintes pontos, dispostos para comparao no quadro seguinte:

    Valor da Anotao da Histria

    Na consulta com um genitor, freqentemente valioso obter

    informaes sobre as primeiras tcnicas e possesses de todas as crianas

    da famlia. Isso faz a me iniciar uma comparao dos filhos uns com os

    outros, e permite-lhe recordar e comparar as caractersticas deles emtenra idade.

    A Contribuio da Criana

    Com freqncia, pode-se obter de uma criana informaes a

    respeito de objetos transicionais. Por exemplo:

    Angus (onze anos e nove meses de idade) contou-me que seu

    irmo 'tinha toneladas de ursinhos e coisas' e que 'antes

    disso, tivera ursos pequenos'; a essa informao seguiu-se

    uma conversa sobre sua prpria histria. Contou que nunca

    tivera ursinhos. Havia um cordo com campainha que pendia,

    com uma bola na extremidade, na qual ele ficava batendo atdormir. Ao final, provavelmente ela caiu, e esse foi seu fim.

    Havia, contudo, algo mais, sobre o que se mostrava muito

    tmido. Tratava-se de um coelho cor de prpura, de olhos

    vermelhos. 'Eu no gostava dele. Costumava jog-lo fora. Ele

    agora de Jeremy; dei para ele. Dei para Jeremy porque era

    2Nota acrescentada: Isso no se mostrava claro, mas deixei tal como estava. D.W.W.,

    1971.

    Menino + 'Mimis'Objetos(classificao)2

    Desenvolvendo-se bem

  • 5/21/2018 Winnicott, d.w. - o Brincar e a Realidade

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    muito travesso.Vivia caindoda cmoda.Ele ainda me visita.

    Gosto que ele me visite'.Surpreendeu-se quando desenhou o

    coelho cor de prpura.

    Note-se que esse menino de onze anos de idade, com sentido derealidade normal para sua idade, falou como se lhe faltasse esse sentido

    ao descrever as qualidades e as atividades do objeto transicional.

    Posteriormente, quando vi a me, ela mostrou surpresa por Angus ainda

    se lembrar do coelho cor de prpura, e reconheceu-o com facilidade no

    desenho colorido.

    Pronta Disponibilidade de Exemplos

    Abstenho-me deliberadamente de fornecer aqui mais material

    clnico, particularmente porque no desejo dar a impresso de que o que

    estou relatando coisa rara. Praticamente em toda histria clnica pode-

    se encontrar algo interessante nos fenmenos transicionais, ou na

    ausncia deles.

    ESTUDO TERICO

    H alguns comentrios que podem ser feitos com base na teoria

    psicanaltica aceita:

    1. O objeto transicional representa o seio, ou o objeto daprimeira relao.

    2. O objeto transicional precede o teste da realidadeestabelecido.

    3. 3. Na relao com o objeto transicional, o beb passa docontrole onipotente (mgico) para o controle pela

    manipulao (envolvendo o erotismo muscular e o prazerde coordenao).

  • 5/21/2018 Winnicott, d.w. - o Brincar e a Realidade

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    4. O objeto transicional pode acabar por se transformar numobjeto de fetiche e assim persistir como uma caractersticada vida sexual adulta. (Ver o desenvolvimento do tema porWulff, 1946.)

    5. O objeto transicional pode, devido organizao anal-ertica, representar fezes (mas no por esse motivo quepode tornar-se mal-cheiroso e no ser lavado).

    Relao com o Objeto Interno (Klein)

    interessante comparar o conceito de objeto transicional com o

    conceito de objeto interno, de Melanie Kein (1934). O objeto transicionalno um objeto interno(que um conceito mental) uma possesso.

    Tampouco (para o beb) um objeto externo.

    O seguinte e complexo enunciado tem de ser efetuado. O beb

    pode usar um objeto transicional quando o objeto interno est vivo, e

    real e suficientemente bom (no muito persecutrio). Mas esse objeto

    interno depende, quanto a suas qualidades, da existncia, vitalidade e

    comportamento do objeto externo. O fracasso deste em alguma funo

    essencial leva indiretamente morte, ou a uma qualidade persecutria do

    objeto.3 Aps a persistncia da inadequao do objeto externo, o objeto

    interno deixa de ter sentido para o beb, e ento e somente ento o

    objeto transicional tambm fica sem sentido. O objeto transicional pode,

    portanto, representar o seio 'externo', mas indiretamente, por ser

    representante de um seio 'interno'.

    O objeto transicional jamais est sob controle mgico, como o

    objeto interno, nem tampouco fora de controle, como a me real.

    3Texto aqui modificado, embora baseado no enunciado original.

  • 5/21/2018 Winnicott, d.w. - o Brincar e a Realidade

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    Iluso-Desiluso

    A fim de preparar o terreno para minha prpria contribuio

    positiva a esse assunto, tenho de pr em palavras algumas das coisas que

    acho que so facilmente tomadas como evidentes em muitos trabalhos

    psicanalticos sobre o desenvolvimento emocional infantil, embora

    possam ser compreendidas na prtica.

    No h possibilidade alguma de um beb progredir do princpio de

    prazer para o princpio de realidade ou no sentido, e para alm dela, da

    identificao primria (ver Freud, 1923), a menos que exista uma me

    suficientemente boa. A 'me' suficientemente boa (no necessariamentea prpria me do beb) aquela que efetua uma adaptao ativa s

    necessidades do beb, uma adaptao que diminui gradativamente,

    segundo a crescente capacidade deste em aquilatar o fracasso da

    adaptao e em tolerar os resultados da frustrao. Naturalmente, a

    prpria me do beb tem mais probabilidade de ser suficientemente boa

    do que alguma outra pessoa, j que essa adaptao ativa exige umapreocupao fcil e sem ressentimentos com determinado beb; na

    verdade, o xito no cuidado infantil depende da devoo, e no de "jeito"

    ou esclarecimento intelectual.

    A me suficientemente boa, Como afirmei, comea com uma

    adaptao quase completa s necessidades de seu beb, e, medida que

    o tempo passa, adapta-se cada vez menos completamente, de modo

    gradativo, segundo a crescente capacidade do beb em lidar com o

    fracasso dela.

    Os meios de que o beb dispe para lidar com esse fracasso

    materno incluem os seguintes:

    1. A experincia do beb, quase sempre repetida, de que hum limite temporal para a frustrao. A princpio,naturalmente, esse limite deve ser curto.

  • 5/21/2018 Winnicott, d.w. - o Brincar e a Realidade

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    2. Crescente sentido de processo.

    3. Os primrdios da atividade mental.

    4. Emprego de satisfaes auto-erticas.

    5. Recordar, reviver, fantasiar, sonhar; o integrar de passado,presente e futuro.

    Se tudo corre bem, o beb pode, na realidade, vir a lucrar com a

    experincia da frustrao, j que a adaptao incompleta necessidade

    torna reais os objetos, o que equivale a dizer, to odiados quanto amados.

    A conseqncia disso que, se tudo corre bem, o beb pode ser

    perturbado por uma adaptao estrita necessidade que continuada

    durante muito tempo, sem que lhe seja permitida sua diminuio natural,

    de uma vez que a adaptao exata se assemelha magia, e o objeto que

    se comporta perfeitamente no se torna melhor do que uma alucinao.

    No obstante,de sada, a adaptao precisa ser quase exata e, a

    menos que assim seja, no possvel ao beb comear a desenvolver acapacidade de experimentar uma relao com a realidade externa ou

    mesmo formar uma concepo dessa realidade.

    A Iluso e o Valor da Iluso

    A me, no comeo, atravs de uma adaptao quase completa,

    propicia ao beb a oportunidade para ailusode que o seio dela faz parte

    do beb, de que est, por assim dizer, sob o controle mgico do bebe. O

    mesmo se pode dizer em funo do cuidado infantil em geral, nos

    momentos tranqilos entre as excitaes. A onipotncia quase um fato

    da experincia. A tarefa final da me consiste em desiludir

    gradativamente o beb, mas sem esperana de sucesso, a menos que, a

    princpio, tenha podido propiciar oportunidades suficientes para a iluso.

  • 5/21/2018 Winnicott, d.w. - o Brincar e a Realidade

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    Em outra linguagem, o seio criado pelo beb repetidas vezes,

    pela capacidade que tem de amar ou (pode-se dizer) pela necessidade.

    Desenvolve-se nele um fenmeno subjetivo, que chamamos de seio da

    me4. A me coloca o seio real exatamente onde o beb est pronto para

    cri-lo, e no momento exato.

    Desde o nascimento, portanto, o ser humano est envolvido com o

    problema da relao entre aquilo que objetivamente percebido e aquilo

    que subjetivamente concebido e, na soluo desse problema, no existe

    sade para o ser humano que no tenha sido iniciado suficientemente

    bem pela me. A rea intermediria a que me refiro a rea que

    concedida ao beb, entre a criatividade primria e a percepo objetiva

    baseada no teste da realidade. Os fenmenos transicionais representam

    os primeiros estdios do uso da iluso, sem os quais no existe, para o ser

    humano, significado na idia de uma relao com. um objeto que por

    outros percebido como externo a esse ser.

    A idia ilustrada na figura 1 a seguinte: em algum ponto terico,no comeo do desenvolvimento de todo indivduo humano, um beb, em

    determinado ambiente proporcionado pela me, capaz de conceber a

    idia de algo que atenderia crescente necessidade que se origina da

    tenso instintual. No se pode dizer que o beb saiba, de sada, o que

    deve ser criado. Nesse ponto do tempo, a me se apresenta. Da maneira

    comum, ela d o seio e seu impulso potencial de alimentar. A adaptaoda me s necessidades do beb, quando suficientemente boa, d a este

    a iluso de que existe urna realidade externa correspondente sua

    prpria capacidade de criar. Em outras palavras, ocorre uma sobreposio

    entre o que a me supre e o que a criana poderia conceber. Para

    4 Incluo toda a tcnica da maternagem. Quando se diz que o primeiro objeto o seio, apalavra 'seio' utilizada, acredito, para representar tanto a tcnica da maternagemquanto o seio fsico. No impossvel, para uma me, ser suficientemente boa ( minhamaneira de express-lo) com uma mamadeira para a alimentao real.

  • 5/21/2018 Winnicott, d.w. - o Brincar e a Realidade

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    observador, a criana percebe aquilo que a me realmente apresenta,

    mas essa no toda a verdade. O beb percebe o seio apenas na medida

    em que um seio poderia ser criado exatamente ali e naquele ento. No

    h intercmbio entre a me e o beb. Psicologicamente, o beb recebe de

    um seio que faz parte dele e a me d leite a um beb que parte delamesma. Em psicologia, a idia de intercmbio baseia-se numa iluso do

    psiclogo.

    Na figura 2, d-se uma forma rea da iluso, para ilustrar o que

    considero a principal funo do objeto transicional e dos fenmenos

    transicionais. O objeto transicional e os fenmenos transicionais iniciam

    todos os seres humanos com o que sempre ser importante para eles, isto

    , uma rea neutra de experincia que no ser contestada. Do objeto

    transicional, pode-se dizer que se trata de uma questo de concordncia,

    entre ns e o beb, de que nunca formulemos a pergunta: 'Voc concebeu

    isso ou lhe foi apresentado a partir do exterior?' O importante que no

    se espere deciso alguma sobre esse ponto. A pergunta no para serformulada.

  • 5/21/2018 Winnicott, d.w. - o Brincar e a Realidade

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    Esse problema, que sem dvida interessa ao beb humano, no

    incio, de maneira oculta, torna-se gradativamente um problema evidente

    devido ao fato de que a principal tarefa da me (aps propiciar

    oportunidade para a iluso) a desiluso. Esta preliminar tarefa do

    desmame e tambm continua sendo uma das misses dos pais e doseducadores. Em outras palavras, a questo da iluso assunto que

    concerne inerentemente aos seres humanos e que nenhum- indivduo

    soluciona de modo final para si mesmo, ainda, que uma compreenso

    tericadele possa permitir uma soluoterica.Se tudo corre bem nesse

    processo gradativo de desiluso, o palco est pronto para as frustraes

    que reunimos sob a palavra desmame; deve-se lembrar, porm, que,quando falamos sobre os fenmenos (que Klein [1940] esclareceu

    especificamente em seu conceito sobre posio depressiva) que se

    renem em, torno do desmame, estamos presumindo o processo

    subjacente, o processo atravs do qual propiciada a oportunidade para

    a iluso e a desiluso gradativa. Se a iluso-desiluso se extravia, o beb

    no consegue chegar a uma coisa to normal quanto o desmame, nem a

    uma reao ao desmame; ento, torna-se absurdo referir-se a este de

    algum modo. O simples trmino da alimentao ao seio no constitui

    desmame.

    Podemos perceber a extraordinria significao do desmame no

    caso da criana normal. Quando assistimos complexa reao que

    colocada em andamento em determinada criana pelo processo dodesmame, sabemos que isso pode, realizar-se nessa criana porque o

    processo de iluso-desiluso est sendo levado a cabo to bem, que

    podemos ignor-lo enquanto se examina o desmame real.

    Desenvolvimento da Teoria da Iluso-Desiluso

    Presume-se aqui que a tarefa de aceitao da realidade nunca

    completada, que nenhum ser humano est livre da tenso de relacionar a

  • 5/21/2018 Winnicott, d.w. - o Brincar e a Realidade

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    realidade interna e externa, e que o alvio dessa tenso proporcionado

    por uma rea intermediria de experincia (cf. Riviere, 1936) que no

    contestada (artes, religio, etc). Essa rea intermediria est em

    continuidade direta com a rea do brincar da criana pequena que se

    "perde" no brincar.

    Na tenra infncia, essa rea intermediria necessria para o

    incio de um relacionamento entre a criana e o mundo, sendo tornada

    possvel por uma maternagem suficientemente boa na fase primitiva

    crtica. Essencial a tudo isso a continuidade (no tempo) do ambiente

    emocional externo e de elementos especficos no ambiente fsico, tais

    como o objeto ou objetos transicionais.

    Os fenmenos transicionais so permissveis ao beb por causa do

    reconhecimento intuitivo que os pais tm da tenso inerente percepo

    objetiva, e no contestamos o beb a respeito da subjetividade ou

    objetividade exatamente nesse ponto em que est o objeto transicional.

    Se um adulto nos reivindicar a aceitao da objetividade de seus

    fenmenos subjetivos, discerniremos ou diagnosticaremos nele loucura.

    Se, contudo, o adulto consegue extrair prazer da rea pessoal

    intermediria sem fazer reivindicaes, podemos ento reconhecer

    nossas prprias e correspondentes reas intermedirias, sendo que nos

    apraz descobrir certo grau de sobreposio, isto , de experincia comum

    entre membros de um grupo na arte, na religio, ou na filosofia.

    RESUMO

    Chama-se a ateno para o rico campo de observao

    proporcionado pelas experincias mais primitivas do beb sadio, tal comose exprimem principalmente na relao com a primeira possesso.

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    Essa primeira possesso est relacionada, retroativamente no

    tempo, com os fenmenos auto-erticos e ao sugar o punho e o polegar,

    e tambm, para a frente, ao primeiro animal ou boneco macios e aos

    brinquedos duros. Relaciona-se tanto com o objeto externo (seio da me)

    quanto com os objetos internos (seio magicamente introjetado), mas diferente deles.

    Os objetos transicionais e os fenmenos transicionais pertencem

    ao domnio da iluso que est na base do incio da experincia. Esse

    primeiro estdio do desenvolvimento tornado possvel pela capacidade

    especial, por parte da me, de efetuar adaptaes s necessidades de seu

    beb, permitindo-lhe assim a iluso de que aquilo que ele cria existe

    realmente.

    Essa rea intermediria de experincia, incontestada quanto a

    pertencer realidade interna ou externa (compartilhada), constitui a

    parte maior da experincia do beb e, atravs da vida, conservada na

    experimentao intensa que diz respeito s artes, religio, ao viverimaginativo e ao trabalho cientfico criador.

    O objeto transicional de um beb normalmente se torna

    gradativamente descatexizado, especialmente na medida em que se

    desenvolvem os interesses culturais.

    O que surge dessas consideraes a idia adicional de que oparadoxo aceito pode ter um valor positivo. A soluo do paradoxo

    conduz a uma organizao de defesa que, no adulto, pode encontrar-se

    como verdadeira e falsa organizao do eu(self)(Winnicott, 1960a).

  • 5/21/2018 Winnicott, d.w. - o Brincar e a Realidade

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    II - UMA APLICAO DA TEORIA

    No o objeto, naturalmente, que transicional. Ele representa a

    transio do beb de um estado em que este est fundido com a me

    para um estado em que est em relao com ela como algo externo eseparado. Quase sempre se faz referncia a isso como sendo o ponto em

    que a criana, pelo crescimento, se liberta de um tipo narcsico de relao

    de objeto; abstive-me, porm, de utilizar essa linguagem porque no

    estou seguro de que isso que quero dizer. Ademais, ela exclui a idia de

    dependncia, to essencial nos estdios mais primitivos, antes que a

    criana se tenha certificado de que pode existir algo que no faz parte

    dela.

    PSICOPATOLOGIA MANIFESTADA NA REA DOSFENMENOS TRANSICIONAIS

    Dei bastante nfase normalidade dos fenmenos transicionais.

    No obstante, existe uma psicopatologia a ser discernida no curso doexame clnico dos casos. Como exemplo do manejo pela criana da

    separao e da perda, chamo a ateno para o modo como a separao

    pode influenciar os fenmenos transicionais.

    Como se sabe, quando a me, ou alguma outra pessoa de quem o

    beb depende, est ausente, no h uma modificao imediata, de uma

    vez que o beb possui uma lembrana ou imagem mental da me, ou

    aquilo que podemos chamar de uma representao interna dela, a qual

    permanece viva durante certo tempo. Se a me ficar longe por um

    perodo de tempo alm de certo limite medido em minutos, horas ou

    dias, ento a lembrana, ou a representao interna, se esmaece.

    medida que isso ocorre, os fenmenos transicionais se tornam gradativa-

    mente sem sentido e o beb no pode experiment-los. Podemos

    observar o objeto sendo descatexizado. Exatamente antes da perda,

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    podemos s vezes perceber o exagero do uso de um objeto transicional

    como parte danegaode que haja ameaa de ele se tornar sem sentido.

    Para ilustrar esse aspecto da negao, fornecerei um breve exemplo

    clnico do uso de um cordo por um menino.

    Cordo5

    Um menino de sete anos de idade foi trazido ao

    Departamento de Psicologia do Hospital Infantil de

    Paddington Green por sua me e seu pai em maro de 1955.

    Os outros dois membros da famlia tambm vieram: uma

    menina de dez anos, que freqentava uma escola paracrianas excepcionais, e outra, bastante normal, de quatro

    anos de idade. O caso foi encaminhado pelo mdico da

    famlia, devido a uma srie de sintomas que indicavam um

    distrbio de carter no menino. Um teste de inteligncia deu

    a este um QI de 108. (Para os fins desta descrio, todos os

    pormenores no imediatamente pertinentes ao temaprincipal deste captulo foram omitidos.)

    Vi primeiro os pais, numa longa entrevista em que forneceram um

    quadro claro do desenvolvimento do menino e das deformaes desse

    desenvolvimento. Entretanto, deixaram de mencionar um pormenor

    importante, que surgiu numa entrevista com o garoto.

    No foi difcil perceber que a me era uma pessoa depressiva, e

    ela comunicou que estivera hospitalizada por causa da depresso. Pelo

    relato dos pais, pude notar que a me cuidou do menino at a filha

    nascer, quando aquele contava trs anos e trs meses de idade. Foi essa a

    5Publicado em Child Psychology and Psychiatry, Vol. 1 (1960), e em Winnicott, The

    Maturational Processes and the Facilitating Environmem(1965), Londres, Hogarth Presse Insttuto de Pscanlse.

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    primeira separao de importncia, com a seguinte ocorrendo aos trs

    anos e onze meses, quando a me fez uma operao. Quando o menino

    estava com quatro anos e nove meses, a me passou dois meses num

    hospital psiquitrico e, durante esse perodo, ele foi bem cuidado pela

    irm da me. Por essa ocasio, todos os que cuidavam do meninoconcordavam que ele era difcil, embora apresentasse aspectos muito

    bons. Era sujeito a se transformar repentinamente e a assustar as

    pessoas, dizendo, por exemplo, que ia cortar a irm da me em

    pedacinhos. Desenvolveu muitos sintomas curiosos, tais como uma

    compulso a lamber coisas e pessoas; fazia rudos compulsivos com a

    garganta; quase sempre se recusava a evacuar e, depois, sujava tudo.Estava obviamente ansioso a respeito da deficincia mental da irm mais

    velha, mas a deformao de seu desenvolvimento parece ter comeado

    antes que esse fator se tornasse significante.

    Aps essa conversa com os pais, recebi o menino para uma

    entrevista pessoal. Estavam presentes dois assistentes sociais

    psiquitricos e dois visitantes. O menino no deu de imediato uma

    impresso anormal e rapidamente ingressou comigo num jogo de

    rabiscos. (Nesse jogo, rabisco um tipo qualquer e impulsivo de traos e

    convido a criana que estou entrevistando a transform-lo em algo;

    depois, ele tambm faz um rabisco para que eu, por minha vez, o

    transforme em algo.)

    O jogo de rabiscos, nesse caso especfico, conduziu a um resultado

    curioso. A preguia do menino tornou-se logo evidente, e tambm tudo o

    que eu fazia era por ele traduzido em algo associado a cordo. Entre seus

    dez desenhos, aparecia o seguinte:

    um lao

    um chicote

    um chicotinho

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    um cordo de ioi

    um n dado num cordo outro chicotinho

    outro chicote

    Aps essa entrevista com o menino, tive outra com os pais;perguntei-lhes a respeito da preocupao do menino com cordo.

    Disseram-me que se alegravam que eu mencionasse o assunto, mas que

    no se tinham referido a ele por no estarem seguros quanto sua

    significncia. Contaram que o menino ficara obsedado com tudo que se

    referisse a cordo e, de fato, sempre que entravam numa sala, j

    esperavam descobrir cadeiras e mesas amarradas por ele; descobriram,por exemplo, uma almofada presa por um cordo lareira. Disseram que

    a preocupao do menino com cordes estava gradativamente

    desenvolvendo-se numa nova caracterstica, que os preocupava em vez

    de lhes despertar um interesse normal. Recentemente amarrara um

    cordo em torno do pescoo da irm (a irm cujo nascimento causara a

    primeira separao entre o menino e a me).

    Nesse tipo especfico de entrevista, eu sabia que dispunha de

    oportunidades limitadas para ao; no seria possvel encontrar os pais

    ou o menino com freqncia maior do que a cada seis meses, pois a

    famlia residia no interior. Agi, portanto, da seguinte maneira: expliquei

    me que o menino estava lidando com um temor de separao, tentando

    neg-la atravs do uso de cordes, tal como, atravs do uso do telefone,se negaria a separao de um amigo. Ela se mostrou ctica; disse-lhe,

    porm, que, se viesse a encontrar algum sentido no que eu estava

    dizendo, gostaria que debatesse o assunto com o menino em alguma

    ocasio conveniente, comunicando-lhe o que eu dissera e depois

    desenvolvendo o tema da reparao de acordo com a reao dele.

    No tive mais notcias deles at que vieram ver-me, cerca de seis

    meses depois. A me no me disse o que fizera, mas perguntei-lhe e ela

  • 5/21/2018 Winnicott, d.w. - o Brincar e a Realidade

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    pde contar-me o que acontecera pouco aps a consulta que me tinham

    feito. Ela achara que o que eu dissera era ridculo, mas, certa noite,

    abordara o assunto com o menino e descobrira-o vido por falar a

    respeito de seu relacionamento com ela e seu medo de uma falta de

    contacto com a me. Ela passou em revista todas as separaes de quepodia lembrar-se, com a ajuda dele, e logo ficou convencida de que o que

    eu dissera estava certo por causa das reaes do menino. Ademais, a

    partir do momento em que teve essa conversa com ele, o brincar com

    cordes parou. No ocorreram mais junes de objetos, maneira antiga.

    Mantiveram muitas outras conversas com o menino a respeito de seu

    sentimento de separao quanto a ela, e fez o comentrio muitosignificante de que achava que a separao mais importante fora a perda

    dela por ele quando estivera gravemente deprimida; no fora apenas o

    fato de ela se ter afastado, disse, mas sua falta de contacto com ele por

    causa da inteira preocupao dela com outros assuntos.

    Numa entrevista posterior, a me contou-me que, um ano depois

    da primeira conversa com o menino, houve um retorno ao brincar com

    cordes e a juntar objetos na casa. Ela tinha, realmente, de ir para o

    hospital a fim de se operar, e disse-lhe: 'Pelos seus brinquedos com

    cordes, posso ver que voc est preocupado com minha partida, mas

    dessa vez ficarei fora s alguns dias e vou fazer uma operao que no

    grave.' Aps essa conversa, a nova fase de brincar com cordes cessou.

    Mantive-me em contacto com essa famlia e ajudei em diversos

    pormenores na escolarizao do menino e outros assuntos.

    Recentemente, quatro anos depois da primeira entrevista, o pai

    comunicou uma nova fase de preocupao com cordes, associada a

    recente depresso na me. Essa fase durou dois meses, desvanecendo-se

    quando toda a famlia saiu em frias e quando, ao mesmo tempo, houve

    uma melhora na situao do lar (o pai encontrou trabalho, depois de um

    perodo de desemprego). A par disso, ocorreu uma melhora no estado da

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    me. O pai forneceu outro pormenor interessante, pertinente ao tema em

    estudo. Durante essa fase recente, o menino fizera uma atuao(acted

    mit) com cordas de algo que o pai sentia que era significativo, por

    demonstrar quo intimamente todas essas coisas estavam vinculadas

    ansiedade mrbida da me. Voltou para casa certo dia e encontrou o filhopendurado de cabea para baixo numa corda. Inteiramente flcido,

    representando muito bem que estava morto. O pai compreendeu que no

    devia prestar ateno e ficou pelo jardim fazendo uma coisa e outra cerca

    de meia hora; depois, o menino entediou-se e parou com a brincadeira.

    Isso constituiu um grande teste da ausncia de ansiedade do pai. No dia

    seguinte, porm, o menino fez a mesma coisa numa rvore que podia serfacilmente vista da janela da cozinha. A me precipitou-se para fora,

    gravemente chocada e certa de que ele se enforcara.

    O pormenor adicional seguinte talvez seja de valor na

    compreenso do caso. Embora esse menino, que hoje tem onze anos de

    idade, esteja se desenvolvendo segundo uma linha de 'duro', muito

    acanhado e enrubesce facilmente. Possui alguns ursinhos, que, para ele,

    so filhos. Ningum se atreve a dizer que se trata de brinquedos. leal

    para com eles, dispensa-lhes grande afeio e faz calcinhas para eles,

    coisa que envolve costura cuidadosa. O pai diz que ele parece extrair

    sentimento de segurana de sua famlia, qual desse modo serve de me.

    Se aparecem visitas, rapidamente coloca-os todos na cama da irm,

    porque ningum estranho famlia deve saber que ele possui essa outrafamlia. Junto com isso, h relutncia em defecar ou tendncia a reter as

    fezes. No difcil adivinhar, portanto, que ele apresenta identificao

    materna, baseada em sua prpria insegurana em relao me, e, que

    essa identificao poderia transformar-se em homossexualismo. Da

    mesma maneira, a preocupao com cordes poderia transformar-se em

    perverso.

    Comentrio

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    Parece apropriado fazer o comentrio que se segue.

    1. O cordo pode ser encarado como uma extenso de todas as

    outras tcnicas de comunicao. O cordo rene, assim como tambm

    ajuda no embrulhar objetos e no reter material no integrado. A esserespeito, o cordo possui um significado simblico para todos; o exagero

    de seu uso pode facilmente pertencer aos primrdios de um sentimento

    de insegurana ou idia de uma falta de comunicao. Nesse caso

    especfico, possvel detectar uma anormalidade que complica

    insidiosamente o uso que o menino faz do cordo, sendo importante

    descobrir uma maneira de enunciar a mudana que poderia conduzir

    perverso de seu uso.

    possvel chegar a tal enunciado caso se leve em considerao o

    fato de que a funo do cordo est modificando-se de comunicao para

    negao da separao.Como negao, o cordo se torna uma coisa em si,

    algo que possui propriedades perigosas e necessidades que precisam ser

    dominadas. Nesse caso, parece que a me pde lidar com o uso do cordopelo menino exatamente antes que fosse tarde demais, quando esse uso

    ainda continha esperana. Quando a esperana est ausente e o cordo

    representa uma negao da separao, surge ento um estado de coisas

    muito mais complexo, um estado que se torna difcil de curar, por causa

    dos ganhos secundrios oriundos da percia que se desenvolve sempre

    que um objeto tem de ser manuseado a fim de ser dominado.

    Esse caso, portanto, ser de interesse especial, se tornar possvel a

    observao do desenvolvimento de uma perverso.

    2. Tambm possvel perceber a partir desse material o uso que

    se pode fazer dos pais. Quando podem ser usados, podem trabalhar com

    grande economia, especialmente se se tem em mente o fato de quejamais haver psicoterapeutas suficientes para tratar todos aqueles com

    necessidade de tratamento. Tivemos aqui uma boa famlia que passou por

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    uma poca difcil devido ao desemprego do pai, que conseguiu assumir

    plena responsabilidade por uma menina retardada, apesar dos

    formidveis obstculos (tanto sociais quanto internos da famlia) que isso

    acarreta, e que sobreviveu s fases ms da molstia depressiva da me,

    inclusive uma fase de hospitalizao. Tem de haver um grande vigor numafamlia assim, e foi com base nessa presuno que se tomou a deciso de

    convidar esses pais a empreenderem a terapia de seu prprio filho. Assim

    procedendo, eles mesmos aprenderam muito, ainda que precisando de

    serem informados sobre o que estavam fazendo. Tambm precisaram de

    que seu sucesso fosse apreciado e de que todo o processo fosse

    verbalizado. O fato de terem assistido ao filho durante uma doenaforneceu aos pais confiana quanto sua prpria capacidade de lidar com

    outras dificuldades que surgem esporadicamente.

    Nota Acrescentada em I969

    Na dcada que se passou desde que esse relatrio foi escrito, vim

    a perceber que o menino no podia ser curado de sua doena. A ligaocom a molstia depressiva da me continuou, de modo que no se palha

    evitar que ele retornasse ao lar. Distante deste, poderia ter tido um

    tratamento pessoal, mas, em casa, esse tratamento era impraticvel. Em

    casa, mantinha o padro que j estabelecera poca da primeira

    entrevista.

    Na adolescncia, o rapaz desenvolveu novos vcios, especialmente

    em drogas, e no podia deixar sua casa para receber instruo. Todas as

    tentativas para coloc-lo longe da me falharam, porque normalmente

    fugia e voltava para casa.

    Tornou-se um adolescente insatisfatrio, sem fazer nada e

    aparentemente desperdiando seu tempo e potencial intelectual (como jfoi observado, seu 01 era 108).

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    A pergunta : um investigador que efetuasse um estudo desse

    caso de vcio em drogas daria a devida considerao psicopatologia

    manifestada na rea dos fenmenos transicionais?

    III - MATERIAL CLNICO: ASPECTOS DO FANTASIAR

    Na parte seguinte deste livro, explorarei algumas das idias que

    me ocorrem enquanto estou empenhado no trabalho clnico e onde sinto

    que a teoria que formei, para meu prprio proveito, sobre os fenmenos

    transicionais, influencia o que vejo e escuto, e o que fao.

    Apresentarei aqui, com pormenores, um pouco do material clnico

    proveniente de uma paciente adulta, para demonstrar como o sentimento

    de perda em si mesmo pode tornar-se uma maneira de integrar a prpria

    experincia.

    O material de determinada sesso da anlise da paciente, e

    apresento-o por reunir diversos exemplos da grande variedade que

    caracteriza a imensa rea existente entre a objetividade e a subjetividade.

    Essa paciente, me de diversos filhos, iniciou tratamento

    devido a uma ampla gama de sintomatologia geralmente agrupada

    sob apalavra 'esquizide'. Com uma inteligncia privilegiada que

    utiliza em seu trabalho, estimada Por todos em geral e tida comopessoa de valor, provvel que aqueles com quem convive no

    percebam a que ponto ela se sente enferma.

    Essa sesso especfica iniciou-se com um sonho que poderia

    ser descrito como depressivo. Continha material transferencial

    direto e revelador, onde o analista aparecia como uma mulher

    avarenta e dominadora, o que deixou ansiando pelo analista

    anterior, que representava para ela uma figura muito masculina.

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    Isso era sonho e, como sonho, poderia ser utilizado como material

    para interpretao. A paciente mostrava satisfao por estar

    sonhando mais. Ao mesmo tempo, podia descrever certos

    enriquecimentos em sua vida real no mundo.

    Muitas vezes invadida pelo que poderia ser chamado de

    fantasiar.Est viajando de trem; h um acidente. Como os filhos

    vo saber o que lhe aconteceu? Como seu analista vai saber?

    Poderia gritar, mas sua me no a escutaria. Da passa a falar sobre

    sua experincia mais terrvel quando abandonara um gato por

    certo tempo, tendo sido informada depois que o animal estivera

    miando por horas e horas. Isso 'horrvel demais', e junta-se s

    vrias separaes que experimentou durante a infncia,

    separaes alm de sua capacidade de suport-las e, portanto,

    traumticas, tornando necessria a organizao de novos

    conjuntos de defesas.

    Grande parte do material dessa anlise diz respeito ao ladonegativo dos relacionamentos, isto , ao gradativo fracasso que

    tem de ser experimentado pelo filho quando os pais no esto

    disponveis. A paciente extremamente sensvel a tudo isso em

    relao aos prprios filhos e atribui grande parte da dificuldade de

    lidar com o primeiro filho ao fato de t-lo deixado durante trs

    dias, para pass-los fora com o marido, ocasio em que iniciou umanova gravidez, isto , quando a criana tinha aproximadamente

    dois anos de idade. Contaram-lhe que a criana tinha chorado

    ininterruptamente durante quatro horas. Ao regressar, foi

    impossvel paciente restabelecer orapportcom o filho durante

    muito tempo.

    Estamos lidando com um fato: a impossibilidade de

    comunicao verbal com' animais e crianas pequenas. O gato no

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    poderia compreender. Tambm um beb com menos de dois anos

    no pode ser adequadamente Informado sobre um novo beb que

    esperado; embora, 'por volta dos vinte meses,

    aproximadamente', seja possvel dar criana uma explicao,

    atravs de palavras, de unia forma acessvel, capaz de serassimilada por ela.

    Caso se torne impossvel fazer com que a criana

    compreenda a ausncia da me, quando ela sai de casa para ter um

    novo beb, ento, do ponto de vista da criana a me est morta.

    isto o. que significa estar morto.

    Trata-se de unia questo de dias, horas ou minutos. Antes

    que certo limite seja atingid6, a me ainda est viva; depois de

    transposto o limite, ela morreu. Entrementes, h um precioso

    momento de raiva, rapidamente perdida, porm, ou nunca

    experimentada, talvez, sempre potencial e trazendo consigo o

    medo da violncia.

    Daqui chegamos aos dois extremos, to diferentes um do

    outro: a morte da me quando ela est presente, e sua morte

    quando no pode reaparecer e, portanto, voltar novamente vida.

    Isso tem a ver com a poca exatamente anterior poca em que a

    criana cria a capacidade de manter as pessoas vivas na realidade

    psquica interna, independentemente da segurana de ver, sentir,

    cheirar.

    Pode-se dizer que a infncia dessa paciente constituiu um

    nico e longo exerccio precisamente nessa rea. Durante a guerra

    houve a evacuao que a atingiu quando contava

    aproximadamente onze anos; ela esqueceu completamente ainfncia e os pais, embora defendesse, sistematicamente, durante

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    todo o tempo, o direito de no chamar os que dela cuidavam de

    'tio' e 'tia', segundo o procedimento habitual.

    Conseguiu negar-lhes qualquer nome durante todos aqueles

    anos, o que no era seno a maneira negativa de recordar a me eo pai. Compreenda-se que o padro de tudo isso foi estabelecido

    em sua infncia primitiva.

    A partir da, minha paciente atingiu a posio, que

    novamente surge na transferncia, de que a nica coisa real a

    falta ou lacuna, isto , a morte, a ausncia ou a amnsia. No

    decorrer da sesso, teve uma amnsia especfica e isso aaborreceu; revelou-se que a comunicao importante dirigida a

    mim estava em que poderia existir um anulamento e que esse

    ponto em branco poderia ser o nico fato e a nica coisa real. A

    amnsia real, ao passo que aquilo que foi esquecido perdeu sua

    realidade.

    Em conexo com isso, a paciente recordou a existncia de

    uma manta em disponibilidade no consultrio, e como se

    envolvera nela, em certa ocasio, usando-a para um episdio

    regressivo durante uma sesso analtica. Atualmente, ela no

    tocaria nessa manta nem a usaria. Porque a manta que no se

    encontra ali (porque no vai busc-la), mais real do que a manta

    que lhe oferecesse o analista, tal como teve idia de faz-lo,

    certamente. A partir dessas consideraes, a paciente defronta-se

    com a ausncia da manta, ou melhor dizendo, com a irrealidade

    dela em seu significado simblico.

    Daqui, ocorreu um desenvolvimento em termos da idia dos

    smbolos. O ltimo de seus analistas anteriores 'ser sempre maisimportante para mim que o analista atual'. Acrescentou: 'Voc pode me

    fazer muito bem, mas gosto mais dele. Isso ser verdade quando eu o

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    tiver esquecido inteiramente. O negativo dele mais real que o positivo

    em voc'. Podem no ter sido exatamente essas as palavras da paciente,

    mas era o que me transmitia em linguagem clara, sua prpria, e aquilo

    que precisava que eu compreendesse.

    O tema da nostalgia surge no quadro: pertence ao precrio ponto

    de apoio que uma pessoa pode ter na representao interna de um

    objeto perdido. Esse tema reaparece no relatrio clnico que se segue

    (pg. 57, abaixo).

    A paciente falou ento sobre sua imaginao e os limites do que

    ela acreditava que fosse real. Comeou dizendo: 'No acreditavarealmente que houvesse um anjo parado ao lado de minha cama; mas eu

    costumava ter tambm uma guia presa por urna corrente a meu pulso'.

    Era o que parecia real a ela, certamente, e a nfase estava nas palavras

    'presa por uma corrente a meu pulso'. Possua tambm um cavalo branco

    que era to real quanto possvel e que ela 'montaria para todas as partes

    e que amarraria a uma rvore e todo esse tipo de coisas'. Ela gostariarealmente de ter um cavalo branco agora, de maneira a poder lidar com a

    realidade da experincia desse cavalo e torn-la real de outro modo.

    Enquanto falava, senti com quanta facilidade essas idias poderiam ser

    rotuladas de alucinatrias, exceto no contexto da idade dela nessa poca

    e de suas experincias excepcionais com referncia perda repetida dos

    pais, bons sob outros aspectos. Exclamou: 'Imagino querer algo que nuncase perca'. Formulamos isso dizendo que a coisa real a coisa que no se

    encontra ali. A corrente constitui uma negao da ausncia da guia, que

    o elemento positivo.

    Da, passamos aos smbolos que esmaecem. Alegou ter alcanado

    certo xito em tornar seus smbolos reais por longo tempo, apesar das

    separaes. Aqui, ambos chegamos a algo ao mesmo tempo: ela pudera

    explorar, embora com esforo, seu intelecto j por si privilegiado. Tinha

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    lido muito, desde cedo; desde cedo pensara muito e sempre utilizara seu

    intelecto para manter as coisas funcionando e disso extrara prazer;

    contudo, sentiu-se tambm aliviada (achei eu) quando lhe disse que, ao

    lado desse uso do intelecto, existe, permanentemente, um medo de

    defeito mental. Desse ponto ela estendeu-se rapidamente a seu interessepor crianas autistas e sua ntima vinculao com a esquizofrenia de um

    amigo, condio que ilustra a idia de defeito mental apesar de um

    intelecto bom. Sentira-se tremendamente culpada por ter grande orgulho

    de seu bom intelecto, caracterstica que sempre fora bastante evidente.

    Era-lhe difcil admitir que talvez seu amigo pudesse ter tido um bom

    potencial intelectual, embora, no caso dele, fosse necessrio dizer que sedesviara para o inverso, que o retardamento mental atravs da doena

    mental.

    A paciente descreveu tambm diversas tcnicas para lidar com a

    separao, tais como, por exemplo, uma aranha de papel cujas pernas

    eram puxadas pelos dias em que a me se encontrava distante. Tinha

    tambm clares, tal como ela os chamava, e podia ver, de repente, por

    exemplo, seu co Toby, um brinquedo: 'Oh, ali est Toby'. Existe no lbum

    de famlia um retrato seu com Toby, um brinquedo do qual se esquecera,

    exceto nos clares. Isso conduziu-a lembrana de um terrvel incidente

    em que sua me lhe dissera: 'Mas ns "ouvimos" quando voc chorava

    durante todo o tempo em que estivemos longe'. Estavam a quatro milhas

    de distncia. A paciente tinha dois anos de idade na ocasio e pensara:'Ser possvel que minha me me tenha contado uma mentira?' No pde

    enfrentar o fato na ocasio e tentara negar o que sabia ser verdade: que

    sua me realmente mentira. Era difcil acreditar na me sob esse aspecto,

    porque todos diziam: Sua me to maravilhosa!'

    Partindo daqui, pareceu-nos possvel chegar a uma idia que era

    bastante nova, segundo meu ponto de vista. Tnhamos ali o retrato de

    uma criana, e a criana possua objetos transicionais, havia fenmenos

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    transicionais que eram evidentes e todos eles simbolizavam algo e eram

    reais para a criana; gradativamente, porm, ou talvez, freqentemente,

    por algum tempo, ela teve de duvidar da realidade da coisa que eles

    estavam simbolizando. Isso equivale a dizer que, se eram simblicos da

    devoo e fidedignidade da me, permaneciam sendo reais em siprprios, mas aquilo que representavam no era real. A devoo e a

    fidedignidade maternas eram irreais.

    Essas consideraes pareciam aproximar-se do tipo de coisa que a

    assombrara durante toda sua vida, perder animais, perder os prprios

    filhos, de modo que formulou a frase: 'Tudo o que consegui aquilo que

    no consegui'. Temos aqui uma tentativa desesperada de transformar a

    negativa numa ltima defesa contra o fim de tudo. O negativo o nico

    positivo. Quando chegou a esse ponto, disse ao analista: 'Que far agora,

    diante disso?' Fiquei calado e ela falou: 'Oh, compreendo'. Pensei que

    talvez se estivesse ressentindo de minha total inatividade e respondi:

    'Estou calado porque no sei o que dizer'. Ela retrucou,rapidamente, que assim estava bem. Na realidade, estava contente com o

    silncio e teria preferido que eu no tivesse dito absolutamente nada.

    Talvez, em meu silncio, eu pudesse ser ligado ao analista anterior que ela

    sabe que estar sempre buscando. Sempre esperar que ele retorne e a

    aprove com um 'Muito bem!', ou algo assim. o que continuar

    acontecendo ainda durante muito tempo, mesmo depois que ela tenhaesquecido como aquele analista. Fiquei pensando sobre o sentido

    daquilo que ela queria dizer: quando ele estiver mergulhado no poo

    geral da subjetividade e ligado quilo que ela pensou ter encontrado

    quando tinha a me e antes de comear a notar as deficincias da me

    como me, isto , as ausncias dela.

  • 5/21/2018 Winnicott, d.w. - o Brincar e a Realidade

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    Concluso

    Nessa sesso, tnhamos percorrido todo o campo existente entre a

    subjetividade e a objetividade, e terminamos com uma espcie de jogo.

    Ela ia viajar de trem para sua casa de frias e disse: 'Bem, acho que

    melhor que voc venha comigo, talvez at a metade do caminho'. Estava

    falando sobre a importncia que dava ao fato de ter de deixar-me. Era

    apenas por uma semana, mas no deixava de ser um ensaio das frias de

    vero. Queria tambm dizer que, quando se afastasse de mim, depois de

    algum tempo isso perderia qualquer importncia. Assim, numa estao

    intermediria, eu sairia e 'voltaria no trem quente'; e, brincando a

    respeito de meus aspectos de identificao materna, acrescentou:

    'Terminar por ser enfadonho: encontraremos inmeras crianas e bebs

    que naturalmente devem subir-lhe ao colo, suj-lo de vmito... vou achar

    bem feito!

    (Compreende-se que no havia idia de que eu pudesserealmente

    acompanh-la).

    Exatamente antes de ir embora, disse: ' assim que vejo a poca

    da minha partida, durante a evacuao [na guerra]: como se eu tivesseido

    ver se meus pais estavam l. Parece que eu acreditava poder encontr-

    los'. (Nisso estava implcita a dvida de que eles no seriam encontrados

    em casa). E, em conseqncia, para descobrir a resposta ela consumira

    um ou dois anos.

    E a resposta tinha sido: eles no estavam l e eraessa a realidade.

    Ela j me dissera sobre a manta que no utilizara: 'Voc sabe, no , que a

    manta podia ser muito confortvel, mas a realidade mais importante

    que o conforto e, portanto, nenhuma manta pode ser mais importante

    queuma manta'.

  • 5/21/2018 Winnicott, d.w. - o Brincar e a Realidade

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    Esse fragmento clnico ilustra o valor de guardar em mente as

    distines existentes entre os fenmenos, em termos de sua posio na

    rea situada entre a realidade externa ou compartilhada e o sonho

    verdadeiro.

  • 5/21/2018 Winnicott, d.w. - o Brincar e a Realidade

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    SONHAR, FANTASIAR E VIVER

    Uma Histria Clnica que Descreve Uma Dissociao Primria

    Neste captulo, fao uma tentativa nova de demonstrar as sutis

    diferenas qualitativas existentes entre as variedades do fantasiar.

    Examino especificamente o que foi chamado de fantasiar e mais uma vez

    utilizo o material de uma sesso de tratamento na qual o contraste entre

    o fantasiar e o sonhar foi no apenas pertinente, mas, diria eu, central.6

    Utilizo o caso de uma mulher de meia-idade que, em sua anlise,

    vai gradativamente descobrindo at que ponto o fantasiar ou algo da

    natureza do devanear perturbou sua vida inteira. Tornava-se agora

    evidente que, para ela, existia uma diferena essencial entre o fantasiar eas alternativas do sonhar, por um lado, e o viver real e o relacionar-se a

    objetos reais, por outro. Com inesperada clareza, percebeu-se que,

    enquanto sonhar e viver pertenciam mesma ordem, o devaneio era de

    outra ordem. O sonho ajusta-se ao relacionamento com objetos no

    mundo real, e viver no mundo real ajusta-se ao mundo onrico por formas

    que so bastante familiares, especialmente a psicanalistas. Em contraste,porm, o fantasiar continua sendo fenmeno isolado, a absorver energia,

    mas sem contribuir quer para o sonhar quer para o viver. At certo ponto,

    o fantasiar permaneceu esttico durante toda a vida dessa paciente, o

    que equivale a dizer que datava de anos muito primitivos, com o padro

    estabelecendo-se por volta da poca em que ela contava dois ou trs anos

    6Para um exame desse tema, sob outro ngulo. ver 'The Manic Defence' (1935), em

    Winnicott (1958a).

  • 5/21/2018 Winnicott, d.w. - o Brincar e a Realidade

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    de idade. Achava-se em evidncia em data ainda mais primitiva e

    provavelmente comeara com uma 'cura' do sugar o polegar.

    Outra caracterstica diferenciadora entre esses dois conjuntos de

    fenmenos est em que, embora boa parte de sonho e de sentimentospertencentes vida tenha probabilidade de se achar sob represso, isso

    constitui algo diferente da inacessibilidade do fantasiar. Essa

    inacessibilidade est relacionada dissociao e no represso.

    Gradativamente, medida que essa paciente comea a tornar-se uma

    pessoa total e a perder suas dissociaes rigidamente organizadas,

    tambm se torna cnscia7 da importncia vital que o fantasiar sempre

    teve para ela. Ao mesmo tempo, o fantasiar comea a transformar-se

    numa imaginao relacionada com o sonho e com a realidade.

    As diferenas qualitativas podem ser extremamente sutis e difceis

    de descrever; as grandes diferenas, porm, dizem respeito presena ou

    ausncia de um estado de dissociao. Por exemplo, a paciente est em

    minha sala, em tratamento, e tem sua disposio um pedacinho de cuque pode contemplar, nesse fim de tarde. Ela diz: 'Estou ali, naquelas

    nuvens rseas, e posso caminhar entre elas'. Essa observao,

    naturalmente, poderia ser um vo da imaginao. Poderia fazer parte da

    maneira pela qual a imaginao enriquece a vida, tal como poderia

    constituir material para sonho. Ao mesmo tempo, para minha paciente,

    essa mesma coisa pode ser algo que pertence a um estado dissociado, eque pode no se tornar consciente, no sentido de nunca existir uma

    pessoa total que se d conta dos dois ou mais estados de dissociao

    presentes em uma ocasio determinada. A paciente pode estar sentada

    em seu quarto e, enquanto no faz absolutamente nada, exceto respirar,

    ela (em sua fantasia) pintou um quadro ou fez um trabalho interessante

    em seu emprego ou esteve dando um passeio pelo campo; do ponto de

    7Ela tem um lugar do qual se tornar cnscia.

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    vista do observador, porm, nada disso aconteceu. De fato, nada tem

    probabilidade de acontecer pelo fato de tanta coisa estar acontecendo,

    no estado dissociado. Ela pode tambm estar sentada em seu quarto,

    pensando no trabalho do dia seguinte e fazendo planos, ou pensando

    sobre suas frias, e isso poderia constituir uma investigao imaginativado mundo e do lugar onde sonho e vida so a mesma coisa. Dessa

    maneira, ela oscila do estado de bem-estar para a doena e novamente

    para o bem-estar.

    Observe-se que se acha operante um fator temporal que

    diferente segundo ela esteja fantasiando ou imaginando. No fantasiar, o

    que acontece, acontece imediatamente, exceto que no acontece. Esses

    estados semelhantes so identificados como diferentes na anlise, devido

    ao fato de que, se o analista os busca, sempre tem indicaes do grau de

    dissociao presente. Muitas vezes. a diferena entre os dois exemplos

    no pode ser distinguida a partir de uma descrio verbal do que vai pela

    mente do paciente e se perderia at mesmo numa gravao em fita do

    trabalho da sesso.

    Essa paciente possui talentos excepcionais ou um potencial para

    diversos tipos de auto-expresso artstica, e conhece bastante a respeito

    da vida, e do viver, e do prprio potencial para compreender que, em

    termos de vida, ela est perdendo o barco e que sempre esteve perdendo

    o barco (pelo menos, quase desde o incio de sua vida). Trata-se,inevitavelmente, de um desapontamento para si mesma e para todos

    aqueles com quem convive, e que nutrem esperanas a seu respeito.

    Confronta-se com sua inadequao essencial ao sentir que os demais

    esperam algo dela ou vindo dela. Tudo isso constitui motivo de intenso

    pesar e ressentimento para a paciente e h muitas provas de que, sem

    auxlio, estaria em perigo de suicdio, o que, simplesmente, teria sido o

    mais perto que poderia chegar do assassinato. Ao sentir que se aproxima

    deste, comea a proteger seu objeto, de modo que, nesse ponto, tem o

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    impulso de matar-se, pois sua morte representa o fim de suas

    dificuldades. O suicdio no traz soluo, apenas a cessao da luta.

    Existe uma etiologia extremamente complexa em qualquer caso

    semelhante a este, mas possvel dizer algo sucinto sobre a infnciaprimitiva da paciente, numa linguagem que tem certa validade. verdade

    que um padro se estabeleceu em seu relacionamento primitivo com a

    me, relacionamento que se transformou cedo demais e de maneira

    abrupta, de algo muito satisfatrio em desiluso e desespero e no

    abandono da esperana na relao de objeto. Poderia tambm haver uma

    linguagem para descrever esse mesmo padro no relacionamento da

    meninazinha com o pai. O pai, at certo ponto, corrigiu aquilo em que a

    me havia falhado, mas viu-se envolvido, afinal, no padro que se estava

    tornando parte da criana, de modo que tambm ele, essencialmente,

    fracassou, em especial por pensar nela como uma mulher em potencial e

    ignorar o fato de Mue era potencialmente masculina.8

    A maneira mais simples de descrever os primrdios desse padrona paciente pensar nela como uma meninazinha com diversos outros

    irmos e irms mais velhos, sendo ela a mais jovem. A essas crianas

    permitiu-se que tomassem conta de si mesmas, em parte porque

    pareciam capazes de divertir-se e organizar seus prprios brinquedos,

    alm de cuidar de si mesmas com enriquecimento sempre crescente. A

    filha mais nova, contudo, descobriu-se num mundo que j estavaorganizado antes mesmo que chegasse ao convvio das demais. Muito

    inteligente, conseguiu adaptar-se de uma ou de outra forma. Jamais

    conseguiu, porm, tornar-se recompensante como membro do grupo,

    quer do seu ponto de vista ou do ponto de vista das outras crianas,

    porque s podia adaptar-se numa base de submisso. As brincadeiras lhe

    eram insatisfatrias porque estava simplesmente numa situao de luta,

    8Para o exame dos elementos masculinos e femininos, ver Captulo V.

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    tentando representar qualquer papel que lhe fosse atribudo; os outros

    sentiam tambm a carncia de algo, no sentido de que ela no contribua

    ativamente. provvel, contudo, que as crianas mais velhas no se

    dessem conta de que sua irm permanecia essencialmente ausente. Do

    ponto de vista de minha paciente, ela, como agora descobrimos,enquanto participava das brincadeiras das outras crianas, permanecia

    durante todo o tempo empenhada no fantasiar. Vivia realmente nesse

    fantasiar, na base de uma atividade mental dissociada. Essa parte dela

    que se tornou completamente dissociada, nunca constituiu a sua

    totalidade e, por longos perodos, sua defesa foi viver aqui, nessa

    atividade fantasiante, e se observar brincando as brincadeiras das outrascrianas, como se observasse qualquer outra pessoa do grupo infantil.

    Atravs dessa dissociao, reforada por uma srie de frustraes

    significantes em que suas tentativas de se tornar uma pessoa total por

    seu prprio direito, no encontraram sucesso, ela tornou-se especialista

    na capacidade de levar uma vida dissociada, enquanto parecia estar

    brincando com as outras crianas. A dissociao nunca foi completa e a

    afirmao que fiz sobre o relacionamento entre essa criana e os irmos

    provavelmente nunca foi inteiramente aplicvel, mas h, nesse tipo de

    afirmao, verdade suficiente para permitir que uma descrio seja

    utilmente efetuada nesses termos.

    medida que minha paciente crescia, conseguia construir umavida em que nada do que realmente acontecia era plenamente

    significaste para ela. Tornou-se, gradativamente, uma das muitas pessoas

    que no acreditam no seu prprio direito de existir como seres humanos

    totais. Durante todo o tempo, sem que ela o soubesse, enquanto

    freqentava a escola e, posteriormente, no trabalho, havia uma outra

    vida acontecendo em termos da parte que fora dissociada. Invertendo-se

    a afirmao, isso significava que sua vida estava dissociada da sua parte

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    principal, que vivia no que se tornou uma seqncia organizada de

    fantasiar.

    Se nos adentrssemos na vida dessa paciente, poderamos

    perceber as modalidades pelas quais ela tentou reunir essas duas e outraspartes de sua personalidade; mas suas tentativas sempre continham

    algum tipo de pr