Wisnik - Entrevista (Portal Mec)

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Entrevista com José Miguel Wisnik P: É importante conhecer a biografia dos escritores para falar de sua obra? R: Bem, a obra de um escritor transcende a biografia, a pessoa que escreveu, os fatos que ela viveu; mas, ao mesmo tempo, a obra é uma transformação de uma experiência que é uma experiência pessoal. No caso de Machado de Assis, temos uma pessoa que veio de um meio pobre, que conseguiu atravessar a sociedade brasileira, ascender socialmente, mas que, na verdade, conheceu a sociedade brasileira de ponta a ponta. Porque um menino, filho de uma lavadeira e de um pintor de paredes, que se torna um trabalhador, que é um trabalhador manual e um tipógrafo, que se torna jornalista, poeta, dramaturgo, escritor, romancista e presidente da Academia Brasileira de Letras e é consagrado em vida, é alguém que atravessou a sociedade brasileira de fora a fora, que portanto conheceu a vida brasileira de todos os ângulos. Nesse sentido, eu acho que essa experiência pessoal... porque há alguma coisa de singular no talento individual de alguém que cria, mas há uma experiência que na verdade só o Machado teve, no sentido de um olhar e uma visão da vida social brasileira que os escritores de modo geral não tinham. Até o Romantismo, os escritores eram filhos de fazendeiros ou de comerciantes abastados; depois, no período realista, você tem pessoas de classe média e você tem, por outro, lado Lima Barreto e Cruz e Sousa, cujas experiências sociais poderiam ser comparadas à de Machado, mas Machado, de todo modo, atravessou... teve uma visão completa da sociedade brasileira. P: Como resumir o enredo de Memórias Póstumas de Brás Cubas ou esse tipo de resumo é impossível? R: Eu não saberia resumir o enredo de Brás Cubas. É uma

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Entrevista de José Miguel Wisnik

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Entrevista com José Miguel Wisnik P: É importante conhecer a biografia dos escritores para falar de sua obra?

R: Bem, a obra de um escritor transcende a biografia, a pessoa que

escreveu, os fatos que ela viveu; mas, ao mesmo tempo, a obra é uma

transformação de uma experiência que é uma experiência pessoal. No

caso de Machado de Assis, temos uma pessoa que veio de um meio pobre,

que conseguiu atravessar a sociedade brasileira, ascender socialmente,

mas que, na verdade, conheceu a sociedade brasileira de ponta a ponta.

Porque um menino, filho de uma lavadeira e de um pintor de paredes, que

se torna um trabalhador, que é um trabalhador manual e um tipógrafo, que

se torna jornalista, poeta, dramaturgo, escritor, romancista e presidente da

Academia Brasileira de Letras e é consagrado em vida, é alguém que

atravessou a sociedade brasileira de fora a fora, que portanto conheceu a

vida brasileira de todos os ângulos. Nesse sentido, eu acho que essa

experiência pessoal... porque há alguma coisa de singular no talento

individual de alguém que cria, mas há uma experiência que na verdade só

o Machado teve, no sentido de um olhar e uma visão da vida social

brasileira que os escritores de modo geral não tinham. Até o Romantismo,

os escritores eram filhos de fazendeiros ou de comerciantes abastados;

depois, no período realista, você tem pessoas de classe média e você tem,

por outro, lado Lima Barreto e Cruz e Sousa, cujas experiências sociais

poderiam ser comparadas à de Machado, mas Machado, de todo modo,

atravessou... teve uma visão completa da sociedade brasileira.

P: Como resumir o enredo de Memórias Póstumas de Brás Cubas ou esse

tipo de resumo é impossível?

R: Eu não saberia resumir o enredo de Brás Cubas. É uma

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obra que tem uma seqüência de acontecimentos, quer dizer, na verdade,

temos ali um protagonista que não realiza, que não leva avante seus

projetos e que é um desfrutador de fortuna, um gastador, cujo resultado,

cuja soma final é o capítulo... são as negativas — isso se dá através de

muitos episódios que não seguem uma linha clara.

P: No capítulo “O Emplasto”, é possível definir uma regra de composição?

R: Eu acho que o capítulo do emplasto é um capítulo que tem, de certo

modo, uma chave interessante da obra machadiana, que é a idéia de um

remédio que mata o seu criador antes mesmo de ser criado, portanto de

um remédio que ambivalentemente curaria a humanidade, uma panacéia

universal para aliviar a melancolia humana, que, no entanto, faz com que o

próprio inventor, o suposto inventor, o pretenso inventor desse remédio

morra de um reles resfriado complicado. Eu acho que há aí uma chave

irônica, que é a idéia de que todo aquele que parece deter uma chave de

salvação da humanidade, ou de explicação da verdade última, toda esta

figura em Machado, que se investe de um poder totalizador, cai

ironicamente como que vítima da própria criação. O conto “O Alienista”,

muito conhecido, é uma espécie de variação desse mesmo motivo: o

psiquiatra que vai descobrir e curar a loucura, descobrir a natureza da

loucura humana e curá-la, e acaba, por uma série de inversões, sendo ele

mesmo o louco que procura em si mesmo a chave de uma loucura, sem

achar. Então, muitas vezes, esse tópico do salvador da humanidade, cuja

tentativa se volta contra si e é algo que mata, é uma entrada na ironia

machadiana. Mas, assim, nós podemos dizer que o livro Memórias

Póstumas de Brás Cubas está sob a égide dessa idéia do emplasto, de um

veneno-remédio, mas que também é um veneno do qual rimos, e poder rir

deste veneno é o melhor remédio. Com isso eu quero dizer que há também

um componente... há na obra machadiana um trabalho com a tradição do

riso, ou seja,

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Machado de Assis incorporou uma tradição que remete a Luciano.

P: No capítulo “Genealogia”, é possível localizar uma feição social e

histórica do comportamento do narrador?

R: É! É curioso que, quando Brás Cubas vai contar a sua morte, ele a

relaciona com a invenção do emplasto Brás Cubas, mas, no meio do

episódio do emplasto, ele conta a história da família dele e do nome dele,

Brás Cubas. O pai deu a ele o nome do fundador de uma das primeiras

cidades do Brasil, a cidade de São Vicente, portanto ele tem o nome de um

fundador do Brasil, mas o pai dá a ele esse nome para esconder que o

nome Cubas vem de um tetravô seu que foi tanoeiro, ou seja, um artesão

que fazia barris, Cubas. Daí que o nome guarda uma ligação com o

trabalho manual, que no Brasil é associado à escravidão, que se procura

camuflar ou escamotear; então o pai está tentando manter a idéia, ou criar

a idéia, de que o nome vem de uma linhagem nobre e ilustre, e está

tentando esconder a relação com o trabalho manual e com a escravidão.

Esse é um tema que a gente vê em Sérgio Buarque de Holanda, em

Raízes do Brasil; isso está profundamente ligado à formação brasileira, à

escravidão e à negação da escravidão; o próprio Machado tem uma

crônica falando disso, que no Brasil as pessoas se furtam ao trabalho,

porque trabalho é ocupação, nome que era dado para o trabalho escravo

ou o nome que os escravos davam ao lugar do trabalho, a ocupação. Aí,

nós vemos um pai que, ao dar o nome para o filho, tenta esconder a

própria história da família e a própria realidade social sobre a qual está

fundamentada a sociedade brasileira, que é a escravidão. Depois, ele quer,

no fim da vida, inventar um emplasto com o nome Brás Cubas, para dar ao

nome Brás Cubas uma espécie de sentido universal, mas é como se ele

estivesse ainda tentando

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dar fundamento a um nome sem fundamento. Ou seja, o pai, em vez de dar

ao filho um nome significativo, procura dar a ele um nome e uma

importância aristocrática e nobre, que esconda a sua origem social.

P: Você poderia falar um pouco dos contos de Machado?

R: Ao contrário de alguns, que podem achar que os contos são de

importância menor na obra machadiana, eu acho que os contos têm um

alcance imenso, têm uma grande importância na literatura mundial. Os

contos de Machado têm a mesma importância dos romances, dialogam

com os romances, às vezes gravitam em torno dos romances. Há contos

em que Machado desenvolve questões que estão nos romances: eu acho

que Papéis Avulsos é um livro que tem profunda ligação com Memórias

Póstumas de Brás Cubas — e eles são quase contemporâneos. No conto

“Missa do Galo”, a gente reconhece um parentesco com Dom Casmurro;

em Trio em Lá Menor, a gente percebe um motivo que será desenvolvido

em Esaú e Jacó, por exemplo... ou, também, “Um Homem Célebre”, que é

um conto sobre um compositor de polcas que, embora faça polcas de

grande sucesso popular, quer ser um compositor clássico e imortal, e ele

tenta isso: ele de fato toca sonatas de Beethoven e toca obras de Bach, de

Chopin, mas, quando ele vai compor, saem polcas sestrosas, ritmadas,

“swingadas”, “amaxixadas”, que fazem um enorme sucesso, para seu

desespero...