WITTGENSTEIN. Investigações Filosóficas. (Os Pensadores)

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Transcript of WITTGENSTEIN. Investigações Filosóficas. (Os Pensadores)

  • Ludwig Wittgenstein

    Investigaes Filosficas

    Traduo: Jos C arlos Bruni

    NOMCUIUML

  • Fundador VICTOR CIVITA

    (1907-1990)

    Editora Nova Cultural Ltda.

    Copyright desta edio 1999, Editora Nova Cultural Ltda.

    Rua Paes Leme, 524 - 10" andar CEP 05424-010 - So Paulo - SP.

    Coordenao Editorial: Janice Florido Chefe de Arte: Ana Suely Dobn

    Paginao: Nair Fernandes da Silva

    Direitos exclusivos sobre as tradues deste volume: Editora Nova Cultural Ltda., So Paulo.

    Direitos exclusivos sobre "W ittgenstein - Vida e Obra": Editora Nova Cultural Ltda.

    Impresso e acabamento: Grfica Crculo

    ISBN 85-13-00859-1

    Venda permitida somente em conjunto com edies de jornais

  • Vida e ObraConsultoria: Arm ando M ora iyO liveira

    E m RETRATOS DE MEMRIA, o filsofo Bertrand Russell (1872-1970) conta que, por volta de 1913, tinha entre seus alunos da Universidade de Cambridge um to esquisito, a ponto de, aps todo um perodo letivo, o filsofo no saber dizer se se tratava apenas de um excntrico ou de um homem de gnio. Sua perplexidade aumentou ainda mais quando foi procurado pelo estranho aluno, que lhe fez uma inslita pergunta: "O senhor poderia fazer a fineza de me dizer se sou ou no um completo idiota?". Russell respondeu que no sabia e perguntou-lhe das razes de sua dvida. O aluno replicou: "Caso seja um completo idiota, me dedicarei aeronutica; caso contrrio, tomar-me-ei filsofo". Russell no encontrou outra sada para se desfazer da embaraosa questo, a no ser pedindo-lhe que escrevesse um assunto filosfico qualquer, e depois lhe mostrasse. Passado algum tempo, o aluno retomou com o trabalho e o filsofo depois de ler apenas uma linha, sentenciou: "No, voc no deve se tomar um aeronauta".

    A partir da, W ittgenstein, o aluno excntrico, abandonou totalmente qualquer preocupao com engenharia de avies, tomando-se no apenas mais um filsofo entre outros, mas uma das principais figuras da filosofia do sculo XX.

    O Homem: de Inventor a Filsofo

    Ludwig Josef Johann W ittgenstein nasceu em Viena, a 26 de abril de 1889. Sua famlia havia emigrado da Saxnia para a ustria, e sua ascendncia judaica cessou com o av paterno, que se convertera ao protestantismo. Seu pai era diretor de uma grande siderrgica e organizou o primeiro cartel do ao na indstria austraca. Sua me, filha de um banqueiro vienense, era extremamente devotada msica. Entre os fre- qentadores da famlia W ittgenstein, encontrava-se Johannes Brams (1833- 1897); um de seus irmos, Paul, tom ou-se conhecido pianista.

    A educao de W ittgenstein, at os catorze anos, processou-se to

  • talmente em casa; era um estudante indiferente, mas demonstrava grande interesse por engenhos mecnicos, a ponto de construir uma mquina de costura, que provocou grande admirao. Seus pais resolveram, ento, envi-lo a uma escola em Linz, na regio montanhosa da ustria, onde a nfase era colocada no estudo da matemtica e da fsica, dando-se pouca ateno educao clssica. Aps trs anos em Linz, W ittgenstein ingressou na Escola Tcnica Superior, em Charlottenburg, Berlim . Na primavera de 1908, deixou essa escola, onde estudava engenharia mecnica, e mudou-se para a Inglaterra, registrando-se como estudante de engenharia na Universidade de Manchester. Durante trs anos, dedicou-se a pesquisas aeronuticas, tendo projetado um motor acionado a jato e um propulsor. Seus interesses, porm, comearam a afastar-se dessa rea, orientando-se para a matemtica pura e, em seguida, para os fundamentos da matemtica. Nessa poca, W ittgenstein encontrou por acaso os Princpios de Matemtica, de Bertrand Russell, que lhe despertaram grande entusiasmo. Como resultado, decidiu abandonar a engenharia e, em 1912, ingressou no Trinity College, a fim de estudar com Russell. Sob sua orientao, dedicou-se lgica, realizando progressos surpreendentes.

    Norman Malcom, um dos principais bigrafos e comentadores de W ittgenstein, conta que os anos de Cambridge, do ponto de vista afetivo, foram marcados pela ntima amizade que o ligou a David Pinsent, seu colega de estudos. A ligao entre os dois envolvia outras afinidades alm da lgica. O interesse pela msica foi uma delas. Ambos possuam um repertrio de mais de quarenta lieder de Schubert que W ittgenstein sabia assobiar, enquanto Pinsent acompanhava ao piano. Alm disso, fazia piqueniques na Islndia e na Noruega, correndo as despesas por conta de W ittgenstein. Embora considerasse W ittgenstein uma companhia difcil, irritvel e por vezes deprimente, Pinsent dizia que, quando alegre, ele se tomava encantador.

    Um dos motivos principais de suas depresses decorria de um sentimento de proximidade da morte que viria a impedi-lo de aperfeioar suas idias no terreno da lgica. Durante muitos anos, antes de ir para Cambridge, raros eram os dias em que no pensava em suicdio. Assim, ir para Cambridge a fim de estudar filosofia com Russell, adquiriu para W ittgenstein o carter de salvao.

    Durante a primavera de 1913, intensamente envolvido por seu trabalho em lgica, W ittgenstein submeteu-se a vrias sesses de hipnose, tentando, com esse recurso, obter respostas mais claras e definidas acerca das questes lgicas extremamente intrincadas com as quais se defrontava. No decorrer desse perodo, correspondeu-se freqentemente com Russell: suas cartas retratam um W ittgenstein muito afetivo, entusiasmado com suas descobertas lgicas, mas, ao mesmo tempo, manifestam sua convico de que jam ais poderia tomar-se amigo de Russell, pois, a seu ver, os ideais diferentes dos dois filsofos impediam uma verdadeira amizade. W ittgenstein considerava possvel a amizade entre duas pessoas, desde que

  • ambas fossem "puras", podendo, assim, existir um relacionamento aberto entre elas, sem causar a menor ofensa. Ele mesmo, contudo, no se considerava um puro, e escrevia para Russell: "Minha vida est cheia dos mais odiosos e mesquinhos pensamentos (isso no exagero). Talvez voc pense que seja uma perda de tempo, para mim, pensar acerca de mim mesmo; mas como posso tomar-me um lgico se no sou sequer um homem! Antes de mais nada, devo tom ar-m e puro".

    Quando eclodiu a Primeira Guerra M undial, W ittgenstein alistou-se no exrcito austraco como voluntrio. Durante os anos de caserna, trabalhou intensamente, redigindo o Tractatus Logico-Philosophicus, que viria a ser sua obra mais conhecida. Em agosto de 1918, terminou-o e dois meses depois foi aprisionado pelas tropas italianas. Retomando vida civil, publicou o Tractatus, em 1921, nos Anais de Filosofia Natural, dirigido por W ilhelm Ostwald (1853-1932); no ano seguinte, veio luz a traduo inglesa com o ttulo latino, sob o qual a obra ficaria consagrada.

    Por volta da mesma poca, W ittgenstein doou toda sua fortuna pessoal a duas irm s. Em parte, isso foi devido ao fato de que no queria ter amigos atrados por seu dinheiro. Por outro lado, a razo dessa atitude decorria de sua predisposio para uma vida simples e frugal e da idia de que o dinheiro poderia ser apenas uma amolao para o filsofo. Em conseqncia, W ittgenstein, a partir de 1920, passou a ser um simples mestre-escola, lecionando para crianas de 9 a 10 anos de idade. Em 1924, dois anos antes de renunciar a seu cargo de professor, elaborou um dicionrio, com cerca de seis mil palavras, para uso dos alunos nas escolas primrias das aldeias austracas. Esse pequeno livro foi publicado em 1926.

    Em 1923, W ittgenstein recebeu a visita de um jovem matemtico de Cambridge, Frank Ramsey, que estivera estudando o Tractatus e ansiava por discuti-lo com o autor. Nessa poca, o filsofo continuava vivendo em extrema simplicidade e declarou ao matemtico que no pretendia realizar mais nada em filosofia, pois sua mente "j no era mais flexvel".

    Em 1926, aps abandonar o m agistrio, pensou em entrar para a vida monstica, mas foi desencorajado pelo abade do mosteiro no qual pretendia viver. No vero do mesmo ano, trabalhou para os monges de Htteldorf, na qualidade de ajudante do jardineiro. Depois de trabalhar no projeto de uma casa para sua irm e ter-se dedicado escultura durante certo tempo, retomou a Cambridge, em 1929, quando passou a dedicar-se novamente filosofia. No se sabe ao certo o que foi que o levou a retomar tal interesse. Em junho daquele ano, obteve o doutoramento com o Tractatus. Seus examinadores foram Russell e G. E. Moore (1873-1958), a quem, alis, devido o ttulo latino da traduo inglesa de 1922. Nessa poca, publicou um breve ensaio intitulado Algumas Observaes sobre Forma Lgica que, juntamente com o Tractatus, constituiu a totalidade dos escritos filosficos publicados durante sua vida. Permaneceu em Cambridge at 1936, quando se retirou para a Noruega, onde comeou a escrever as Investigaes Filosficas. No ano seguinte, retomou a Cambridge, e dois anos depois

  • sucedeu a Moore na cadeira de filosofia. Em 1941, durante a Segunda Guerra M undial, no querendo permanecer como simples espectador, W ittgenstein conseguiu trabalho no Guy^s Hospital; e, at 1943, desempenhou as funes de simples porteiro. Foi transferido ento para New- castle, trabalhando como simples ajudante no laboratrio de pesquisas clnicas, onde ficou at a primavera de 1944. Trs anos depois, renunciou sua ctedra de filosofia: buscava isolamento e tranqilidade para que pudesse term inar as Investigaes. Na medida em que sua sade permitia, trabalhava com afinco na obra. Depois de viver na Irlanda, durante algum tempo, viajou para os Estados Unidos, a permanecendo trs meses, aps os quais retom ou Inglaterra. Descobriu ento que estava com cncer, mas no se surpreendeu nem ficou deprimido, declarando que isso no0 chocava, pois no queria continuar vivendo. Em 1950, viajou para Viena, onde reencontrou a famlia e, no mesmo ano, morou durante certo tempo com um amigo em Oxford. No ano seguinte, mudou-se para a casa de seu mdico, em Cambridge, pois a idia de passar seus ltimos dias em um hospital causava-lhe averso. Sabendo da iminncia da morte, dedicou-se integralm ente a seu trabalho. Os escritos filosficos de ento so da mais alta qualidade.

    A 27 de abril de 1951, sua enfermidade agravou-se subitamente, e quando o mdico informou que seu fim chegara, respondeu: "timo!". Suas ltimas palavras antes de perder a conscincia foram: "Diga-lhes que eu tive uma vida maravilhosa". Morreu dois dias depois.

    O Pensamento: A Teoria da Figurao

    Alm do Tractatus Logico-PhUosophicus e das Investigaes Lgicas, W ittgenstein deixou outras obras, das quais as mais representativas so as Observaes Filosficas, os Cadernos Azul e Marrom, redigidos entre 1933 e 1935, e Conferncias e Discusses sobre Esttica, Psicologia e Crena Religiosa, livro constitudo por uma srie de notas reunidas por alguns de seus amigos, a partir de conversas ocasionais e apontamentos de aula.

    O conjunto de sua obra dividido, pelos intrpretes, em duas fases bem distintas, de tal forma que se pode folar de um "primeiro W ittgenstein" e de um "segundo W ittgenstein". O "primeiro" corresponde ao Tractatus, e o "segundo" encontra-se nas demais obras.

    Os temas do Tractatus esto agrupados em proposies que vo de1 a 7, segundo o nvel crescente de complexidade existente na argumentao. Essas proposies bsicas so como teses de que as proposies subseqentes, numeradas decimalmente, constituem um comentrio ou esclarecimento. A primeira proposio diz que "o mundo tudo o que ocorre; a segunda, que o que ocorre, o fato, o subsistir de estados de coisas"; a terceira, que "pensamento a figurao lgica dos fotos"; a quarta, que "o pensamento a proposio significativa"; a quinta, que "a proposio uma funo de verdade das proposies elementares"; a sexta, que

  • "a forma geral da funo de verdade [p, %, N (|)]; e a stima sentencia: "o que no se pode falar, deve-se calar.

    Essas sete teses principais compem toda a estrutura do Tractatus, o qual uma explicitao das mesmas. Wittgenstein deixa claro, assim, todo o objetivo filosfico que props a si mesmo. Segundo suas prprias palavras, "todo meu trabalho consiste em explicar a natureza das sentenas".

    A explicao de W ittgenstein tem como centro a idia de que uma sentena uma figurao (picture, em ingls; Bild, em alemo). O Tractatus afirma que as sentenas figuram mesmo a realidade, no se tratando apenas de um "como se". Conforme assinala o prprio autor, "um nome representa uma coisa, outra coisa, e esto ligados entre si de tal modo que o todo, como quadro vivo, representa o estado de coisas". Em outros termos, haveria um paralelismo completo entre o mundo dos fatos reais e as estruturas da linguagem. Nesse sentido, ou seja, na medida em que uma proposio uma figurao da realidade, deve haver nela tantos elementos a serem distinguidos quantos os que existem no estado de coisas afigurado; deve haver uma mesma multiplicidade lgica ou matemtica entre a figurao e aquilo que afigurado. Dessa forma, define-se como forma de representao aquilo que existe de comum entre a figurao e o afigurado, e a possibilidade de que as coisas no mundo estejam relacionadas, como o esto os elementos da figurao, denominada form a da realidade. Desse modo, uma vez que so figuraes, as sentenas possuem a mesma forma da realidade que afiguram.

    Mas, embora uma sentena possa afigurar a realidade, ela no capaz, no entanto, de faz-lo no que respeita sua prpria forma de representao. Se deve haver algo de idntico na figurao e no afigurado a fim de que uma possa ser a figurao do outro, ento a forma lgica (ao mesmo tempo forma da realidade) que todas as figuraes devem possuir, no pode ser afigurada por nenhuma figurao. Caso contrrio, cair-se-ia em uma regresso ao infinito, ou seja, seria necessrio supor uma segunda linguagem que representaria a primeira, e assim sucessivamente. Por essa razo, W ittgenstein conclui que todo o problema da filosofia reduz-se apenas distino entre o que pode ser dito por meio de proposies, isto , mediante a nica a nica linguagem que existe, e o que no pode ser dito, mas apenas mostrado.

    Coisas e Nomes, Linguagem e Verdade

    No Tractatus, as proposies e a linguagem em geral repousam na noo de "nome", o qual definido pelo autor como um signo simples empregado nas sentenas. O signo simples no composto por outros signos, como o caso, por exemplo, da expresso "as ruas da capital da Inglaterra"; a palavra "Londres", ao contrrio, satisfez a exigncia de simplicidade. Alm de dever ser um signo sim ples, o nome, para W ittgenstein, deve satisfazer a uma outra exigncia, qual seja, a de representar uma

  • coisa simples, que ele chama "objeto". No Tradatus, os objetos so concebidos como absolutamente simples, e no simples apenas em relao com algum sistema de notao. Segundo o filsofo, os objetos formam a substncia do mundo, e por isso mesmo no podem ser compostos; a substncia o que subsiste independentemente do que ocorre; o fixo, o subsistente e o objeto so um s, enquanto a configurao constitui o mutvel, o instvel.

    Por si s, o nome no , para W ittgenstein, uma figurao do objeto e, portanto, sozinho nada diz. Somente atravs da combinao de nomes possvel figurar a realidade; em outros termos, isso significa que o centro da teoria da linguagem como figurao encontra-se nas sentenas. Nota W ittgenstein que a maior parte das proposies da linguagem corrente no parece ser figuraes da realidade; somente a anlise delas permite tom ar manifesto o carter figurativo. Como resultado dessa anlise surgem as proposies elementares, que se definem como proposies que consistem de nomes em vinculao imediata. Somente as proposies elementares representam uma configurao de objetos simples. Para W ittgenstein, por outro lado, mesmo que cada fato consista em muitos estados de coisas, e que cada estado de coisas seja constitudo por muitos objetos simples (podendo, tanto os objetos, como os estados de coisas, tenderem ao infinito), uma proposio admite uma, e somente uma, anlise em proposies elementares. Uma vez analisada completamente, a proposio ser composta de nomes simples, cujo significado ser um objeto simples. Desse modo, a compreenso de uma proposio exige apenas a compreenso de seus constituintes.

    Na filosofia do "primeiro W ittgenstein", a idia da existncia de proposies elementares no arbitrria, ao contrrio, decorre diretamente de suas preocupaes acerca da relao entre o pensamento e a linguagem, de um lado, e a realidade, de outro. Sua teoria baseia-se na idia de que a realidade afigurada pela linguagem, e nesse caso seria necessrio adm itir-se a existncia de proposies, cujo sentido evidencie-se imediatamente. Entretanto, no se deve inferir da que tais proposies apresentem uma verdade auto-evidente. Assim, das proposies elementares dependeram todas as outras proposies. Em outras palavras, as proposies (cujo sentido imediatamente evidente) no-elementares seriam funes de verdade de proposies elementares; no fosse assim, nenhuma sentena poderia dizer alguma coisa ou ser entendida.

    A funo de verdade de uma nica proposio p uma proposio cuja verdade ou falsidade determinada, exclusivamente, pela verdade ou falsidade de p; por exemplo, no-p (se p falso) uma funo de verdade de p. Uma funo de verdade de duas proposies p e q uma proposio cuja verdade ou falsidade unicamente determinada pela verdade ou falsidade de p, q ; por exemplo, "p, q so ambas verdadeiras" uma funo da verdade de p, q. Se duas proposies no-elementares r e s so funes de verdade de proposies elementares, ento r e s estaro relacionadas intemamente: por exemplo, uma delas pode decorrer logi-

    ia

  • camente da outra, ou podem ser contraditrias. Para Wittgenstein, conhecen- do-se a estrutura interna de duas proposies, pode-se saber quais as relaes lgicas que elas mantm entre si. No se faz necessrio, para tanto, um conhecimento de princpios lgicos; e, da, ser possvel viver sem as proposies lgicas, j que se pode reconhecer, graas mera inspeo dessas proposies, suas propriedades formais em uma notao correspondente.

    Para tom ar manifestas as condies de verdade de uma proposio, W ittgenstein empregou o mtodo das tbuas de verdade. Uma vez que a proposio em questo funo de verdade de outras proposies, o objetivo seria mostrar a relao entre a verdade (ou falsidade) das ltimas e a verdade (ou falsidade) da primeira.

    Dois so os casos limites entre os possveis grupos de condies de verdade das proposies. Um deles ocorreria quando uma proposio fosse verdadeira para todas as possibilidades de verdade das proposies elementares; tal proposio chamada tautologia. O outro caso diz respeito proposio que seja falsa para todas as possibilidades de verdade, essa proposio denominada contradio. Conquanto seja conveniente referir-se tanto s contradies, como s tautologias como "proposies", ambas para Wittgenstein no so, a rigor, proposies, pois, alm de no determinarem nenhuma realidade, no possuem condies de verdade, j que uma incondidonalmente verdadeira (tautologia), e outra incondidonalmente falsa (contradio). Assim, para Wittgenstein, as proposies mostram o que dizem, mas se forem tautolgicas ou contraditrias so vazias de sentido. Em outros termos, a tautologia e a contradio no so figuraes da realidade, no representam nenhuma situao possvel, porquanto a primeira permite todas as situaes possveis, enquanto a segunda, nenhuma.

    Por outro lado, diz ainda W ittgenstein, "a proposio, a figurao, o modelo so, num sentido negativo, como um corpo slido que lim ita a liberdade de movimento do outro; no sentido positivo, como um espao limitado por uma substncia slida onde um corpo pode ter lugar". Nessa ordem de idias, pode-se dizer que, enquanto a verdade de uma proposio no certa, mas apenas possvel, a da tautologia tida como certa, e a da contradio como impossvel.

    De acordo com o Tractatus, os assim chamados princpios de lgica, proposies de lgica ou verdades lgicas so todos simples tautologias, no expressam pensamentos, nada dizem. No se pode afirmar, contudo, que no possuam nenhum sentido: o simples fato de uma dada combinao de proposies exibir uma tautologia revela algo acerca das estruturas das proposies constituintes. Nas palavras do prprio W ittgenstein: "As proposies da lgica so tautologias; isso mostra as propriedades (lgicas) formais da linguagem, do mundo".

    O Sujeito Enquanto Limite do Mundo

    A teoria da figurao que se encontra no Tractatus e sua explicao

  • de verdade lgica conduziram a uma interessante doutrina sobre a necessidade, e tambm a uma negao de qualquer conhecimento do futuro. Segundo o filsofo, as proposies genunas dizem apenas como as coisas so, no como elas devem ser. A nica necessidade que pode existir a necessidade lgica expressa pelas tautologias ou por equaes matemticas. No entanto, nem as tautologias, nem as equaes matemticas dizem coisa alguma sobre o mundo. Por conseguinte, no mundo, no existe necessidade. Para W ittgenstein, tudo acidental. Desenvolvendo essa tese, o autor do Tractatus mostra que, embora uma proposio possa ser inferida de outra (desde que haja uma conexo interna e estrutural entre elas), tal no ocorre entre o estado de coisas, cuja existncia no pode ser inferida a partir de um outro estado de coisas, completamente diferente. Em suas prprias palavras, "de modo algum possvel inferir, da subsistncia de uma situao, a subsistncia de uma situao inteiramente diferente dela". Se isso fosse possvel, tratar-se-ia de uma inferncia daquilo que constituiria uma futura situao, um futuro estado de coisas. "Que o sol levante amanh" diz W ittgenstein " uma hiptese, e isso quer dizer: no sabemos se realmente se levantar."

    A partir dessas concepes, o ato de vontade e a realizao daquilo que desejado passam a ser considerados como duas ocorrncias inteiramente diferentes. Nesse sentido, a relao entre a vontade e aquilo que acontece no mundo s pode ser acidental. O homem no pode fazer nada acontecer, nem mesmo um movimento de seu corpo. Nas palavras do filsofo: "No posso subjugar os acontecimentos do mundo minha vontade: sou completamente impotente".

    Por outro lado, na medida em que, segundo a teoria da figurao, tanto uma proposio como a sua negao so ambas possveis, a proposio verdadeira meramente acidental. Da W ittgenstein retira a concluso de que no podem haver proposies em tica. Com isso, ele queria dizer que se alguma coisa possui valor, tal fato no pode ser acidental: a coisa tem de possuir aquele valor. No mundo, entretanto, tudo acidental; conseqentemente, no existe valor no mundo: "No mundo, tudo como e acontece como acontece: nele no h valor, e, se houvesse, o valor no teria valor". Se houver um valor que tenha valor, ele deve permanecer fora de todos os acontecimentos, pois todos os acontecimentos so acidentais. Em outros termos, o sentido do mundo deve estar fora dele; o que o faz no-acidental no pode estar no mundo pois, no caso contrrio, isso seria de novo acidental. Essa concepo no constitui uma negao absoluta da existncia do valor, mas da existncia de valor tio mundo. Uma vez que as proposies se pronunciam apenas acerca do que est no mundo, tudo aquilo que diz respeito tica no pode ser expresso por proposies, pois estas, diz W ittgenstein, "no podem exprimir nada alm", e acrescenta: " claro que a tica no se deixa exprimir. A tica transcendental". Assim, o mundo, e o que est nele, no nem bom nem mau. Bem e mal existem apenas em relao ao sujeito, e este tambm concebido

  • por W ittgenstein como transcendental: "o sujeito no pertence ao mundo, mas lim ite do mundo".

    A tica, todavia, no constitui o nico assunto que no pode ser expresso pelas proposies. A ela acrescentam-se outras reas, como a forma de representao das proposies, a existncia de objetos simples que constituiriam a substncia do mundo, a existncia de um sujeito metafsico, a existncia do bem e do mal, e muitos outros igualmente indizveis. W ittgenstein parece ter acreditado que o homem tem pensamentos sobre essas questes apenas quando considera o mundo como um todo limitado. Em suas prprias palavras, "a intuio do mundo sub specie ae- ternitatis a intuio dele como um todo limitado". Para ele, essa intuio de natureza mstica; alm disso, ele afirma que "o que mstico no como o mundo , mas que ele seja".

    Por outro lado, conquanto se possa dizer o que se queira a respeito daqueles tpicos metafsicos, isso no significa que eles sejam absurdos, mas sim que se situam alm do alcance da linguagem. Diz o prprio W ittgenstein que "existe com certeza o indizvel". Essa afirmao constituiria um exemplo do que indizvel, mas pode reproduzir uma certa compreenso filosfica. No fim do Tractatus, o autor explica: "Minhas proposies se elucidam do seguinte modo: quem me entende, por fim as reconhecer como absurdas, quando graas a elas por elas tiver calado para alm delas. preciso, por assim dizer, jogar a escada fora depois de ter subido por ela". A proposio final do Tractatus ("O que no se. pode falar, deve-se calar.") no constitui apenas um trusmo, mas traduz a existncia de um terreno a respeito do qual nada se pode dizer.

    Os Vrios J ogos de Linguagem

    Para muitos intrpretes do desenvolvimento filosfico do autor do Tractatus hogico-Philosophicus, o prprio W ittgenstein encarregou-se de jogar fora a escada que ele mesmo utilizara. Segundo esses intrpretes, depois da publicao do Tractatus, W ittgenstein modificou radicalmente a orientao de sua filosofia, abandonando a perspectiva logidsta que caracteriza essa obra. No Caderno Azul, no Caderno Marrom e, sobretudo, nas Investigaes Filosficas, publicados aps sua morte, o filsofo passou a trilhar um novo caminho, afirmando ser extremamente insatisfatrio o Tractatus. Isso, no entanto, no significa que tenha passado a considerar suas primeiras reflexes pura e simplesmente como errneas, mas sim como incapazes de elucidar todos os problemas da linguagem em virtude de resultarem de uma maneira "supersticiosa" de abordagem. A linguagem diz o "segundo W ittgenstein" engendra ela mesma supersties das quais preciso desfazer-se, e a filosofia deve ter como tarefa primordial o esclarecimento que permita neutralizar os efeitos enfeitiadores da linguagem sobre o pensamento. O centro desse enfeitiamento da linguagem sobre a inteligncia encontra-se nas tentativas para se descobrir a essncia

  • da linguagem, necessrio, ao contrrio, no querer descobrir o que supostamente esteja oculto sob a linguagem, mas abrir os olhos para ver e desvendar como ela funciona. A atitude metafsica deve ser substituda pela atitude prtica.

    A linguagem diz o "segundo W ittgenstein" funciona em seus usos, no cabendo, portanto, indagar sobre os significados das palavras, mas sobre suas funes prticas. Estas so mltiplas e variadas, constituindo mltiplas linguagens que so verdadeiramente formas de vida. Em outros termos, poder-se-ia dizer que o correntemente chamado linguagem , na verdade, um conjunto de "jogos de linguagem", entre os quais poderiam ser citados seus empregos para indagar, consolar, indignar-se, ou descrever. W ittgenstein compara os jogos de linguagem a ferramentas utilizadas pelo operrio, que usa o martelo para martelar, o serrote para serrar, e assim por diante. Da mesma forma, no h, para W ittgenstein, uma nica funo comum das expresses da linguagem, nem mesmo algo que possa ser considerado como o jogo de linguagem. O que se pode dizer que existe so certas semelhanas, ou, nas palavras do prprio W ittgenstein, certo "ar de fam lia", certos parentescos que se combinam, se entrecruzam, se permutam.

    Em termos rigorosamente tcnicos, poder-se-ia dizer que, para o "segundo W ittgenstein", a linguagem no pode ser unificada segundo uma nica estrutura lgica e formal. Diferentemente da tese exposta no Trac- tatus, W ittgenstein afirma nas Investigaes Filosficas que uma proposio no traz em si o todo da linguagem. Esta procede atravs de pequenos segmentos, que so diferentes, mltiplos e parcelados. A nica semelhana que tais segmentos possuem entre si "um certo ar de fam lia", constituindo cada um deles um "jogo de linguagem". No se pode definir exatamente o que seja "um jogo de linguagem", a no ser atravs da comparao entre os traos semelhantes e definitivos de uma srie de jogos. Com essa colocao do problema, W ittgenstein aproxima-se muito do es- truturalismo desenvolvido por Saussure (1857-1913).

    Essa nova maneira de colocar o problema (que to alheia metafsica quanto a teoria exposta no Tractatus, mas que consegue, no entanto, evitar o formalismo lgico de Bertrand Russell e do Crculo de Viena) traz consigo profundas conseqncias no que diz respeito filosofia em geral. Para o "segundo W ittgenstein", os filsofos deixaram-se enredar nas teias dos chamados "problemas filosficos" porque se iludiram procurando descobrir a essncia da linguagem, algo que estivesse oculto atrs dela. Na verdade, no existem "problemas" filosficos, mas to-somente "perplexidades". Com isso, W ittgenstein quer dizer que de nada adianta ao filsofo tentar encontrar solues, procurando uma suposta realidade escondida; em filosofia nada existiria de oculto e todos os dados dos chamados "problemas" esto sempre ao alcance da inteligncia. Quando esses dados no possibilitam nenhuma soluo, se est diante de um beco sem sada, e nada mais. Perguntar-se, por exemplo, "que horas so?", constitui

  • um problema e, como tal, pode perfeitamente ser solucionado; mas inquirir sobre a natureza ltima do tempo colocar-se num labirinto aparentemente sem sada. A sada, contudo, possvel, e consiste, segundo W ittgenstein, simplesmente em se libertar da idia de que existam labirintos.

    Apesar disso, no se deve concluir que para W ittgenstein as questes filosficas sejam destitudas de sentido. Pelo contrrio, a filosofia tem um sentido profundo, o qual consiste em mostrar as razes da perplexidade e como elas se acham vincadas no pensamento humano. Haver uma razo que explique a fascinao dos homens pelas questes filosficas, a ponto de alguns deles terem dedicado toda sua vida a elas. Para W ittgenstein, na verdade, essas questes so "fascinantes" e seu "enfeitiamen- to" decorre das investidas feitas pelo homem contra as limitaes da linguagem. Porm no cabe mais continuar essa luta inglria. A filosofia deve ensinar ao homem apenas como "ver" as questes; ela no pode explicar, inferir ou deduzir coisa alguma, mas somente "pr vista" as perplexidades resultantes do esquecimento das razes pelas quais se utilizam certos conceitos. Em suma, a filosofia uma permanente "luta contra o enfeitiamento da linguagem".

    Wittgenstein e seu Legado

    Tanto a filosofia formulada no Tractatus bogico-Philosophicus (correspondente ao "primeiro W ittgenstein"), quanto a que se encontra nas obras pstumas, sobretudo nas Investigaes Filosficas e nos Cadernos A zu le M arrom, exerceram profunda influncia no pensamento do sculo XX. Muitas das teses fundamentais dos filsofos do chamado Crculo de Viena foram desenvolvidas a partir da interpretao empirista que fizeram do Tractatus. Entre outras teses do Crculo de Viena, encontra-se o princpio da verifi- cabilidade, segundo o qual o significado de uma proposio reduz-se ao conjunto de dados empricos imediatos, cuja ocorrncia confere veracidade mesma, e cuja no ocorrncia a toma falsa. O Crculo de Viena retirou tambm do Tractatus a idia de que as proposies matemticas so tautologias e, portanto, despidas de significado fatual.

    Mas, no obstante esses e outros pontos de convergncia, excessivo dizer-se, como o fazem alguns admiradores de W ittgenstein, que ele tenha sido o "pai do positivismo lgico" desenvolvido pelo Crculo de Viena. Algumas divergncias ponderveis separam o autor do Tractatus dos positivistas lgicos. A teoria da figurao, por exemplo, no foi adotada pelo Crculo de Viena. Outro aspecto que os separa a posio diante da metafsica; enquanto os positivistas lgicos rejeitam totalmente as proposies m etafsicas, W ittgenstein admite a possibilidade de apreenses intuitivas no terreno da linguagem, do pensamento ou da realidade, embora ressalvando que tais intuies no podem ser expressas pela linguagem.

    Por outro lado, a filosofia do "segundo W ittgenstein" influenciou consideravelmente a "filosofia lingstica", desenvolvida pelo Grupo de

  • Oxford. Tambm nesse caso, os admiradores de W ittgenstein chegam a consider-lo "o pai da filosofia lingstica", muito embora os filsofos do Grupo de Oxford devam parte de seu pensamento a outras fontes, como a filosofia de G. E. Moore. Ao lado do Grupo de Oxford e do Crculo de Viena, mais importante foram as influncias que W ittgenstein deixou em discpulos propriamente ditos, como o caso de John Wisdom (1904-), pertencente corrente da "filosofia analtica", desenvolvida na Inglaterra.

  • Cronologia

    1889 A 26 de abril, em Viena, nasce Ludwig Josef Johann Wittgenstein. 1904 Nasce John Arthur Terence Dibben Wisdom, em Londres.1912 Wittgenstein ingressa no Trinity College.1913 Submete-se hipnose, visando esclarecer intrincadas questes lgicas.1914 Inicia-se a Primeira Guerra M undial. Wittgenstein alista-se, volun

    tariamente, no exrcito austraco.1918 Com o colapso do Imprio Austro-Hngaro, aprisionado pelos italianos. 1921 A revista de Wilhelm Ostwald, Annalen der Naturphilosophie, publica

    o Tractatus Logico-Philosophicus, de Wittgenstein.1926 Wittgenstein trabalha como ajudante de jardineiro do mosteiro de Ht-

    teldorf.1929 Wittgenstein retorna a Cambridge, onde, em junho, doutora-se com o

    Tractatus.1930 Redige as Observaes Filosficas.1931 Wisdom publica Interpretao e Anlise.1933-1935 Wittgenstein escreve os Cadernos Azul e Marrom.1936 Wittgenstein retira-se para a Noruega, onde inicia as Investigaes

    Filosficas.1938 Elabora as Conferncias e Discusses sobre Esttica, Psicologia e

    Crena Religiosa.1939 Estoura a Segunda Guerra Mundial. Sucedendo a G. E. Moore, Witt

    genstein assume a cadeira de filosofia da Universidade de Cambridge. 1941-1943 Trabalha como porteiro do Guy's Hospital.1943-1944 Trabalha como simples ajudante no Clinicai Research Laboratory,

    em Newcastle.1947 Renuncia cadeira de filosofia.1951 A 29 de abril, morre Wittgenstein.

  • il

  • Bibliografia

    MALCOM, N.: Wittgenstein, in The Encyclopedia o f Philosophy, 8 vols., The M acmillan Company & The Free Press, Nova York, 1967.

    PEARS, D.: Wittgenstein, Fontana Books, Londres, 1971.PEARS, D.: As Idias de Wittgenstein, Editora da Universidade de So Paulo

    e Editora Cultrix Ltda., So Paulo, 1973.PITCHER, G.: The Philosophy o f Wittgenstein, Prentice-Hall, Englewoods

    Cliffs, 1964.WAHL, J.: Prefcio a Le Cahier Bleu et le Cahier Brun, de W ittgenstein, di

    tions Gallimard, Paris, 1965.RUSSELL, MOORE, CARNAP e outros: Ludwig Wittgenstein: The Man and

    His Philosophy, editado por K. T. Farm, Dell Publishing Company, Nova York, 1967.

    ANSCOMBE, G. E. M.: An Introduction to Wittgenstein's "Tractatus", Hutchinson, Londres, 1959.

    STENIUS, E.: Wittgenstein's "Tractatus ", Blackwell, Oxford, 1960.GRIFFIN, J.: Wittgenstein's Logical Atomism, Oxford University Press, Lon

    dres, 1964.HARTNACK, J.: Wittgenstein and Modern Philosophie, Anchor Books, Nova

    York, 1965.FAVRHOLDT, D .:An Interpretation and Critique o f Wittgenstein's Tractatus,

    Munksgaard, Copenhague, 1964.

  • Nota dos Editores Ingleses

    o QUE SE APRESENTA neste volume como Primeira Parte, estava pronto desde 1945. A Segunda Parte surgiu entre 1947 e 1949. Se o prprio W ittgenstein tivesse publicado sua obra, teria deixado de lado grande parte daquilo que agora constitui aproximadamente as ltimas trinta pginas da Primeira Parte e, no lugar delas, teria inserido o contedo da Segunda Parte, com acrscimo de novo material.

    Por todo o manuscrito, tivemos de nos decidir por diferentes leituras de palavras isoladas e locues. O sentido jamais foi alterado pela escolha.

    As passagens que esto ocasionalmente impressas ao p da pgina, sob um trao, estavam escritas em fichas que W ittgenstein recortara de outros escritos e anexara nas pginas respectivas, sem indicar exatamente onde seriam inseridas.1

    Frases entre parnteses duplo so referncias de W ittgenstein a anotaes, tanto nesta obra como em outros de seus escritos, que, esperamos, sejam publicados mais tarde.

    Somos responsveis pela ordenao dos ltimos fragmentos da Segunda Parte no seu lugar atual.

    G. E. M. AnscombeR. Rhees

    Em geral, o progresso parece ser maior do que realmente .

    Nestroy

    1 Na presente edio encontram-se separadas do texto por dois traos.

  • Nota do Tradutor

    O VERBO ALEMO "meinett" oferece um intrincado problema de traduo ao longo de todo o texto. A lngua que melhor traduz "meinen" o ingls: "to m ea n " M ein en " significa propriamente: "pretender dar ao que se diz uma determinada significao"; da poder ser traduzido mais abreviadamente por: "ter a inteno de", "ser de opinio", "referir-se a, "achar", "pensar", termos que traduziriam "meinen" no seu emprego na linguagem cotidiana. Mas note-se que cada expresso abreviada contm apenas parte da significao global. Assim, impossvel, por uma nica palavra, indicar toda a gama de significaes de "meinen". A melhor traduo, parece-nos, "querer dizer", desde que observemos: Io) no entender por isso o ato da vontade de dizer; 2) dar nfase ao fato de as palavras ditas poderem, por si prprias, significar algo. Sempre que possvel, traduzimos "meinen " por "querer dizer. Quando seu sentido se aproxima mais de "ter a inteno de" e "pensar", usamos "ter em mente". E nos casos em que o emprego de "querer dizer" toma a frase ininteligvel, optamos por "significar" ou "dar significao". A ocorrnda de "meinen" sempre registrada, fazendo-se o verbo alemo figurar entre parnteses, pelo menos no incio daquelas passagens em que constantemente empregado.

    Para a traduo dos demais termos-chave do vocabulrio filosfico de W ittgenstein, adotamos, como norma que s vezes comporta excees, as seguintes correspondncias:

    Anwendung = aplicao; emprego usserung = manifestao benennen = denominar bedeuten = significar Bedeutung = significao Behauptung = afirmao bezeichnen = designar Bild = imagemBildgegenstand = objeto figurado Erklrung = elucidao Erlbnis = vivncia

  • darstellen = apresentarDarstellung = apresentaodenken = pensarsich denken = imaginarGebrauch = usogebrauchen = usarGedanke = pensamentoGrammatik = gramticahinweisende Definition = definio ostensivahinweisende Erklrung = elucidao ostensivanennen = chamar depassen = ajustar-seReihe = srieSatz = frase; proposioSinn = sentidoSprachspiel = jogo de linguagem Umstand = circunstncia Unsinn = absurdo verstehen = compreender Verstehen = compreenso Verwendung = emprego Vorgang = processo sich vorstellen = representar-se Vorstellung = representao Zeichen = signo Zustand = estado zeigen auf = apontar para

  • Prefcio

    N a s PGINAS que se seguem publico pensamentos, sedimento de investigaes filosficas que me ocuparam durante os ltimos dezesseis anos. Referem-se a muitos objetos: ao conceito de significao, de compreenso, de proposio, de lgica, aos fundamentos da matemtica, aos estados de conscincia e outros. Redigi todos esses pensamentos como anotaes, em breves pargrafos. As vezes como longos encadeamentos sobre o mesmo objeto, s vezes saltando em rpida alternncia de um domnio para outro. Era minha inteno desde o incio resumir tudo isso num livro cuja forma foi objeto de representaes diferentes em diferentes pocas. Mas pareda-me essencial que os pensamentos devessem a progredir de um objeto a outro numa seqnda natural e sem lacunas.

    Aps vrias tentativas fracassadas para condensar meus resultados num todo assim concebido, compreendi que nunca conseguiria isso, e que as melhores coisas que poderia escrever permaneceriam sempre anotaes filosficas; que meus pensamentos logo se paralisavam, quando tentava, contra tendncia natural, for-los em uma direo. E isto coincidia na verdade com a natureza da prpria investigao. Esta, com efeito, obriga-nos a explorar um vasto domnio do pensamento em todas as direes. As anotaes filosficas deste livro so, por assim dizer, uma poro de esboos de paisagens que nasceram nestas longas e confusas viagens.

    Os mesmos pontos, ou quase os mesmos, foram abordados incessantemente por caminhos diferentes, sugerindo sempre novas imagens. Inmeras dessas imagens estavam mal desenhadas ou no eram caractersticas, sofrendo todas as falhas de um desenhista incompetente. E se estas fossem eliminadas, restaria um nmero de imagens passveis, que, no mais das vezes retocadas, deveriam ser ordenadas de tal forma que pudessem dar ao observador um retrato da paisagem. Assim, este livro na verdade apenas um lbum.

    At h pouco tempo renunciara idia da publicao do meu trabalho em vida. Tal idia, contudo, era reavivada de tempos em tempos, principalmente porque tomava conhecimento de que meus resultados, divulgados em prelees escritas e discusses, circulavam muitas vezes mal

  • compreendidos, mais ou menos trivializados ou mutilados. Com isso, irritou-se minha vaidade e deu-me trabalho acalm-la.

    H quatro anos, porm, tive oportunidade de reler meu primeiro livro (o Tractatus Logico-phosophicus) e de esclarecer seus pensamentos. De sbito, pareceu-me dever publicar juntos aqueles velhos pensamentos e os novos, pois estes apenas poderiam ser verdadeiramente compreendidos por sua oposio ao meu velho modo de pensar, tendo-o como pano de fundo.

    Com efeito, desde que h dezesseis anos comecei novamente a me ocupar de filosofia, tive de reconhecer os graves erros que publicara naquele primeiro livro. Para reconhecer esses erros, contribuiu numa medida que eu mesmo mal posso avaliar a crtica que minhas idias receberam de Frank Ramsey a quem pude exp-las em numerosas conversas durante os dois ltimos anos de sua vida. Mais ainda que a essa crtica sempre vigorosa e segura , agradeo quela que um professor desta Universidade, P. Sraffa, exerceu incessantemente durante muitos anos em meus pensamentos. A esse estmulo devo as idias mais fecundas desta obra.

    Por mais de uma razo, o que publico aqui referir-se- quilo que outros escrevem hoje. Se minhas anotaes no levam nenhum sinal que as qualifique como minhas, no quero tambm reivindic-las como minha propriedade.

    Entrego-as publicao com sentim entos duvidosos. No impossvel, mas na verdade no provvel que este trabalho na sua pobreza e nas trevas desta poca deva estar destinado a lanar luz num ou noutro crebro.

    No desejaria, com minha obra, poupar aos outros o trabalho de pensar, mas sim, se for possvel, estim ular algum a pensar por si prprio.

    Gostaria realmente de ter produzido um bom livro. Tal no se realizou; mas passou-se o momento em que poderia t-lo corrigido.

    Cambridge, janeiro de 1945.

  • Primeira Parte

    1 . SANTO AGOSTINHO, nas Confisses, 1/8: Cum ipsi (majores homines) appellabant rem aliquam, et cum secundum eam vocem corpus ad aliquid mooe- bant, videbam et tenebam hoc ab eis vocari rem illam, quod sonabant, cum eam vellent ostendere. Hoc autem eos velle ex motu corporis aperiebatur: tamquam verbis naturalibus omnium gentium, quaefiunt vultu et nutu oculorum, cetero- rumque membrorum actu, et sonitu voeis indicante affectionem animi in petendis, habendis, rejiciendis, fugiendisoe rebus. Ita verba in variis sententiis locis suis posita, et crebro audita, quorum rerum signa essent, paulatim colligebam, measque jam voluntates, edomito in eis signis ore, per haec enuntiabam.

    [Se os adultos nomeassem algum objeto e, ao faz-lo, se voltassem para ele, eu percebia isto e compreendia que o objeto fora designado pelos sons que eles pronunciavam, pois eles queriam indic-lo. Mas deduzi isto dos seus gestos, a linguagem natural de todos os povos, e da linguagem que, por meio da mmica e dos jogos com os olhos, por meio dos movimentos dos membros e do som da voz, indica as sensaes da alma, quando esta deseja algo, ou se detm, ou recusa ou foge. Assim, aprendi pouco a pouco a compreender quais coisas eram designadas pelas palavras que eu ouvia pronunciar repetidamente nos seus lugares determinados em frases diferentes. E quando habituara minha boca a esses signos, dava expresso aos meus desejos.]1

    Nessas palavras temos, assim me parece, uma determinada imagem da essncia de linguagem humana. A saber, esta: as palavras da linguagem denominam objetos frases so ligaes de tais denominaes. Nesta imagem da linguagem encontramos as razes da idia: cada palavra tem uma significao. Esta significao agregada palavra. o objeto que a palavra substitui.

    Santo Agostinho no fala de uma diferena entre espcies de palavras. Quem descreve o aprendizado da linguagem desse modo, pensa, pelo menos acredito, primeiramente em substantivos tais como "mesa", "cadeira, "po", em nomes de pessoas, e apenas em segundo lugar em

    1 Traduzmos a verso alem do texto latino feita pelo prprio Wittgenstein. (N. do T.)

  • nomes de certas atividades e qualidades, e nas restantes espcies de palavras como algo que se terminar por encontrar.

    Pense agora no seguinte emprego da linguagem: mando algum fazer compras. Dou-lhe um pedao de papel, no qual esto os signos: "cinco mas vermelhas". Ele leva o papel ao negociante; este abre o caixote sobre o qual encontra-se o signo "mas"; depois, procura numa tabela a palavra "vermelho" e encontra na frente desta um modelo da cor; a seguir, enuncia a srie dos numerais suponho que a saiba de cor at a palavra "cinco" e a cada numeral tira do caixote uma ma da cor do modelo. Assim, e de modo semelhante, opera-se com palavras. "Mas como ele sabe onde e como procurar a palavra 'verm elho', e o que vai fazer com a palavra 'cinco'?" Ora, suponho que ele aja como eu descrevi. As explicaes tm em algum lugar um fim. Mas qual a significao da palavra "cinco"? De tal significao nada foi falado aqui; apenas, de como a palavra "cinco" usada.

    2. Aquele conceito filosfico da significao cabe bem numa representao primitiva da maneira pela qual a linguagem funciona. Mas, pode- se tambm dizer, a representao de uma linguagem mais primitiva do que a nossa.

    Pensemos numa linguagem para a qual a descrio dada por Santo Agostinho seja correta: a linguagem deve servir para o entendimento de um construtor A com um ajudante B. A executa a construo de um edido com pedras apropriadas; esto mo cubos, colunas, lajotas e vigas. B passa-lhe as pedras, e na seqncia em que A precisa delas. Para esta finalidade, servem-se de uma linguagem constituda das palavras "cubos", "colunas", "lajotas", "vigas. A grita essas palavras; B traz as pedras que aprendeu a trazer ao ouvir esse chamado. Conceba isso como lin guagem totalm ente primitiva.

    3. Santo Agostinho descreve, podemos dizer, um sistema de comunicao; s que esse sistema no tudo aquilo que chamamos de linguagem. E isso deve ser dito em muitos casos em que se levanta a questo: "Essa apresentao til ou no?". A resposta , ento: "Sim, til; mas apenas para esse domnio estritamente delimitado, no para o todo que voc pretendia apresentar".

    como se algum explicasse: 'Jogar consiste em empurrar coisas, segundo certas regras, numa superfcie..." e ns lhe respondssemos: "Voc parece pensar nos jogos de tabuleiro, mas nem todos os jogos so assim. Voc pode retificar sua explicao, limitando-a expressamente a esses jogos".

    4. Imagine uma escrita, na qual se utilizariam letras para a designao da acentuao e como sinais de pontuao. (Uma escrita pode ser concebida como uma linguagem para a descrio de imagens acsticas.) Imagine pois que algum compreendesse aquela escrita, como se simplesmente a cada letra correspondesse um som e como se as letras no tivessem

  • tambm funes totalmente diferentes. A to simples concepo da escrita equivale a concepo agostiniana da linguagem.

    Quando se considera o exemplo do 1, talvez se pressinta em que medida o conceito geral da significao das palavras envolve o funcionamento da linguagem com uma bruma que tom a impossvel a viso clara. Dissipa-se a nvoa quando estudamos os fenmenos da linguagem em espcies primitivas do seu emprego, nos quais pode-se abranger claramente a finalidade e o funcionamento das palavras.

    Tais formas primitivas da linguagem emprega a criana, quando aprende a falar. O ensino da linguagem no aqui nenhuma explicao, mas sim um treinamento.

    6. Podemos nos representar que a linguagem no 2 toda a linguagem de A e B; na verdade, toda a linguagem de um povo. As crianas so educadas para executar essas atividades, para usar essas palavras ao execut-las, e para reagir assim s palavras dos outros.

    Uma parte importante desse treinamento consistir no feto de que quem ensina mostra os objetos, chama a ateno da criana para eles, pronunciando ento uma palavra, por exemplo, a palavra "lajota", exibindo essa forma. (No quero chamar isto de "elucidao ostensiva" ou "definio", pois na verdade a criana ainda no pode perguntar sobre a denominao. Quero chamar de "ensino ostensivo das palavras". Digo que formar uma parte importante do treinamento, porque isso ocorre entre os homens; e no porque no se poderia representar de outro modo.) Esse ensino ostensivo das palavras, pode-se dizer, estabelece uma ligao associativa entre a palavra e a coisa: mas o que significa isso? Ora, isso pode significar coisas diferentes; no entanto, pensa-se logo no fato de que, quando a criana ouve a palavra, a imagem da coisa surge perante seu esprito. Mas se isso acontece essa a finalidade da palavra? Sim, pode ser a finalidade. Eu posso imaginar um tal emprego de palavras (srie de sons). (Pronunciar uma palavra como tocar uma tecla no piano da representao.) Mas na linguagem no 2, no finalidade das palavras despertar representaes. (Pode-se certamente achar que isso til para a finalidade verdadeira.)

    Mas se isso efetiva o ensino ostensivo, devo dizer que efetiva a compreenso da palavra? No compreende a ordem "lajota!" aquele que age de acordo com ela? Isto ajudou certamente a produzir o ensino ostensivo; mas na verdade apenas junto com uma lio determinada. Com uma outra lio, o mesmo ensino ostensivo dessas palavras teria efetivado uma compreenso completamente diferente.

    "Ligando a barra com a alavanca, fao funcionar o freio." Sim, dado todo o mecanismo restante. Apenas com este, alavanca de freio; e, separado do seu apoio, nunca alavanca, mas pode ser qualquer coisa ou nada.

    7. Na prdxis do uso da linguagem (2), um parceiro enuncia as palavras, o outro age de acordo com elas; na lio de linguagem, porm,

  • encontrar-se- este processo: o que aprende denomina os objetos. Isto , fala a palavra, quando o professor aponta para a pedra. Sim, encontrar-se- aqui o exerccio ainda mais simples: o aluno repete a palavra que o professor pronuncia ambos processos de linguagem semelhantes.

    Podemos tambm im aginar que todo o processo do uso das palavras em (2) um daqueles jogos por m eio dos quais as crianas aprendem sua lngua m aterna. Cham arei esses jogos de jogos de linguagem", e falarei m uitas vezes de uma linguagem prim itiva como de um jogo de linguagem.

    E poder-se-iam chamar tambm de jogos de linguagem os processos de denominao das pedras e da repetio da palavra pronunciada. Pense os vrios usos das palavras ao se brincar de roda.

    Chamarei tambm de "jogos de linguagem" o conjunto da linguagem e das atividades com as quais est interligada.

    8. Consideremos uma extenso da linguagem (2). Fora as quatro palavras "cubos", "colunas" etc., conteria uma srie de palavras que seria empregada como o negociante no 1 emprega os numerais (pode ser a srie das letras do alfabeto); alm disso, duas palavras, que podem ser "ali" e "isto" (porque isto j indica mais ou menos sua finalidade), e que so usadas em combinao com um movimento indicativo da mo; e finalmente um nmero de modelos de cores. A d uma ordem da espcie: "d-lajota-ali". Ao mesmo tempo faz com que o auxiliar veja um modelo de cor, e, pela palavra "ali", indica um lugar da construo. Da proviso de lajotas, B toma uma da cor do modelo para cada letra do alfabeto at "d" e a leva ao lugar que A designa. Noutra ocasio, A d a ordem: "isto-ali". Dizendo "isto", aponta para uma pedra. Etc.

    9. Quando a criana aprende esta linguagem, deve aprender a srie dos 'num erais' a, b, c,... de cor, e deve aprender seu uso. Ocorrer nesta lio tambm um ensino ostensivo das palavras? Ora, lajotas, por exemplo, so mostradas e contadas: "lajotas a, b, c. Maior semelhana com o ensino ostensivo das palavras "cubos", "colunas" etc. teria o ensino indicativo dos numerais, que no servem como nmeros, mas para a designao de grupos de coisas apreensveis pelos olhos. Assim as crianas aprendem o uso dos primeiros cinco ou seis numerais.

    Tambm "ali" e "isto" so ensinados ostensivamente? Imagine como se poderia ensinar seu uso! Sero mostrados ento lugares e coisas, mas aqui esse m ostrar acontece na verdade tambm no uso das palavras e no apenas no aprender do uso.

    10. O que designam, pois, as palavras dessa linguagem? O que elas designam, como posso mostrar isso, a no ser na maneira do seu uso? E este uso j descrevemos. A expresso "esta palavra designa isso" deveria, portanto, ser uma parte dessa descrio. Ou: a descrio deve levar forma: "a palavra .... designa ....".

    Ora, pode-se resumir a descrio do uso da palavra "lajota", dizendo que essa palavra designa esse objeto. Isso ser feito quando se tratar apenas

  • de afastar o mal-entendido seguinte: pensar que a palavra "lajota" se relacione com a forma da pedra de construo que ns de fato nomeamos "cubo", mas o modo dessa relao', isto , o uso dessas palavras, no restante, conhecido.

    E do mesmo modo pode-se dizer que os signos a, b etc. designam nmeros; se isto talvez suprimir o mal-entendido de crer que a, b, c desempenhariam na linguagem o papel que, na realidade, "cubos", "lajotas", "colunas" desempenham. E, pode-se tambm dizer, "c" designa este nmero e no aquele; se com isso se pode explicar que as letras deveriam ser empregadas na seqncia a, b, c, d etc., e no nesta: a, b, d, c.

    Mas pelo fato de que se assimila assim as descries do uso das palavras umas com as outras, este uso no pode, no entanto, tom ar-se mais semelhante! Pois, como vimos, ele totalmente dissemelhante.

    11. Pense nas ferramentas em sua caixa apropriada: l esto um martelo, uma tenaz, uma serra, uma chave de fenda, um metro, um vidro de cola, cola, pregos e parafusos. Assim como so diferentes as funes desses objetos, assim so diferentes as funes das palavras. (E h semelhanas aqui e ali.)

    Com efeito, o que nos confunde a uniformidade da aparncia das palavras, quando estas nos so ditas, ou quando com elas nos defrontamos na escrita e na imprensa. Pois seu emprego no nos to claro. E especialmente no o quando filosofamos!

    12. como se olhssemos a cabina do maquinista de uma locomotiva: l esto alavancas de mo que parecem mais ou menos iguais. (Isto compreensvel, pois elas devem ser todas manobradas com a mo.) Mas uma a alavanca de uma manivela que deve ser continuamente deslocada (ela regula a abertura de uma vlvula); uma outra a alavanca de um interruptor que tem apenas duas espcies de posies eficazes, ela abaixada ou levantada; uma terceira a alavanca de um freio, e quanto mais forte for puxada, tanto mais fortemente reia; uma quarta, a alavanca de uma bomba atua apenas quando movida para l e para c.

    13. Quando dizemos: "cada palavra da linguagem designa algo", com isso ainda no dito absolutamente nada; a menos que esclareamos exatamente qual a diferena que desejamos fazer. (Pode bem ser que queiramos diferenciar as palavras da linguagem (8) de palavras 'sem significao', como ocorrem nas novelas de Lewis Carroll, ou de palavras como "la-la-ri-la-la" numa cano.)

    14. Imagine algum que diga: "Todas as ferramentas servem para modificar alguma coisa. Assim, o m artelo, a posio de um prego; a serra, a forma da tbua etc." E o que modificam o metro, o vidro de cola, os pregos? "Nosso saber sobre o comprimento de uma coisa, a temperatura da cola e a solidez da caixa." Ganhar-se-ia algo com essa assimilao da expresso?

    15. A palavra "designar" talvez empregada de modo mais direto l onde o signo est sobre o objeto que ele designa. Suponha que as fer

  • ramentas que A utiliza na construo possuam certos signos. Quando A mostra ao auxiliar um tal signo, este traz a ferramenta que est marcada com esse signo.

    Assim, e de modo mais ou menos semelhante, um nome designa uma coisa, e dado um nome a uma coisa. Ser-nos- freqentemente til se dissermos quando filosofamos: denominar algo semelhante a colocar uma etiqueta numa coisa.

    16. Quanto aos modelos de cor que A mostra a B, pertencem linguagem? Ora, como queira. linguagem de palavras no pertencem; mas quando digo a algum: "Pronuncie a palavra 'a'", voc incluir com certeza este segundo 'a ' na frase. E no entanto isso desempenha um papel bem semelhante ao modelo de cores no jogo de linguagem (8); , a saber, um modelo daquilo que o outro deve dizer.

    mais natural, e leva o menos possvel confuso, se incluirmos o modelo nas ferramentas da linguagem.

    ((Observao sobre o pronome reflexivo "esta frase".))17. Poderemos dizer: na linguagem (8) temos diferentes espcies de

    palavras. Pois a funo da palavra "lajota" e a da palavra "cubo" so mais semelhantes entre si do que a de "lajota" e a de "d". Mas a maneira pela qual reunimos as palavras conforme as espcies depender da finalidade da repartio, e da nossa inclinao.

    Pense nos diferentes pontos de vista segundo os quais pode-se repartir ferramentas em espcies de ferramentas. Ou figuras de xadrez em espcies de figuras.

    1 8 .0 fato de as linguagens (2) e (8) consistirem apenas de comandos no deve perturb-lo. Se voc quer dizer que elas por isso no so completas, ento pergunte-se se nossa linguagem completa; se o foi antes que lhe fossem incorporados o simbolismo qumico e a notao infinitesim al, pois estes so, por assim dizer, os subrbios de nossa linguagem. (E com quantas casas ou ruas, uma cidade comea a ser cidade?) Nossa linguagem pode ser considerada como uma velha cidade: uma rede de ruelas e praas, casas novas e velhas, e casas construdas em diferentes pocas; e isto tudo cercado por uma quantidade de novos subrbios com ruas retas e regulares e com casas uniformes.

    19. Pode-se representar facilmente uma linguagem que consiste apenas de comandos e informaes durante uma batalha. Ou uma linguagem que consiste apenas de perguntas e de uma expresso de afirmao e de negao. E muitas outras. E representar uma linguagem significa representar-se uma forma de vida.

    E agora: o grito "lajota!" no exemplo (2) uma frase ou uma palavra? Se for uma palavra, ento no tem a mesma significao da palavra de mesmo som da nossa linguagem costumeira, pois no 2 na verdade um grito. Mas se for uma frase, ento no a frase elptica "lajota!" de nossa linguagem. No que diz respeito primeira questo, voc pode chamar "lajota!" de palavra e tambm de uma frase; talvez melhor, de

  • uma 'frase degenerada' (como se fala de uma hiprbole degenerada), e isto exatamente nossa frase 'elptica'. Mas esta , no entanto, apenas uma forma abreviada da frase "traga-me uma lajota!" e essa frase no existe no exemplo (2). Mas por que deveria eu, inversamente, chamar a frase "traga-me uma lajota!" de um prolongamento da frase "lajota!" Porque aquele que diz "lajota! quer dizer (meint) realmente: "traga-me uma lajota!" Mas como voc faz este querer dizer isso, enquanto diz "lajota!"? Voc pronuncia interiormente a frase inteira? E por que devo, a fim de dizer o que algum quer dizer com o grito "lajota", traduzir essa expresso para uma outra? E se as duas significam o mesmo, por que no devo dizer: "quando ele diz 'lajota', ele quer dizer 'lajota!'"? Ou: por que no poderia querer dizer "lajota!", uma vez que voc pode querer dizer "traga-me uma lajota!"? Mas, quando grito "lajota!", o que quero realmente que ele deve me trazer uma lajota! Certamente, mas 'querer isto' consiste no fato de que voc pensa de alguma forma numa outra frase que no aquela que voc pronuncia?

    20. M as, se algum diz "traga-me a lajota!, parece agora como se esse algum pudesse ter em mente (meinen) esta expresso como uma longa palavra: corresponde, a saber, palavra "lajota!" Pode-se ter em mente essa expresso, pois, ora como uma palavra, ora como quatro? E como a temos em mente costumeiramente? Creio que seremos inclinados a dizer: temos em mente a frase como composta de quatro palavras, quando a usamos em oposio a outras frases, como "passe-me uma lajota", "tra- ga-lhe uma lajota", "traga duas lajotas" etc.; portanto, em oposio a frases que contm as palavras do nosso comando em outras combinaes. Mas no que consiste usar uma frase em oposio a outras? Essas frases pairam no esprito de algum? E todas? E enquanto se diz uma frase, ou antes, ou depois? No! Mesmo que tal elucidao exera sobre ns alguma tentao, precisamos apenas de um instante para refletir, o que talvez acontea, para ver que estamos aqui num falso caminho. Dizemos que usamos o comando em oposio a outras frases, porque nossa linguagem contm a possibilidade dessas outras frases. Quem no compreende nossa lngua, um estrangeiro, que tivesse ouvido freqentemente como algum d o comando "traga-me uma lajota!", poderia ser de opinio de que essa srie inteira de sons fosse uma palavra e que correspondesse, por exemplo, palavra para "pedra de construo" em sua lngua. Se ele prprio desse esse comando, pronunci-lo-ia talvez de modo diferente, e diramos: ele o pronuncia de modo to peculiar porque o toma por uma palavra. Mas no ocorre, pois, quando o pronuncia, algo diferente nele correspondendo ao jato de que concebe a frase como uma palavra? Pode ocor- rer-lhe o mesmo, ou tambm algo diferente. Mas o que ocorre em voc, quando d um tal comando? consciente de que consiste de quatro palavras, enquanto o pronuncia? Com efeito, voc domina essa lngua na qual esto aquelas outras frases mas este dominar algo que 'acontece' enquanto voc pronuncia a frase? E concedo mesmo: o estrangeiro

  • pronunciar a frase que concebe de modo diferente, provavelmente de modo diferente; mas aquilo que chamamos de falsa concepo no se deve a algo que acompanhe o pronunciar do comando.

    A frase no 'elp tica' por deixar de fora algo que queremos dizer (meinen) quando a pronunciam os, mas porque abreviada em com parao com um determ inado paradigm a de nossa gram tica. Poder-se-ia fzer aqui, na verdade, a objeo: "Voc afirm a que a frase abreviada e a no abreviada tm o mesmo sentido. Qual sentido tm elas, pois? No h, pois, para esse sentido uma expresso em palavras?" Mas o sentido igual das frases no consiste no seu em prego igual? (Em russo diz-se "pedra verm elha" em vez de "a pedra verm elha"; a cpula est ausente do esprito dos russos, ou pensam -na para si quando falam ?)

    21. Imagine um jogo de linguagem no qual B informa a A, respondendo a uma pergunta deste, o nmero de lajotas ou cubos de um monte, ou as cores e formas das pedras espalhadas aqui e ali. Tal informao poderia pois enundar-se: "cinco lajotas". Qual pois a diferena entre a informao ou afirmao "dnco lajotas" e o comando "cinco lajotas!"? Ora, o papel que o pronunciar dessas palavras desempenha no jogo de linguagem. Mas tambm o tom com que forem pronunciadas ser outro, e a expresso facial, e ainda muitas outras coisas. Mas tambm podemos pensar que o tom o mesmo pois um comando e uma informao podem ser pronunciados em muitos tons diferentes e com muitas expresses faciais diferentes e que a diferena reside somente no emprego. (Com efeito, poderamos usar tambm as palavras "afirmao" e "comando" para a designao de uma forma gramatical da frase e de uma entoao; por exemplo, dizemos que "o tempo no est hoje maravilhoso?" uma pergunta, se bem que seja empregada como afirmao.) Podemos imaginar uma linguagem na qual todas as afirmaes teriam a forma e o tom de perguntas retricas; ou cada comando a forma da pergunta: "Gostaria de fazer isto?". Dir-se- talvez, ento: "O que ele diz tem a forma de pergunta, mas efetivamente um comando", isto , tem a funo do comando na prxis da linguagem. (Analogamente, diz-se "voc o far" no como profecia, mas como comando. O que faz essa frase uma profecia num caso, e um comando no outro?)

    22. A opinio de Frege de que uma afirmao contm uma suposio que afirmada baseia-se na possibilidade que h em nossa linguagem de escrever cada proposio afirmativa sob a forma: " afirmado que tal e tal coisa se d". Mas "que tal e tal coisa se d" no nenhuma proposio em nossa linguagem nem ainda um lance no jogo de linguagem. E se escrevo em vez de " afirmado que...", " afirmado: tal e tal coisa se d", ento aqui as palavras " afirmado" so suprfluas.

    Poderamos escrever tambm toda afirmao na forma de uma pergunta seguida de uma afirmao, por exemplo: "Chove? Sim!" Isto mostraria que em cada afirmao reside uma pergunta?

  • Imaginemos um quadro representando um boxeador numa determinada posio de luta. Esse quadro pode pois ser usado para comunicar a algum como se deve se portar; ou como no se deve portar: ou como um homem determinado portou-se em tal e tal lugar etc., etc. Poder-se-ia chamar esse quadro (para falar como os qumicos) de um radical de frase. De modo semelhante concebeu Frege a "suposio".

    Tem-se todo o direito de empregar um signo de afirmao em oposio, por exemplo, ao signo de interrogao; ou quando se quer diferenciar uma afirmao de uma fico ou de uma suposio. E apenas errado quando se cr que a afirmao consiste de dois atos, o de supor e o de afirm ar (atribuio do valor de verdade, ou coisas do gnero) e que realizamos esses atos conforme o signo da proposio, mais ou menos como quando cantamos seguindo as notas. A leitura sonora ou muda da frase escrita deve mesmo ser comparada com o cantar segundo as notas, mas no a 'significao' (Meinen) (pensamento) da frase lida.

    O signo de afirmao de Frege acentua o incio da proposio. Tem portanto uma funo semelhante ao do ponto final. Diferencia o perodo inteiro da proposio no perodo. Se escuto algum dizer "chove", mas no sei se ouvi o incio e o fim do perodo, ento esta frase ainda no para mim um meio de comunicao.

    23. Quantas espcies de frases existem? Afirmao, pergunta e comando, talvez? H inmeras de tais espcies: inmeras espcies diferentes de emprego daquilo que chamamos de "signo", "palavras", "frases". E essa pluralidade no nada fixo, um dado para sempre; mas novos tipos de linguagem, novos jogos de linguagem, como poderamos dizer, nascem e outros envelhecem e so esquecidos. (Uma imagem aproximada disto pode nos dar as modificaes da matemtica.)

    O termo "jogo de linguagem" deve aqui salientar que o falar da linguagem uma parte de uma atividade ou de uma forma de vida.

    Imagine a multiplicidade dos jogos de linguagem por meio destes exemplos e outros:

    Comandar, e agir segundo comandos Descrever um objeto conforme a aparncia ou conforme medidas Produzir um objeto segundo uma descrio (desenho) Relatar um acontecimento Conjeturar sobre o acontecimento Expor uma hiptese e prov-la Apresentar os resultados de um experimento por meio de tabelas

    e diagramas Inventar uma histria; ler Representar teatro

  • Cantar uma cantiga de roda Resolver enigmas Fazer uma anedota; contar Resolver um exemplo de clculo aplicado Traduzir de uma lngua para outra Pedir, agradecer, maldizer, saudar, orar. E interessante comparar a multiplicidade das ferramentas da lin

    guagem e seus modos de emprego, a multiplicidade das espcies de palavras e frases com aquilo que os lgicos disseram sobre a estrutura da linguagem. (E tambm o autor do Tractatus Logico-philosophicus.)

    24. Quem no tem perante os olhos a multiplicidade dos jogos de linguagem ser talvez inclinado a colocar questes como estas: "Que uma pergunta?" a constatao de que no sei tal e tal coisa, ou a constatao de meu estado anmico e incerteza? E o grito "Socorro!" uma tal descrio?

    Pense em quantas coisas diferentes so chamadas de "descrio": descrio da posio de um corpo pelas suas coordenadas; descrio de uma expresso fisionmica; descrio de uma sensao ttil; de um estado de humor.

    Pode-se, com efeito, colocar, em vez da forma costumeira da pergunta, a forma da constatao ou da descrio: "Quero saber se...", ou "Estou em dvida se..." mas com isso no se aproximaram mais os diferentes jogos de linguagem um do outro.

    A im portncia de tais possibilidades de transform ao, por exemplo, de todas as frases afirm ativas em frases que comeam com a clusula "eu penso" ou "eu creio" (portanto, por assim dizer, em descries de minha vida interior) ser m ostrada m ais claram ente noutro lugar. (Solipsism o.)

    25. Diz-se muitas vezes: os animais no falam porque lhes faltam as capacidades espirituais. E isso significa: "eles no pensam, por isso no fiilam ". Mas: eles no falam mesmo. Ou melhor: eles no empregam a linguagem se abstrairmos as mais prim itivas formas de linguagem. Comandar, perguntar, contar, tagarelar pertencem histria de nossa natureza assim como andar, comer, beber, jogar.

    26. Acredita-se que o aprendizado da linguagem consiste no fato de que se d nomes aos objetos: homens, formas, cores, dores, estados de esprito, nmeros etc. Como foi dito, o denominar algo anlogo a pregar uma etiqueta numa coisa. Pode-se chamar isso de preparao para o uso de uma palavra. Mas sobre que se d a preparao?

    27. "Denominamos as coisas e podemos filiar sobre elas, referirmo- nos a elas no discurso." Como se j fosse dado, com o ato do denominar, uma coisa que significasse: "falar das coisas". Ao passo que fazemos as coisas mais diferentes com nossas frases. Pensemos apenas nas exclamaes. Com todas as suas funes distintas:

  • gua!Fora!Ai!Socorro!Bonito!No!

    Voc est ainda inclinado a chamar essas palavras de "denominaes de objetos"?

    Nas linguagens (2) e (8) no havia uma pergunta pela denominao. Esta e sua correlata, a elucidao ostensiva, so, como poderamos dizer, um jogo de linguagem peculiar. Isto significa propriamente: somos educados, treinados para perguntar: "Como se chama isso?" ao que se segue a denominao. E h tambm um jogo de linguagem: encontrar um nome para algo. Portanto, dizer: "Isto se chama...", e ento empregar o novo nome. (Assim as crianas denominam, por exemplo, suas bonecas e falam ento delas, e para elas. Pense ento como peculiar o uso do nome prprio, com o qual chamamos o denominado!)

    28. Pode-se, pois, definir um nome prprio, uma palavra para cor, um nome de matria, uma palavra para nmero, o nome de um ponto cardeal etc., ostensivamente. A definio do nmero dois "isto se chama 'dois'" enquanto se mostram duas nozes perfeitamente exata. Mas, como se pode definir o dois assim? Aquele a que se d a definio no sabe ento, o que se quer chamar com "dois"; supor que voc chama de "dois" este grupo de nozes! Pode supor tal coisa; mas talvez no o suponha. Poderia tambm, inversamente, se eu quiser atribuir a esse grupo de nozes um nome, confundi-lo com um nome para nmero. E do mesmo modo, quando elucido um nome prprio ostensivamente, poderia confundi-lo com um nome de cor, uma designao de raa, at com o nome de um ponto cardeal. Isto , a definio ostensiva pode ser interpretada em cada caso como tal e diferentemente.

    29. Talvez se diga: o dois s pode ser definido ostensivamente assim: "Este nmero chama-se 'dois'". Pois a palavra "nmero" indica aqui em qual lugar da linguagem, da gramtica, colocamos a palavra. Mas isto significa que a palavra "nmero" deve ser elucidada, antes que aquela definio ostensiva possa ser compreendida. A palavra "nmero" na definio indica certamente esse lugar; o posto em que colocamos a palavra. E podemos assim evitar mal-entendidos, dizendo: "Esta cor chama-se as- sim-assim", "Este comprimento chama-se assim-assim" etc. Isto , mal-entendidos so muitas vezes evitados desse modo. Mas concebe-se apenas assim a palavra "cor ou "comprimento"? Ora, devemos na verdade elucid-las. Portanto, elucidar por meio de outras palavras! E o que ocorre com a ltima elucidao dessa cadeia? (No diga "No h nenhuma 'ltim a' elucidao". exatamente o mesmo que dizer: "No h nenhuma ltima casa nesta rua; pode-se sempre construir mais uma".)

  • Poder-se-ia, para a elucidao da palavra "vermelho", indicar algo que no fosse vermelho? Isto seria sem elhante situao na qual se devesse elucidar, para algum que no domina a lngua portuguesa, a palavra "modesto", e apontasse, para elucidar, um homem arrogante e dissesse: "Este no modesto". No argumento contra tal modo de elucidao o fato de ser ele ambguo. Toda elucidao pode ser mal compreendida.

    Mas poder-se-ia muito bem perguntar: "Devemos chamar a isso de elucidao?". Pois desempenha naturalmente no clculo um papel diferente daquele que costumeiramente chamamos de "elucidao ostensiva" da palavra "vermelho"; mesmo que tivesse as mesmas conseqncias prticas, o mesmo efeito sobre aquele que aprende.

    A palavra "nmero" necessria na definio ostensiva de dois? Isto depende do fato de que, sem essa palavra, algum a compreenda de modo diverso do que eu desejo. E isto depender sem dvida das circunstncias sob as quais ela dada, e dos homens aos quais eu a dou.

    E como algum 'concebe' a elucidao, mostra-se no modo pelo qual faz uso da palavra elucidada.

    30. Poder-se-ia, pois, dizer: A definio ostensiva elucida o uso a significao da palavra, quando j claro qual papel a palavra deve desempenhar na linguagem. Quando sei portanto que algum quer elu- cidar-me uma palavra para cor, a elucidao ostensiva "Isto chama-se 'spia'" ajudar-me- na compreenso da palavra. E isto se pode dizer, se no se esquecer que todas as espcies de perguntas ligam -se palavra "saber" ou "ser claro".

    Deve-se j saber (ou ser capaz de) algo, para poder perguntar sobre a denominao. Mas o que se deve saber?

    31. Quando se mostra a algum a figura do rei no jogo de xadrez e se diz: "Este o rei do xadrez", no se elucida por meio disso o uso dessa figura, a menos que esse algum j conhea as regras do jogo, at esta ltima determinao: a forma de uma figura de rei. Pode-se pensar que j aprendera as regras do jogo, sem que se lhe tenha mostrado uma figura real. A forma da figura do jogo corresponde aqui ao tom, ou configurao de uma palavra.

    Pode-se tambm im aginar que algum aprendeu o jogo sem aprender todas as regras nem sua formulao. Aprendeu primeiramente, talvez, por observar jogos de tabuleiro bem simples e progrediu sempre para os mais complicados. Tambm para esse algum poderia ser dada a elucidao: "Este o rei", quando se lhe mostra, por exemplo, figuras do xadrez cuja forma no usual. Tambm essa elucidao ensina-lhe o uso da figura apenas porque, como poderamos dizer, j estava preparado o lugar no qual ela foi colocada. Ou tambm: diremos apenas que aprende seu uso quando o lugar j est preparado. E est preparado aqui no porque aquele

  • para quem damos a elucidao j sabe as regras, mas porque, em outro sentido, j domina um jogo.

    Considere ainda este caso: elucido para algum o jogo de xadrez; comeo apontando uma figura e dizendo: "Este o rei. Pode ser movido assim-assim etc., etc." Neste caso, diremos: as palavras "Este o rei" (ou "Isto chama-se 'rei'") so apenas uma elucidao de palavras, se o que aprende j 'sabe o que uma figura do jogo'. Se acaso j jogou outros jogos, ou observou o jogo de outros 'com compreenso' e coisas do gnero. E apenas ento, no aprendizado do jogo, poder perguntar com relevncia: "Como se chama isto?", a saber, esta figura do jogo.

    Podemos tambm imaginar que o interrogado responda: "Determine voc mesmo a denominao" e aquele que perguntou dever ento responsabilizar-se por tudo.

    32. Quem chega a um pas estrangeiro aprender muitas vezes a lngua dos nacionais por meio de elucidaes ostensivas que estes lhe do; e precisar freqentemente adivinhar a interpretao dessas elucidaes, muitas vezes correta, muitas vezes falsamente.

    E agora podemos dizer, creio: Santo Agostinho descreve o aprendizado da linguagem humana como se a criana chegasse a um pas estrangeiro e no compreendesse a lngua desse pas; isto , como se ela j tivesse uma linguagem, s que no essa. Ou tambm: como se a criana j pudesse pensar, e apenas no pudesse falar. E "pensar" significaria aqui qualquer coisa como: falar consigo mesmo.

    33. E se algum objetar: "No verdade que algum deva dominar um jogo de linguagem para compreender uma definio ostensiva, mas sim deve apenas evidentemente saber (ou adivinhar) para o que aponta aquele que elucida! Se, por exemplo, aponta para a forma de um objeto, ou para sua cor, ou para seu nmero etc., etc." E no que consiste, pois, 'apontar para a form a', 'apontar para a cor'? Aponte para um pedao de papel! E agora aponte para sua forma, agora para sua cor, agora para seu nmero (isto soa estranho!). Ora, como o fez? Voc dir que cada vez 'tinha em mente' algo diferente ao apontar. E se eu perguntar como isso se passa, voc dir que concentrou sua ateno na cor, forma etc. Ora, pergunto outra vez, como isso se passa.

    Imagine que algum aponte um vaso e diga: "Veja o maravilhoso azul! no se trata de forma". Ou: "Veja a maravilhosa forma! a cor indiferente". Sem dvida voc far coisas diferentes quando aceder a esses dois convites. Mas voc faz sempre o mesmo, quando dirige sua ateno cor? Represente-se ento diferentes casos! Quero indicar alguns:

    "Este azul o mesmo que aquele l? V uma diferena?" Voc mistura as cores e diz: "Este azul do cu difcil de obter"."O tempo est melhorando, v-se j o cu azul outra vez!""Veja como so diferentes esses dois tons de azul!""V ali o livro azul? Traga-o aqui.""Este sinal de luz azul significa...""Como se chama este azul? 'ndigo'?"

  • Dirige-se muitas vezes a ateno para a cor, no fazendo os contornos da forma com a mo; ou no dirigindo o olhar para o contorno da coisa; ou fitando o objeto e procurando lembrar-se de onde j viu essa cor.

    Dirige-se muitas vezes a ateno para a forma copiando-a, piscando os olhos a fim de no ver a cor claramente etc., etc. Quero dizer: isto e coisas semelhantes acontecem enquanto' se dirige a ateno para isto ou aquilo'. Mas no apenas isto que nos autoriza a dizer que algum dirige sua ateno para a forma, a cor etc. Da mesma maneira, um lance de xadrez no consiste somente no fato de que uma pea seja movida de tal ou qual modo no tabuleiro, e tambm no consiste nos pensamentos e sentimentos daquele que a move e que acompanham o lance; mas sim nas circunstncias a que chamamos: "jogar uma partida de xadrez", "resolver um problema de xadrez" e coisas do gnero.

    34. Mas suponha que algum diga: "Fao sempre o mesmo quando dirijo minha ateno para a forma: sigo o contorno com os olhos e ento sinto..." E suponha que este d a um outro a elucidao ostensiva: "Isto chama-se 'crculo'", apontando, com todas essas vivncias, um objeto de formato circular. No pode o outro, no entanto, interpretar a elucidao de modo diferente, mesmo que veja que aquele que elucida segue a forma com os olhos, e mesmo que sinta o que aquele que elucida sente? Isto : esta 'interpretao' pode tambm consistir no modo pelo qual ele faz uso da palavra elucidada, por exemplo, para o que aponta quando recebe a ordem: "Aponte para um crculo!" Pois nem a expresso "ter em mente a elucidao de tal e tal modo" nem "interpretar a elucidao de tal e tal modo designam um processo que acompanha o dar e o ouvir da elucidao.

    35. H certamente aquilo que se pode chamar de "vivncias caractersticas" para o apontar a forma. Por exemplo, o percorrer o contorno com o dedo, ou com o olhar, ao apontar. Mas isto no acontece em todos os casos nos quais 'tenho em m ente a form a', como tampouco ocorre qualquer outro processo caracterstico em todos esses casos. Mas mesmo se um tal processo se repetisse em todos os casos, dizermos: "Ele apontou a forma e no a cor" dependeria das circunstncias, isto , daquilo que acontecesse antes e depois do apontar.

    Pois as palavras "apontar a forma", "ter em mente a forma" etc. no so usadas como estas: "apontar este livro (e no aquele), "apontar a cadeira, no a mesa" etc. Ento pense apenas como aprendemos de modo diferente o uso das palavras: "apontar esta coisa", "apontar aquela coisa", e, por outro lado: "apontar a cor, e no a forma", ter em mente a cor" etc., etc.

    C om o foi dito, em certos casos, espedalm ente ao apontar 'para a form a' ou 'para o nm ero', h vivncias e maneiras de apontar caractersticas 'caractersticas' porque se repetem freqentemente (no sempre), onde forma ou nmero so 'tidos em m ente'. Mas voc conhece tambm uma vivncia caracterstica para apontar a figura de jogo, enquanto figura de jogo? E no entanto pode-se dizer: "Creio que essa figura de jogo chama-se 're i', no esse pedao de madeira determinado para o qual eu aponto". (Reconhecer, desejar, recordar-se etc.)

  • 36. E fazemos aqui o que fazemos em mil casos semelhantes: porque no podemos indicar uma ao corporal que chamamos de apontar para a forma (em oposio, por exemplo, cor), ento dizemos que corresponde a essas palavras uma atividade espiritual.

    L onde nossa linguagem autoriza a presumir um corpo, e no existe corpo algum, l desejaramos dizer, existe um esprito.

    37. Qual a relao entre nome e denominado? Ora, o que ela ? Veja o jogo de linguagem (2) ou um outro! Ver-se- a no que esta relao pode consistir. Esta relao pode, entre muitas outras coisas, tambm consistir no fato de que o ouvir um nome evoca-nos a imagem do denominado perante a alma, e consiste entre outras coisas tambm no fato de que o nome est escrito sobre o denominado, ou em que o nome pronunciado ao se apontar para o denominado.

    38. Mas o que denomina, por exemplo, a palavra "este" no jogo de linguagem (8), ou a palavra "isto" na elucidao ostensiva "Isto se chama..."? Se se quiser evitar confuso, melhor no dizer que essas palavras denominam algo. E, estranhamente, j foi dito que a palavra "este" o nome especfico. Tudo que chamamos sem mais de "nome" dito apenas num sentido inexato, aproximativo.

    Como se d que as palavras "isto azul" queiram dizer (nteinen) ora uma assero sobre o objeto que apontado, ora uma elucidao da palavra "azul". No segundo caso, quer-se dizer propriamente "isto se chama 'azul'. Pode-se pois querer dizer com a palavra por um lado, "chama-se", e com a palavra "azul" querer dizer "azul? e, por outro lado, com "", realmente "1?

    Pode tambm acontecer que algum tire, do que era dito como comunicao, uma elucidao da palavra. [Nota marginal: Aqui se esconde uma superstio plena d e conseqncias.J

    Posso querer dizer com a palavra "bububu": "Se no chover, irei passear? Apenas numa linguagem posso querer dizer algo com algo. Isto mostra claramente que a gramtica de "querer dizer" no semelhante da expresso "representar-se algo e coisas do gnero.

    Esta rara concepo provm de uma tendncia para sublimar a lgica de nossa linguagem poder-se-ia dizer. A verdadeira resposta a isto : chamamos de "nome" coisas muito diferentes; a palavra "nome" caracteriza muitas espcies diferentes de uso de uma palavra, aparentadas umas com as outras de modos diferentes; mas entre essas espcies de uso no est o da palavra "este".

    bem verdade que freqentemente, por exemplo, na definio ostensiva, apontamos para o denominado e ao mesmo tempo pronunciamos o nome. E do mesmo modo pronunciamos, por exemplo, na definio ostensiva, a palavra "este", enquanto apontamos para uma coisa. E a palavra "este" e um nome esto freqentemente no mesmo lugar no contexto

  • da rase. Mas justamente caracterstico para o nome que ele seja elucidado por meio do ostensivo "Isto N" (ou "Isto chama-se 'N '"). Mas explicamos tambm: "Isto chama-se 'este'", ou "Este chama-se 'este'"?

    Isto est ligado concepo do denominar como, por assim dizer, um processo oculto. O denominar aparece como uma ligao estranha de uma palavra com um objeto. E assim, uma ligao estranha ocorre quando o filsofo, a fim de ressaltar o que a relao entre nome e denominado, fixa-se num objeto diante de si e repete ento inmeras vezes um nome, ou tambm a palavra "este". Pois os problemas filosficos nascem quando a linguagem entra em frias. E ento podemos, com efeito, imaginar que o denominar um notvel ato anmico, quase um batismo do objeto. E podemos assim dizer tambm a palavra "este" como que para o objeto, dirigir-se a ele por meio dela um uso singular dessa palavra que certamente acontece apenas ao filosofar.

    39. Mas como se chega idia de querer fazer justamente dessa palavra um nome, quando evidentemente no nome algum? Exatamente pelo seguinte. Porque se tentado a fazer uma objeo contra aquilo que costumeiramente se chama "nome"; e esta pode ser assim expressa: o nome deve designar propriamente o simples. E se poderia fundamentar isto mais ou menos assim: um nome prprio em sentido comum , por exemplo, a palavra "Nothung".1 A espada Nothung consiste de partes numa combinao determinada. Se estiverem combinadas de modo diferente, no existe "Nothung". Ora, mas a rase "Nothung tem um corte afiado" tem sentido, se Nothung estiver ainda inteira ou j estiver despedaada. Mas se "Nothung" o nome de um objeto, ento no h mais este objeto, se Nothung est despedaada; e porque ao nome no corresponderia nenhum objeto, ento no teria nenhuma significao. Mas se estivesse na frase "Nothung tem um corte afiado" uma palavra que no tem nenhuma significao, a frase seria por isso um absurdo. Ora, ela tem sentido; portanto algo deve sempre corresponder s palavras das quais ela consiste. Portanto, a palavra Nothung deve desaparecer pela anlise do sentido, e em vez dessa, devem surgir palavras que denominem o sim ples. Chamaremos essas palavras justamente de nomes propriamente ditos.

    40. Permita-nos falar primeiramente sobre o ponto desta argumentao: a palavra no tem significao quando nada lhe corresponde. importante constatar que a palavra "significao" usada incorretamente, quando se designa com ela a coisa que 'corresponde' palavra. Isto , con- funde-se a significao de um nome com o portador do nome. Se o sr. N. N. morre, diz-se que morre o portador do nome, e no que morre a significao do nome. E seria absurdo falar assim, pois se o nome deixasse de ter significao, no haveria nenhum sentido em dizer: "O sr. N. N. morreu".

    41. No 15 introduzimos nomes prprios na linguagem (8). Suponha agora que a ferramenta com o nome N" esteja quebrada. A no sabe

    1 N othung, nome da espada de Siegfried, clebre personagem da mitologia alem da Idade Mdia.

  • disso e d a B o signo "N". Este signo tem ento significao ou no tem nenhuma? O que B deve fazer quando receber este signo? Sobre isso no havamos combinado nada. Poder-se-ia perguntar: o q u e fard ele? Ora, ficar talvez perplexo, ou mostrar os pedaos a A. Poder-se-ia dizer aqui: "N" tom ou-se privado de significao; e essa expresso significaria que para o signo "N", no nosso jogo de linguagem, no existe mais nenhum emprego (a menos que lhe dssemos um novo). "N" poderia tambm tornar-se privado de significao pelo fato de que, qualquer que seja a razo, se d ferramenta uma outra designao e no se continue a empregar o signo "N" no jogo de linguagem. Podemos tambm im aginar um acordo pelo qual B, quando uma ferramenta estiver quebrada e A der o signo dela, deva sacudir a cabea como resposta. Com isso, poder-se-ia dizer que o comando "N", mesmo que essa ferramenta no mais exista, foi admitido no jogo de linguagem, e o sinal "N" teria significao, mesmo que seu portador deixasse de existir.

    42. Mas tambm nomes que nunca foram empregados para uma ferramenta tm significao naquele jogo? Suponhamos, portanto, que "X seja um tal signo, e A d esse signo a B ora, tambm tais signos poderiam ser admitidos no jogo de linguagem, e B teria, por exemplo, de respond-lo tambm com um sacudir de cabea. (Poder-se-ia imaginar isto como uma espcie de divertimento de ambos.)

    43. Pode-se, para tuna grande classe de casos de utilizao da palavra "significao" se no para todos os casos de sua utilizao , explic-la assim: a significao de uma palavra seu uso na linguagem.

    E a significao de um nome elucida-se muitas vezes apontando para o seu portador.

    44. Dissemos que a frase "Nothung tem um corte afiado" tem sentido, mesmo que Nothung esteja despedaada. Ora, isto assim, porque nesse jogo de linguagem um nome usado tambm na ausncia do seu portador. Mas podemos imaginar um jogo de linguagem com nomes (isto , com signos que chamaremos certamente tambm de "nomes") no qual estes so empregados apenas na presena do portador; portanto, podem ser sempre substitudos pelo pronome demonstrativo acompanhado do gesto indicativo.

    45. O demonstrativo "este" nunca pode vir privado de portador. Poder-se-ia dizer: "desde que haja um este, a palavra 'este' tem tambm significao, seja este simples ou composto". Mas isto no converte a palavra num nome. Ao contrrio; pois um nome no empregado com o gesto indicativo, mas apenas elucidado por ele