WITTGENSTEIN.+Tractatus+Logico-Philosophicus+(Português)

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  • Obra publicadacom a colaborao da

    UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    REITOR: Prof. Dr. Lus ANTNIO DA GAMA E SILVAVICE-REITOR em exerccio:

    Prof. Dr. HLIO LOURENO DE OLIVEIRA

    Trac tatus

    Logico-Philosophicus

    Esta obra, como diz o Prof. JOS ARTHURGIANNOTTI ao abrir a excelente introduo que

    escreveu para esta edio, no fcil. Adverteainda, seguindo o prprio autor extrava-gante figura que BERTRAND RUSSELL delineiaem Retratos de memria e outros ensaios (trad.de Brenno Silveira, Comp. Editora Nacional,e. Paulo, 1958) que qualquer explicaoexterior ao texto do domnio do que' deveser calado, o que poderia constranger todoaquele que, embora especializado em histriada lgica moderna, tivesse a veleidade de fazerqualquer comentrio sbre este livro. Isso,alis, aconteceu ao prprio RUSSELL que, anuin-do em escrever a apresentao que a editraReclam exigia para a publicao do Tractatus,recebeu d WITTGENSTEIN esta curiosa resposta:"Muito obrigado por seu manuscrito. Noestou muitas vezes de acrdo com ele, tantonos trechos em que V. me critica como na-queles em que pretende meramente tornarclaras minhas. opinies. Mas no faz mal. Ofuturo nos julgar. Ou no e se ele se calar,j ser um julgamento."

    Quase cinqentenrio, o livro de WITTGEN-STEIN' marco, dos mais importantes, na his-tria da lgica moderna. No sentimos diantedele aquela distncia, diz o Prof. GIANNOTTI,peculiar aos textos clssicos, que demandammais rdua e progressiva aproximao. Noobstante, um clssico e aos clssicos prin-cipalmente dedicada esta coleo. talvezmenos distante que outros, em virtude daimportncia que assumiu no "ambiente de eu-foria" que se seguiu publicao dos Principiade RUSSELL e de WHITEHEAD, em 1910. ,no entanto, uma obra de grande importnciana evoluo do pensamento lgico. certo,como afirma o Prof. GIANNOTTI, que "a uni-dade que permitia conceber a lgica como umsistema total, revelou-se ilusria" no evolverdas trs ltimas dcadas do nosso sculo.

    (continua na outra dobra)

    EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    COMISSO EDITORIAL:

    Presidente Prof. Dr. Mrio Guimares Ferri(Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras). Mem-bros: Prof. Dr. A. Brito da Cunha (Faculdade deFilosofia, Cincias e Letras), Prof. Dr. Carlos daSilva Lacaz (Faculdade de Medicina), Prof. Dr.Miguel Reale (Faculdade de Direito), e Prof. Dr.Prsio de Souza Santos (Escola Politcnica).

  • LUDWIG WITTGENSTEIN

    13IBL OTECA UNIVERSITRIASrie 1.. Filosofia

    Volume 10

    Direo:

    Dr. CRUZ COSTA(da Universidade de Sdo Paulo)

    TractatusLogico-Philosophieus

    Traduo e apresentao de

    Jos ARTHUR GIANNOTTI

    COMPANHIA EDITORA NACIONALEDITORA DA UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    8.10 PAULO

  • Direitos para a lngua portugusa adquiridos pela

    COMPANHIA EDITORA NACIONALRua dos Gusmes, 639 So Paulo 2, SP

    Tftulo original:

    Logisch-Philosophische Abhandlung

    publicado em 1921 na revista de OatwaldAnnalen der Naturphilesephie

    No ano seguinte foi publicada a primeira edioinglsa, bilnge, com o ttulo Tractatua Logic.Philoaephicua. Esta traduo segue o texto ale-

    mo da ltima edio inglsa.

    O ROUTLEDGE & KEGAN PAUL LTD 1961

    capa denus/cisco G. SOLERA

    19 88'Ingresso no Brasil

    SUMRIO

    Introduo 1

    Prefdcio 53

    Tractatus Logico-Philosophicus 55

    Notas traduo 131

    Glossdrio 135

    ndice remissivo 137

  • INTRODUO

    A leitura do Tractatus, apesar das enormes dificuldadesque oferece, fecha-se sbre si mesma; se o que pode serexpresso o pode ser com clareza, como nos adverte seu autor,qualquer explicao exterior ao texto penetra nos domniosdo que enfim deve ser calado. Sabemos que o livro no um manual; dirige-se, sem intermedirios, a um pblicofamiliarizado com os principais problemas da lgica moderna.Sendo sua publicao recente (1921), no sentimos diantedele aquela distAncia peculiar aos textos clssicos que demandauma aproximao rdua e progressiva. Nessas condies, .como juntar-lhe uma introduo feita nos moldes tradicionais,revelando a's articulaes mestras de seu pensamento ? Todaanlise seria redundante, correndo o risco de encaminhar oleitor numa direo que, mesmo correta, no seria a nica.

    sintomtico o que aconteceu com a apresentao feitapor Russell. Este anura em escrever a introduo que aBditra Reclam exigia para a publicao do livro. Quando,porm, Wittgenstein recebe os originais, no pode escondersua decepo. Numa carta de 4 de abril de 1920, escreve:"Muito obrigado por seu manuscrito. No estou muitas emuitas vzes de acrdo com le, tanto nos trechos em quevoc' me critica como naqueles em que pretende meramentetornar claras minhas *opinies. Mas no faz mal. O futuronos julgar. Ou no e se le se calar, j ser um julga-mento". Na carta posterior (6 de maio) Wittgenstein, entre-tanto, vai mais longe: "Voc ficar zangado comigo quandolhe contar o seguinte: sua introduo no ser impressa eprovvelmente por isso mesmo meu livro tambm no. Quandome defrontei com a traduo alem de sua introduo, nopude decidir-me a public-la com meu trabalho. A finurade seu estilo ingls perdera-se evidentemente na tra-

  • duo, restando apenas superficialidade e malentendido.Enviei ento o trabalho e sua introduo para a Reclam,escrevendo-lhes que no queria a introduo impressa, jque apenas servia de orientao a respeito de meu trabalho., pois, altamente provvel que por isso a Reclam no oaceite (embora at agora no tenha recebido resposta algu-ma)" % &mente um ano depois que o Tractatus aparece,na revista de Ostwald, Anais de filosofia natural, publicadaem Leipzig pela Editara Unesma G.M.B.H. No entanto, atraduo inglsa, publicada no ano seguinte, traz uma intro-duo de Bertrand. Russell, datada de maio de 1922. difcilacreditar que o texto seja o mesmo. Sabemos apenas queWittgenstein, j resvalando para o misticismo, desinteressara-se por seu trabalho, no revendo com o devido cuidado otexto ingls, ao contrrio do que afirma o tradutor.

    Convm lembrar, todavia, que a formulao de grandeparte dos problemas colocados pelo Tractatus depende deuma situao histrica que as ltimas descobertas da lgicamatemtica alteram sobremaneira. Devemos em particularter presente que Wittgenstein trabalhou no ambiente deeuforia que se seguiu publicao dos Principia de Russelle Whitehead, muito antes, portanto, do impacto provocadopela obra de Gdel, que teve, como um de seus efeitos, avirtude de isolar o clculo proposicional dos outros clculosmatemticos. Sendo decidfvel e completo, no possui umaestruturao suficientemente rica, capaz de dar conta dacomplexidade, por exemplo, do sistema da aritmtica ou dageometria. dra, Wittgenstein elege o clculo das proposiescomo padro de inteligibilidade de todos os sistemas formais,postulando, em conseqncia, uma unidade entre Ales quemais tarde se revelou ilusria. Alm do mais, essa ,

    unidadelhe permite conceber a lgica como um sistema total, aocontrrio da disperso dos sistemas particulares predomi-nantes na lgica contempornea. evidente que nessas con-dies os problemas da semntica, os problemas que dizemrespeito s relaes do sistema com o mundo, haveriam deser propostos de uma forma muito meti ambiciosa do quehoje estamos acostumados a propor. 'Dal a riqueza doTractatus, dal em compensao seu dogmatismo, que por

    (1) Sehrtften von Ludwig Wittgenstein, vol. 1, pp. 276-8, SuhrkarapVerlag, Frankfurt, 1960.

    certo desnortear aquele que no o abordar de uma perspec-tiva crtica que s a histria pode oferecer. ConsiderandoAsse provvel estranhamento que fomos levados a preparara longa introduo que se segue. Correndo o risco de impa-,cientar o leitor com um texto relativamente grande, pretende-mos apenas reconstruir os principais problemas semnticostais como Wittgenstein os encontrou. Com a publicao dosinditos anteriores ao Tractatus, estamos, ademais, em con-dies de traar sua evoluo desde o ponto de partida, comFrege e Russell, at o momento em que se formulam suasprincipais teses. Retornando, pois, s origens, esboando umagenealogia de seus conceitos bsicos, nada mais pretendemosdo que familiarizar o leitor com certas questes lgicas queo formalismo moderno tem em geral negligenciado. Condu-zido at a fronteira dsse livro, o leitor dever, sAzinho econtando com seus prprios recursos, penetrar ento numterreno em que impera, absoluta, a palavra de Wittgenstein.

    As inovaes de Frege.A obra de Gottlob Frege ocupa sem dvida um dos

    pontos mais altos na histria da lgica, podendo apenas sercomparada com a de Aristteles ou a de Leibniz; mas,apesar disso, ou talvez por isso mesmo, sua penetrao foilenta e penosa.. Basta lembrar que smente hoje que sepublica um volume reunindo seus artigos dispersos em re-vistas'alems, de acesso dificlimo. Seu primeiro livro de1879 Begriffschrift: Eine der arithmetischen neOgebildeteFormelsprache de8 reinen 1)enkfkns (Ideografia: uma linguagemformal do pensamento puro imitada da linguagem da aritm-Uca) que no teve a mnima repercusso. Em 1884 publicaGrundktgen (ler Arithmetik: Eine logisch-mathematische Uneer-suchung itber deu' Begriff der Zahl (Fundamentos da ar itmtica:ur investigao lgico-matemdtica sbre o conceito de nm

    Mero)(2).

    Depois de uma intensa participao nas revistas da poca,publica em 1893 sua obra mxima em dois volumes:Grundgesetze der A.ritionetik (Princpios da aritmtica).

    (2) }b1 uma traduo inglsa publicada por Basil Blackwell, Oxford,1959:

    (3) Cf. a coletnea feita por Peter Geach e Max Black: Translationsfrom the Philosophical Writings of Gottlob Frege, Basil Blackwell,Oxford, 1952.

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  • Props-se como principal tarefa formalizar a aritmtica,a fim de estabelecer uma passagem contnua entre a lgicae a matemtica. Mas, para isso foi preciso tanto encontraruma definio lgica dos principais conceitos aritmticos, emparticular o de nmero, como refundir os conceitos lgicosfundamentais. Tarefa rdua, que implicava uma reformageral da viso da lgica e da matemtica.

    Um de seus pontos de partida consistiu em precisar eestender o conceito matemtico de funo. Segundo as antigasdefinies, uma funo de x seria uma expresso matemticacontendo x, uma frmula em que a letra x aparecesse. evidente a insuficincia de uma definio de tal ordem, queno distingue entre forma e contedo, sinal e coisa assina-lada, etc. Frege, ao contrrio, visa, de um lado conexo(Zusammengehrigkeit) que, por exemplo, a funo numricaestabelece entre uma srie de nmeros e, de outro, necessi-dade de a expresso vir a ser completada, a exigncia de serjustaposta a outros trmos para poder significar algumacoisa. Por isso, "a expresso de uma funo carece de comple-mento (ergnzungsbedrftig), sendo insatisfeita (ungesttigt)"(4).

    Convm distinguir na funo o argumento, que nopertence a ela mas lhe advm para formar um todo, o lugardo argumento e. o valor que obtm quando a varivel substi-tuda por uma constante. Na histria da matemtica, dizFrege, assistimos a uma ampliao cada vez maior dos tipospossveis de argumento, bastando lembrar na aritmtica aintroduo de funes com nmeros complexos e, ademais,algumas tentativas de empregar a noo de funo operandoentre palavras. A reforma de Frege vai mais longe: faz comque expresses da forma E2 = 4 e E > 2, cujos valres, porexemplo, variam de O a 3, possam ser consideradas funes.De fato, essas expresses se apresentam de modo incompleto,possuindo sentido to-smente quando um dos'nmeros poss-veis vier a ocupar o lugar do argumento. E feita a substi-tuio, obteremos os seguintes resultados: 0 2 = 4, 12 = 4,22 = 4, 32

    = 4, e 0 > 2, 1 > 2, 2 > 2, 3 > 2; expressesque, em geral, so falsas, a no ser duas excees, uma paracada srie. Pois bem, a grande novidade de Frege pensarE2 = 4 e E > O como funes cujos valres sejam, em lugarde nmeros, os valres verdadeiro ou falso. Dsse modo,

    (4) Grundgesetze, I, p. 5.

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    expresses = 4 e 3> 2 denotariam o verdadeiro, en-quanto s outras denotariam o falso. Com isto se introduza noo de valor de verdade, uma das maiores conquistasdo pensamento lgico contemporneo.

    Como distinguir, porm, 2 2 = 4 e 3 > 2, se ambas possuema mesma denotao (Bedeutung) verdadeira ? Graas a seusentido (Sinn), forma de comunicar alguma coisa indepen-dentemente de seus valres de verdade, isto , da relaocom o valor falso ou o valor verdadeiro. De sorte que Frege conduzido a distinguir nitidamente a denotao de umnome, isto , o objeto significado, da maneira pela qual steobjeto logicamente apresentado. Da poder dizer: o nomeexprime (ausdrfcekt) seu sentido e denota (bedeutet) sua deno-tao.

    Uma teoria da funo no depende da exata distinoentre sentido e denotao; tanto assim que sses conceitossrnente aparecem nas ltimas obras de Frege, quando ateoria da funo j estava terminada; o mesmo no acontece,todavia, com o estudo do nome, das expresses que podemaparecer como argumento das funes. Vejamos como se dessa ligao.

    A expresso 2x ambgua, na medida em que designavrios nmeros conforme forem dados valres a x: maior,porm, a ambigidade de expresses do tipo 2x = y, sobre-tudo porque fazem intervir a complicada noo de igualdade.No Begrzifsehrift Frege a interpreta como sinal a unir smbolosdiferentes postos pelo mesmo objeto. Mas a introduo danoo de sentido, leva-o a reformular esta primeira teoriainsuficiente, passando a igualdade a representar a ligao dedois sentidos diferentes que se reportam ao mesmo objetodenotado. Podemos dizer que "Scott" equivale a "o autorde Waverley" porque stes dois sentidos diferentes se re-portam ao mesmo objeto.

    Nem todos os nomes, porm, possuem denotao. "Ocorpo mais distante da terra", "Bucfalo", "Aquiles" sopalavras inteligveis a que, entretanto, no corresponde objetoalgum. A primeira tornamse significante graas composiode nomes denotativos, mas a prpria composio no deveeo ipso possuir denotao prpria. As ,outras so nomesde figuras lendrias, cujo sentido se apreende consultandoos. poetas ou um bom dicionrio. Alm do mais, h, uma

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  • certa imbricao entre sentido e denotao: quando menciono"o sentido da expresso 'o autor de Waverley"' transformei"o autor de Waverley" na denotao da frase inteira. Istoquer dizer que existem denotaes oblquas (ungeraden) queanteriormente foram sentidos.

    A indeterminao do sentido e da denotao comumnas lnguas correntes; a linguagem artificial, porm, deveevit-la, cada nome havendo de possuir sentido e denotaoprecisos. Ambas as lnguas, contudo, apresentam a mesmaestrutura ternria; primeiro, a camada material dos sinaisfalados ou escritos; segundo, o vu dos sentidos e, finalmente,o conjunto* de objetos denotados. Concepo de extremaimportncia por causa de seu alcance terico e de suas reper-cusses histricas. Assim que est na base da teoria feno-menolgica da linguagem, a nica doutrina que atualmentetem condies de resistir avalanche da semitica behavi-orista que, ao contrrio das teses de Frege e de Husseri,distingue na linguagem apenas a camada de sinais e os objetosdenotados. O ato da palavra vincular-se-ia diretamente scoisas sem necessitar da camada ideal das significaes, redu-zindo-se, portanto, ao esquema do reflexo condicionado.

    A comparao das expresses de tipo 2x e 2x = y revelaainda outra distino fundamental, agora no que respeita aseus valres: os da primeira so nmeros e os da segundaso valres de verdade. Dado isso, DOSSIVel a derfflittolgica do conceito que o identifica funo cujos valresso sempre valres de verdade. Dsse modo, o conceito apre-senta uma estrutura incompleta, nomeadamente predicativa,a tal ponto que tudo o que no possuir tal carter transfor-mado em objeto. Entre os conceitos e os nomes surge, pois,uma clivagem que separa, de um lado, as expresses com-pletas (os nomes na sua acepo mais ampla), a que corres-,ponde tda sorte de , objetividade, e de outro, as expressesincompletadas que dizem respeito a objetos em geral. gde notar que essa clivagem lgicamente definida e substituia diviso aristotlica entre sujeito e predicado; consideradapor Frege de natureza psicolgica() : tda expressopleta, graas transformao quer do sujeito quer do predi-cado em varivel, forma um conceito, desde que seus valressejam sempre ou o verdadeiro ou o falso.

    (5) Translations from Philosophieal Writings of Gottlob Frege, p. 3.

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    Isso psto, seguem-se conseqncias as mais imprevis-veis. Primeiramente preciso distinguir a relao que umargumento mantm com a funo (relao subter, ou e nanotao de Peano), da relao que um contedo mantmcom outro mais extenso (relao sub ou de incluso)( 6). Aantiga noo filosfica de subsuno, a relao que o con-ceito mantm com seus elementos, entendida na base darelao entre predicado e sujeito, d lugar a duas noestotalmente distintas que revolucionam a teoria do juzo.Assim que "Scrates mortal", onde o argumento "Scrates"satisfaz a funo "... mortal", no pode mais ser postano mesmo nvel, como fazia a silogstica tradicional, com aproposio "Todos os homens so mortais", em que doisconceitos so relacionados em virtude de suas respectivasextenses. Do mesmo modo, a relao de parte e todo aque, desde Aristteles, estava subordinada a noo de con-ceito, perde importncia para a lgica em vista de sua ambi-gidade. Os diagramas de Euler constituem apenas umaanalogia imperfeita das verdadeiras relaes que as propo-,sies no silogismo mantm entre si(7).

    Em segundo lugar, a prpria extenso passa por umareforma radical, deixando de constituir na coleo de objetosque caem sob o conceito, para vir a ser determinada por umapropriedade do prprio conceito; firma -sei

    por conseguinte, aabsoluta anterioridade da intenso sbre a extenso. Aqui preciso recorrer importantssima distino entre proprie-dades (Eigenschaften) e marcas caractersticas (Merkmale) deum conceito, estas sendo propriedades das coisas que caemsob o conceito, aquelas, propriedades do prprio conceito,ou melhor conceitos de conceitos ou conceitos de segundaordem. Cumpre no confundir, por exemplo, "retangular"como propriedade dos objetos que caem sob o conceito "trin-gulo retngulo" com a propriedade expressa pela frase "noha tringulos retangulares acutngulos" que se refere direta-mente caracterstica do conceito em questo de no possuirsob si conceito algum(8). Em outras palavras, preciso noconfundir as qualidades dos objetos cujos nomes so argu-mento do conceito com as propriedades do prprio conceito.

    (6) Ibid., p. 94.(7) Ibid., p. 106.(8) Grundlagen, 53; Translations, p. 51.

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  • A extenso figura entre as segundas, pois consiste na proprie-dade de o conceito dispor sob sua gide tantos e tais objetos.

    Alm do mais, a introduo de conceitos de segundaordem resolve uma srie de dificuldades que o simbolismomatemtico havia levantado: 1) a classe nula, cuja compre-enso se torna difcil de um ponto de vista extensional, namedida em que afirma a existncia de uma coleo que nopossui elementos, passa a corresponder propriedade peculiara certos conceitos, como " um decaedro regular", de noterem nada sob si; 2) o membro de uma classe no se con-funde com a classe de um nico elemento, pois o primeiro um elemento da classe enquanto que a ltima determi-nada pela propriedade de certos conceitos serem predicadosde um nico elemento; 3) a existncia dos objetos matemticos passa a ser determinada por um conceito de segundaordem, de modo que se torna totalmente independente dasformas da sensibilidade, ao contrrio do que errneamentepensava o kantismo; 4) finalmente o nmero cardinal recebeuma definio satisfatria, baseada na propriedade de os con-ceitos possurem sob si determinada quantidade de objetos.

    No entanto, a clivagem radical entre coisas e conceitos,que se estriba no carter predicativo dsses ltimos, no se,faz sem dificuldades. Contra ela se levanta a seguinte objeoque o lgico Kerry apontou: o conceito tambm pode surgircomo sujeito, como na proposio "o conceito de nmero de segunda ordem". A resposta de Frege() reafirma: 1), htrmos que s podem ocorrer como sujeitos, isto , como.nomes; 2) podemos ainda ter um conceito subordinado aoutro, mas, neste caso, estamos operando com o nome e noCom o prprio conceito. No exemplo acima, o predicado "desegunda ordem" seria dito do nome "conceito de nmero".Apesar de esta .soluo estar de acrdo com nossos hbitosatuais, moldados pelo neopositivismo que tanto insistiu nadiferena entre lngua objetal e metalngua, ela no d contado fato de a predicao se fazer sbre o objeto nomeado pelosujeito e no sbre o prprio nome sujeito. Alm do mais, preciso salientar outra dificuldade apontada pelo primeiroRussell(9: o 'carter predicativo do conceito dificilmente secoaduna com a situao de sujeito. E o prprio Frege quem

    (9) Translations, pp. 42 e seg.(10) Cf. Principies, p. 507.

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    reafirma no artigo contra Kerry: "o comportamento doconceito essencialmente predicativo, mesmo quando se fazalguma assero sbre le, de modo que s6 pode ser substi-tudo por outro conceito, nunca por um objeto"("). Veremosmais tarde como o debate se aprofunda; por ora nos cabeapenas observar que o problema da transformao do con-ceito em objeto, ou o problema da nominalizao, como ochamam os fenomenlogos, translada o conceito para outronvel, o que no se faz sem dificuldades do ponto de vistalgico.

    O conceito justaposto a seu objeto constitui a propo-sio, forma expressiva do pensamento (Gedanke). A que seidentifica sse pensamento, ao sentido ou denotao ? evidente que a denotao de uma proposio ,

    no se alteraquando substitumos uma de suas partes por mitra, de mesma&notao, a despeito das possveis modificaes de sentido.Se substituirmos o sujeito da proposio "A estria, da manh iluminada pelo sol" por "estria d 'tarde", obteremos semdvida um pensamento diferente que, contudo, mantm adenotao anterior.. Tudo indica, portanto, que pensamentoe sentido de uma proposio so a mesma coisa.. O que h,porm, de ser a denotao inaltervel que permanece nasduas proposies, na que tem corno sujeito "a estria datarde" e na outra que tem como sujeito "a estria da manh"?O que de comum a ambas ..

    apenas o valor de verdadeverdadeiro, de modo que no h outra soluo possvel senotom-lo como a. denotao, Assim sendo, o pensamento osentido da proposio e um valor. de verdade a sua deno-taao(iz). Em lugar de referir-se aos fatos ou a uma. con-juno de coisas, a proposio passa a denotar um objetoideal constitudo pelo valor verdadeiro ou pelo valor '&1,13n.Uma tradio que remonta a Aristteles quebra-se pela pri-meira vez.

    Nem tdas as proposies possuem a mesma estruturasimples, No nos cabe, todavia, entrara no pormenor, exami-nando como Frege analisa as sentenas mais complexasfim de comprovar a viabilidade de sua interpretao. Fixemo-nos apenas em suas conseqncias filosficas. Somos emgeral levados a pensar a relao do pensamento com a ver-

    (11) Tranelatione, p. 50.(12) Ibid., p. 62.

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  • dade como aquela que vincula o sujeito , predicao. Naproposio "S P", P dito da denotao de S, de sorteque, ao afirmar "`S P' verdadeiro" temos o predicado" verdadeiro" reportando-se . denotao (um fato, porexemplo) do sujeito proposicional. Esta soluo ingnua,todavia, no leva em conta a inexistncia de uma diferenasignificativa entre a assero "S P" ("5 um nmero primo")e a assero '2 P' verdadeiro" ('5 um nmero primo' verdadeiro"). Graas a ela o sujeito e o predicado, enten-didos num sentido lgico, devem ser elementos do pensa-mento a permanecerem, no que respeita ao conhecimento,sempre no mesmo nvel. Sua combinao produz apenaspensamentos que ~ente se referem a uma objetividadesem, contudo, saltarem para ela, como se fsse possfyel, pelosimples jgo das proposies e suas partes, passar db pensa-mento para seu valor de verdade. Este no pode fazer partedo pensamento, tampouco, digamos, como o sol, na medidaem que no constituem sentidos mas objetos(").

    Tdas as proposies declarativas simples possuem, des-tarte, duas denotaes possveis: a veracidade e a falsidade.Como tais, nos so perfeitamente inteligveis sem que sejapreciso eleger um dos valres de verdade. O juzo consisteprecisamente nesta eleio, no reconhecimento da verdadede um pensamento(14), na quebra da indiferena em que aproposio se apresentava no mero enunciado. Como tantosoutros lgicos que lhe so contemporneos, Frege distingueo contedo do juzo (beurteilbarer Inhalt), o pensamentosimplesmente apreendido, da assero que assevera sua ver-dade. J o Begriffschrift separa o contedo (a mortalidadede Scrates) da proposio (Scrates mortal); o primeiro representado por um trao horizontal ( ) diante da sen-tena, a segunda, a asseverao dsse mesmo contedo (verdade que Scrates mortal), representada pelo traotrao vertical junto ao trao de contedo ( ).

    No entanto, como fugir a uma determinao psicolgicado contedo ? A fenomenologia de Husserl tentou resolvera questo recorrendo intencionalidade: a cada ato de juizoenquanto processo mental corresponde um contedo obje-tivo, visado pelo ato, mas que no partilha necessriamente

    (13) Ibid., p. 64.(14) Grundgesetze, p. 9.

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    de sua natureza psicolgica. preciso no confundir, emsuma, a percepo psicolgica da mesa com a prpria mesacomo objeto do mundo. evidente, porm, que esta soluono teria cabimento para Frege, porquanto pressupe umaanlise da conscincia que se faz extralgicamente.

    Foi precisamente com o intento de expurgar os ltimostraos de psicologismo que Frege refunde sua primeira teoriada assero. Os Grundlagen retomavam expressamente o prin-cpio de abstrao de Hume("): o contedo do juzo resultade um processo que passa de conceitos menos extensos aoutros mais abstratos. Tomemos, por exemplo, "x para-lelo a a" e faamos com que seja substitudo por "a direoda reta a", de sorte que a situao descrita pelo conceitode paralelismo venha a ser descrita pelo conceito "ter a mesmadireo de a". No juzo "b paralelo a a" tem lugar, pois,uma dissociao geradora da equao "a direo de b igual direo de a", *contedo do primeiro juizo. evidenteque tal processo pressupe uma atividade intelectual queopera a passagem de um a outro conceito. A primeira vista,esta brecha para o psicologismo pode parecer desimportantemas, na medida em que a definio de nmero como conceitode segunda ordem demanda esta forma de abstrao, elaatinge os prprios fundamentos do logicismo que Frege pre-tendia estabelecer.

    Exemplifiquemos: um conjunto A qualquer correspondea um determinado conceito, a saber, "x apstolo de Cristo",e outro conjunto B, tambm corresponde a outro conceito:"x cavaleiro da Tvola Redonda". possvel estabelecerentre os conjuntos uma relao biunvoca, de modo a quepossamos dizer que ambos possuem o mesmo nmero. Oprincpio de abstrao destaca esta propriedade de possuiro mesmo nmero, que no caso diz respeito tanto aos apstolosde Cristo como aos cavaleiros da Tvola Redonda, paraformar um conceito parte que determina o nmero doze.Tnhamos, no inicio, dois conceitos, um referindo aos aps-tolos, outro aos cavaleiros, que passam a ser substitudospelo conceito "x tem o mesmo nmero que z", definindouma propriedade dos conceitos iniciais, isto , um conceitode segunda ordem. O nmero doze nasce assim da abstrao

    (15) Grundiagen, 63.

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  • de uma propriedade muito peculiar de certos conceitossubsumirem sempre o mesmo nmero de elementos.

    Alm de recorrer a uma atividade intelectual para explicara gerao do conceito de segunda ordem, esta soluo setorna ainda mais insatisfatria na medida em que o nmerodoze, a que corresponde o nvo conceito, constitui um objetosingular cujo estatuto difcil de precisar nos trmos dadefinio por abstrao. De que maneira um conceito desegunda ordem vem a ser um objeto singular como o nmero ?

    Para resolver esta dificuldade Frege introduz, a partirde 1891, o conceito de percurso de valor (Wertverlauf) que,de um modo geral, designar a extenso de um conceito qual-quer, inclusive a de um conceito de segunda ordem. Masa prioridade do ponto de vista intensional no permite queessa extenso, ou melhor, a classe determinada pelo conceito,seja formada pela enumerao dos elementos que a compem,dos elementos subsumidos pelo conceite, porquanto istoequivaleria a privilegiar os objetos em detrimento do con-ceito. Como resolver esta enorme dificuldade ? Como reco-nhecer numa multiplicidade uma singularidade, processo indis-pensvel para fundar ldgicamente a teoria dos nmeros -car-dinais, sem adotar a perspectiva da extenso ?

    Suponhamos duas funes f(x) e g (x); se reconhecermosalgo em comum entre elas, chamaremos ste algo percursode valor de ambas as funes. "Devemos admitir como umalei fundamental da lgica o direito que temos ento de reco-nhecer assim algo em comum s duas funes e, por conse-guinte, transformar uma equivalncia, vlida geralmente,numa equao (identidade) );(16) . Conforme o exemplo acima,na proposio "para todo x, x apstolo de Cristo biimplica x cavaleiro da Tvola Redonda" verificamos uma equiva-lncia entre as duas funes precisamente no aspecto parti-cular de ambas denotarem o mesmo nmero de elementos.Frege considera como lei lgica fundamental, em que se fundatcitamente as lgicas de Leibniz e de Boole, a possibilidadede passarmos da equivalncia sob um aspecto para a identi-dade sob todos os aspectos, introduzindo para as funes igua-

    (16) Grundgesetze, II, 154, p. 181, e para a definio formal 9,p. 14; Cf. o pormenorizado estudo de Jules VUILLEMIN: "L'liminationdes dfinitions par abstraction chez Frege", Revue philosophique, n. 1,janeiro-maro 1966.

    ladas um nvO objeto e um smbolo correspondente. Noexemplo, teremos ento o nmero doze e o sinal "12".

    A descoberta desta lei abre horizontes inteiramenteinditos, j que redunda na constituio de novos objetosa partir de juizos analticos. Haveria melhor refutao deKant que nunca descobriu nesses juzos qualquer papel consti-tutivo ? No entanto, apesar de sua importncia filosfica,esta lei apenas introduz o conceito de percurso de valor, indi-cando um 'Avo objeto, sem contudo estabelecer os critriosde sua identificao. A cada funo passa a corresponderum objeto (a classe) que igual a outros objetos determi-nados pelas funes equivalentes, e cada objeto passa a serdesignado por um nome; como, porm, encontrar a denotaoprecisa do nome ? Na verdade quando tratamos de nmerospequenos e de conceitos no muito complexos, a intuionos fornece os recursos necessrios para discernir quais osobjetos que caem sob o conceito e quais os que no caem.No entanto, ainda que sse recurso intuitivo fsse lgica-mente vlido, le nos abandona logo que examinamos o casodo nmero zero ou da classe nula. Alm do mais, qual opercurso de valor de uma funo como x2

    = 1 ?A soluo encontrada por Frege reduz, graas intro-

    duo de uma funo muito particular, os percursos de valoraos valres de verdade. Seu exame pormenorizado( 17) fogeaos estreitos horizontes desta introduo. Cabe-nos apenasencaminh-la para apontar suas conseqncias filosficas maisimediatas.

    Seja definida a funo do seguinte modo: ver-dadeiro se 0 fr verdadeiro, 0 falso se no fr verda-deiro. Assim sendo, peksto que 22

    = 4 verdadeiro (2 2 = 4) verdadeiro, mas (23 = 4) falso da mesma maneiraque 2 tambm o , pois neste ltimo caso, 2 no sendoverdadeiro, ou melhor, no lhe cabendo valor de verdadealgum, conclumos, em virtude da amplitude da segundaparte da definio, que 2 falso( 18). Este ltimo exemplomostra que a funo serve para transformar qualquercoisa em conceito (numa funo proposicional, ha linguagemmoderna), numa funo cujos valres sempre so valres de

    (17) Cf. Grundgesetze,10, pp. 16 e seg.; RUSSELL, Principies, 484, pp. 511 e seg.; VUILLEMIN, op. cit.

    (18) Grundgesetze, p. 19.

    12

  • verdade. No entanto, dada a funo , ainda no sabemoscomo fixar o objeto individual. Basta, porm, fixar arbitr-riamente um dos valres, tomando por falso, por exemplo,o percurso de valor do conceito "x no idntico a si mesmo"para, postas as denotaes, reconhecermos inteiramente onvo objeto.

    Ainda que esta rpida exposio seja incompleta, nosendo compreensvel para quem no estiver familiarizadocom o assunto, basta para mostrar que Frege, em seus ltimosescritos, substitui o contedo do juizo gerado pela abstraoe, por conseguinte, fundado na psicologia, pela funo ,cujas propriedades dependem de uma estrutura lgicamentedefinida. Acresce ainda que, fixando arbitrriamente a deno-tao do falso a fim de precisar a denotao de cada percursode valor, Frege situa o problema da relao entre as expressese a denotao e, de modo mais geral, entre linguagem e mundo,estritamente em trmos dos valres de verdade, o que semdvida prepara o terreno para Wittgenstein e Carnap.

    Frege j publicara o primeiro volume dos Grundgesetzee prepara o segundo quando recebe uma carta de Russell,datada de 16 de junho de 1902, em que ste lhe comunicaa descoberta de uma antinomia relativa noo de classe,que punha em xeque a noo de percurso de valor. Na suaforma mais simples, a antinomia pode ser expressa da seguintemaneira: seja w a classe de tdas as classes que no sejammembros de si mesmas, de modo que para todo x, podemosdizer que x pertence a w equivalente a x no pertence a x;ora, x uma varivel que pode inclusive ser substituda por w,de sorte que obtemos a proposio contraditria w pertencea w idntico a w no pertence a w. No foi pequeno o choquede Frege que, desanimado, responde aos 22 do mesmo ms:"parece-me pois que a transformao de uma igualdade numaigualdade de percursos de valor ( 9 de meus Princpios)no mais permitida, pois minha lei V ( 20, p. 36)(19) falsa, e que minhas introdues no 31 no bastam paraassegurar em todos os casos uma denotao s minhas conexesde simbolos"(9. Em outras palavras, a descoberta da anti-

    (19) A lei diz que, sendo dois objetos iguais, tudo o que se atribuiao primeiro tambm ser atribudo ao segundo, o que no acontece quandoos objetos forem diferentes.

    (20) HANS-DIETER SLuGA, "Frege und die Typentheorie", in Logikund Logikkalkl, Verlag Karl Alber, pp. 205, 206.

    nornia de Russell delimita o mbito da lei fundamental deFrege que validava a passagem da equivalncia para a identi-dade com a respectiva criao de novos objetos. H certasexpresses, como a "classe de tdas as classes que no secontm a si mesmas" a que no deve corresponder percursode valor algum, isto , um objeto real.

    No verdadeira a lenda que narra o desespro de Fregecom o conseqente abandono de suas investigaes lgicas., possvel verificar que, na sua correspondncia com Russelle no prprio apndice apsto ao segundo volume dos Prin-cpios, procurava insistentemente a soluo para os para-doxos. Contudo, no atinou com ela e, anos mais tarde,quando Russell lhe comunica o princpio da teoria dos tipos,o velho mestre cansado j no mais estava em condies deatribuir-lhe a devida importncia. Outros haveriam de con-tinuar seu trabalho.

    II Os caminhos tortuosos de Russell.

    impressionante a capacidade renovadora de Russell;durante mais de meio sculo que se dedicou s investigaeslgicas, sempre estve pronto para recomear desde o incio,conforme iam exigindo o desenvolvimento do clculo lgicoe o aprofundamento das questes filosficas ligadas a le.Sob sse aspecto exemplo do filsofo assistemtico, cujopercurso das idias estve marcado pela evoluo dos pro-blemas de seu tempo. Em seus escritos, at mesmo nos Prin-cipia Mathematica, nunca alcanou a preciso conceituai ea sistemtica de Frege. Temos neste sentido o testemunhoprecioso, de Gdel, que numa homenagem a Russell no he-sitou em afirmar dste ltimo livro: " lamentvel que estaprimeira apresentao completa e compreensiva da lgicamatemtica e de suas derivaes matemticas seja to insu-ficiente a respeito da preciso de seus fundamentos (contidos*1 *21 dos Principia), que representa em relao a Fregeum considervel passo para trs. O que falta, sobretudo, 'um estudo preciso da sintaxe do formalismo"( 21). No en-tanto, convm contrabalanar esta opinio desfavorvel deG/Wel lembrando que as investigaes de Russell cobrem

    (21) The Philosophy of Bertrand Russell, Tudor Publishing Com-pany, Nova York, p. 126.

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  • todo o campo tradicionalmente demarcado pela filosofia doconhecimento; a falta de preciso ao menos compensadapela amplitude de sua problemtica.

    Foi paulatinamente que Russell passou a dar impor-tncia a Frege. Se o corpo dos Principies quase o ignora,j o primeiro apndice trata de estabelecer um confrontocom le. a que enuncia os principais pontos de diver-gncia: a) Frege no pensa que haja uma contradio nanoo de um conceito que no possa tornar-se sujeito lgico;b) acredita que, se o trmo a ocorrer numa proposio, aproposio sempre pode ser analisada em a e na asserosbre le; c) no leva em considerao as contradies queenvolve a noo de classe de uma classe. Examinemos porme-norizadamente essas questes na ordem em que foram enume-radas:

    a) O primeiro ponto nos leva a retomar a dificuldadelevantada por Kerry.

    H certos exemplos da nominalizao do conceito quenos conduzem diretamente a uma contradio: ao afirmarmos"o conceito de cavalo no conceito" estamos negando ocarter predicativo do conceito exatamente no momento emque o denominamos conceito( 22). Vimos que a soluo deFrege implica em distinguir o conceito enquanto predicadoe o conceito nominalizado enquanto sujeito, o qual se refere,pelo fato de ser sujeito, a uma certa forma de objetividade. bvio que o realismo enraizado de Russell e a utilizaosistemtica do lema de Occam procurariam evitar a todocusto uma resposta de tal ordem. nesse sentido que prefereidentificar o conceito como predicado ao conceito como su-jeito, em que pse s diferenas evidentes que, descuradaspela lgica, so tratadas como problemas psicolgicos oumeramente gramaticais. Negando tudo o que pudesse asse-melhar-se substancia segunda de Aristteles, a lgica noh, pois, de distinguir "" de "ser", "humano" de "humani-dade", etc. Feita esta identificao, como manter, porm,a separao entre trmo e conceito ? No que implica umncleo significativo passar do predicado para o sujeito evice-versa, sem sofrer a mnima alterao que importe l-gica ? No h dvida de que h trmos, como os nomes

    (22) Principies, 49, p. 46.

    16

    prprios, que s podem ser tomados como sujeitos; e Russellest de acrdo em ampliar o emprgo do nome prprio, fa-zendo-o designar pontos num espao no-euclidiano, perso-nagens *fictcios de um romance, etc. Mas preciso levarem considerao que certos conceitos, em particular os adje-tivos, j que os verbos podem ser interpretados como merasrelaes, designam coisas, de sorte que, sem perderem suanatureza conceituai e predicativa, adquirem uma funoaparentemente privativa do nome prprio. E a existnciads descries revela a importncia dsses conceitos designa-dores, capazes de, graas uma peculiar vinculao comcertos trmos(23), estabelecerem uma relao mais ampla entrea linguagem e o mundo.

    Este problema da denotao tem, para o primeiro Russell,um campo muito mais restrito do que para Frege, Osto quesurge independentemente da problemtica do sentido. Parao ltimo filsofo, todos os nomes, inclusive a proposioenquanto nome, apresentam uma face denotativa; para oprimeiro, ao contrrio, ~ente certos predicados, aliados acertas palavras-chaves, importam uma relao com a objeti-vidade. 'nelas as outras partes da proposio, excetuando-sebviamente os nomes prprios, estabelecem relaes que seconsomem nicamente no plano do discurso.

    Um conceito denota quando, ocorrendo numa proposio,esta no diz respeito ao conceito, mas a respeito do trmovinculado, de uma certa maneira, a sse conceito( 24). oque acontece, por exemplo, quando digo: "encontrei umhomem". Como se d essa passagem do nvel do discursopara o nvel da coisa ? O nome prprio designa diretamenteuma coisa ou uma pessoa, mesmo quando pronunciadoisoladamente. Mas na proposio o atributo tambm ditoda coisa sujeito, implicando, no discurso, um relacionamentocom o ser. a partir dessa propriedade da predicao queRussell elabora sua primeira teoria da denotao: "A noode denotao pode ser obtida por uma espcie de gneselgica das proposies sujeito-predicado, das quais parecemais ou menos dependente"(25). Sem todavia explicitar ograu e a natureza dessa dependncia, Russell forma uma srie

    (23) Ibid., 56.(24) Ibid., 56, p. 53.(25) Ibid., 57, p. 54.

    17

  • de frases denotativas, explorando as significaes correlatasque o atributo certamente possui. Da a idia de uma consti-`tuio das expresses denotativas a partir da denotao maissimples; estranha idia para quem, como ns, nos acostuma-mos aos processos de construo exclusivamente formais esintticos, deixando de lado as correlaes propostas 'pelosconceitos que se aliam a um conceito originrio. Parece estra-nhvel estabelecer um parentesco de contedos, mas estaidia evidentemente ainda pode vir a desempenhar um papelrelevante na crtica ao formalismo da lgica contempornea.

    As proposies mais simples so aquelas em que umatributo dito de um trmo-sujeito, tais como: "A ", "A uno", "A humano". A essas proposies podemos corre-lacionar outras, diferentes quanto forma, prximas, con-tudo, no que respeita ao significado: "A uma entidade","A uma unidade", "A um homem", "A tem humani-dade" e assim por diante. A ltima proposio exprimenitidamente a relao de um membro com sua classe e deve,por conseguinte, ser excluda das frases denotativas prpria-mente ditas. Examinemos "A humano" e "A um homem".Talvez a diferena seja meramente verbal, convm, entre-tanto, distinguir o predicado e o conceito a que uma classeest associada(26), o qual passaremos a denominar conceito-classe (class-concept). Distingue-se obviamente do conceitode classe como "humanidade". Cabe ento a pergunta:"um homem" um conceito ou um trmo ? Rigorosamentefalando, nem um nem outro, "mas uma certa espcie de corre-lao entre certos trmos, nomeadamente daqueles que sohumanos"(27). Sob a aparncia unitria das palavras "umhomem" se esconde, pois, uma reunio de trmos sob formadisjuntiva: trata-se dste homem, ou daquele, ou daqueleoutro, etc.(26). Com isto se revela a natureza da frase deno-tativa: formada graas juno do conceito-classe e deuma palavra, no nosso exemplo "um", que coloca o primeiroem relao com uma multiplicidade de objetos reunidos numaunidade segundo a forma indicada pela segunda(29). O mesmoacontece, pois, com "todos os homens", "cada homem",

    (26) Ibid., 58, p. 56.(27) Ibid., 57, p. 54.(28) Ibid., 60, p. 59.(29) Ibid., 57, p. 62.

    "algum homem", "o homem", etc., tildas apresentando aoesprito uma determinada reunio de objetos, obtida con-forme um modo peculiar de congraamento de seus membros.A mesma relao objetivamente, originria do conceito classe,dirige-se diferentemente a uma soma de objetos, denotando-osde uma forma particular.

    8) Russell interpreta o vnculo que se d entre a hip-tese e a conseqncia da demonstrao como uma relaoindefinvel a que d o nome de implicao formal. No en-tanto, o paradoxo de Lewis Carrol mostra a inopernciadesta relao quando se trata de destacar a concluso e afirmarsua veracidade de per si. De fato, se tivermos "H implica T"e pretendemos obter a verdade de 7' unicamente a partirda implicao, cairamos sob o jugo de um processo reite-rante que nunca lograria afirmar apenas 21. Graas impli-cao, somente seria legtimo dizer que "Se 'S implica 7",ento T", que por sua vez uma implicao mais complexado que a primeira. por isso que Frege e Russell reconhecema necessidade de uma regra paralela de destacamento, emparticular o modus ponens, cuja funo precisamente assertara verdade de T a partir da implicao "H implica T"(39).Russell, no entanto, ainda no compreendera a importnciadessa regra, contentando-se em tom,-ia como um dos exemplosdas limitaes essenciais do formalismo(31).

    Toda a dificuldade se concentra, por conseguinte, nanoo de implicao. Em seu debate com Frege, recusa firme-mente partir dos valores de verdade que, a seu ver, nadaacrescentam compreenso do juzo em geral( 32). E no corpodo tratado descobrimos o porqu de sua insuficincia: "Se pimplica q, se p verdadeiro, ento q verdadeiro, isto , averdade de p implica a verdade de q, portanto se q falso,ento p falso, isto , a falsidade de q implica a falsidadede p". Dsse modo, a verdade e a falsidade nos do apenasnovas implicaes, mas no uma definio da implicao"(33),argumento que evidentemente confunde os vrios planos dalinguagem, situando a implicao no absoluto. Como nessapoca nem Scheffer nem Nicod haviam demonstrado a possi-

    (30) Ibid., 38, p. 35.(31) Ibid., 18, p. 16.(32) Ibid., 478, p. 503.(33) Ibid., 16, pp. 14-15.

    18 .19

  • bilidade da definio cruzada dos conectivos lgicos e a re-duo de todos les a um s, resultado obtido muito maistarde, no foi difcil a Russell tomar a implicao como inde-finvel.

    O carter formal da matemtica faz, contudo, com quea implicao material somente possa operar em casos muitoparticulares. "Na matemtica assertamos que, se uma certaassero p verdadeira para uma entidade x ou para umconjunto de entidades x, y, z( . . .) ento alguma outra asser-o q verdadeira para tais entidades. Assertamos umarelao entre as asseres p e q, que chamo implicao for-mal"(34). Tomemos um exemplo: "Para todos os valresde x, se x fr um tringulo eqingulo, x um tringuloeqiltero", esta frmula, que interpreta a proposio cor-rente "Todos os tringulos eqilteros so eqingulos",afirma que as duas asseres " um tringulo eqiltero" e" um tringulo eqingulo" so ditas da entidade x, oumelhor, das vrias entidades representadas por x. Como,entretanto, explicar a implicao formal ? Quais so suasrelaes com a material ?

    Antes de tudo preciso salientar que a implicao formalsupe a anlise interna da proposio. Ora, essa anlisedifere totalmente em Frege e em Russell. Para o primeiroa unidade proposieional sempre se resolve num trmo e numconceito ou, conforme as expresses do segundo, num trmoe numa assero. Esta ltima palavra designa a parte res-tante da proposio depois de subtrado o trmo-sujeito, deforma que possui um significado totalmente diferente daqueleque o toma como a asseverao do contedo proposicional.Para ambos os filsofos, todavia, a proposio configurauma unidade, uma maneira peculiar de totalizao de seuselementos. Mas enquanto Frege acredita que a juno dotrmo e do conceito a recompe, Russell nega que isto sempreocorra. Na verdade, em tdas as proposies de forma sujeito-predicado, a unidade imediatamente se refaz to logo umtrmo ocupe o lugar do argumento da funo. Isto, porm,no acontece em todos os casos de proposies mais com-plexas. A reduo da sentena "todos os homens so mortais"em seus elementos essenciais redunda em afirmar que "paratodo x, se x homem, ento x mortal"; a saber, dois con-

    (34) Ibid., 5, p. 5.

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    eitos ou asseres, no vocabulrio de Russell, so ditos dapseudovarivel x. A recomposio da unidade proposicionalprimitiva, entretanto, esbarra na seguinte dificuldade: aosubstituirmos o primeiro x por uma constante, Scrates, porexemplo, no temos garantia de que a segunda ocorrnciada varivel deva ser substituda pela mesma constante. Dadoisso, Russell levado a distinguir assero e funo proposi-cional, a primeira sendo constituda pelo resto da proposiode que se tirou o trmo, a segunda sendo formada por ssemesmo resto tomado, todavia, na sua qualidade de parteda unidade funcional. A resoluo em trmo e assero noassegura que as partes restantes da proposio no se reduzama um simples agregado de membros justapostos; s a funoproposicional, funo cujo valor sempre uma proposio,garante a peculiarssima unidade que toda proposio possui(35).

    Descobrimos no fundo desta separao o mesmo precon-ceito de Russell, responsvel pela identificao do predicadocomo tal e do predicado como sujeito. O problema do mbitode variao de uma varivel foi, na histria da lgica, resol-vido de maneiras diferentes. A admisso de substncias segun-das, por Aristteles, delimitava imediatamente todos os argu-mentos da funo "x homem", seu campo de variao noindo alm das pessoas reais ou possveis. Embora negandotais substncias, Frege tambm caminha no sentido de esta-belecer certas limitaes no domnio das variveis, aceitandovrios tipos de variabilidade e, por conseguinte, sedimentandoos conceitos em ordens diferentes( 35). Russell, entretanto,mantm uma variabilidade indiscriminada, postulando que"tdas as funes que no podem ser valres de variveisde uma funo de primeira ordem no so entidades masfalsas abstraes"(37), o que implica em afirmar que o predi-cado que no puder ser identificado com um sujeito umaabstrao desprovida de sentido. Isto redunda em negar apossibilidade de conceitos de segunda ordem e, por conse-guinte, o balizamento das variveis. Da precisar atribuir ,proposio o papel desempenhado por sse balizamento, desorte que ela passa a possuir uma unidade totalizante queo trmo e o conceito (a assero) nem sempre so capazesde' reproduzir.

    (35) Ibid., 137, p. 441, , 482, p. 508.(36) Ibid., 482, pp. 508-9.(37) Ibid., 482, p. 509.

    21

  • A assero, a funo proposicional e a implicao material,entendida como relao originria, configuram, portanto, trsnoes primitivas. As duas ltimas explicam a implicaoformal: no exemplo anterior, a unidade do argumento que.substitui as vrias ocorrncias de x garantida pela unidadeda proposio singular em que le se inscreve. Colocadosse ponto de partida, a implicao formal se resume numaclasse, num feixe de implicaes materiais(38). Todo o psoda variao cai, dsse modo, sbre a implicao material;"Para todos os x, se x homem, ento x mortal" umaproposio gerada por sentenas singulares do tipo "Se Scrates homem, ento Scrates mortal".

    Finalmente convm mencionar a frustrada tentativa dedefinir a proposio a partir dsse conceito absoluto de impli-cao, j que o Tractatus se ocupa dela explicitamente(39).Tda proposio implica a si mesma e o que no propo-sio no implica nada. Da: " `p uma proposio' equivalea dizer que `p implica p' ", definio puramente matemticaque no deve ser confundida com a definio filosfica, cujaformulao sempre supe a anlise de uma idia em suaspartes constituintes(").

    c) "A principal dificuldade que surge a respeito da teoriadas classes acima [a de Frege] a espcie de entidade queo percurso (range) possa ser. A razo que me levou, contraminha inclinao, a adotar o ponto de vista extensional sbreas classes foi a necessidade de descobrir alguma entidadedeterminada para uma funo proposicional dada e a mesmapara alguma funo proposicional equivalente. Assim, 'x homem' equivalente (suponhamos) a 'x um bpede sempenas', e pretendemos descobrir alguma entidade que deter-minada do mesmo modo por ambas as funes proposicionais.A nica entidade singular que fui capaz de descobrir foi aclasse como una exceto a classe derivada (tambm comouna) formada pelas funes proposicionais equivalentes a umadas funes proposicionais dadas"(41). Sendo esta ltimaclasse derivada e mais complexa, escapa discusso dasnoes primitivas. Nada mais resta, portanto, do que postular

    (38) Ibid., 42, p. 38.(39) Cf. 5.5351.(40) Principies, 16, p. 15.(41) Ibid., 486, p. 513.

    a existncia de um todo constitudo pela reunio de indi-vduos, denominado classe.

    Vimos que o prprio Frege, logo que soube do paradoxoformado pela noo de classe de classe, reconhecera a necessi-dade de impor certas limitaes a essa passagem da equiva-lncia das funes para o percurso de valres. A polmicado primeiro Russell contra Frege, entretanto, no se dirigeapenas no sentido de estabelecer essas limitaes, mas sobre-tudo no sentido de averiguar o tipo de existncia compatvelcom a noo de classe. Em que medida uma entidade podeser ao mesmo tempo una e mltipla ? A que entidade corres-

    'ponde a classe nula ? Como distinguir a classe formada porum elemento de seu prprio elemento ? Perguntas tradicio-nais, muito mais ligadas problemtica da ontologia formaldo que aos problemas suscitados pela construo de um clculolgico-aritmtico.

    Nos primeiros textos, Russell(42) concebe a classe essencial-mente como a conjuno numrica de trmos, assumindoobviamente uma perspectiva extensional. Mas com a intro-duo de classes infinitas j se coloca na tica da intensiona-lidade, embora tais distines de ponto de vista sejam consi-deradas de fundo meramente psicolgico: a impossibilidadede se obter uma classe infinita pela conjuno numrica detrmos interpretada apenas como obstculo ligado natu-reza do esprito humano, incapaz de contar o infinito(43). para satisfazer intersses prticos que se deve, pois, recorrera conceitos-classes, fazendo as classes corresponderem a seusplurais. Estudamos, na teoria da denotao, como ao predi-cado se associa um conceito-classe que, unido a uma sriede palavras quantificadoras ("um", "todo", "algum", etc.)passa a denotar objetos reunidos de uma certa forma. Afrase denotativa "todos os homens", por exemplo "denotauma coleo de indivduos humanos ligados pela conjuno e,coleo cuja unidade, todavia, no possui a mesma integraode uma totalidade. A classe , pois, essencialmente mltipla,sendo a classe nula e a classe una fices matemticamenteteis, determinadas por conceitos-classes, a que nenhumaentidade h de corresponder"(44).

    (42) Cf. Ibid., cap. VI.(43) Ibid., 71, p. 68.(44) Ibid., 79, pp. 80-1.

    22 23

  • No entanto, j o apndice A dos Principies reformulaesta teoria simplista. Russell se defrontara com o seguinteargumento de Frege que parecia comprovar a exclusividadedo ponto de vista intensional: se a fr uma classe de maisde um trmo, e se a fr idntica , classe cujo nico trmo a,ento ser um trmo de a a mesma coisa do que ser umtrmo da classe cujo nico trmo a, pois a o nico trmode a(45). Tudo gira em trno da unidade da classe e da classeuna; feita a identificao de ambas, surge imediatamente oparadoxo de atribuir uma multiplicao unidade e vice-versa. Russell entrev duas possibilidades para sua soluo:1) a coleo de mais do que um trmo no idntica coleocujo nico trmo a; 2) no h uma coleo de um trmono caso de uma coleo de muitos trmos, mas a coleo estritamente mltipla. O primeiro caminho trilhado porFrege, que considera o percurso de valor uma nica unidadeformada pela passagem da equivalncia identidade, osegundo reafirmado pelo prprio Russell.

    A primitiva teoria das classes obedecia a um princpiolgico, cuja formulao, contudo( 46), no aparecia no corpoda obra. O princpio o seguinte: uma pluralidade de trmosno um sujeito lgico quando um nmero assertado dela;tais proposies no tm um sentido emas muitos o queequivale a destruir a unidade visvel do sujeito enquantotrmo em proveito da multiplicidade de sua denotao. Oargumento de Frege, porm, demanda uma reduo em seumbito. "O sujeito de uma proposio pode no ser um trmosingular, afirma Russell em seu apndice contra Frege, maspode essencialmente ser formado por mltiplos trmos; ste o caso de tdas as proposies que assertam nmeros almde O e 1. Mas os predicados, conceitos-classes ou relaesque podem ocorrer nas proposies que possuem sujeitosplurais so diferentes (com algumas excees) daqueles quepodem ocorrer nas proposies que possuem trmos singularescomo sujeitos. Embora a classe seja mltipla e no una,h identidade e diversidade entre as classes, de sorte queas classes podem ser contadas como se fossem unidades ge-nunas. Neste sentido podemos falar de uma classe e dasclasses que so membros de uma classe de classe. Um deve

    (45) Ibid., 487, p. 513.(46) Cf. Ibid., 70, p. 69, nota.

    24

    ser tomado, entretanto, como sendo algo diferente quando assertado de uma classe e quando assertado de um trmo;h um sentido de um que utilizvel quando se refere a umtrmo e outro quando se refere a uma classe, embora hajatambm um trmo geral aplicvel a ambos os casos. A dou-trina bsica sbre a qual tudo se assenta que o sujeito deuma proposio pode ser plural e que tais sujeitos pluraisso o que as classes significam quando possuem mais de umtrmo"(47). Permanece a mesma exigncia do trmo-sujeitopoder denotar uma multiplicidade de objetos, mas Russellagora reconhece a possibilidade de se tomar essa multiplici-dade como uma unidade legtima do ponto de vista matem-tico, em que pse destruio da univocidade do sentidoda palavra "um". S assim se evita o paradoxo das classes,pois na proposio "x pertence a x", a unidade do primeiro xno dita da mesma maneira do que a unidade do segundo.

    Logo em seguida encontramos uma explicitao do prprioRussell: "conforme o ponto de vista defendido aqui sernecessrio, para cada varivel, indicar se o campo de signi-ficao consiste em trmos, classe, classe de classes e assimpor diante"(48), o que implica uma estratificao dos objetosque prenuncia a teoria dos tipos. Em lugar da estratificaodos conceitos, defendida por Frege, temos agora uma estra-tificao dos objetos lgicos e, por conseguinte, a destruioda unidade postulada pelo trmo sujeito. Dsse modo, paula-tinamente o problema da objetividade correspondente aotrmo passa a vincular-se ao problema da edificao de umsistema formal, desvencilhando-se dos dados fornecidos pelaintuio para ligar-se ao contexto lgico. Est aberto o ca-minho que desembocar na doutrina dos Principia, em quea classe e as constantes lgicas sero concebidas como smbolosincompletos cuja significao est na mais estreita depen-dncia do sistema.

    III Alguns aspectos semnticos dos Principia.

    No prefcio segunda edio dos Principies, fazendocomo de hbito o inventrio dos caminhos percorridos porseu prprio pensamento, Russell comenta: "eu partilhava

    (47) Ibid., 490, pp. 516-7.(48) Ibid., 492, p. 518.

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  • com Prege a crena na realidade platnica dos nmeros que,na minha imaginao, povoavam o reino intemporal do Ser.Era uma f confortvel que mais tarde abandonei"( 49). Poucoa pouco vai reduzindo-se o nmero de objetos necessriospara a construo da lgica e da matemtica; e conformese processa esta reduo, palavras que anteriormente designa-vam um objeto autnomo, possuindo sentido completo, passama designar e a significar na estrita dependncia do contexto.O lema de Occam est em pleno funcionamento. Os Prin-cipies, ao definir o trmo(50), assegurava a cada palavra certosentido, transformando tudo o que pode ser objeto de pensa-mento ou ser contado como unidade num termo indepen-dente. Na doutrina posterior, todavia, ste princpio se tornafalso; se tda palavra contribui para o sentido da proposio,pois, se assim no fsse, no seria pronunciada ou escrita,no precisa ipso facto possuir sentido(51). Muitas vzes afuno da palavra se resume apenas em auxiliar a formaode um sentido que s vem a ser percebido numa totalidademais ampla.

    O passo mais decisivo nessa direo foi dado pelo impor-tssimo artigo, publicado em 1905, intitulado "On deno-ting". J observamos como a teoria da denotao essencialpara a compreenso da natureza da classe; evidente que,ao chegar primeira soluo completa e satisfatria para oproblema, tda a teoria da significao e da verdade haveriade ser reformulada.

    Antes de tudo, Russell estabelece a distino entreacquaintance, saber das coisas tais como nos so apresentadas,e knowledge about, conhecimento obtido por frases denota-tivas tais como "a revoluo da Terra em volta do Sol","o atual rei da Inglaterra", etc. Os exemplos mostram suaimportncia: a denotao, denotando pela forma, estabeleceuma ponte entre o conhecimento imediato e o mediato.

    Toma, em seguida, trs expresses fundamentais: 1) anoo de varivel; 2) o smbolo C(x) que representa umafuno proposicional em que x varivel; 3) a proposio"C(x) sempre verdadeiro" da qual se deriva "C(x) algumasvzes verdadeiro", equivalente a' "No verdade que `C(x)

    (49) Ibid., p. X.(50) Ibid., cap. IV.(51) Ibid., p. X.

    sempre valso' sempre verdadeiro". Como se v, tratade solucionar o problema da denotao, isto , da correlaode certas expresses com seus significados, por meio das noesde falso e de verdadeiro. Dado isso, os quantificadores en-contram desde logo sua interpretao:

    C (todo) significa "C(x) sempre verdadeiro"C (nenhum) significa " `C(x) falso' sempre verdadeiro"C (alguns) significa " falso que C(x) falso' sempre

    verdadeiro".A soluo mais inovadora, entretanto, aparece na reduo

    do artigo "o". A proposio "O pai de Carlos II foi executado"resolve-se em "No sempre falso de x que x gerou Carlos IIe x foi executado e 'se y gerou Carlos II, ento y idnticoa x' sempre verdadeiro". Em outras palavras, devemossubstituir a frase "o pai de Carlos II", que na qualidade desujeito poderia alimentar a iluso de que constituiria umnome, por uma funo proposicional "x gerou Carlos II",para em seguida garantir a unicidade deste x estabelecendoque, se um outro y tambm gerou Carlos II, ento y igual a x.

    Esta interpretao das frases denotativas evita, primeira-, mente, atribuir a expresses tais como "o atual rei de Frana",

    "o quadrado redondo", ao aparecerem como sujeito, certaobjetividade que deve logo ser negada quando se enunciauma frase negativa: "O atual rei da Frana no existe";resultado que dbviamente infringe o princpio de contra-dio. Alm do mais, a despeito do carter esdrxulo dasoluo proposta, ela resolve todos os problemas com que sedefrontava Frege, economizando ainda a distino entre osentido e a denotao e reduzindo o nmero de objetos primi-tivos necessrios, na medida em que tais nomes complexospassam a ser interpretados como descries. Por que isolaro sentido quando sse sentido nunca vem designado a noser pela denotao de uma expresso em que le no surgecomo sentido ? O princpio do terceiro excludo obriga a queou "A B" ou "A no B" seja verdadeiro, de sorte queteremos 'O atual rei de Frana calvo' verdadeiro" ou" 'O atual rei de Frana no calvo' verdadeiro"; masse enumeramos tdas as coisas calvas e tdas as que no oso, por certo no encontraremos entre os membros dessas

    26 27

  • classes exclusivas o atual rei de Frana. Ora, basta traduzira proposio conforme a soluo proposta para que o para-doxo desaparea. Temos duas interpretaes possveis: 1) "falso que haja uma entidade que agora o atual rei de Franae no calvo", que evidentemente verdadeira; 2) "Existeuma entidade que o atual rei de Frana e no calvo",bviamente falsa. Na primeira, a descrio faz parte de umaproposio que por sua vez faz parte da proposio que seinicia com " falso ...", sendo pois tomada numa ocorrnciasecundria; na segunda, a descrio se inscreve numa pro-posio autnoma, por conseguinte, numa ocorrncia pri-mria(52).

    Ambas as solues, a de Frege e a de Russell, conduzem,portanto, a resultados contrrios ao senso comum e a intui-es mobilizadas no ato de enunciar. Se uma descrio um nome, a prpria proposio declarativa se torna o nomede um valor de verdade; mas para que a proposio designeum fato, as descries devem ser reduzidas a um complexode funes proposicionais. Ou de um lado ou de outro a in-tuio se rompe, cedendo lugar construo formal. denotar que, do ponto de vista sinttico, atualmente se consi-deram vlidas as duas solues; a eleio de uma delas stem relevncia, destarte, para a compreenso das relaesentre a linguagem e o mundo.

    Resta-nos finalmente examinar a questo dos paradoxos. sabido que a soluo evolui desde os Principies at os Prin-cipia, envolvendo delicados processos de clculo, cuja anliseescapa a nossos propsitos. Cabe-nos, entretanto, examinarcertos pressupostos semnticos da teoria dos tipos que ineg-velmente esto na raiz da investigao de Wittgenstein.

    Na base de todo paradoxo Russell descobre um crculovicioso que sempre nasce quando se forma uma, coleo queao menos tem um de seus membros definido pela prpria.coleo. O conjunto de tdas as proposies, por exemplo,dever conter a proposio particular "Tdas as proposiesso verdadeiras ou falsas", cujo sentido por sua vez envolvea totalidade das proposies. De um modo mais geral pode-mos dizer que surge um paradoxo quando uma funo proposi-cional tem um argumento cujo sentido depende da funo

    (52) "On Denoting", in Logic and Knowledge, p. 41 e seg., GeorgeAllen & Unwin, Londres; Cf. Principia I, pp. 30 e seg.; 66 e seg.

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    como um todo. E para evit-lo, Russell passa a considerartais totalidades como desprovidas de sentido. Da o prin-cpio chamado do crculo vicioso: tudo o que envolve a tota-lidade de uma coleo no deve pertencer a essa coleo(53).

    Suas conseqncias so drsticas, em particular no querespeita s noes lgicas prdpriamente ditas. Tomemoscomo exemplo a proposio "p falso" e consideremos ocaso em que "Para todos os p, p falso". Esta ltima sen-tena evidentemente falsa, de forma que teremos: " 'Paratodos os p, p falso' falso", onde a expresso "Para todosos p, p falso" argumento da funo "p falso", O prin-cpio do crculo vicioso nos obriga a tomar esta ltima funo" falso" num sentido diferente da primeira funo que apa-rece no interior do argumento. Isto nos leva a perceber que,paralelamente sedimentao dos objetos em vrios nveis,necessria para que se estabelea a hierarquia dos tipos,ocorre uma sedimentao das noes lgicas: obtemos vriasformas de falsidade, de verdade, assim como de todos osconectivos como "ou", "e", "se ... ento", "no", etc.

    Importa considerar particularmente a primeira espciede verdade e falsidade, pois implica uma teoria geral dojuzo. "O universo constitudo de objetos que possuemvrias qualidades e mantm vrias relaes entre si. Algunsdos objetos que correm no universo so complexos. Quandoum objeto complexo, constitudo por partes inter-rela-cionadas. Consideremos um objeto composto de duas partesa e b mantendo entre si a relao R. O objeto complexo ana-relaoRcomb pode ser capaz de ser percebido, e quando percebido, o como um objeto. A ateno deve mostrarque complexo; julgamos ento que a e b esto na relao R.Tal juzo, derivado da percepo graas mera ateno,pode ser chamado 'juzo de percepo'. ste juzo de per-cepo, considerado como uma ocorrncia atual, uma rela-o de quatro trmos: a, b, R, e o percebedor. A percepo,ao contrrio, uma relao de dois trmos: 'a em relao Rcom b' e o percebedor. J que um objeto da percepo nopode deixar de ser algo, no podemos perceber 'anarelao-Rcomb' a no ser que a esteja na relao R com b. Assimsendo, um juzo de percepo, de acrdo com a definio,deve ser verdadeiro. Isto no significa que, num juzo que

    (53) Principia, I, 37.

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  • nos parece ser de percepo, estejamos seguros de no incorrer-mos em rro, psto que podemos errar ao pensar que nossojuzo foi derivado meramente da anlise do que foi perce-bido. Mas se nosso juzo assim se derivou, ento deve serverdadeiro. De fato, podemos definir verdade sempre quese diga respeito a tais juzos, consistindo no fato de que hum complexo correspondendo ao pensamento discursivo que o juzo. Isto , ao julgarmos `aemrelaoRcomb', nossojuzo dito verdadeiro quando h o complexo 'aemrelao-Rcomb' e dito falso quando isto no ocorre. Esta a defi-nio de verdade em relao a juzos dessa espcie"( 54). Dssemodo, o juzo no tem um nico objeto, a proposio, masse defronta com objetos entrelaados por uma relao emque o sujeito aparece como um dos trmos. "Isto ver-melho", por exemplo, se resolve em trs trmos: a mente,isto, e o vermelho . de modo que at mesmo uma propo-sio da forma sujeito-predicado se transforma numa rela-o. Nada mais natural assim do que considerar a proposiocomo um trmo incompleto, cujo complemento se oculta naao do sujeito. Tda proposio se completa ~ente quandointegra no seu sentido o ato de julgar(55).

    Segue-se da a determinao do complexo como todoobjeto da forma "aestemrelaoRcomb", ou "atem-aqualidadeq", ou "aouboucestonarelaoS", a sa-ber, tudo o que ocorre no universo sem ser simples(56).

    Cumpre finalmente mencionar a hierarquia das funese das proposies. Examinemos mais de perto a primeira.O tipo lgico considerado como a coleo dos argumentospara os quais uma funo tem valor. Quando numa expressosurge uma varivel aparente, o domnio dos valres dessavarivel forma o tipo. Alm do mais, o prprio princpiodo crculo vicioso pode ser expresso em trmos de variveis:tudo o que contm uma varivel aparente no pode vir aser valor dessa varivel. Dado isso, a expresso que contmuma varivel aparente deve ser de tipo superior qule queordena os possveis valres da varivel(57).

    (54) Ibid., p. 43.(55) Ibid., p. 44.(56) Ibid., p. 44.(57) "Mathematical Logic", in Logic and Knowledge, p. 75.

    A' hierarquia dos tipos segue-se imediatatnente. As maissimples proposies desprovidas de variveis so da forma:"Isto vermelho", "Scrates mortal", etc., isto , proposi-es predicativas que dizem respeito s coisas. Se substi-

    .tumos essas coisas por variveis obteremos funes proposi:cionais que, quando generalizadas, geram novas proposies.A essas funes ou a essas proposies generalizadas chama-mos de primeira ordem; a totalidade dos argumentos daprimeira constitui o primeiro tipo. As funes proposicionaisoperam pois como matrizes, sendo as da primeira ordem daseguinte forma: 4,(x), *(x, y), x(x , y, z . .). Cumpre aindaestabelecer que as funes de primeira ordem que no contmuma funo como varivel aparente so chamadas de funespredicativas.

    Transformemos, em seguida, as funes de primeiraordem em variveis. Pelo mesmo processo de generalizaoobteremos proposies em que funes surgem como vari-veis aparentes, o que d origem a proposies de segundaordem cujos argumentos formam o segundo tipo lgico. Eassim por diante.

    Esta estratificao dos objetos no paralela a umaestratificao das funes proposicionais. A primeira restrioprovm do axioma da redutibilidade, axioma que se faz neces-srio ao funcionamento da teoria mas que, em virtude deseu carter no-formal, foi recusado por grande parte doslgicos contemporneos que se ocuparam da questo. Afirmaque, dada uma funo proposicional de qualquer ordem,sempre existe uma funo predicativa, formalmente equiva-lente primeira definindo-se equivalncia formal pelo fatode ambas as proposies possurem o mesmo valor de verdade.Um exemplo nos far melhor compreender seu propsito. Aproposio "Napoleo tem tdas as qualidades que fazemum grande general" de segunda ordem, pois toma comoum todo as qualidades, os predicados, que fazem um grandegeneral. Graas ao axioma, podemos afirmar que existe umpredicado de Napoleo equivalente a essa funo de segundaordem. No caso, sua construo fcil: a classe dos grandesgenerais finita e podemos eleger de cada .um de seus membrosuma propriedade caracterstica, por exemplo, a data de nasci-mento, e compor uma funo complexa disjuntiva, vinculandotdas as propriedades determinantes (x nasceu em tal data,ou y nasceu nesta outra data, ou ...), funo que por sua

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  • vez de primeira ordem e tem Napoleo corno um de seusargumentos(58).

    A segunda restrio possui apenas carter prtico, mas,ligando-se teoria das classes, tem importncia considervelpara a elaborao da teoria da verdade. Abandonando tdapreocupao ontolgica, Russell chega finalmente a umateoria das classes conseqente, em que estas so tomadascomo smbolos incompletos, exclusivamente definidos pelouso, aparecendo como artifcios de natureza lingstica, masque no devem necessriamente denotar uma objetividadedeterminada.

    O ponto de partida uma definio precisa da extensio-nalidade. J dissemos de passagem que duas funes soequivalentes quando possuem o mesmo valor de verdade eformalmente equivalentes quando so equivalentes para todosos seus argumentos possveis. Assim que "x homem" formalmente equivalente a "x um bpede sem penas". Almdo mais, uma funo de funo dita extensional quando seusvalres de verdade, para qualquer argumento, so os mesmospara qualquer argumento formalmente equivalente, isto ,f(x) uma funo extensional de ox se, substituindo (1,xpela funo formalmente equivalente 4,x, f (0x) ser equiva-lente a f (4,x). Exemplificando: a funo " 'x homem' implica`x mortal' uma funo extensional da funo "x mortal",pois se substitumos essa funo por outra que lhe formal-mente equivalente, por exemplo, "x um bpede sem penas",os valres de verdade da funo total no so alterados.Em contraposio, dizemos que uma funo de funo inten-sional quando no fr extensional. o que acontece, porexemplo, com a funo "A acredita que 'x homem' implica`x mortal' ", porquanto A' pode nunca ter considerado apossibilidade de que os bpedes sem penas possam ser mor-tais(59).

    "Quando duas funes so formalmente equivalentespodemos dizer que tm a mesma extenso. Nessa definio,estamos concordando estritamente com o costume. Noadmitimos, porm, que haja uma coisa tal como a extenso,apenas definimos a frase inteira ter a mesma extenso. Pode-mos ento dizer que uma funo extensional de uma funo

    (58) Principia, I, p. 56.(59) pp. 73, 73.

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    aquela cuja verdade ou falsidade depende ~ente da ex-tenso de seus argumentos. Neste caso, conveniente encarara proposio como concernindo extenso. J que as funesextensionais so muitas e importantes, natural olhar aextenso como um objeto, chamado classe, que se supeser o sujeito de tdas as sentenas equivalentes sbre as vriasfunes formalmente equivalentes. Dsse modo, se disser-mos, por exemplo, h doze apstolos, natural tomar estasentena como atribuindo a propriedade de ser doze a umacerta coleo de homens, nomeadamente daqueles que foramos apstolos, ao invs de atribuir a propriedade de ser satis-feita por doze argumentos funo 'x era um apstolo'. Estaviso encorajada pelo sentimento de que existe algo que idntico no caso de as duas funes 'terem a mesma extenso'.Se, alm do mais, tomarmos certos problemas simples como`quantas combinaes possvel fazer com n coisas' parece primeira vista necessrio que cada 'combinao' fsse umobjeto singular que pudesse ser contado como uno. Isto,no entanto, no preciso de um ponto de vista tcnico, eno vemos razo para supor que seja filesdficamente verda-deiro"(60).

    Pretendendo mostrar a necessidade de um tratamentoparticular das funes extensionais, Russell estabelece umafrmula para reduzir tdas as funes a funes extensionais,processo que no convm examinar por aqui. Basta pormlembrar, primeiramente, que a funo da funo passa aser substituda por uma funo derivada que tem por argu-mento, em vez da funo (ta, a classe determinada por elaou pelas outras funes formalmente equivalentes. Em se-gundo lugar, para que esta funo derivada seja sempre signifi-cativa para argumentos de qualquer tipo necessrio e sufi-ciente que o axioma da redutibilidade garanta a existnciade uma funo predicativa equivalente a (fix, de sorte que afuno derivada que tem as classes como argumentos noapenas substitui qualquer funo por uma funo exten-sional mas ainda, remove prticamente a necessidade de consi-derar as diferenas de tipo entre as funes cujos argumentosso do mesmo tipo. Esta conseqncia equivale a uma simpli-ficao na hierarquia dos tipos, de sorte que tudo se passacomo se no considerssemos seno funes predicativas(61).

    (60) Ibid., p. 74.(61) Ibid., p. 75.

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  • Convm examinar essa doutrina luz dos correspon-dentes textos de Frege. O ponto de partida o mesmo: apassagem formal das funes para o substrato da identi-dade. Mas essa passagem tem agora o carter prtico, deconvenincia, no respondendo a nenhum imperativo terico.Alm do mais, operando como funo de funo, ao invsda funo de Frege, Russell mostra que importa apenas definiras condies de seu uso e da substituio de seus argumentos,sem dar a menor ateno a um possvel substrato ontolgico.Nessas condies, falar do objeto formado pela classe no mais do que uma concesso ao uso corrente das expressesmatemticas e um artifcio para facilitar o discurso: a funoderivada que a introduz definida de tal forma que sempreser possvel substituir a objetividade inoportuna por umaexpresso que se reporta a indivduos. Em virtude dessecarter vicrio da noo de classe, esta no pode estabeleceruma propriedade geral de uma funo, no pode ter a espes-sura de um conceito de segunda ordem, como em Frege; seela propriedade, o de uma coleo de objetos que, todavia,continuam a estar sob o signo da multiplicidade. Do pontode vista do clculo ambos os caminhos se equivalem, poisambos terminam por garantir a definio de nmero cardinalcomo classe de classe (Russell) ou propriedade de uma pro-priedade (Frege). &mente, graas a uma astuciosa cons-truo simblica, a objetividade discutvel da classe comounidade excluda do campo dos legtimos problemas mate-mticos. Mais uma vez o princpio de Occam devasta osobjetos da ontologia formal, mais uma vez se reduz o n-mero de objetos necessrios e das frases cujo significado sed no imediato.

    IV Os primeiros passos de Wittgenstein.

    conhecida a diversidade de interesses do jovem Wittgens-tein. Nos fins de 1911, porm, tendo lido os Principies ofMathematics, apaixona-se pela filosofia da matemtica edecide abandonar de vez seus estudos de engenharia. ProcuraFrege em Iena que, segundo consta, o aconselha a trabalharcom Russell. Assim que, no incio do ano seguinte, se ma-tricula na Universidade de Cambridge. Em pouco tempo seestabelece ntima colaborao entre o professor no apogeude sua carreira filosfica e o aluno cujo gnio despertava

    numa sbita erupo; colaborao amiga, extremamente frtilpara ambos, mas que no deixou de ser permeada de inci-dentes que desde logo demonstravam as diferenas profundasde temperamento filosfico. J em maro de 1913 Wittgens-tein, de visita a Viena, escreve a Russell marcando sua posi-o: "( . ) posso agora exprimir exatamente minha objeo sua teoria do juzo: creio ser bvio que da proposio 'Ajulga que (digamos) a esteja na relao R com b', se fr corre-tamente analisada, as proposies 'a R b .v. a R b' devemseguir diretamente, sem o emprgo de qualquer outra premissa.Essa condio no cumprida por sua teoria"(62). Qual o alcance dessa objeo ? O que significa dizer que a com-preenso de uma sentena implica em recorrer ao princpiodo terceiro excludo ? Uma explicao mais pormenorizadaencontra-se nas "Notas sbre a lgica"( 63), srie de observa-es redigidas em setembro de 1913, cuja cpia foi entregueao prprio Russell. O exame das idias fundamentais dessasnotas revela uma polmica explcita contra Frege e Russelle, em embrio, algumas das descobertas bsicas posteriores.Com isto, o elo entre os trs pensadores se faz sem soluode continuidade, de maneira a nos conduzir a apreender aovivo o surgimento do Tractatus.

    Depois de salientar o carter descritivo da filosofia,depois de lembrar como esta se resolve em lgica e metaf-sica, Wittgenstein inicia o confronto com seus grandes mestres:"Frege diz 'proposies so nomes'; Russell diz 'proposiescorrespondem a complexos'. Ambos esto errados, sendo espe-cialmente falsa a sentena 'proposies so nomes de com-plexos'. Fatos no podem ser nomeados. A falsa assunode que proposies so nomes nos conduz a acreditar quehaja 'objetos lgicos', pois o sentido das proposies haveriade ser tais coisas"(64). O horror ontologia formal balizaa pergunta sbre as relaes que a linguagem mantm como mundo. Que objetos poderiam ser aqules a que corres-ponderiam as constantes lgicas ? O pressuposto empiristaeliminaria, pois, desde logo, a anlise da proposio proposta

    (62) Schriften, I, p. 261.(63) Embora por comodidade continuemos a citar a edio alem,

    o leitor poder tambm encontrar sse texto, escrito primitivamente emingls nos Notebooks 1914-1916, Apndice I, B. Blackwell, Oxford,1961.

    (64) Schriften, I, p. 189.

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  • por Frege, anlise que transforma a Xrerdade e a falsidadeem objetos denotados pelas proposies. O que o leva, entre-tanto, a abandonar a soluo de Russell ? No h dvidade que introduzir a mente como parte constitutiva do sen-tido da proposio uma brecha para o psicologismo, masWittgenstein por certo no se contentaria com argumentosde tal ordem geral e filosfica. A oposio, como veremos,nasce de questes tcnicas, em particular da anlise muitooriginal das condies de inteligibilidade da proposio.

    um dado evidente e inquestionvel que compreendemosuma proposio antes de precisarmos decidir a respeito desua veracidade ou falsidade. O que isto significa do pontode vista lgico? A resposta clssica distingue a proposiomeramente enunciada da proposio assertada, a simplesformulao do sentido, da aceitao de sua verdade ou desua falsidade. No h dvida de que Wittgenstein tambmdistingue (sense, Sinn) da denotao (meaning, Bedeutung),mas o que importa explicitar as condies lgicas, estreita-mente ligadas problemtica da verdade, ao invs de reafir-mar a autonomia do sentido sem prover as condies 'de suadeterminao. O que implica entendermos uma, sentenaantes de conhecermos sua verdade ou falsidade ( Isto deum prisma essencialmente lgico, de suas prprias condiesde verdade? "Nem o sentido nem a denotao de uma pro-posio so uma coisa. Essas palavras so smbolos incom-pletos. claro que entendemos proposies sem conhecerse so verdadeiras ou falsas. Mas smente podemos conhecera denotao de uma proposio quando sabemos se verda-deira ou falsa. O que compreendemos o sentido da propo-sio. Para compreender a proposio p no basta saberque p implica `p verdadeiro', devemos saber ainda que pimplica `p falso'. Isto mostra a bipolaridade da proposio.Compreendemos uma proposio se compreendemos seus cons-tituintes e suas formas. Se conhecemos a denotao de 'a'e de `b' e sabemos que 'xRy' significa para todos os x e y,ento tambm compreendemos `aRb'. Compreendo a propo-sio `aRb' quando sei que ou o fato aRb ou o fato no aRbcorresponde a ela, mas isto no deve ser confundido com afalsa opinio de que compreendo `aRb' quando sei que `aRbou no aRb' ocorre"(65).

    (65) Ibid., pp. 189-191.

    A afirmao doe que nem o sentido liem a denotaoso coisas ope uma barreira ao formalismo de Frege; noh objetos lgicos e o fato a referncia indicada pela prepo-sio. Mas nesse ato de visar, a proposio mobiliza doisplos (o verdadeiro e o falso) que demarcam sua prpriainteligibilidade. Se dissermos, por exemplo, "a casa ver-melha", a expresso como tal acrescida de todos os seus signi-ficados implcitos quer dizer " 'a casa vermelha' verda-deiro o que importa tambm em afirmar que 'a casa no vermelha' falso". Dentro das possibilidades desdobradaspelo princpio do terceiro excludo em relao proposio p,O sentido de p equivale a restringir o campo dessas possibi-lidades, em tomar a verdade de uma parte em detrimentode todo o resto. Da o sentido, a despeito de mobilizar tdasas possibilidades implicadas pelo princpio do terceiro excludo,no se confundir com le, que simplesmente afirma tais posei- .bilidades contraditrias sem atribuir-lhes pso algum e semestabelecer entre elas nveis diferentes. A imagem utilizada reveladora: uma mancha preta no papel determina umconjunto de fatos (pontos) positivos e, por conseguinte, todosos outros fatos (pontos) negativos, que esto fora da mancha;a afirmao de um a excluso de outro e vice-versa. Desorte que tanto o sentido como a denotao de uma sen-tena, tais como aparecem intuitivamente no enunciado, soincompletos, na medida em que a proposio afirmativa jestabelece lgicamente a negao de sua contraditria e ofato denotado positivamente j implica na excluso do fatonegativo e vice-versa( 66). Sob sse aspecto Wittgensteinpode ento dizer "a caracterstica de minha teoria que: ptem a mesma denotao' que nop"(67).

    Na proposio "aRb" consideram-se em geral trs inde-finveis, os nomes "a" e "b", cada um denotando um objeto,e a forma "xRy". No se questiona o carter indefinveldos nomes; como, porm, interpretar a forma ? Antiga-mente havia a tendncia de pens-la sempre segundo a predi-cao de um atributo a um sujeito; hoje, ao contrrio, tudo reduzido a relaes. A teoria de Russell um impulso pode-roso nesse sentido. Qual , porm, o exato significado daforma da proposio ?

    (66) Ibid., p. 193, Cf. Tractatus, 4.063.(67) Schriften, I, p. 189.

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  • Cabe primeiramente desconfiar das indicaes sugeridaspelos signos isolados tanto falados como escritos. As nota-es de Frege e de Russell, por exemplo, escondem a verda-deira natureza da linguagem(68). "Smbolos no so o queparecem ser. Em 'aRb"R' parece um substantivo, emborano o seja. O que simboliza em 'aRb' que 'R' ocorre entre`a' e V. De modo que 'R' no indefinvel em 'aRb'. Igual-mente em `,px', `
  • que nomes e proposies se reportassem do mesmo modo aobjetividades peculiares; a linguagem torna-se uma maneirade nomear coisas e fatos. Russell caminha na mesma direo,mas a interpreta como relao, transformando a linguagemnum modo geral de relacionamento com o mundo. Ambosdesconhecem a especificidade da nominao e da proposio.Feita, porm, essa imprescindvel diferenciao, Wittgensteinretoma a lio de Russell, descobrindo na sentena e no fatosignificado uma lacuna que a expresso imediata no podecobrir: o sentido p implica uma referncia a p, o fato posi-tivo se insere num contexto de fatos negativos. Da o rela-cionamento da lngua com a realidade depender de umacerta "isomorfia" oculta, cada proposio desempenhando opapel de uma rgua que se ape aos fatos e separando-os,graas a sse gesto, em dois campos, o daqueles que se colo-cam no mesmo sentido do que ela, o daqueles que se colocamem sentido contrrio( 73). O sentido da proposio age comoum guarda a encaminhar o fluxo do trnsito para um ladoe para o outro.

    Como, entretanto, alcanar esta forma em sua purezalgica ? "Se numa proposio convertermos todos os inde-finveis em variveis, permanece a classe de- proposies queno incluem tdas as proposies, embora inclua um tipointeiro. Se transformarmos um constituinte da proposioo(a) numa varivel, existe ento a classe ji [(3x) . cpx = p].Esta classe ainda depende em geral do que, por uma con-veno arbitrdria entendemos por `ox'. Mas se transformar-mos em variveis todos esses smbolos cuja significao (signi-ficance) era arbitrriamente determinada, ainda permanecetal classe. Agora, porm, no mais depende de convenoalguma, apenas da natureza do smbolo ` px' . Isto corres-ponde a um tipo lgico"(74). A comparao deste texto coma proposio 3.315 do Tractatus nos leva a compreender aestreita dependncia que Wittgenstein v entre a forma eo tipo lgicos. Ao lembrarmos que Russell define o tipo comoo domnio de significao (significance) de uma funo pro-posicional, isto , a coleo de argumentos para os quais adita funo tem valor, torna-se evidente que a forma lgica uma extenso do tipo, obtida por meio da variao eid-

    (73) Ibid., p. 197.(74) Ibid., p. 223.

    tica das partes constituintes da funo(75). A funo bsicano reflexionante, isto , nenhum de seus argumentosdepende, para alcanar sua individualidade, da prpria funoa que serve de cumprimento, e o mesmo acontece com aproposio. Partindo dsse fundamento, que permanece inques-tionvel, Wittgenstein o leva ao limite mximo, variandoem todos os sentidos esta forma irreflexiva. O acesso a elanos dado pela prpria variao, mas seu estatuto lgico,em virtude precisamente dessa irreflexibilidade, torna-se di-fcil de precisar. Como dizer algo desse absoluto respeitandoos limites da irreflexo ? Por isso a forma lgica no sesitua no plano das coisas ditas. Na medida em que entrea expresso e o fato deve haver algo em comum, precisa-mente a forma lgica, a expresso da forma, isto , outrofato que tem com ela tambm algo em comum, apenas areitera. Diante dessa monotonia improdutiva das expressesda forma, cabe-nos to-sdmente apreend-la. De sorte quea inutilidade da teoria dos tipos custa nem mais nem menosdo que a indizibilidade de tudo a que a lgica concerne.

    Dado isso, Wittgenstein passa a examinar questesmenos gerais. Estudaremos apenas trs, aquelas que tratamdiretamente de suas relaes com Frege e Russell.

    Em primeiro lugar, o sinal da assero desaparece, por-que ste se confunde com o enunciado. Separar a proposioenunciada da proposio assertada implicava em situar algica exclusivamente no domnio das proposies verdadeiras.Ora, para Wittgenstein importa a estrutura bipolar da pro-posio, antes da eleio de um valor determinado. "Umaproposio no pode possivelmente assertar de si mesma que verdadeira. A assero meramente psicolgica. H apenasproposies inassertadas. Juzos, mandamentos e questes,todos se situam no mesmo nvel, todos possuem em comuma forma proposicional, e isto apenas o que nos interessa.

    (75) Ao receber os manuscritos do Tractatua, Russell escreve aWittgenstein pedindo-lhe uma srie de informaes, dentre elas uma sbreo assunto em questo. Wittgenstein responde, retomando o texto deRussell e complementando-o: " 'A teoria do tipo, a meu ver, a teoriado simbolismo correto: um smbolo simples no deve ser usado para ex-

    ' primir algo complexo: mais geralmente, um smbolo deve ter a mesmaestrutura que sua denotao (meaning)' . Isto exatamente o que se podedizer. Voc no pode prescrever a um smbolo o que lhe permitidoexpressar. Tudo o que um smbolo pode expressar lhe permitido"(Schriften, I, p. 275).

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  • A lgica se interessa apenas por proposies inassertadaa"(76).Total revoluo nos domnios da lgica, que se extende assimmuito alm das proposies apofnticas, numa completasubverso dos limites traados por Aristteles.

    Convm, em segundo lugar, examinar a forma da pro-posio "A julga p". A crtica com que nos defrontamosj um como da doutrina defendida posteriormente, quandoo valor de todas as proposies complexas depender dosvalres de verdade das proposies elementares. De acrdocom a interpretao dada noo de sentido, deve ser com-pletada do seguinte modo: "A julga que `p' verdadeiro e`no-p' falso"(77). "A proposio 'A julga p' consiste nonome prprio A, na proposio p com seus dois plos, e Ase relacionando com ambos sses plos numa certa maneira.Esta bviamente no uma relao no sentido ordinrio.'nela teoria correta do juzo deve tornar impossvel julgarque 'esta mesa caneteia (penhonders) o livro' (A teoria deRussell no satisfaz a ste requisito)"( 78). A teoria do juzodeve evitar juzos absurdos, e isto s se obtm quando foremenquadrados em sua prpria bipolaridade.