WOORTMANN, K. Religião e Ciência No Renascimento

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SÉRIE ANTROPOLOGIA 200 RELIGIÃO E CIÊNCIA NO RENASCIMENTO Klaas Woortmann Agradeço a Mariza Correa, Luiz Tarlei de Aragão e a Maria Inês S. Borges por me terem dado acesso a textos centrais para este trabalho. Pelo mesmo motivo agradeço a Ellen F. Woortmann, a quem devo também a leitura crítica da primeira versão deste texto. Brasília 1996

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WOORTMANN, K. Religião e Ciência No Renascimento

Transcript of WOORTMANN, K. Religião e Ciência No Renascimento

  • SRIE ANTROPOLOGIA

    200

    RELIGIO E CINCIA NO RENASCIMENTO

    Klaas Woortmann

    Agradeo a Mariza Correa, Luiz Tarlei de Arago e a Maria Ins S.Borges por me terem dado acesso a textos centrais para estetrabalho. Pelo mesmo motivo agradeo a Ellen F. Woortmann, aquem devo tambm a leitura crtica da primeira verso deste texto.

    Braslia1996

  • 2Religio e Cincia no Renascimento

    Klaas Woortmann

    Introduo.

    O perodo do chamado Renascimento, que se inicia em algum momento do sculoXV, varivel segundo o ngulo que se privilegia, at se dissolver na modernidade, em outromomento de difcil definio no sculo XVII, marca o incio de uma profundatransformao na cosmologia ocidental. O presente trabalho enfoca uma dimenso dessatransformao: a relao entre religio e cincia, e o primeiro passo do processo ambguode separao entre as duas na constituio de campos intelectuais autnomos.

    Se cincia e religio so hoje, em boa medida, pensadas como opostas, a cinciaocidental se constituiu no interior do campo teolgico, ou pelo menos em estreita relaocom ele, e o Renascimento um momento privilegiado para o exame desse processo.

    No existe qualquer linearidade nesse processo, como se ver no decorrer destetrabalho. Por outro lado, no estou aqui interessado em sequncias de eventos ou emrelaes de causa e efeito. Percebo o Renascimento como um contexto e me interesso porsignificados, mais do que por uma histria de acontecimentos.

    Este no um trabalho de histria da cincia, pois no sou historiador, nemtampouco de filosofia, pois no sou filsofo. Embora tenha me valido de historiadores e defilsofos, o que busco fazer considerar o Renascimento como um contexto de idias, umcontexto cultural onde cincia e religio so interlocutores mtuos - mesmo que por vezeso dilogo seja de surdos.

    A relao entre religio e cincia tem sido um tpico recorrente da Antropologia,ao longo de sua histria. Mas, essa relao tem sido vista mais como oposio, assim comoa relao entre magia e cincia. Recordemos Frazer e Tylor, ou os chamados"evolucionistas". Por outro lado, a Antropologia tem posto muito mais nfase na religio(ou na magia) que na cincia, permanecendo esta ltima com uma espcie de pano defundo contra o qual se constri a teoria da religio. Lembremos, por exemplo, a construoterica da religio por Durkheim, ou aquela da magia por Mauss e Hubert.

    Em tempos mais modernos temos Geertz. Sua magnfica comparao entre duasmodalidades de islamismo em Islam Observed termina com uma discusso sobre como osislamismos marroquino e javans lidam com a cincia (vale dizer, lidam com o Ocidente).Porque num livro sobre religio se torna necessrio falar de cincia?

    No meu propsito, aqui, discutir essa questo do pensamento antropolgico, oque daria lugar a todo um ensaio especfico. Mas parece que para falar de religio, osantroplogos, enquanto pensadores ocidentais, se vm obrigados a falar de cincia. Afinal,religio e cincia so duas maneiras de construir o mundo.

    Evans-Pritchard e Malinowski so dois outros exemplos clssicos desta questo

  • 3em nossa disciplina. Num certo sentido, opor religo cincia uma maneira de opor"primitivos" ao Ocidente civilizado - mesmo depois de ter o Iluminismo forjado a noo de"religio natural" (ou por causa disso) - e de "construir" o Ocidente.

    Lvy-Bruhl no tratou propriamente da oposio entre religio e cincia. Poroutro lado, opunha-se a Frazer e Tylor na medida em que seu "lugar de fala" no era apsicologia individualista universal nem estava preocupado com qualquer escadaevolucionria. Como ressalta Tambiah (1990: 84), ele estava mais prximo da noo derepresentaes coletivas de Durkheim - embora no de acordo com a proposiodurkheimiana de que a idia de fora contida nas religies primitivas seria a precursora damoderna idia cientfica de causalidade; a (meta)fsica newtoniana parece dar razo aDurkheim, tema que pretendo elaborar em outro trabalho.

    bastante conhecida a teoria lvybruhliana da mentalidade primitiva, pr-lgicaou "mentalidade mstica", a partir do princpio da participao, em oposio ao pricpio dano contradio, ou seja em contraste com as leis do pensamento lgico, racional, dacincia moderna. Calvino e Zwinglio, em suas discusses sobre a transubstanciao talvezconcordassem com Lvy-Bruhl (1).

    Enfim, aponto aqui to somente que a oposio entre cincia e religio parece tersido constitutiva do discurso antropolgico, embora relativizada por autores como Evans-Pritchard e que a cincia permaneceu como "background" contrastivo da religio. Lidarcom a cincia em primeiro plano parece ter sido menos frequente. Talvez porque, noprprio Ocidente, a cincia se constituiu a partir da religio e, no caso da Antropologia (quedurante muito tempo se pretendia cientfica, como ainda se pretende em algumas de suasvertentes) foi apenas na virada do sculo XIX para o sculo XX que o discurso acadmicofoi capaz de prescindir do recurso Divina Providncia, ainda presente em Morgan, porexemplo.

    A dificuldade em lidar com a cincia ocidental bem exposta por Latour:

    "Desde o tempo de Lvy-Bruhl a antropologia sempre se interessou pela cincia,mas a cincia dos Outros: como se explica que para Eles o casuar no classificado comoave, era uma questo legtima; como se explica que os taxonomistas modernos classificam-no como ave no fazia parte das preocupaes dos antroplogos ... o resultado dessetratamento assimtrico de Ns e Eles que, embora a etnocincia tenha sido por muitosanos um domnio prspero da antropologia cognitiva ... colocar em uso os mtodos daantropologia para entender a nossa cincia apenas recente.

    A extraordinria dificuldade da tarefa ilustrada pelo La Pense Sauvage deLvi-Strauss. Para salvar os selvagens da acusao de serem intelectualmente inferiores,Lvi-Strauss no encontra outra soluo seno transformar a mente selvagem num alter egoda mente cientfica - para Lvi-Strauss a mente cientfica consiste em idias, abstraes,reflexo, poder combinatrio. Mas, horrorizado com a possvel confuso entre os doisconhecimentos que ele deseja manter to distantes como possvel, ele recai na mais clssicadas dicotomias: Eles vivem em sociedades frias e permanecem bricoleurs; Ns, de outrolado, vivemos em sociedades quentes e pensamos como engenheiros partindo sempre deprincpios primeiros. Os dois tm de ser similares - para evitar o vis discriminatrio - aomesmo tempo que permanecem infinitamente distantes - para evitar a poluio. A confuso to completa que as sentenas se contradizem umas s outras tornando o livro de leituraextremamente difcil" (Latour, 1990: 145-146; grifos no original).

  • 4No se trata aqui de concordar ou discordar da crtica feita a Lvi-Strauss, mas dereter o significado de cincia numa semntica de alteridade constitutiva do Ns a que serefere Latour: o engenheiro como background do bricoleur.

    Ao tratar do debate entre Hobbes e Boyle a propsito da famosa "air pump" -debate com implicaes metafsicas, da religio ao estado, bem mais amplas que a fsicaexperimental de uma simples bomba de vcuo - Latour nos adverte que:

    "...se h algo cuja antropologia no podemos fazer, a cincia, nossa cincia.Mesmo se ela fosse compreensvel em termos culturais, o que est longe de ser pacfico,ns, 'scholars' ocidentais que vivemos dentro do mundo construdo para ns pela cincia,seramos incapazes de levar adiante tal estudo. Apenas 'outsiders' completos seria capazesde faz-lo - e ns no iriamos gostar dos resultados ..." (Latour, 1990: 146; grifos nooriginal).

    Mas, vale lembrar, as consideraes de Latour sobre as dificuldades daantropologia para com a cincia se referem ao presente. A cincia e a religio que seroaqui consideradas so as do passado, e o passado tambm constroi uma alteridade: areligio/cincia de nossos ancestrais renascentistas est bastante distanciada para podermostrat-los como Outros, desde que no se incorra no perigo do presentismo.

    Vale tambm lembrar que a Antropologia que se pretendia cincia derivou seuconceito de religio ... da prpria religio, como ser visto mais adiante. Talvez isso tenhaalgo a ver com as dificuldades que ela enfrenta tambm com a religio.

    O Renascimento e as audcias.

    No me interessa aqui examinar todas as complexas dimenses desse perodo dahistria intelectual europia, em geral mais conhecido por suas realizaes artsticas,embora seja necessrio, para entender o avano cientfico, relacion-lo arte, como serfeito mais adiante. Meu propsito mais restrito, limitado ao surgimento, no pensamentoerudito, do que se poderia chamar o campo cientfico. Mais corretamente, a formao deuma ambgua relao entre cincia e religio, j que o discurso cientfico se constitui emdebate com o discurso religioso e o campo da cincia se forma por desimbricamento docampo teolgico. O Renascimento no conseguiu realizar plenamente essa separao, masfoi nesse perodo que ela se iniciou. Foi nesse perodo tambm que surgiram, no interior doprprio campo teolgico, novas formulaes que fundaro a modernidade e com ela asnovas cincia e concepo do homem. Calvino e Zwinglio foram os personagens centraisdessa "reforma do pensamento" no plano da teologia.

    A tenso entre cincia e religio no se encerra com o final do Renascimento (se que houve um final). Pelo contrrio, ela se estende at o sculo XIX (2). Por outro lado,no se deve pensar que os construtores da cincia, de Coprnico ou Kepler a Newton ouLineu fossem arreligiosos. Apenas transformaram o pensamento religioso ao daremindependncia ao pensamento cientfico, mesmo que partindo de princpios msticos.

  • 5O Renascimento um momento de transio, fundamental para a cincia moderna- embora esta s tenha se constitudo a partir do mecanicismo newtoniano - e para ascincias humanas em particular, pois a partir dele uma nova humanidade e uma novaalteridade comeam a ser descobertas, juntamente com uma nova cosmografia e uma novacosmologia. O descobrimento da Amrica pelo Ocidente e a formulao copernicana darelao entre a Terra e o Sol so os marcos fundamentais dessa transformao.

    Desde meados do sculo XV a Cristandade ocidental se v em crise.Constantinopla tomada por Maom II; os reis cristos, politicamente divididos e o papadoromano corrompido so impotentes para reagir. A grande peste e a Guerra dos Cem anosdeixaram um rastro de destruio apocalptico. Por outro lado, fracassada a reformaespiritual da Igreja no Conclio de Latro, em 1517, irrompe a Reforma conduzida porLutero e o protestantismo se difunde pela Europa. O prprio Conclio de Trento se arrastade 1545 at 1563. Nesse contexto, Roma se v impotente para fazer face s inovaes nopensamento - e o mundo europeu assaltado por dvidas.

    Mais do que aqueles fatores, contudo, como sugere Minois (1990), foi o"bouleversement culturel" representado pelo humanismo que favoreceu a transformaocultural/cosmolgica do mundo ocidental.

    "O humanismo triunfante e sua virtude enervante - no sentido etimolgico - ganhaas mais altas esferas do clero, inclusive os papas. As preocupaes intelectuais sesobrepoem s exigncias espirituais e dogmticas, o saber sobre o agir, as veleidades sobreas decises. O imenso apetite de cultura inverte os limites impostos pela f dos sculosprecedentes. O esprito se abre a todos os domnios do conhecimento humano; osexclusivos recuam. O mundo dos intelectuais comea a se instalar no terreno, com umaretomada de admirao pelas antigas obras pags, um desejo de usufruir os bens presentes eum otimismo sorridente para o futuro, que os engenheiros j povoam de mquinasfantsticas que tornaro a vida mais agradvel. O Cu no esquecido, por certo, mas, porenquanto, no h pressa" (Minois, 1990: 291).

    Nesse ambiente, muitos pensadores se tornam audaciosos na crtica viso demundo tradicional e aos valores perpetuados pela teologia medieval, como o revelam oElogio Loucura e o Pantagruel. Contraditoriamente, Savonarola foi contemporneo deDa Vinci, mas enquanto o primeiro foi queimado na fogueira, o segundo foi patrocinadopelo papado.

    O pensamento aristotlico, to importante na teologia medieval e na cinciatradicional, que s existia no interior do discurso teolgico encompassante, j vinha sendoatacado desde o occamismo e o nominalismo do sculo XIV. Com Aristteles, tambm adoutrina de Toms de Aquino era posta em dvida; de fato, o que se atacava era bem maiso aristotelismo escolstico.

    Defensores da fsica aristotlica por certo existiram, notadamente na Alemanha,mesmo quando ela se contrapunha f. o caso de Sunczel que, em 1499 faz reviver oprincpio da "dupla verdade" em sua Collecta et exercitata in octo libris physicorumaristotelis: a f infalvel segundo a razo sobrenatural e Aristteles infalvel segundo arazo natural. Para Aristteles, o mundo no teve incio; para a f crist, o mundo foi criadona primavera do ano 5199 AC. Tanto Aristteles como a f so verdadeiros: para o

  • 6primeiro, nada vem do nada e portanto, partindo da razo natural, estava correto. Pela razonatural ele no poderia ter descoberto como o mundo havia sido criado.

    A prpria f, para Sunczel, tambm conteria ensinamentos cientficos, como, porexemplo, uma "teoria do movimento" que incorporava no apenas a resistncia do meio,mas igualmente o princpio de que qualquer coisa natural limitada em sua ao.Outros alemes, contudo, j preferiam a cincia experimental parisiense, como Eisennach,professor de Lutero.

    Em meados do sculo XV o Papado ainda tenta impor a cincia aristotlica. Em1452 Nicolau V torna o pensamento aristotlico a doutrina oficial da Universidade de Paris.Pouco depois, em 1473, face fora do nominalismo dentro do prprio pensamentoteolgico, o rei Luiz XI decreta que as idias de Aristteles e Toms de Aquino devem serensinadas e dogmatizadas como mais adequadas que aquelas de Occam, Marsile, Albertode Saxe e outros. No se tratava apenas, preciso ressaltar, de disputas relativas cinciaem sua relao com a f, mas tambm de um confronto de ideologias em que onominalismo, constitutivo histrico do individualismo, se contrapunha a uma percepohierrquica e "holista" do mundo social.

    As novas tendncias eram, contudo, mais fortes que a resistncia tradicional e em1481 foi novamente autorizada a leitura dos textos nominalistas.

    Ambas as tendncias, contudo, criavam impasses para a cincia. A snteseglobalisante teolgico-cientfica que combinava o aristotelismo com o tomismo organizouo saber enquanto a cincia, antes do experimentalismo e da nova matemtica, era ainda pordemais dbil para se constituir em pensamento autnomo. Na passagem do sculo XV parao XVI, porm, j se colocava a contradio entre uma cincia subordinada, ou englobadanum discurso teolgico, e a necessidade da crtica como condio do avano doconhecimento. Mais tarde iria se colocar a disputa entre a verdade revelada pela f e oexperimentalismo.

    Se a sntese aristotlico-tomista se fundava na razo, ela impunha os limites dodogma. O nominalismo dualista por sua vez separava f e razo atravs do artifcio dadupla verdade, ou subordinava a segunda primeira em caso de contradio flagrante comas Escrituras. A cincia servia para confirmar a f e os sbios, em sua maioria clrigos, seocupavam, por exemplo, em produzir argumentos fsicos para explicar como Deus haviaseparado a terra do mar face constatao de que, dada a diferena de gravidade, a guadeveria recobrir todo o planeta. A metafsica de tais explicaes era claramente finalista epartia do princpio da harmonia. Como dizia Paulo de Burgos:

    "Era necessrio que em algumas partes a terra no fosse coberta pela gua; eranecessrio em vista de um fim, em vista da habitao dos seres animados. A sabedoriadivina, que disps todas as coisas com harmonia, desejou que o elemento gua, ainda queguardando sua esfericidade natural, tivesse um centro separado do centro da terra e douniverso" (Apud Minois, 1990: 296).

    O argumento expressava de forma clara e inequvoca o princpio do uso danatureza pelo homem, ao qual voltarei mais tarde.

    Tanto a geologia como a zoologia se viam bloqueadas pela f, e nem sempre sepodia aplicar o princpio da "dupla verdade". Se o mundo havia sido criado segundo os

  • 7clculos temporais bblicos (temporalidade retida ainda por Newton, cientista puritano ps-renascentista que faz a passagem do sculo XVII para o Iluminismo, em uma de suasvertentes) e se a Criao era perfeita, o relevo atual deveria ser o mesmo do momento daCriao. Se o centro da Terra era gneo, o fogo central confirmava a crena no inferno, doqual eram provas o vulcanismo e os terremotos. Mesmo depois do sucesso da minerao naEuropa Central, as cavernas eram consideradas habitao de demnios.

    A classificao zoolgica obedecia definio bblica, hierarquia da Ordemdos Seres que demonstrava a ordem de aperfeioamento desejada por Deus e quejustificava o princpio do uso do mundo pelo homem, estabelecido pela divindade. Essamesma classificao perdurou at bem depois do Renascimento, criando problemas paraLinneu e para Buffon, os pais da sistemtica taxonmica moderna. Os fsseis encontradosem terra firme eram explicados pelo Dilvio, seja por Cardan, por Da Vinci (que noutrocontexto se rebela contra o escolasticismo) e por outros.

    A atitude piedosa era de condenao do vo esforo de conhecimento da natureza.De que servir o conhecimento deste mundo quando ele tiver terminado? No dia do JuzoFinal os homens no sero inquiridos sobre o que sabem, mas sobre o que fizeram. Aclebre obra do sculo XV, Imitao de Cristo, enfatizava a inutilidade do conhecimentopara a salvao da alma e mesmo seu perigo, j que conduzia ao orgulho. Para muitospensadores do sculo XVI, como Pico de La Mirandola, o mundo era animado, a naturezaera viva, includos os minerais e os astros. O ressurgimento do platonismo reforava aconfuso entre esprito e matria. O mundo possui uma alma que opera incessantementesobre o universo.

    Por sua ao os elementos se transformam uns nos outros, o que estimulava astentativas dos alquimistas. Para Pico de La Mirandola, a magia nada mais fazia seno trazer luz as foras distribudas por Deus pela natureza. Aparentemente, tais concepes noeram favorveis constituio de um pensamento cientfico no sentido moderno do termo,mas Pico de la Mirandola foi, paradoxalmente, um dos estimuladores das novas idias apartir de seu prprio misticismo e um dos principais representantes do novoantropocentrismo que iria transformar a noo de tempo; e a magia espicaou a imaginaocientfica.

    O esforo empreendido pela Igreja no sentido de dessacralizar o mundo pago,esvaziando-o de sua multido de divindades, poderia ter estimulado o surgimento de umacincia moderna, se a mesma Igreja, ainda no incio do sculo XVII, no continuase aestimular a crena na existncia de foras misteriosas nos elementos naturais e adesestimular o estudo quantitativo dos fenmenos naturais, em contraposio ao que iriafazer depois o calvinismo.

    Durante o sculo XVI a alta hierarquia da Igreja, assim como reis e prncipes, seutilizavam da astrologia. O Prognosticatio de Lichtenberger, por exemplo, foi reeditadotrinta e cinco vezes, de 1500 a 1550, apesar da condenao crist aos esforos de previso -"o futuro a Deus pertence", como se diz ainda hoje. No entanto, se a crena na astrologiano era "cientfica", a idia de predio, central ao pensamento cientfico experimental,talvez tenha tido como antecessora a idia de previso da astrologia. A nova concepo dotempo trazida pela cincia, contrria ao imobilismo tradicional poderia ter sido antecipadapela astrologia.

    O sculo XVI parecia ser, portanto, uma combinao de saberes da Antiguidadeclssica, do cristianismo medieval, do paganismo popular. Intelectuais como Paracelso

  • 8partiam do princpio da correspondncia universal entre o cosmos, os fenmenos terrestrese o homem, levando-os a utilizar todas as fontes de saber possveis, sem se preocuparemcom eventuais contradies relativas aos dogmas cristos (Cf. Taton, 1969). Se oRenascimento realiza (parcialmente) o desmonte do aristotelismo, seu humanismo no capaz, contudo, de construir um novo sistema de explicao do mundo natural que viesse aocupar o lugar da escolstica medieval. S no sculo seguinte viria a surgir o universomatematizado, para desembocar na revoluo newtoniana da cincia quando novascorrespondncias universais, bem distintas daquelas de Paracelso, passam a dominar opensamento atravs do mecanicismo que d conta desde a gravitao dos astros at o"homem mquina".

    Paradoxalmente, o humanismo do sculo XVI estimulou tanto o exerccio darazo como o irracionalismo (Koyr, 1961). Se o humanismo foi o perodo da curiosidade eda acumulao de fatos, o discurso teolgico era ainda dominante. Por outro lado,inexistiam ainda os recursos matemticos bsicos: os sinais de + e - no existiam no mundoeuropeu antes do sculo XVI; o signo = s se tornou comum no sculo XVII; os signos x e: s surgiram em 1630.

    A prpria inveno da imprensa, contrariamente ao que se poderia imaginar,militou contra o esprito cientfico emergente pois, nos primeiros tempos, serviu paraafirmar a predominncia da palavra escrita sobre os fatos e a experimentao. A imprensadifundia, alm da Bblia - tornando as Escrituras Sagradas mais poderosas - os textos dacincia da Antiguidade e os relatos fabulosos de viajantes, repletos de seres monstruosos.Alm disso, como mostra Minois (1990), a hegemonia do escrito sobre a experincia revelada pela defasagem entre as descobertas geogrficas e seu registro em livroscientficos. Contudo, o humanismo eclesistico resulta como que num relaxamento do controle daIgreja sobre o saber cientfico. Ou mesmo um estmulo, durante os Papados de Nicolau V,fundador da biblioteca vaticana, Calixto III, Paulo II, Sixto VI e outros, at Paulo III,quando a reao contra a Reforma comea a comprometer a abertura dos espritos para comas novas hipteses cientficas.

    Lentamente vo sendo afrouxados os vnculos entre a "filosofia natural" e ateologia, inclusive com o surgimento de colgios submetidos ao poder civil. Assim comocom sua reao face Reforma Luterana, at o Conclio de Trento a Igreja se revelatolerante face s "heresias" cientficas.

    A secularizao do ensino, e com ele, do pensamento cientfico alcana todos osdomnios do saber, inclusive a medicina, que desde a Idade Mdia tinha interditada acirurgia e a dissecao de cadveres, visto que o corpo humano era tido como sagrado eque a Igreja abominava o sangue.

    Essa secularizao tinha, contudo, seus limites. A partir de 1500 a Faculdade deMedicina de Paris contava com trs clrigos apenas entre 21 doutores. Mas os expoentes damedicina da poca, como Fernel e Galeno, continuavam a pensar no contexto do discursoaristotlico/teolgico. Vsale e Servet inovam o pensamento mdico, mas a teoria de Servetsobre a circulao sangunea exposta numa obra teolgica, o Christianismi Restitutio, de1553. Com base no princpio bblico de que alma est no sangue, ele procura saber como seforma este ltimo para poder entender a alma. Se o contexto desse pensamento oteolgico, tal teologia no entanto se afasta consideravelmente daquela das igrejas, catlicaou protestante. Tanto assim que, com a retomada do controle religioso sobre o pensamento,

  • 9Vsale foi condenado morte pela Inquisio em 1561 e Servet foi queimado vivo peloscalvinistas em 1553.

    At o Conclio de Trento, a maioria dos pensadores inovadores pertencem aoclero, mesmo que no alta hierarquia. Esta incluia figuras como Nicolau de Cusa, mas amaioria, como Coprnico, pertenciam aos graus inferiores e deles no se esperavamatribuies propriamente religiosas. Seus cargos eram mais bem uma forma de subsidiar asatividades de pesquisa. Mesmo alguns radicais eram protegidos por bispos e cardeaishumanistas.

    No entanto, o ambiente intelectual no era, por certo, inteiramente liberal. Tantoassim que muitos inovadores eram levados a cultivar o segredo, como no caso deLeonardo, Fernel e Coprnico, que s publicou suas concluses muitos anos aps as terformulado. Alguns pesquisadores se organizavam em sociedades secretas, como a dosRosa-Cruses. bem verdade que boa parte dessa atitude de mistrio era devida a cimesintelectuais: Kepler no conseguia ter acesso s descobertas de Ticho Brahe, que por suavez negava qualquer dvida para com Coprnico.

    Havia ainda uma outra razo para tanto segredo e tanto isolamento dopesquisador: a cincia da poca, mesmo a inovadora, era especulativa; no havia comoverificar experimentalmente as hipteses e provar sua verdade contra um ambiente geralainda centrado numa explicao aristotlico/tomista do mundo. O receio da condenaopelo "establishment" intelectual, para no falar do poder religioso, se estende at o sculoXVII: Descartes e Spinoza cultivavam suas verdades em segredo, a salvo dos ataques deseus colegas.

    O humanismo dos papas, porm, estimulava o surgimento de novas hiptesessobre o mundo e, curiosamente, era em Roma, no centro da cristandade, que a tolernciaera maior, em contraste com a ortodoxia da periferia. Em Pdua ensinava-se o averroismo ea mortalidade da alma individual - no obstante a ineficaz condenao dessa doutrina porLeo X - sob o manto protetor da "dupla verdade": a razo contraria a f, mas isso no vosdeve impedir de crer.

    Pomponazzi, em 1516, atravs de seu De Immortalitate Animi, propunha umaconcepo materialista do homem, segundo a qual a alma depende do corpo e morre comele e segundo a qual tambm os milagres no existem, podendo ser explicados por forasnaturais. Para completar a audcia, atacou o pensamento de Toms de Aquino. Apesar doescndalo, protegido pela corte de Leo X, no sofreu perseguies.

    Numa combinao de crenas tradicionais e formulaes matemticas inovadoras,Cardan, protegido pelo papa e pelo futuro santo Carlos Borromeu (sobrinho de GregrioXIII), descria de milagres e praticava a astrologia, e defendia a separao completa entre arazo e a f. Vimercati afirmava que o mundo e o movimento eram eternos, que Deusassegura o movimento do "primeiro cu" (aquele que se encontra abaixo das estrelasimveis), mas que os fenmenos naturais so determinados por leis e no por aesmilagrosas. Palingenius afirmava em 1534 que existiam outros mundos habitados(possivelmente por influncia da descoberta de um "Novo Mundo", habitado, porColombo) alm da Terra, e que esta nada mais era que um pequeno planeta perdido nouniverso.

    Jean Bodin negava a Encarnao e a divindade de Jesus e, para ele tambm, f erazo se excluem mutuamente. Nem por isso sua carreira jurdica foi prejudicada. Alguns,por certo, exageravam suas audcias, como Dolet, queimado em Paris em 1546:

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    materialista, ele negava no somente a imortalidade da alma e os milagres, o que eratolervel, mas se atreveu a afirmar que as divindades nada mais eram seno idealizaesdos homens - de certa maneira antecipando a teoria durkheimiana da religio.

    A atitude crtica da poca se projetava mesmo sobre o exame da Bblia, sob oesprito de tolerncia de Roma, em contraste com a intolerncia do norte europeu, parte doqual, alis, tardiamente cristianizado. Valla propunha que o texto bblico devia sersubmetido crtica gramatical, tal como qualquer outro texto. Mostrou que a Vulgata,apesar do prestgio de So Jernimo, estava repleta de erros. Seu objetivo no era anti-religioso, mas sim o de restituir o texto, pela crtica gramatical, ao contedo original. Se aInquisio tentou process-lo, a proteo papal o manteve a salvo.

    Mesmo na Inglaterra o esprito de tolerncia se instalava. Possivelmenteinfluenciado pela crtica de Erasmo ao Novo Testamento, Hamond, j na segunda metadedo sculo XVI, qualificava este ltimo de "pura inveno", enquanto Hilton definia toda aBblia como um conjunto de fbulas. Hooker, por sua vez, sem rejeitar a Bblia, afirmavaque ela nos revelava verdades sobrenaturais, mas para o que dizia respeito ao mundonatural, o homem deveria utilizar a razo. Desejando que a Bblia nos diga mais do quepode, no campo da cincia, por exemplo, corremos o risco de faz-la dizer besteiras, quecomprometeriam seu carter sagrado (Minois, 1990).

    O Renascimento foi, pois, um perodo de considervel tolerncia para com aefervescncia intelectual da poca. Foi em meio a essa tolerncia e efervescncia que serealizaram duas "descobertas" que iniciaram a reinveno do mundo: a redefiniocopernicana do sistema planetrio e a descoberta de um Novo Mundo por Colombo. Deoutro lado, o mundo social hierrquico que j vinha sendo transformado no sentido de umamodernidade individualista, de dentro mesmo do discurso teolgico, assaltado pelaReforma, notadamente por Calvino e Zwinglio.

    O contraste entre os papas medievais e os do Renascimento corresponde a umatransformao das estruturas do ser humano, como sugere Gusdorf (1967). A revalorizaodo passado marca o esforo para fugir rigidez dos dogmas. O surgimento de umaarqueologia e de uma filologia apontam para uma nova apreciao do passado. Isto implicauma nova concepo do tempo, voltada para o futuro. A Idade Mdia havia vivido umaespcie de presente eterno, um tempo ritual, onde a liturgia da histria sagrada, semprerepetida, fornecia o quadro da vida social e individual. Uma espcie de "tempo cclico",como diria Bourdieu (1983); ou uma sociedade "fria", para usar a conhecida expresso deLvi-Strauss.

    "Nunca a cidade dos homens se quiz to exatamente idntica Cidade de Deus,que lhe serve de prottipo escatolgico, bloqueando nela o passado, o presente e o futuro"(Gusdorf, 1967: 54).

    O passado devia agora ser apreciado em seus prprios termos, em seus valoresprprios, para que novos valores pudessem ganhar sua temporalidade. O mundo deixava deser imvel no tempo, como deixava de ser imvel no espao csmico depois de Coprnico.Com a reavaliao do passado, h uma reavaliao da verdade: existe uma pluralidade deverdades - e por conseguinte, de escolhas. H, pois, um conflito de autoridade, e dapluralidade do presente emerge a possibilidade de um futuro. O imobilismo ontolgico

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    medieval, onde se fundiam passado, presente e futuro, foi substitudo por uma novaconscincia do tempo, um tempo humano. Pico de la Mirandola, ao qual j me refer, umexemplo dessa mudana para um novo antropocentrismo que gradativamente suplanta oteocentrismo imobilizante. O Renascimento comea a formular uma nova concepo dahistria e com ela, do homem.

    Mas h, claro, paradoxos. Se o descobrimento da Amrica impe um novotempo, preciso domestic-lo. simblicamente significativo que na Amrica novostemplos cristos sejam construdos sobre antigos templos pagos. Com isso se marca umtempo, mas se submete o passado.

    Os planetas e os continentes: Coprnico, Colombo e a reinveno do mundo exterior.

    As navegaes portuguesas e o descobrimento da Amrica tiveram um profundoimpacto sobre a cosmoviso europia, com consequncias para a filosofia/teologiatradicional. No menor, por certo, foi o impacto da nova concepo astronmica propostapor Coprnico. Em seu conjunto, provocaram o descentramento do mundo e desnortearamo pensamento tradicional.

    Coprnico e os planetas.

    A nova concepo do universo proposta por Coprnico vista, em geral, comouma revoluo, concepo at certo ponto adequada, visto que o sistema copernicanolidava com a revoluo dos planetas e da Terra em particular. Mas as idias copernicanas,mais do que uma revoluo podem ser melhor consideradas como um passo na direo darevoluo que tomaria lugar mais tarde, a partir de Galileu, e dele at Newton. Se opensamento de Coprnico era inovador, no era inteiramente novo, podendo ser melhorcaracterizado nos termos do "sincretismo" que caracterizou o Renascimento. Tudo dependedo ponto de vista pelo qual se o v.

    Existe um contraste fundamental entre a metafsica medieval e a moderna. Para opensamento medieval o homem ocupava um lugar mais significativo que a natureza fsicana obra da Criao; ele era o centro do universo e o mundo havia sido criado para seu uso.No pensamento moderno, a natureza mais determinante que o homem. Ademais, j desdea reinveno do atomismo por Galileu, a mesma matria que compe o universo,rompendo-se a oposio csmica entre o incorruptvel superior e o corruptvel inferior.

    Para a fsica medieval, no s o mundo existia para uso do homem, mas eratambm plenamente inteligvel pelos sentidos e com relao aos usos humanos dessemundo. As categorias bsicas desse pensamento, de inspirao aristotlico-tomista, eram asde substncia, essncia, matria, forma, quantidade e qualidade. Tais categorias foram, nopensamento moderno, substitudas por tempo, espao, massa, energia, etc., enquanto aquantidade ganha preeminncia sobre a qualidade (Burtt, 1983).

    A realidade dos objetos era o que podia ser precebido pelos sentidos. Assim o queparecia ser diferente era tido como diferente: o gelo, a gua e o vapor eram considerados

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    como substncias diferentes. O calor e o frio eram substncias diferentes. Dado que ossentidos distinguiam entre coisas leves e pesadas, tratava-se de qualidades distintas. Para ateleologia medieval as explicaes relativas ao propsito humano eram to verdadeirasquanto aquelas fundadas nas relaes entre as coisas: a proposio de que a chuva caiporque beneficia a atividade agrcola do homem era uma explicao to verdadeira quantoaquela que afirma que ela cai porque expelida das nuvens.

    Para o pensamento medieval em geral (descontadas algumas audcias, que seriamretomadas mais fortemente no ambiente humanista do Renascimento), a Terra, slida e emrepouso, era o centro do mundo, em torno do qual, para uso esttico e prtico do homem,girava o cu com suas estrelas, no a muita distncia.

    Aparentemente antropocntrico, era um mundo teocntrico (mesmo porque acincia s existia no interior do discurso teolgico). A ampulheta e o relgio mecnicopoderiam ser alegorias da mudana na concepo do tempo e do mundo. Na primeira temosum tempo como que encapsulado; no segundo, um tempo mecnico sem fim.

    "O Motor Imvel, de Aristteles, e o Pai personalizado, dos cristos, haviam-setornado uma s coisa. Havia uma Razo e um Amor eternos, que eram, ao mesmo tempo,Criador e Fim de todo o esquema csmico, e com os quais o homem, como ser dotado derazo e amor, tinha uma afinidade essencial. Essa afinidade era revelada na experinciareligiosa e tal experincia era, para o pensador medieval, o fato cientfico culminante.A razo se unira interiorizao mstica e ao xtase; seu momento culminante, a visotransitria, mas irresistivelmente arrebatadora, de Deus, era tambm o momento em quetodo o domnio do conhecimento humano ganhava significado final. O mundo da naturezaexistia para que pudesse ser conhecido e desfrutado pelo homem. E o homem existia, porsua vez, para que pudesse 'conhecer Deus e deleitar-se com ele para sempre'. Nesteparentesco, graciosamente concedido, entre o homem, a Razo e o Amor eternos reside,para a filosofia medieval, uma garantia de que todo o mundo natural, em sua forma atual,no era mais que um momento de um grande drama divino..." (Burtt, 1983: 13; grifosmeus).

    O mundo era, pois, um mundo humano, numa concepo teocntrica e o melhorexemplo era dado pela Divina Comdia, de Dante. A ele Burtt contrasta o ponto de vistamoderno de Russel:

    "Este, em resumo, mas ainda mais despropositado, mais carente de sentido, omundo que a cincia apresenta nossa crena ... Que o homem o produto de causas queno tinham qualquer previso do fim que estavam alcanando; que sua origem, seucrescimento, suas esperanas e medos, seus amores e crenas so apenas o resultado deposicionamentos acidentais de tomos; que nenhuma chama, nenhum herosmo, nenhumaintensidade de pensamento ou de sentimento podem preservar a vida individual alm-tmulo; que todos os trabalhos das eras, toda a devoo ... esto destinados extino navasta morte do sistema solar. ... Cega ao bem e ao mal, indiferente destruio, a matriaonipotente segue seu rumo implacvel ..." (Russel, B. - A Free Man's Worship (Mysticismand Logic). N. York, 1918; 46-47).

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    O mundo encantado do medievo , pois, desencantado pela cincia ao mesmotempo em que esta, produto do pensamento humano, transforma seus mistrios em leisuniversais e em regularidades matematizveis. De certa maneira, embora os modernos nofossem areligiosos, Deus, o ordenador do universo para uso do homem substitudo pelohomem, parte da ordem universal. Um mundo com propsito transformado num mundosem sentido. Desvendando as leis da natureza o homem alcana a verdade de um mundomecnico e auto-regulado. Aproxima-se perigosamente de Deus, de resto tornadoprescindvel. A cincia como a ma (ou seria a serpente?) da fabulao bblica.

    Se Coprnico, tanto quanto Kepler, acreditavam no heliocentrismo, porquepostularam sua verdade (ou sua hiptese, nos termos da poca) antes mesmo que existissemevidncias empricas que a sustentassem? Burtt (1983) sugere algumas possibilidades.

    A teoria copernicana nada acrescentava em preciso s previses astronmicasbaseadas na teoria ptolomaica, dados os instrumentos da poca, e em nada tornou maisseguras as navegaes, que j contavam com tcnicas e instrumentos nuticosaperfeioados, e que desde a segunda metade do sculo XV comeavam a mudar aconcepo europia do mundo terrestre. Inexistindo o telescpio, os sentidos pareciamconfirmar o conhecimento tradicional e nada podia provar que os corpos celestes tm amesma matria que a Terra.

    A filosofia natural do universo (a cincia da poca) satisfazia o pensamentoocidental (se que possvel falar em Ocidente, com referncia quele tempo). Os quatroelementos da filosofia grega - terra, gua, ar e fogo - em escala ascendente de valor, eramas categorias atravs das quais eram pensadas as coisas inanimadas, envolvendo asuposio de que os corpos celestes eram mais mveis (excetuando-se, claro, as estrelasfixas do cu empreo) e mais nobres que a Terra.

    Havia tambm objees teoria copernicana, que no podiam ser refutadas com atecnologia astronmica ento disponvel. A afirmao de que as estrelas fixas deviam teruma paralaxe anual - dados os 300 milhes de quilmetros que separam as posies daTerra a cada seis meses - s conseguiu ser empiricamente discutida a partir de 1838,quando Bessel descobriu essa paralaxe.

    Como argumenta Burtt, mesmo na ausncia de escrpulos religiosos,

    "...os homens de bom-senso de toda a Europa, especialmente os de mentalidademais emprica, teriam considerado pelo menos imprudente aceitar os frutos prematuros deuma imaginao descontrolada, em detrimento das indues slidas, construdasgradualmente atravs dos tempos, da experincia sensorial confirmada do homem. Dianteda grande nfase no empirismo, to caracterstico da filosofia atual, conveniente que noslembremos desse fato. Se tivessem vivido no sculo XVI, os empiristas contemporneosteriam sido os primeiros a desprezar a nova filosofia do universo" (Burtt, 1983: 30-31).

    Porque, ento, Coprnico props sua nova verdade? Ele poderia ter se limitado aresponder s crticas apenas afirmando que seu modelo era mais elegante, do ponto de vistamatemtico. Sua ordem matemtica da astronomia era mais simples e harmoniosa(reduzindo os oitenta epiciclos ptolomaicos a trinta e quatro, e representando os fenmenoscelestes atravs de crculos concntricos em torno do Sol). No entanto, pergunta Burtt,como podia tal elegncia se contrapor tanto s verdades teolgicas como s objees

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    filosfico/cientficas da poca?Por um lado, j existia na filosofia medieval o princpio de que a natureza

    governada pela simplicidade: Natura semper agit per vias brevissimas; natura nequeredundat in superfluis, neque deficit in necessariis. Foi com base nesse princpio queCoprnico atacou o modelo ptolomaico, e ele deve ter contribudo para a aceitao dateoria copernicana.

    O pensamento europeu operava, de uma maneira geral, por meio de uma filosofiahomocntrica e de uma fsica geocntrica. Mas Coprnico existiu no contexto doRenascimento. Do ponto de vista intelectual, o centro de interesse se deslocava para opassado, ultrapassando um aristotelismo aquinizado, descobrindo a filologia e osprimrdios da arqueologia. Comeara a revoluo comercial e descobria-se a Amrica.Com tudo isso, os limites do conhecimento tradicional comearam a parecer pequenos.Comeava-se a duvidar que a Europa fosse o centro da mundo terrestre. Ocorria umarevoluo religiosa e Roma deixava de ser o centro do mundo teolgico. Instaura-se advida que libera o pensamento. Nicolau de Cusa j propunha que no h nada semmovimento no universo, que este infinito e no tem centro. J que Londres e Paris seequiparavam a Roma e, mais do que isso, se o novo continente e o hemisfrio sul eramhabitados, porque no supor que a Terra e os demais corpos celestes partilhassem a mesmamatria?

    A geometria era a matemtica da poca de Coprnico, na medida em que opensamento era dependente de representaes espaciais. Os nmeros dos quais compostoo mundo, para os pitagricos significavam unidades geomtricas. A poca de Coprnicotambm adotou o mtodo geomtrico. No sculo XVI passou-se a fazer uso mais frequenteda lgebra, mas ainda era grande a dependncia relativa geometria. Reduzir termoscomplexos a termos simples significava reduzir figuras complexas a figuras simples. ParaBurtt (1983), essa reduo geomtrica fundamental para que se possa compreenderCoprnico e sua teoria da relatividade do movimento.

    At Galileu a astronomia era concebida como geometria celeste e antes de Hobbesa geometria constituia o espao real, e no um espao ideal. Por isso, o que era verdadeiropara a geometria era verdadeiro para a astronomia. Se a astronomia era um ramo dageometria e se as equaes algbricas eram solucionadas pela geometria, a reduoalgbrica deveria ser possvel na astronomia. Esta ltima deve, portanto, compartilhar darelatividade matemtica; consequentemente, indiferente o ponto de referncia tomadopara o sistema como um todo.

    Os astrnomos pr-copernicanos, como observavam um conjunto de relaes,tomavam seu prprio ponto de observao como ponto de referncia matemtico-geomtrico, tornando seu prprio planeta a Terra Firma, centro imvel ao qual tudo omais era referido. O que Coprnico fez foi uma reduo matemtica da geometriacomplexa de Ptolomeu. Do ponto de vista matemtico no se trata de discutir quais dosdois sistemas verdadeiro; ambos o so, pois ambos representam os fatos, mas o deCoprnico mais simples e harmonioso.

    Coprnico, ademais, havia descoberto que entre os antigos, o sistema ptolomaicono havia sido o nico a ser aceito. Em seu De Revolutionibus, afirmava ele

    "Portanto, aps considerar longamente esta incerteza da matemtica tradicional,

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    passou a intrigar-me o fato de que no existisse entre os filsofos ... uma explicaodefinida do movimento da mquina-mundo estabelecida em nosso favor pelo melhor emais sistemtico dos criadores. Por tal razo, tomei a mim a incumbncia de reler os livrosde todos os filsofos que pude obter, com vistas a verificar se qualquer deles alguma vezconjecturara que os movimentos das esferas do universo eram diferentes dos supostos pelosque ensinavam a matemtica nas escolas. ... Nicetas acreditara que a Terra tivessemovimento ... outros haviam sustentado a mesma opinio. ... porquanto eu sabia que aoutros antes de mim fora concedida a liberdade de imaginar no importa que crculos paraexplicar os fenmenos, pensei que tambm eu pudesse ter a liberdade de experimentar apossibilidade de, supondo que a Terra tenha algum movimento, descobrir demonstraesmais convincentes que as dos demais a respeito da revoluo da esfera celeste. ... se osmovimentos dos outros planetas fossem ... calculados com relao revoluo desteplaneta [ a Terra], no s os fenmenos dos demais decorriam disso, mas tambm a ordeme a magnitude de todos os planetas e as esferas do prprio cu se uniam de tal modo quenada podia ser alterado em nenhum ponto particular sem que se estabelecesse a confusonos demais pontos e em todo o universo" (Apud, Burtt, 1983: 39; grifos meus).

    Coprnico reivindicava, portanto, liberdade de pensamento, ainda que no planodas hipteses que "salvavam as aparncias". Os termos grifados me parecem sugestivos: ouniverso era por ele concebido como uma mquina, antecipando j o mecanicismo que, apartir de Galileu iria desembocar em Newton; Deus, o Criador, era sistemtico - significariaisso que ele agia segundo as leis da natureza, como afirmaria a teologia/cinciamodernizante de inspirao calvinista? Mas, o mundo havia sido criado "em nosso favor" -dos matemticos inovadores, ou seria ainda a concepo medieval de um mundo criadopara uso do homem, criao maior?

    Para Coprnico a questo no era colocada em termos de falso ou verdadeiro,mesmo porque ele se mantinha nos prudentes limites da hiptese. Ele apenas ampliou apergunta feita por Ptolomeu com respeito aos corpos celestes, incluindo o movimento daTerra, de modo a obter uma geometria mais simples. Coprnico, ento, apenas inseriu seupensamento nos desenvolvimentos matemticos que o haviam precedido e, por isso,considerava que apenas os matemticos poderiam apreciar seu sistema. Significativamente,seus principais defensores foram matemticos. Coprnico perguntara se eralegtimo tomar outro ponto de referncia que no a Terra. De um ponto de vistaestritamente matemtico, a resposta seria: sim. Mas o aristotelismo cristo percebia que nose tratava apenas de perguntar se astronomia era geometria. A questo era mais profunda,pois indagava se a Terra e o universo eram fundamentalmente uma estrutura matemtica,indagao que subvertia toda a cosmologia aristotlica.

    Contudo, o aristotelismo dominante coexistia em vrios crculos intelectuais como que Burtt chamou de um pano de fundo alternativo para o pensamento metafsico, "maispropcio ao desenvolvimento deste surpreendente movimento matemtico". Ele se refere aopitagorismo presente em Plato. A filosofia medieval era basicamente neoplatnica at que,a partir do sculo XIII, Aristteles viesse a se tornar, por assim dizer, hegemnico.

    O neoplatonismo pitagrico, porm, permaneceu influenciando muitas das maisbrilhantes mentes, como Bacon, Da Vinci, Nicolau de Cusa, Giordano Bruno e outros, e anfase estava na teoria dos nmeros, para Nicolau de Cusa o componente central dafilosofia de Plato.

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    "O mundo era uma harmonia infinita onde todas as coisas tm suas proporesmatemticas. Por conseguinte, 'conhecer sempre medir', 'o nmero o primeiro modelodas coisas na mente do criador'; em outras palavras, todo conhecimento seguro acessvel aohomem deve ser conhecimento matemtico. A mesma nfase aparece com vigor em Bruno,embora neste caso, mais ainda que em Cusa, o aspecto mstico-transcedental da teoria dosnmeros tendesse a ser o mais importante" (Burtt, 1983: 42).

    Havia, pois, uma aliana entre a matemtica e o misticismo.A inquiteo intelectual dos sculos XV e XVI conduziu a um renascimento do

    platonismo, como na academia de Florena, patrocinada pelos Medici, e que incluapensadores como Ficino. O pitagorismo ressurge com fora em Pico della Mirandola, comsua interpretao matemtica do mundo. Na Universidade de Bolonha destacava-seNovara, professor de Coprnico e crtico da concepo astronmica ptolomaica. Suaprincipal objeo era que o complicado sistema de Ptolomeu violava o princpio daharmonia matemtica do universo.

    Sob tais influncias, Coprnico se convencia de que

    "... o universo integralmente composto de nmeros e, por conseguinte, o quequer que fosse matematicamente verdadeiro seria real ou astronomicamente verdadeiro. ...portanto, o princpio da relatividade dos valores matemticos aplicava-se ao domniohumano, assim como a qualquer outra parte do reino astronmico ... a converso das coisasna nova viso do mundo no era mais que uma reduo matemtica ... em um sistemasimples, belo e harmonioso, com o encorajamento propiciado pelo renovado platonismo"(Burtt, 1983: 43).

    Mas, a elegncia matemtica tinha uma implicao teolgico/metafsicafundamental: a Terra no era diferente dos demais corpos celestes, alm, naturalmente, dedeixar de ser o centro do mundo e, portanto, da Criao.

    Em parte, as novas concepes sobre o universo foram antecipadas por Nicolau deCusa no clima de tolerncia do Renascimento. O autor de Sobre a Douta Ignorncia,escrito ainda em 1440, propunha a reforma moral da Igreja e o entendimento com osHussitas (hereges do sculo XV) e com o Islam. Defendia a idia de que outros planetaseram habitados. De certa forma, suas idias eram mais audaciosas que as de Coprnico, noplano cientfico, e j antecipava alguns dos princpios moralisantes de Lutero, o que no oimpediu de tornar-se cardeal.

    Seu livro expressa seu ceticismo quanto possibilidade do homem alcanar averdade: "Quanto mais sbio se torna o homem, mais ele saber que ignorante". Ohomem no pode alcanar certezas e o objetivo da cincia se limita a dar conta dasaparncias, traduzindo o que se percebe pelos sentidos numa linguagem de smbolosmatemticos. Embora utilizando a noo medieval de "hipteses", a partir desse princpioele constroi uma "metafsica da cincia" no muito distante da futura concepo modernado mundo (e junto com ele, de Deus e do homem). Para Nicolau de Cusa a cincia se fundana matemtica:

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    "O que o homem possui, em virtude de sua fora intelectual, o poder de compore de analisar as aparncias naturais e torn-las aparncias intelectuais e artificiais, signosconceituais ... atravs dos signos e da palavra [razo] que o homem faz a cincia dascoisas reais, como Deus fez o mundo ...Pela geometria, Deus figurou a proporo doselementos de tal forma que desta proporo resulta a solidez, a estabilidade e a mobilidadesegundo as condies que ele desejou ... os elementos foram portanto constituidos por Deussegundo uma ordem admirvel; ele criou todas as coisas com nmero, peso e medida; onmero da alada da aritmtica, o peso cabe geometria, a medida msica" (ApudMinois, 1990: 322).

    Deus era, portanto, racional. Mais do que isso, o Deus criador era um matemtico,tal como o Grande Arquiteto da maonaria. O dever do cientista era medir todas as coisas,quantificar os elementos. No obstante seu ceticismo, pela razo o homem poderia chegar lgica da Criao, uma vez desvendada sua linguagem simblica.

    Suas idias sobre astronomia foram revolucionrias em outro sentido ainda: ouniverso nem finito nem infinito, ele indefinido, sem centro nem circunferncia. Eleno pode ser apreendido pela limitada percepo de tempo e espao ento vigente. Operigo de tais idias para a concepo teolgica tradicional do mundo evidente, inclusivepara a concepo da ordem social.

    " impossvel, considerando os movimentos variados das rbitas celestes, atribuir mquina do mundo qualquer centro fixo e imvel, seja ele nossa terra sensvel ou o ar,ou o fogo, ou qualquer elemento que desejais ... Se o mundo tivesse um centro, ele teriatambm uma circunferncia e conteria nele comeo e fim, e este mundo seria limitado porum outro mundo ... A terra no o centro nem da oitava esfera nem de esfera alguma...Onde quer que se situe o observador, ele se acreditar estar no centro de tudo" (Apud,Minois, 1990: 323; grifos meus).

    Nicolau de Cusa j antecipava, pois, o mecanicismo newtoniano. Mais do queisso, a prpria Criao, tal como tradicionalmente concebida, era posta em cheque. Seurelativismo ("Onde quer que se situe o observador ...") era, certamente, revolucionrio.

    No pensamento de Nicolau de Cusa j se constita um domnio experimental -independente da ontologia teolgica que englobava toda a realidade - que expressa umaautonomia da criao intelectual humana e uma nova teoria do conhecimento. H nele umaruptura entre o pensamento divino e o humano, este ltimo excludo da verdade absoluta; atotalidade lhe escapa. Sua teoria crtica do conhecimento contradiz a utopia da sntesemedieval que tentava inscrever o todo, do cu terra, dos astros aos homens, na mesmaordem de determinaes. O campo do conhecimento possvel para o homem, por serlimitado, contudo aberto pesquisa, notadamente pelos caminhos progressivos damatemtica.

    Mas isto no significa que Nicolau de Cusa, embora seu pensamento fosse maislivre, fosse um livre-pensador. Suas representaes cientficas no excluam asrepresentaes teolgicas. Estas e as crenas tradicionais se entrelaavam com suasrepresentaes mais inovadoras, como ocorria, ademais, com a maior parte dos pensadoresda poca. Filosofia da natureza e magia, passando pela alquimia, se interpenetravam em

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    Pico de la Mirandola, Paracelso, Giordano Bruno, Campanella e outros. Mesmo aquelesconsiderados fundadores do mtodo experimental e do conhecimento positivo no estavamlivres dessa ambiguidade, como Tycho Brahe e Coprnico. Seu pensamento no era "cientfico" no sentido moderno do termo. Deus estavasempre presente em sua obra. Para ele, apenas absorvendo-se em Deus seria possvel ter aintuio da verdade. Mas era cientificamente antecipatrio e teolgicamente perigoso,negando a existncia de pontos fixos. Se no foi condenado pela Igreja, isto se deve aoesprito de tolerncia da poca e ao fato de formular suas idias sob o carter de "purashipteses" para "salvar as aparncias", recurso de que se valiam os intelectuais anti-tomistas para "salvar suas idias" (e frequentemente para salvarem a si mesmos).

    Se o Renascimento no foi propriamente uma revoluo foi, sem dvida, ummomento fundamental no desenvolvimento das idias e da cultura ocidental. Contrastadoao pensamento medieval - embora neste, como foi visto, j se antecipava a modernidade,desde Scott e Occam - ele marcou um novo espao mental, segundo a expresso deGusdorf.

    "A imagem mesma de "renascimento" designa uma espcie de transferncia detradies, a tomada de conscincia de uma ruptura e de uma nova continuidade. A vidaespiritual ... retoma o tronco sempre vivaz da cultura antiga, libertada de todos ossedimentos que a dissimulavam. A Reforma tambm se apresenta como um retorno sfontes evanglicas, reencontradas em sua autenticidade" (Gusdorf, 1967: 54).

    Mas foi um retorno crtico Antiguidade, como se viu pelo ataque cosmologiaaristotlica. Ademais, como ressaltou o prprio Gusdorf, a ruptura tinha mais o carter deum "sincretismo".

    O sculo XIV j havia sido um sculo de dvidas e contestaes da dogmtica eda cincia aristotlico/tomista, notadamente no que diz respeito "grande sntese"imaginada por Toms de Aquino. Para os nominalistas a f deve se limitar s questesespirituais e sobrenaturais, ao divino, mas no lhe cabia explicar a natureza. O saber sedividia em verdades espirituais e verdades cientficas. Estavam longe de serem areligiosos;de fato, eram clrigos, e suas especulaes sobre o mundo natural derivavam do axioma deque, sendo tudo possvel para Deus, poder-se-ia especular sobre a rotao da terra e sobre aeternidade do mundo. Ao mesmo tempo, ensaiava-se uma mudana de linguagem: negandoa possibilidade de uma cincia das essncias, mas apenas do particular concreto, adotaramuma linguagem matemtica para o desenvolvimento de uma lgica formal precisa, queantecipava a passagem de uma fsica das qualidades para outra, das quantidades.

    Guilherme de Occam foi por certo um dos principais expoentes dessenominalismo, para o qual as coisas devem ser distinguidas das palavras (sinais) e paraquem f e razo deveriam ser inteiramente autnomas, uma com relao outra, visto queno podem lidar com as mesmas verdades. Para ele, a cincia diz respeito apenas aoindividual, ao particular, ao imediatamente percebido. Gneros e espcies no existem emsi mesmos, so apenas vocbulos, contrariamente ao que afirmava a filosofia tradicionalque atribuia existncia real a tais "substncias segundas". O esprito s conhece objetosindividuais. Os termos universais so abstraes, so signos que compoem a linguagemsimblica da cincia que dela se serve para construir representaes que s existem em

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    nossa mente.Essa concepo do mundo e da mente que o representa j aponta para uma

    modernidade, tanto no campo da cincia da natureza quanto no campo ideolgico darepresentao da sociedade, constituda, atomisticamente, por indivduos. Opunha-se,portanto, percepo tomista do indivduo.

    O esprito s conhece as relaes entre objetos por intuio e para express-lasconstroi uma linguagem de signos e uma lgica formal. A relao de causalidade indemonstrvel, apenas uma relao formal existente no plano da linguagem matemtica.

    Igualmente indemonstrveis so as verdades religiosas. Deus existe? A nicaexistncia de que se pode ter certeza aquela que percebida intuitivamente. A prova daexistncia de Deus, dada pela cosmologia de Toms de Aquino, se baseia numa concepoequivocada do universo, isto , sobre a necessidade de um primeiro movimento, de umaCausa Primeira. Tampouco se podem provar os atributos de Deus, como a unicidade, aimutabilidade, o todo poder e a infinitude, visto que s podemos conhecer os opostosdesses atributos, a pluralidade, a mudana, a limitao do poder e a finitude. Tampouco sepode provar a criao do mundo, pois nos encontraramos face a uma eternidade antes edepois dele, o que seria absurdo. Podemos apenas crer na existncia de Deus ou na criaodo mundo. S a f nos pode dar certeza nesse domnio, mas no a razo.

    No entanto, Guilherme de Occam permanece inequivocamente religioso: f erazo so separadas, mas se uma verdade de razo contradiz uma verdade de f, estaltima que deve prevalescer.

    A crtica fsica aristotlico/tomista abre caminho a novas perspectivas: apossibilidade de um universo infinito, derivado do prprio poder divino; a relao entre otodo e a parte; a possibilidade de que o mundo seja composto da mesma matria quecompe tanto os corpos celestes quanto os inferiores (contrariando a representaotradicional de que os corpos inferiores so corruptveis, em contraposio aos celestes); apossibilidade de uma nova teoria do movimento que antecipa a noo de inrcia, e de umateoria da queda dos corpos informada no pela explicao aristotlica de que os gravesprocuram encontrar seu lugar natural (o que tem implicaes para uma teoria hierrquica dasociedade), mas pela existncia de uma atrao exercida pela massa terrestre. Se, para ele, provvel que a Terra seja imvel, no se trata de uma necessidade lgica.

    Bem antes de Coprnico, e mais ainda de Galileu, portanto, j circulavam idias"modernas" formuladas por telogos, sem maiores oposies por parte da Igreja. De umlado, esta ltima tinha problemas mais importantes para resolver, como o cisma queinstituiu o papado de Avignon. De outro lado, tratava-se apenas de idias destinadas a"salvar as aparncias".

    Se Occam s aceitava como certeza aquilo que resulta da experincia direta, tudoo que podemos fazer, em funo de nossa experincia, admitir hipteses que dm conta omelhor possvel, das aparncias sensveis. Ainda que apenas no plano das hipteses, abrem-se novas possibilidades: face ao mundo imutvel do pensamento medieval, onde todos osseres tm um lugar definido numa ordem hierrquica, o mundo de Occam mvel e aberto.

    "... aberto sobre a infinitude do tempo e do espao, aberto sobre um progressoindefinido; nenhuma natureza fixa, nenhuma explicao definitiva, mas uma sequncia de

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    hipteses que dm conta da experincia de forma cada vez melhor" (Minois, 1990: 262).

    Occam foi seguido por vrios pensadores crticos. Nicolau de Autrecourt,discpulo parisiense do nominalista britnico, por exemplo, afirmava que era melhorestudar a natureza que reler Aristteles, mesmo que no se pudesse ter a esperana dealcanar a verdade, e propunha, atravs de sua teoria atomista, hipteses bastanteaudaciosas face aos dogmas da Igreja: o mundo se compe de tomos indivisveis dotadosde movimento incessante que os leva a se combinar e recombinar para formar assubstncias. Se os tomos se dissociam desaparece a forma. Gerao e corrupo nada maisso que movimentos de tomos.

    Uma teoria que reduzia o universo a partculas simples e idnticas contrariava adoutrina que afirmava a diferena de natureza entre substncias nobres e inferiores. Maisperigoso ainda era o atomismo quando lanava dvidas sobre o prprio mistrio daEucaristia, como ocorreria mais tarde com Galileu.

    Buridan, occamista moderado, foi outro proponente de idias modernas.Precavidamente, atacava a fsica de Aristteles partindo do princpio de que a cincia deviarecorrer f nas questes que ultrapassasssem a razo. Assim, se Aristteles afirmara aimpossibilidade da existncia de mltiplos mundos, tal afirmao verdadeira nos termosda fsica aristotlica. Mas Deus no era aristotlico. Se a existncia de outros mundos no possvel desde o ponto de vista da razo natural, ela possvel, contudo, de maneiraabsoluta pois, se Deus criou este mundo, ele poderia ter criado vrios outros.

    O movimento dos astros o levou a formular a hiptese do impetus, semelhante hiptese de Occam: para o tomismo aristotlico os astros so movidos, cada um, por umainteligncia divina (Toms de Aquino havia transformado essas inteligncias em anjos).Buridan no v necessidade dessas inteligncias: Deus imprimiu o impetus inicial e, naausncia de qualquer resistncia no meio ambiente, os corpos celestes continuaram a semover. No deixa de haver nessa hiptese uma semelhana com a futura conceponewtoniana do universo: se as esferas celestes se movem por si mesmas em decorrncia deum princpio da fsica, o universo se torna mecnico.

    Nicolau Oresme, em seu Tratado do Cu e do Mundo, de 1377, demonstrara,atravs de argumentos fsicos, que a Terra que se move, antecipando Coprnico, eacrescenta outros argumentos, teolgicos, para mostrar que no h motivos para que aIgreja se oponha a seu ponto de vista. Se as Escrituras falam do nascer e do pr do Sol e deseu movimento no cu, assim como da famosa passagem em que Deus parou o Sol em seumovimento, trata-se da mesma linguagem que fala do arrependimento de Deus, de suaclera ou que Ele se acalmou. Isto , trata-se de uma linguagem que no deve ser tomadaliteralmente.

    Na verdade, diz ele, mais razovel supor que Deus parou a Terra e no o Solpois, quando Ele faz um milagre, o faz de maneira a interferir o menos possvel na ordemda natureza. mais de acordo com a razo supor que ele parou um corpo minsculo comoa Terra do que imensas esferas celestes. Deus agiria, ento, de acordo com o princpio"cientfico" da simplicidade.

    O que ele propunha tem o mesmo sentido do que afirmou Joo Paulo II, em 1981:a Bblia no um tratado cientfico a ser tomado ao p da letra. Deus, atravs da Bblia, seexpressava de acordo com a cosmologia da poca. Mas Nicolau de Oresme propunha ainda

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    outra coisa: Deus age segundo os princpios da razo.Suas propostas vo ainda mais longe: para alm do cu, existe um espao

    indefinido, incorpreo, indivisvel que nada mais seno o prprio Deus, a imensidade deDeus intemporal e indivisvel. A semelhana com o espao absoluto de Newton clara.

    Se ele nunca foi incomodado, apesar de anunciar o heliocentrismo e o universoinfinito, isto se deve, de um lado, ao fato de apresentar suas idias, precavidamente, comohipteses destinadas a salvar as aparncias e no como verdades comprovadas. Mas haviaainda outra razo para a tolerncia: a impossibilidade de demonstrao experimental dashipteses propostas, em decorrncia do profundo hiato entre os intelectuais que produzemespeculaes tericas e os recursos tcnicos.

    Como mostra Le Goff (1988), Buridan estava prximo ao "mpeto" de Galileu eda "quantidade de movimento" de Descartes; Alberto de Saxe, discpulo de Guilherme deOccam, influenciou a esttica at o sculo XVII. Quanto a Nicolau Oresme, ele teria sido opredecessor imediato de Coprnico e suas demonstraes se baseavam em argumentosmuito mais claros e precisos que os do prprio Coprnico. Mas,

    "... ainda que esses sbios tenham tido essas intuies notveis, elaspermaneceram estreis por longo tempo. Antes de se tornarem fecundas, esbarravam nospontos de estrangulamento da cincia medieval: a ausncia de um simbolismo cientficocapaz de traduzir em frmulas claras e suscetveis de aplicaes extensas e fceis osprincpios de sua cincia, o atraso das tcnicas, incapazes de tirar partido das descobertastericas, a tirania da Teologia, que impedia os 'artistas' de disporem de noes cientficasclaras" (Le Goff, 1988: 104).

    O prprio carter hierrquico e estamental da sociedade, que beneficiavasocialmente os intelectuais (em sua maioria clrigos), solapava o progresso da cincia.Recrutados segundo princpios hereditrios, os universitrios se constituam numa espciede aristocracia.

    "Eles transformam seus hbitos e os atributos de sua funo em smbolos denobreza. O plpito, recoberto por um dossel de altura cada vez mais senhorial, os isola, osexalta e os engrandece. O anel de ouro e o capuz que recebem no dia do conventuspublicus ou do inceptio, so cada vez menos insgnias da funo e cada vez maisemblemas de prestgio. Eles portam uma longa toga, um capuz de pele, frequentementeuma gola de arminho e, acima de tudo, aquelas longas luvas que so na Idade Mdiasmbolo de nvel social e de poder. ... As festas de doutorado so acompanhadas decomemoraes que se assemelham cada vez mais s que do os nobres: bailes,representaes teatrais e torneios" (Le Goff, 1988: 99; grifos no original).

    A mudana no significado do ttulo de mestre ilustrativa: no sculo XII omagister era o chefe da oficina. J no sculo XIV magister se torna o equivalente adominus, senhor. Os mestres de Bolonha eram "nobilis viri et primari cives" (homensnobres e principais cidados); os estudantes chamavam seus professores de dominus meus(meu senhor), evocando laos de vassalagem.

    Em contraste, os "artistas", pertenciam a um estamento inferior, condizente com a

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    desvalorizao do trabalho.

    "Os intelectuais aceitam o ponto de vista que v com profundo desprezo otrabalho manual, o que se agravar no tempo do Humanismo ... j est longe o ideal que,nas cidades dos sculos XII e XIII, aproximava as artes liberais e as artes mecnicas, dentrode um dinamismo comum. Assim se consuma o divrcio, previsto na escolstica, entre ateoria e a prtica, entre a cincia e a tcnica. Ela bem visvel entre os mdicos. Aseparao se opera entre o mdico-erudito e o boticrio-ervrio, cirurgio ... Duasconfrarias diferentes - a religio se modela pela sociedade - os agrupam: a dos santosCosme e Damio para os primeiros, e a do Santo Sepulcro para os segundos. Percebe-seque entrave ser para o progresso da cincia esta diviso entre o mundo dos sbios e omundo dos prticos, o mundo cientfico e o mundo tcnico" (Le Goff, 1988: 100).

    H, pois, um paradoxo: se boa parte dos intelectuais tem idias inovadoras, eleseram, contudo, prisioneiros de uma ordem social-ideolgica conservadora. Seria necessrioque avanasse mais o processo ideolgico que, num movimento secular, conduzia passagem de uma ordem hierrquica - expressa at mesmo na utopia tomista de umaconcepo de mundo totalizante e unificada - para uma ordem individualista - quecorresponde a uma percepo atomista do universo. E que se instaurasse a reavaliao danoo de trabalho. A separao entre f e cincia, para se completar, demandaria umarevoluo conceitual que iria se realizar, a partir do sculo XVI, no interior do prpriocampo da teolgia. Mais adiante, veremos o sentido tomado pela Reforma neste particular.

    Por enquanto, a separao entre f e cincia era limitada pela separao entreespeculao terica e experimentao:

    "O sbio no dispe de nenhum instrumento de medida preciso que lhe permitissefazer progredir sua teoria. Durante muito tempo ele s podia se apoiar nas matemticas queconstituam o nico ponto slido da cincia do sculo XIV ... Mas as matemticas nopodiam fornecer seno uma demonstrao formal que a Igreja iria contestar enquanto nofossem apresentadas provas concretas" (Minois, 1990: 270).

    Como mostra Koyr (1961), falta de provas experimentais, a Igreja semprepodia opor s idias inovadoras o sistema de Aristteles que unia uma metafsica finalista experincia do senso comum. Contudo, no se pode minimizar o significado de umapercepo matemtica do universo regido por leis desvendveis pela razo, ainda antes doRenascimento. Essa percepo transforma a concepo do mundo, de Deus e do prpriohomem. Mas, por outro lado, a tenso entre f e cincia no foi resolvida pelos"renascentes", nem mais tarde pelos "iluminados". Ela prosseguiu at o sculo XIX,inclusive no campo da Antropologia, como revela a etnologia crist.

    Ao tempo de Coprnico, o padro hierrquico apontado por Le Goff aindaprevalescia. Mas, se o humanismo o preservou, por outro lado trouxe a tolerncia. Almdisso, os Descobrimentos j haviam abalado as certezas teolgicas.

    nesse contexto de idias que se inscreve Coprnico, com seu sistemaheliocntrico. Sua relao com os dois cristianismos foi curiosa.

    De incio, foi encorajado pelo alto clero catlico, at ser condenado pela Contra-

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    Reforma, em 1616. Foi encorajado tambm, entusiasticamente, por reformados comoRheticus, matemtico e professor da Universidade de Wittemberg, que em 1543 imprimesua teoria; mas foi duramente condenado por Lutero, em 1539, assim como porMelanchton, humanista reformado, em 1541.

    Mas Osiander, telogo reformado encarregado por Rheticus de cuidar da edio,era precavido e sugeriu um prefcio que deixasse claro que a teoria copernicana nopretendia explicar a realidade, mas apenas fornecer uma hiptese destinada a possibilitarmelhores clculos do movimento. Protestantes, tanto quanto catlicos, procuravam manterseparadas as hipteses da realidade, no s para salvar as aparncias dos fenmenos maspara salvar tambm as Escrituras.

    Para Koyr (1961) Coprnico foi um revolucionrio se visto no contextointelectual de seu tempo. Ele um smbolo do fim de um mundo e do comeo de outro.

    "Pergunto-me, todavia, se no preciso ir ainda mais longe: com efeito, se o cortedeterminado por Coprnico marca apenas o fim da Idade Mdia. Ele marca o fim de umperodo que abarca tanto a Idade Mdia como a Antiguidade clssica, pois somente apsCoprnico que o homem deixa de estar no centro do mundo e que o Cosmos deixa de estarordenado em torno dele.

    difcil, hoje, compreender e apreciar em sua grandeza efetiva o esforointelectual, a audcia e a coragem moral representados pela obra de Coprnico. Para ofazer, devemos esquecer o desenvolvimento intelectual de alguns sculos; devemos realizarum esforo para voltar atrs, para a certeza ingnua e confiante da imobilidade da Terra edo movimento dos cus" (Koyr, 1961: 15).

    Mais adiante veremos que Coprnico no foi to "revolucionrio" assim. Outros,antes de Coprnico, j haviam proposto cortes to ou mais audazes. No entanto, se Nicolaude Cusa propunha um mundo indefinido e sem centro (o que no era aceito por Coprnico),no propunha que a Terra se move ao redor do Sol. Nicolau de Oresme tampouco admitiatal movimento. Para Koyr nenhum dos dois pode ser considerado precursor de Coprnicoem sentido estrito. Mas, no h como negar que j haviam abalado as certezas de umcristianismo medieval imobilista e teocntrico.

    Com algumas excesses, como a de Tycho Brahe e Rheticus (nico discpulo queCoprnico teve em vida), que defendiam a verdade da concepo copernicana, a opiniopredominante no sculo XVI continuava a ser de que se tratava de uma hiptese, no sentidoprudente dado a esse termo. Uma hiptese que permitia aos astrnomos-matemticosutilizar os mtodos de Coprnico e, ao mesmo tempo, rejeitar a verdade cosmolgica deseu sistema.

    As idias de Occam, Nicolau de Cusa e outros precursores no tiveramrepercusso fora de um pequeno crculo de intelectuais, embora fossem o ponto inicial deum movimento que terminou em avalanche, desde outro ngulo, como ser visto depois.Por outro lado, o carter revolucionrio do sistema de Coprnico s se manifestouposteriormente:

    "Foi s mais tarde, bem mais tarde, quando se tornou evidente que a obra deCoprnico no se destinava apenas aos matemticos, quando se tornou claro que o golpe

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    desferido sobre o mundo geocntrico e antropocntrico era um golpe mortal; quando certasde suas implicaes metafsicas e religiosas foram desenvolvidas nos escritos de GiordanoBruno, que o velho mundo reagiu" (Koyr, 1961: 17).

    Reapreciado pela Contra-Reforma, num espao mental caracterizado pela triplaautoridade do clculo, do raciocnio e da revelao - espcie de "trplice aliana" ideolgicafundada na coerncia entre a filosofia, a cincia e a teologia, que reinstaurava oaristotelismo ameaado - Coprnico foi redescoberto como revolucionrio.

    Coprnico iniciava a desorganizao de um mundo centrado no homem e criadopara ele, segundo a reformulao crist da cincia de Aristteles. O geocentrismo desteltimo no era, em si mesmo, antropocntrico/teocntrico. Foi o cristianismo que fez daTerra o palco do drama csmico-divino da Queda, da Encarnao e de Redeno, dandoum sentido criao do mundo (que para Aristteles no havia sido criado) que exigia afuso entre geocentrismo e antropocentrismo/teocentrismo.

    Coprnico reivindicava para a cincia o direito de buscar a verdadeautonomamente, argumentando que apenas os matemticos poderiam julgar sua obra e que,para ser um bom astrnomo no bastava ser um bom cristo. Mas, a maioria dos telogosno percebia em sua teoria mais do que uma fico que possibilitava melhores clculos,como sugerira Osiander. De fato, foi apenas em 1728 que Bradley encontraria a primeiraprova de sua teoria, confirmada definitivamente apenas no sculo XIX!

    Doutor em direito cannico, clrigo num bispado medieval altamente envolvidoem questes polticas, Coprnico foi durante muito tempo secretrio e mdico,administrador dos bens do Captulo a que pertencia (ao qual retornou aps anos de estudoem Bolonha e Pdua). Alm de praticar a medicina escreveu um tratado sobre a moeda.Lentamente, em meio a suas outras atividades, foi desenvolvendo seus clculos e sua teoriaastronmica.

    Como mostra Koyr (1961), a teoria de Coprnico foi, a bem dizer, uma "meia-revoluo", menos radical que algumas hipteses anteriores. Seu universo continuavasendo um mundo fechado na esfera das estrelas fixas; no era ainda o espao infinito e ocu empreo continuava a ser a morada de Deus. Coprnico no foi um copernicano. Se ocentro do mundo mudara, por razes puramente matemticas, ele continuava sendo umponto fixo. Seu argumento continha, ademais, componentes teolgico-estticos: o Soldeveria ser o centro porque tinha um grau superior de perfeio, j que era a fonte da luz. Omundo tinha que ser esfrico porque a forma esfrica era a mais perfeita. A perfeio domundo se expressava tambm pela imobilidade das estrelas fixas, em contraste com omovimento do mundo inferior, corruptvel.

    Seus continuadores, como Tycho Brahe e Kepler tambm continuavamprisioneiros do "sincretismo" de que fala Gusdorf. O primeiro, se desenvolvia clculosprecisos, continuou preso a motivaes transcendentais. O segundo, se propunha leismatemticas rigorosas, inspirava-se tambm na mitologia antiga, identificando os astros sdivindades que controlavam o mundo. De fato, a crtica a Coprnico comeou com Brahe, no s por motivos cientficos,mas tambm pelo motivo religioso dado pela dificuldade de conciliar seu modelo com asEscrituras. Coprnico no foi um observador, embora tivesse realizado um certo nmero de

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    observaes, algumas das quais utilizadas em seu De Revolutionibus, e antes desta,publicadas num Almanaque, de 1535. Contudo, sua importncia no est na contribuiode novas evidncias resultantes da observao, mas na concepo de uma nova teoria,baseada em larga medida nos dados de Ptolomeu (que no ignorava teorias heliocntricasj formuladas em seu tempo), mais do que em novas observaes. Por isso mesmo, para osefeitos prticos do clculo das posies dos planetas, a astronomia de Coprnico no eramuito mais precisa que a de Ptolomeu. De fato, os navegadores navegavam to bemseguindo o sistema ptolomaico quanto o copernicano - tanto assim que realizaram as"grandes navegaes" que iriam transformar o mundo. O sistema ptolomaico, ademais, era de grande elegncia matemtica e, como dizKoyr (1961), uma das mais belas criaes do esprito humano. Combinando movimentoscirculares com o uso de excntricos e epiciclos era capaz de representar curvas fechadas erelaes matemticas entre dados de observao quase to bem como a matemticamoderna. verdade que Coprnico simplificou os clculos e aperfeioou a teoria da Lua.Mas a "revoluo copernicana" no est no aperfeioamento dos mtodos astronmicos, esim no estabelecimento de uma nova cosmologia - no s no sentido fsico mas tambm nosentido antropolgico do termo - uma nova "viso de mundo". Do ponto de vista da tcnicamatemtica Coprnico inovou pouco. Deslocando o centro do mundo para o Sol (ou maisprecisamente, para o centro da rbita da Terra) ele criou uma comoo csmica; colocou omundo, por assim dizer, de "ponta-cabea", mas no modificou a estrutura matemtica daastronomia.

    Mas, a astronomia no apenas matemtica, pois os corpos celestes so objetosreais. Do ponto de vista matemtico, as rbitas giram em torno de si mesmas sem que seuscentros sejam ocupados por nada. Isso contradiz a cosmologia aristotlica para a qual taismovimentos seriam impossveis. Colocando a Terra no centro dos movimentos, erapossvel atribuir aos movimentos dos planetas um conjunto de esferas concntricas. Porisso, tentava-se eliminar a contradio entre clculos e cosmologia aristotlicarepresentando a astronomia como uma pura questo de clculo e no como uma tentativade representar a realidade - uma "hiptese".

    Os axiomas do sistema de Coprnico partiram da sua percepo de umaimperfeio no sistema ptolomaico, como j se viu. O objetivo de Coprnico era o de tornarregulares os movimentos aparentes dos planetas. Para ele era absurdo que os corposcelestes, sendo absolutamente esfricos (e por isso, perfeitos) no se movessem de maneirauniforme (em rbitas circulares).

    O problema de Coprnico era, ento, o de introduzir uma ordem no universo - umordenamento de motivao metafsica - no presente no sistema ptolomaico, incapaz derepresentar os movimentos planetrios como movimentos circulares uniformes sem recursoa certos expedientes conceituais (como os "equantes") que no lhe pareciam conformes razo.

    Deve-se notar aqui que Coprnico era movido por uma espcie de estticareligiosa e no apenas por uma elegncia matemtica. De certa forma, mais do que clculosprticos, ele estava recriando (reinventando) o mundo, ou re-representando a Criaodivina, o que lhe exigia dois princpios metafsicos fundamentais: a Criao (representao)tinha de ser conforme razo; a Criao tinha de ser perfeita. perfeio dos corposcelestes (absolutamente esfricos, a forma perfeita) devia corresponder a perfeio dasrbitas.

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    Para criar seu sistema, mais conforme razo e Criao (paradoxalmenteterminou sendo condenado por isso mesmo), necessitava de certos axiomas: existe umnico centro comum de todas as rbitas celestes; o centro da Terra no o centro douniverso mas apenas da gravidade e da rbita lunar; todas as rbitas giram em torno do Solcomo em torno de seu ponto central e por isso que o Sol o centro do Universo; adistncia que separa a Terra do Sol insignificante quando comparada quela entre o Sol eas estrelas fixas; o movimento comum dos corpos celestes devido ao movimento da Terrae no do firmamento; o Sol imvel e seu movimento aparente resulta do movimento daTerra; as estaes e os movimentos dos planetas so aparentes, em decorrncia da projeono firmamento do movimento anual da Terra.

    Essas idias no causaram escndalo no mundo catlico de ento. Em 1523 oprprio cardeal arcebispo de Cpua o incentivava a publicar suas idias. Coprnico,contudo, "como bom pitagrico que era, estimava que os ensinamentos difceis e sublimesda filosofia no deviam servir de pasto aos vulgares mas, ao contrrio, permaneceremocultos e acessveis apenas a uma elite" (Koyr, 1961: 30).

    As idias de Coprnico foram pela primeira vez publicadas pelo reformadoRheticus, sob o ttulo Narratio Prima, na terceira pessoa. Rheticus se esforou emdemonstrar que seu mestre no desejava postular inovaes temerrias, enfatizando que suaastronomia era fiel ao princpio teolgico/astronmico da circularidade uniforme dasrbitas, assim como a Plato e aos pitagricos. Mais importante, seu sistema confirmava oprincpio metafsico da ordem da natureza:

    "Os matemticos, tanto quanto os mdicos devem convir que ... a Natureza nadafaz em vo e que nosso Autor to imensamente sbio que cada uma de suas obras no temapenas um uso, mas dois ou tres e frequentemente mais. Pois, quando vemos que este nicomovimento da Terra suficiente para produzir um nmero quase infinito de fenmenosaparentes, no devemos atribuir a Deus, o criador da natureza, a habilidade que observamosnos simples fabricantes de relgios?" (Rheticus - Narratio Prima: 461).

    A imagem do Deus relojoeiro, que iria fazer histria, seria retomada por Kepler,que identificava o mecanismo da Machina Mundi quele de um relgio. Outro dos defensores de Coprnico foi o reformado Osiander, luterano um tantohertico, condenado por Lutero e que, dada sua experincia com a rabies theologorum,percebia o perigo representado pelo sistema copernicano face verdade das Escrituras. Seuconselho ao astrnomo seguiu a prtica j tradicional - salvare apparentias. O valor dahiptese no estaria em sua verossemelhana mas em sua elegncia: a melhor hiptese no a mais verdadeira mas a mais simples e que permite os melhores clculos. Em carta aRheticus disse que hipteses podem existir muitas: "toda pessoa livre para inventar ashipteses mais convenientes e deve ser felicitada se for bem sucedida."

    Se Rheticus temia a reao de Lutero e de Melanchton, Osiander fora obrigado adeixar sua igreja de Nremberg. Por isso, se estava encantado com o sistema copernicano -e pouco importava que Coprnico fosse um clrigo catlico assim como pouco importava aeste ltimo que seus defensores fossem reformados - a ponto de redigir a famosaIntroduo apcrifa, esta expressava sua prudncia. O prprio Coprnico, contudo, era maiscorajoso, a ponto de defender o princpio de mathemata mathematicis scribuntur, isto ,

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    que s aos matemticos cabia discutir matemtica e que no bastava ser um telogo paraentender questes astronmicas.

    Na carta em que apresentou sua obra ao Papa Paulo III, Coprnico a justifica porvrias razes matemticas, como, por exemplo, a economia de movimentos, mas tambmpor se manter fiel ao princpio do movimento circular dos planetas e, o que lhe erafundamental, a simetria dos corpos constituintes do mundo. Seu sistema, dizia ele, permitiaconstruir um Universo perfeitamente ordenado; qualquer alterao em qualquer de suaspartes engendraria a confuso do Universo inteiro, o que ocorria justamente com o erro dese colocar a Terra no centro do mundo.

    Coprnico afirmava, pois, o princpio da ordem. Tanto a cincia quanto ateologia objetivam ordenar o mundo e ao mesmo tempo ordenar a si mesmas. Tanto quantoa cincia, a religio uma construo do mundo. O sistema de Coprnico, longe de ser umanegao do ordenamento teolgico, buscava afirm-lo, assim como ao ordenamentocientfico, atravs de sua insistncia na circularidade (movimento perfeito), na esfericidade(forma perfeita) e na simetria. Seu sistema, de fato, apenas proclamava a perfeio daCriao e criava uma imagem imperial.

    Porque o Sol no centro do sistema? Para que o Sol no tenha necessidade de viajaratravs do mundo para exercer seu poder, assim como o Imperador no corre de uma ladopara o outro afim de impor suas leis. Segundo Rheticus, tendo criado o Sol, "Deus ocolocou no centro da cena, governador da natureza, rei do Universo inteiro, resplandescenteem seu brilho divino". Mais ousado, Osiander propunha uma renovao da verdade bblica,face a uma verdade matemtica. Para o observador, o sistema de Coprnico mais complicado que o de Ptolomeue o prprio Galileu afirmara que ele era de difcil compreenso, destinado no ao pblicomas aos matemticos. Para o matemtico o sistema copernicano era superior, no porquereduzia o nmero de movimentos celestes, mas por sua uniformizao e regularizao; pelasistematizao do mundo incoerente de Aristteles e de Ptolomeu.

    A principal objeo de Coprnico ao aristotelismo que negava o movimento daTerra era a de que absurdo querer movimentar o locus e no o locatum. Este mesmoargumento seria mais tarde utilizado por Newton: absurdo tornar mvel o lugar mesmoonde se encontram as coisas. Este , de fato, um argumento aristotlico, mas para osaristotlicos, o Universo finito (enquanto que para Coprnico ele imenso, nomensurvel, ainda que no infinito).

    Alm disso, para os aristotlicos, h uma diferena qualitativa fundamental entrea Terra e os corpos celestes: a Terra pesada e os cus no tm peso. Para os aristotlicos,se o argumento copernicano se aplica logicamente a outros contextos, isso no ocorre nestecaso pois, para mover a Terra seria necessria uma fora exterior descomunal, mas omesmo no se exige para o movimento dos cus - eles se movem por sua prpria natureza eperfeio, ou melhor, so movidos por foras espirituais.

    Ademais, como a Terra um corpo grave ela no poderia se mover em torno aocentro do mundo pois, se o fizesse, tenderia para tal centro, ao contrrio dos astros que noso graves. Para os aristotlicos, o sistema copernicano introduziria uma desordempermanente no mundo. Seria melhor deixar a Terra em repouso no centro do mundo, seu"lugar natural".

    A resposta de Coprnico estava na rejeio da noo csmica de gravidade de

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    Aristteles, pela afirmao de que o peso no uma tendncia dos corpos graves para seulugar natural, mas uma tendncia de todos os corpos celestes, inclusive a Terra, a formaremum todo.

    "Essa tendncia natural dos semelhantes a se reunirem para formar um todo -ressureio de uma velha doutrina de Empdocles ou de Plato - est longe, por certo, dagravitao universal. Mas ela lhe abre o caminho e, por outro lado, ela contemimplicitamente a negao da noo mesmo de 'lugar natural'" (Koyr, 1961: 59).

    J se v, portanto, que o sistema de Coprnico no tinha apenas implicaesastronmicas, mas tambm sociolgicas, ao negar a idia de lugar natural; implicaesplenamente "cosmolgicas" no sentido antropolgico do termo. Lembremos que a teologiamedieval incluia um "pensamento social" estamental para o qual era bsica a idia de lugarnatural, para as coisas e para os homens, ordenado por Deus.

    Desde um ponto de vista antropolgico seu pensamento foi revolucionrio;tirando o homem do centro do mundo, criado para o uso do prprio homem na visoteleolgica tradicional, alterou no s o significado do mundo mas tambm o do homem.Ainda que disfaradas nas "hipteses" - e por isso toleradas pelo humanismo dos papas - asidias de Coprnico incluam implcitamente uma revoluo teolgica, e por isso,antropolgica.

    Como j mencionado, a cosmologia copernicana negava diferenas qualitativasentre a Terra e o mundo que lhe era exterior. Afirmando que as mesmas leis se aplicamtanto aos cus como Terra, ele coloca "a base da profunda transformao do pensamentohumano que a Histria veio a chamar de Revoluo Copernicana" (Koyr, 1961: 61).

    A astronomia de Coprnico implicava tambm um ponto de vista - no sentidoliteral da expresso - relativista: do ponto de vista da tica impossvel discernir se oobservador ou aquilo que ele observa, que se move. Um ponto de vista que, se levado paramais alm de sua literalidade tica, poderia ser incmodo para uma concepo do mundoabsolutista.

    Se Coprnico retem a noo de natureza dos corpos, ela se distingue radicalmenteda noo tradicional. Sua esttica geomtrica implica uma transformao na noo deforma: para a fsica medieval a noo de forma se refere a formas substanciais; paraCoprnico, pelo contrrio, ela diz respeito a formas geomtricas, o que permite a passagemde uma concepo qualitativa para outra, quantitativa, do mundo.

    Para a fsica tradicional, a forma substancial especfica e sua matriacorrespondente, determinava o movimento natural de um corpo (retilneo para os corpossub-lunares e circular para os corpos celestes). Para Coprnico a forma geomtrica quedetermina o movimento. Para ele a forma esfrica, forma mais perfeita, buscada por todosos corpos naturais em decorrncia da prpria perfeio. Tal forma no apenas a mais aptaao movimento, mas tambm sua causa suficiente. Ela engendra naturalmente omovimento mais perfeito e mais natural - o movimento circular.

    Isto tem consequncias para bem mais alm da astronomia: sendo a Terraigualmente esfrica, a ela se aplicam as mesmas leis de movimento dos corpos celestes.Participando da mesma forma e do mesmo movimento, a Terra no est em oposio aosdemais planetas como o

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    "... baixo mundo, cloaca da corrupo, mas forma com eles [os corpos celestes]um s e nico Universo.

    A geometrisao do conceito da forma coloca a Terra entre as estrelas e aeleva, por assim dizer, nos cus" (Koyr, 1961: 62; grifos meus).

    A concepo de Coprnico j mecnica, e o movimento circular uniforme(decorrente da forma geomtrica perfeita) a base de sua mecnica celeste, como causasuficiente. esse movimento (e essa forma) que coloca em funcionamento a machinamundi. No h, portanto, necessidade de qualquer motor externo, nem mesmo de umcentro fsico, como exigia a fsica aristotlica. Se o sistema copernicano "heliocntrico", isto significa que Coprnico colocou o Sol no centro do Universo, mas nono centro dos movimentos celestes. O centro dos movimentos celestes no estavalocalizado no Sol (se estivesse, Coprnico continuaria a pensar aristotelicamente) mas nocentro da rbita da Terra. O centro dos movimentos torna-se ento puramente matemtico,ou geomtrico.

    Seu sistema diferia do de Tycho Brahe pois, para este ltimo, os planetas giramem torno do Sol e o Sol, com todos os outros planetas, gira em torno da Terra imvel.Brahe imaginou seu prprio sistema para permitir o melhor clculo e ao mesmo tempopermanecer fiel verdade literal da Bblia