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www.ts.ucr.ac.cr 1 XVII SEMINÁRIO LATINOAMERICANO DE ESCUELAS DE TRABAJO SOCIAL. Itinerários da memória: interpelações produzidas por familiares de desaparecidos políticos no Brasil. Slets-17-029. Maria Lídia Souza da Silveira 1 E-mail: [email protected] Eixo temático: Cidadania. Mesa de Trabalho: Direitos Humanos. Palavras Chaves: Estado autoritário, sujeitos, mulheres, memória histórica, lutas sociais. RESUMO: O presente trabalho se propõe a empreender uma reflexão a partir de um entre os muitos acontecimentos ocultados da sociedade brasileira no período da ditadura militar: o dos desaparecidos políticos. Para além de sua dimensão de barbárie, trata-se de recuperar o envolvimento efetivo de alguns familiares – em particular, mães – na busca pela localização de seus filhos. Nesse movimento, sentimentos se alternam ou podem se apresentar como paradoxais, ao conciliar perda e luta, dor e recalque, esquecimento e indignação, conformismo e busca por justiça... A cotidianidade de suas vidas é rompida, não só implodindo e alterando profundamente suas próprias existências, mas provocando em alguns outros – indivíduos, setores da sociedade -, registros diferenciados de interpelação e afetação. Há uma amálgama de sentimentos, sentidos e comportamentos vividos que vão tensionar esferas da memória individual e coletiva, via processos de esquecimento e de construção de saídas dentro da própria história que se movimenta. Não há como enfrentar sem marcas a questão dos desaparecimentos. 1 Brasil - Professora titular de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense/Pesquisadora Visitante da FAPERJ – Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado do Rio de Janeiro - na Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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XVII SEMINÁRIO LATINOAMERICANO DE ESCUELAS DE TRABAJO

SOCIAL.

Itinerários da memória: interpelações produzidas por familiares de

desaparecidos políticos no Brasil. Slets-17-029.

Maria Lídia Souza da Silveira 1

E-mail: [email protected]

Eixo temático: Cidadania. Mesa de Trabalho: Direitos Humanos.

Palavras Chaves: Estado autoritário, sujeitos, mulheres, memória histórica,

lutas sociais.

RESUMO:

O presente trabalho se propõe a empreender uma reflexão a partir de um

entre os muitos acontecimentos ocultados da sociedade brasileira no período da

ditadura militar: o dos desaparecidos políticos.

Para além de sua dimensão de barbárie, trata-se de recuperar o

envolvimento efetivo de alguns familiares – em particular, mães – na busca pela

localização de seus filhos. Nesse movimento, sentimentos se alternam ou podem

se apresentar como paradoxais, ao conciliar perda e luta, dor e recalque,

esquecimento e indignação, conformismo e busca por justiça...

A cotidianidade de suas vidas é rompida, não só implodindo e alterando

profundamente suas próprias existências, mas provocando em alguns outros –

indivíduos, setores da sociedade -, registros diferenciados de interpelação e

afetação.

Há uma amálgama de sentimentos, sentidos e comportamentos vividos que

vão tensionar esferas da memória individual e coletiva, via processos de

esquecimento e de construção de saídas dentro da própria história que se

movimenta. Não há como enfrentar sem marcas a questão dos desaparecimentos.

1 Brasil - Professora titular de Serviço Social da Universidade Federal

Fluminense/Pesquisadora Visitante da FAPERJ – Fundação de Amparo à

Pesquisa no Estado do Rio de Janeiro - na Escola de Serviço Social da

Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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A análise de alguns depoimentos de mães permite que se pense no âmbito

dos percursos da memória, a presença de uma certa nostalgia aberta, numa

abertura para o mundo, a instaurar mudanças de lugares que podem permitir a

problematização do tempo presente, o que significa pensarmos as possibilidades

de sua própria ultrapassagem e, portanto, a retomada de um outro projeto

humano.

Se há razão para lembrar é que o silêncio e o

esquecimento são as constantes da repressão dos últimos anos. É

preciso furar o segredos e o pavor, fazer de recordações dispersas a

reflexão comum na consciência coletiva. Irene Cardoso

O presente trabalho retoma de forma ainda que indireta, os processos de

manutenção da desigualdade social, via conformação da indiferença que vem

sendo produzida em majoritários segmentos da população brasileira, o que vai

implicar em assustadora naturalização frente à pobreza, a indigência, o

desemprego, a falta de oportunidades culturais e de processos concretos de

humanização dos sujeitos humanos. Esse apartamento do Outro num contexto de

enorme desenvolvimento tecnológico e de rapidez dos processos de informação e

comunicação, que globaliza, aparentemente unindo o conjunto dos povos, deveria,

no mínimo, produzir algum grau de inquietação e interpelação. No entanto, a

produção desses sentidos moldadores da vida social no capitalismo,

complexificada mais ainda por apropriações conservadoras da religiosidade,

gerando graus de fanatismo múltiplos e diferenciados, quase que direciona os

sentidos da existência, em sua maioria conformadas pela sociedade das

mercadorias. Se esse reinado mercantil é o hegemônico, concomitante a ele tem

se constituído historicamente a sua negação e resistência, no que pese a sua

pouca significação numérica, ou ainda, a sua frágil eficácia histórica.

Nesse percurso, imperioso se faz registrar a efetiva movimentação destes

contrapontos à hegemonia vigente - que permanecem em constituição,

absolutamente atuais e necessários na contemporaneidade -. Entre um conjunto

de experimentos, destaco pontualmente alguns que dizem respeito à recuperação

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da memória histórica. Nessa perspectiva, merece ser trilhado o tempo histórico de

maneira diferenciada do tempo reificado do capital - calcado num presente sem

nexos com o passado, a supor, contínuo processo de apagamento destas

resistências conformadoras da própria história humana -. Vinculado a esta

elaboração ideologizada do presente, ressaltadas serão níveis de produção

contra-hegemônicas, através das distintas e socialmente desconhecidas lutas pela

constituição de uma outra racionalidade, de uma forma nova de organização

societária.

Será a partir, portanto, destas referências, que retomaremos um período

muito próximo, o da ditadura militar brasileira implantada no Brasil em 1964, que,

afora o seu conteúdo de barbárie, produtor de trágicos acontecimentos obliterados

à sociedade brasileira, foi palco também de outros gestos, dotados de

invisibilidade e opacidade, através das formas de apropriação ideológica adotadas

pela ditadura, a saber, a generosidade de homens e mulheres que buscaram

realizar o projeto de constituição de uma sociedade igualitária, desprovida de

injustiças sociais. Entre estes sujeitos humanos, ressalta-se nos limites destes

texto, os desaparecidos políticos.

No entanto a centralidade da reflexão não incindirá sobre o protagonismo

ou mesmo o sentido dos «desaparecimentos.» A partir deste acontecimento,

buscar-se-á compreender os processos de subjetivação que marcaram os seus

familiares, num movimento que conjuga, às vezes até paradoxalmente, perda e

luta, esquecimento e indignação, recalque e busca por justiça, e que, de alguma

forma produz em alguns setores da sociedade, formas de interpelação e afetação.

Este tradutibilidade de sentidos que se intenta dimensionar, se ancora em

pesquisa em curso no âmbito do GECEM – Gênero, Etnia, Classe: Estudos

Multidisciplinares -da Escola de Serviço Social da UFRJ (Universidade Federal do

Rio de Janeiro).

Para tratar dessas questões, a conjuntura política dos anos 68 se impõe, na

consideração das tensões presentes neste período. Conjuntura que vai expressar

visões de mundo que se contrapunham, calcadas de um lado, no desejo de

mudanças, a partir de uma leitura da conjuntura social que expressava, de um

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lado, a possibilidade objetiva da revolução, enraizada em componentes

socialistas, e, de outro, a violência deflagrada pelo Estado, respaldada no discurso

de manutenção da ordem, da pátria e dos interesses legítimos dos cidadãos.

Para além dos projetos de organização da vida política que estavam a se

degladiar, 1968 trouxe também revoluções no campo dos comportamentos, em

especial o da sexualidade, e no universo da cultura, com destaque para a música,

o teatro e a poesia.

Irene ARRUDA (2001) destaca as marcas existenciais produzidas naqueles

que efetivaram opções de buscar as necessárias transformações radicais do

ordenamento social. Assim, a clandestinidade apresentou-se como exigência para

os que optaram pela luta armada, assim como a adoção de uma falsa identidade.

Esta opção poderia ainda implicar na vivência da tortura, das prisões, do exílio,

dos desaparecimentos e mortes.

O experimento desses sofrimentos e perdas subjetivas é tratado com

sensibilidade em obra de Maren e Marcelo VIÑAR (1992), Através do relato da

prisão de um militante, para além da retirada de pertences, relógio, dinheiro,

documentos e cinto – para impedir possível suicídio – ressaltam eles as

resignificações que objetos passam a ter nesse contexto de brutal desumanização.

Assim, ao acariciar o pulôver tricotado por sua mulher, o prisioneiro se sente

envolvido por um sentimento de ternura, gerando-lhe proteção frente ao

imponderável que está à sua frente.

Na busca de compreensão do novo experimento do aprisionamento, os

autores observam que este passa a ser «o mundo da obscuridade, do silêncio e

dos barulhos insensatos, onde o tempo é outro, onde o corpo é outro, onde tudo

muda para uma ordem e uma lógica nas quais não somos mais nada.»(VIÑAR:23)

Num outro registro, Irene CARDOSO ressalta a partir das reflexões de

Edgar MORIN,2 a presença de um certo caráter enigmático nos acontecimentos de

1968, produzindo inquietações com a marca do trágico, que tendem a ser

2 O artigo intitula-se “O jogo que tudo mudou” e foi publicado no jornal ‘O Estado de São Paulo, suplemento especial “Maio de 1968, a primavera do nada” em 07/05/1978.

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recalcadas pelos seus sobreviventes. É como ‘alguma coisa do passado que ficou

em suspenso’ (p.148).

Essa dificuldade de nomeação de alguns fatos traumaticamente

vivenciados, pode ser enfrentada, ainda que com limitações na esfera subjetiva,

através dos instrumentos conceituais das ciências sociais, em especial a história

oral, com potencialidade de oferecer-lhes algum grau de tradutibilidade.

No âmbito dessa perspectiva é que nos voltamos para esse período,

buscando tratar de forma prioritária, da articulação entre memória e história, assim

como os processos de constituição diversificada do esquecimento.

No que tange à memória, um dos eixos considerados, se refere à sua

capacidade potencial de tensionar - exercendo efetiva problematização sobre o

vivido -, ou, como ressalta Irene CARDOSO, questionando o modo de sua

dominante apropriação no mundo contemporâneo.

Nesse percurso, o rompimento com a coloração atribuída ao passado pelo

presente – para usar uma formulação de Michael POLLAK (1989) -, implica em

rebuscar na memória coletiva de certos segmentos sociais, os experimentos e

lembranças com capacidade de efetivar rupturas com a produção de um aceite da

sociabilidade existente, plasmado numa ideologizada memória coletiva. E este

movimento implica em exercício da crítica a partir da recuperação das histórias

subterrâneas, escondidas pela história e memória oficiais, o que significa portanto,

que a análise não vai ter como referência os grandes acontecimentos e

personagens organizados assepticamente a partir do ordenamento hegemônico

vigente.

“A imposição ao esquecimento iniciou-se ainda em abril de 1964,

quando os primeiros assassinatos promovidos pelo regime militar apareceram

mascarados pela versão de suicídio e, quando a partir de 1973,

principalmente, a destruição de opositores perdia sua eficácia, surgiram os

desaparecidos: não mais havia a notícia da morte, um corpo, atestados de

óbito – essas pessoas perderam seus nomes, perderam a possibilidade de

ligação com seu passado, tornando penosa a inscrição dessa experiência na

memória coletiva. Sinistra construção do esquecimento esta orquestrada por

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meio do terror do desaparecimento de opositores políticos, porque deixa viva

a morte dessas pessoas através da tortura que é a ausência de informações e

de seus corpos. Aos seus familiares só é permitido lembrar sempre a

ausência, reacendendo permanentemente o desejo de libertar-se de um

passado que, no entanto, permanece vivo.”

Este texto de apresentação, ‘Mortos e Desaparecidos políticos: Reparação

ou Impunidade?’, que vai sistematizar o Seminário com o mesmo título realizado

em São Paulo, em abril de 1997, nos permite adentrar nestes dramáticos fatos

históricos, na busca de recuperação, dentro do movimento da história, de

dimensões das lutas, resistências e perdas, que vão não apenas conformar as

subjetividades de determinados sujeitos, como vão, igualmente, produzir e/ou

fazer refluir as sociabilidades e os projetos sociais em curso.

Tal apresentação repõe uma inquietação, que longe de ser de minha

autoria ou da ordem da minha observação e sensibilidade, tem sido explicitada

com competência inquestionável por autores com vínculos com a teoria crítica, em

especial por Marcuse, Horkheimer, Lefort e Hobsbawn, entre outros: trata-se da

absoluta irrelevância no âmbito do mundo contemporâneo, da memória e da

história. Nesse contexto o tempo presente é vivido não apenas intensamente, mas

de forma unidimensional, operando brutal cisão do fluxo da própria temporalidade.

O conceito de “presenteísmo,” proposto por HOBSBAWN (1995), esclarece

tal movimento, ao ressaltar a constituição desse ‘presente contínuo’ que, ao

conformar um corte com o passado, reifica o presente, dele retirando-lhe os nexos

e as possibilidades existentes em termos de futuro.

Os ‘desaparecimentos’ - plasmados na dramaticidade das atrocidades

cometidas pela ditadura militar - têm na atualidade do mundo mercantilizado,

perdido sistematicamente seus nexos com a história.

H. ARENDT (1972) ressalta a necessidade do tempo histórico ser

interrogado, não só na perspectiva de compreensão desse tempo, como

igualmente de efetivação da crítica do presente.

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Retomar esta temática a partir dos familiares dos desaparecidos, e em

particular, a partir das figuras das mães, vai implicar do nosso ponto de vista, em

negar o lugar privado, ‘o culto doméstico das famílias das vítimas’, - como

ressalta Luís Felipe ALENCASTRO (2000:31). - no necessário movimento de

romper com a imposição ideológica do silêncio e do esquecimento, construindo

uma memória que pode ser compartilhada.

“...Ser mãe de um subversivo na época, ser pai de um subversivo não era

uma tarefa fácil, assim como ser irmão, e em especial um irmão menor, eram

conversas a serem feitas a portas fechadas, entendeu, ninguém queria tocar

nesse assunto, não era motivo de orgulho na família...”( Mãe – A –

entrevistada pelas bolsistas de Iniciação Científica Daniele Ribeiro do Val e

Elisonete Ribeiro em 14/03/99)

Diante das prisões, perseguições e torturas existentes, tecia-se no âmbito

da vida social neste período, uma vivência de aparente normalidade. Frente às

atrocidades supostas ou sabidas, o silêncio, o aceite da vida social atomizada e

esvaziada de ações coletivas. Há uma intencionalidade, como afirma Ximena

BARRAZA (1980:141), em fazer da sociedade disciplinada uma necessidade, um

fim em si mesma.

Este disciplinamento se faz presente em todas as esferas da vida social.

Assim, no âmbito das famílias, por exemplo, aparece de forma bastante explícita

num processo cruel de internalização, não apenas uma visão de família

harmoniosa, saudável, sintonizada com o lugar profissional dos jovens -

priorizando a perspectiva de ascensão social -. São igualmente constituídos

processos de culpabilização, com capacidade de inculcar nos pais, sentimentos de

fracasso, denotativos de sua irresponsabilidade social e afetiva, face a existência

de filhos ‘subversivos’.

Cecília COIMBRA (1995:31) ressalta que

“(...) filhos ‘desviantes’ e ‘diferentes’ são produzidos pelos problemas

por que essas famílias passam. Se algum militante é sequestrado, torturado e

assassinado, se algum hippie após experiências com drogas não retorna da

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‘viagem’, eles e suas famílias são os responsáveis e não o estado de terror

que grassa em toda a sociedade. As famílias aceitam tal discurso,

culpabilizando seus filhos e culpabilizando-se, acreditando plenamente que

algo está errado”.

Este aceite vivenciado pela grande maioria de familiares precisa ser

compreendido como parcela da necessária e contínua conformação hegemônica

em curso, a exigir construção de um certo conformismo. Que impõe ao ‘outro’ – ao

filho, ao vizinho, ao marido, ao que se insurge e se diferencia do modelo de

organização da vida - individual e coletiva –, não apenas culpabilização pelas

escolhas ‘loucas’ de se insurgir contra as naturais injustiças do mundo, como

rejeição pela vida militante escolhida, na óbvia constatação de um

‘desajustamento’ à vida normal de todos os mortais.

Por outro lado, o ‘desaparecimento’ traz também um experimento de

sofrimento e perdas afetivas absolutamente intransferível para um determinado

sujeito individual, que precisa encontrar nos outros sujeitos não afetados por

aquela perda, o ancoradouro da solidariedade. A ausência de uma morte que se

pressente ou mesmo se sabe real, sem o seu reconhecimento oficial, recalca a

perda que se impõe administrar, impõe o esquecimento pela repressão do

acontecido ou, pior ainda, como “inexistencialismo”, para usar terminologia de

VIDAL-NAQUET, adotada por Irene CARDOSO (p.150), no sentido das realidades

que passam a ser consideradas inexistentes pelos ‘assassinos da memória’.

Assim, o passado não pode se tornar passado porque esta morte insepulta não

pode ser esquecida, apenas recalcada. E porque, do ponto de vista da sociedade,

convive-se com uma “normalização” que se almeja e um passado que de alguma

forma se interdita, através da imposição do esquecimento instaurado via processo

de anistia.

Enfrentar este paradoxo implica no movimento de torná-lo inteligível, ‘com a

marca da lucidez e pela separação entre razão e paixão, entre conhecimento e

emoção” segundo Renato MEZAN( 1987:126)

Nesse contexto, na contra-maré negadora deste presente desprovido de

referências substantivas que se intenta eternizar, importante efetivar o registro de

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que outras famílias, outras mães, refazem este percurso afirmando outros

sentidos.

Assim, ao se resgatar a movimentação de mães e familiares de

desaparecidos da ditadura militar, se busca um percurso negador desse presente

desprovido de passado, desencarnado de lutas sociais e dos sujeitos que lhes

deram significado através de seus sonhos e resistências. Afirma-se, como reitera

Ximena BARRAZA (1989) a partir do experimento do autoritarismo chileno, a

importância da memória, dos valores coletivos e do projeto partilhado. Diz ela:

«Recordar não é voltar atrás, é refazer a história. Lembrar o

passado é sempre também um modo de recorrer ao amanhã, de construir

um projeto. A memória tende, quando não num sonho onírico, à

comunicação. É uma recriação coletiva, através do outro e com ele,

afirmamos o passado, já não como biografia pessoal, mas como história

compartilhada.»(Idem.167)

Ora, ao assumirem a crítica à ordem burguesa, ao se colocarem claramente

contra o ordenamento social que vai subordinar a organização da vida dos sujeitos

aos ditames do capital, os jovens e segmentos de intelectuais e trabalhadores que

intentaram vivenciar a constituição de um outro projeto societário para o Brasil,

colocaram em cheque esta ‘moral da morte’- para usar uma terminologia de

BARRAZA, norteada pela lógica da acumulação capitalista; moral que vai supor a

imposição, também aos sujeitos individuais, não apenas de perdas na ordem da

materialidade, mas igualmente, perdas em seu contínuo processo de

humanização e emancipação.

A postura de conformação de uma ‘moral da vida’ vai implicar na afirmação

vigorosa de que

“o direito à vida é direito de todos, abrange a vida de todos. A

satisfação das necessidades não pode depender do poder de negociação de

um ou outro grupo social. Não se transa no mercado conforme seu valor

mercantil. A aspiração por uma vida melhor é um assunto público.”(p.146)

A dor e indignação expressas pela autora ao pensar a vida cotidiana numa

ordem autoritária, traz à tona as feridas que ocultamos para continuar

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sobrevivendo, as concessões que fazemos sem sequer sermos tomados pelo

constrangimento, no interior de uma sociabilidade que transmuda o licito pelo

ilícito; ressalta ela algo absolutamente essencial: da necessidade de uma certa

‘idiotia’ para surpreender-se, da necessidade de ser ‘louco’ para tomar consciência

do que nos circunda.

Algumas mães de desaparecidos políticos efetivaram esse movimento de

sábia loucura e partiram em busca da localização de seus filhos. Movimento

inicialmente individual - para algumas sempre solitário - mas para outras tantas,

aprendizado da união e da força coletiva:

« Queria preservar a vida, queria preservar a vida de minha filha, pois eu já

estava lendo, testemunhando o destino daqueles que se meteram no

movimento, que foram barbaramente torturados, mortos ou então exilados(...)»

Mãe entrevistada A – Entrevista realizada por Roseane Silva e Elisonete

Ribeiro, bolsistas de Iniciação Científica, em 18/03/99)

« Eu sei que eu comecei a tomar partido nas reuniões do Tortura-Nunca –

Mais(...) ». - Entrevistada A -

A formulação de Ximena BARRAZA traduz com muita sensibilidade este movimento:

« Mas como nomear o desespero sem assinalar a ação capaz de

consolar-nos? Não haveria - num sentido muito literal – que descobrir as

cicatrizes, abrir a dor silenciada, para trazer à luz o protesto e a rebeldia?»

(Ibidem:147)

Vozes de familiares, em especial vozes de mães e esposas, ecoam num

registro não apenas de dor e perda, mas de rebeldia e luta, com ferramentas às

mais díspares, frente a uma conjuntura para a maioria delas, inexplicável e

desprovida de sentidos.

« Eu fiquei obcecada com isso, naturalmente não podia tocar no

assunto. Comecei a escrever panfletos espalhando por todo o canto, sabe,

espalhava no cemitério, nas conduções que eu ía. Você vê que eu fui presa

no Teatro Municipal (...)Era uma maneira de transmitir a alguém aquilo que

eu estava sentindo» -Entrevistada A -

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« A prisão dele foi pública, na feira(...) A partir daí fiz uma carta para D.

Helder, para ele contratar um advogado. Foi contratado um advogado, mas

não tinha habeas-corpus nesta época (...) e aí a mãe dele foi para Recife

procurar nas prisões, a gente teve com o pessoal do IV Exército, mas ela não

teve nenhuma resposta(...) No início quem fez mais foi a mãe dele, assim que

foi para Brasília foi falar com o Golbery(...) Aí começou um movimento entre

as famílias para localização dos desaparecidos. Já não era mais para um,

para dois, era mais gente, aí começaram então a fazer um movimento em

conjunto(...) - Entrevistada B - mulher de desaparecido e também militante-

realizada por Daniele Ribeiro e Roseane Silva, em 10/05/99.-

A ordem autoritária brasileira que produziu o silêncio como autodefesa, que

engendrou um certo tipo de conformismo com capacidade de obliterar da vida

social os sujeitos concretos – com história, lugar e projetos -, que buscou

fundamentar a vida social pautada na sua concepção de mundo como se esta a de

todos fosse, que investiu na conformação da vida social atomizada e repleta de

silêncios e medos, tinha uma estratégia muita clara para a manutenção de sua

dominação: a destruição de qualquer esperança de construção de uma alternativa

frente ao que se vivia, internalizando nos sujeitos sociais a crença desta

inviabilização.

Este silêncio, esta atomização e passivização construída, é rompida em

várias níveis e formas concretas. Uma delas não menos importante que tantas

outras lutas de resistência, diz respeito à tentativa de localização dos

desaparecidos políticos, a denuncia desta violência perpetrada pelo Estado

autoritário e a busca de justiça.

“ O Grupo Tortura-Nunca-Mais representa aquela luta que não

acaba, que a pessoa que tem esses pensamentos luta sempre por isso,

não é?” - Entrevistada C- entrevista feita por Daniele Ribeiro e Roseane

Silva em 13/05/99.

A incursão das mães no espaço público, regido por este autoritarismo que

exige, na sua lógica, a destruição do outro – seja na qualidade de sujeito ou na de

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projeto – repõe com nebulosa visibilidade, mas repõe, os sentidos da luta e de

alguns entre os muitos sujeitos reais que lhes plasmaram concretude.

A análise de alguns depoimentos de mães pode nos permitir pensar, a

partir da variedade de percursos da memória, na presença de uma certa nostalgia

aberta, numa abertura para o mundo, a instaurar mudanças de lugares com

potencialidade de problematização do tempo presente e sua ultrapassagem. Tal

movimento que vai se embeber na crítica do que está nos próprios sujeitos e no

seu ´entorno´, repõe duas ordens de questão, absolutamente vitais: a de que é

possível a existência de subjetividades não aderentes ao ´existente´ - como

qualifica ADORNO-; e desse ponto de vista, adquire nexo afirmar-se a

possibilidade de produção de novos sentidos e perspectivas, da retomada,

portanto, de um outro projeto humano, apesar do vitorioso presenteísmo no qual

estamos imersos.

Parafraseando Irene Cardoso (2001:176), diria da importância de sair do

registro da história bem ou mal contada, para retirar dos registros existentes “a

construção de vias significativas de acesso ao passado, não como a verdade

essencial e originária da história, mas como verdades que são produzidas pelo

jogo claro/escuro da memória e do esquecimento.”

Trazer estas questões dos subterrâneos de um passado tão próximo para o

tempo presente - conformado por descontinuidades históricas, apartado da

experiência acumulada dos sujeitos, a retirar-lhes não só o sentido de história,

mas de sua própria inserção e papel ativo na construção da vida social - vai

implicar em repor a política num outro lugar. Um lugar no qual possa ser vista e

experimentada como natural exercício da imaginação de formas mais justas e

melhores de viver, nos termos de Jurandir FREIRE (1995).

Nesse sentido, a busca por garantir a esses sujeitos a expressão de sua

dor, de suas ações de resistência, de seus comportamentos transgressores ou

pelas suas derrotas, significa assumir de maneira inequívoca um posicionamento

que dê visibilidade às experiências coletivas silenciadas, subvertendo assim, nos

termos de Lucília NEVES (1993:102), “a reprodução da dominação e do silêncio.”

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Sobre os processos de constituição dos sujeitos.

A presença desses sujeitos-mães, sujeitos-familiares na cena pública nos

permitem algumas reflexões.

A primeira, de caráter mais geral, posta a partir desse quadro dos

acontecimentos de 1968, em particular os relacionados aos anos de chumbo da

ditadura militar brasileira, nos impõem a necessária afirmação de uma referência

mais geral que nos situe num certo campo; o da democratização da vida social. E

desse campo nos cabe a contínua indagação sobre os processos democráticos

em curso na particularidade de nossa formação social, buscando decifrar quais

são, de fato, os fundamentos dos direitos, as formas de distribuição da justiça, as

formalidades democráticas numa sociedade extremamente desigual. Nessa

perspectiva Maria Célia PAOLI (1989) vai pensar a dinâmica política de uma

sociedade a partir da singularidade de seu experimento, através de seus

componentes de historicidade, construção de referencias simbólicas e nas suas

formulações p róprias de emancipação e vivência da questão democrática.

Tal concepção vai se opor à presente no âmbito do pensamento pós-

moderno que vai propugnar o fim da história, das classes sociais e das ideologias,

e portanto, dos antagonismos entre projetos societários.

Ao negarmos tal ponto de vista entendemos que este é estratégico para a

ordem vigente, pois não só oblitera o real - no caso estamos a apontar para a

brutal desigualdade humana – como o naturaliza, buscando enrijecer seus

componentes de tensão e conflito, na tentativa de congelar a memória histórica e

refrear a dimensão de porvir.

Nesse percurso, tal ordenamento reificador do presente – existente na

sociabilidade capitalista - não só supõe a destruição dos vínculos que humanizam

os sujeitos, como os situam numa perspectiva de mediaticidade, na qual o

efêmero e o fragmentário, a produção de curto prazo e a insensibilidade perante o

outro são componentes fundantes da constituição das subjetividades. A questão

de Richard SENNET (1999) é absolutamente pertinente:

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“Como os sujeitos podem buscam objetivos de longo prazo numa

sociedade de curto prazo? Como pode um ser humano desenvolver uma

narrativa de identidade e história de vida numa sociedade composta de

episódios e fragmentos?” (p.23)

Necessário se faz a compreensão de que o sujeito que se intenta plasmar

no interior dessa lógica que conforma as relações sociais, é o sujeito auto -

centrado, descrente das esferas coletivas, competitivo, eficiente, que vai delegar

ao Estado a interpretação dos problemas e a resolução dos conflitos.

Nessa delegação torna-se absolutamente secundário as desigualdades

sociais existentes, assentadas num ordenamento social fundado no reinado

mercantil, a delimitar para o homem, o caráter de ser também mercadoria.

Tal base material enraizada na expropriação do trabalho humano e na sua

simultânea desqualificação - bem como em processos naturalizados de

desigualdade social -, vai afetar brutalmente os processos de subjetivação.

Assim, para além do visível empobrecimento material, são engendradas

formas de sociabilidade cujos traços essenciais podem ser reconhecíveis no

exacerbado individualismo, na proliferação das personalidades narcísicas, na ode

ao consumo e num continuo apartamento dos campos coletivos, formulador de

outros possíveis .

Possíveis estes com capacidade de proceder ao exercício de elaboração de

novas referências valorativas, impulsionadoras de ações transgressoras à ordem

vigente.

Conformando esta sociabilidade, nos defrontamos com uma avassaladora

apropriação ideológica das experiências humanas, atribuindo-lhes significados

com enorme capacidade de obscurecer os conflitos, as diferenciações de classe,

fabricando falsos consensos e produzindo nos sujeitos um processo de

naturalização das relações sociais desiguais.

Podemos dizer que mais que naturalizar estas desigualdades, o processo

hegemônico vitorioso, consegue internalizar, em especial nos segmentos mais

empobrecidos e subalternizados socialmente, a noção de que este lugar da

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pobreza, da exclusão, da necessária diferenciação, este não lugar social é o seu

lugar.

Marilena Chauí (1995) chama a atenção para a forma de subjetividade que

está sendo plasmada no interior do capitalismo, a se sustentar, menos nas

relações intersubjetivas e mais numa subjetividade conformada pela mídia e pela

publicidade. No seu interior a capacidade de simbolização, de transcender ao que

está dado, de relacionar-se com o possível não tem espaço para se expressar.

Walter BENJAMIN (1980) ao refletir sobre o papel da imprensa nos anos 30

já detectava as formas de trato das informações na cultura contemporânea,

especialmente pela substituição que processa ao transmutar as narrativas e os

acontecimentos vivenciados - na qualidade de experimentos históricos -, em

meras informações. E estas tem seu aparecimento público de forma

descontextualizada, retiradas de seus componentes de sentido e, principalmente,

rapidamente substituídas, pela necessidade que têm os meios de comunicação de

apresentar outra novidade para o consumo público.

Este caráter do efêmero presente no conjunto das relações

contemporâneas, vai comportar igualmente que os acontecimentos,

independentemente de seu grau de importância humana, sejam tratados como

coisas rapidamente descartáveis.

Necessário se torna nesse percurso plasmador, valorar no plano dos

indivíduos, a presença de uma forma de ser sujeito: um sujeito auto-centrado e

auto-referenciado, extremamente subordinado à mídia.

Nesse quadro, o consumo passa a ser um componente determinante,

menos na sua realização efetiva e mais nas referências simbólicas que conforma,

e no imaginário que põe a circular referentes a certos valores e condutas,

realizáveis essencialmente no plano do indivíduo, de um indivíduo cada vez mais

apartado dos significados de suas ações.

O consumo exerce uma particular subordinação do sujeito à dimensão dos

valores de troca no âmbito das mercadorias, impregnando seus interesses

pessoais e mergulhando-o na dimensão das realizações de curto prazo,

componentes estes estruturantes de seu processo de subjetivação.

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Neste contexto, os desejos que vão movimentar os sujeitos serão

marcados, como destaca Joel BIRMAN (1999) por uma direção exibicionista e

auto-centrada, que não vai comportar a presença de trocas inter-humanas.

Segundo Christopher LASCH (1983) a cultura do narcisismo não só delimita

no próprio sujeito a sua referência para o que está fora dele, mas tal auto -

centramento impede-o de visualizar os outros, na qualidade de outros sujeitos. O

registro no qual se vê, a imagem que tem de si mesmo apenas permite que o

outro lhe apareça na qualidade de instrumento de uso e prazer - também com a

marca da fugacidade - situação banalizada no âmbito das relações sociais

informadas pelo usufruto mercantil. Determinante é o esvaziamento de um

imaginário fertilizado por projetos a serem perseguidos e construídos, que

ultrapassem o plano dessa imediaticidade.

Dessa feita, pulveriza-se a solidariedade social visto que os interesses

pessoais e o prazer imediato se impõem, frente a projetos de longo prazo que

reponham o futuro na qualidade de possibilidade histórica. Até porque não se

coloca no horizonte dos narcísicos assumir algum tipo de vinculação e

compromisso no âmbito do social. Lasch vai afirmar que

"Viver para o momento é a paixão predominante - viver para si, não para

os que virão a seguir, ou para a posteridade. Estamos rapidamente

perdendo o sentido de continuidade histórica, o senso de pertencermos a

uma sucessão de gerações que se originaram no passado e que se

prolongarão no futuro. É o enfraquecimento do sentido de tempo

histórico(...)(1983:25)

Ancorando-se no pensamento de Lasch, Jurandir Freire COSTA(1984)

afirma que no universo social do narcísico, as condutas individuais tendem à

desintegração da sociabilidade: inexiste sentimento de responsabilidade com o

que está em torno, e as subjetividades produzidas no caldo desta cultura tendem

para a perda de referenciais sociais.

Ora, os relatos de algumas mães e esposas dos desaparecidos políticos,

suas movimentações em busca de seus filhos/esposos, caracterizam do nosso

ponto de vista, não só uma subtração a estes referenciais, num processo de

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nítida diferenciação dos perseguidores, torturadores e sujeitos responsáveis pela

violência Estatal; seus relatos de seus sentimentos e experiências de luta e

resistência, apontam para a instauração de uma particular ruptura, conformando

um outro lugar na ordem de suas subjetividades. Sobretudo estabelecem na

particularidade do próprio tempo presente, os nexos essenciais com o passado.

Esta subjetividade, portanto, que estamos a considerar é produzida a partir

da objetividade do mundo, se conformando no plano das relações sociais, não se

circunscrevendo ao plano da individualidade e da interioridade.

Ela se constrói a partir do mundo real, de seus componentes valorativos e

materiais em contínua circulação, com capacidade de produzir interpelações nos

sujeitos. As elaborações singulares daí decorrentes conformam um certo desenho

pessoal, fruto das identificações e/ou das diferenciações por ele determinadas

frente ao Outro (sujeitos, classe, projeto humano).

Ao resistirem frente aos desaparecimentos de seus familiares, as mães se

posicionam não só ao modelo político de dominação, mas ao assujeitamento e

passivização que se intenta produzir nos sujeitos.

A retomada da referência coletiva, no caso o Grupo Tortura -Nunca-Mais,

não só repõe com outra qualidade a importância dos campos coletivos para os

sujeitos individuais, assim como potencializa as capacidades já presentes de luta

e resistência política. Igualmente, revaloriza esse lugar como o lugar da

solidariedade humana, gestor de outros afetos, negador da produção de

subjetividades formadas na indiferença à dor do outro.

Estas negociações de sentido que os sujeitos podem refazer ao longo de

suas existênc ias, se apresentam no horizonte de suas histórias de vida na medida

em que, se afirme e se garanta visibilidade a uma expressão da vida humana que

o ordenamento hegemônico busca aprisionar, a dimensão do possível dialético, do

porvir.

Nesse itinerário, o não conformismo com o estabelecido e a ruptura com a

forma naturalizada de visualização dos acontecimentos, condição é para a não

eternização do presente. A supor a importância dos sujeitos serem provocados por

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situações que os instiguem ao exercício de pensar, contestar e de construir

alternativas com outros sujeitos.

Nesse circuito que supõe estrutura social, conjunturas históricas, relações

sociais e sujeitos, nessa tensão entre produção e reprodução da vida social,

destaco três registros pertinentes à perspectiva continuamente instituinte de

efetiva democratização da vida social, frente à racionalidade que nos conforma: a

importância das referências coletivas, a dimensão micro e sua presença nos

processos de subjetivação e, finalmente, a articulação entre estes dois níveis,

em condições históricas dadas, com o intuito de negar a perspectiva de

imediaticidade que organiza a vida social.

Em Seminário organizado na Universidade das Mães da Praça de Maio, na

Argentina, creio que se intenta a materialização deste estabelecimento de nexos

entre o passado e o presente, encarnados nas conjunturas neoliberais dos países

da América Latina. Reproduzimos algumas de suas considerações, pertinentes às

reflexões em curso, de alguma forma demarcando uma certa agenda de

posicionamentos possíveis:

- «A presença da globalização na perspectiva do mercado. Esta perspectiva

fortalece em verdade, a globalização da exploração e a fragmentação dos sujeitos,

em especial, o dos sujeitos coletivos.

- Investe-se assim, na deterioração das identidades coletivas, caminho necessário à

deterioração da solidariedade, da resistência, das ações comuns.

- Busca-se a liquidação das conquistas sociais dos trabalhadores neste último

século;

- Transmuda-se os desejos por mudança sociais, igualdade, justiça para os limites

do consumo individual;»

A efetivação desse processo de reciclagem do capital via globalização vai

implicar, igualmente, do ponto de vista das classes subalternas, na sua

descartabilidade.

Esta cultura da dominação assentada numa base material, produz,

concomitantemente valores. Valores que circulam e conformam sociabilidades

que vão marcar os sujeitos. Entre alguns destes valores podemos destacar a

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cultura da impunidade, a alienação, o consumo, a ausência de referências

substantivas e a égide ao individualismo...

Finalizando, apenas sinalizaríamos dois aspectos relevantes nesse

processo de pesquisa e reflexão. O primeiro se refere às mudanças efetivas

operadas nas subjetividades dessa mulheres- mães, seja no trato que

conseguiram dar à sua dor, nas formas de reinvenção que foram obrigadas a

fazer da própria estrutura familiar e de suas relações afetivas, seja na

modificações que o experimento do terror da violência estatal produziu nos seus

processos identitários, seja na descoberta para algumas, de outros espaços

existentes para além do seu mundo privado e aparentemente protegido da

família. O segundo diz respeito á necessidade de se afirmar a importância da

presença viva dos sujeitos na construção de seu tempo histórico, o que supõe,

igualmente, a recuperação da categoria transgressora do devir.

Entendemos que continua atual não só uma perspectiva anti-capitalista,

mas igualmente, a peremptória afirmação em torno da necessidade de um

projeto de emancipação humana, que, do nosso ponto de vista, na nossa

particular formação social inscrita numa sociedade capitalista, só advirá do

campo do trabalho. Estamos considerando que este tempo histórico que

estamos a viver, parafraseando Marilena Chauí, é o "de um presente grávido de

futuro."

Como Cornelius CASTORIADIS (!992) pensa-se que a história humana

nunca está finalizada. Esta consiste exatamente na criação de novas formas de

convivência humana e podemos afirmar, como ele, que não há um tipo de vida

social na qual a imaginação humana se amálgame definitivamente.

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