XX · Espinosanos realizou as jornadas “Merleau-Ponty e o Grande Racionalismo”, marcando ......
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Editora Responsável InstitucionalMarilena de Souza Chaui
Editora ResponsávelTessa Moura Lacerda
Comissão EditorialCeli Hirata, Daniel Santos, Eva Turim e Valéria Loturco da Silva.
Conselho EditorialAtilano Domínguez (Univ. de Castilla-La Mancha), Diego Tatián (Univ. de Córdoba), Diogo Pires, Aurélio (Univ. Nova de Lisboa), Franklin Leopoldo e Silva (USP), Jacqueline Lagrée (Univ. de Rennes), Maria das Graças de Souza (USP), Olgária Chain Féres Matos (USP), Paolo Cristofo-lini (Scuola Normale Superiore de Pisa) e Pierre-François Moreau (École Normale Supérieure de Lyon).
PareceristasAlexandre de Oliveira Torres Carrasco, André Menezes Rocha, Cíntia Vieira da Silva, David Cal-deroni, Eduardo de Carvalho Martins, Eduino José de Macedo Orione, Fernando Dias Andrade, Herivelto Pereira de Souza, Homero Santiago, Leandro Neves Cardim, Luciana Zaterka, Luís César Oliva, Marcos Ferreira de Paula, Marcus Sacrini, Mônica Loyola Stival, Roberto Bolzani Filho, Sérgio Xavier Gomes de Araújo.
Publicação do Grupo de Estudos Espinosanos e de Estudos sobre o Século XVII
Universidade de São PauloReitora: Suely Vilela
Vice-Reitor: Franco Maria Lajolo
FFLCH - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências HumanasDiretor: Gabriel Cohn
Vice-Diretora: Sandra Margarida Nitrini
Departamento de FilosofiaChefe: Moacyr Novaes
Vice-Chefe: Caetano Ernesto PlastinoCoord. do Programa de Pós-Graduação: Marco Antônio de
Ávila ZinganoEndereço para correspondência:Profa. Marilena de Souza ChauiA/C Grupo de Estudos EspinosanosDepartamento de Filosofia – USPAv. Prof. Luciano Gualberto, 31505508-900 – São Paulo-SP – BrasilTelefone: 0 xx 11 3091-3761 – Fax: 0 xx 11 3031-2431e-mail: [email protected]: http://www.fflch.usp.br/df/espinosanos
Projeto Gráfico: Taynam Bueno /// Tiragem: 1000 exemplares
A Comissão Editorial reserva-se o direito de aceitar, recusar ou reapresentar o original ao autor com sugestões de mudanças.
N. XX, JAN-JUN DE 2009 – ISSN 1413-6651
Ficha Catalográfica
Cadernos Espinosanos / Estudos Sobre o século XVIISão Paulo: Departamento de Filosofia da FFLCH-USP, 1996-2009.Periodicidade semestral. ISSN: 1413-6651
APRESENTAÇÃO
O Grupo de Estudos Espinosanos do Departamento de Filosofia da Universidade
de São Paulo, em 2004, completou 10 anos.Ao longo deste período, diversas atividades
foram desenvolvidas e procurou-se fazer o registro delas para, como diz Espinosa,
tentar contornar as forças do “tempo voraz que tudo abole da memória dos homens”. Os
Cadernos Espinosanos se inspiram nesse propósito.
Desde o número X, dedicado ao Professor Lívio Teixeira, os Cadernos estão
dedicados também a Estudos sobre o século XVII, seu subtítulo. O que, na verdade,
expressa algo que já acontecia na prática, pois textos acerca de vários outros filósofos do
período sempre estiveram presentes a cada edição.
O objetivo destes Cadernos continua sendo publicar semestralmente trabalhos
sobre filósofos seiscentistas, constituindo um canal de expressão dos estudantes e
pesquisadores deste e de outros departamentos de Filosofia do país.
Porque destinados a auxiliar bibliograficamente aos que estudam o Seiscentos,
tanto para os trabalhos de aproveitamento de cursos, quanto para a elaboração de outros
projetos de pesquisa, estes Cadernos também publicarão, regularmente, ensaios de autores
brasileiros e traduções de textos estrangeiros, contribuindo com o acervo sobre o assunto.
Esperamos que esta iniciativa estimule os estudos sobre os filósofos daquele
período a que esta publicação é inteiramente dedicada e permita criar ou ampliar a
comunicação entre os que estão envolvidos com a pesquisa desses temas, incentivando,
inclusive, outrosdepartamentos de Filosofia a colaborar conosco no desenvolvimento
deste trabalho.
Franklin Leopoldo e Silva
SOBRE ESTE NÚMERO
A filosofia do século XVII ocupa um lugar especial na obra de Maurice Merleau-
Ponty. Das primeiras publicações às derradeiras notas de trabalho, persiste a reflexão
sobre esse século “intrépido”, que soube tão bem ajustar ciência e filosofia e elevar
ao cume a questão ontológica. Nisso inclusive, dirá o filósofo, o grande racionalismo
seiscentista, longe de constituir apenas um passado, tornou-se passagem obrigatória para
os pensadores contemporâneos.
Foi em vista desse íntimo relacionamento, às vezes embate, às vezes aquiescência,
sempre inspiração e prova da potência da história da filosofia, que o Grupo de Estudos
Espinosanos realizou as jornadas “Merleau-Ponty e o Grande Racionalismo”, marcando
o centenário de nascimento d o filósofo francês.
Os textos recolhidos neste número dos Cadernos espinosanos são uma amostra
significativa das discussões travadas ao longo do evento, que teve lugar nos dias 17 e 18
de novembro de 2008, no Departamento de Filosofia da FFLCH-USP, e se inscreve no
conjunto das atividades do projeto temático “Ruptura e Continuidade: Investigações
sobre a relação entre Natureza e História a partir de sua formulação pelo Grande
Racionalismo Seiscentista”, financiado pela Fapesp.
Os Editores
SUMÁRIO
Merleau-Ponty: da constituição à instituição
Marilena chaui.......................................................................................11
a Presença do filósofo
renaud Barbaras....................................................................................37
a “Grande PolÍtica” ou Merleau-Ponty leitor de MaQuiaVel
leandro neves cardim...........................................................................49
Merleau-Ponty entre ontoloGia e MetafÍsica
Marcus sacrini a. ferraz.........................................................................74
o conceito de Vida e a Gênese da ordeM huMana
silvana de souza ramos.........................................................................90
Merleau-Ponty e a Bola de neVe: eloGio e crÍtica de BerGson
Pablo Zunino.........................................................................................104
Proust à luZ de freud – uMa leitura Merleau-Pontyana
ronaldo Manzi......................................................................................121
a Visão coMo aBertura
alex de campos Moura.........................................................................131
.
fiGuras de conceito. soBre a linGuaGeM eM Merleau-Ponty
Júlio Miranda canhada..........................................................................138
Merleau-Ponty e o “Grande racionalisMo”: Que É ler uM clÁssico?
José luiz B. neves..................................................................................149
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MERlEAU-PONTy: dA cONSTITUIÇÃO à INSTITUIÇÃO
Marilena chaui*
Resumo: Este ensaio examina a noção merleaupontyana de instituição como descoberta de um caminho para superar a tradição das filosofias da consciência, particularmente as aporias deixadas pela fenomenologia transcendental husserliana, permitindo a passagem de uma filosofia da constituição a uma filosofia da gênese.Palavras-chave: instituição, constituição, filosofia da gênese, fenomenologia, filosofia da consciência.
“A consciência constituinte é a impostura profissional do filósofo (...) e não o atributo espinosista do pensamento”. Todos se lembram dessas palavras, escritas por Merleau-Ponty em “Le philosophe et son ombre”, quando de sua leitura da obra de Husserl.
“Procura-se aqui, com a noção de instituição, um remédio para as dificuldades da filosofia da consciência”. Com estas palavras, Merleau-Ponty define a intenção de seu curso de 1954-55, no Collège de France, denominado L’institution.
Essas duas afirmações nos permitem tomar o projeto filosófico merleaupontyano
como passagem da constituição à instituição, ou, se se quiser, de uma filosofia da posição
a uma filosofia da gênese.
Nosso trajeto, aqui, não se ocupará com o momento em que Merleau-Ponty passa
da fenomenologia transcendental à ontologia do ser bruto, mas apenas com o percurso
realizado ainda no interior da fenomenologia para superá-la como filosofia da consciência
e no qual a noção de instituição terá papel nuclear.
***Pensar a relação de Merleau-Ponty com o Grande Racionalismo do século XVII
significa, inicialmente, considerar o lugar ocupado em sua filosofia pela cisão entre res
extensa (pura exterioridade das coisas corpóreas como composição de partes extra partes)
* Professora Titular do Departamento de Filosofia da USP.
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Marilena Chaui
e res cogitans (presença da consciência a si mesma como pura interioridade).
“Fomos habituados pela tradição cartesiana a uma atitude reflexiva que purifica simultaneamente a noção comum do corpo e da alma, definindo o corpo como uma soma de partes sem interior e a alma como um ser totalmente presente a si mesmo, sem distância. Essas definições correlativas estabelecem a clareza em nós e fora de nós: transparência de um objeto sem dobras, transparência de um sujeito que é exclusivamente aquilo que ele pensa ser. O objeto é objeto de ponta a ponta e a consciência, consciência de ponta a ponta. Há dois e somente dois sentidos para a palavra existir: existe-se como coisa ou existe-se como consciência” (Merleau-Ponty 1, p.231).
Desprender-se dessa tradição é abandonar o ser como coisa empírica, mas também
como resultado da análise e da síntese intelectuais, que o fazem posto pelo entendimento.
Trata-se, pois, de renunciar à subjetividade pura e ao seu outro lado, a objetividade pura,
construída pelas operações de um pensamento que se julga desencarnado e de uma técnica
reduzida apenas à sua superfície instrumental.
Tomando a herança clássica como ponto de partida, Merleau-Ponty se encaminha,
por um lado, à noção de estrutura do comportamento, que lhe permite formular a idéia de
uma dialética das ordens de realidade ― física, vital e humana ―, e pensar na fundação
de uma história; e, de outro, a uma fenomenologia da percepção, que desvenda o corpo
próprio como corpo percipiente ou cognoscente, sexuado, falante e reflexivo, dotado de
interioridade ou espírito encarnado. Se tal é o ponto de partida, não surpreende que o
percurso de Merleau-Ponty, como vemos em seus últimos trabalhos no Collège de France,
o conduza a uma análise das concepções de natureza em Descartes, Kant, Schelling e na
ciência contemporânea, assim como a novos estudos sobre o corpo humano, afirmando,
então, que a encarnação se enraíza numa camada originária, a natureza, entendida não
como res extensa (Descartes), nem como multiplicidade dos objetos dos sentidos (Kant),
nem como exterioridade abstrata (Hegel e filosofias dialéticas), nem, enfim, como modelo
matemático e laboratorial (ciências), mas como “definição do ser”, “presença originária
comum”, entrelaço e quiasma dos corpos e da expressão simbólica (sexualidade e
linguagem), de sorte que a relação entre natureza e cultura é concebida numa perspectiva
diversa daquela proposta em La structure du comportement, ou seja, em lugar de uma passagem
da natureza à cultura, agora Merleau-Ponty concebe a fundação da cultura na natureza.
Se considerarmos o ponto de partida e o percurso realizado, ilumina-se a
diferença entre o texto sobre o Grande Racionalismo, em “Partout et nulle part”, e o
de uma nota sobre a filosofia seiscentista, redigida para um de seus últimos cursos no
Collège de France.
Em “Partout et nulle part”, lemos:
“O Século XVII é esse momento privilegiado em que o conhecimento da natureza e a metafísica acreditaram haver encontrado um fundamento comum. Criou a ciência da natureza e, contudo, não fez do objeto de ciência o cânone da ontologia. Admite que uma filosofia seja o fio de prumo da ciência sem ser sua rival. O objeto de ciência é um aspecto ou um grau do Ser; justifica-se em seu lugar e talvez seja, até mesmo, por ele que aprendemos a conhecer o poder da razão. Mas esse poder não se esgota nele. De maneiras diferentes, Descartes, Espinosa, Leibniz, Malebranche, reconhecem, sob a cadeia das relações causais, um outro tipo de ser que a subtende sem rompê-la. O Ser não está inteiramente vergado e achatado sobre o plano do Ser exterior. Há também o ser do sujeito ou da alma e o ser de suas idéias, e o das relações recíprocas entre as idéias, a relação interna de verdade, e esse universo é tão grande quanto o outro, ou melhor, o envolve, visto que, por mais estrito que seja o vínculo dos fatos exteriores, não é um deles que dá a razão última do outro; juntos participam de um ‘interior’ que sua ligação manifesta. Todos os problemas que uma ontologia cientificista suprimirá instalando-se sem crítica no ser exterior como meio universal, a filosofia do XVII, ao contrário, não cessa de colocá-los. Como compreender que o espírito aja sobre o corpo e o corpo sobre o espírito e mesmo o corpo sobre o corpo ou um espírito sobre outro espírito ou sobre si mesmo, pois, por mais rigorosa que seja a conexão das coisas particulares em nós e fora de nós, nenhuma delas jamais é, sob todos os aspectos, causa suficiente do que sai dela? De onde vem a coesão do todo?” (Merleau-Ponty 7, p.218)
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Marilena Chaui
Em contrapartida, numa das últimas notas de seus cursos sobre a
natureza, escreve:
“A extraordinária confusão da idéia da Natureza, da idéia de homem e da idéia de Deus entre os modernos ― os equívocos de seu “naturalismo”, de seu “humanismo” e de seu “teísmo” ― não seria penas um fato de decadência. Se hoje todas as fronteiras se apagaram entre essas ideologias, é porque, com efeito, há, para repetir uma palavra de Leibniz, mas tomando-a ao pé da letra, um “labirinto da filosofia primeira”. A tarefa do filósofo seria descrevê-lo, elaborar tal conceito do ser para que as contradições, nem aceitas nem ultrapassadas, nele encontram seu lugar. Isso que as filosofias dialéticas não conseguiram fazer, porque nelas a dialética permanecia enquadrada numa ontologia pré-dialética, tornar-se-ia possível para uma ontologia que descobriria no próprio ser uma falta de prumo ou um movimento. É seguindo o desenvolvimento moderno da noção de natureza que tentamos aqui nos aproximar dessa ontologia nova.” (Merleau-Ponty 13, p.371)
O que nos interessa é a maneira como Merleau-Ponty situa uma nova ontologia
a partir de uma interpretação da filosofia clássica e do fracasso das filosofias dialéticas.
Sob essa perspectiva, podemos indagar se o início e o término da obra merleaupontyana
são tão diferentes e contrastantes como supusemos há pouco, uma vez que A Estrutura do
Comportamento, graças à idéia de ordem física, vital e humana ou simbólica, já prepara
a aproximação entre natureza e história, realizada nos cursos do Collège de France sobre
a idéia de natureza, e, por seu turno, os capítulos finais da Fenomenologia da Percepção
dedicam-se à temporalidade e à liberdade, a partir da relação entre corpo e espírito como
encarnação e da relação entre homem e mundo como situação. Em outras palavras, aquilo
que essas duas obras chamam de mundo, os cursos do Collège de France chamam de
natureza, mudança que, afinal, já se encontra presente em “Le philosophe et son ombre”,
quando Merleau-Ponty afirma que a natureza é mundo sensível.
Como natureza, o mundo é profundo e nosso contacto com ele, ambíguo:
passamos da superfície ao seu interior porque é ele próprio que se oferece com imensas
regiões de sombras onde as coisas já se fizeram antes de nossa chegada. O originário para
o homem não é a gênese ideal que as filosofias da consciência propuseram, mas aquilo
que imediatamente “o articula sobre outra coisa que não ele mesmo; aquilo que introduz
em sua experiência, conteúdos e formas mais antigas do que ele e dos quais ele não é o
senhor”(Merleau-Ponty 4, p.87). É esse mundo-natureza que a pintura de Cézanne deseja
alcançar, a natureza em estado nascente, antes do homem e antes que o homem nela tenha
depositado suas pegadas ou seus rastros. E esse mundo-natureza faz com que o homem
esteja imerso em múltiplas temporalidades, algumas dispersas, outras concentradas,
algumas mais velhas do que ele, outras criadas por sua ação ou por sua mera presença,
de sorte que passado e futuro não são momentos de um presente que já foi ou que ainda
será, mas dimensões de uma temporalidade aberta, feita de retomadas, sedimentações e
criações. Isso significa, portanto, uma nova concepção da historicidade. Donde a crítica
às filosofias dialéticas e, no Éloge de la philosophie, a crítica à temporalidade hegeliana,
que finda no “dia eterno do presente” (para usarmos a expressão cunhada por Paulo
Arantes), ou de “de um pensamento que pelo movimento que realiza ― totalidade reunida,
apreensão violenta no final do desenvolvimento ― curva-se sobre si mesma, ilumina sua
própria plenitude, acaba seu círculo, se reencontra em todas as figuras estranhas de sua
odisséia e aceita desaparecer no mesmo oceano onde tinha brilhado”.
Em suma, de Descartes a Hegel, o infinito positivo – esteja ele no começo ou
no final do percurso – desenha a filosofia como crença na determinação completa, seja do
visível, seja do invisível, seja da percepção, seja a da linguagem e do pensamento. Dessa
maneira, ao erguer-se contra a figura do filósofo como kosmotheóros, Merleau-Ponty se
ergue contra a filosofia clássica e as filosofias dialéticas, mas o interessante é que o faça
tendo como horizonte a superação da fenomenologia husserliana.
***
Desde La Structure du Comportement e da Phénoménologie de la Perception,
a crítica do empirismo e do idealismo, do mecanicismo causalista e do intelectualismo
retomava constantemente as conseqüências do dualismo substancial inaugurado pela
metafísica clássica, isto é, o dilema coisa-consciência, que redundaria na cisão sujeito-
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Marilena Chaui
objeto, consumada em proveito do primeiro no criticismo kantiano e em proveito do
segundo no dogmatismo empirista. No entanto, o trabalho de Merleau-Ponty se realizava
no interior de um campo de pensamento aberto pela fenomenologia husserliana, pela
Psicologia da Forma e pelo existencialismo de Heidegger, portanto, no interior de
referenciais que não estavam livres do risco do essencialismo (como aquele que espreita
a fenomenologia quando crê na possibilidade da variação completa e numa Wesenschau
inteiramente desligada da faticidade por parte do sujeito absoluto), do objetivismo (como
aquele em que cairá a Psicologia da Forma, seduzida pela geometria e pelas ciências
naturais), nem do humanismo (como aquele que ronda o existencialismo, quando
identifica existência e homem, confundindo a finitude do ser-para-a-morte com as
limitações empíricas “vividas”). Esses riscos tendem a ser evitados por Merleau-Ponty
porque La Structure du Comportement e a Phénoménologie de la Perception situam-
se fora do campo de uma psicologia eidética e de uma fenomenologia das essências
psíquicas preliminares à explicação científica dos fatos psíquicos. Também não se situam
no interior de uma constituição universal efetuada pelo sujeito filosófico. Pelo contrário,
contestam a explicação científica e a análise reflexiva. Por um lado, procuram essências
— do comportamento e da percepção — mas, por outro , não as procuram em regime de
redução. Visto considerar impossível a constituição transcendental como ato do sujeito
constituinte, Merleau-Ponty não trabalha com a separação entre noema-noesis e a tese
do mundo natural, mas busca a essência do comportamento e da percepção no interior
da faticidade ou do que chama de existência. Interessa-se menos pela essência como
significação pura ou síntese lógica e muito mais pela intencionalidade operante. Busca,
como toda fenomenologia, a “aparição do ser para a consciência” sem, contudo, à maneira
do idealismo transcendental, considerá-la um ato centrífugo de significação ou
pura doação de sentido. Conseqüentemente, também não toma o ser que aparece
como posição ou tese ou modalidade ou correlato da consciência, mas como
enraizamento e solo originário da consciência, que será sempre, e em última
instância, consciência perceptiva.
La Structure du Comportement procura as relações entre a consciência e a
natureza física e orgânica e entre ela e o mundo psíquico e social para além da solução
kantiana, do vitalismo e do mecanicismo. “Na França”, escrevia Merleau-Ponty na
Introdução, “estão justapostas uma filosofia que faz da Natureza uma unidade objetiva
constituída diante da consciência e ciências que tratam o organismo e a consciência
como duas ordens de realidades e, em suas relações recíprocas, como ‘efeitos’ ou
como ‘causas’” (Merleau-Ponty 10, p.2). Assim, entre um certo kantismo, que abolia o
problema da natureza reduzindo-a à construção permitida pela analítica transcendental,
um vitalismo, prestes a converter-se em espiritualismo, e um mecanismo reducionista,
para o qual certos acontecimentos físicos no cérebro tinham a peculiaridade de
aparecerem como conscientes, Merleau-Ponty retorna às questões clássicas das relações
entre a alma e o corpo (título do capítulo final do livro) e encontra na noção de estrutura
do comportamento uma via para ultrapassar a ilusória alternativa em que se debatiam
mecanicistas e vitalistas, ou a alternativa entre as causas e efeitos “observáveis” e os fins
“inobserváveis”. Revelando o comportamento como estrutura, isto é, como totalidade
auto-regulada de relações dotadas de finalidade imanente, torna possível afastar a
causalidade mecânica e a finalidade externa.
O capítulo final de La structure du comportement, dedicado à clássica questão
das relações entre a alma e o corpo, prepara uma fenomenologia da percepção voltada
para a descrição do campo pré-reflexivo, para uma fundação perceptiva do mundo
realizada pelo corpo próprio e no corpo próprio enquanto corpo cognoscente ou
princípio estruturante. A reflexão aparece como ato segundo porque não pode anular
sua dependência ao pré-reflexivo onde se efetua a gênese do sentido, mas este, por seu
turno, não dispensa a reflexão porque esta explicita e exprime o que existe tacitamente
no simbolismo do corpo e do mundo. A reflexão desponta como exposição de uma
posição pré-reflexiva originária.
A Introdução da Phénomélogie de la Perception, passando criticamente em
revista as noções de sensação, associação, atenção e juízo como preconceitos que formam
o tecido cerrado da psicologia intelectualista e da filosofia reflexiva, chega à estrutura
agora apresentada como campo fenomenal enquanto campo transcendental e, assim,
afasta o Ego transcendental. Fazendo do campo transcendental a articulação originária
entre o exterior e o interior e tomando o pensamento uma saída de si, Merleau-Ponty
transforma a idéia de verdade. O eidos não é essência separada cujo requisito é “uma
absoluta posse de si no pensamento ativo, sem a qual este não conseguiria se desenvolver
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numa série de operações sucessivas e construir um resultado válido para sempre”. Contra
a imanência transcendental, Merleau-Ponty faz intervir a noção husserliana de dupla
Fundierung, baralhando a separação clássica entre verdades de fato e de razão:
“A relação entre a razão e o fato, a eternidade e o tempo, a reflexão e o irrefletido, o pensamento e a linguagem ou entre o pensamento e a percepção é essa relação em duplo sentido que a fenomenologia chamou de Fundierung: o termo fundante — o tempo, o irrefletido, o fato, a linguagem, a percepção — é primeiro no sentido de que o fundado se dá como uma determinação ou explicitação do fundante, o que lhe proíbe reabsorvê-lo, entretanto, o fundante não é o primeiro no sentido empirista e o fundado não é simplesmente derivado, pois é através do fundado que o fundante se manifesta”. (Merleau-Ponty 1, p.)
Isso significa, por um lado, que as verdades são de mesma ordem que
as percepções, ou seja, feitas de pressupostos que não podemos explicitar até o fim
para obter uma evidência sem lugar e sem tempo, e, por outro , que a reflexão ou o
pensamento de pensar não está mais às voltas com o dogmatismo ou com o criticismo,
mas com a descoberta de sua “espessura temporal” e de seu “engajamento corporal”,
com o fato de que não somos nenhum de nossos pensamentos particulares e, todavia, só
nos conhecemos através deles.
A Phénoménologie de la Perception descreve ek-stases e não operações
reflexivas. Por isso a chegada ao Cogito não só inverte a fórmula cartesiana, exprimindo-
se como “sou, logo penso”, pois a consciência está atada por dentro à existência, como
ainda desemboca no Cogito tácito. O Cogito não é inerência psicológica nem imanência
transcendental, não é unidade sintética, como queria Kant, mas, como dizia Heidegger,
é coesão de vida. É precedido e sustentado por um irrefletido irredutível. Não está junto
a si senão estando fora de si, pois o Cogito explícito não se realiza no silêncio, mas
exprimindo-se e, portanto, como linguagem. Assim como o sujeito da geometria é um
“sujeito motriz”, também o sujeito da reflexão é um “sujeito falante”, de modo que o corpo
não é um suporte ou um instrumento do espírito, mas corpo de um espírito pelo qual este
pode ser espírito. O Cogito desencarnado não seria Cogito, seria Deus. Como ek-stase
ou transcendência, o Cogito abre, assim, para a descrição do tempo, que não é deduzido
das conseqüências da subjetividade, mas descoberta de que o sujeito é temporalidade.
O tempo, transcendência e síntese (o sistema das retenções e pretensões husserlianas) é
“lançamento de uma potência indivisa num termo que lhe é presente”. A transcendência
inscrita no coração da subjetividade leva, por fim, à descrição da liberdade. Esta, muito
mais do que situada, é descrita por Merleau-Ponty como encarnada.
A conclusão de Phénoménologie de la Perception nos convida a reler seu
Prólogo, no qual Merleau-Ponty apresenta a fenomenologia husserliana como projeto de
uma filosofia radical e examina os conceitos husserlianos — intencionalidade, descrição,
redução e constituição — em duas direções. Retoma, de um lado, o projeto de Husserl
e, de outro, discute seu fracasso aparente. A intencionalidade enraíza a consciência, em
lugar de separá-la do mundo; a redução eidética, na tentativa de captar as essências para
além da “tese natural do mundo”, descobre a faticidade irredutível que funda o possível
sobre o real; a constituição mergulha num solo de postulados que desvendam tudo quanto
não constituímos. A impossibilidade da intencionalidade pura e da redução completa é,
portanto, impossibilidade da constituição transcendental.
“A fenomenologia como revelação do mundo repousa sobre si mesma ou, ainda, funda a si mesma. Todos os conhecimentos se apóiam sobre um solo de postulados e, finalmente, sobre nossa comunicação com o mundo como primeiro estabelecimento da racionalidade. A filosofia como reflexão radical priva-se, em princípio, desse recurso. Como também está na história, também usa o mundo e a razão constituída. Será preciso, pois, que dirija a si mesma a interrogação que dirige a todos os conhecimentos e, portanto, ela se reduplicará indefinidamente, será, como diz Husserl, um diálogo ou uma meditação infinita e, na medida em que permaneça fiel a si mesma, nunca saberá onde vai. O inacabamento da fenomenologia, seu compasso incoativo não são signos de fracasso. Eram inevitáveis porque a fenomenologia tinha como tarefa revelar o mistério do mundo e o mistério da razão.”( Merleau-Ponty 1, p.XVI)
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O “compasso incoativo” da fenomenologia, isto é, seu recomeçar perene,
oposto à redução e constituição transcendentais, afirma a recusa da filosofia como auto-
fundação, recusa que se explicita de maneira admirável na idéia de instituição, como
veremos logo mais.
***
Pensamos que a crítica do legado do Grande Racionalismo se consuma na
interpretação de sua última figura, qual seja, a fenomenologia husserliana.
Em “Le Philosophe et son Ombre”, Merleau-Ponty estende e distende a
fenomenologia até o limite entre dois extremos que podem aniquilá-la. Numa ponta,
examinada na primeira parte do ensaio, encontra-se a redução transcendental, que
não consegue reduzir a natureza, descobrindo que esta, afinal, é irrelativa. A redução,
portanto, deve contentar-se em ser redução eidética e a fenomenologia precisa admitir
que a infra-estrutura secreta e selvagem onde nascem nossas teses não pode ser
produzida pelos atos da consciência absoluta. Na outra ponta, examinada na terceira
parte do ensaio, encontra-se a constituição transcendental, que não consegue fundar a
própria reflexão, mas apenas usá-la e transformá-la num artefato filosófico, de modo
que a consciência constituinte, não podendo efetuar uma reflexão-da-reflexão que a
pusesse a si mesma, precisa contentar-se em ser constituída vagarosa e dificultosamente
por nossa experiência. Entre esses dois extremos, a reabilitação ontológica do sensível
é empreendida pela segunda parte do ensaio.
A primeira parte termina declarando que Husserl se sentira igualmente atraído
pela “ecceidade da natureza” e pelos “turbilhões da consciência” e que descobrira
haver alguma coisa entre a transcendência e a imanência, cabendo a quem retomasse o
empreendimento fenomenológico prosseguir caminho nesse entre-dois. A terceira parte
culmina na afirmação de que o projeto de Husserl como projeto de posse intelectual do
mundo é insensato e que o próprio filósofo disso soubera quando, em 1912, falara na
simultaneidade do real — natureza, animais, espíritos. Para que a terceira parte possa
discorrer sobre a hybris husserliana é preciso, antes, trilhar o entre-dois, o espaço cavado
entre a redução e a constituição, isto é, urge passar pela reabilitação ontológica do
sensível. Visando à imanência, a redução e a constituição redescobriram a transcendência;
entre ambas, o sensível se descobre como ser à distância, fulguração, aqui e agora, das
lembranças e promessas de outras experiências.
As dificuldades da redução, escreve Merleau-Ponty, não são preliminares à
investigação filosófica, mas seu começo, e como são dificuldades insuperáveis, o começo
é contínuo. A redução é contraditória porque, se não é “natural” e sim o contrário da
natureza, esta deve ser inteiramente constituída pela consciência e ser relativa, enquanto o
espírito deve ser absoluto, mas, em contrapartida, a natureza não é produzida pelo espírito
e a imanência transcendental não é mera antítese da atitude natural.
Nas Idéias II, Husserl considerara problemática a passagem do “objetivo” ao
“subjetivo”, pois o Eu teórico puro que visa as puras e nuas coisas não é o sujeito filosófico,
mas a ciência da natureza, herdeira de um naturalismo filosófico. O sujeito procurado por
Husserl o conduzia “abaixo” desse naturalismo, a um “meio ontológico diverso do em-si
e que na ordem constitutiva não pode ser derivado deste último”, visto ser primeiro. Na
verdade, a atitude natural não é “atitude” (conjunto de atos judicatórios e proposicionais),
não é tética, mas síntese aquém de toda tese ou uma fé primordial ou opinião originária,
que opõe ao originário da consciência teórica o originário de nossa existência. Resulta
dessa descoberta que a atitude natural não se relaciona com a transcendental como o antes
e o depois, nem como passagem do obscuro e confuso ao claro e distinto, nem como
supressão da aparência pela verdade da essência. A atitude transcendental está preparada
na atitude natural como antecipação e preparação intencionais. Justamente por isso, a
redução descobre que o espírito precisa da natureza para ser espírito, enquanto a natureza
dele não carece para ser natureza. A coisa natural pode ser inteiramente compreendida por
si mesma, enquanto o espírito, por ser intencional, não pode ser auto-suficiente e, como
disseram as Idéias II, um espírito sem corpo não será espírito.
A fenomenologia é desvendamento da “camada pré-teorética” como solo
irredutível das “camadas teoréticas” e, por antecedê-las e explicá-las, pode ultrapassá-las.
No entanto, essa “arqueologia”, escreve Merleau-Ponty, não deixa intactos os instrumentos
de trabalho da fenomenologia porque modifica o sentido da intencionalidade, do noema
e da noesis e talvez não permita que se continue procurando numa analítica dos atos
da consciência a mola de nossa vida e do mundo. Apontando para a “constituição
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pré-teorética dos pré-dados”, Husserl vislumbrava uma intencionalidade operante e
espontânea, latente, mais velha e mais nova do que a intencionalidade dos atos de
consciência. Percebia que os fios intencionais se agrupam ou se enovelam em torno de
certos nós sem, contudo, terminarem na posse intelectual de um noema, de sorte que o
percurso não tem começo nem fim.
Longe dessas descobertas serem um empecilho para a fenomenologia, vão abrir-
lhe um campo novo de investigação e configurar a reabilitação ontológica do sensível,
desde que rumar para a camada sensível não implique permanecer cativo de seus enigmas
e, sim, decifrá-los. Está em questão, portanto, a idéia de natureza. Deixando de tomá-la
como unidade constituída e como “unidade dos objetos dos sentidos”, Husserl passara a
defini-la como “totalidade dos objetos que podem ser pensados originariamente e que, para
todos os sujeitos comunicantes, constitui um domínio de presença originária”. A natureza
tornava-se, afinal, mundo sensível, de que dependem as evidências e a universalidade
das relações de essência. Noutros termos, a relação fato-essência foi transtornada. Mas a
natureza não é só presença originária do que pode ser originariamente pensado. É ainda
o que se oferece como presença a “sujeitos comunicantes” sendo, portanto, inseparável
da linguagem. Assim procedendo, Husserl ampliava indefinidamente o sensível, pois este
não são apenas as coisas, mas “tudo que nelas se desenha, mesmo no oco, tudo que nelas
deixa vestígio, tudo que nelas figura, mesmo a título de afastamento e como uma certa
ausência”. Essa ampliação desenha no tecido do sensível o perfil de outras sensibilidades
— os animalia — e de outros pensamentos — os animais humanos —, isto é, “seres
absolutamente presentes que têm uma esteira de negativo”. No caso dos homens, é o
comportamento (visível) que nos ensina haver ali um outro espírito (invisível). O sensível
é, pois, o universal.
Podemos adivinhar o que sucederá à constituição transcendental. Num primeiro
momento, porque a encarnação da consciência transtorna as relações entre o constituído
e o constituinte, corre-se o risco de tentar conservar a fenomenologia deslizando-se
para o psicologismo ou para a antropologia filosófica, isto é, confundindo-se empírico
e transcendental. Esse risco pode ser evitado se o filósofo, além de compreender o
que Husserl chamara de dupla Fundierung, também se voltar para a articulação entre
constituição e sedimentação.
Merleau-Ponty se interessa pela sedimentação como auto-esquecimento ou
como olvido de si, que permite compreender o movimento de constituição das idealidades
enquanto derivação da intersubjetividade carnal (o sensível como presença original
para sujeitos comunicantes), desde que esta seja esquecida como inerência ao mundo,
em virtude de sua própria capacidade para se esquecer de si mesma. A constituição
desemboca em círculos — das coisas com as pessoas, destas com o corpo, que também é,
sob certos aspectos, uma coisa; da natureza impessoal com um todo que engloba pessoas
que, por seu turno, enquanto sujeitos comunicantes, irão constituir em comum a própria
Natureza. Cada camada, no ponto onde se constitui, retoma as precedentes e invade as
seguintes, é anterior e posterior a si mesma, de modo que a constituição não tem começo
nem fim, levando Husserl a falar em simultaneidade. A constituição nascera para igualar
pela reflexão nossa atitude natural, que é espontaneamente naturalista e personalista,
“excêntrica” e “egocêntrica”, passando tranqüilamente de uma posição à outra sem o
menor problema. A reflexão deveria dar conta do trânsito entre as atitudes naturais e do
transitivismo entre elas; deveria, a partir da própria interioridade, explicar a passagem do
interior ao exterior, e vice-versa. Para ser reflexão absoluta teria, além dessa explicação,
que fundar a própria interioridade fundadora da explicação e, portanto, teria que pôr-
se a si mesma como reflexão, efetuando uma reflexão-de-reflexão. Dessa autoposição
radical depende a possibilidade da gênese transcendental. E isso a reflexão não consegue
efetuar; não consegue reflexionar-se. Não é capaz de se pôr como inteligência de todas
as intelecções. Sendo forçada a admitir que a consciência constituinte é constituída, a
fenomenologia deve tomá-la como artefato, como impostura profissional do filósofo e
não como atividade do atributo espinosano do pensamento. O fracasso da constituição
transcendental é compreendido por Husserl, tanto assim que, nos textos inéditos pode-se
ver que ele pretendia que o pensamento fosse capaz de compreender a junção simultânea
da natureza, do corpo e do espírito, já que somos essa junção. A tarefa da fenomenologia
começava, agora, pela admissão dessa existência simultânea e pela necessidade de
pensar sua relação com a não-fenomenologia. Teria, finalmente, que abdicar da gênese
transcendental e encaminhar-se para uma ontologia.
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“à medida que o pensamento de Husserl amadurece, a constituição torna-se cada vez mais o meio para revelar um avesso das coisas que não constituímos. Foi preciso a tentativa insensata de tudo submeter às conveniências da consciência, no jogo límpido de suas atitudes, de suas intenções, de suas imposições de sentido, foi preciso levar até o fim o retrato de um mundo bem comportado, que herdamos da filosofia clássica, para revelar todo o resto: os seres aquém de nossas idealizações e objetivações, que as nutrem secretamente e nos quais temos dificuldade para reconhecer os noemas.” (Merleau-Ponty 6, p.227)
Donde o lugar ocupado, em Le visible et l’invisible, pela crítica à concepção
husserliana da intuição de essência, que poderíamos designar como o último avatar do
desejo da determinação completa inaugurado pelo Grande Racionalismo. Escreve, então,
Merleau-Ponty:
“Não há mais essências acima de nós, objetos positivos, oferecidos a um olho espiritual, há, porém, uma essência sob nós, nervura comum do significante e do significado, aderência e reversibilidade de um no outro, como as coisas visíveis são dobras secretas de nossa carne e de nosso corpo, embora este também seja uma das coisas visíveis.” (Merleau-Ponty 11, p.158)
Como se dá a passagem da essência-noema, completamente determinada, à
essência operante, aberta à indeterminação? Merleau-Ponty parte de três indagações:
pode a essência ser considerada acabamento de um saber? pode-se alcançar a essência
da experiência? quem é o sujeito que intui essências desligadas da faticidade? A primeira
questão é respondida negativamente, pois a essência sendo essência “de alguma coisa”,
só pode ter certeza de seu conteúdo e de sua adequação ou verdade supondo a existência
daquilo de que é essência, porém essa suposição era o que deveria ser explicado por ela
ao invés de ser sua justificação. Como a dúvida metódica, a epochê é um positivismo
clandestino ainda que deliberado. A essência é apenas um in-variante e não um ser positivo.
A segunda questão também é respondida negativamente. Para que a essência não tivesse
qualquer pressuposto e fosse inteiramente pura teria que realizar a variação completa
da experiência e pagar um preço que não pode pagar, pois a experiência-em-essência
será tudo quanto se queira menos essência da experiência. Liberada das “impurezas” da
faticidade, a experiência terá perdido o que faz ser experiência: a inerência sensível, o
inacabamento ou a transcendência, em suma, a abertura. Despojando-a, pela imaginação
transcendental, de todo solo e de todo apoio, sua essência será “um recuo para o fundo
do nada”. E não há possibilidade de conservar em pensamento sua adesão ao mundo,
porque, neste caso, já não será essência. À terceira pergunta, Merleau-Ponty responde
descrevendo a figura do Kosmotheoros como poder absoluto de ideação que sobrevoa
o mundo e domina o espetáculo, fazendo do real uma variante do possível. A posição
de um observador absoluto é a origem da dicotomia fato-essência, ou da suposição de
duas modalidades opostas de existência: a do que existe individualizado num ponto
do espaço e do tempo, e a do que existe para sempre em parte alguma. Na verdade,
diz Merleau-Ponty, não temos aí duas existências, mas duas positividades abstratas, as
essências sendo duplicação inteligível dos fatos. Donde a questão: somos o observador
absoluto fora do espaço e do tempo? ou estamos no espaço e no tempo? No primeiro
caso, dir-se-á que o sujeito é essência; no segundo, fato. E, em ambos, reabre-se o
problema que a posição de um observador tinha justamente a finalidade de resolver. A
separação entre a superfície plana dos fatos e o corte transversal das essências não dá
passagem à experiência e à essência.
Deslocando-se do espectador para o vidente, Merleau-Ponty desfaz a abstração
dos fatos. Não há fatos. Há o sensível vindo a si em cada coisa como textura e espessura
visual, táctil, sonora, presente ao nosso corpo como uma extensão e uma duplicação dele.
Também não há coisas como indivíduos espaciais e temporais, cada qual em seu lugar
e data, como atores bem treinados para entrar e sair do palco, nele ocupar um ponto
fixado de antemão e repetir falas ensaiadas previamente. Porque não estão num palco, as
coisas não são objeto de contemplação de um espectador cujo olhar varreria totalmente
o cenário, cujo pensamento alcançaria os bastidores e cujo discurso seria posse do texto
original. Coisas e vidente são “um relevo do simultâneo e do sucessivo, polpa espacial
e temporal onde os indivíduos se formam por diferenciação”. Experimentadas por nós
de seu interior e de nosso interior, as coisas não são objetos sólidos que se converteriam
em puras essências, passando para o palco do espírito preparado pelo grande espectador.
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Com isto, se desfaz também a abstração das essências.
O desaparecimento da abstração dos fatos e das essências, das coisas e das
idéias, do em-si e do para-si, da oposição entre o exterior e o interior significa, antes
de mais nada, o abandono de uma noção de expressão, com a qual, ainda no interior
da fenomenologia, Merleau-Ponty buscava enfrentar as aporias filosóficas deixadas por
Husserl. Significa, ainda, que a mudança dessa noção (mudança que aparecerá em Les
aventures de la dialectique, nas notas de trabalho de Le visible et l’invisible e em L’oeil
et l’esprit) conduz o filósofo a uma reinterpretação da noção goethiana e weberiana de
afinidades eletivas como “prodigioso entrelaçamento” de dimensões naturais, vitais,
sociais, intelectuais, pessoais e históricas. Ora, essa nova concepção da expressão tem um
pressuposto preciso, qual seja, a noção de instituição.
***
Comecemos por uma noção que consideramos estar na base do tratamento
merleaupontyano da instituição: a de estrutura, tomada inicialmente da Gestaltheorie e, a
seguir, da lingüística saussuriana e da antropologia social de Lévi-Strauss.
“Para o filósofo, presente fora de nós nos sistemas naturais e sociais, e em nós como função simbólica, a estrutura indica um caminho fora da correlação sujeito-objeto que domina a filosofia de Descartes a Hegel. (...) O filósofo ao qual ela interessa não é aquele que quer explicar ou construir o mundo, mas aquele que busca aprofundar nossa inserção no ser.” (Merleau-Ponty 8, p.165)
Apreendida internamente, uma estrutura “é um princípio de distribuição, o
pivô de um sistema de equivalências, é o Etwas de que os fenômenos parcelares são
a manifestação” (Merleau-Ponty 11, p.193)1. Por isso mesmo, não é uma essência
nem uma idéia, não é essência dada a um espírito nem constituída por ele, não é
a-espacial nem a-temporal, assim como não é uma coisa. É uma dimensão do ser.
Nem coisa nem idéia, uma estrutura é um sistema de puras relações e diferenças
internas, de sorte que não é arranjo ou mosaico de partes isoláveis nem substância
extensa ou pensante. É uma significação encarnada que possui um princípio interno
de organização e de auto-regulação.
A estrutura, escreve Merleau-Ponty, é uma maneira nova de ver o ser. Por que?
Porque, ao desprendê-lo da metafísica do dualismo substancial e da oposições entre
o em-si e o para-se, nos permite alcançá-lo como ser de indivisão, pois as estruturas
qualitativamente distintas são dimensões do mesmo ser. Por outro lado, a estrutura
também se desprende das filosofias transcendentais, nas quais o ser se reduz às categorias
e aos conceitos que o entendimento lhe impõe e que o reduzem ao “ser posto” ou ao
“ser constituído”: com a estrutura, deixamos a tradição do que é posto ou constituído
pelas operações intelectuais e alcançamos o há originário, mais velho do que nossas
operações cognitivas, que dele dependem e que, esquecidas dele, imaginam constituí-lo.
Além disso, a noção de estrutura nos afasta da tradição científica fundada em explicações
causais de tipo mecanicista e funcionalista ou em explicações finalistas, isto é, apoiada
no recurso a princípios externos encarregados de dar conta tanto da gênese como das
transformações de uma realidade qualquer. De fato, porque possui um princípio interno
de auto-regulação, a gênese da estrutura encontra-se nela mesma como processo global
e imanente de auto-distribuição dos constituintes; por outro lado, uma estrutura é
pregnante, grávida ou fecunda, ou seja, possui um princípio interno de transformação
ou, como escreve Merleau-Ponty, ela é “fecundidade, poder de eclosão, produtividade”,
um acontecimento, trazendo nela mesma o princípio de seu devir. Ela é, lemos no ensaio
sobre Mauss e Lévi-Strauss “a inteligibilidade em estado nascente” porque é “junção de
uma idéia e de uma existência indiscerníveis, arranjo contingente por cujo intermédio os
materiais se põem a ter sentido para nós”.
A pregnância ou fecundidade da estrutura permite, por exemplo, apreender o
envolvimento recíproco da sincronia e da diacronia na estrutura lingüística e no ato de
falar, pois a sincronia contém, no presente, o passado da língua e anuncia seu futuro, graças
à retomada incessante dos agentes lingüísticos. Como sistema simbólico, a língua é um
campo aberto ao ausente ou ao possível, nela cada significação aponta para um horizonte
que ultrapassa o significado instituído e, pela ação instituinte dos sujeitos falantes, um
novo sentido se engendra. Em outras palavras, a estrutura é uma totalidade aberta, uma
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matriz simbólica que nos permite interrogar a história de maneira nova.
“Como chamar, senão de história, esse meio no qual uma forma sobrecarregada de contingência abre subitamente um ciclo de porvir e o comanda com a autoridade do instituído? Não, sem dúvida, uma história que quisesse compor todo o campo humano com acontecimentos situados e datados num tempo serial e de decisões instantâneas, mas uma história que sabe que o mito, o tempo lendário assombram, sob outras formas, os empreendimentos humanos, que investiga além e aquém dos acontecimentos parcelares, e que se chama justamente história estrutural.” (Merleau-Ponty 8, p.164-165)
Acreditamos que a dimensão simbólica e temporal da estrutura, sua pregnância
ou produtividade auto-regulada e aberta, é o que permite acercar-nos da inteligibilidade
da noção merlaupontyana de instituição, da qual o filósofo enfatiza, exatamente como o
faz com a noção de estrutura, a produtividade e a fecundidade, referindo-se a ela como
“germinação de uma vida e de uma obra em torno de dados ‘contingentes’. Vínculo do
acontecimento e da essência” (Merleau-Ponty 4, p.89).
***
Na ementa do curso de 1954-1955, no Collège de France, a noção de instituição
é assim apresentada:
“Entende-se aqui por instituição aqueles acontecimentos de uma experiência que a dotam de dimensões duráveis, com relação às quais toda uma série de outras experiências terão sentido, formarão uma seqüência pensável ou uma história. Ou ainda os acontecimentos que depositam um sentido em mim, não a título de sobrevivência e de resíduo, mas como apelo a uma seqüência, exigência de um porvir.” (Merleau-Ponty 4, p.89)
E, numa das aulas, diz Merleau-Ponty:
“Instituição significa, pois, estabelecimento em uma experiência de dimensões (no sentido geral, cartesiano: sistema de referências) com relação às quais toda uma série de experiências terão sentido, farão uma seqüência, uma história” (Merleau-Ponty 4, p.38).
Na apresentação do curso, Merleau-Ponty afirma que a noção de instituição é
buscada por ele “como um remédio para as dificuldades da filosofia da consciência”. De
fato, escreve ele,
“Diante da consciência, só há objetos constituídos por ela. Mas se admitirmos que alguns dentre eles nunca o são completamente, eles são a cada instante o reflexo exato dos atos e poderes da consciência, nada há neles que possa relançá-la rumo a outras perspectivas, não há, da consciência ao objeto, troca, intercâmbio, movimento. Se ela considera seu próprio passado, tudo o que ela sabe é que houve, lá longe, esse outro que se chama misteriosamente eu, mas que não tem comigo nada em comum senão uma ipseidade absolutamente universal. É por uma série contínua de explosões que meu passado cede lugar ao meu presente. Enfim, se a consciência considera os outros, sua existência própria não é para ela senão sua pura negação, ela não sabe que eles a vêem, ela sabe apenas que é vista. Os diversos tempos e as diversas temporalidades são incompossíveis e formam apenas um sistema de exclusão recíproca” (Merleau-Ponty 4, p.123).
Que sucederia, porém, se o sujeito, em vez de constituinte, fosse instituinte?
Antes de mais nada, compreenderíamos que ele não é instantâneo, mas que o que começou
não é algo longínquo situado no passado nem é atual como uma lembrança assumida, mas
é o campo de seu devir. O sujeito instituinte-instituído é “aquele que põe em marcha
uma atividade, um acontecimento (...) que abre um porvir. O sujeito é aquilo a que as
ordens de acontecimentos podem advir”. Compreenderíamos também que outrem não é
simplesmente o negativo do eu, que eu e o outro coexistem porque cada um pode retomar
o instituído e recriá-lo.
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Exatamente como no caso da noção de estrutura, que Merleau-Ponty emprega
para pensar a natureza física, o organismo vivente e a ordem simbólica da cultura, e da
noção de campo transcendental, que emprega para pensar a percepção como corporeidade,
intersubjetividade, temporalidade e liberdade, também a noção de instituição é empregada
por ele para pensar a natureza, a animalidade, a vida pessoal privada, as obras de arte e
de pensamento e a sociabilidade ou a vida pública e, sobretudo, como história, ou como
“acontecimentos matrizes que abrem um campo histórico que tem unidade”. Diz ele:
“A instituição é o que torna possível uma série de acontecimentos, uma história: acontencimentalidade de princípio” (Merleau-Ponty 4, p.44).
Em outras palavras, a instituição abrange o campo da natureza e o da cultura, o
que significa, em primeiro lugar, que a oposição entre exterioridade e interioridade
ou entre o em-si e o para-si é desfeita – “com a noção de instituição como exterior-
interior, propomos justamente como sair da solidão filosófica” – e, ao mesmo tempo,
como conseqüência, ela modifica a relação com o mundo, que deixa de se apresentar
sob o modo da presença imediata para surgir como abertura, perspectiva, configuração;
em segundo lugar, significa que com essa noção emerge, finalmente, a inteligibilidade
da articulação entre contingência e necessidade, entre criação do sentido e devir do
sentido. Agora, natureza é pensada como historicidade imanente e a cultura, como
diferença temporal e não como distinção empírica dos tempos nem como história
universal. Em outras palavras, o tempo, diz Merleau-Ponty, é o modelo da instituição:
é passividade-atividade, continuação porque houve um começo, início porque é ato,
total porque parcial.
A instituição não é coisa nem idéia, não é um conceito, é uma ação, um
acontecimento, uma práxis – sob esta perspectiva, ela oferece uma sentido alargado para
aquilo que a Phénoménologie de la perception designava como “eu posso” e La structure
du comportement designava como comportamento, ao defini-lo não como movimento,
mas como trajeto e ato, não como repetição, mas como relação com o espaço-tempo
valorados, em suma, como capacidade para o novo, o genérico, o particular e o universal.
Donde a insistência de Merleau-Ponty de que o modo de ser da instituição não é o de um
fazer eficaz ou eficiente fundado numa relação entre meios e fins e numa escolha, mas é
uma operação simbólica ou um ato, que pode ser designado como nascimento, entendido
como “instituição de um provir”. A instituição, como nascimento, é ato iniciante ou
gênese, cuja peculiaridade é ser uma gênese continuada cuja seqüência não está pré-
determinada. É essa indeterminação que Merleau-Ponty sublinha ao dizer:
“A instituição no sentido forte é aquela matriz simbólica que faz com que haja abertura de um campo, de um porvir, segundo dimensões, donde [ser] possibilidade de uma aventura comum e de uma história como consciência.” (Merleau-Ponty 4, p.45)
***
Ao concluir “Le Philosophe et son Ombre”, Merleau-Ponty dizia que as
descobertas tardias de Husserl e a tranqüilidade com que as expunha, demolindo muitas de
suas antigas certezas, não deviam surpreender nem escandalizar os leitores, pois estavam
anunciadas como problemas desde suas primeiras obras. Dá-se com a obra de Husserl o
mesmo que se dá na gênese do espaço pictórico:
“ainda quando é possível datar a emergência de um princípio para si, este já se encontrava anteriormente presente na cultura a título de inquietação ou de antecipação e a tomada de consciência que o põe como significação explícita apenas completa sua longa incubação num sentido operante. A cultura nunca nos dá significações absolutamente transparentes, a gênese do sentido nunca está acabada. O que chamamos nossa verdade só é contemplado por nós num contexto de símbolos que datam nosso saber”. (Merleau-Ponty 5, p.52)
Esta passagem elucida o sentido da noção merleaupontyana de instituição, que
aqui examinaremos brevemente a propósito das obras de arte e de pensamento. Lemos
numa passagem das notas de seu curso:
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“Para o artista, a obra é sempre um ensaio. E para a história, a pintura inteira é um começo. Como exprimir filosoficamente esse sentido? A noção de instituição é a única capaz de fazê-lo, como abertura de um campo em cujo interior se pode descrever fases; não apenas um pulular de obras e achados, mas tentativas sistemáticas, um campo que, como o campo visual, não é o todo, não tem limites precisos e abre para outros campos” (Merleau-Ponty 4, p.79).
Cada obra de arte ou de pensamento retoma uma tradição: a da percepção, as
obras dos outros, as obras anteriores do mesmo artista ou pensador, mas, simultaneamente,
institui uma tradição, isto é, abre o tempo e a história, funda novamente seu campo de
trabalho e, incidindo sobre as questões que o presente lhe coloca, resgata o passado ao
criar o porvir. Uma obra é instituição porque deforma, descentra, desequilibra, recentra
e reequilibra o que lhe é dado no ponto de partida – o percebido e outras obras de arte, a
linguagem instituída e as obras literárias, científicas e filosóficas. Essas operações do artista
ou do pensador são “afastamento com relação a uma norma de sentido” instituída, são a
diferença. Esse sentido por afastamento e diferença, por deformação e descentramento,
“é o próprio da instituição” (Merleau-Ponty 4, p.41).
O ponto de partida do artista, do escritor, do pensador “é um vazio”, uma
ausência que somente o fazer da obra pode preencher; porém, porque toda obra é abertura
de um campo ilimitado ou significação aberta, só pode ser experimentada como falta –
pedindo outras obras – e como excesso – suscitando outras obras –, e por isso mesmo
toda obra pede um porvir, exigindo o futuro não como telos, mas como restituição
instituinte do passado. Eis por que a história das obras de arte e de pensamento não
é uma história empírica de acontecimentos, nem uma história racional-espiritual de
desenvolvimento ou progresso linear: é uma história de adventos. Se o tempo for tomado
como sucessão empírica e escoamento de instantes, ou se for tomado como forma a priori
da subjetividade transcendental, que organiza a sucessão num sistema de retenções e
protensões, não haverá senão a série de acontecimentos. O acontecimento fecha-se em
sua diferença empírica ou na diferença dos tempos, esgota-se ao acontecer. O advento,
porém, é o excesso da obra sobre as intenções significadoras do artista; é aquilo que sem
o artista ou sem o pensador não poderia existir, mas é também o que eles deixam como
ainda não realizado, algo excessivo contido no interior de suas obras e experimentado
como falta pelos que virão depois deles e que retomarão o feito através do não-feito, do
por-fazer solicitado pela própria obra.
O advento é aquilo que, do interior da obra, clama por uma posteridade, pede
para ser acolhido, exige uma retomada porque o que foi deixado como herança torna-se
doação, o dom para ir além dela. Há advento quando há obra e há obra quando o que
foi feito, dito ou pensado dá a fazer, dá a dizer e dá a pensar. O advento é “promessa de
acontecimentos”, pois a obra “abre um campo, às vezes, institui um mundo, e, em todo
caso, desenha um porvir” (Merleau-Ponty 12, p.104). A regra, e única regra, de ação para
o artista, o escritor, o filósofo e o político não é que sua ação seja eficaz, mas que seja
fecunda, matriz e matricial. Instituição.
***
Pensamos ter, agora, uma nova perspectiva para pensar a relação de Merleau-
Ponty com o Grande Racionalismo.
Na última palestra proferida na rádio francesa, em 1948, cujo tema era justamente
a diferença entre os clássicos e os modernos (ou contemporâneos), Merleau-Ponty começa
enfatizando a distinção: a limpidez das idéias claras e distintas, a transparência da
consciência a si mesma e a certeza de um conhecimento demonstrativo e integral
da natureza e do homem, que caracterizaram a época clássica, são substituídos, na
modernidade, pela ambigüidade e incompletude do conhecimento e da ação: não
somente as obras são inacabadas, mas o próprio mundo surge como “se fosse uma
obra sem conclusão” sem que se possa saber se ele terá alguma. Por isso mesmo “seria
irrisório querer reagir a isso por uma restauração da razão, no sentido em que se fala
de restauração a respeito do regime de 1815” (Merleau-Ponty 2, p.73). Não há como,
ingenuamente, supor que seria possível “retomar pura e simplesmente o racionalismo
de nossos pais” (Merleau-Ponty 2, p.73). Cumpre analisar as ambigüidades de nosso
tempo e tentar traçar um caminho que “possa ser mantido com consciência dentro da
verdade” (Idem ibidem).
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No entanto, a experiência do presente suscita uma indagação: a figura límpida,
completa, acabada e perfeita dos clássicos não seria um efeito da distância temporal, uma
ilusão retrospectiva?
“Temos razões para perguntar a nós mesmos se a imagem que muitas vezes o mundo clássico nos passa é algo mais do que uma lenda, se ele também não conheceu a incompletude e a ambigüidade em que vivemos, se não se contentou com recusar-lhes uma existência oficial e se, conseqüentemente, longe de ser um caso de decadência, a incerteza de nossa cultura não seria, antes, a consciência mais aguda e mais franca do que sempre foi verdade, portanto, é aquisição e não de declínio.” (Merleau-Ponty 2, p.74)
“Do que sempre foi verdade”. Eis o ponto crucial.
De fato, no último curso que ministrou no Collège de France, significativa e
sugestivamente denominado “A ontologia cartesiana e a ontologia hoje”, Merleau-Ponty
percorre a obra de Descartes, desde os escritos pré-metódicos (como a Olímpia) e os
primeiros elementos metódicos, isto é, as Regras para a direção do espírito, passando
pela correspondência, pela Dióptrica até chegar às Meditações. Desse curso, queremos
aqui mencionar apenas dois aspectos: o primeiro é afirmação de Merleau-Ponty de que
a filosofia contemporânea (particularmente a francesa), implicitamente contida nas obras
e ações da não-filosofia (as artes, a literatura, a política, as ciências), explicitamente não
sabe o que diz e que uma boa maneira de buscar seu sentido é compreender em que ela não
é cartesiana, ou seja, “a finalidade deste curso é buscar formular filosoficamente nossa
ontologia que permanece implícita e contrastá-la com a ontologia cartesiana” (Merleau-
Ponty 9, p.166). Essa finalidade explica os temas cartesianos examinados para contrastá-
los com o pensamento contemporâneo tendo como referência a relação da filosofia a
não-filosofia – a Dióptrica como teoria da visão que não pode dar conta da pintura (tema
trabalhado em L’oeil et l’esprit); a correspondência com Mesland sobre a possibilidade
de uma língua universal algorítmica e inteiramente unívoca porque completamente
determinada e que, por visar à expressão completa e tomar a linguagem como instrumento
do pensamento não pode dar conta da literatura (tema trabalhado nos textos da Prose du
monde e nos ensaios de Signes sobre a linguagem).
O segundo aspecto que aqui nos interessa é a afirmação de Merleau-Ponty de
que pretende seguir uma via diversa daquela seguida por Guéroult, isto é, embora
seja preciso reconhecer o papel inegável da ordem das razões e da verdade definida
pela certeza imanente do pensamento, é preciso ainda e principalmente sublinhar tudo
quanto Descartes não pôde submeter a essa ordem e a essa verdade. No entanto, não
se trata, como julga Guéroult, de supor que são lacunas, pois uma lacuna pode sempre
ser preenchida, e sim que são falta e excesso produzidos pela própria obra cartesiana,
aquilo que ela não pode pensar, mas que sem ela não pode ser pensado por nós. Trata-se
do impensado de Descartes e não em Descartes, aquilo que lhe permite, a despeito de si
mesmo, manter aberta a filosofia.
Não se trata, portanto, de acreditar na imagem perfeita e acabada do cartesianismo
como ordem das razões nem, muito menos, apontar defeitos no pensamento cartesiano
e sim voltar-se para a instituição cartesiana, abertura de um campo de pensamento que
não poderia existir sem a obra de Descartes porque, ao pensar, ela dá a pensar, é feita de
“dimensões duráveis, com relação às quais toda uma série de outras experiências terão
sentido, formarão uma seqüência pensável ou uma história”. Uma história da filosofia fiel
ao instituinte só pode ser
“uma história da filosofia que não seja ‘achatamento’ da história no interior da ‘minha’ filosofia e que não seja idolatria: retomada e repetição de Descartes, único meio de restituir-lhe sua verdade, pensando-a de novo, quer dizer, a partir de nós.” (Merleau-Ponty 9, p.241)
REFERêNCIAS bIbLIogRáFICAS:
1. MERLEAU-PONTY, Phénoménologie de la perception. Paris, Gallimard, 1945.2. _______________, Conversas,1948. São Paulo, Martins Fontes, 2004.3. _______________, “Titres et travaux. Projet d’enseignement”, Parcours deux, 1951.4. ________________, L’instituion, in L’intituion. La passivité. Notes de cours au Collège
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de France (1954-1955). Paris, Berlin, 2003.5. _______________, “Le langage indirect et les voix du silence”, Signes. Paris,
Gallimard, 1960.6. _______________, “Le philosophe et son ombre”, in Éloge de la philosophie et autres
essais. Paris, Gallimard, 1960.
7. _______________, “Partout et nulle part”, in: Éloge de la Philosophie et autres essais. Paris: Gallimard, 1960.8 _______________, “De Mauss à Claude Lévi-Strauss”, in Éloge de la philosophie et
autres essais. Paris, Gallimard, 1960.9.. _______________, “L’ontologie cartésienne et l’ontologie aujourd’hui – 1960-1961”,
Notes de cours. 1959-1961. Paris, Gallimard, 1996.10. _______________, La structure du comportement. Paris, PUF, 1960.11. _______________, “Interrogation philosophique et intuition”, Le visible et l’inivisible.
Paris, Gallimard, 1964.12. _______________, L’oeil et l’esprit. Paris, Gallimard, 1965.13. _______________, La Nature. Notes. Cours du Collège de France. Paris: Seuil, 1994.
Merleau-Ponty: from the constitution to the institution
Abstract: This essay examines the merleaupontian notion of institution as the discovery of a path to overcome the tradition of philosophies of consciousness, specially the apories left by the hursselian traditional phenomenology, what allows the transition from a philosophy of constitution to a philosophy of genesis. Keywords: institution, constitution, philosophy of genesis, phenomenology, philosophy of consciousness.
NoTAS
1. Em 1951, Merleau-Ponty, quando da sua candidatura ao Collège de France, caracterizava assim seu trabalho em curso: “O deciframento de estruturas, somente o qual permite encontrar alguma racionalidade na história de uma língua e na história em geral sem fazer dela um novo deus, e que permite reconhecer um interior nos fatos humanos sem abandoná-los ao arbitrário de construções a priori, é para nós característico de uma filosofia concreta” (Merleau-Ponty 3, p.25).
A PRESENÇA dO fIlóSOfO
renaud Barbaras*
Resumo: O artigo homenageia a obra de Bento Prado Jr, enfatizando a originalidade e o aspecto crítico de sua postura filosófica. Neste sentido, ele analisa a força do conceito de “Presença” – eixo central da tese de doutoramento do autor, publicada sob o título Presença e campo transcendental –, capaz de desenhar de maneira inédita um ponto de convergência entre as filosofias de Bergson, Sartre e Merleau-Ponty.Palavras-chave: Bento Prado Jr, Presença, Bergson, Merleau-Ponty, Sartre, fenomenologia
O meu encontro com o Bento foi um evento decisivo na minha vida, não apenas
filosófica, mas também pessoal, se é que faz sentido estabelecer uma diferença entre as
duas. Como em qualquer encontro autêntico, assim que li e, depois, conheci o Bento, tive
imediatamente um sentimento estranho de familiaridade, como se tudo que eu valorizava,
sem saber muito bem até que ponto eu estava certo, tivesse se encarnado numa figura
viva e radiante, como se tudo que eu vislumbrava, tanto no âmbito da filosofia quanto
no da literatura, de repente se expressasse com uma força e uma clareza sem par. Eu
poderia caracterizar o lugar do nosso encontro através de uma convicção, talvez um pouco
desconcertante, que compartilhávamos: enquanto filósofos, somos amadores.
Primeiro, o amador é quem ama. O Bento era, com certeza, um amador
nesse sentido: ele se relacionava com as pessoas, quaisquer que fossem, com uma
generosidade excepcional. É essa mesma generosidade que caracterizava sua relação
com os textos filosóficos, nos quais ele sempre percebia a intuição positiva, a intuição
a ser explorada – o que lhe dava uma grande perspicácia e, por conseguinte, uma
autêntica criatividade filosófica.
Mas, o amador também é quem faz aquilo que ele faz por convicção e prazer e
nunca por motivos externos, pragmáticos. Enquanto amador, o Bento sabia que a filosofia
caracteriza-se por um gesto de ruptura ou de distanciamento em relação ao mundo –
talvez seja isso o sentido mais profundo da redução fenomenológica – e, portanto, ele
* Professor de filosofia contemporânea na universidade Paris 1 Panthéon-Sorbonne.
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também sabia que a filosofia perde necessariamente sua alma quando ela se compromete
com as leis do mundo. Com efeito, hoje em dia e cada vez mais, a nossa relação com
o mundo é dominada pelo reino da técnica e pela potência esmagadora do capitalismo
mundial. A conseqüência disso é que qualquer atividade, inclusive no âmbito intelectual,
encontra-se submetida aos imperativos da tecnicização, da rentabilidade e da visibilidade.
Infelizmente, a filosofia não escapa disso: daí a criação, em toda parte, de centros de
pesquisa com obrigação de obter resultados, medidos em termos de número de publicações
e, outra face da mesma moeda, de organismos de avaliação e de controle, totalmente
inúteis e deletérios, a não ser para dar aos burocratas a impressão de existir. O amador em
filosofia é quem recusa esse movimento de profissionalização da filosofia, não no sentido
da competência, mas da submissão às regras de eficiência e de rentabilidade, que são as
leis do mercado. Ora, inevitavelmente, tal concepção do lugar da filosofia e da instituição
filosófica se espelha dentro da própria atividade filosófica, sob forma de uma valorização
exagerada da erudição histórica em detrimento do pensamento, da tecnicidade e do jargão
em detrimento de uma escrita clara e accessível a cada qual. É como se se tratasse de
reduzir a atividade filosófica àquilo que nela é visível (a tecnicidade como garantia de
seriedade) e mensurável (o número de referências). É nesse sentido que o Bento gostava
de citar a observação de Andrés Raggio, lógico argentino, segundo a qual “a tecnicidade,
em filosofia, é inversamente proporcional ao interesse filosófico de um texto”(Prado Jr.
3, p.12). É também por isso que o Bento (como conta na intervenção na mesa redonda
dedicada à tradução francesa de sua tese) compreendeu como um elogio a observação de
Ruy Fausto com respeito ao livro sobre Bergson: “é filosofia geral, não é?” Na verdade,
é uma tautologia: a filosofia deixa de ser filosófica se ela deixa de ser geral, ou seja, de se
defrontar com problemas “gerais”. Com certeza, o Bento tinha consciência dessa situação
da filosofia contemporânea e da ameaça que implicava a tecnicização cada vez maior
da filosofia. No texto intitulado “Bergson, 110 anos depois”, inicialmente publicado na
Folha de São-Paulo (1999), ele justifica a decisão de publicar em português o livro sobre
Bergson, que ele chama de “pecado de juventude”, por um sentimento de “mal-estar
efetivamente vivido, a sensação fortemente desagradável de uma banalização crescente
da filosofia, de uma escolarização ou tecnificação asfixiantes do pensamento, de que o
desinteresse por Bergson seria um dos sintomas” (Prado Jr. 3, p.257). Equivale a dizer
que o engajamento na filosofia tem um sentido ético, o que significa que ela não pode
se submeter a valores ou critérios alheios a sua própria exigência, e que seu poder de
análise fica a serviço de uma função crítica. O amador em filosofia nunca perde de vista
essa dimensão. Portanto, não é de admirar que o Bento conclua o texto mencionado
acima com a afirmação da “vocação essencialmente ética da filosofia, de que, implicando
necessariamente a tecnicidade da análise, ela não pode converter-se em mera atividade
técnico-profissional, sem perder sua essência” (Prado Jr. 3, p.263).
Enfim, o amador em filosofia não se deixa absorver completamente pela
filosofia, não fica preso nela, como se fosse o único mundo: ele sempre fica com um pé
do lado de fora, isto é, sabe que a filosofia enraíza-se num mundo que é alheio à própria
filosofia. Mas, isso não é um sinal de ignorância ou de falta de envolvimento na filosofia,
pelo contrário, é uma forma de lucidez quanto a sua essência. Como Merleau-Ponty,
em especial, mostrou, há uma vertente da filosofia contemporânea cuja interrogação se
focaliza sobre a relação da filosofia com a não-filosofia, que não é uma coisa diferente da
filosofia nem uma negação dela mas, antes, uma dimensão dela, dimensão irredutível e
obscura de onde a filosofia nasce e que ela tenta esclarecer e formular: trata-se da dimensão
pré-objetiva, ante-predicativa que Merleau-Ponty chama de “fé perceptiva”. Ora, cabe a
uma filosofia exigente dar conta da sua própria origem no mundo silencioso da percepção;
cabe à filosofia dar conta dela mesma a partir da sua própria dimensão de não-filosofia.
Como Merleau-Ponty escreve: “O fim de uma filosofia é a narrativa de seu começo”
(Merleau-Ponty 2, p.172). É à luz dessa evidência que, para uma filosofia rigorosa, a não-
filosofia torna-se um objeto filosófico. Mas, tal necessidade levanta um problema: onde
procurar a não-filosofia, sendo que não se pode voltar ao empirismo do senso comum?
Onde achar um testemunho da obscuridade ou da opacidade pré-filosóficas, que não lhes
trai a originalidade e a profundidade. Há somente uma resposta: é na arte que o filósofo
encontra um testemunho já elaborado e, no entanto, ainda não transformado em conceitos,
da camada originária que, ao mesmo tempo fundamenta e envolve a filosofia. Assim, o
amador em filosofia não respeita as fronteiras ou, antes, sabe que não tem fronteiras nítidas
e intransponíveis. Por exemplo, não faz muito sentido estabelecer uma fronteira rígida
entre poesia e filosofia, a não ser que a filosofia seja identificada com uma epistemologia
e a poesia com um discurso ornamental. Filosofia e poesia remetem à mesma dimensão
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silenciosa da fé perceptiva e não é óbvio que a filosofia tenha um privilégio qualquer. Em
todo caso, é assim que entendo a paixão pela poesia que o Bento manifestava e, aliás,
espero que os poemas que ele próprio escreveu sejam publicados em breve. O Bento
conta na Folha de São Paulo, por ocasião da comemoração do centenário do nascimento
de Carlos Drummond de Andrade (outubro de 2002), “a experiência de um verdadeiro
alumbramento com A máquina do mundo, numa manhã clara e inesquecível, caminhando
pela alameda Santos em São Paulo. Na ocasião, perplexo, eu disse a mim mesmo : ‘Então
é possível dizer essas coisas na língua que eu falo e habito?’”1. Assim, a meu ver,
esse apego à literatura e à poesia em particular não se explica apenas pela recusa de
toda forma de tecnicidade inútil: ele revela uma certa visão do papel da filosofia como
desvelamento da sua própria dimensão de não-filosofia. A paixão do Bento pela poesia
era profundamente ligada ao seu modo de engajamento na filosofia: tratava-se, para
ele, de fazer filosofia ao limite, ou seja, de se situar no lugar onde ela se enraíza ou na
fonte de onde ela nasce, naquela fronteira onde silêncio e palavra passam um no outro
e trocam os seus papeis..
Em Um departamento francês de ultramar, Paulo Arantes explica brilhante e
detalhadamente quais eram as relações entre filosofia e literatura na USP daquela época
e, particularmente, aos olhos do Bento; e, como se sabe, ele inicia o capítulo com essas
palavras: “Em meados dos anos 60, Bento Prado Jr era uma ilha de literatura cercada de
filosofia por todos os lados”. Paulo Arantes insiste sobre a necessidade de se livrar, pela
filosofia, de uma forma de literatura em torno da qual o essencial da vida do espírito
girava naquela época. Mas, também tenho o sentimento de que, de certa forma, é na
própria literatura e, particularmente, na poesia, que se encontra a filosofia luso-brasileira.
Desse ponto de vista, a obra de Fernando Pessoa, e particularmente O guardador de
rebanhos de Alberto Caeiro, que é um grande tratado de metafísica e de fenomenologia,
teve um papel fundador. Acho que o Bento encarava a obra de Drummond da mesma
maneira, e é isso que ele quer dizer no texto da Folha que citei acima.
Um dia, o Bento, que também gostava de futebol, enviou-me um poema de
um poeta que eu não conhecia. O título era Ademir da Guia (um jogador que também
não conhecia): “Ademir impõe com seu jogo/o ritmo do chumbo (e o peso)/da
lesma, da câmara lenta/ do homem dentro do pesadelo./Ritmo líquido se infiltrando/
no adversário, grosso, de dentro, /impondo-lhe o que ele deseja,/mandando nele,
apodrecendo-o./Ritmo morno, de andar na areia, /de água doente de alagados,/
entorpecendo e então atando/o mais irrequieto adversário” (Museu de Tudo). Assim,
foi pelo Bento que descobri a obra de João Cabral, da qual ele também gostava muito.
Foi um choque enorme para mim. Desde aquele momento, nunca parei de ler João
Cabral e estou fazendo uma tradução francesa da obra dele. Seja como for, a poesia
ficava no centro da reflexão filosófica do Bento e ele me disse várias vezes que ele
estava preparando um grande livro sobre poesia e pensamento.
No entanto, foi pelo livro sobre Bergson, Presença e campo transcendental, que
encontrei primeiro o Bento. A leitura de Merleau-Ponty, sobre quem fiz minha tese, me
conduziu a ler Bergson. Naquela época, eu tinha a impressão de que havia um parentesco
profundo entre os dois pensadores – o que não era espantoso já que Merleau-Ponty
conhecia Bergson muito bem e até tinha escrito sobre ele – e, mais do que isso, uma
possibilidade de interpretar a obra de Bergson, particularmente Matéria e Memória, de
um ponto de vista fenomenológico. Portanto, a leitura do livro do Bento foi um choque
muito grande e me lembro que li o livro de cabo a rabo com muito entusiasmo. Tomei
imediatamente a decisão de traduzi-lo e cabe reconhecer que o livro se tornou rapidamente
um texto de referência nos estudos bergsonianos e, mais do que isso, no campo da história
da filosofia francesa do século vinte. Na verdade, é muito mais do que um livro sobre
Bergson: um livro de filosofia geral, ou seja, um livro de filosofia e, justamente, é por ser
um livro de filosofia, com uma abordagem muito forte e original, que ele pode ser um
grande livro sobre Bergson.
A diretriz de todo o livro é a idéia de que a filosofia de Bergson é uma ontologia
da Presença (“O movimento da reflexão bergsoniana é governado pelo ideal do retorno
à Presença”2). Mas, Presença escreve-se com maiúsculas: não se trata da presença
enquanto aparição de um objeto, nem da presença como aptidão do sujeito a abrir para
uma exterioridade (presença a alguma coisa), mas do lugar onde se torna presente algo
para alguém. Nesse sentido, o intuito do Bento é o de uma reconciliação entre consciência
e presença: mostrar que tem um lugar prévio como condição do encontro entre sujeito e
objeto equivale a estabelecer que a consciência é originariamente ligada à presença, ou
seja que sua proximidade ou unidade prevalecem sobre sua diferença. A Presença é a
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condição de possibilidade ao mesmo tempo da cisão e da relação entre sujeito e objeto e,
nesse sentido, ela situa-se num nível ontológico mais profundo do que eles. Portanto, a
interrogação diz respeito ao sentido de ser dessa Presença, desde que ela não possa mais
ser concebida como substancial.
O Bento enfatiza o problema da presença na medida em que ele percebe a
importância decisiva da crítica bergsoniana à idéia do Nada, que é ao mesmo tempo uma
crítica à história da metafísica. Essa é regida pelo princípio de razão suficiente, isto é, ela
aborda o problema do Ser através da seguinte pergunta “porque existe algo e não nada”?
Assim, o Ser surge sobre o fundo de um Nada que o ameaça. Daí a determinação do Ser,
característica da metafísica, como aquilo que não começou, como uma essência, cuja
plenitude de determinação lhe permite resistir à ameaça do Nada. Em outras palavras,
se o Ser não fosse plenamente aquilo que ele é, se ele encerrasse a menor fraqueza, ele
seria imediatamente reabsorvido pelo Nada. É por isso que, tradicionalmente, o Ser é
identificado com o Ser lógico, enquanto mera identidade a ele mesmo, plena determinação.
É importante reparar aqui que essa caracterização do Ser é profundamente ligada ao
pressuposto de uma exterioridade radical entre a reflexão e o Ser, entre o sujeito e seu objeto.
Para poder delinear o Ser sobre um fundo de Nada, é preciso tomar uma distância infinita
em relação a ele, recuar no fundo do Nada, como diz Merleau-Ponty, isto é sobrevoá-lo.
Em suma, há uma cumplicidade entre a suposição de que a consciência pode ser exterior
ao próprio Absoluto e a determinação desse Absoluto como uma realidade lógica, ou seja,
transparente e estável. Ora, como se sabe, Bergson critica a idéia de Nada de uma maneira
radical. Na realidade, o Ser é caracterizado pela plenitude, não pode haver furos no tecido
da realidade, de modo que o Nada só tem uma existência psicológica. Como o Bento
resume, a idéia de nada “supõe, de um lado, uma subjetividade que não é puramente
teórica, já que espera, prefere e valoriza [...], e, de outro lado, uma objetividade plena e
positiva em fluxo; e, nesta objetividade, a continuidade sem falhas nem hiatos da duração.
O Nada surge, portanto, da contraposição entre o dado e o desejado, entre o ser e o valor
que é instaurado pela práxis: ele é a associação entre ‘esse sentimento de preferência e
essa idéia de substituição’” (Prado Jr. 4, p.55). Essa crítica da idéia do Nada desemboca
necessariamente numa contestação da metafísica que decorre dessa idéia.
É nesse ponto que aparece a originalidade da leitura do Bento, alimentada, sem
dúvida, pela fenomenologia. A conclusão que Bergson tira da negação do Nada é o fato de
que o Ser não precisa mais ser caracterizado pela estabilidade ou a imobilidade próprias
à essência lógica: enquanto ele não sai do Nada, o Ser pode durar. Mas, como Gérard
Lebrun sublinha em La patience du concept: ”Bergson reconhece sem dúvida que a
verdadeira mobilidade, a duração, é diferença consigo, mas é para fazê-la aceder à
dignidade substancial [..]. O bergsonismo é, portanto, menos uma crítica à metafísica
do que um deslocamento da sua tópica : o Ser só mudou de conteúdo” (Lebrun 1, p.240).
Assim, em Bergson, a duração permanece substancial e até, o próprio Bergson diz que
ela é a única substância: nesse sentido, ele fica no âmbito da metafísica, substituindo
apenas a essência pela duração como determinação dessa substância. Bergson não
percebe que, não devendo mais resistir ao Nada, o Ser não precisa mais da plenitude
que o caracterizava quando surgia do Nada e, por conseguinte, pode comportar uma
dimensão de negatividade.
O Bento não cai nessa armadilha metafísica; ele compreende que a crítica ao Nada
metafísico, como negação do Ser, possibilita uma reconciliação entre o Ser e a negatividade,
enquanto dimensão interna dele. É justamente essa reconciliação que o conceito de
Presença designa. Primeiro, uma vez que a posição do Nada é ligada a exterioridade do
sujeito da reflexão em relação ao Ser, a crítica à idéia de Nada desemboca na descoberta da
falta de distância entre o sujeito e o Ser. Na realidade, não é possível adotar uma posição
de sobrevôo; um lugar fora do Ser é impensável e, portanto, pertencemos ao Ser, somos
envolvidos por ele. Aqui, há uma convergência óbvia com Merleau-Ponty, cuja ontologia
é uma intra-ontologia: isto significa que o Ser envolve necessariamente o sujeito ao qual
ele aparece, de modo que não há nenhuma alternativa entre o envolvimento (ontológico)
do sujeito pelo Ser e o envolvimento (perceptivo) do Ser pelo sujeito. Assim, o filósofo
fica numa relação de proximidade ao Ser e é apenas em virtude dessa intimidade que ele
pode descrever a feição do mundo. Como diz muito bem o Bento: “Recusar a filosofia do
negativo, recusar a pensée de survol, dizer que a filosofia deve seguir as ‘ondulações do
real’, são uma e a mesma coisa. Todas essas teses significam que a consciência filosófica
só surge no interior de um campo que a precede e não pode ser isolada de suas raízes pré-
filosóficas. É afirmar que o enriquecimento do saber só é atingindo quando se ausculta
esse campo prévio”3. Assim, a crítica ao Nada permite desvendar um campo prévio, que é
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a tradução da impossibilidade do sobrevôo, campo que envolve tudo, inclusive os sujeitos
que se relacionam com ele, e que corresponde ao “haver algo” pelo qual Merleau-Ponty
caracterizava o seu ponto de partida. Como já vimos, para a filosofia do Nada, há uma
dualidade e, até, uma distância infinita entre o sujeito e o objeto, já que o sujeito pode
abarcar o Ser. Pelo contrário, para uma filosofia que recusa o Nada, a dualidade é derivada
de e está subordinada a uma dimensão de unidade mais profunda, a uma intimidade prévia
entre sujeito e objeto. Nesse sentido, o campo prévio é um campo transcendental: ele é a
condição de possibilidade da própria dualidade entre sujeito e objeto; dele deriva a cisão
entre eles. É assim que o Bento interpreta o estatuto das imagens do primeiro capítulo
de Matéria e Memória: a totalidade das imagens, a partir da qual Bergson dá conta da
percepção, é justamente a condição prévia da própria distinção entre sujeito e objeto e,
nesse sentido, campo transcendental. Como escreve o Bento: “A experiência filosófica
passa a ter o seu domínio próprio naquele ‘haver algo’ anterior à instauração da cisão
entre sujeito e objeto. A análise do campo das imagens aparecera-nos, de fato, como
análise transcendental, isto é, análise das condições de possibilidade do comércio entre
um sujeito e um objeto em geral” (Prado Jr. 4, p.205).
Mas essa primeira determinação do campo prévio leva a uma segunda
determinação, pela qual o Bento se afasta ainda mais de Bergson. O campo transcendental
não é apenas um solo comum, mas também e principalmente a condição de uma cisão:
a esse título, ele deve encerrar uma forma de negatividade como germe ou condição
de possibilidade da própria cisão. Em outras palavras, a cisão encontra-se esboçada no
campo transcendental. Cabe reparar que essa conclusão, ou seja, o reconhecimento de
uma negatividade interna ao Ser, estava envolvida na crítica ao Nada. Na medida em que
o Ser não precisa mais resistir ao Nada, ele pode comportar uma forma de fraqueza ou de
negatividade e, na realidade, ele deve comportá-la como condição da relação entre sujeito
e objeto. É exatamente essa introdução da negatividade dentro do campo transcendental
que leva ao conceito de Presença, construído pelo Bento. Como condição de uma relação e,
portanto, de uma cisão, o campo transcendental deve envolver a possibilidade dessa cisão
sob forma de um germe de negatividade, de uma distância mínima. Como diz o Bento:
“Se é possível uma relação entre os entes – no modo da consciência do objeto – é porque o
próprio Ser instaura dentro de si mesmo uma distância mínima, que ainda não é oposição.
É essa distância mínima que chamamos de ‘ipseidade da Presença’ ou de Presença (junto
a) si” (Prado Jr. 4, p.205). Assim, a Presença não é senão o transcendental encarado
como condição de uma dualidade. Ela é um modo de ser primitivo e indiferenciado,
indistinção do visível e do invisível, enquanto podem surgir dele justamente um visível e
uma visão; nesse sentido a Presença é a identidade realizada da indiferenciação e da cisão.
Pelo conceito de Presença, Bento consegui superar a distinção entre transcendental e
ontológico: o transcendental não pode ser confundido com o subjetivo já que ele antecede
a própria distinção do sujeito e do objeto; ele designa uma ipseidade realizada como
condição de qualquer aparição e, portanto, da própria relação entre sujeito e objeto. A
presença como presença de algo a alguém remete a uma Presença “em si” como fonte
do algo, do alguém e das suas relações. Com o conceito de presença, Bento descobre
um modo de ser irredutível, neutro em relação às distinções entre objetivo e subjetivo,
positivo e negativo, transcendental e ontológico.
Eu queria fazer três observações a respeito dessa teoria da Presença. Primeiro,
cabe sublinhar o quanto essa perspectiva é esclarecedora: ela enseja dar uma unidade
muito forte à filosofia bergsoniana. Ela permite articular claramente a dimensão crítica,
que diz respeito aos falsos problemas gerados pelos conceitos de Nada ou de Possível,
com a dimensão positiva da filosofia de Bergson. Sobretudo, ela permite articular o ponto
de vista de Matéria e Memória, cujo enfoque é a teoria das imagens, e o ponto de vista da
Evolução criadora, cujo centro é a teoria do elã vital. As imagens e a vida aparecem como
sendo duas dimensões da mesma Presença ou da mesma Ipseidade: poderíamos dizer
que o campo das imagens remete à dimensão transcendental, dimensão de neutralidade
da Presença, ao passo que a vida remete à dimensão ontológica da mesma Presença,
dimensão que envolve uma forma de negatividade.
Em segundo lugar, esse livro pode ser lido, do começo ao fim, como um diálogo
com a filosofia de Sartre e, mais precisamente, como uma tentativa de dar a essa filosofia,
graças a Bergson, uma coerência que lhe falta, ao estabelecer uma continuidade entre o
plano da ontologia e o da metafísica (no sentido sartriano). Como se sabe, Sartre não se
limita a oposição entre em-si e para-si: ele tenta dar conta da possibilidade do surgimento
do para-si a partir do em-si do ponto de vista de um Ser que envolva essas duas dimensões.
Daí a hipótese de um evento ontológico pelo qual o em-si tentaria fundar-se a si mesmo,
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tornar-se causa sui. É o fracasso, necessário, dessa tentativa que dá origem ao para-si,
que aparece assim como uma conseqüência desse sacrifício do em-si. Mas, o para-si
tenta realizar, por sua conta, a auto-fundação que o em-si não consegue realizar. Em
outras palavras, ele visa à realização de um “si” que seria a unidade efetiva do em-si e do
para-si: o movimento da consciência explica-se por esse desejo de realizar essa unidade
absoluta, desejo, necessariamente malogrado, de tornar-se Deus como causa-de-si. É esse
movimento que Sartre chama de “circuito da ipseidade”. Daí a distinção entre ontologia
e metafísica: “A ontologia limitar-se-á, portanto, a declarar que tudo se passa como se
o em-si, num projeto de fundar-se a si mesmo, se desse a modificação do para-si. É à
metafísica que cabe formar as hipóteses que permitirão conceber esse processo como
acontecimento absoluto que vem coroar a aventura individual que é a existência do ser”
(Sartre 5, p.715; Prado Jr 4, p.160)4. A obra de Bergson, interpretada pelo Bento, aparece
como uma alternativa ao esquema sartriano, uma solução do mesmo problema. Mais
precisamente, o conceito de Presença permite dar à filosofia de Sartre, ou seja, ao circuito
da ipseidade, o fundamento que lhe faltava. É verdade que a teoria da percepção em Matéria
e Memória pode ser interpretada como a descrição do surgimento de uma representação
por uma limitação de uma presença prévia, ou seja do campo das imagens. Como repara
o Bento, “é como se a Presença renunciasse à sua plenitude para dar nascimento à re-
presentação” (Prado Jr. 4, p.160). Assim, “a subjetividade finita do homem é o resultado
de uma ‘queda’ ou de uma limitação dessa Presença que é a própria infinidade do Ser”,
de modo que, desse ponto de vista, há uma convergência com Sartre: “neste sentido, uma
Presença que fosse, ao mesmo tempo, transparência, clara consciência de si, seria uma
idéia contraditória, da mesma maneira que o ser-em-si-para-si de Sartre” (Prado Jr. 4,
p.161). No entanto, o Bento acrescenta imediatamente que “esse sacrifício da Presença,
que dá origem à representação, não é da mesma ordem daquela ruptura da plenitude do
em-si que dá nascimento ao para-si na filosofia de Sartre” (Prado Jr. 4, p.160). Por que não
é da mesma ordem? Porque, com o conceito de Presença (junto a) si ou de Ipseidade da
Presença, Bergson, ou Bento, consegue dar um fundamento àquele sacrifício da Presença:
se o Ser pode dar nascimento ao para-si e, portanto, à representação, é porque esse Ser não
é mais definido como puro em-si mas como uma Presença caracterizada por uma distância
mínima. Se o sacrifício é possível, é na medida em que ele já é realizado, pelo menos
virtualmente, na Ipseidade da Presença originária. Em outras palavras, a negatividade não
pode surgir de um Ser caracterizado pela plenitude: ela deve ser esboçada sob forma de
ipseidade num Ser que não é mais em-si, mas Presença. Desse ponto de vista, poderíamos
dizer que o ponto de partida de Bergson, lido pelo Bento, é o ponto de chegada de Sartre,
a saber, aquela ipseidade, como unidade do em-si e do para-si, atrás da qual a consciência
corre sem sucesso. Para dar conta da relação entre consciência e mundo, é preciso pôr
a ipseidade no começo, ou seja, no Ser, e não no fim como objeto inacessível do desejo.
Assim, aquilo que, em Sartre, era da alçada da metafísica, ou seja, de meras hipóteses, em
Bergson pertence à ontologia ou, antes, é a própria distinção entre metafísica e ontologia
que desaparece. É o que o Bento percebe com muita clareza: “É que da perspectiva
bergsoniana não há lugar para a oposição sartriana entre metafísica e ontologia. [...] para
Bergson, mantendo a linguagem de Sartre, a ontologia se prolonga necessariamente
na metafísica, e só é possível a compreensão da estrutura da consciência à medida que
ela é exigida pelo ser anterior ao surgimento da própria consciência”(PradoJr.4,p.160).
Isso me leva diretamente a minha terceira observação, que também será minha
conclusão. Com essa filosofia da Presença (junto a) si ou da Ipseidade da presença,
o Bento desenha um ponto de convergência entre as filosofias de Bergson, Sartre e
Merleau-Ponty. Com efeito, a Presença não é senão o campo fenomenal descrito por
Merleau-Ponty, campo que envolve o próprio sujeito perceptivo. Mas, ao caracterizar
essa presença prévia como Presença (junto a) si ou Ipseidade, Bento passa para o plano
de uma ontologia fenomenológica, propondo uma gênese do para-si a partir de uma
cisão ou uma negação, cuja possibilidade é antecipada na distância mínima própria à
ipseidade. Mas, o mais impressionante é o fato de que o Bento consegue fundamentar
essa convergência entre os dois fenomenólogos a partir de uma reinterpretação do
campo das imagens em Bergson e da hipótese de uma continuidade absoluta entre o
campo das imagens e a vida. Na realidade, só um filósofo no sentido mais elevado
da palavra podia conseguir delinear esse ponto de convergência e propor uma síntese
tão forte dessas duas grandes vertentes da filosofia francesa do século vinte, abrindo
caminho para uma ontologia da Presença totalmente original.
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REFERêNCIAS bIbLIogRáFICAS
1. LEBRUN, G., La patience du concept, Paris, Gallimard, 1972.2. MERLEAU-PONTY, M. Le visible et l’invisible, trad. Gianotti, Editora Perspectiva,
1992.3. PRADO JR., Bento, Erro, ilusão, loucura, São Paulo: Editora 34, 2004.4. ________________, Presença e campo transcendental, São Paulo: Edusp, 1988.5. SARTRE, L’être et le néant. Paris: 1943.
The philosopher’s presence
Abstract: This paper pays tribute to the Bento Prado’s work, stressing the originality and the critical aspect of his philosophical posture. In this sense, it analyses the strength of the concept of “Presence” – central axis of the author’s doctoral thesis, published with the title Presence and transcendental field – which is able to design in an unheard-of manner a point of convergence between the philosophies of Bergson, Sartre and Merleau-Ponty.Keywords: Bento Prado Jr, Presence, Bergson, Merleau-Ponty, Sarte, phenomenology.
NoTAS
1. Agradeço a Cristiano Perius essa referência.
A “gRANdE POlíTIcA” OU MERlEAU-PONTy lEITOR dE MAqUIAvEl
leandro neves cardim*
Resumo: Este artigo pretende abordar a obra de Nicolau Maquiavel principalmente a partir da leitura feita por Maurice Merleau-Ponty. Para isto, apresentaremos, em um primeiro momento, alguns traços gerais da filosofia política merleau-pontiana com o intuito de rastrear a presença de Maquiavel no espectro de sua obra. Tratar-se-á, também, de indicar as balizas que guiam Merleau-Ponty na leitura de um texto filosófico. Quanto à discussão da filosofia maquiaveliana, procuraremos, em seguida, destacar os pontos que fizeram do secretário florentino o primeiro pensador político moderno, momento em que teremos a oportunidade de explicitar a interpretação de Merleau-Ponty. Para concluir, serão colocados em relevo os aspectos que, segundo a expressão de Claude Lefort, fazem com que a política em Maquiavel seja compreendida como “grande política”.Palavras-chave: Merleau-Ponty, Maquiavel, Lefort, humanismo, política.
I
Ao abordar os textos dos filósofos clássicos, Merleau-Ponty não retoma as
grandes questões da filosofia tornando-as pequenas, ele não as reduz aproximando-as de
algum cânone ideal e unívoco. Trata-se, para ele, de retomar certas questões que o ajudam
a pensar o mundo em que vivemos. Sua intenção expressa é “fazer no nosso tempo, e
através da nossa experiência, o que os clássicos fizeram no seu” (Merleau-Ponty 12, p.70).
Ora, quando um pensador interroga a obra de um outro pensador e encontra uma resposta
que ainda é fecunda, tal interrogação e resposta são determinadas tanto pelo modo como o
filósofo vive a apreensão do passado e do presente quanto pela maneira com que exprime
suas próprias preocupações. Donde o aprendizado que cada filosofia pode nos oferecer,
com a ressalva de que saibamos extrair, da maneira com que manifestaram e responderam
suas preocupações, uma maneira de manifestarmos e respondermos as nossas próprias
preocupações nascidas de uma leitura do presente (cf. Silva 20).1
Ao ler um autor clássico precisamos reconhecer uma historicidade que os
alimenta por dentro: o sentido que sua obra oferece é aberto e pode ser retomado. Além
* Pós-doutorando em Filosofia pelo Depto. de Filosofia da USP.
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disto, se “queremos ir mais longe”, é preciso compreender que há obras que:
“continuam falando além dos enunciados, das proposições, intermediários obrigatórios. [...] Assim são os clássicos. Reconhecemo-los pelo fato de ninguém os tomar ao pé da letra, e de, mesmo assim, os fatos novos nunca estarem totalmente fora de sua competência, de se tirarem deles novos ecos e de se revelarem neles novos relevos” (Merleau-Ponty 13, p.16-17).
O sentido no qual empregamos a palavra “clássico” não consiste naquele
sentido primeiro e tradicional. Costumamos chamar de clássicos aqueles autores para
quem “a racionalidade em si do mundo é inquestionável”, ou ainda, alguém que pensa a
criação humana como uma verdade depositada no mundo (cf. Merleau-Ponty 13, p.243
e 242). Para nós, clássico é aquele autor ou obra que, sedimentados sob os escombros do
mundo cultural, ainda nos faz pensar e que, por isto mesmo, nos dá a pensar. O texto de
Merleau-Ponty sobre Maquiavel é um texto assim. Além de suscitar uma posteridade, ele
ainda nos interpela, pois procurando responder a questões que eram bastante pontuais, as
transcende.
O campo conceitual no interior do qual se dá o debate é o da filosofia política
e da filosofia da história. Os conceitos são vários e a situação no interior da qual foi
concebido tanto o texto de Merleau-Ponty quanto o de Maquiavel é muito peculiar. Aliás,
é precisamente isto que faz a inovação da postura destes filósofos, pois ambos ensaiaram
respostas novas a questões também novas. Só que para isto, eles não foram buscar
respostas em princípios transcendentes, mas na observação do mundo real. Procuraremos
explicitar na leitura de Merleau-Ponty aquilo que fez a novidade de Maquiavel, a saber,
aquilo que fez do secretário florentino o primeiro pensador político moderno. Talvez
assim consigamos reativar não só os horizontes da filosofia maquiaveliana, mas também
os horizontes da filosofia merleau-pontiana. Trata-se, portanto, de haurir da leitura de
Maquiavel feita por Merleau-Ponty menos uma reflexão sobre seu itinerário filosófico-
político, e mais algo que ainda nos ensine a interrogar a realidade do social, da política,
da história e do poder.
O texto de Merleau-Ponty foi composto com o intuito de ser apresentado em
setembro de 1949 em uma comunicação intitulada Maquiavelismo e humanismo no
“Congresso de Humanismo e de Ciência Política” que se passou tanto em Roma quanto
em Florença. O texto apresentado em Signos foi, primeiramente, publicado na revista Os
tempos modernos no mesmo ano e já com o título que conhecemos hoje. A “Nota sobre
Maquiavel” foi composta com o pano de fundo da “guerra fria”, a qual aparece como que
em baixo relevo durante todo o texto. O livro Humanismo e terror escrito em 1947 já era
fruto da situação mundial onde Merleau-Ponty procurava, “no dia seguinte da guerra”,
“formular uma atitude de attentisme [espera] marxista” (Merleau-Ponty 14, p.316). Se o
marxismo se mantinha apesar da situação de espera mundial, isto se dava porque,
“reconduzido ao essencial, o marxismo não é uma filosofia otimista – é somente a idéia de que uma outra história é possível, que não há destino e que a existência é aberta. É a tentativa resoluta por este futuro que ninguém no mundo, nem fora do mundo, sabe se será ou não será” (Merleau-Ponty 15, p.209).2
O que está em jogo, aqui, é que a filosofia política que se trata de esboçar
procura manter juntas tanto a possibilidade da emancipação quanto da barbárie. E como
não temos um solo universal que possa garantir o sucesso da ação, é preciso caminhar
como quem dá passos em brumas. No Prefácio de Sentido e não-sentido escrito em
1948 percebemos claramente que foi a situação do mundo em que vivia que o obrigou a
“evocar o fundo de não-senso sobre o qual se delineia toda empreitada histórica, e que
a ameaça de impasse” (Merleau-Ponty 15, p.9). Este era o contexto no qual foi escrito
a “Nota sobre Maquiavel”, nesta época a política marxista havia “perdido confiança em
sua própria audácia, ela [havia] abandonado seus próprios meios proletários e retomado
aqueles da história clássica: hierarquia, obediência, desigualdade, diplomacia, polícia”
(Merleau-Ponty 15, 9-10). Esperava-se que quando a guerra chegasse ao fim o espírito
do marxismo reapareceria e o movimento das massas americanas substituiria a revolução
russa. Mas não; ele nos diz que esta esperança foi decepcionada, pois no momento mesmo
em que ele escreve encontram-se
“face a face uma América quase unânime na caça aos ‘vermelhos’,
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com as hipocrisias que a crítica marxista desvelou na consciência liberal, e uma União Soviética que toma por fato realizado a divisão de um mundo em dois campos, por inevitável a solução militar, não conta com nenhum despertar da liberdade proletária, mesmo e sobretudo quando ela aventura os proletários nacionais em missões de sacrifício” (Merleau-Ponty, 15 p.10).
Os cidadãos daqueles dias não tinham certeza se o mundo humano seria possível,
todavia, ainda assim o impasse não poderia ser considerado fatal. Era preciso ganhar do
acaso, o que só seria possível se os homens de ação pudessem medir o risco e a tarefa.
O risco consistia na possibilidade de que a crise se tornasse mais radical, enquanto a
tarefa a ser enfrentada se expressava na própria consideração daquilo que nosso filósofo
chamava de “nova idéia de razão”, onde “a mais alta idéia de razão é vizinha da desrazão”
(Merleau-Ponty 15, p.9).
A “Nota sobre Maquiavel” foi concebida no contexto daquilo que se convencionou
chamar da primeira filosofia de Merleau-Ponty, mas em toda a obra do filósofo a presença
da filosofia maquiaveliana pode ser matizada como uma das balizas de seu pensamento
político-histórico. Se de acordo com a primeira etapa da filosofia merleau-pontiana
é preciso agir na incerteza relativa ou em uma espécie de inquietude própria a nossa
condição (cf. Merleau-Ponty 16, p.76), e ainda assim, sob o risco de nos enganarmos –
donde a predominância da “espera” em relação à opressão stalinista –, também em As
aventuras da dialética, Maquiavel será um dos autores que balizará a posição política
de Merleau-Ponty, que, agora, não será nem comunista, nem anticomunista. Movido por
novos problemas,3 ele é levado a falar, para abordar as questões da história e da política,
tanto de uma “esquerda não-comunista” quanto de um “novo liberalismo” (Merleau-
Ponty 14, p.312).4 Bem entendido, não se trata, de forma alguma, de “uma solução”. No
Epílogo escrito entre 1953 e 1954 ele nos diz que
“se estava apenas começando a conhecer o social e, aliás, um sistema de vidas conscientes nunca admitirá uma solução como as palavras cruzadas ou os problemas elementares de aritmética. Trata-se, antes, da resolução de segurar nas mãos as duas pontas da cadeia, o problema social e a liberdade” (Merleau-Ponty 14, p.314).
Neste período, nosso filósofo já terá se desembaraçado da “ilusão” de caráter
marxista que consistia em fazer “do nascimento e do crescimento do proletariado, a
significação total da história” (Merleau-Ponty 14, p.284). Em 1955, não há mais, para
a política, um mapa, mas ela ainda será feita em vista do presente (cf. Merleau-Ponty
14, p.12), “em contato com os acontecimentos”, que, todavia, devem ser “ocasião de
tomada de consciência” (Merleau-Ponty 14, p.319). E isto, porque “não há mais um
núcleo da história”, mas, sim, “mais de uma dimensão, mais de um plano de referência,
mais de uma fonte de sentido” (Merleau-Ponty 14, p.18). As escolhas políticas de
Merleau-Ponty sempre estarão ligadas à especificidade dos contextos que ele atravessa,
donde a retomada de Maquiavel no último parágrafo do Prefácio de Signos escrito em
1960. Se for preciso ter “virtù sem nenhuma resignação” (Merleau-Ponty 13, p.47), é
porque “não há relógio universal”, mas “histórias locais [que] começam, sob os nossos
olhos, a adquirir força, e começam a regular-se a si mesmas, e tateando ligam-se uma a
outra” (Merleau-Ponty 13, p.47).5
Merleau-Ponty não revisa, nem sobrevoa ou inspeciona intelectualmente os
textos de Maquiavel, mas também não se trata de identificar-se completamente com
eles. Ele se vale da obra maquiaveliana como algo que lhe ensina a pensar e, fazendo
isto, temos a oportunidade de explorar seu texto como alguém que está trabalhando. Em
relação aos textos que lê, poderíamos dizer que ele pratica uma espécie de redução em
proveito de uma experiência da leitura que procura apreender o filósofo se fazendo. Ele
põe entre parênteses as duas maneiras tradicionais de abordar uma obra: a objetivista e
subjetivista. Por um lado, ele exclui a pura exterioridade existente entre o sujeito e objeto.
Esta postura termina abordando a obra como um conjunto coeso de proposições positivas,
pois, no limite, se trataria, apenas, de extrair a coerência lógica da argumentação, onde
a obra estaria pura e simplesmente nos textos a serem lidos. Por outro lado, ele também
exclui a absoluta coincidência onde o intérprete seria o todo poderoso, momento da
eliminação das diferenças intrínsecas, já que haveria atribuição de valor apenas aos
infinitos trabalhos da posteridade. Estes dois prejuízos têm um imenso pressuposto
comum, a saber: a obra é sempre inteiramente determinada, ela é tida por um objeto em
si tomado por verdadeiro graças à possibilidade de sempre receber apenas um sentido. A
filosofia em questão seria passível de uma determinação unívoca, pois não passaria de um
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objeto ou idéia plenamente determinada. Não se trata de ater-se ao resultado daquilo que
uma obra se tornou. É verdade que ele não desconsidera nem a posteridade, ou melhor, o
debate instaurado pela obra, nem a própria obra do autor em questão, já que é do interior
deste campo que a discussão se dá. Merleau-Ponty mergulha radicalmente no texto de
Maquiavel, mas também dá voz a leitores que também se debruçaram sobre os textos
em questão.6 Como sempre, o essencial de uma obra bem-sucedida está na interrogação
do autor no trabalho, pois é neste momento que algo excede aquilo que foi dito de modo
explícito. Este próprio excesso é que dá algo a ser pensado, pois uma obra de filosofia
nunca pode ser considerada como um objeto passível de ser dominado inteiramente, seja
do ponto de vista objetivo, seja do subjetivo. A maneira com que Merleau-Ponty aborda a
obra maquiaveliana é fecunda porque, quando se trata de ler uma filosofia, é preciso fazê-
la falar. E ao fazer isto, sua leitura ou interrogação também nos dá a falar.7
II
O Maquiavel que surge das páginas merleau-pontianas é alguém que procura
trilhar um caminho no contato com seu próprio tempo, mas é, também, um filósofo que
sofre uma espécie de degradação ou sedimentação junto a seus leitores. Como encontrar
aquele Maquiavel que não é maquiavélico sob os próprios textos que chegaram até nós?
Como compreender que esta interpretação é justificada não pelos textos de Maquiavel,
mas pela fortuna crítica que suscitou? Como compreender que a filosofia de Maquiavel
não seja nem um humanismo puro, nem um moralismo puro, ambos fora da história e
das relações sociais abarrotadas de ambigüidades e reviravoltas? Dizer que Maquiavel
seja maquiavélico é uma maneira de “desaprovar” sua obra, é “o impiedoso estratagema
daqueles que dirigem os seus olhos e os nossos para o céu dos princípios para desviá-los
do que fazem” (Merleau-Ponty 13, p.252). Se o adjetivo “maquiavélico” e o substantivo
“maquiavelismo” chegaram até nós como sinônimo de uma conduta diabólica, foi
porque a filosofia de Maquiavel se contrapôs de maneira radical a tradição que via no
poder algo sacro. Merleau-Ponty termina seu ensaio criticando esta postura tradicional
e chamando a atenção para aquilo que segundo ele há de interessante na obra do escritor
florentino: “há uma maneira de elogiar Maquiavel que é exatamente o contrário do
maquiavelismo, já que enaltece em sua obra uma contribuição para a clareza política”
(Merleau-Ponty 13, p.252). A clareza em política seria precisamente a descoberta de que
a política não é aquilo que a tradição diz. A política deve ser entendida como relação com
outrem no mundo real, ou melhor, a política deve ser compreendida como algo humano.
Vem daí que a condenação da obra de Maquiavel como maquiavélica não passar de um
prejuízo muito profundo e contra o qual o próprio autor florentino lutou bravamente,
a saber: o preconceito teológico. Para compreender a situação dos acusadores de
Maquiavel o texto de Merleau-Ponty nos mostra que, por um lado, encontramos aqueles
que costumeiramente chamamos de “belas almas” ingênuas que sacrificam a ação, por
outro, aqueles que separaram radicalmente a política das preocupações éticas negando
os valores. O prejuízo em comum destes detratores consiste em que ambos recusam
perceber a relação estreita entre política e moral. Para que a política seja efetiva é
preciso que haja relação com o mundo dos acontecimentos. Maquiavel quer “escrever
algo útil” para quem o ler. Para ele é “mais conveniente procurar a verdade efetiva das
coisas do que o que se imaginou sobre elas” (Maquiavel 9, p.73). Tendo entrevisto as
ambigüidades e as possibilidades da ação política, Maquiavel é um pensador da moral
em política que parte da experiência concreta de seu próprio tempo.
Segundo Maquiavel, é verdade que o príncipe deve ter as qualidades que ele
aparenta ter. Merleau-Ponty vê aí uma condição fundamental da política. Qual seja? A
política deve “se desenrolar na aparência” (Merleau-Ponty 13, p.273-74). Todavia, para
Maquiavel o príncipe tem que ter domínio de si para poder desenvolver os contrários
quando isto for preciso. Se ele não puder ter as qualidades necessárias para o bom governo
ele deve agir de tal forma que os comandados acreditem que ele as possui. Merleau-Ponty
interpreta este pensamento como um preceito de política que poderia tornar-se a “regra
de uma verdadeira moral” (Merleau-Ponty 13, p.274). Mas, atenção: não se trata de negar
que tais qualidades não sejam essenciais para quem exerce o poder; também não se trata
de dizer que a representação das qualidades deva ser simples simulacros pervertidos.
O sentido deste pensamento está em que no terreno da política não há lugar para os
valores próprios a uma moral abstrata. Ora, a política depende, sim, de avaliações morais,
afinal, os homens julgam sempre a partir de valores herdados pela tradição.8 Na verdade,
Maquiavel tem boas razões para subtrair a política ao puro juízo moral. E isto, porque,
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em princípio, não podemos querer ser honestos no meio de gente desonesta, pois mais
cedo ou mais tarde terminaríamos por perecer. Argumento que Merleau-Ponty considera
fraco, pois ele poderia ser “aplicado à vida privada, onde Maquiavel permanece ‘moral’”
(Merleau-Ponty 13, p.272-73). Há, porém, um segundo argumento que pode levar mais
longe: “é que, na ação histórica, a bondade é, às vezes, catastrófica e a crueldade menos
cruel que um temperamento indulgente” (Merleau-Ponty 13, p.273). É neste sentido que
a bondade deve estar relacionada com a dureza, pois uma bondade que não for capaz
de ser dura envereda no desprezo de outrem, já que seria “uma maneira doce de ignorar
outrem e finalmente de desprezá-lo” (Merleau-Ponty 13, p.275). Embora os homens
não consigam discernir a verdade daquilo que o príncipe lhes fala, a capacidade de bem
agir na cena pública, ou melhor, a virtù política que Merleau-Ponty quer apreender em
Maquiavel, consiste em que o príncipe deve “falar a seus espectadores mudos em torno
dele e tomados na vertigem da vida em comum” (Merleau-Ponty 13, p.275). Portanto,
entre a pura e simples vontade de agradar e o desafio radical, o príncipe deve conceber
uma “empreitada histórica à qual todos podem se juntar” (Merleau-Ponty 13, p.275).
Enfim, para Maquiavel, é a relação com outrem que deve ser tomada como “signo de
valor na política”.
“Pelo domínio de suas relações com outrem, o poder transpõe os obstáculos entre o homem e o homem e coloca alguma transparência nas nossas relações, – como se os homens não pudessem estar próximos senão em uma espécie de distância” (Merleau-Ponty 13, p.275).
O problema está em que a verdade do poder só é dada por quem não está no
poder, e isto, porque o poder não vê a imagem de si mesmo que é oferecida aos outros.
Todavia, não podemos depreender daí que, então, é preferível enganar a fazer o bem.
Ora, as qualidades do príncipe são fixadas em atitudes históricas, elas são “vistas”. É
neste contexto que surge o grande exemplo de Maquiavel – César Bórgia – retomado por
Merleau-Ponty.9 A virtù de Bórgia estaria no fato de que seus atos de poder consistiam
em intervenções “em certo estado de opinião que alterava seu sentido”. O que é preciso
reconhecer, aqui, é o enredo no qual se dá a ação histórica, a qual deve levar em
consideração o nó inextrincável existente entre “a distância e o grau de generalidade em
que se estabelecem as relações políticas” (Merleau-Ponty 13, p.274). Os atos de poder
“despertam um eco às vezes desmedido; eles abrem ou fecham fissuras secretas no bloco do consentimento geral e começa um processo molecular que pode modificar o curso inteiro das coisas. Ou ainda: como espelhos dispostos em círculo transformam uma pequena chama em um espetáculo feérico, os atos de poder, refletidos na constelação das consciências, se transfiguram, e os reflexos destes reflexos criam uma aparência que é o lugar próprio e, em suma, a verdade da ação histórica” (Merleau-Ponty 13, p.273).
Para que o príncipe tenha conhecimento dos ecos que suas falas e atos despertam
nas outras pessoas ele deve preservar uma distância que não é diferença absoluta, mas
também deve resguardar uma proximidade que não é coincidência completa. Ele deve
manter “contato com as testemunhas das quais ele mantém todo o ser poder” (Merleau-
Ponty 13, p.274). Donde a importância de que ele se mantenha livre em relação a suas
qualidades podendo, no limite, mudar de conduta quando necessário. O príncipe “precisa,
portanto, ter o espírito preparado para voltar-se para onde lhe ordenarem os ventos da
fortuna e as variações das coisas, e não se afastar do bem, mas saber entrar no mal, se
necessário” (Maquiavel 9, p.85). Agindo assim, o homem político terá o reconhecimento
daqueles que governa, pois seus atos fazem parte de um mundo que ele habita. Seus atos
estão estreitamente relacionados com o olhar de outrem. Assim, ainda que este homem
precise usar a força ou a violência, ela não será uma pura técnica do uso da força, pois
“não se pode propriamente chamar virtù o fato de assassinar seus concidadãos, trair
amigos, não ter fé, piedade nem religião. Deste modo pode-se adquirir poder, mas não a
glória” (Maquiavel 9, p.38). Com efeito, o homem que se envereda nos negócios humanos
procura, sim, a glória e a fama, as quais devem aparecer, ser vista e se fazer ver. O discurso
sobre os valores deve sempre estar relacionado com sua serventia, eficácia e utilidade
social ou cívica. Trata-se, portanto, de agir politicamente no mundo das aparências, pois,
nele, o que conta é o que aparece e, além disto, o valor mais alto decorrente da relação
com outrem é a glória, ápice das aparências.
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Se a relação com outrem é compreendida como signo de valor na política, é
preciso, então, matizar com cuidado a relação de rivalidade advinda da necessidade de
exercer ou sofrer constrangimento. Merleau-Ponty dirá que “a vida coletiva é o inferno”
(Merleau-Ponty 13, p.268). Para Maquiavel, a luta se dava graças à divisão interna à
própria sociedade. “Pois, em todas as cidades, existem esses dois humores diversos que
nascem da seguinte razão: o povo não quer ser comandado nem oprimido pelos grandes,
enquanto os grandes desejam comandar e oprimir o povo” (Maquiavel 9, p.43). Ora, a
luta é a própria realidade do convívio humano nas cidades, cabendo ao homem político
a tentativa de unificar e procurar, para as cidades, uma identidade. Donde a necessidade
que Maquiavel via de substituir o combate com a força pelo combate com as leis e com o
poder (cf. Maquiavel 9, p.83). Dada a divisão social originária entre os grandes e o povo,
Maquiavel procurava um príncipe que pudesse unificar a Itália inteiramente fragmentada.
Os “novos príncipes” são estes homens que do interior da própria sociedade deveriam
tomar e manter o poder, ou melhor, eles deveriam fundar estes novos sistemas chamados
“monarquias” ou “repúblicas”, os quais assinalavam a importância crescente tanto
daquilo que era secular contra a predominância da política teológica, quanto da nação,
ponto que excluía a intromissão de outros países. O príncipe deveria fundar um Estado
que unificasse e libertasse a Itália. O chefe preconizado por Maquiavel tinha uma tarefa
a cumprir: introduzir este novo sistema, afinal, “Deus não quer fazer tudo, para não nos
tolher o livre-arbítrio e a parte de glória que nos cabe” (Maquiavel 9, p.124).
Na interpretação de Merleau-Ponty, a luta deve ser encaminhada para outra
direção que o simples antagonismo. Na verdade, a verdadeira violência está no terror
causado pela política feita a partir de princípios que estabelecem uma homogeneidade
que não tem equivalentes com a realidade do mundo humano. Seria preciso, então, pôr em
relevo o “circuito entre eu e outrem” que é o próprio nó da vida coletiva. Ora, na relação
com outrem “estamos longe das relações de pura força que existem entre os objetos”
(Merleau-Ponty 13, p.268). Por isto, por um lado, outrem nunca poderá ser considerado
como puro e simples objeto sob pena de exercermos sobre ele a maior violência de
todas. Por outro, é preciso compreender que esta espécie de violência se repetiria se
abordássemos a relação entre as pessoas no puro nível subjetivo. Assim, tanto as relações
humanas quanto as relações dos sujeitos com o poder “se atam mais fundo do que o
juízo” (Merleau-Ponty 13, p.269). Se a constituição do corpo político é feita de conflitos
e lutas entre os agentes, a sociedade concreta e real é que passa a chamar atenção, pois
ela é susceptível ao tempo. Quando os conflitos e as lutas são inevitáveis, eles devem
ser interrogados no sentido de que tragam algo de positivo para o desenvolvimento das
relações humanas e das cidades; eles devem ser explorados na perspectiva da convivência
possibilitada por boas instituições.
Se o combate por intermédio do poder é preferível ao combate com a pura força,
como caracterizar o poder? Ele não é nem “força pura”, nem “honesta delegação das
vontades individuais”; ele é sempre contestável e está sempre sob ameaça. Como não
existe poder absolutamente fundado – não existe fundamento que seja nem anterior, nem
exterior à política, seja ele divino, natural ou racional – só existe uma “cristalização do
poder”. E isto, porque o poder é da ordem do “tácito”, o que significa que a opinião tolera
o poder e que ela o toma como adquirido: o poder legítimo é aquele que evita o desprezo
e o ódio. Mas se o poder não é “puro fato”, nem “direito absoluto”, ele nem coage, nem
persuade, mas “circunscreve – e circunscrevemos melhor apelando à liberdade do que
aterrorizando” (Merleau-Ponty 13, p.269). Ora, os benefícios de uma filosofia política
deste gênero são muitos. Primeiramente, porque Maquiavel nos introduz “no meio próprio
da política e nos permite medir a tarefa se nós queremos encontrar aí alguma verdade”
(Merleau-Ponty 13, p.269). Além disto, ele nos “mostra um começo de humanidade
emergindo da vida coletiva como que à revelia do poder” (Merleau-Ponty 13, p.270-
71). Vem daí que Maquiavel, segundo Merleau-Ponty, tenha indicado as “condições de
uma política que não seja injusta”, a saber: aquela que contenta os povos. O príncipe
deve estar do lado do povo e não dos seus rivais. Por quê? Porque “o que engrandece as
cidades não é o bem individual, e sim o bem comum” (Maquiavel 10, p.187). Assim, os
objetivos da política devem passar longe dos princípios racionais da justiça e da ética,
ambos pautados pela tradição de cunho teológico-político. É deste modo que o secretário
florentino nos ajuda a não renunciar a virtù compreendida como “um meio de viver com
outrem” (Merleau-Ponty 13, p.271). Está aí o caráter intersubjetivo da virtù, pois neste
patamar ela consistiria na capacidade do príncipe de se dirigir aos seus subordinados
com o objetivo de colocar alguma transparência nas relações, mesmo que para isto fosse
preciso usar a força ou a violência, ser mentiroso ou astucioso. Todavia, o poder não deve
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estar separado da liberdade, já que ela é precisamente o critério para medir o valor de um
regime político. A liberdade exprime uma espécie de ideal novo se contrastada com a
situação em que se encontrava o poder dos papas e dos imperadores. Bem entendido, trata-
se da liberdade republicana que não deve ser posta a serviço dos poderosos, mas do povo.
Ora, “o bem comum só é observado nas repúblicas, porque tudo o que é feito, é feito para
o seu bem, e mesmo que aquilo que se faça cause dano a um ou outro homem privado, são
tantos os que se beneficiam que é possível executar as coisas contra a vontade dos poucos
que por elas sejam prejudicados” (Maquiavel 10, p.187). Compreende-se, portanto, que
é a liberdade expressa tanto nas instituições, quanto nas ações e no espírito de conquista
que faz a grandeza de uma cidade e de um povo. Alem disto, somente aqueles valores
que nascem do contato dos homens com as necessidades da vida pública e se conservam
graças aos costumes do povo é que devem ser cultuados. Donde o interesse de Maquiavel
recorrer aos exemplos dos Antigos, pois ao invés de venerarem valores de uma ética cristã
fundada tanto na revelação quanto na consciência, eles cultivavam os valores cívicos
fundados tanto no respeito ao bem público quanto às leis da pólis.
“Se Maquiavel era republicano, é porque ele encontrou um princípio de comunhão. Ao colocar o conflito e a luta na origem do poder social, ele não quis dizer que o acordo fosse impossível, ele quis sublinhar a condição de um poder que não seja mistificante, e que é a participação em uma situação comum” (Merleau-Ponty 13, p.272).
Passemos, então, ao segundo grande momento do texto de Merleau-Ponty: a
virtù presente na relação com a fortuna. Desde o início do texto ele dizia que, em geral, as
pessoas não gostam de Maquiavel por ele ser um “pensador difícil e sem ídolos” (Merleau-
Ponty 13, p.267). Só que, além disto, aquilo que o torna incompreensível é o fato de que
ele une extremos que, tradicionalmente, são excludentes. Ele une incompossíveis, pois
“une o sentimento mais agudo da contingência ou do irracional no mundo com o gosto
pela consciência ou pela liberdade no homem” (Merleau-Ponty 13, p.275). Do ponto de
vista maquiaveliano, são tantas as reviravoltas que a história se encarrega de dar que não é
possível atribuir a ela algo que a “predestine a uma consonância final” (Merleau-Ponty 13,
p.275). Isto acontece porque Maquiavel “evoca a idéia de um acaso fundamental, de uma
adversidade que a furtaria ao poder dos mais inteligentes e dos mais fortes” (Merleau-
Ponty 13, p.275). Mas graças a quê Maquiavel exorciza este “gênio maligno”? Ora, em
princípio, para ele o príncipe não é aquele personagem de caráter rígido e constante, assim
como a fortuna também não é a encarnação da inconstância. Em seguida, não é se valendo
de nenhum princípio transcendente que ele exorciza este gênio maligno, “mas por um
recurso aos dados de nossa condição” (Merleau-Ponty 13, p.275-76). Em nossa condição
de seres humanos há muita coisa que está em nosso poder, mas há, com certeza, mais
coisas ainda que escapam ao nosso poder, o que determina de maneira radical a vida e a
ação. Apesar desta imensa adversidade, Merleau-Ponty insiste que em Maquiavel há algo
a mais, pois ainda que a força adversa seja bastante poderosa, “não podemos limitar em
parte alguma o nosso poder” (Merleau-Ponty 13, p.276). Não se trata de “supor nas coisas
um princípio hostil”. É verdade que os acontecimentos nos reservam surpresas, como foi
o caso de Bórgia, mas nós não devemos fazer vista grossa nem para o nosso próprio corpo,
nem para a consciência, nem para a tentativa de previsão. Assim, é o próprio secretario
florentino que nos diz que “já que o nosso livre-arbítrio não desapareceu, julgo possível
ser verdade que a fortuna seja árbitro da metade de nossas ações, mas que também deixe
a nosso governo a outra metade ou quase” (Maquiavel 9, p.119).
Ora, ter um livre-arbítrio, aqui, significa ter uma virtù que dá corpo à ação
livre. Já a fortuna “só toma figura no momento em que renunciamos a compreendê-
la e a querê-la” (Merleau-Ponty 13, p.276), ou seja, quando renunciamos à ação. Mas
compreender e querer a fortuna exige certas condutas, como, por exemplo, quando lhe
opomos algumas barreiras; mas, mesmo assim, quando ela vem, ela atinge, precisamente,
os pontos vulneráveis. Uma das teses mais impressionantes de Maquiavel consiste em
que a fortuna é ora favorável ora desfavorável. A conseqüência desta variabilidade
está em que o homem ora compreende ora não compreende seu tempo, “e as mesmas
qualidades trazem-lhe conforme o caso o sucesso e a perda, mas não por acaso” (Merleau-
Ponty 13, 276). A virtù do príncipe deve ser encontrada no modo como ele responde às
circunstâncias, isto é, se age sempre do mesmo modo e segundo princípios imutáveis ele
estará fadado ao fracasso. Mas se for flexível e mudar de acordo com as circunstâncias,
ele poderá, na ocasião oportuna, apanhar a fortuna, dominá-la e contrariá-la de acordo
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com suas intenções, momento em que ela lhe será favorável. O príncipe não poderá fiar-
se unicamente na fortuna, pois se ela mudar ele estará arruinado. Donde Maquiavel dizer
que “é feliz aquele que combina [ou ajusta] o seu modo de proceder com as exigências
do tempo e, similarmente, que são infelizes aqueles que, pelo seu modo de agir, estão em
desacordo com os tempos” (Maquiavel 9, p.120). A variabilidade da fortuna deve estar
de acordo com a obstinação da própria maneira de ser do príncipe, pois se não houver
este acordo o resultado será a infelicidade. Para Maquiavel é melhor ser impetuoso do
que prudente, pois quem é prudente não chega nem a dominar, nem a contrariar a fortuna.
É desta espécie de agentes ferozes e audaciosos dominadores que a fortuna é amiga e se
oferece como presente. Eis o único recurso indicado por Maquiavel, segundo Merleau-
Ponty:“a presença a outrem e a nosso tempo que nos faz encontrar outrem no momento em que renunciamos a oprimi-lo, – encontrar o sucesso no momento em que renunciamos à aventura, escapar ao destino no momento em que compreendemos o nosso tempo” (Merleau-Ponty 13, p.276).
Merleau-Ponty indica que há algo que dá “valor absoluto a nossa virtù”, a saber,
a idéia de que a “humanidade é fortuita” e de que “não tem causa ganha”. Isto não quer
dizer que a virtù não encontre limites, pois tanto o agente que insiste na ação ineficaz
quanto o próprio mundo na sua constante mudança impõem um limite a ela. Mas, se
assim for, como antecipar aquela imensa força adversa? “Quando compreendemos o
que, nos possíveis do momento, é humanamente válido, os signos e os presságios não
faltam nunca” (Merleau-Ponty 13, p.277). Vem daí a importância de saber aproveitar a
boa ocasião, momento em que o príncipe se torna um explorador do campo dos possíveis.
Em um pequeno texto chamado “Capítulo da ocasião”, Maquiavel nos diz que a ocasião
não parece uma deusa mortal, os céus a ornaram e a encheram com suas graças, além
disto, seu vôo é muito rápido, ela tem asas nos pés que servem para ofuscar os homens.
Poucos a conhecem, e é por isto que ela se agita tanto e tem sempre um pé sobre a roda.
Ela se apresenta de tal modo que quando surge, não a reconhecemos. Aquele que se perde
observando seus detalhes a deixa passar, ou ainda, quando ela dá as costas para alguém,
estes só se fatigam querendo agarrar-lhe. Enfim, quem corre atrás dela é o arrependido,
pois quem não sabe apanhá-la, só guarda remorso. É neste sentido que precisamos saber
aproveitar os signos e os presságios para não nos arrependermos de não ter aproveitado
os possíveis do momento oportuno, ou melhor, de não termos explorado o campo dos
possíveis (cf. Maquiavel 11). 10
Segundo Merleau-Ponty, não há nenhum humanismo mais radical do que o de
Maquiavel, pois ao contrário de ignorar os valores, ele viu os próprios valores de maneira
viva e sempre em transformação, afinal, os valores estão irremediavelmente ligados a
certas ações históricas. É preciso, portanto, exorcizar a política feita a partir de princípios,
pois uma vez que os princípios fossem aplicados em certas situações julgadas favoráveis
eles se tornariam instrumentos de opressão. Não basta tomarmos consciência de quais
são os princípios que foram escolhidos, além disto, é preciso saber quais forças e quais
homens os aplicam. É verdade que Maquiavel não dispensava os valores, o que por si só
também não basta e seria mesmo perigoso nos determos aí. O que fazer então? “Enquanto
não se escolherem aqueles que têm a missão de sustentá-los na luta histórica, nada se
fez” (Merleau-Ponty 13, p.279). Merleau-Ponty chama atenção para o fato de que sempre
numerosos assassinatos e horríveis crueldades foram cometidos tanto em nome da lei
quanto em nome da liberdade e, “bem entendido, a dura sabedoria de Maquiavel não
as reprovará por isto” (Merleau-Ponty 13, p.279). Quanto a Merleau-Ponty, este ponto
merece bastante atenção porque seria preciso ver que, ainda assim, “os meios permanecem
sanguinários, impiedosos, sórdidos” (Merleau-Ponty 13, p.279).
Surge, então, um ponto de discórdia com Maquiavel, pois para evitar as barbáries
tão conhecidas seria “preciso quebrar o círculo” (Merleau-Ponty 13, p.279). Sobre este
ponto é que Merleau-Ponty pensa ser não só possível, mas também necessário uma crítica
a Maquiavel. O problema está em que Maquiavel “se contentou em evocar em poucas
palavras um poder que não seria injusto, ele não procurou muito energicamente uma
definição” (Merleau-Ponty 13, p.280). Merleau-Ponty não diz que Maquiavel estivesse
cego para isto. Ele foi, sim, “desencorajado” porque ele “acreditava que os homens
fossem imutáveis, e que os regimes se sucediam em ciclo” (Merleau-Ponty 13, p.280).11
O que o faz pensar que só existem dois tipos de homem: os homens comuns que vivem o
comum da vida e com os quais Maquiavel passou grande parte de seu tempo, e os grandes
homens que fazem a história, ou melhor, a interrogam e lhe respondem. Ora, o pomo
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da discórdia consiste em que, por um lado, Maquiavel via muita cegueira nos homens
e, por outro, ele também via uma arte natural de comandar destinada a poucos. Tudo se
passa como se Maquiavel ficasse tentado a pensar que “não há humanidade, mas homens
históricos e pacientes”; mas, além disto, o próprio Maquiavel teria se contentado em se
colocar do lado daqueles homens comuns. Donde sua postura de não ter preferência por
nenhum “profeta armado”; poderia ser um, mas também poderia ser outro, o que o levava
a agir de maneira muito incerta.
“A conduta de Maquiavel acusa o que faltava a sua política: um fio condutor que lhe permitisse reconhecer, entre os poderes, aquele do qual houvesse algo de válido a esperar, e elevar decididamente a virtù acima do oportunismo” (Merleau-Ponty 13, p.281).
Merleau-Ponty não reduz a filosofia de Maquiavel ao cinismo que nega os
valores, apesar de que ele escreva contra os bons sentimentos em política, mas ele também
não reduz seu pensamento a uma espécie de crueldade, pois Maquiavel também é contra
a violência. Merleau-Ponty quer ser justo e indulgente com Maquiavel, pois para ele “a
tarefa era difícil” (Merleau-Ponty 13, p.281).12
Depois da crítica, Merleau-Ponty elogia o “humanismo sério” de Maquiavel,
o qual consiste em esperar, “através do mundo, o reconhecimento efetivo do homem
pelo homem”. Este humanismo deve ser contemporâneo ao esforço que a humanidade
deve empreender para forjar meios de comunicação e de comunhão (cf. Merleau-Ponty
13, p.281). Mas o problema posto por Maquiavel não foi resolvido. O problema de um
humanismo real foi retomado por Marx. Segundo Merleau-Ponty,
“Marx se propôs, precisamente, para fazer uma humanidade, encontrar um outro apoio do que aquele, sempre equívoco, dos princípios. Ele procurou na situação e no movimento vital dos homens mais explorados, mais oprimidos, mais desprovidos de poder, o fundamento de um poder revolucionário, ou seja, capaz de suprimir a exploração e a opressão. Mas ficou claro que todo o problema era de constituir um poder dos sem-poder” (Merleau-Ponty 13, p.281).
Donde a alternativa que se impunha entre, por um lado, a possibilidade do poder
do proletariado acompanhar a flutuação da consciência de massa e assim ser esmagado,
e, por outro, se subtrair à consciência de massa e tornar-se uma nova camada dirigente.
O que, aliás, foi o que aconteceu. Merleau-Ponty chama a atenção para o fato de que a
solução só poderia ser encontrada em uma “relação absolutamente nova com os sujeitados”
(Merleau-Ponty 13, p.282).
“Seria preciso inventar formas políticas capazes de controlar o poder sem o anular, seria preciso chefes capazes de explicar aos sujeitados as razões de uma política, e de obter deles próprios, se fosse necessário, os sacrifícios que o poder lhes impõe ordinariamente” (Merleau-Ponty 13, p.282).
Ora, estas formas políticas foram esboçadas e estes chefes apareceram na
revolução de 1917. Mas, “desde a época da Comuna de Kronstadt, o poder revolucionário
perdeu o contato com uma fração do proletariado, todavia experimentada, e, para esconder o
conflito, ele começa a mentir” (Merleau-Ponty 13, p.282).13 Assim, neste contexto, quando
há divergência e oposição partidária é porque se trata de sabotagem e espionagem, donde
o reaparecimento no interior da revolução das próprias lutas que ela procurou ultrapassar.
Isto se dá porque “todo poder tende a se ‘autonomizar’” (Merleau-Ponty 13, p.282). Daí
aquilo que Merleau-Ponty chama de “o problema essencial”: como compreender esta
autonomização do poder ligada tanto a um “destino inevitável em toda sociedade” quanto
a uma “evolução contingente”? Na época em que a “Nota sobre Maquiavel” foi escrita, o
expediente de Kronstadt já havia se tornado “sistema” e o poder revolucionário também
já havia sido determinantemente “substituído pelo proletariado como camada dirigente,
com os atributos de potência de uma elite incontrolável” (Merleau-Ponty 13, p.282). É
neste contexto que sua conclusão pode ser compreendida, pois, “cem anos depois de Marx,
o problema de um humanismo real permanece inteiro, e, portanto, [devemos] mostrar
indulgência para com Maquiavel, que só podia entrevê-lo” (Merleau-Ponty 13, p.282).
É preciso, contudo, deixar bem claro o que se entende aqui por humanismo. Não se trata
de uma “filosofia do homem interior que não encontra nenhuma dificuldade de princípio
nas suas relações com os outros”; também não se trata de uma filosofia que não encontra
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“nenhuma opacidade no funcionamento social e substitui a cultura política pela exortação
moral”. Portanto, não se trata de uma filosofia que substitua a reflexão sobre o que é o
poder e o que é o ser do social e o ser do político por uma reflexão sobre a consciência do
poder, do social e do político. Não é neste sentido que devemos interpretar o humanismo
de Maquiavel assinalado por Merleau-Ponty. Não se trata de por em relevo a dimensão
rarefeita da consciência e de seus princípios no campo político e histórico.
“Mas se chamamos humanismo uma filosofia que afronta como um problema a relação do homem com o homem e a constituição entre eles de uma situação e de uma história que lhes seja comum, então é preciso dizer que Maquiavel formulou algumas condições de todo humanismo sério” (Merleau-Ponty 13, p.283).
III
Para concluir, notemos que na filosofia de Maquiavel a política deve ser
interpretada como “grande política”. O que faz da política maquiaveliana uma “grande
política”?14 A expressão “grande política” é empregada por Claude Lefort para nomear
aquela política que “supõe que seja levado em conta uma tarefa inscrita aqui e agora
no ser do social” (Lefort 8, p.433). Quando Maquiavel analisa as figuras do despotismo
de sua época, ele chega à conclusão de que nestas condições a política se avilta, pois o
despotismo é um poder que precisa de constante constrangimento físico. Segundo Lefort,
há uma segurança que é tão pouco recomendável quanto a maior insegurança. Trata-
se daquela segurança que paga o preço de uma sociedade diminuída e de uma política
miserável. Já a “grande política se reconhece pelo fato de conquistar a segurança na insegurança, de mover no espaço agitado da história, de dar ao Entendimento do príncipe poder de virar-se a todos os ventos, de aliar-se às forças contrárias, ao invés de se subtrair a elas, de forçar a Fortuna ao invés de se esconder de seu apelo” (Lefort 8, p.431).
Lefort nos ensina o que é a “grande política” ao procurar nos fazer entender
o que é verdadeiramente a segurança e a glória. Em primeiro lugar, há uma segurança
que não é “o único fruto do medo”, porque, para Maquiavel, não se trata de enfraquecer
os súditos, mas, sim, fortificá-los armando-os. Em segundo, há uma glória que “não se
alimenta unicamente da fraqueza e da crueldade dos outros”, pois se trata, precisamente,
de reconhecer na virtù a própria expressão da glória. Enfim, se a “grande política” está
inscrita no “aqui e agora do ser social” compreende-se que é a leitura do mundo presente
em que vivia que levou Maquiavel “a restaurar a imagem da grande política” (Lefort 8,
p.431). Mas se assim for, quem é o príncipe? O príncipe é aquele que
“deve acolher a indeterminação e que, justamente, se ele a faz andar direito, se ele renuncia à ilusória segurança de um fundamento, a ocasião lhe oferece descobrir, na paciente exploração dos possíveis, os signos da criação histórica, e inscrever sua ação no tempo” (Lefort 8, p.432).
REFERêNCIAS bIbLIogRáFICAS
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2. BIGNOTTO, N. “As fronteiras da ética: Maquiavel”. In: Ética. Organização de Adauto Novaes, São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
3. __________ Maquiavel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, Editor, 2003.4. CHAUI, M. “Apresentação do livro de Lefort”. In: A invenção da democrática. Os
limites da dominação totalitária. Tradução Isabel Marva Loureiro, São Paulo: Brasiliense, 1983.
5. __________ “Notas do tradutor”. In: “Em toda e em nenhuma parte”. In: Merleau-Ponty. Os pensadores, São Paulo: Abril Cultural, 1980.
6. CORCUFF, P. “Merleau-Ponty ou l’analyse politique au défi de l’inquiétude machiavélienne”. In: Merleau-Ponty. Le philosophe et les sciences humaines. In: Les études philosophiques. Paris: Puf, abril-junho, 2001-2002, p.211.
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8. LEFORT, C. Le travail de l’œuvre. Machiavel. Paris: Gallimard, 1972.
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9. MAQUIAVEL, N. O príncipe. Tradução Maria Júlia Goldwasser, São Paulo: Martins Fontes, 2004.
10. __________ Discurso sobre a primeira década de Tito Lívio. Tradução MF, São Paulo: Martins Fontes, 2007.
11. __________ “Capitolo de l’occasion”. In: Capitoli. In: Œuvres completes. Paris: Gallimard, 1952.
12. MERLEAU-PONTY, M. Causeries 1948. Paris: Seuil, 2002.13. __________ Signes. Paris: Gallimard, 1960.14. __________ Les aventures de la dialectique. Paris: Gallimard, 1955.15. __________ Sens et non-sens. Paris: Nagel, 1966.16. __________ Humanisme et terreur. Essai sur le problème communiste. Paris:
Gallimard, 1947.17. __________ Parcours 1935-1951. Lagrasse: Verdier, 1997.18. __________ Phénoménologie de la perception. Paris: Gallimard, 1945.19. RENAUDET, A. Machiavel. Études d’histoire des doctrines politiques. Paris:
Gallimard, 1942; cf. edição revista e ampliada de 1956.20. SILVA, F.L. “A história da filosofia em Heidegger e Merleau-Ponty”. In: Educação e
filosofia, Uberlândia: V. 5 e 6, nº. 10, 1991, p.85.
“La grande politique” or Merleau-Ponty reader of Machiavelli
Abstract: This article intends to consider the work of Niccolo Machiavelli from the approach made by Maurice Merleau-Ponty in his text “Note on Machiavelli”. In order to do that, we shall present some general aspects of Merleau-Ponty’s political philosophy, trying to track the presence of Machiavelli in the work of the French philosopher. We shall also consider the elements which guided Merleau-Ponty’s reading of philosophical texts. Regarding Machiavelli’s philosophy, we shall try to highlight the aspects that made the Florentine the first modern political thinker, according to Merleau-Ponty. In conclusion, we shall also consider, following Claude Lefort’s expression, the aspects that make politics in Machiavelli’s thought to be understood as “la grande politique”.Keywords: Merleau-Ponty, Machiavelli, Lefort, humanism, politics.
notas
1. Merleau-Ponty nos diz que “se Descartes está presente é porque, rodeado de circunstâncias hoje abolidas, atormentado com preocupações e com algumas ilusões de seu tempo, respondeu a esses acasos de tal maneira que nos ensina a responder aos nossos, embora diferentes, e diferentes nossas respostas. [...] Os filósofos de amanhã [...] continuarão a aprender com Leibniz e Espinosa como os séculos felizes pensaram domar
a esfinge, dando à sua maneira, menos figurada e mais abrupta, uma resposta aos enigmas multiplicados que ela lhes propõe” (Merleau-Ponty 13, p.199-200).2. Philippe Corcuff chama atenção para o fato de que na época de Humanismo e terror a leitura de Maquiavel é fortemente tingida com as cores de uma filosofia da história que passa por Hegel e por Marx. Não há dúvidas de que o Hegel de que aqui se trata não é aquele da síntese final, mas aproxima-se daquele Hegel “pensador de uma história aberta à contingência” (cf. Corcuff 6, p.211).3. Os novos problemas são: os processos de Moscou, os campos de concentração na URSS, a diplomacia de Yalta, a superstição ligada ao marxismo, o futuro da revolução, as lutas anticoloniais, a guerra da Coréia, a invasão da Hungria pela URSS e a repressão da insurreição de Budapeste em 1956. 4. Sobre a “esquerda não-comunista” conferir em As aventuras da dialética páginas 311-13; sobre o “novo liberalismo” conferir no mesmo livro páginas 312-13.5. Não há consenso, por parte dos comentadores de Maquiavel, de uma definição precisa do termo virtù, e isto, porque o próprio Maquiavel não o definiu. Na verdade, ele é um conceito “multifacetado” que só pode ser compreendido no contexto em que foi empregado. Do ponto de vista individual, ele não pode ser interpretado à maneira tradicional, ou seja, como “composto de qualidades fixas, como coragem, sabedoria, justiça, temperança, isto é, das virtudes cardeais” definidas pela herança clássica. A virtù deve ser vista em relação estreita com a ocasião, donde ela não ser nem um “modo fixo de agir”, nem estar “relacionada necessariamente ao resultado final da ação”. Do ponto de vista republicano, “tanto o povo como o cidadão e o cidadão-soldado podem ter virtù”. Mas também aqui ela não deve ser lida à maneira tradicional. Na verdade, ela “está voltada para a defesa e a exaltação da pátria e para o amor pela defesa da liberdade” (cf. Aronovich 1, p.470-71).6. O único intérprete da obra de Maquiavel que Merleau-Ponty cita é Augustin Renaudet (cf.Renaudet 19). 7. A propósito desta maneira de interpretar uma obra de filosofia, vale a pena consultar a Primeira e a Sexta Parte do livro de Claude Lefort sobre Maquiavel. Ele compreendeu que ler Maquiavel, ou melhor, interpretar ou interrogar sua obra é perceber que a obra “conserva a virtude de fazer falar” (Lefort 8, p.44). Marilena Chaui nos diz que esta “concepção generosa” de leitura apresentada por Lefort é compartilhada por Merleau-Ponty. Para ambos “a obra instaura um modo de existência como diferença interna entre escrita e leitura que abre o pensar, em vez de fechá-lo sobre si mesmo, abertura que é o trabalho da obra ou o que Lefort designa como trabalho de interrogação que ‘é o vínculo mais seguro entre autor e leitor’, pois ‘é na leitura que um livro se faz’” (Chaui 4, p.13).8. Maquiavel não é um pensador que funda uma nova visão política que estaria distante de considerações de ordem moral. Não se trata, para ele, de uma legitimação de uma
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política que despreze os paradigmas éticos, os quais seriam absolutamente independentes da política. Para este filósofo não há ruptura absoluta entre ética e política. Há, sim, muitos aspectos éticos em seu pensamento. Não se trata, contudo, de regular as ações políticas segundo leis de uma moral abstrata. Newton Bignotto nos ensina que “falar de representações não implica dizer que a ética não tem ligação com a política”. Falar de representações equivale a mostrar que “a ética, vivida como costume, é a janela através da qual percebemos as ações humanas, sem que isso explicite a verdade ou não das proposições que nos guiam e revele a essência dos atos julgados”. Portanto, a política não pode afastar-se totalmente da ética, afinal, ela “depende da representação que os homens fazem dos atos dos governantes”, o que assegura, justamente, “um lugar para ela na vida pública”. Além de criticar a ética abstrata dos moralistas, Maquiavel, ao mesmo tempo, “atribui outra função aos julgamentos morais” e exige “outro sistema de valores, mais apto a fazer-nos entender a política”. Quando ele faz de Roma a “encarnação dos mais elevados parâmetros políticos, que toda ação deve guiar-se pelas ações de seus grandes homens”, trata-se de compreender que há uma “exemplaridade da cidade que se funda na exemplaridade da ação dos seus cidadãos”. É a liberdade que faz de Roma o melhor exemplo possível para um regime político. “É a liberdade, expressa nas instituições, nas ações, no espírito de conquista, que faz de Roma o modelo a ser imitado. [...] Escolher Roma como exemplo, fazer de suas instituições o modelo a ser imitado, implica abandonar o universo cristão de valores e, assim, negar que a ação política possa ser julgada pela ‘moralidade’ dos atores. [...] Maquiavel não opõe duas esferas autônomas da ação – a política e a ética – mas opõe duas maneiras de se conceber a ética: uma cristã, fundada na revelação e na consciência, e outra antiga, fundada no respeito ao bem público e às leis da pólis. Essa verdadeira revolução só foi possível porque o humanismo havia preparado o terreno para o culto dos valores cívicos”. No universo moral dos antigos e em parte dos renascentistas, “a verdadeira ética nascia do contato dos homens com as exigências da vida pública e se conservava pelos costumes do povo”. Maquiavel “afirma, sem ambigüidade, a superioridade da antiga ética sobre a do seu tempo, mantendo a discussão no terreno próprio ao debate sobre os valores”. Por fim, o debate de Maquiavel se dá “no universo de uma ética-política, ou de uma política que carrega em si um corpo de valores diferentes daqueles de uma moral da consciência” (cf. Bignotto 2, p.113-125).9. Bórgia – exemplo de governante para Maquiavel – era grande dissimulador de seus pensamentos e de sua natureza íntima. Exemplo de sagacidade política, Bórgia ocupou o poder em uma situação favorável no início, mas permaneceu no poder mesmo quando a situação tendia a complicar-se. Ele é “um modelo para todos os que pela sorte ou pela força dos outros chegou ao poder”: hábil para lidar com situações extremas, ele foi um personagem cruel e ambíguo. Tornou-se um exemplo a ser seguido por todos aqueles que
desejam o sucesso na vida política. Porém, não pôde sair do aperto em que se viu quando além de cair doente, o seu pai – o papa Alexandre VI – morreu. Mesmo sendo alguém que soube aproveitar a ocasião oportuna, não pôde resistir à fortuna. O ponto importante está em que para Maquiavel não há um poder que dure para sempre: “nada é mais constante do que essa verdade: tudo o que existe no mundo tem limite em sua duração”. “As coisas humanas resistem apenas o tempo que lhes é possível, sendo em seguida corrompidas pelo efeito de sua própria natureza. [...] Em sua obra, Maquiavel prefere sempre os exemplos dos que enfrentam as dificuldades do mundo, mesmo que saiam derrotados no final” (Bignotto 3, p.23).10. Para vermos com uma lente de aumento o momento específico da relação ou da ligação entre a fortuna e a virtù – conceitos que sempre devem ser considerados juntos –, não podemos pura e simplesmente considerar a fortuna como uma força terrível e sempre destruidora, conduta que conduziria o agente ao desespero completo e o levaria ao desconhecimento da relativa racionalidade das ações. Na verdade, este ponto de vista é, no limite, fatalista e não deixa nenhuma margem à esperança. Ora, esta postura é tornada impossível pela própria análise que vê na fortuna uma força que não nos permite conhecer suas tramas. “Resta sempre uma esperança e ela deve nos conduzir a agir e a enfrentar os perigos que aparecem, exatamente porque nenhum cálculo racional será capaz de prever todos os movimentos que se seguirão ao aparecimento das garras da fortuna, inclusive aqueles que serão benéficos aos nossos desejos. A palavra esperança pode soar estranha no contexto de uma discussão sobre a contingência do mundo da política, mas ela é a ponte entre virtù e fortuna, fundamentais no pensamento de Maquiavel para se examinar a ação política” (Bignotto 3, p.27-28).11. Dizer que os homens são imutáveis é o mesmo que dizer que eles repetem suas paixões e sua forma de agir: “a natureza humana é repetitiva e, portanto, pode ser analisada em qualquer tempo com as mesmas ferramentas” (Bignotto 3, p.14). Dizer que os regimes se sucediam em ciclo é afirmar “a crença de que o tempo era circular e as formas políticas iam se revezando à medida que ele transcorria” (Bignotto 3, p.54). Mas Maquiavel também estava certo de que a marcha do tempo é que desencadeava a corrupção dos regimes.12. A situação política da sua época exigia alguém que pudesse governar a Itália e soldados para realizar este objetivo. Donde as questões que Merleau-Ponty nos põe: “Na discordância de uma Europa que se ignorava, de um mundo que não havia feito seu inventário e onde os países e os homens dispersos ainda não haviam cruzado o olhar, onde estava o povo universal que pudesse se fazer cúmplice de uma cidade popular italiana? Como os povos de todos os países teriam se reconhecido, entendido e unido?” (Merleau-Ponty 13, p.281).13. A Comuna de Kronstadt – da cidade de Kronstadt na Rússia – deve ser considerada
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a última tentativa do proletariado russo de colocar a Revolução em seu antigo eixo. A revolta ocorrida em 6 de março de 1921 denunciava a predominância do partido único e exigia a eleição livre de representantes das massas trabalhadoras. É em relação a certa fração do proletariado (marinheiros, soldados, operários e camponeses) que o poder revolucionário já tinha, naquela época, perdido contato. A palavra de ordem dos revoltosos era: “viva os sovietes e abaixo os comunistas” do partido bolchevique. A revolta foi totalmente massacrada. Donde Merleau-Ponty afirmar que nesta ocasião o poder revolucionário já havia perdido contato com a grande maioria da população. Eis um trecho da mensagem radiofônica difundida pelos insurretos “aos trabalhadores do mundo inteiro”: “Nós somos partidários do poder dos sovietes, não dos partidos. Nós somos pela eleição livre de representantes das massas trabalhadoras. Os sovietes fantoches manipulados pelo partido comunista sempre foram surdos para as nossas necessidades e para as nossas reivindicações; não recebemos senão uma resposta: a metralhadora. [...] Camaradas! Não só eles querem nos enganar, mas eles transvertem deliberadamente a verdade e nos difamam da maneira mais desprezível. [...] Em Kronstadt, todo poder está exclusivamente entre as mãos dos marinheiros, soldados e operários revolucionários. [...] Viva o proletariado e a classe dos camponeses revolucionários! Viva o poder dos sovietes eleitos livremente” (cf. Goldman 7). Emma Goldman cita este trecho em um artigo publicado originalmente na revista Vanguard – de tiragem mensal e editada em Nova York – publicado em julho de 1938. 14. A expressão “grande política” deve fazer eco à expressão merleau-pontiana “grande racionalismo”. O que vem a ser o “grande racionalismo”? Em princípio vale observar que Merleau-Ponty tinha a intenção expressa de retomar de maneira mais radical “a tarefa que aquele século intrépido [século XVII] acreditava ter cumprido para sempre” (Merleau-Ponty 13, p.191). Merleau-Ponty recusa do “pequeno racionalismo” a explicação do ser pela ciência. Contra esta postura, é interessante voltarmos nossa atenção para aqueles pensadores do século XVII, momento privilegiado, rico de uma “ontologia viva”. Eles não tomavam os resultados da ciência como cânon da ontologia, na verdade, eles admitiam que a filosofia se projetasse sobre a ciência “sem ser sua rival”: o objeto da ciência era considerado apenas um “grau do Ser” e se justificava “em seu lugar”. Além disto, as filosofias deste século concebiam um “acordo extraordinário entre o exterior e o interior” graças à mediação do “infinito positivo”, espécie de segredo do “grande racionalismo”. Neste ponto, os trabalhos deste século estão bem longe daquilo que pensamos de nossa situação filosófica atual que, segundo Merleau-Ponty, tem como tema favorito a “contingência do mundo”. Na verdade, é preciso frisar que esta contingência vem trazer a exigência de se pensar de modo diferente a coesão do todo. Se o “infinito positivo” levava à recusa da ambigüidade e da temporalidade era porque os pensadores
deste século se embasavam nas idéias de identidade e de eternidade. Ora, desde que se reconheça a historicidade do saber, nem o mundo, nem o saber sobre o mundo, nem as idealidades, nem as ações poderão ser compreendidas como “desdobramento do fundo idêntico e eterno através da duração finita do homem” (Chaui 5, p.229). Será preciso, ao contrário, que a historicidade surja como “produção”, ou seja, como trabalho humano. Compreende-se, portanto, que Merleau-Ponty diga que “a novidade da fenomenologia” não consista em negar a “unidade da experiência”, mas “fundá-la de outro modo que o racionalismo clássico” (Merleau-Ponty 18, p.340). Seja como for, o importante a ser frisado está na inscrição do infinito no próprio coração da experiência, e não em Deus ou na consciência.
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Marcus Sacrini A. Ferraz
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MERlEAU-PONTy ENTRE ONTOlOgIA E METAfíSIcA
Marcus sacrini a. ferraz*
Resumo: Neste texto, retomamos a avaliação de Michel Haar segundo a qual o projeto ontológico de Merleau-Ponty redundaria em uma metafísica. A fim de tornar tal avaliação mais severa, propomos um outro critério, de inspiração kantiana, conforme o qual a obra de Merleau-Ponty também poderia ser classificada como metafísica. Em seguida, expomos as estratégias filosóficas de Merleau-Ponty com base nas quais julgamos que conforme nenhum desses dois critérios Merleau-Ponty constitui um discurso metafísico. Palavras-chave: ontologia, metafísica, Merleau-Ponty, Michel Haar, Heidegger.
I
Meu principal objetivo neste texto é avaliar as linhas gerais do projeto ontológico
final de Merleau-Ponty à luz da crítica de que se trataria de um projeto metafísico. Essa
crítica foi apresentada por Michel Haar no impactante artigo intitulado Proximité et
distance vis-à-vis de Heidegger chez le dernier Merleau-Ponty (Haar 1, p.9-34). Pretendo
explicitar o critério utilizado por Haar para estabelecer tal crítica e questionar se ele
realmente se aplica à última filosofia de Merleau-Ponty. Além disso, vou estabelecer um
segundo critério para o reconhecimento de uma investigação filosófica como metafísica,
para, dessa maneira, submeter a obra de Merleau-Ponty a uma avaliação ainda mais
rigorosa que aquela proposta pelo próprio Haar.
A fim de marcar a distinção entre ontologia e metafísica, Haar usa um critério
de inspiração heideggeriana: uma empreitada filosófica pode ser qualificada de metafísica
se ela toma um ente ou as características próprias a uma classe de entes como definidoras
do ser em geral. Nesse caso, o procedimento metafísico se caracteriza pela seleção
arbitrária de uma dimensão ôntica como fundante de todas as demais e, em seguida, pela
universalização ou hipóstase dessa dimensão, a qual passa então a se apresentar como o
próprio ser em geral (Haar 1, p.13, 33).
* Pós-doutorando pelo Depto. de Filosofia – USP. e-mail: [email protected].
Esse procedimento metafísico seria problemático porque associar o ser a alguns
aspectos ônticos mascara a sua complexidade. É verdade que o ser perpassa as dimensões
ônticas, faz exatamente com que elas sejam, com que vigorem e se imponham como tais
aos sujeitos. Mas o ser não deve ser identificado a nenhuma delas em particular, o que
tornaria incompreensível a sua manifestação em todas as dimensões ônticas. Assim, a
hipóstase ôntica não respeita as condições inerentes à própria aparição do ser e leva a
resultados inconsistentes com a complexidade ontológica do mundo em geral.
Vamos propor agora por nossa própria conta um outro critério para o
reconhecimento de uma metafísica, o qual, em certo sentido, complementa aquele fornecido
por Haar. Trata-se de um critério de inspiração kantiana, segundo o qual uma empreitada
filosófica pode ser qualificada de metafísica se pretende descrever ou explicar realidades
que de modo algum figuram na experiência, que excedem as aparências fenomênicas,
mas que no entanto poderiam ser apreendidas pela pura concatenação lógica de conceitos.
Essas realidades pretensamente descritas seriam aquelas mais fundamentais, quer dizer,
aquelas responsáveis pela ordenação e sentido das aparências sensíveis.
Essa pretensão descritiva ou explicativa se revela como problemática se se
analisa os instrumentos cognitivos disponíveis aos sujeitos humanos. Parece razoável
supor que o conhecimento humano se estabelece com base em e nos limites de uma
experiência possível, o que significa que deve haver uma base sensível, empírica, sobre
a qual os conceitos podem atuar. Na ausência de tal base, não se pode legitimamente
apresentar a mera ordenação lógica de conceitos como uma descrição ou explicação de
realidades. Sem respeitar essa condição, uma investigação filosófica construiria somente
hipóteses inverificáveis, as quais jamais se estabeleceriam como verdadeiras apresentações
de realidades. Uma investigação filosófica pode então ser qualificada de metafísica se não
respeita as condições subjetivas de acesso ao ser (tais como a limitação do conhecimento
a uma experiência possível) e, nesse sentido, seus resultados são inconsistentes com as
estruturas existenciais-cognitivas da subjetividade humana.
Apresentamos, assim, dois critérios que distinguem o modo metafísico de
investigar o ser. Esse modo transgrediria, seja em relação à subjetividade cognoscente,
seja em relação ao próprio ser em geral, certas condições constitutivas do problema
ontológico, e chegaria invariavelmente a impasses. Por oposição a esse modo metafísico,
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Marcus Sacrini A. Ferraz
haveria um modo ontológico de investigar o problema do ser. Esse modo ontológico leva
em conta as particularidades cognitivas e existenciais da subjetividade e a complexidade
da manifestação do ser. Trata-se de uma investigação que não ignora nem como as
estruturas existenciais condicionam o acesso ao mundo e nem que a amplitude do ser não
se reduz a certas propriedades ônticas.
II
Nesta seção, pretendo apresentar as principais características daquilo que Merleau-
Ponty apresenta como ontologia, para então, na seção seguinte, avaliar se sua reflexão pode
ser caracterizada como metafísica, segundo os critérios estabelecidos acima.
A partir dos anos 501, Merleau-Ponty começa a apresentar sua própria empreitada
filosófica como aquela de elaborar uma ontologia. Em 1952, no curso intitulado O mundo
sensível e o mundo da expressão, Merleau-Ponty parece já estabelecer as linhas gerais
de sua investigação ontológica, embora ainda não a intitule dessa maneira. Em todo
caso, podemos distinguir já nesse curso as principais características de sua ontologia
tardia. Ali, Merleau-Ponty lamenta que as filosofias da época, embora reconhecessem
a originalidade da atividade perceptiva ante as categorias clássicas, não extraíssem dela
uma nova noção do ser e da subjetividade. Realizar tal extração passa a ser justamente a
meta assumida por Merleau-Ponty, para quem “o filósofo aprende a conhecer, no contato
com a percepção, uma relação com o ser que torna necessário e que torna possível uma
nova análise do entendimento” (Merleau-Ponty 6, p.11-12). Quer dizer que as descrições
da vida perceptiva devem levar a uma reforma do entendimento, isto é, a uma renovação
das principais categoriais pelas quais se compreende a experiência e o ser em geral. As
categorias clássicas, tais como aquelas de substância, objeto e sujeito não apreenderiam
corretamente as articulações do mundo percebido, o qual, se explorado sem a projeção
prévia de tais categorias, exige um novo arcabouço conceitual, uma nova ontologia, no
sentido de uma compreensão global renovada dos modos de ser das coisas e eventos.
É possível já no curso de 1952-3 reconhecer as duas tarefas filosóficas que
Merleau-Ponty apresentará sob o nome tradicional de ontologia. Trata-se, em primeiro
lugar, de instituir um contato com o ser, ou seja, de tornar tema filosófico o âmbito em
que se estabelece um convívio com dimensões ontológicas que escapam do arcabouço
conceitual clássico. Em segundo lugar, e em conseqüência do primeiro ponto, trata-se
de formular os recursos conceituais convenientes para exprimir um tal ser assim já
atestado por experiência. Notemos que essa tarefa de renovação conceitual permanece
facilmente reconhecível, como marca distintiva do trabalho ontológico, mesmo nos
textos finais de Merleau-Ponty. Por exemplo, numa nota de janeiro de 1959, o autor
afirma que “a ontologia seria a elaboração das noções que devem substituir aquela de
subjetividade transcendental, aquelas de sujeito, objeto, sentido” (Merleau-Ponty 3,
p.219). Por sua vez, parece que a primeira tarefa, quer dizer, o estabelecimento de um
âmbito responsável pelo contato com o ser, muda bastante de figura no decorrer dos
anos cinqüenta, como veremos a seguir.
Ainda fortemente marcado pelo legado da Fenomenologia da Percepção,
Merleau-Ponty, no início dos anos 50, considera que são os fenômenos percebidos a
principal fonte de contato com um ser que escapa às categorias clássicas. É o que fica
claro em seu curso O mundo sensível e o mundo da expressão, analisado brevemente
no parágrafo anterior. Porém, no correr da década, o filósofo toma uma gama bem mais
ampla de eventos como compondo o ser com o qual se tem contato. Por exemplo, no
resumo do primeiro curso sobre a natureza (1956-7), o autor afirma que “se nós não nos
resignamos a dizer que um mundo de onde seriam retiradas as consciências não é nada,
que uma Natureza sem testemunhos não teria sido e não seria, nos é necessário de algum
modo reconhecer o ser primordial que não é ainda o ser sujeito nem o ser objeto, e que
desconcerta a reflexão em todos os sentidos” (Merleau-Ponty 2, p.357). Aqui, Merleau-
Ponty almeja descrever o ser primordial, o qual não depende nem mesmo do testemunho
da consciência para vigorar e que, assim, não se limita ao ser percebido. Trata-se de buscar
um contato com um ser que resistiria mesmo a uma suposta aniquilação da consciência,
quer dizer, com um ser que não se restringe ao ser percebido strictu sensu.
No curso A filosofia hoje (1958-9), Merleau-Ponty promove a ampliação final
do âmbito de contato com o ser. Não são só fenômenos percebidos particulares e nem
mesmo estruturas naturais que nada devem à consciência os componentes do ser, mas
também eventos históricos, atividades artísticas e mesmo a situação crítica da cultura
contemporânea. Merleau-Ponty comenta: “desvelamento de um tipo de ser diferente
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Marcus Sacrini A. Ferraz
daqueles em que reside isso que se chama ‘matéria’, ‘espírito’, ‘razão’. Nós estamos
em contato com esse tipo de ser por nossa ciência e nossa vida privada e pública.
Mas ele não tem existência oficial” (Merleau-Ponty 4, p.37). Mas de que maneira a
ciência e a vida privada e pública estão em contato com um ser que não é reconhecido
oficialmente pelas categorias filosóficas? Para Merleau-Ponty, esse é um dos efeitos
mais instigantes de uma crise geral da cultura contemporânea. Segundo o filósofo, em
diferentes domínios, seja no que tange à própria coexistência social, seja em relação às
expressões artísticas, o conjunto de definições clássicas que fixava a identidade de um
domínio e seus procedimentos práticos (por exemplo, a definição da pintura e de como se
pinta, ou a definição da sociedade e de como os indivíduos devem nela se comportar) é
abalado ante certas situações ou criações contemporâneas. Tal conjunto de definições se
mostra então como contingente, quer dizer, não como modo único de se obter resultados
artísticos ou de se compreender a sociedade, mas como modelos privilegiados durante
certa fase histórica. A crise de tais modelos ante os novos sistemas expressivos e as novas
configurações históricas oferece a ocasião para renovar as categorias ontológicas gerais
que subjazem a tais modelos.
Atesta-se assim, no decorrer da obra escrita por Merleau-Ponty nos anos
50, uma paulatina ampliação do âmbito em que se pretende obter contato com o ser:
primeiramente tratava-se somente do mundo percebido, mas em seguida também se
acrescentou o estudo da natureza em geral, e, por fim, os processos histórico-culturais nas
quais a vida humana está envolvida. A ampliação é tamanha que Merleau-Ponty chega a
apresentar sua ontologia, no curso “A filosofia hoje”, de 1958-9, como “consideração do
todo e de suas articulações” (Merleau-Ponty 4, p.37). Quer dizer que é em relação a todos
os domínios da experiência humana que se deve investigar como há um contato com
estruturas ontológicas não abarcadas pelas categorias clássicas (investigação que, por sua
vez, deve levar à reformulação das noções mais básicas da filosofia). Vejamos a seguir
se esse modo de conceber a reflexão ontológica pode ser classificado de metafísico, no
sentido definido anteriormente.
III
Agora que esboçamos ao menos o projeto geral da ontologia pretendida por
Merleau-Ponty, vamos avaliá-la por meio dos dois critérios estabelecidos na primeira
parte deste texto. Tomemos primeiramente o critério utilizado por Michel Haar. A principal
limitação do projeto de Merleau-Ponty, segundo Haar, é sua obsessão por um mundo
sensível apresentado como ser universal. Ao Merleau-Ponty relativizar a prioridade da
consciência perceptiva e do corpo próprio, ele o faria em prol do ser concebido como
sensibilidade em geral (Cf. Merleau-Ponty 3, p.191). O corpo próprio e seus poderes
perceptivos deixam de ser o centro da análise filosófica para se tornar “o caso particular
de um desvio, de uma diferenciação em todo lugar operante” (Haar 1, p.17). Merleau-
Ponty reconheceria uma visibilidade ou uma sensibilidade latentes no próprio ser, as quais
fundariam as funções ativas corporais. Em vez de centro e sustentáculo do espetáculo
perceptivo, tal como aparecia na Fenomenologia da Percepção, o corpo se tornaria
somente o ponto em que a sensibilidade latente ao ser se reuniria e se manifestaria para
si2. Dessa maneira, em sua última filosofia, Merleau-Ponty defenderia a prioridade de
uma sensibilidade anônima universal, exprimida na noção de “carne do mundo”.
Essa seria, segundo Haar, uma tese bastante problemática. Para Haar, Merleau-
Ponty pretende que o Ser sensível englobe “dimensões tão diferentes quanto a vida
orgânica, a percepção, o pensamento e a linguagem” (Haar 1, p.22). Mas essa pretensão
seria insustentável. Haar compreende “o campo ‘universal’ do Sensível”, proposto por
Merleau-Ponty, como o que “se doa à percepção” (Haar 1, p.10), definição que torna clara
a insuficiência da ontologia final do filósofo. Afinal, “para ser universalizável, mesmo
metafisicamente, o mundo percebido não deveria com efeito incluir todas as dimensões?
Ora, salta aos olhos que ele não possui nem a História nem a Fala. A universalidade
se torna desde então uma abstração metafísica” (Haar 1, p.33). Haar pretende assim ter
desvelado o procedimento metafísico que viciaria, desde a base, a ontologia de Merleau-
Ponty: pretende-se investigar o ser, pretende-se investigar o modo pelo qual todas as
coisas e eventos são, mas considera-se somente o modo como certas coisas e eventos são,
a saber, os fenômenos apreensíveis sensivelmente. Ao apresentar esse modo particular
como geral, como incluindo as características de todo ser, deixa-se de apreender a
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Marcus Sacrini A. Ferraz
especificidade de vários temas, cujo modo de ser permanece ignorado.
Mas terá Michel Haar razão em suas suspeitas? Será que Merleau-Ponty
universaliza ingenuamente uma dimensão ôntica e a toma como ontológica? De fato,
algumas afirmações do filósofo, tomadas isoladamente, podem realmente dar essa
impressão a um leitor com um olhar heideggerianamente treinado. O título de uma
nota de janeiro de 1959 por si só já causaria desconforto em tal leitor: “o Ser bruto ou
selvagem (=mundo percebido)” (Merleau-Ponty 3, p.221). Mas é no corpo dessa nota
que a confissão parece ocorrer. Ali, Merleau-Ponty afirma: “o mundo perceptivo amorfo
de que eu falava em relação à pintura (...) é no fundo o Ser no sentido de Heidegger (...)
e que aparece como contendo tudo o que será alguma vez dito, nos deixando entretanto
a criá-lo” (Merleau-Ponty 3, p. 221-2). Aqui Merleau-Ponty parece assumir todos os
pecados apontados por M. Haar: haveria a identificação do ser com o mundo sensível, o
que implicaria acreditar ingenuamente que todas as dimensões ônticas (por exemplo, a
linguagem) já estão contidas nesse mundo sensível.
Mas seria mesmo a empreitada final de Merleau-Ponty descaradamente uma
metafísica? Para responder a essa pergunta, notemos que Haar parece apresentar uma
definição bastante restrita do mundo ou do ser sensível: como vimos, para ele, trata-
se daquilo que se doa à percepção. Haar apresenta o sensível como conjunto de dados
positivamente apreendidos pelos sentidos. Mas não é assim que os últimos textos de
Merleau-Ponty consideram essa noção. Inspirado em alguns trechos de Idéias II, Merleau-
Ponty, no artigo O Filósofo e sua Sombra, propõe a seguinte definição: “o sensível não é
somente as coisas, mas também tudo o que aí se esboça, mesmo implicitamente, tudo o
que aí deixa seu traço, tudo o que aí figura, mesmo a título de desvio [écart] e como uma
certa ausência” (Merleau-Ponty 7, p.217). Quer dizer que o sensível não é um conjunto
de dados positivos; há dimensões de negatividade que estariam incrustadas nos dados
positivos. Assim, é necessário considerar certas ausências constitutivas3, que se doam
somente enquanto ausência, para só então apresentar a dimensão sensível como universal,
como verdadeira dimensão ontológica. É o que Merleau-Ponty faz por meio de sua noção
de invisível. Ao considerar que há dimensões invisíveis que compõem a densidade do
sensível, Merleau-Ponty amplia consideravelmente o escopo desse último. Sem levar
em conta essa ampliação, fica fácil apresentar a investigação do ser bruto ou da carne
como metafísica. No entanto, parece-me imprescindível apresentar como complementar
à definição do ser bruto como mundo percebido a investigação das dimensões invisíveis
que compõem a profundidade ontológica do sensível.
É por meio dessa noção de dimensões invisíveis que Merleau-Ponty pretendia
incluir a história e a linguagem em sua análise ontológica4. Conforme reconhece Merleau-
Ponty, “a linguagem, a arte, a história gravitam em torno do invisível (a idealidade)”
(Merleau-Ponty 2, p.291). Assim, por exemplo, em relação à linguagem, diferentes
enunciações particulares podem se pretender exemplos de uma “mesma” significação
justamente por partilharem uma certa intenção comum, um certo modo idêntico de visar
ou de se referir a tais e tais dados. Há aqui um caráter unificador da significação lingüística
em relação à inesgotável riqueza de detalhes das situações vividas; a significação permite
o reconhecimento do mesmo em experiências que, por sua complexidade, são sempre
únicas. Desse ponto de vista, a linguagem, mais do que o conjunto das enunciações
factuais, é uma matriz de ordenação da experiência, uma membrana inaparente por meio
da qual a diversidade perceptível (quer dizer, mesmo aquela que ainda não se concretizou)
do mundo se ordena em regiões ou espécies5. As significações lingüísticas são exemplos de
“estruturas do vazio” (Merleau-Ponty 3, p.284, fev. 1960) que permeiam o sensível e que
de seu próprio interior fazem emergir arranjos densos de fenômenos, que não se esgotam
na pura positividade dos dados atuais. Essas estruturas não decorrem de um mundo
espiritual autônomo, mas são a infra-estrutura da própria experiência do sensível6.
Assim, não é verdade que Merleau-Ponty injustificadamente se propôs a tratar
a história e a linguagem por meio da análise daquilo que se doa à percepção (por meio de
um “sensível” compreendido de maneira estreita). A ampliação daquilo que se considera
âmbito de contato com o ser, conforme vimos na seção passada, mostra que Merleau-Ponty
não pretende tratar a vida pública e privada, a ciência e a história como puros fenômenos
percebidos, mas como eventos que, em sua dimensão ou nível próprio, explicitam
estruturas ontológicas irredutíveis ao tema do “objeto percebido”. Se em alguns textos
Merleau-Ponty insiste em incluir todas essas dimensões no “sensível”, é porque, conforme
já acentuamos, amplia a noção de sensível e não porque achata ou mutila a história ou
a linguagem para tratá-las somente como fenômenos imediatamente percebidos. Pode-
se questionar se Merleau-Ponty consegue manter a especificidade dessas dimensões ao
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Marcus Sacrini A. Ferraz
considerá-las como membranas invisíveis no interior do ser sensível (questão para a qual
o inacabamento de sua obra talvez nos impeça de dar qualquer resposta), mas não me
parece correto ignorar que ao menos na intenção de seu projeto ontológico Merleau-
Ponty buscou evitar uma ingênua hipóstase metafísica do sensível.
IV
Até aqui reavaliamos a obra de Merleau-Ponty segundo o critério proposto
por Michel Haar, e chegamos a uma conclusão oposta a desse autor. Os esforços pela
ampliação da noção de sensível, de maneira a nele incluir dimensões que só se doam como
ausência, atestariam que Merleau-Ponty não hipostasia arbitrariamente uma região ôntica,
mas busca conscientemente desvelar que toda amplitude ontológica já está contida no
sensível. No entanto, justamente essa solução, quer dizer, o apelo a dimensões invisíveis
parece comprometer Merleau-Ponty com uma empreitada metafísica, conforme passemos
para a aplicação do segundo critério estabelecido por nós na primeira seção. Segundo
esse critério, uma investigação filosófica se realiza de modo metafísico se desrespeita
os limites cognitivos estabelecidos pelas estruturas subjetivas, as quais exigem uma
experiência como base para a formulação de teses com valor epistêmico. Ao apresentar
descrições de realidades que escapam a qualquer experiência possível, uma investigação
filosófica ignoraria as restrições cognitivas impostas pela subjetividade e se caracterizaria
então como metafísica. Ora, mas não é exatamente o que parece ocorrer com Merleau-
Ponty? A fim de ampliar a noção de sensível, não apela ele a “realidades negativas” que
não se doam diretamente à percepção, quer dizer, que não se tornam objetos de uma
experiência possível? Afinal, o que significa afirmar que algo se doa como ausência, quer
dizer, justamente como o que não se doa? Estaria Merleau-Ponty aqui meramente preso a
jogos conceituais sem nenhum lastro com a experiência? Em suma, será que para salvar
a complexidade do ser, sem achatá-lo numa dimensão ôntica ingenuamente hipostasiada,
Merleau-Ponty ignora as restrições cognitivas da subjetividade?
Responderemos negativamente a essas duas últimas questões. Para tanto, importa
mostrar, em primeiro lugar, que Merleau-Ponty reconhece algo semelhante ao critério
kantiano proposto por nós, e que, assim, ele se preocupou com o problema dos limites
cognitivos na formulação de sua ontologia. A fim de tornar visível essa preocupação,
vamos nos remeter ao modo como o filósofo se apropria da intenção de autores designados
como metafísicos (segundo o critério kantiano) para desenvolver sua própria reflexão.
No curso A filosofia hoje, Merleau-Ponty apresenta sua ontologia como “metafísica no
sentido clássico” (Merleau-Ponty 4, p.37), ou seja, como uma investigação que considera
a totalidade do ser, e não somente domínios particulares (como se, por exemplo, a
filosofia devesse investigar somente as significações lingüísticas, enquanto o âmbito dos
fatos deveria ser tratado exclusivamente pelas ciências empíricas). Como metafísica no
sentido clássico, Merleau-Ponty se refere aos autores do Grande Racionalismo do século
XVII, com os quais já aprendera, conforme o artigo Em toda e em nenhuma parte, que
não se deve limitar a investigação da realidade ao conhecimento científico (Cf. Merleau-
Ponty 7, p.186). Em A filosofia hoje, Merleau-Ponty retoma explicitamente essa intenção
abrangente do Grande Racionalismo, qual seja, de explicitar o ser em sua totalidade, o
que supõe uma análise mais ampla que aquela oferecida pelos métodos científicos de
verificação empírica. Aqui cabe perguntar se a retomada dessa intenção compromete
Merleau-Ponty com teses acerca de realidades inalcançáveis pelos sentidos e que só
poderiam ser descritas por uma pura concatenação lógica de conceitos.
A crença na possibilidade de um conhecimento para além de toda experiência
possível, o que constituiria o núcleo propriamente metafísico do Grande Racionalismo,
é claramente rejeitada por Merleau-Ponty. Ele afirma: “o que nos separa do século XVII,
não é um decadência, é um progresso da consciência e da experiência” (Merleau-Ponty 7,
p.189). Nos séculos seguintes, teria ficado claro que o acordo entre as deduções lógicas
e o mundo existente não é imediato ou evidente, e que não se pode pretender descrever
realidades sem o lastro da experiência. Eis a lição kantiana que Merleau-Ponty assume
como um progresso. Esse distanciamento em relação às teses metafísicas do Grande
Racionalismo sugere-nos que Merleau-Ponty não se comprometeria com uma solução
que assim pudesse ser qualificada. Desse modo, parece-nos que seu apelo às dimensões
invisíveis que constituem a densidade ontológica do sensível deve de alguma forma
responder à essa preocupação crítica reconhecida por ele mesmo como um progresso
da reflexão. E de fato podemos explicitar tal preocupação se analisamos mais de perto a
elaboração filosófica da noção de invisibilidade.
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Marcus Sacrini A. Ferraz
No prefácio de Signes, Merleau-Ponty argumenta que uma das vantagens do
par conceitual visível / invisível em relação ao par ser / nada é que não há uma oposição
substancial ou de modo de ser entre os elementos do primeiro par como haveria naqueles
do segundo (Cf. Merleau-Ponty 7, p.30). Dessa maneira, ao se tratar do invisível, não se
pretende descrever realidades contrárias a ou absolutamente distintas daquelas sensíveis.
O invisível é sempre invisível de algum visível, é sempre o avesso deste, e, neste sentido,
está sempre relacionado àquilo que se doa positivamente na experiência. Com a noção de
invisível, não se trata de circunscrever um tipo de ser substancialmente diferente do ser
sensível, mas de considerar o sensível de modo mais amplo, incluindo suas dimensões
que não se doam de maneira imediata e que se anunciam por sua falta, quer dizer, que
se deixam suspeitar porque os dados positivos apontam para um negativo que também é
constituinte do sentido da experiência.
Vemos assim que ao menos em sua delimitação conceitual a noção de invisível
ou de dimensões negativas do ser não compromete Merleau-Ponty com realidades supra-
sensíveis, as quais são bastante criticáveis segundo o critério kantiano. Mas como a
investigação filosófica poderá se aproximar dessas dimensões de negatividade? Como
é possível tratar daquilo que na experiência só se marca como ausência? Certamente
algumas dessas dimensões negativas são atestadas sem dificuldade em toda experiência
que envolve enunciação lingüística ou contato inter-humano. Conforme mencionamos
na seção anterior, as significações funcionam como uma membrana inaparente capaz
de ordenar uma infinidade de episódios perceptivos. Essa virtude se estende para além
dos episódios que efetivamente serão vividos pelos sujeitos falantes, pois mesmo
situações possíveis que jamais se atualizarão podem ser, por meio da linguagem,
classificadas e explicitadas em muitos dos seus componentes gerais. Além das estruturas
significativas lingüísticas, a vida psíquica dos sujeitos também é uma dimensão que não
se doa perceptivelmente. No entanto, não é necessário tomá-la como expressão de uma
substância espiritual incompreensivelmente ligada à massa corporal; basta considerá-la,
tal como sugere Merleau-Ponty, como uma dimensão sensível negativa, como um avesso
invisível do corpo, o qual, ainda que ausente, sempre é levado em conta nas interações
sociais (já que essas ocorrem entre pessoas, quer dizer, entre sujeitos complexos dotados
de comportamento, de intenções, de sentimentos, de opiniões, etc. e não somente entre
corpos visíveis). A linguagem e a vida psíquica são, assim, exemplos simples de dimensões
invisíveis, e nos confirmam que longe de se referir a mirabolantes construções conceituais
sobre um reino supra-sensível, Merleau-Ponty tenta por meio da noção de invisibilidade
reformular o estatuto ontológico de componentes óbvios da experiência, os quais não
deveriam ser concebidos como um tipo de ser separado do sensível, mas como camadas
ou níveis no interior desse último.
Devemos acentuar, no entanto, que a noção de invisibilidade não se esgota
nos componentes significativos ou psíquicos da experiência subjetiva (e que podem
ser atestados facilmente por qualquer um em sua experiência). Por meio dessa noção,
Merleau-Ponty pretende qualificar regiões do próprio ser e não somente dimensões
ligadas à subjetividade. É o que fica claro, por exemplo, nos cursos sobre a natureza.
Ali Merleau-Ponty usa a noção de invisível para se referir à infra-estrutura inaparente
que torna possível a auto-organização dos organismos: “encontra-se então um núcleo
de fenômenos, um recobrimento lateral dos microfenômenos um no outro, uma coesão
em torno do ser invisível (...) que eles envolvem, em torno do qual eles se enrolam,
cristalizam o Gestalthafte” (Merleau-Ponty 2, p.303). Merleau-Ponty se refere aqui
ao desenvolvimento dos embriões, tema que exploraremos com mais detalhes logo
a seguir, e denomina de invisível os processos pelos quais o próprio ser dos embriões
se molda. Importa agora somente notar que o invisível também se refere a dimensões
inerentes ao próprio ser do mundo ou da vida em geral. É principalmente em relação
a essas regiões invisíveis independentes da subjetividade que surge com toda força a
dificuldade mencionada acima: como é possível investigar aquilo que excede o que se doa
diretamente na experiência sem cair num discurso metafísico? Parece-me que a resposta
a essa questão está no desenvolvimento de um método indireto para a ontologia. Numa
nota de fevereiro de 1959, Merleau-Ponty afirma: “não se pode fazer ontologia direta.
Meu método ‘indireto’ (o ser nos entes) é o único conforme o ser” (Merleau-Ponty 3,
p.231). O autor parece entender por ontologia direta os resultados descritivos seja de
experiências particulares vividas, seja de construções lingüístico-conceituais apresentadas
como caracterização de realidades ou mesmo do ser em geral. Assim, se um filósofo se
baseia apenas em suas vivências para descrever ou caracterizar o ser em geral, ou se ele
propõe, sem nenhuma comprovação por alguma instância externa, que certo conjunto de
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categorias articulados de tal maneira descreve o ser, então se trataria de ontologia direta.
E a ontologia direta corre o risco seja de se limitar injustificadamente a certos aspectos
do ser (no caso da descrição de vivências particulares), seja de se limitar a construções
conceituais abstratas, que não correspondem à verdadeira estrutura do ser. Daí que a
ontologia, para ser conforme o ser, deva ser indireta.
Mas de que maneira se desenvolve indiretamente uma ontologia? Merleau-
Ponty nos adverte que só é possível chegar ao ser por meio do seres ou entes, ou
seja, que é imprescindível investigar certos domínios ônticos para que determinadas
características ontológicas se façam notar. É exatamente por isso que Merleau-Ponty
analisa a ciência, a pintura, a literatura e mesmo alguns fatos históricos em seus cursos
e textos finais. Ele crê que as atividades e disciplinas não-filosóficas contemporâneas
estão em contato com o ser bruto que a filosofia deveria explicitar. Assim, é a análise
dos resultados dessas atividades e disciplinas que permite explicitar como tese filosófica
positiva as características das dimensões de negatividade constituintes do ser. É então
o apelo a tais disciplinas que garante o “lastro de experiência” para a noção geral de
invisibilidade, e impede que ela seja um mero constructo metafísico: a filosofia só tem
acesso à invisibilidade constitutiva do mundo indiretamente, por meio do modo como
ela é explicitada nas disciplinas e atividades não-filosóficas.
Consideremos como exemplo de análise ontológica indireta o apelo de Merleau-
Ponty a alguns temas estudados pela ciência. “Ao interrogar a ciência”, crê o autor, “a
filosofia chegará a encontrar certas articulações do ser que lhe seria mais difícil de descobrir
de outro modo” (Merleau-Ponty 6, p.118). Tomemos como caso emblemático o estudo
da embriologia, do qual Merleau-Ponty se serve em seu segundo curso sobre a natureza
(1957-8). Por meio de diversas pesquisas nessa área, as quais supõem complexas técnicas
de coleta e mensuração para constituir o próprio dado científico (ou seja, o dado não é um
fenômeno disponível à percepção ingênua), pôde-se desvelar uma certa inteligibilidade
da organização celular nos embriões, anterior ao desenvolvimento do controle neuronal.
Para explicar essa inteligibilidade anterior à maturação neural, Merleau-Ponty se refere à
noção de gradientes, cunhada por Coghill: diferentes níveis de suscetibilidade dos tecidos
embrionários a impulsos elétricos ou bioquímicos (Cf. Merleau-Ponty 2, p.191). Por meio
desses gradientes, surgem oposições morfológicas embrionárias entre um pólo vegetativo
ou posterior e um pólo animal ou anterior. Em seguida, distribuem-se certas funções
correlacionadas com tais pólos morfológicos, o que torna possível a manifestação de
certos comportamentos embrionários pré-neurais. Tais comportamentos estão inscritos em
fases da morfogênese embrionária prévias ao funcionamento das estruturas fisiológicas
que normalmente os possibilitariam7. Merleau-Ponty explora esse resultado como
explicitação de uma produtividade inscrita na própria natureza, e que parece rejeitar todo
tipo de direcionamento espiritual ou intelectual, sem com isso deixar de estabelecer uma
ordem, uma organização nos fatos. Por sua vez, essa ordem se antecipa à maturação
de estruturas fisiológicas determinadas, o que parece implicar que a ordenação geral
do comportamento embrionário não se esgota no mero funcionamento das estruturas
fisiológicas atuais, mas supõe uma referência a uma totalidade futura ainda ausente.
Assim, os estudos da embriologia legitimam a rejeição de concepções da reprodução
animal que sejam finalistas (pois seria possível compreender pela mera ordenação interna
aos gradientes bioquímicos a organização da vida, sem apelar para uma finalidade última)
ou mecanicistas (pois as possibilidades futuras compõem o desenvolvimento embrionário,
o qual não se reduz então a relações mecânicas entre as partes atuais do embrião). Dessa
maneira, duas concepções ontológicas clássicas são rejeitadas, o que abre caminho para a
exploração filosófica renovada do ser da natureza.
A abertura desse caminho provavelmente não seria possível sem o apelo
às pesquisas científicas. Não seria possível excluir nenhuma concepção acerca
do desenvolvimento embrionário sem o desenvolvimento das técnicas científicas
contemporâneas de coleta de dados e de avaliação de hipóteses nessa área. Dessa maneira,
a embriologia é um bom exemplo para clarificar por que a filosofia deve recorrer aos
domínios ônticos para formular uma doutrina geral acerca do ser: é necessário considerar
os dados fornecidos pelas disciplinas e atividades não-filosóficas a fim de constituir um
modo justificado de incluir na reflexão ontológica domínios que escapam à observação
direta. Assim, o apelo às disciplinas não-filosóficas mantém o lastro com a experiência e
garante à filosofia, quando for extrair conseqüências ontológicas de domínios que escapam
à experiência direta, o respeito às condições subjetivas do conhecimento.
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REFERêNCIAS bIbLIogRáFICAS
1. HAAR, M. La Philosophie Française entre Phénoménologie et Métaphysique. Paris: PUF, 1999.
2. MERLEAU-PONTY, M. La Nature. Notes. Cours du Collège de France. Paris: Seuil, 1995.
3. _______. Le Visible et le Invisible. Paris: Gallimard, col. Tel, 2001.4. _______. Notes de Cours 1959-1961. Paris: Gallimard, 1996. 5. _______. Phénoménologie de la Perception. Paris: Gallimard, col. Tel, 1997. 6._______. Résumés de Cours. Collège de France 1952-1960. Paris: Gallimard, 1968. 7. _________. Signes. Paris: Gallimard, 1960. 8. SAINT AUBERT, E. Vers une Ontologie Indirecte. Sources et enjeux critiques de
l’appel à l’ontologie chez Merleau-Ponty. Paris: Vrin, 2006.
Merleau-Ponty: between ontology and metaphysics
Abstract, In this article, we resume Michel Haar’s evaluation according to which Merleau-Ponty’s ontological project would redound to metaphysics. In order to make such an evaluation more rigorous, we propose another criterion, inspired by Kant, according to which Merleau-Ponty’s work could also be classified as metaphysical. After that, we elucidate Merleau-Ponty’s philosophical strategies on the basis of which we judge that neither according to Haar’s criterion nor according to the Kantian’s criterion constitutes Merleau-Ponty a metaphysical discourse. Keywords: ontology, metaphysics, Merleau-Ponty, Michel Haar, Heidegger.
NoTAS
1. Segundo Saint Aubert (que recenseou cuidadosamente o uso de certos termos por Merleau-Ponty), o filósofo se refere de modo sistemático ao seu próprio projeto como ontológico somente a partir de 1957. Cf. Saint Aubert 8, introdução. 2. Segundo a Fenomenologia, “o corpo próprio está no mundo como o coração no organismo: ele mantém continuamente em vida o espetáculo visível, ele o anima e o nutre interiormente, e forma com ele um sistema” (Merleau-Ponty 5, p.235). Quer dizer que os aspectos sensíveis do mundo só se ordenam em função da atividade corporal, a qual condiciona a própria existência dos espetáculos visíveis. Já em O Visível e o Invisível, Merleau-Ponty assume a tarefa de “descrever o visível como algo que se realiza por meio do homem, mas que não é absolutamente antropológico” (Merleau-Ponty 3, p.322, março
1961).3. “Não considerar o invisível como um outro visível ‘possível’, ou um ‘possível’ visível para um outro (...). O invisível está aí sem ser objeto, é a transcendência pura, sem máscara ôntica” (Merleau-Ponty 3, p.278, jan. 1960).4. “Pôr a questão: a vida invisível, a comunidade invisível, outrem invisível, a cultura invisível” (Merleau-Ponty 3, p.278, jan. 1960).5. “A idéia é esse nível, essa dimensão, não portanto um invisível de fato, como um objeto escondido atrás de um outro, e não um invisível absoluto, que nada teria a ver com o visível, mas o invisível desse mundo, aquele que o habita, o sustenta e o torna visível, sua possibilidade interior e própria, o Ser desse ente” (Merleau-Ponty 3, p.196).6. “Não há que buscar coisas espirituais; existem apenas estruturas do vazio [do invisível] – simplesmente quero plantar esse vazio no Ser visível, mostrar que ele é seu avesso – em particular, o avesso da linguagem” (Merleau-Ponty 3, p.284, fev. 1960).7. Por exemplo, o feto humano, antes mesmo de dispor de sistemas neurais que coordenam os batimentos cardíacos, apresenta, em algumas situações (ao menos após nove semanas e meia de gestação), sinais cardíacos que se assemelham àqueles de adultos (Cf. Merleau-Ponty 2, p.197).
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O cONcEITO dE vIdA E A gêNESE dA ORdEM hUMANA
Silvana de Souza Ramos*
Resumo: O artigo investiga a passagem da natureza à cultura através do conceito de vida, tendo como base as formulações de Bergson, Canguilhem e Merleau-Ponty. Para tanto, é necessário investigar a gênese dos modos de subjetivação – a ação vital, a normatividade do organismo e o caráter expressivo da vida – proposta por cada um dos autores de modo que possamos refletir até que ponto se pode explicar a ordem humana (ou seja, a história e a cultura) a partir de sua vinculação à natureza.Palavras-chave: Bergson, Merleau-Ponty, Canguilhem, natureza, cultura
A crítica à metafísica tradicional e à sua pretensão (i) de fundar a especificidade
da existência humana na idéia de que o homem se separa dos outros viventes por possuir
o privilégio da racionalidade e (ii) de compreender a natureza como objeto encontra
nas investigações centradas no conceito de vida um aporte preciso e instigante. Neste
sentido, analisar a racionalidade articulando-a com a vida implica mostrar que a razão
não nos separa da natureza, e que esta não corresponde exatamente ao pensamento que
dela temos. Mais que isso. Significa pretender desfazer a cisão tradicional entre natureza
e cultura, sem perder a capacidade de dar conta da experiência histórico-cultural peculiar
ao homem. Autores como Bergson, Canguilhem e Merleau-Ponty seguiram de diferentes
maneiras esta trilha investigativa no intuito de analisar a gênese da ordem humana para
dissecar sua vinculação com a ordem vital.
Ora, tal caminho teórico exige reavaliar o solo irrefletido que sustenta os modos
de subjetivação já que este abarca a espessura da experiência capaz de reintegrar o homem
a seu circuito vital. Evidentemente, isso coloca um problema, discutido por Bento Prado
Jr. em seu livro sobre Bergson: na medida em que a experiência ganha uma dimensão
a mais, a consciência perde uma dimensão correspondente: ela “deixa de ser um foco
* Doutoranda em Filosofia pelo Departamento de Filosofia da USP e bolsista da Fapesp. Este texto foi originalmente apresentado no Congresso em homenagem ao centenário de nascimento de Merleau-Ponty, na UFPR, em setembro de 2008.
intrínseco de verdade e de repousar sobre si mesma” (Prado Jr. 11, p. 203). No caso de
Bergson e de Merleau-Ponty, essa preocupação circunscreve a crítica à metafísica no
quadro da crítica à negatividade, ou seja, ela desvela a miragem da hipótese de uma
ausência possível. Conseqüentemente, ela permite dar um novo sentido à experiência
do Ser, aquém da separação entre consciência e natureza. No caso de Canguilhem, a
destituição da soberania da consciência permite compreender a cultura humana como
produção da atividade vital de normatizar. Nos três casos, a passagem à cultura não pode
ser compreendida sem referir-se a uma natureza ainda não hipostasiada na forma do
objeto. Interessa-nos discutir esta formulação articulada à dificuldade de se pensar a
especificidade da vida humana que, embora parta da experiência irrefletida da Natureza,
produz formas de subjetivação que não são redutíveis à ordem vital.
Num artigo sobre o “biologismo” de Bergson, Lebrun afirma:
Graças a Canguilhem, percebíamos que um pensamento filosófico não era de nenhuma forma trivial porque partia do princípio de que o conhecimento é um produto ou – quem sabe? – um acidente da vida – e também que ele não conduzia deste fato a uma ‘animalização’ do homem (Lebrun 8, p. 208).
Canguilhem dizia que a biologia é uma “filosofia da vida”. Esta afirmação
sintetiza uma série de inquietações teóricas. Por um lado, ela retoma uma questão
clássica: como racionalizar o fenômeno da vida? Por outro, ela indica que a resposta não
pode ser buscada numa mera inspeção do entendimento desprovida de mediações. Seria
preciso apelar para fontes não filosóficas no intuito de verdadeiramente compreender o
surgimento, a sustentação e a evolução da vida em sua infinita variedade.
Enfrentando essa dificuldade, Bergson sinaliza que a inteligência não é
um acontecimento alheio ao desenvolvimento do élan vital. Ao contrário, segundo A
evolução criadora, devemos ver na evolução uma criação sempre renovada de formas
de vida, as quais não são determinadas do exterior – como quer o mecanicismo – nem
seguem um plano pré-determinado – o que contraria o finalismo. Conseqüentemente, a
vida inteligente não pode ser compreendida como o ápice da evolução, uma vez que
esta se expande em linhas divergentes e seria um erro pensar numa série unilateral dos
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viventes que culminaria na realização da vida humana. Para Bergson, o que Darwin
mostra é que a evolução tem o sentido de uma ruptura epistemológica. Deste modo,
a consideração do organismo vivo no interior da evolução criadora leva a uma crítica
do conhecimento, uma vez que ela revela “contra o imobilismo e contra a definição
do entendimento como especulação, que não só ele é um resultado, mas também que
sua função só é legível no interior do grande texto da praxis vital em sua totalidade”
(Prado Jr. 11, p.171). Não se trata, portanto, de reduzir o homem à biologia, mas sim de
entender a origem e a função da inteligência, de não mais tomá-la como fonte única da
verdade ou como fim último da criação.
Haveria muito que dizer sobre isso, mas guardemos desta formulação um
aspecto central: a evolução criadora não pode ser compreendida sem que se esclareça
a relação entre vida e matéria, o que implica, por sua vez, considerar que o vivente se
transforma ao confrontar-se com seu meio. Nas palavras de Bergson: “O organismo
comporta-se (...) como uma máquina de agir que se reconstruiria para cada ação nova,
como se fosse de borracha e pudesse, a todo instante, mudar a forma de todas as suas
peças” (Bergson 2, p. 274). Ora, tal plasticidade não é privilégio dos organismos
complexos. Já as formas elementares de vida são capazes de deformar-se em direções
variáveis, segundo as necessidades de adaptação. Cabe ressaltar, contudo, que o élan
vital imprime um movimento que é sempre contrariado pela resistência da matéria.
Conseqüentemente, “o desenvolvimento do mundo organizado não é mais do que o
desenrolar desta luta” (Bergson 2, p. 275).
Dito isto, Bergson analisa a diferença entre a vida humana e as demais formas
de vida que dispõem de sistema nervoso. Nos animais com sistema nervoso, a consciência
é proporcional à complicação do cruzamento entre as vias sensórias e as vias motoras,
ou seja, é proporcional à complexidade do cérebro. Já que a consciência é a potência
de escolha de que o organismo dispõe, a consciência humana apresenta, em relação aos
outros animais, uma extensão maior de franja de ação possível que envolve a ação real.
Conseqüentemente, no animal, a invenção nunca é uma variação sobre o tema da rotina.
O animal vive aprisionado nos hábitos da espécie. E, embora consiga alargá-los por sua
iniciativa individual, só escapa do automatismo por um instante, apenas o tempo de criar
um novo automatismo. A consciência humana, por sua vez, quebra essa corrente, e dá
nascimento à liberdade e à criação ilimitada: “graças à superioridade de seu cérebro,
[o homem] consegue opor sistematicamente novos hábitos aos antigos e, ao dividir o
automatismo contra ele próprio, dominá-lo” (Bergson 2, p. 287).
Mas não só isso. É preciso considerar ainda que, embora a inteligência crie
problemas para a apreensão da vida, porquanto ela recorta algo da ordem da totalidade e
da duração, há que se atentar para o ganho extraordinário que ela foi capaz de engendrar.
A diferença entre o homem e o animal deve ser compreendida pelo salto que a ação
humana realiza, salto este revelado pelo surgimento da figura inédita do homo faber. Há
sim superioridade do homem em relação ao animal, mas esta não se deve à aquisição da
inteligência como superação da ação vital, mas pelo fato de que o ser vivo inteligente
prolonga o próprio movimento da vida, transfigurando assim sua condição de espécie.
Ora, o que é uma espécie, segundo Bergson? Uma parada, uma limitação do élan vital,
uma impotência momentânea para seguir adiante, um estacionamento coletivo. Há, assim,
um antagonismo entre o ser organizado e o movimento da vida, mas este se dissolve no
caso do homem. Todas as espécies que se estabeleceram tiveram de se adaptar de algum
modo. No homem, entretanto, adaptação não é estacionamento, já que o impulso que se
investe na matéria para formar o homem não se transforma em simples potência de auto-
conservação. Quer dizer, a espécie humana manifesta o impulso que a criou, em lugar de
apenas reter dele a energia que lhe permite sobreviver e se perpetuar (Lebrun 8, p. 213).
Noutras palavras, no homem a corrente da vida consegue passar livremente, de modo que
sua criatividade continua ao se desdobrar na técnica, o que permite ao homem não apenas
se adaptar, mas expandir constantemente seus domínios. A superioridade do homem é,
portanto, sua destreza técnica, e não teórica. Assim como a vida, a inteligência técnica é
tendência a agir sobre a matéria. E, como o instinto, ela é uma prática vital. Entretanto,
somente a inteligência técnica torna possível um progresso histórico na medida em que
ela abre um campo indefinido à atividade humana. Em suma, a técnica é o sinal de que no
homem o élan vital permanece ativo, e é este o sentido profundo da ação humana.
Por outro lado, a inteligência, no âmbito teórico, opera um esquecimento de sua
origem e função. É somente nos primeiros tempos, quando surgiu o homo faber, que as
ferramentas fabricadas deviam aparecer como substitutos dos órgãos, ou seja, no início
haveria uma experiência dessa continuidade ou desse desdobramento do vital na técnica.
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Em seguida, contudo, como pondera Lebrun, “o ser inteligente se engaja no processo
ilimitado... e perde de vista (...) a articulação de sua prática primitiva com seu ser-em-
vida” (Lebrun 8, p. 219-220). Ora, a filosofia deve exatamente desvelar este nó entre vida
e inteligência: investigar a vida é ao mesmo tempo desfazer ilusões teóricas e expandir a
compreensão da peculiaridade da ação humana vinculada à inteligência.
Canguilhem, de certo modo, dá continuidade a esta formulação, reafirmando,
inclusive, a gênese vital da técnica. O filósofo consegue, entretanto, através da referência
aos trabalhos de Goldstein, trazer novas diretrizes para o estudo da vida às quais Merleau-
Ponty não será insensível. Também aqui a análise da plasticidade característica da vida
desemboca numa reflexão sobre a relação entre indivíduo e meio, de tal forma que mais
uma vez a cultura e a liberdade humanas poderão ser reportadas à atividade vital. Importa,
contudo, salientar que cada vivente explora seu meio à sua maneira, segundo uma escolha
de valores que indica a criação e o estabelecimento de normas próprias. Canguilhem
pode, assim, dizer que há formas de vida ou tipos normativos de vida (Canguilhem
4, p. 85). Entretanto, afirma o filósofo, “a forma e as funções do corpo humano não
são somente a expressão de condições impostas à vida pelo meio, mas a expressão de
modos de viver socialmente adotados no meio” (Canguilhem 4, p. 203). O que isto
significa? No campo vital, as normas são imanentes ao próprio organismo. Já as regras
sociais são o resultado de escolhas arbitrárias de um sujeito social e não intrínsecas aos
fatos e objetos aos quais elas são aplicadas. Conseqüentemente, a experiência normativa
abre constantemente a possibilidade de inversão das normas sociais: o indivíduo está
sujeito às normas sedimentadas historicamente, mas simultaneamente as submete à sua
própria potência normativa. Quer dizer, há um entrelaçamento entre vital e cultural, e
não supressão de um pelo outro, de tal modo que podemos presenciar na cultura um
desdobramento da atividade vital nas suas cristalizações momentâneas que engendram
a normalização. Mas, a despeito destas cristalizações, importa frisar que a normalização
(algo do âmbito específico da história humana) tem origem no vital e está sujeita à
recriação por parte do vivente enquanto tal.
Portanto, para Canguilhem, assim como para Bergson, a liberdade humana está
articulada não a uma racionalidade apartada de qualquer vínculo vital, mas à plasticidade
ou capacidade que o próprio organismo tem de criar possibilidades variadas de ação no
interior de um meio igualmente instável. E é a especificidade criativa da vida humana
que explica o surgimento da sociedade e da cultura. Nestes termos, a obra de Bergson, ao
discutir o estatuto da evolução, permite juntar de maneira inesperada dois movimentos
rivais. Por um lado, a idéia cristã de criação, que subentende um artífice da natureza e
da vida ao qual devem ser remetidas as formas naturais. Por outro, a idéia de evolução
que, ao contrário, prescreve que as formas têm origem no interior da própria natureza.
Esta abordagem, no momento em que se volta para a compreensão do desenvolvimento
dos organismos – no caso de Canguilhem –, complexifica o problema ao mostrar que
a vida é essencialmente normativa. A vida jamais é a-normal, porquanto sempre segue
criativamente alguma regra. No entanto, na medida em que os organismos possuem a
potência de ultrapassar a regra, seu desenvolvimento é, no limite, patológico. Como dirá
Merleau-Ponty no curso sobre a natureza, a vida sempre visa algo além da norma dada.
Mas, perguntamos, será que o esforço de inserir a cultura no interior da criatividade
vital, apesar de profícuo no que tange à compreensão da origem da inteligência e da
técnica e da origem da normalidade e da vida social não nos priva, ainda, de compreender
o salto qualitativo operado pela ação humana no seio da natureza? Noutros termos, essa
investigação pode explicar o surgimento, assim como a manutenção e a evolução das
formas propriamente simbólicas de comportamento? O desdobramento da ação vital é
suficiente para explicar o surgimento do simbólico?
Ora, Merleau-Ponty, no curso sobre a Natureza, ministrado no Collège de
France, defende que a expressividade – enquanto capacidade de “instituir” novas
formas de comportamento – já está presente na ordem vital, uma vez que a própria
vida é compreendida como “advento”. O que implica diminuir a distância entre o
homem e o animal não pela vida, como vimos até agora, mas pela expressão. Neste
sentido, não se trata de explicar o comportamento humano vinculando-o somente à
plasticidade ou à normatividade, mas sim de buscar na vida em geral a gênese da
expressão propriamente dita. Se considerarmos as formulações presentes no curso
sobre a Natureza, notaremos que há de certo modo cultura e liberdade já na vida
animal, e isto se deve especificamente ao fato de que a natureza é dotada de interior e
capaz de expressão e que o “sujeito” que a percebe não a sobrevoa. Entretanto, cabe
considerar que esta posição, como precisa Barbaras, marca uma inflexão no interior
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do pensamento merleau-pontiano frente à sua primeira fase (Cf. Barbaras 1).
De fato, na Estrutura do comportamento, Merleau-Ponty mostrava que a
estrutura simbólica, diferentemente da estrutura vital, não envolve apenas a adaptação,
pois permite ao homem, por um movimento de transcendência, ultrapassar a situação
dada através de um comportamento dirigido ao “possível”. Isto porque o homem projeta
no exterior a multiplicidade relacional da qual seu corpo – como coisa invariante que
entra em diversas relações com outras coisas sem se alterar – é capaz. E é nestes termos
que Merleau-Ponty pode afirmar que a integração do comportamento humano é superior
à do animal. Assim, enquanto para o comportamento animal os signos são apenas sinais
fixos e sucessivos, o comportamento humano permite o uso simbólico do signo na medida
em que este deixa de ser um acontecimento fixo e atual para se tornar o tema próprio
de uma atividade que tende a exprimi-lo. O comportamento simbólico é, portanto, a
“condição de toda criação e de toda novidade nos ‘fins’ da conduta” (Merleau-Ponty 9,
p. 131, grifo nosso). Conseqüentemente, a ordem humana inaugura, através da percepção,
a lógica da expressão, lógica que depois se propaga na linguagem e no trabalho. Nos três
casos, o organismo é lançado para fora de si mesmo num campo móvel de possibilidades
disponíveis no interior da estrutura simbólica. Compreendemos assim que o caráter
adaptativo da estrutura vital não dá conta da ordem humana porque a experiência do
corpo próprio sugere outra extrapolação da natureza. Quer dizer, a passagem à ordem
humana é um salto qualitativo que não pode ser pensado nos limites de uma antropologia
biológica porque através dela, como observa Le Blanc, o corpo humano difere do corpo
animal. O corpo humano já é cultura.
Percebemos que Merleau-Ponty difere das análises de Canguilhem na medida
em que a vida humana, uma vez que opera segundo uma estrutura própria, escapa
do quadro da biologia. Sinal disso é o fato de que o comportamento humano não é
normativo, mas simbólico. Teríamos então de abandonar a referência à vida? Do ponto
de vista d’A estrutura do comportamento, sim. É preciso extrapolar dialeticamente
a vida para entender a cultura já que a percepção é privilégio humano, além de ser
o único comportamento capaz de englobar os demais. Ora, o que impede Merleau-
Ponty de dar uma resposta à pergunta que fazíamos (sem abrir mão da idéia de vida)
é o fato de que A estrutura do comportamento não possui um conceito expressivo de
natureza. Para engendrar este conceito, é preciso assumir o projeto de uma ontologia
que verdadeiramente faça frente à ontologia do objeto. E isto exige repensar nossa
relação com o mundo a partir do vivente.
O curso sobre a Natureza assume a dificuldade e apresenta um estudo das variações
deste conceito ao longo da história. Não se trata de uma exposição desinteressada visto
que ao retomar um problema aparentemente obsoleto, Merleau-Ponty coloca em revista
os descaminhos do pensamento moderno que levaram a destituir a natureza de espírito e
de expressão. Nas palavras do filósofo, trata-se de “buscar nos desenvolvimentos do saber
os sintomas de uma nova tomada de consciência da Natureza” (Merleau-Ponty 10, p.
357). Assim, frente à concepção abstrata do homem e positiva da natureza, Merleau-Ponty
mostra como as pesquisas da ciência contemporânea corroboram para uma compreensão
do ser natural cujo alcance ontológico concerne à filosofia. Mas como valer-se de conceitos
advindos das ciências no intuito de esclarecer e recolocar a idéia de natureza?
Ora, o estudo do ser natural ganha um estatuto ontológico na medida em que
a inteligibilidade da natureza remete diretamente à possibilidade de apreensão do que
Merleau-Ponty denomina de Ser Bruto. Diferentemente das análises empreendidas n’A
estrutura do comportamento, onde a forma ou estrutura aparecia como ponto de partida
para a percepção e a compreensão dos diferentes níveis de individualidade, interessa agora
investigar o próprio surgimento das estruturas. Em suma, o que está em questão aqui é o
estatuto de uma inteligibilidade que permita compreender a criação ou o engendramento
de formas no interior da natureza. Neste contexto, a idéia de vida aparece como central
já que as pesquisas científicas em torno da embriogênese e da evolução abrem campo
à formulação de conceitos capazes de dar conta do surgimento da história no interior
da natureza. Em consonância com as perspectivas de Claude Bernard e de Bergson,
Merleau-Ponty assevera que a vida é criação e que a evolução tem de ser compreendida
no entrelaçamento desses dois movimentos. Entretanto, uma vez que o advento da vida
é a expressão de uma natureza capaz de instituir novas formas, trata-se de investigar o
simbolismo natural operado na evolução.
Sabemos que as ponderações em torno da fala falante e do gesto pictórico
permitem a Merleau-Ponty compreender a expressão como um “advento”, isto é, como a
instituição de uma significação inédita. A expressão é o ato de criação capaz de reinventar
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seu passado e de abrir novas dimensões de futuro. Por isso, ela deve ser compreendida na
sua historicidade fundamental. Ora, isto que advém na linguagem e na pintura pode ser
assistido na evolução da vida de modo que esta, além de configurar um primeiro poder
de expressão, envolve, num mesmo movimento criativo, o início de toda história. Assim,
notar que a vida é capaz de evolução significa encontrar aí as bases de uma verdadeira
compreensão da história e da cultura.
Os trabalhos de Coghill e Gesell em torno da relação entre comportamento e
desenvolvimento embrionário fornecem o ponto de partida para as novas investigações das
estruturas viventes permitindo articular um novo campo de compreensão da historicidade
do desenvolvimento dos seres vivos. Por exemplo, a descrição da embriogênese do
lagarto capaz de nadar durante a fase de girino sugere a seguinte questão: como pode
um animal apresentar um comportamento adaptado na fase de embrião? Coghill, no
intuito de explicar esse desenvolvimento “anormal”, mostra que o embrião é submetido
a uma regulação morfológica. O interessante é que tal regulação não provém do sistema
nervoso (uma vez que este não se encontra desenvolvido). Compreendê-la exige tomar o
embrião como totalidade indecomponível e sempre completa em cada um de seus níveis.
Nas palavras de Bimbenet: “Antes de ser regido por um sistema de condução nervosa
o organismo é, portanto, totalizado por uma polarização dita pré-neural, ele é medido
por um conjunto de dimensões que organizam o processo de sua ontogênese” (Bimbenet
3, p. 131). Ou seja, desde o início o organismo é articulado, de modo que a conexão
nervosa é, em relação à polarização pré-neural, um fator secundário. Há um nível mais
profundo de plasticidade que somente o estudo da embriogênese pode desvendar. Assim,
a embriogênese nos leva ao primado da totalidade na ordem dos fenômenos da vida, já
que a forma ou totalidade é o caráter do vivente desde sua formação.
Mas qual o estatuto desta totalidade? A totalização do corpo do embrião é ao
mesmo tempo morfológica e funcional, o que permite afirmar que corpo e comportamento
são recíprocos. Isto permite por em revista as posições teóricas de Lamarck (cujo finalismo
leva a afirmar que a função comanda a transformação do órgão) e de Darwin (segundo
o qual, a partir de uma concepção mecanicista, pode-se mostrar que a transformação
do órgão induz uma nova função). Nos dois casos, a relação entre órgão e função é
compreendida de maneira exterior. Ao contrário do que afirmam, é preciso entender
que o comportamento é armado no organismo. Como sistema de dimensões, a anatomia
desenha em profundidade as ações possíveis do animal. Portanto, as adaptações precoces
testemunham que um corpo, mesmo no estágio embrionário, não pode ser concebido
fora de um comportamento possível. Isto permite concluir que no embrião já existe
referência ao futuro; que o organismo contém o possível; que o embrião não é simples
matéria, mas matéria organizada referida ao futuro; que contemplar o desenvolvimento
do animal implica saber como ele próprio toma posse de seu corpo e de seu meio. O
organismo é, pois, não uma unidade acabada, mas um “poder”. Conseqüentemente,
devemos compreender o corpo do embrião, não como conjunto de órgãos votados a
certas funções determinadas, mas como um conjunto de “capacidades” ou ainda de
“posturas”. Ora, postura e anatomia são inseparáveis porquanto a anatomia prescreve
certo estilo de ações, ou ainda, como diria Ruyer, um “tema” motor aberto a todas as
variações da conduta. Assim, na medida em que a vida é abertura a dimensões inéditas,
ela é operação primordial, instituição e criação de sentido.
Notamos que a idéia de “possível” é central nesta argumentação. Num primeiro
momento, ela assinala que os comportamentos atuais do corpo vivente articulam uma
espécie de latitude de comportamentos “possíveis”. Num segundo momento, surge um
sentido mais radical. Como mostra o desenvolvimento do lagarto, há no corpo mais que
nado, no sentido de que a anatomia do embrião se diferencia no interior dela própria.
Assim, a marcha é como um nado aperfeiçoado, isto é, um aperfeiçoamento do girino no
interior de si. Quer dizer, em sua generalidade, um sistema de dimensões morfológicas
e funcionais é aberto a uma especificação futura. Por conseguinte, o corpo vivo não é
somente potência de diferentes comportamentos atuais, mas potência de se transformar a
si próprio, de aprofundar-se em direção ao futuro longínquo de seus estados ulteriores.
Dizer isto é avançar em relação à Estrutura do comportamento, já que a
totalidade ou a estrutura não é mais definida como uma realidade típica do animal.
Em seu devir embriológico, como em seus comportamentos atuais, o animal é uma
totalidade sem termo assinalável. Há, portanto, como afirma Bimbenet, um caráter
interrogativo essencial à vida alheio à finalidade. Assim como a pintura, que surge
no entrecruzamento de acaso e lógica, o élan vital não sabe para onde vai: se a vida
improvisa comportamentos mais aperfeiçoados, é porque encontra obstáculos que lhe
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impedem de fixar-se numa forma ou regra.
Todavia, o estudo do mimetismo animal dá ensejo a uma compreensão ainda
mais profunda do caráter expressivo do comportamento vital. Neste intuito, cabe agora
olhar o animal como uma obra de arte, não apenas no que diz respeito à sua formação,
mas também naquilo que o configura como um processo oferecido à visibilidade. Já no
devir do embrião assistíamos o milagre expressivo de uma totalidade a ponto de fazer.
Os estudos em torno do mimetismo permitem questionar, contudo, a importância da
adaptação para a compreensão do comportamento animal. Na verdade, importa dar um
salto em relação à formulação anterior e mostrar que a idéia de adaptação como cânone da
vida pressupõe que o comportamento animal visa sempre uma utilidade. Nas palavras de
Merleau-Ponty: “A forma do animal não é a manifestação de uma finalidade, mas, antes,
de um valor existencial de manifestação, de apresentação” (Merleau-Ponty 10, p. 305).
O mimetismo animal assegura que entre a morfologia do animal e o meio
há semelhança ou indivisão, o que indica uma relação perceptiva entre os dois.
Conseqüentemente, ele permite configurar a dimensão simbólica da natureza ao
indicar que o comportamento só pode ser definido por uma relação perceptiva e que
o Ser (ou seja, a natureza) não pode ser tomado fora do “ser percebido”. É isso que
permite conceber o corpo como “maneira de exprimir”, e, ademais, exige estudar o
comportamento animal como se tratasse de uma linguagem. Assim, comportamentos
que imaginamos visar a adaptação são, na verdade, pura expressão do animal. É o caso
dos rituais de acasalamento que, muitas vezes, longe de assegurar o coito, colocam o
animal em risco ao torná-lo presa fácil e vulnerável.
Notemos que o que está em jogo aqui é uma racionalidade que encontre na
percepção da natureza novas estruturas conceituais capazes de compreender nossa relação
originária como o Ser. É como se Merleau-Ponty buscasse no próprio Ser os parâmetros
conceituais que possibilitam a sua descrição. Em outras palavras, é preciso deixar-se
guiar pela expressividade natural de modo a compreender a história que ali se faz e que se
prolonga em nós. Isso exige afirmar que a percepção não é privilégio humano, como n’A
estrutura do comportamento. Na natureza, o ser é mostrar-se. Há uma correlação que se
estabelece entre o dar-se à visibilidade e a própria visão, de modo que é possível pensar
numa semelhança entre a nossa percepção e o modo de aparição dos comportamentos
em geral. Semelhança que Merleau-Ponty já assinala na introdução do curso quando diz
que o caminho em direção ao conhecimento da natureza fora de nós tem de passar pela
natureza em nós. O surpreendente é que essa semelhança entre os dois pólos é da ordem
da cultura, é o simbólico. Conseqüentemente, não é o vital que se supera na expressão
(algo que Merleau-Ponty admitia n’A estrutura do comportamento, talvez por excessiva
referência a Cassirer). Isto nos permite observa que, diferentemente do que dizia Merleau-
Ponty ao criticar Bergson n’A estrutura do comportamento (quando o filósofo dizia que a
aproximação entre instinto e inteligência como duas soluções elegantes para um mesmo
problema desfaz a hierarquia entre homem e animal), não há mais preocupação em
hierarquizar essa relação. Aliás, já no ensaio “O filósofo e sua sombra”, Merleau-Ponty
considera a intercorporeidade sem excluir dela a sensibilidade animal. No curso sobre a
natureza isso aparece de maneira radical, e entre o homem e o animal se configura não
uma relação hierarquizada, mas uma intercorporeidade lateral, um entrecruzamento de
percepções. É como se Merleau-Ponty abandonasse o projeto frustrado de uma teoria
do sujeito para tentar compreender os processos instáveis de individuação no interior de
uma natureza essencialmente relacional.
Notamos assim que enquanto Bergson e Canguilhem acentuam o caráter vital
do comportamento humano de modo a esclarecer a origem vital do sentido, Merleau-
Ponty, ao contrário, busca na natureza uma expressividade que não é privilégio humano,
mas produtividade do ser bruto. Isso permite compreender um dos movimentos maiores
do pensamento merleau-pontyano: a passagem do primado do corpo próprio ao primado
do ser bruto entendido como natureza. Mas, perguntamos, até que ponto não se trata de
uma projeção da percepção humana sobre a natureza? Merleau-Ponty tem consciência
deste problema, e assim se defende:
Mas, dirão, fazer da semelhança um fator operante na natureza, é não ver que a semelhança só tem sentido para o olho humano. (...) Dizer, por outro lado, que as relações miméticas não fazem parte do Ser, é um postulado, e é exatamente isso que está em questão. A relação do animal com seu meio é uma relação física no sentido estreito da palavra? Tal é justamente a questão. Ao contrário, o que mimetismo parece dizer é que o
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comportamento só pode se definir por uma relação perceptiva e que o Ser não pode ser definido fora do Ser percebido (Merleau-Ponty 10, p. 247).
Noutras palavras, o animal vê segundo o modo pelo qual ele é visível. Há
uma relação especular entre os animais, o que confere um valor ontológico à noção
de espécie. A espécie não é conjunto de animais isolados, mas uma interanimalidade.
Quer dizer, Merleau-Ponty não se pergunta como o animal aparece para o homem,
mas como os animais se dão a ver uns aos outros. É a intercorporalidade animal
que está em questão. Evidentemente, como já afirmava Uexküll, nunca saberemos
exatamente o que é a experiência de mundo de um carrapato. Mas podemos inferir
que há ali um meio e uma temporalidade singular do animal. Ora, todos os estudos
analisados por Merleau-Ponty levam ao questionamento da noção de instinto, de
modo que seja banida de sua compreensão a idéia de finalidade e de adaptação. Neste
sentido, os trabalhos de Lorenz mostram que o instinto é uma atividade primordial
sem objeto. Ele é pura expressão do animal. Daí seu caráter onírico, sua referência ao
inatual, expressa no êxtase dos jogos e ritualizações que se resumem ao prazer. Em
suma, o instinto é antes de tudo um tema ou um estilo, um dar-se à visibilidade que
configura uma intercorporeidade no interior do ser percebido.
Isso nos permite retomar nossa questão inicial. Com Bergson e Canguilhem
corremos o risco de perder o sentido próprio do cultural ou do simbólico em proveito da
postulação da potência da vida. Não estaríamos, com Merleau-Ponty, fazendo o movimento
contrário, ou seja, transformando tudo em cultura? Não há aqui a oscilação de uma espécie
de pêndulo da má infinitude, que vai da natureza à cultura e da cultura à natureza sem
mediação possível? Ora, que simbólico é este que nasce nas operações do embrião e se
prolonga no mimetismo animal para saltar para a técnica e a arte humanas? Quer dizer,
todo este trajeto nos deixa num certo estado de perplexidade, já que os avanços de Merleau-
Ponty em direção à compreensão do simbólico complexificam o conceito de natureza, mas,
correlativamente, parecem insinuar uma certa historicidade do ser encarnado, ao invés de
nos fornecer uma compreensão precisa da noção de história e de cultura. O que poderia
apontar para um limite inerente a este tipo de formulação que parece ser incapaz de passar
da natureza à cultura sem que um dos pólos seja de certa forma sacrificado.
REFERêNCIAS bIbLIogRáFICAS
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filosofia de Bergson. São Paulo: Edusp, 1989.12. UEXKüLL, J. Mondes animaux et monde humain. Paris: Denoël, 2004.
The concept of life and the genesis of the human order
Abstract: This paper investigates the transition from nature to culture through the concept of life, taking as basis the Bergson, Canguilhem and Merleau-Ponty’s formulations. In order to do that, it is necessary to investigate the genesis of modes of subjectivation – the vital action, the organism’s normativity and the expressive character of life – stated by each one of the authors, so that we can reflect on up to which point one can explain the human order (that is, the history and the culture) through its linking to the nature. Keywords: Bergson, Merleau-Ponty, Canguilhem, nature, culture
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Pablo Zunino
MERlEAU-PONTy E A BOlA dE NEvE: ElOgIO E cRíTIcA dE BERgSON*
Pablo Zunino**
Resumo: Este artigo examina algumas aproximações e distanciamentos de Merleau-Ponty em relação à filosofia de Bergson, tendo em vista que Merleau-Ponty parece dividido quanto ao seu parecer sobre a concepção bergsoniana do tempo. Essa oscilação entre crítica e elogio é certamente visível na Fenomenologia da percepção, na qual Merleau-Ponty reconhece que Bergson teria dissolvido a questão do dualismo ao afirmar que “o corpo e o espírito se comunicam pela mediação do tempo”. Entretanto, Merleau-Ponty vai denunciar outra espécie de dualismo bergsoniano, que pretende reencontrar a unidade na multiplicidade por meio do conceito de “multiplicidade de fusão”. Nesse sentido, a metáfora bergsoniana da “bola de neve” procura caracterizar a essência do tempo enquanto duração.Palavras-chave: Merleau-Ponty, Bergson, temporalidade, dualismo, subjetividade.
Introdução
Merleau-Ponty desenvolve o tema da “temporalidade”, numa passagem do
capítulo homônimo da Fenomenologia da percepção que começa assim: “Apliquemos
a idéia da subjetividade como temporalidade aos problemas pelos quais começamos”
(Merleau-Ponty 4, p. 492). Assim, o problema da relação entre a alma e o corpo remete à
questão de “saber como um ser que é porvir e passado tem também um presente” (Ibid.).
Todavia, pensamos que Merleau-Ponty retoma, certamente através de uma inflexão
importante, aquilo que para Bergson era uma conservação automática do passado.
Merleau-Ponty, então, vai reivindicar um “tempo verdadeiro”, no qual apreendemos
a passagem e o próprio trânsito. Mas essa ressonância bergsoniana de um tempo que
mantém tudo a encontramos primeiramente no capítulo sobre o “corpo”:
“O presente ainda conserva em suas mãos o passado imediato, sem pô-lo como objeto, e, como este retém da mesma maneira o passado
* Texto originalmente apresentado como comunicação de pesquisa durante a Jornada “Merleau-Ponty e o Grande Racionalismo”. São Paulo: FFLCH-USP, 2008.** Doutorando USP / CNPq
imediato que o precedeu, o tempo escoado é inteiramente retomado e apreendido no presente” (Merleau-Ponty 4, p. 83 [106]).1
Depois, no capítulo sobre o “cogito”, Merleau-Ponty examina o fenômeno
da linguagem e mostra como um pensamento “adquirido” pode ser considerado
intemporal. Para explicitar essa “aquisição para sempre”, o autor lança mão do modelo
da temporalidade, pois dizer que um acontecimento temporal tem lugar quer dizer que
este “será verdadeiro pra sempre” (Merleau-Ponty 4, p.450 [525]). A “pirâmide de
passado”, que Merleau-Ponty toma de empréstimo de Proust para ilustrar o fenômeno
irredutível da aquisição, projeta atrás de si o “cone”, que Bergson descreve em Matéria e
memória, como a sombra reveladora do argumento filosófico:
“Aquilo que vivemos é e permanece perpetuamente para nós, o velho toca sua infância. Cada presente que se produz crava-se no tempo como uma cunha e pretende a eternidade. A eternidade não é uma outra ordem para além do tempo, ela é a atmosfera do tempo” (Merleau-Ponty 4, pp. 450-451 [p.526]).
Julgamos que uma investigação sobre as tensões entre ambos os filósofos, sejam
elas aproximações ou distanciamentos, nos permitirá distinguir o que é que Merleau-
Ponty retoma de Bergson e o que é modificado. Contudo, num primeiro momento, nosso
trabalho será mais humilde e embrionário, na exata medida em que pretendemos alinhar
aqui algumas notas que preparem o terreno para um estudo frutífero sobre a convergência
no pensamento desses dois autores.
* * *
Como se sabe, o projeto fenomenológico de Merleau-Ponty está inserido no
propósito geral da fenomenologia husserliana de voltar às próprias coisas, isto é, de
reencontrar a camada originária da relação da consciência consigo mesma e com o mundo.
Nesse sentido, a noção de correlação estabelece uma reciprocidade entre sujeito e objeto
que faz com que a consciência e os conteúdos do mundo sejam correlatos, de modo
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que não pode existir um sem o outro. Assim, a grande contribuição de Husserl consiste
em mostrar que consciência e subjetividade significam movimento intencional. Todavia,
a concepção husserliana de um sujeito universal situado fora do mundo (subjetividade
transcendental) foi abandonada por Merleau-Ponty ao procurar unir num mesmo solo
o empírico e o campo fenomenal, adotando o corpo como sendo o novo sujeito da
percepção. Bento Prado Jr. sugere que essa guinada no projeto merleau-pontyano anuncia
certa influência da reflexão bergsoniana, marcada pela recusa inicial de emprestar ao
mundo o caráter de um sistema de objetos que se desata diante de um impassível sujeito
teórico, transmundano e “não-situado” (Cf. Prado Jr. 8).
Bergson, por sua vez, também propõe um retorno aos dados imediatos que deve
pautar-se pela consideração de um dado fundamental da realidade, a saber, o tempo ou
a temporalidade presente na realidade subjetiva e objetiva. Assim, Bergson vai procurar
uma via para a compreensão da subjetividade sem limitar-se à abordagem na interface
interioridade-exterioridade, pois a consciência não é mais considerada como um dado
a priori e sim como resultado de um processo que tampouco se constitui a partir de
uma estrutura intencional. Trata-se de uma consciência que é constituída pelo “campo
transcendental” das imagens sem, no entanto, constituí-lo. Desse modo, a relação entre
sujeito e objeto é concebida por Bergson a partir de um “campo de imagens” anterior à
própria relação. Esse “campo transcendental”, como foi chamado por Bento Prado Jr,
mostra como se dá o nascimento da subjetividade no corpo próprio, isto é, na corporeidade
interiorizada ou na presença corporal. Por esse viés, o problema da relação entre espírito
e matéria também recebe um tratamento adequado, visto que se trata do surgimento,
no seio da matéria, da percepção da própria matéria. Esse processo de constituição
da subjetividade deve ser compreendido como finitude ou como empobrecimento da
Presença. Evidentemente, essas análises bergsonianas exerceram uma enorme influência
no pensamento de Merleau-Ponty, sobretudo na noção de mundo pré-objetivo ou pré-
reflexivo. Com isso, ele pode deslocar o papel do sujeito na fenomenologia, que seria ainda
preponderante e estaria dentro da tradição moderna das “filosofias da subjetividade”.2
Mas a relação entre subjetividade e temporalidade que se estabelece na fenomenologia de
Merleau-Ponty não deriva necessariamente dessa inspiração bergsoniana, pois o próprio
Husserl já havia introduzido as noções de “campo de presença” ou “presente vivo” na sua
obra Para uma fenomenologia da consciência do tempo interior.3
Não obstante, como também observa Damon Moutinho, Merleau-Ponty
define um projeto de filosofia distinto daquele que poderia ser caracterizado como uma
“fenomenologia da razão”. Para ele, o estatuto da reflexão e a experiência do irrefletido
devem considerar-se à luz da noção de “acontecimento” evidenciando ainda mais a
presença de Bergson na letra de Merleau-Ponty:
“Merleau-Ponty não deixa de notar que é o modelo bergsoniano que supõe, não mais que o sujeito absorva o objeto, como o modelo reflexivo, mas, ao contrário, que o sujeito se dilate até se confundir com o objeto (...): não é o ser que é reduzido a um correlato e absorvido pelo saber; é o saber que se expande até o sujeito fundir-se ao ser” (Moutinho 7, p.14).
É importante notar que para Merleau-Ponty a noção de acontecimento não tem
lugar no “mundo objetivo”, já que este é desprovido seja do passado seja do futuro. No
mundo objetivo, a única dimensão temporal que existe é aquela do presente. Daí a crítica
de Merleau-Ponty à célebre passagem de Heráclito, que compara o curso do tempo ao
curso de um rio: o tempo escoaria do passado para o presente e do presente para o futuro.
Mas essa comparação é muito confusa (Cf. Merleau-Ponty 4, p.470), dirá Merleau-Ponty.
Os acontecimentos tais como a formação da neve no alto da montanha, o seu derretimento,
a formação da água, e assim por diante, são recortes do mundo objetivo, mas a própria
noção de “acontecimento” não teria sentido sem a presença de alguém a quem alguma
coisa acontecesse. O tempo supõe necessariamente um sujeito, por isso a metáfora do rio
deve adicioná-lo sub-repticiamente como um observador implícito, de modo que para
Merleau-Ponty, o tempo não pode ser — como acredita Bergson — um “processo real”,
senão algo que “nasce de minha relação com as coisas”:
“Não é o passado que empurra o presente nem o presente que empurra o futuro para o ser; o porvir não é preparado atrás do observador, ele se premedita em frente dele, como a tempestade no horizonte” (Merleau-Ponty 4, p. 470-471 [551]).
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Contudo, Merleau-Ponty aceita a tese da equivalência bergsoniana entre corpo
e presente, e espírito e escoamento do tempo (passado, futuro). O caminho tradicional,
trilhado por Descartes ao tratar da união da alma e do corpo, era antes em termos espaciais
do que temporais. Isso porque ele opõe radicalmente o extenso (corpo) ao inextenso
(alma). Dessa oposição inicial entre contraditórios provém a obscuridade da questão. Na
hipótese dualista, a matéria é vista como espacialmente divisível, ao passo que os estados
de consciência (alma) são rigorosamente inextensos. Assim, corta-se de saída qualquer
comunicação entre ambos os termos. O erro do dualismo vulgar, apontado por Bergson,
é situar-se no ponto de vista do espaço e situar as sensações inextensas na consciência,
tornando incompreensível a comunicação entre o corpo e o espírito. E o que faz Bergson?
Ele substitui o “código espacial” pelo “código temporal”4, ou seja, mostra que a matéria
pode ser compreendida por nós como uma sucessão de momentos ou de movimentos
rápidos, separando-se assim da sua espacialidade. As diversas cores, por exemplo, são
determinadas freqüências recolhidas por nossa percepção no campo transcendental.
Nessa medida, a “ação virtual” passa a ser entendida como expressão da nossa capacidade
de agir:
“É essa ação virtual que extrai da matéria nossas percepções reais, informações das quais necessita para se guiar, condensações, num instante de nossa duração, de milhares, de milhões, de bilhões de acontecimentos que se realizam na duração muitíssimo menos tensionada das coisas” (Bergson 3, p. 64).
O espírito, por sua vez, passa a ser compreendido como memória, isto é,
progresso, evolução, permitindo que os dois termos sejam capazes de se unir. No “código
espacial”, a matéria é aquilo que está no espaço e o espírito aquilo que está fora do
espaço. Porém, no código temporal, existem infinidades de graus entre matéria e espírito,
os quais, por isso, não apresentam diferenças qualitativas. Portanto, pode haver união
entre corpo e alma:
“Entre as qualidades sensíveis consideradas em nossa representação e essas mesmas qualidades tratadas como mudanças calculáveis, há portanto apenas uma diferença de ritmo de duração, uma diferença de tensão interior. Assim, através da
idéia de tensão procuramos suspender a oposição da qualidade à quantidade, como, através da idéia de extensão, a do inextenso ao extenso. Extensão e tensão admitem graus múltiplos, mas sempre determinados. A função do entendimento é retirar desses dois gêneros, extensão e tensão, seu recipiente vazio, isto é, o espaço homogêneo e a quantidade pura, substituir deste modo realidades flexíveis, que compolrtam graus, por abstrações rígidas, nascidas das necessidades da ação” (Bergson 1, p. 289).5
Merleau-Ponty retoma a substituição bergsoniana do código espacial pelo
código temporal ao reconhecer uma diferença de grau e não de natureza entre matéria
e espírito. Mas a questão está em saber se Bergson ainda conserva algo do dualismo
ao fazer essa “substituição”. Ora, a prerrogativa do tempo não significa conservação
do dualismo, porque Bergson não está apenas substituindo o espaço pelo tempo, ou um
código por outro. O que é preciso ressaltar é que essa leitura que Merleau-Ponty faz
da substituição dos códigos o aproxima de Bergson ao aproximá-lo do monismo (graus
de tensão da duração). Essa convergência, observada na Fenomenologia da percepção,
pode ser afirmada de forma independente dos desenvolvimentos posteriores, apelando-
se para os cursos em que a questão é retomada. O tratamento crítico que Bergson dá aos
dualismos não consiste em conservar a dualidade e mudar a escolha dos termos. Por isso,
não se pode falar em Bergson da “unidade” do tempo por oposição à multiplicidade.
Todavia, Merleau-Ponty recusa a noção bergsoniana de “multiplicidade de fusão
ou de interpenetração”, pois essa noção estaria presa a um quadro dualista e naturalista: “se
trata ainda de dois gêneros de ser. Apenas se substitui a energia mecânica por uma energia
espiritual”. Mas o principal motivo dessa recusa merleau-pontiana da multiplicidade de
fusão é a tentativa bergsoniana de reencontrar a unidade na multiplicidade, visto que
esta noção faz evaporar a multiplicidade na unidade. Se o tempo é compreendido como
multiplicidade de fusão, ele se evapora, pois falta a multiplicidade: “se, em virtude do
princípio de continuidade, o passado pertence ainda ao presente e o presente já é do
passado, não há nem presente nem passado; se a consciência faz bola de neve6 consigo
mesma, ela estará como a bola de neve e como todas as coisas, toda inteira no presente”
(Merleau-Ponty 4, p.319-320, nota 1 [644-645, nota 47]). Essa crítica é retomada nas
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páginas sobre a temporalidade (Merleau-Ponty 4, p.474-475, nota 1 [652-653, nota 3]),
onde Merleau-Ponty introduz a noção husserliana de síntese7:
“Síntese passiva do tempo — uma expressão que evidentemente não é uma solução, mas um índice para designar o problema (...). Falando em síntese passiva, queríamos dizer que o múltiplo é penetrado por nós e que, todavia, não somos nós que efetuamos sua síntese” (Merleau-Ponty 4, pp. 479 [561]; 488 [572]).
Além disso, Merleau-Ponty julga que Bergson conhece somente o “corpo
objetivo”, mas ignora o “corpo fenomenal” (Merleau-Ponty 4, p.493 [578]); compreende
a consciência antes como “conhecimento” que como “existência”, fazendo do tempo
uma “sucessão de agoras” (aquilo que Heidegger chamava de “tempo nivelado ou
vulgar”); e ignorou o “movimento único pelo qual se constituem as três dimensões
do tempo” (Merleau-Ponty 4, p. 471 [552]). Sendo assim, Bergson não estaria
completamente certo, embora sua idéia esteja correta, aquela pela qual o corpo e o
espírito se comunicam pela mediação do tempo.
No capítulo sobre a temporalidade, Merleau-Ponty mostra que o tempo não é
compreensível a partir das coisas nem do ser: “aquilo que falta ao próprio ser para ser
temporal, é o não-ser do alhures, do outrora e do amanhã” (Merleau-Ponty 4, p. 471).
Se o tempo não é compreensível a partir das coisas, tanto menos o será a partir de uma
consciência que teria o modo de ser de uma coisa e padeceria da mesma saturação de ser.
Donde a crítica da teoria do engramme, teoria segundo a qual haveria uma conservação
somática ou corporal do passado. Nunca um traço presente poderá explicar a retro-
referência, isto é, o visar de um passado como passado. Merleau-Ponty também censura
Bergson por ter cometido exatamente o mesmo erro que a teoria que ele critica:
“Vimos que a melhor razão para rejeitarmos a conservação fisiológica do passado também nos autoriza a rejeitar sua ‘conservação psicológica’. Esta razão é uma espécie de conservação, porém nenhum ‘traço’ psicológico ou físico do passado pode fazer-nos compreender a consciência que temos do passado” (Merleau-Ponty 4, p. 472 [553]).
Bergson dá conta da retro-referência pela conservação das nossas percepções
ou, como objeta Merleau-Ponty, por meio de uma percepção conservada que “está
sempre no presente, ela não abre à nossa frente essa dimensão de fuga e de ausência
que é o passado” (Merleau-Ponty 4, p.473 [554]). Tendo excluído o não-ser da vida da
consciência, Bergson não consegue dar conta da constituição do tempo nem superar as
teorias que ele mesmo critica. E a crítica de Merleau-Ponty a Bergson se conclui assim:
“Quando ele diz que a duração faz ‘bola de neve consigo mesma’, quando no inconsciente ele acumula lembranças em si, ele forma o tempo com o presente conservado, a evolução com o evoluído” (Merleau-Ponty 4, p. 474-475, nota 1 [652-653, nota 3]).
O defeito irremediável da concepção bergsoniana do tempo é, segundo
Merleau-Ponty, querer constituir o tempo com o presente. Essa crítica merleau-pontiana
de Bergson nos parece bastante problemática porque Merleau-Ponty parece atribuir a
Bergson uma espécie de dualismo, não mais um dualismo de corpo e alma, mas um
dualismo consciente – inconsciente. Na medida em que todo o esforço do pensamento
bergsoniano é precisamente para sair do dualismo, o tema das lembranças que poderiam
ser conservadas no inconsciente parece-me mais próximo de Freud que de Bergson.8 Se
o passado, como disse Bergson, se conserva a si mesmo automaticamente, ele aparece ao
campo de consciência no modo de virtualidade e não precisa deixar um traço em algum
lugar particular para conservar-se. Mais adiante, nas notas inéditas de fevereiro de 1959,
Merleau-Ponty reencontrará toda a originalidade do pensamento de Bergson:
“Bergson. Mostrar o valor das “imagens” como aquilo que exprime o ser [von Selbst], a identidade do [Seyn et Vernehmung – Einführung de Heidegger, 16]. Isso mostra o contato bergsoniano com o Ser e dá o sentido profundo da reabilitação do tempo, da identificação Ser-tempo em Bergson. Insistir sobre o heraclitismo de Bergson. A reabilitação do tempo e do Ser von selbst como remanescente da metafísica a título de experiência. A mudança de sentido de Bergson. Para os contemporâneos “espiritualista”; para nós, aquilo que é válido em Bergson é, ao contrário, o
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sentimento de um pensador do ser. Confrontar essa intuição com as considerações, bastante pobres, das Duas fontes sobre a história humana. Retomar a crítica da idéia do nada. Digamos que ele tem razão ao refutar a idéia do nada, mas errou tão somente por não ter visto que o ser que resiste à negação da intuição do nada não é o ser « positivo», mas o Seyn”.9
A obra A natureza, que reúne os cursos de Merleau-Ponty no Collège de France,
expressa de maneira mais nítida a simpatia intelectual entre Merleau-Ponty e Bergson.
Com efeito, o que Merleau-Ponty procura em Bergson é precisamente um caminho para
escapar da tradição constante em filosofia desde Santo Agostinho, aquela que faz refluir
o tempo para o lado do sujeito, na forma de “expectativa, atenção e recordação” (Santo
Agostinho 9, XI, 28, §37), conceitos que guardam certa semelhança com a retenção e
protensão husserlianas. Mas para além ou para aquém do tempo “serial”, conforme a
expressão de Whitehead, haveria um “tempo inerente à Natureza”. Esse tempo levará
Merleau-Ponty a postular uma “subjetividade da Natureza”, aquela que estaria “presa na
engrenagem de um tempo cósmico” (Merleau-Ponty 5, p. 194). Em contrapartida, uma
natureza que não tenha em si mesma absolutamente nada do passado nem do futuro seria
uma “Natureza-flash, (...) um relâmpago pontual continuado, que não é nada que se possa
viver” (Ibid., p. 195). Do ponto de vista da vida, pensar no tempo implica reconhecer
— como fez Merleau-Ponty — que não somos autores dos nossos próprios batimentos
cardíacos. No limite, não fomos nós que escolhemos nascer. Essa intuição pode passar
despercebida na Fenomenologia, mas em A Natureza, o autor lhe imprime uma significação
mais abrangente: “Existe uma passagem natural do tempo, a pulsação do tempo não é
uma pulsação do sujeito, mas da Natureza, ela atravessa a nós, espíritos” (Ibid.). Eis aqui
que o conceito husserliano de “intencionalidade operante” adquire uma relevância sem-
par, como reenvio do fenômeno à totalidade (multiplicidade) de todos os fenômenos ou
noemas não dados. Ao constatar certa “pregnância da significação nos signos” (Merleau-
Ponty 4, p. 490 [575]), podemos considerar o mundo como o “berço das significações”,
ou seja, como a condição de possibilidade da “intencionalidade de ato”, àquela que supõe
a atividade de um ego, isto é, de um sujeito. Nesse sentido, Damon Moutinho sugere
que essa é também a “condição pela qual Merleau-Ponty poderá dizer que o tempo não é
para alguém, mas que ele é alguém” (Moutinho 7, p. 42). Assim, segundo Damon, o que
permite caracterizar o “cogito pré-reflexivo merleaupontiano” é a transição do sujeito
ao tempo, ou seja, a temporalidade: “o sujeito da intencionalidade operante, em ação
em todo o sistema eu-outrem-mundo, é o tempo” (Ibid., p. 21). Esse quadro conceitual
não estaria completo sem a noção de “presença”. Como vimos, Bento Prado Jr. chamou
a atenção para o campo perceptivo, mostrando que este remete necessariamente a outros
objetos e sem ele o objeto percebido não poderia sequer vir a minha presença: “É sob essa
reserva que se deve chamar a Natureza de uma presença operante” (Merleau-Ponty 5, p.
197), expressão que Merleau-Ponty toma emprestada de Wahl (Wahl 10, p. 168).
Há, portanto, uma relação entre o cogito tácito e a subjetividade da natureza, de
modo que o “abandono” do primeiro em benefício do segundo não pode ser considerado
uma ruptura, mas sim uma evolução do pensamento de Merleau-Ponty, que caminha
de uma concepção ainda marcada pelos vestígios da reflexão (cogito tácito — ênfase
na palavra sublinhada) para uma instância mais marcadamente pré-reflexiva. O cogito
tácito, por sua vez, já assinala o enfrquecimento da reflexividade tradicional (consciência
constituinte) em proveito de uma subjetividade alargada (“da natureza”). Não há passagens
abruptas no pensamento de Merleau-Ponty, mas uma maturação crítica que redunda na
transformação das noções e se encaminha para uma diluição do cogito como sinônimo
de consciência.
Considerações finais
Na conferência “A percepção da mudança”, Bergson propõe outra metáfora para
mostrar-nos como devemos compreender a duração e a multiplicidade de interpenetração:
“Escutemos uma melodia. (...) Se recortamos em notas distintas, em tantos ‘antes’ e ‘depois’ quantos nos aprouver, é porque nela misturamos imagens espaciais e porque impregnamos de simultaneidade a sucessão: no espaço, e apenas no espaço, há distinção nítida de partes exteriores umas às outras” (Bergson 3, p. 172-173).
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Compreender esse ponto exige que encaremos o passado de modo inteiramente
diferente do que fomos acostumados a fazê-lo pela filosofia e pela linguagem. Com efeito,
o que significa “conservar”? E o que é, ao certo, o presente? Merleau-Ponty explica o
surgimento de um “presente novo” como a “passagem de um futuro ao presente e do antigo
presente ao passado”, afirmando que “é com um só movimento que, de um extremo ao
outro, o tempo se põe a mover” (Merleau-Ponty 4, p. 479 [561]). Desse modo, pretende-
se superar a concepção bergsoniana de uma “multiplicidade de fenômenos ligados” ao
substituí-la por um único “fenômeno de escoamento”:
“O tempo é o único movimento que em todas as suas partes convém a si mesmo, assim como um gesto envolve todas as contrações musculares que são necessárias para realizá-lo” (Merleau-Ponty 4, p. 479 [562]).
Embora seja este o momento em que mais parece abrir-se uma brecha entre
Merleau-Ponty e Bergson, marcada pelas recorrentes alusões a Heidegger10, pensamos
que, na verdade, o que se verifica é uma identificação entre ser e tempo, que o aproxima
ainda mais de Bergson: “como no tempo ser e passar são sinônimos, tornando-se passado
o acontecimento não deixa de ser” Merleau-Ponty 4, p.480 [563]). Todavia, Merleau-
Ponty insiste e focaliza seu ataque:
“Bergson estava errado em explicar a unidade do tempo por sua continuidade, pois isso significa confundir passado, presente e porvir sob o pretexto de que se caminha de um para o outro por transições insensíveis, e enfim significa negar o tempo” (Merleau-Ponty 4, p. 481 [563]).
O que Bergson defende, de fato, é que o passado conserva-se por si mesmo
automaticamente. O passado, para ele, é a parte de nossa história que não interessa mais à
nossa ação presente e as “lembranças” serviriam para simplificar uma experiência anterior
e assim completar a experiência do momento (Bergson 3, p. 177). Podemos interpretar o
argumento de Bergson seguindo os passos de Bento Prado Jr. Se a percepção consciente
é um recorte parcial na totalidade do “campo transcendental” de imagens, isto é, um
“empobrecimento da presença”; a memória não deveria ser compreendida como alguma
coisa que vá buscar lembranças no inconsciente, senão como um “filtro” que deixa passar
— e, nesse sentido, também “recorta” — a partir de um “campo virtual” de passado as
lembranças que podem interessar-nos no presente. Nesse processo, destaca-se o papel
do cérebro: “O cérebro serve aqui para operar uma escolha no passado, para diminuí-lo,
simplificá-lo, utilizá-lo, mas não para conservá-lo” (Bergson 3, p. 178). Temos por hábito
acreditar que o passado é “abolido” e é precisamente essa crença que nos impede aceitar
a constatação mais evidente: “a conservação do passado no presente não é nada além da
indivisibilidade da mudança” (Bergson 3, p. 179).
Antes de concluir este artigo, podemos indicar algumas observações pertinentes.
Em primeiro lugar, a nova relação que se estabelece entre sujeito e objeto a partir de
uma “visão universal do devir”. Merleau-Ponty descrevia um “ambiente movente que
se distancia de nós, assim como a paisagem na janela do vagão” (Merleau-Ponty 4, p.
480 [562]). E Bergson, indo além, sustentava que “o objeto e o sujeito devem estar um
em face do outro numa situação análoga à de dois trens” (Bergson 3, p. 181), que se
movem na mesma velocidade e no mesmo sentido, na qual duas pessoas, estando uma
em cada trem, poderiam se dar a mão pela janela. Por isso a metáfora da “bola de neve” é
importante. Ela supõe uma concepção de filosofia a partir da qual “podemos nos habituar
a não isolar nunca o presente do passado que ele arrasta consigo” (Ibid.). Nesse sentido,
a bola de neve também anuncia uma das noções mais importantes de Bergson, o elã
vital: “Um grande elã carrega todos os seres e todas as coisas. Por ele nos sentimos
levantados, arrastados, carregados” (Bergson 3, p. 182). Interessante notar que Merleau-
Ponty também sabia disso:
“Eu nunca tenho consciência de ser o autor absoluto do tempo, de compor o movimento que vivo, parece-me que é o próprio movente que se desloca e que efetua a passagem de um instante ou de uma posição à outra” (Merleau-Ponty 4, pp. 319-320, nota 1 [371, nota 47]).
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Por último, na obra “Introdução à metafísica” (Bergson 3), Bergson vai mostrar
que os conceitos adotados pela filosofia nem sempre se adaptam bem aos objetos que
desejamos conhecer. Muitas vezes, os conceitos são amplos demais para se ajustarem
com exatidão aos entes reais. Isso ocorre de forma paradigmática no caso do tempo,
por isso em lugar de explicar o que é o tempo por meio de conceitos como “unidade”,
“multiplicidade”, “síntese” e outros que geralmente vem aos pares (continuidade-
descontinuidade, quantidade-qualidade, homogêneo-heterogêneo, identidade-diferença
e assim por diante) convém adotar a metáfora. Algumas delas, em conjunto, poderão
aproximar-nos de uma “intuição da duração”. Assim como a da “bola de neve”, a metáfora
do “fio do novelo” também cumpre essa função:
“Imaginemos antes um elástico infinitamente pequeno, contraído, se isso fosse possível, num ponto matemático. Estiquemo-lo progressivamente de modo que faça com que do ponto saia uma linha que irá sempre aumentando. Fixemos nossa atenção, não sobre a linha enquanto linha, mas sobre a ação que a traça. Consideremos que, a despeito de sua duração, essa ação é indivisível, se supomos que se realiza sem parar; que, se nela intercalamos uma parada, faremos dela duas ações ao invés de uma e que cada uma dessas ações será então o indivisível de que falamos; que não é nunca a própria ação que é divisível, mas a linha imóvel que ela deposita embaixo de si como um rastro no espaço, Libertemo-nos por fim do espaço que subentende o movimento para só levar em conta o próprio movimento, o ato de tensão ou de extensão, enfim, a mobilidade pura. Teremos desta vez uma imagem mais fiel de nosso desenvolvimento na duração” (Bergson 3, p. 191).
A partir deste exemplo e dependendo do ponto de vista que adotemos, poderemos
admitir que a descrição trata de uma unidade — caso consideremos o movimento que
progride — ou de uma multiplicidade — caso privilegiemos os estados que se esparramam.
Mas mesmo assim não esgotaremos a realidade movente que deu origem a essas duas
concepções antagônicas.
* * *
Neste primeiro mergulho no universo merleau-pontiano, identificamos uma
crítica de Merleau-Ponty a Bergson e procuramos rebatê-la com base na argumentação
bergsoniana. Percebemos assim que não há propriamente uma confluência em relação
à concepção do tempo que ambos os filósofos defendem, mesmo porque para Bergson
o tempo não deveria ser uma “questão” filosófica e sim um “dado imediato”, tanto da
subjetividade como da realidade objetiva. Nesse sentido, nossa conclusão se encaminha
para o reconhecimento de que a leitura que Merleau-Ponty faz de Bergson, na
Fenomenologia da percepção, coloca o tempo no registro da subjetividade. Não obstante,
o intuito de Bergson é precisamente elucidar a identificação entre ser e tempo (registro
ontológico), anterior à separação conceitual entre o subjetivo e o objetivo. Por isso, a
duração, como uma bola de neve, acumula, mas também dispersa à medida que vai se
gastando. Trata-se de um processo de diferenciação na temporalidade sem espacialização,
ou seja, sem separação. Essa diferenciação, portanto, admite unidade e multiplicidade.
Talvez por isso, na Fenomenologia da percepção, notamos um Merleau-Ponty mais
confuso quanto à Bergson. Porém, o Merleau-Ponty das notas de trabalho e do curso
sobre a natureza assume uma atitude, por assim dizer, mais bergsoniana. Mas isso é tema
para outro artigo.11
REFERêNCIAS bIbLIogRáFICAS
1. BERGSON, H. Matéria e memória. São Paulo: Martins Fontes, 2006.2. __________. A evolução Criadora. São Paulo: Martins Fontes, 2005.3. __________. O Pensamento e o movente. São Paulo: Martins Fontes, 2006.4.MERLEAU-PONTY, M. Phénoménologie de la Perception. Paris: Gallimard, 1997. [Trad. brasileira Merleau-Ponty, M. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 2006.]
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5. _________________. A Natureza. São Paulo: Martins Fontes, 2006.6. MOURA, C. A. Racionalidade e crise: estudos de história da filosofia moderna e contemporânea. São Paulo: Discurso Editorial; Editora da UFPR, 2001.7. MOUTINHO, D. “Tempo e sujeito - O transcendental e o empírico na fenomenologia de Merleau-Ponty”, in: DoisPontos, v. 1, n. 1, 2004.8. PRADO JúNIOR, Bento. Presença e campo transcendental: consciência e negatividade na filosofia de Bergson. São Paulo: Edusp, 1988.9. SANTO AGOSTINHO. Confissões, in: Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973.10. WAHL, J. Vers le concret. Paris: Vrin, 1932.
Merleau-Ponty and the snowball: compliment and criticism to bergson
Abstract: This paper examines some approaches and differences of the Merleau-Ponty’s philosophy in relation to that of Bergson, once that Merleau-Ponty seems to be divided about the bergsonian conception of time in his thinking. This oscillation between criticism and compliment is certainly visible in the Phenomenology of perception, in which Merleau-Ponty recognizes that Bergson would have dissolved the question of the dualism when affirming that “the body and the spirit communicates by mediation of the time”. However, Merleau-Ponty denounces another kind of bergsonian dualism, that intends to find the unit in the multiplicity by means of the concept of “fusing multiplicity”. In this sense, the bergsonian metaphor of the “snow ball” looks for to characterize the essence of the time as duration.Keywords: Merleau-Ponty, Bergson, temporality, dualism, subjectivity.
NoTAS
1. As passagens traduzidas para o português correspondem à edição brasileira. Merleau-Ponty. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 2006. Indicamos a paginação dessa obra entre colchetes [p. 106].2. Cf. Moutinho 7, p. 19: “É só nessa medida que o campo fenomenal pode ser “convertido” em campo transcendental e o ser no mundo ser coroado com um ser para si: é preciso que o ser no mundo e, com ele, todo o sistema de horizontes da percepção, seja arrastado por essa nova reflexão e levado à consciência de si. E se essa reflexão não implica pôr uma consciência transcendental que possa pensar o sistema na
integralidade, é porque estamos aqui não no plano da intencionalidade de ato, mas no plano da intencionalidade operante, ‘aquela que faz a unidade natural e antepredicativa do mundo e de nossa vida’ (Merleau-Ponty, 1995, p. XIII): é ela que assegura o sistema de reenvios que arrasta todo o sistema”.3. Cf. Moura, C. A. “A cera e o abelhudo: expressão e percepção em Merleau-Ponty” (Moura 6, p.262).4. Cf. Moura, C. A. Curso de História da filosofia contemporânea. São Paulo: FFLCH-USP, 2008.5. Entre o que designamos como físico ou como corpo e o que chamamos de espírito ou consciência não haveria oposição de natureza, mas de graus de tensão da duração. Uma duração infinitamente distendida corresponderia àquilo que chamamos de extensão; uma duração infinitamente tensa e contraída corresponderia àquilo que chamamos de inextenso ou de consciência. O núcleo da ontologia bergosiana revela uma realidade que é pura duração e se apresenta em diferentes ritmos de tensão (Cf. Leopoldo e Silva, F. Curso de História da filosofia contemporânea. São Paulo: FFLCH-USP, 2007).6. Bergson usa a metáfora da “bola de neve” numa passagem do primeiro capítulo de A evolução criadora: “Tomemos o mais estável dos estados internos, a percepção visual de um objeto exterior imóvel. (...) Minha memória está aí, empurrando algo desse passado para dentro desse presente. Meu estado de alma (...) infla-se continuamente com a duração que ele vai juntando; por assim dizer, faz bola de neve consigo mesmo. (...) A verdade é que mudamos incessantemente e que o próprio estado já é mudança” (Bergson 2, p. 2). 7. Na conferência “La raison incarnée – pensée et sensibilité chez Merleau-Ponty» (São Carlos: UFSCar, 2008), Pascal Dupond mostra que Merleau-Ponty faz justiça à noção kantiana de “synthèse”, reinterpretando-a a partir da noção de “synopsis”, também kantiana.8. Bergson parece confirmar esse ponto, mas não vamos aprofundar o tema aqui. Limitemo-nos a assinalar um possível desdobramento da pesquisa. Em relação à psicopatologia, hoje cindida em psicanálise e psiquiatria, Bergson abre um terreno fértil para a discussão, lembrando que a função do cérebro não seria pensar, senão impedir que o pensamento se perca no sonho. Nesse sentido, o cérebro seria o órgão de atenção a vida: “Para nos limitarmos a essa última ciência, mencionaremos simplesmente a importância crescente que assumiram progressivamente as considerações de tensão psicológica, de atenção à vida, e tudo o que está envolvido no conceito de esquizofrenia. Nem mesmo nossa idéia de uma conservação integral do passado deixou de encontrar cada vez mais sua verificação empírica no vasto conjunto de experiências instituído pelos discípulos de Freud.” (Bergson 3, p. 84). Essa idéia, à primeira vista, parece bastante contemporânea da teoria do inconsciente. 9. Nota gentilmente cedida pelo Prof. Dr. Pascal Dupond (Universidade de Toulouse).
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10. A noção heideggeriana de ek-stase, entendida como uma “fuga geral para fora do Si, a lei única desses movimentos centrífugos” (Merleau-Ponty 4, p.480 [p. 562]), levará Merleau-Ponty a afirmar uma identidade entre “afetante” e “afetado”: “O ímpeto do tempo é apenas a transição de um presente a um presente. Este ek-stase, esta projeção de uma potência indivisa em um termo que lhe está presente, é a subjetividade” (Merleau-Ponty 4, p. 487 [p. 571]). 11. Agradeço à equipe de pareceristas dos «Cadernos Espinosanos « pela leitura do texto e pelas valiosas sugestões.
PROUST à lUZ dE fREUd – UMA lEITURA MERlEAU-
PONTyANA*
ronaldo Manzi**
Resumo: pretendo abordar de modo breve como, diferentemente da tradição francesa, Merleau-Ponty leu Proust à luz freudiana, podendo, assim, insistir num problema fundamental da sua fenomenologia: a temporalidade. Para tal abordagem, realizarei um exame da possível intersecção do caso do membro fantasma com a noção de sedimentação descrita pelo filósofo. Com esse procedimento, compreenderemos o recurso de Merleau-Ponty aos escritos de Proust, notadamente, ao conceito de “tempo”. Veremos, entretanto, que este recurso está largamente em interface com noções da clínica freudiana.Palavras-chave: tempo perdido; sedimentação; temporalidade; membro fantasma; fenomenologia.
É bastante conhecida a passagem da Phénoménologie de la Perception onde
Merleau-Ponty busca compreender a experiência do “membro fantasma”. Há um
paradoxo nessa experiência que não deixa de nos assombrar até hoje e que instigou
diversos outros pesquisadores a pensar nessa estranha manifestação. Desde Jasper (7, p.
111), por exemplo, essa experiência exigia uma compreensão do sentido da conduta para
além das suas diferentes manifestações que não poderiam ser reduzidas a um simples
déficit ou distúrbio fisiológico do indivíduo, pois envolve o próprio sentido do que seria
a relação do sujeito com a percepção e/ou imaginação totalitárias de si. Autores como
Lhermitte (cf. Lhermitte 9) e Schilder (cf. Schilder 12), sobre os quais Merleau-Ponty se
debruçou longamente, mostram isso com clareza.
Entretanto, é verdade que essa questão nos leva também diretamente a uma
reflexão sobre a temporalidade do sujeito juntamente com sua “história pessoal”. Não
poderíamos deixar de notar, seguindo as análises freudianas, por exemplo, que há
transtornos das significações afetivas que poderiam “barrar” o sujeito, se assim podemos
* Este texto foi apresentado no dia 17 de novembro de 2008, na Jornada “Merleau-Ponty e o Grande Racionalismo” (realizado na Universidade de São Paulo).** Doutorando em filosofia pela Universidade de São Paulo.
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dizer, à possibilidade de vivenciar novas significações. Lacan é bastante sugestivo aqui:
o trauma, a fixação, seria uma intrusão do passado no presente (Cf. Lacan 8, p. 108). O
caso da perda de um membro seria um desses traumas.
Isso não deixa de ressoar o que Merleau-Ponty entendia como uma conduta
patológica na Phénoménologie de la Perception. Há, diríamos, um certo “cálculo”
do indivíduo difícil de explicar, uma experiência que “decide” não se tornar passada
(Merleau-Ponty 11, p. 101). Waelhens (13, p. 114), ao comentar essa passagem da obra
merleau-pontyana, nos aponta: o sujeito patológico
(...) recusa reconhecer esta restrição [a perda de um membro] e, tendo que optar entre a perda de si como liberdade de fazer um mundo à sua medida e a perda do mundo próximo [habitual, antes da perda do membro] onde ele se escolheu e se exerceu até o presente, prefere negar aquela liberdade e salvaguardar seu mundo próximo (....).
Nossa questão poderia se resumir assim: porque há essa “recusa”? Aliás, trata-
se de uma recusa consciente?
Aqui entramos no que gostaria de debater nesse texto: Merleau-Ponty explica
esse fenômeno por uma aproximação entre Proust e Freud que parece, à primeira vista,
improvável. Lembremos, entretanto, antes de entrar diretamente no nosso tema, que esta não
foi a primeira vez que alguém fez essa aproximação. Aliás, uma aproximação que rompia
com uma certa tradição francesa que aproximava o tema da “lembrança” em Proust à teoria
da “memória” em Bergson. É por isso que Benjamin (autor ao qual estou me referindo) disse
com todas as letras: “certamente, os estudos alemães sobre Proust serão bem diferentes dos
franceses. Em Proust, vive algo muito maior e mais importante do que o ‘psicólogo’, que
é a maneira, tanto quanto eu vejo, que se fala quase que exclusivamente dele, na França”
(apud Chaves 3, p. 35). Ora, é certo que Benjamin dá um passo ousado ao associar esses
dois autores para explicar nossa relação com o passado: uma certa “memória involuntária”,
como afirmava Proust, ou “sedimentada” (ver, Gay 5, p. 170), como dizia Freud. Isso lhe
possibilitava pensar a memória de outro modo, ligado à própria “situação” do sujeito. Essa
passagem de Chaves (Chaves 3, p. 37-38) é bem esclarecedora:
(...) a obra proustiana não descreve uma vida tal qual ela foi – wie es gewesen ist – mas a vida lembrada por aquele que a vivenciou – sondern ein Leben, so wie der, der’´s erlebt hat, dieses Leben erinnert. Em termos freudianos, poderíamos dizer que o passado, evocado pelo adulto, se constitui sempre numa “lembrança encobridora”: ‘Nossas lembranças de infância não nos mostram os primeiros anos de vida como eles foram, mas como se apresentam, posteriormente, na época de sua evocação’.
Apesar de ser pouco provável que Merleau-Ponty conhecesse a obra de Benjamin
nessa época, não deixa de soar uma proximidade clara entre ambos, ao menos nesse ponto.
Basta lembrarmos de uma passagem como essa, que encontramos nas últimas linhas da
Phénoménologie de la Perception: “assumindo um presente, eu retomo e transformo meu
passado, eu mudo seu sentido, libero-me dele, desembaraço-me dele” (Merleau-Ponty
11, p. 519). E aqui retornamos à nossa pergunta: por que no caso do membro fantasma
o sujeito não se libera do seu passado? Por que ele insiste em permanecer num mundo
habitual que já não lhe pertence?
Sabemos como Merleau-ponty responde a essa questão: se o amputado recusa
um “mundo atual”, trata-se então de uma fixação, algo que Merleau-Ponty partilha com a
psicanálise de sua época. Ele explica essa recusa nesses termos:
o recalque de que fala a psicanálise consiste naquilo em que o sujeito engaja numa certa via (...), e que ele encontra nesta via uma barreira e, não tendo força nem para transpor este obstáculo, nem de renunciar o empreendimento, ele fica bloqueado nesta tentativa e emprega indefinidamente suas forças a renová-la em espírito (Merleau-Ponty 11, p. 98).
Não basta aqui simplesmente lembrarmos a distinção tipicamente canguilhemiana
entre normal e patológico, onde, nesse último caso, o sujeito, diante de um obstáculo, não
consegue mais impor uma norma, limitando assim seu poder de ação no meio – é preciso ainda
destacar como o sujeito amputado se fixa numa temporalidade que persiste em se repetir. É
com esses olhos, por exemplo, que Foucault, ao comentar a obra de Freud, parece enxergar:
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por mais assombrada que ela seja pelo passado, a conduta não deixa de ter um sentido. (...) O presente está sempre em dialética com seu próprio passado; ele o recalca no inconsciente, ele separa suas significações ambíguas; ele projeta sobre a atualidade do mundo real os fantasmas da vida anterior; ele transpõe seus temas para níveis de expressão reconhecidos válidos (Foucault 4, p. 142-143).
No caso do membro fantasma e em palavras merleau-pontyanas:
o braço fantasma é como uma experiência recalcada, uma presença antiga que não se torna passada. As lembranças que se evocam diante de um amputado induzem o membro fantasma não como uma imagem que no associacionismo chama outra imagem, mas toda lembrança busca o tempo perdido e nos convida a retomar a situação evocada (Merleau-Ponty 11, p. 101, grifo meu).
Longe de ser apenas uma coincidência entre essa análise e o título da principal
obra de Proust, trata-se de uma aproximação constitutiva do próprio arcabouço conceitual
merleau-pontyano. Essa lembrança que busca um tempo perdido, que, para Merleau-
Ponty, se identifica com a noção de tempo em Proust (Merleau-Ponty 11, p. 101), se traduz
não numa rememoração, mas naquilo que o filósofo denomina como “quase-presença”
(Merleau-Ponty 11, p. 101). Como se este “quase” fosse um “fio intencional” no horizonte
do passado vivido (Merleau-Ponty 11, p. 101). Nesse sentido, Proust apontaria para uma
relação do sujeito com seu passado como se fosse uma busca de um tempo perdido, quer
dizer, algo que o sujeito vivenciou e que continua “quase-presente”. Não se trata de dizer
que o fato de se buscar um tempo perdido seja patológico, mas o fato de se fixar nesse,
assim como o sujeito amputado age como se aquele mundo habitual ainda valesse no seu
mundo atual: o sujeito se fixa num tempo perdido. É a relação do sujeito com seu passado
que está em jogo e é aqui que está, por sua vez, a ousadia de Merleau-Ponty (11, p. 96),
aos meus olhos:
o amputado sente sua perna como eu posso sentir vivamente a existência de um amigo que não está, todavia, sob meus olhos; ele
não a perdeu porque continua a contar com ela, como Proust pode bem constatar a morte de sua avó sem a perder ainda enquanto a conserva no horizonte de sua vida. O braço fantasma não é a representação de braço, mas a presença ambivalente de um braço. A recusa da mutilação no caso do membro fantasma ou a recusa da deficiência na anosognose não são decisões deliberadas, não se passam no nível da consciência tética que toma posição explícita depois de ter considerado diferentes possíveis. A vontade de ter um corpo são ou a recusa do corpo doente não são formulados por eles mesmos, a experiência do braço amputado como presença ou do braço doente como ausente não são da ordem do ‘eu penso que...’
Pois bem, mas porque o membro continua a contar de modo privilegiado ao
sujeito, como se o passado “deformasse” o presente e não como algo que simplesmente se
“conserva no horizonte da vida do sujeito”, como é o caso da morte da avó de Proust?
Para respondermos isso, lembremos que o próprio termo quase-presença é
próximo do conceito de retenção em Husserl:
à medida que prossegue o processo de recordação iterativa, este horizonte abre-se de novas maneiras e torna-se mais vivo, mais rico. E, com isto, este horizonte preenche-se com acontecimentos interativamente recordados sempre novos. Os que antes eram apenas pré-indicados são agora quase-presencializados, quase no modo do presente atualizador. (Husserl 6, § 24)
Husserl nos abriria então a um “presente ampliado”, que envolve uma quase
presença do passado imediato e do futuro próximo. Mas isso significa que o amputado
faria desse passado algo que incessantemente se atualiza, um passado que sempre retoma
como sendo seu presente atual. Diríamos: o membro não está ali, mas o sujeito age como
se ele estivesse ali. Mas se algo é quase presente, isto significa que há algo nele que
não o deixa ser presente completamente – o passado não é totalmente transcendido,
ele permanece, de algum modo. Ou seja, “quase”, porque algo escapa e impede uma
identidade substancial dessa presença. Mas, no caso do amputado, diferentemente de
um sujeito normal, o passado vale para ele fixamente como quase-presente. No sujeito
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Ronaldo Manzi
normal, ele conta com essa quase-presença do passado, mas ele pode dar um novo sentido
a ele – é possível a todo o momento se “livrar” dele ao resignificá-lo.
Percebamos como este “contar com” está na raiz daquela “busca do tempo
perdido”. Como diz Gagnebin (in Benjamin 1, p. 15):
o golpe de gênio de Proust está em não ter escrito ‘memórias’, mas, justamente, uma ‘busca’, uma busca das analogias e das semelhanças entre o passado e o presente. Proust não reencontra o passado em si – que talvez fosse bastante insosso –, mas a presença do passado no presente e o presente que está lá, prefigurado no passado (...).
Para compreendermos isso melhor, tomemos como exemplo o caso do hábito.
Segundo Merleau-Ponty, um comportamento habitual seria uma aquisição de uma “esfera
primordial” de significações na própria motricidade do corpo. Na verdade, o hábito,
como se sabe, indica uma esfera “sedimentada” das nossas condutas sempre presentes
em nossas ações, sem com isso determiná-la, pois há sempre uma abertura possível nas
ações. O hábito teria assim a função de resposta imediata do corpo, sem que seja preciso
nos perguntar, a todo o momento, como agir diante da situação.
Trata-se então de uma “esfera constituída”, “já sabida”, que pode ser retomada
em toda situação parecida. Isso significa que meu corpo é capaz de agir sem que eu me
pergunte como agir. Por exemplo, estendo meu braço direito em direção a um cigarro e o
acendo, sem ter que me perguntar com qual braço irei realizar tais ações. Eu me “flagro”
fumando. Há assim um duplo movimento: uma sedimentação e uma espontaneidade
(Merleau-Ponty 11, p. 152), que se dão na própria ação.
Mas o hábito mostra também algo fundamental a Merleau-Ponty: uma atmosfera
de probabilidade. Quer dizer, se disponho de um saber frente a situações conhecidas,
ao mesmo tempo, eu posso agir diferentemente frente à mesma situação. Entretanto, é
provável que eu aja de um modo habitual, sem com isso excluir que “eu posso” agir de
(um) outro modo. Há sempre um “poder de agir” que transborda qualquer determinismo,
mas que não ignora a nossa história, nossos modos privilegiados de ação, pois é sempre a
partir desta história sedimentada que posso agir ou pensar (Merleau-Ponty 11, p. 453).
Isto significa que há uma situação de abertura na ação que não é simplesmente
determinada por sua história, mas que a motiva largamente. Noutras palavras, há sempre
um modo privilegiado de resolução de um problema que se baseia numa “história
sedimentada” que eu não posso simplesmente ignorar (Merleau-Ponty 11, p. 505).
Poderíamos concluir, grosso modo, com estas palavras: é através de algo fundado que
algo fundante pode aparecer (Merleau-Ponty 11, p. 451) — é a partir de uma esfera
sedimentada do corpo que podemos agir de um modo provável.
Essa análise do hábito está claramente relacionada ao exemplo do membro
fantasma. É essa probabilidade que o sujeito perde: ele se fixa num passado perdido
e age como se ele ainda valesse. Como se pudéssemos descrever um personagem que
encontra algum sentido na sua vida presente se filiando a um tempo perdido. Ou seja,
Merleau-Ponty articula aqui, uma certa fixidez, que se explica no recalcamento que nos
dizia Freud, com a “busca de um tempo perdido”, que nos aponta Proust.
Aqui vale lembrar mais uma vez de Benjamin. Não para explicarmos o caso
do membro fantasma, mas para ressoar essa quase-presença do passado no presente.
Notemos, por exemplo, essas linhas: “sabemos que Proust não descreveu em sua obra
uma vida como ela de fato foi, e sim uma vida lembrada por quem a viveu” (Benjamin 1,
p. 37). Ou seja, o importante para Proust não é descrever como o personagem viveu, mas
como seu passado vale para ele. O curioso é que Benjamin aproxima Proust de Freud por
outras vias, mas que não deixam de lembrar essa análise de Merleau-Ponty.
Comecemos lembrando como Freud se comparava a Schliemann, o descobridor
de Tróia: “tudo se passa como se Schliemann tivesse novamente descoberto a cidade de
Tróia, que se acreditava imaginária” (apud Gay 5, p. 170). Não se trata aqui apenas de
uma “imagem”, Freud quer destacar como algumas significações devem ser “escavadas”,
que a memória continua a valer para o sujeito, sendo ou não consciente dela1. Ora, mesmo
que Merleau-Ponty use o termo “sedimentação” se referindo explicitamente a Husserl,
não deixa de ser espantosa a aproximação:
naquilo que eu denomino a cada momento minha razão ou minhas idéias, se pudéssemos desenvolver todos os seus pressupostos, encontraríamos sempre experiências que não foram explicitadas, contribuições maciças do passado e do presente, toda uma ‘história
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sedimentada’ [Husserl] que não concerne somente a gênese de meu pensamento, mas que determina seu sentido (Merleau-Ponty 11, p. 452-453).
Retomemos novamente a Benjamin. Ele diz: a memória
é o meio onde se deu a vivência, assim como o solo é o meio no qual as antigas cidades que estão soterradas. Quem pretende se aproximar do próprio passado soterrado deve agir como um homem que escava. (...) As imagens que, desprendidas de todas as conexões mais primitivas, ficam como preciosidades nos sóbrios aposentos de nosso entendimento tardio, igual a torsos na galeria do colecionador (Benjamin 2, p. 239).
Para Benjamin, assim como para Merleau-Ponty, não se trata de um processo
acumulativo, ou mesmo progressivo. A memória é algo que, segundo Proust, ganha um
novo sentido ao surgir no presente, “transforma o passado porque este assume uma forma
nova, que poderia ter desaparecido no esquecimento; transforma o presente porque este
se revela como sendo a realização possível dessa promessa anterior, que poderia ter-se
perdido para sempre” (Gagnegin in Benjamin 1, p. 16).
Fico aqui tentado a lembrar uma passagem de Merleau-Ponty de um
curso de 54, onde ele diferencia uma certa “instituição animal” da “instituição propriamente
humana”, analisando a puberdade em Freud: “o próprio da instituição humana: um
passado que cria uma questão, a coloca em reserva, faz situação indefinidamente aberta.
Então, de uma só vez, o homem é mais ligado a seu passado que o animal, e mais aberto
ao futuro. O futuro pelo aprofundamento do passado” (Merleau-Ponty 10, p. 57). Logo
em seguida, Merleau-Ponty analisa a “instituição do sentimento”, retomando o amor de
Swann, do livro de Proust e diz: “a idéia de instituição é justamente essa: fundamento de
uma história pessoal através da contingência” (Merleau-Ponty 10, p. 73). Ora, não é isso
que Benjamin quer dizer ao afirmar que o trabalho de rememoração é espontâneo, já que
“(...) um acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo o
que veio antes e depois” (Benjamin 1, p. 37)?
Gostaria de concluir essa comunicação retomando aquela análise sobre o
membro fantasma. Com essa leitura de Proust à luz de Freud, parece-me que Merleau-
Ponty consegue dar uma nova dinâmica ao problema da temporalidade na Phénoménologie
de la Perception. É bem conhecido e bastante discutido o capítulo onde ele trata deste
problema. A idéia propriamente de protensão e retensão o leva a pensar numa “rede de
intencionalidades”, onde cada agora abstrato remete a uma perspectiva de outros agoras
abstratos passados, fazendo com que, todos os “agoras” se remetam a “perspectivas de
agoras” diferentes. Fico imaginando como poderíamos pensar aquele gráfico husserliano
a partir do problema do “membro fantasma”, ou seja, a partir de um trauma, de um
passado que insiste em permanecer presente. Talvez pudéssemos responder que esse
“acontecimento” se re-significa a todo o momento, assim como Proust dizia de uma busca
de um tempo perdido... Mas isso não iria justamente contra a sua própria idéia de fixação,
de uma “cristalização” de um passado que “se decide a não se tornar passado”? Ou será
que a idéia de fixação é tão plástica quanto a própria “rede de intencionalidades”?
REFERêNCIAS bIbLIogRáFICAS:
1. BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas I – Magia e técnica, arte e política. Tradução de Sérgio Paulo Rounanet. São Paulo: Brasiliense, 1994.
2. __________.Obras Escolhidas II – Rua de mão única. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho e José Carlos Martins Barbosa. São Paulo: Brasiliense, 1987.
3. CHAVES, Ernani. “Construções na história, construções em análise: presença de Freud na filosofia da história de Walter Benjamin”. In: SAFATLE, Vladimir; MANZI, Ronaldo Filho (orgs.). A filosofia após Freud. São Paulo: Humanitas, 2008.
4. FOUCAULT, Michel. Maladie mentale et psychologie. Paris: PUF, 2005.5. GAY, Peter. Freud. Uma vida para o nosso tempo. São Paulo: Companhia das Letras,
1989.6. HUSSERL, Edmund. Lições para uma Fenomenologia da Consciência Interna do
Tempo. Tradução de Pedro Alves. Lisboa: Imprensa Nacional da Moeda, 1994.
7. JASPER, Karl. Psicopatologia Geral Vol I. Tradução de Samuel Penna Aarão Reis. São Paulo: Livraria Atheneu, 1973.
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131
8. LACAN, Jacques. Le Seminaire II – Le moi dans la théorie de Freud et dans la technique de la psychanalyse. Paris: Éditions du Seuil, 1978.
9. LHERMITTE, Jean. L’Image de Notre Corps. Paris: L’Harmattan, 1998.10. MERLEAU-PONTY, Maurice. L’Institution, la Passivité. Paris: Belin, 2003.11. ______________. Phénoménologie de la Perception. Paris: Gallimard, 1967.12. SCHILDER, Paul. The Image and Appearance of the Human Body – Studies in the
Constructive Energies of the Psyche. New York: International Universities Press, 1950.
13. WAELHENS, Alphonse de. Une Philosophie de l’Ambiguité – L’Existentialisme de Maurice Merleau-Ponty. Louvain ; Paris : Publications Universitaires de Louvain; Éditions Beatrice-Nauwelaerts, 1968.
Proust in the light of Freud – Merleau-Ponty’s reading
Abstract: I attempt to approach in a short way how Merleau-Ponty, differing from the French tradition, reads Proust in the light of Freud, what allows him to insist on a fundamental problem of his phenomenology: the temporality. To deal with this, I will perform an inquiry of the possible intersection of the case of the phantom limb with the notion of sedimentation described by the philosopher. With this proceeding, we will understand Merleau-Ponty’s appeal to Proust’s written, specially to his concept of “time”. We will realize, however, that this appeal is largely in interface with notions of Freud’s clinic.Keywords: lost time; sedimentation; temporality; phantom limb; phenomenology
NoTAS
1. Trata-se de pensar no método da arqueologia moderna: conservar e destruir (Chaves 3, p. 39).
A vISÃO cOMO ABERTURA
alex de campos Moura*
Resumo: Este texto pretende propor um breve comentário sobre o início do ensaio O Olho e o Espírito de Merleau-Ponty. Fazendo um recorte no movimento mais amplo de reconfiguração ontológica sugerido no ensaio, busca-se aqui indicar como a análise do corpo feita pelo filósofo aponta já para um outro tipo de ser, conduzindo ao reconhecimento de uma imbricação interna entre o subjetivo e o objetivo. Procura-se mostrar que o corpo já revela a estrutura reversível que se reconhecerá em todo o percebido, marca da ontologia de Merleau-Ponty assentada na relação entre o visível e o invisível. Palavras-chave: Merleau-Ponty, ontologia, corpo, reversibilidade, visível
Nesta apresentação, procuraremos fazer um breve comentário sobre o ensaio
O Olho e o Espírito de Merleau-Ponty. Última obra publicada em vida pelo filósofo,
este texto retoma sua discussão a respeito da pintura e de suas possíveis implicações
filosóficas, sobretudo na formulação de uma ontologia capaz de escapar da alternativa
exclusiva entre o subjetivo e o objetivo1.
Tema constante ao longo dos trabalhos de Merleau-Ponty, a pintura ocupa desde
o início um importante papel em sua reflexão filosófica. Ela aparece, por exemplo, na
Fenomenologia da Percepção, apontando para um sentido que se mantém vinculado
ao percebido e para uma síntese não posicional que permanece atada à estruturação
interna dos elementos com os quais opera, aquém da cisão entre a atividade do sujeito e
a passividade do objeto2. Já ali, portanto, segundo nossa leitura, inserida no projeto mais
amplo do autor de uma reformulação ontológica.
Isso nos permite supor que o ensaio, na medida em que retoma esse projeto mais
geral, desdobra algo que já vinha sendo trabalhado pelo filósofo, prossegue acentuando
uma direção de pensamento já operante. Evidentemente, essa afirmação demanda um
trabalho que a comprove. Seria preciso, por exemplo, de um lado mostrar a presença
dessa temática no início da obra de Merleau-Ponty, e de outro indicar de que maneira
* Doutorando USP.
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Alex de Campos Moura
textos como O Olho e o Espírito se vinculam a esse primeiro período e não apenas a
textos de sua fase “intermediária”, como Signos e A Prosa do Mundo. A exposição desse
trabalho – que estamos procurando desenvolver em nossa pesquisa – tomaria um tempo
bem maior do que o que dispomos nesta apresentação.
Aqui, o que pretendemos trabalhar é um recorte bastante breve nesse percurso
mais amplo de reconfiguração ontológica: o movimento inicial do ensaio O Olho e o
Espírito, no qual Merleau-Ponty recorre ao corpo para começar a afastar-se da noção
clássica de sujeito e objeto. Longe de uma análise completa, o que apresentaremos é o
início da demarcação de uma problemática, apenas entrevendo algumas questões que um
estudo mais amplo do ensaio pode trazer.
O Olho e o Espírito inicia justamente pela afirmação desse projeto mais geral em
que suas descrições se inserem, retomando o propósito de recusar a ontologia implícita
pela ciência de sua época (Merleau-Ponty 1, p.275). Recuperando mais uma linha
constante em sua obra, Merleau-Ponty constrói seu argumento partindo da relação entre
ciência e ontologia, problema de que se ocupava desde a Estrutura do Comportamento,
obra que partia das descobertas da ciência para formular um tipo de estrutura capaz de
se oferecer como “terceiro gênero de ser”, escapando da cisão entre o ser em si e o ser
para si (Merleau-Ponty 2, p.201). A relação entre as duas áreas é também trabalhada,
por exemplo, no comentário do filósofo sobre o Grande Racionalismo característico do
século XVII, momento da história em que segundo ele ciência e metafísica encontraram
um fundamento comum e, sobretudo, em que o objeto da ciência deixou de ser tomado
como cânone da ontologia (Merleau-Ponty 3, p.417), fazendo com que o Ser deixasse de
se reduzir ao que dele falava o saber científico.
É quase em seu oposto que se coloca o cenário científico descrito por Merleau-
Ponty no início de O Olho e o Espírito. Voltando ao ensaio, ali é afirmado que a ciência
manipula os objetos e renuncia a habitá-los, constrói modelos, propõe teorias e as faz
passar livremente de um campo a outro, de uma ordem de objetos a outra. Ela se torna,
podemos supor, pensamento abstrato ou formal, razão instrumentalizada que domina
seu objeto recusando toda interioridade deste, “pensamento de sobrevôo” como afirma
constantemente o filósofo. Operando fora do objeto, esse pensamento recusa e mascara
seu vínculo com aquilo de que fala, ou seja, constrói seu tema ao invés de explicitá-lo.
Livre exercício de uma razão abstrata sem lugar e sem tempo, a ciência opera tacitamente
com o pressuposto ontológico de que o objeto é aquilo que é constituído pelo sujeito,
constructo sem consistência própria, e de que o sujeito é a instância constituinte, fonte
de toda significação e de todo sentido. Opera, pois, com a ontologia que separa sujeito e
objeto, fazendo do segundo não mais que uma expressão do poder absoluto do primeiro.
Não é gratuito, pois, que o primeiro movimento de Merleau-Ponty em seu
ensaio seja insistir na necessidade de repor esse pensamento aparentemente ilimitado em
sua dimensão corporal e situacional, reconhecendo o “há prévio” que prescinde do poder
constituinte do sujeito e do qual a ciência tenta a todo custo desvincular-se. Para isso,
será central seu recurso ao corpo, estrutura difusa que se colocará entre o subjetivo e o
objetivo, espécie de elemento híbrido que não se esgota em si, como o objeto, e não é fonte
absoluta de toda constiuição, como o sujeito3. Como procuraremos sugerir aqui, o corpo
começará a delinear a reversibilidade que a análise merleau-pontyana verá se desdobrar
em todo o mundo percebido, marca intrínseca do visível e do invisível. Não se trata, pois,
desse “(...) corpo possível do qual é lícito sustentar que é uma máquina de informação,
mas sim esse corpo atual que digo meu, a sentinela que se posta silenciosamente sob
minhas palavras e sob meus atos. É preciso que, com meu corpo, despertem os corpos
associados (...) que me assediam, que eu assedio, com quem eu assedio um só Ser atual,
presente, como jamais animal assediou os de sua espécie, seu território ou seu meio”
(Merleau-Ponty 1, p.276).
No original, o termo traduzido por assediar é “hanter”, no sentido de freqüentar
e obsedar o espírito, tornar-se termo constante do pensamento e da mente, obsessão e
fascinação. O interessante aqui é notar que quem responde por essa frequentação, quem
sai de si e se deixa capturar por outrem, não é um espírito cuja imaterialidade asseguraria
sua completa ausência de limites, mas o corpo, tão logo ele se ponha a ver e a ser visto,
isto é, tão logo ele exista no mundo4. Aberto e generalizado, é ele quem faz com que eu e
o outro partilhemos um Ser comum, participemos de um mesmo solo e sejamos capazes
de “passar” um no outro. O corpo começa a se revelar como uma estrutura reversível.
Isso significa, antes de tudo, que não estamos mais no campo de uma realidade
objetiva e empírica, do corpo como objeto idêntico e fechado sobre si, coisa regida por uma
causalidade mecânica cujas leis permitiriam total previsibilidade. Ao contrário, ele aqui
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Alex de Campos Moura
é abertura e passagem, dilatação e lacuna pelas quais o eu se ultrapassa e é ultrapassado.
Frequentação, o corpo se aproxima da volubilidade do espírito, começando a embaralhar
a suposta cisão entre um e outro, não sendo gratuito que ele seja definido por Merleau-
Ponty precisamente como um “entrelaçado de visão e de movimento” (Merleau-Ponty 1,
p.278), o que por si só põe em suspenso a noção tradicional do espírito como entidade
absolutamente separada: “[Essa superposição] impede concebermos a visão como uma
operação de pensamento que erguiria diante do espírito um quadro ou uma representação
do mundo, um mundo da imanência e da idealidade. Imerso no visível por seu corpo,
embora ele próprio visível, o vidente não se apropria daquilo que vê: só se aproxima dele
pelo olhar, abre-se para o mundo. E, por seu lado, esse mundo, do qual ele faz parte, não
é em si ou matéria” (Merleau-Ponty 1, p. 278).
Definindo o corpo como entrelaçado de movimento e visão, visibilidade móvel
e situada, Merleau-Ponty encarna a visão e assegura, como veremos, sua estrutura
cambiável, apresentando uma unidade que não aceita a diferença absoluta entre sujeito e
objeto, e que reafirma por isso a impossibilidade da ontologia clássica.
Comecemos pela encarnação do olhar. O vidente – estrutura corporal inserida
em um mundo – por ser situado, não pode abarcar seu objeto, não pode ser concebido
como saber absoluto, espírito em ato capaz de circunscrever na simultaneidade tudo o
que lhe aparece. Ver não é possuir o visto de ponta à ponta, mas “ter à distância”, relação
que preserva a ecceidade de seu termo. O sujeito não é posição, constituição de objetos
claros e distintos.
Correlativamente, o objeto deixa de ser um constructo, o mundo deixa de ser
uma matéria ou um em si ao qual meu gesto nada deveria, que nada diria às decisões do
espírito, pois agora cada movimento se revela “seqüência natural e amadurecimento” da
visão, isto é, prosseguimento de uma abertura que ele próprio não engendra, continuação
que desdobra uma “ausência” que o impede de responder inteiramente por si. O movimento
brota de sua relação espontânea com o mundo, conduzindo ao reconhecimento de uma
dimensão ativa presente no próprio percebido5, uma significação intrínseca ao objeto.
A constatação do corpo como visibilidade situada implica portanto um outro
sentido para o espírito e para o objeto. Mais ainda, ela implica uma estrutura híbrida
entre ambos, articulação do passivo e do ativo. Trazido para o sensível, o sujeito vidente
se torna ele próprio uma estrutura visível, isto é, ele se torna sensível para si e para
outrem, dotado de um “exterior” que o oferece à frequentação dos outros, que o torna
passível e vulnerável, participante de uma visibilidade mais ampla e geral da qual não
é o autor. O sujeito se descobre objeto.
Mas não se trata, recusado o espírito como entidade separada, de inseri-lo na
pura objetividade, e o vidente não se reduz a uma coisa vista. Ele permanece ativo, isto
é, esse visível é o mesmo que vê, o que é visto é o próprio vidente vendo. Eles não são,
como seria preciso mostrar, exatamente o mesmo e não se trata de recusar a ontologia
clássica recorrendo a uma filosofia da identidade6. Mas o que nos interessa nesse
momento é que essa espécie de simultaneidade não identitária do ativo e do passivo faz
com que não haja mais um atributo inequívoco capaz de separar completamente sujeito
e objeto, aquele que age daquele que padece.
Levando ao extremo as conseqüências dessa estrutura reversível do corpo,
é possível reconhecer como faz Merleau-Ponty que o visível e o vidente se fundem
na dinâmica de uma mesma unidade. Se o corpo é ao mesmo tempo aquele que vê
e que é visto, é preciso reconhecer que o visível é o próprio vidente, isto é, que o
sujeito é objeto e vice-versa. Esse “é”, bem entendido, não compreendido no sentido de
identidade ou de imanência, mas justamente como exigência de uma nova compreensão
e de um novo sentido do ser, capaz de abarcar a diferença dos termos sem recair em
sua mútua exclusão. É significativo, nessa direção, que os termos sujeito e objeto – que
em nossa apresentação usamos justamente para explicitar sua insuficiência frente às
descrições do filósofo – quase não aparecem mais no ensaio de Merleau-Ponty, ocupado
justamente em encaminhar uma nova perspectiva ontológica. Voltando à nossa questão
aqui, cabe indicar que é esse novo sentido do ser que a estrutura mista do corpo envolve,
confirmando sua significação ontológica.
Assim compreendido, o corpo é capaz de ver-se vendo, de tocar-se tocando,
ou seja, ele é capaz de realizar uma espécie de reflexão sobre si mesmo, operando o
encontro (não identitário) entre o agente e seu objeto – assim como na Tradição o Cogito
significava o encontro entre o ato de pensar e seu objeto pensado. Agora, porém, não é
mais uma consciência desengajada o ser capaz de reflexionar-se, e sim o corpo, visível-
vidente que reinventa a própria noção de “si”:
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Alex de Campos Moura
“É um si, não por transparência, como o pensamento, que só pensa o que quer que seja assimilando-o, constituindo-o, transformando-o em pensamento – mas um si por confusão, por narcisismo, por inerência daquele que vê naquilo que ele vê, daquele que toca naquilo que ele toca, do senciente no sentido – um si, portanto, que é tomado entre as coisas, que tem uma face e um dorso, um passado e um futuro...” (Merleau-Ponty 1, p.279)
Nessa reviravolta, muito distante dos modelos intelectualistas clássicos, o
si e o corpo se encontram. Mas o que se entende por esse “corpo-si”, por esse campo
misto, é outra coisa do que poderia supor a Tradição. O corpo não é mais um conjunto de
partes exteriormente ligadas, objeto vazio ao qual se ligaria de fora uma consciência; o
espírito não é mais um puro ato sem vínculos com o mundo, capaz de apreender-se e de
identificar-se a si. A “animação do corpo”, esse corpo-si que irradia e reflete no interior
mesmo do mundo e do sensível – experiência reflexiva concreta e essência encarnada –
nasce do entrecruzamento entre o subjetivo e o objetivo, entre o vidente e o visível, nessa
estrutura difusa em que a ação e seu objeto se misturam e se trocam constantemente.
Visível e móvel, o corpo é coisa e objeto. Vidente e auto-movente, ele é núcleo de ações
e sujeito. É nesse espaço comum que o corpo se coloca, não por opor-se ao espírito e sim
por ele próprio revelar-se espiritualizado, animado pelo “dom natural” de uma visão e de
uma experiência que embaralham os lugares e os limites entre aquele que vê e aquele que
é visto, entre sujeito e objeto.
O corpo abre, enfim, o campo de uma nova ontologia, cujo eixo, como
procuramos indicar aqui, se encontrará na recusa da positividade e da mútua exclusão
entre os termos com os quais opera, buscando na mediação dos opostos seu campo de
ação. Ela intensificará, assim, o esforço constante do pensamento de Merleau-Ponty em
sua tentativa de afastar-se da distinção clássica entre o ser como sujeito e o ser como
objeto, indicação da necessidade de se formular um tipo de ser que compreenda ambos,
sem recair em identidade ou cisão. Tomando como paradigma a reversibilidade da visão –
simultaneidade do ativo e do passivo, do visível e do invisível – essa ontologia recorrerá
ao “Ser bruto” para explicitar a comunicação interna entre unidade e diferença, entre o
sentido e a existência concreta. Não operará mais, portanto, com as noções de sujeito e
objeto como realidades distintas, e sim com uma estrutura unitária e reversível que faz de
um a afirmação indireta e implícita do outro.
REFERêNCIAS bIbLIogRáFICAS
1. MERLEAU-PONTY, Maurice. O Olho e o Espírito, In: Os Pensadores, São Paulo: Abril, 1975.
2. ________________________. La Structure du Comportement, Paris: PUF, 1990.3. ________________________. Partout et Nulle Part, In: Signes, Paris: Gallimard.
The vision as openness
Abstract: This text intends to do a short comment about the beginning of Merleau-Ponty’ s essay L’Oeil et l’Esprit. Making a cutting in the largest movement of ontological reconfiguration suggested by the essay, we try to indicate here how the body’s analysis done by the philosopher already points to another type of being, leading to the recognition of an internal relation between subject and object. We try to show that the body already presents the reversible structure that will be noticed in all perceived, mark of Merleau-Ponty’s ontology based in the relation between the visible and the invisible. Keywords: Merleau-Ponty, ontology, body, reversible, visible
138 139
Júlio Miranda Canhada
fIgURAS dE cONcEITO. SOBRE A lINgUAgEM EM MERlEAU-PONTy
Júlio Miranda canhada*
Resumo: Merleau-Ponty utiliza com freqüência em seus textos a figura da metáfora. À primeira vista, esse recurso teria papel funcional, ou seja, serviria para dizer de outra maneira, por meio de imagens, o mesmo referente. No entanto, estando ausente o ideal de representação e, portanto, ausente a referência objetiva, a figura da metáfora deverá ser compreendida, em Merleau-Ponty, não como ilustração acessória, mas como um uso da linguagem que modifica seu estatuto referencial. Ao conceber metaforicamente a linguagem da filosofia, Merleau-Ponty incorpora um procedimento próprio à narrativa literária, o que faz ver de que maneira estão relacionadas em sua obra filosofia e literatura, tanto no que diz respeito ao seu arranjo textual, quanto no diz respeito ao tema filosófico da linguagem.Palavras-chave: metáfora, linguagem, signo, literatura.
Maurice Blanchot, num texto em homenagem a Merleau-Ponty, escreve:
[...] o discurso filosófico é, em primeiro lugar, sem direito. Ele diz tudo ou poderia tudo dizer, no entanto não tem o poder de dizê-lo: é um possível sem poder. (Blanchot 1, p. 1)
A ausência de poder para o discurso filosófico é a ausência de um lugar seguro
onde o filósofo poderia fincar os pés, lugar que lhe permitiria lançar-se para a construção
de sua doutrina. Espécie de esconderijo mal-sucedido, a linguagem da filosofia revela
ao mesmo tempo em que mascara: distante da comunicação usual, camufla-se; próxima
de alguma pretensa universalidade, mostra-se. A possibilidade de tudo dizer situa-se no
entrecruzamento de seu interdito: sem ter o direito de tudo dizer, no entanto o faz.
Merleau-Ponty, fiel à homenagem póstuma de Blanchot, reconheceu e
trabalhou esse lugar problemático do discurso filosófico. Não haver direito para o modo
como se faz filosofia significa para ele ausência de garantia segura nos procedimentos
* Mestrando no Departamento de Filosofia da USP.
tradicionais de construção de conceitos. Frutos de convicção objetivista, nos seus mais
variados matizes, os conceitos da tradição filosófica operavam segundo a crença de que
seria possível descrever o mundo por meio de idéias fiéis e exatas, cópias de uma realidade,
diante da qual bastaria pesar e comparar os dados correspondentes. O reconhecimento da
insuficiência do modo como se construíam idéias filosóficas não tem como contrapartida,
no entanto, a proposta de que a filosofia deva ser inteiramente recriada a partir do zero.
Ou seja, ao lado da constatação de que, desde certo momento, tornou-se insustentável o
lugar da filosofia como farol privilegiado de observação e explicação do mundo, ao lado
dessa desconfiança, não há a expectativa de que seja encontrado outro local alto e isolado,
construído por um só homem, de onde se poderia abarcar tudo com a vista. Pelo contrário,
Merleau-Ponty trabalhará sobre edifício já levantado: somente aí, percorrendo o fio de
tentativas ensaiadas até agora, se conseguirá ver, com os mesmos olhos, mas de maneira
diferente, o modo como se articulam filosofia e o que está diante dela. Eis onde reside a
possibilidade do discurso filosófico tudo dizer, precisamente no deslocamento de olhares
anteriores.
Sintoma do lugar problemático ocupado pelo discurso filosófico, a metáfora
é recurso bastante utilizado por Merleau-Ponty. Os leitores habituados com seus
textos certamente se depararam com inúmeras passagens metafóricas, nas quais estão
presentes variadas imagens, adjetivos abundantes, e até mesmo certa ambientação
cênica. Essas características não seriam o sinal de que Merleau-Ponty estaria enredado
em dificuldades expressivas, no momento em que impõe para si a tarefa de trilhar rumo
filosófico novo? O recurso à metáfora não seria o índice de que, tendo constatado que
os meios expressivos tradicionais tornaram-se insuficientes, dever-se-ia buscar outra
linguagem filosófica, cujo funcionamento escaparia aos antigos e persistentes prejuízos
do entendimento? Sem dúvida, a tentativa filosófica de Merleau-Ponty abarca também
o modo como essa própria tentativa se apresenta, se mostra, o modo como se constitui
em discurso filosófico. À primeira vista, no entanto, poder-se-ia pensar que arranjo
discursivo e conteúdo filosófico não teriam implicação um no outro: dada a dificuldade
do que se busca expressar, Merleau-Ponty teria procurado apenas uma outra forma de
dizer determinado conteúdo - o qual, por si, não seria problemático. Pensando-se assim,
a metáfora assumiria papel funcional: seria um meio de dizer, com outras palavras,
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aquilo que no fim das contas já se tinha como claro. Pois, se se trata de uma escolha, para
a linguagem filosófica, entre um modo direto e objetivo, e outro indireto e metafórico,
por que não escolher o mais simples, o mais claro? Nesse registro em que se crê que
a forma de dizer e aquilo que é dito estão separados, a metáfora só poderá entrar na
conta do excessivo, do acessório e arriscado, porque daria chance a mal-entendidos
e interpretações variadas. Daí a acusação de que, por vezes, Merleau-Ponty tenha
confundido filosofia e literatura, trazendo para o discurso filosófico, o qual deveria ser
transparente e inequívoco, procedimentos próprios da narrativa e da ficção. Já em 1946,
Émile Bréhier perguntava a Merleau-Ponty se, ao invés de escrever filosofia, não lhe
teria sido mais conveniente escrever romances (Cf. Merleau-Ponty 4, p.78). No fim das
contas, seja como acusação, seja como elogio, o adjetivo “literário” dado ao discurso
filosófico pouco ajuda a compreender a maneira pela qual ele se constitui como discurso
problemático e, sobretudo, a maneira pela qual trabalha apresentação e conteúdo,
conjuntamente. Nesse sentido, como veremos, o recurso à metáfora, melhor que adorno
ou penduricalho, só poderá ser artifício necessário na obra de Merleau-Ponty.
Mas, antes de entrarmos diretamente no tema da metáfora e na função que cumpre
no discurso merleau-pontyano, vejamos a maneira pela qual Merleau-Ponty concebe
o funcionamento da linguagem em geral. Na esteira de Saussure e ao mesmo tempo
contra ele, Merleau-Ponty compreende a linguagem como formada por puras diferenças:
os signos, para que signifiquem algo, não precisam estar atados a algum referente que
lhes seja exclusivo, como se a cada significante correspondesse um significado. Isto é,
os signos lingüísticos têm por característica não o fato de serem um invólucro sonoro
de determinado objeto, mas, ao contrário, sendo pura negatividade, eles têm por
característica o fato de produzirem significação apenas pela relação que se estabelece
entre eles. O significado advém, portanto, entre os signos, pelo desvio produzido nessa
relação estritamente opositiva – o que lingüista e filósofo denominam caráter diacrítico
da língua. Desse modo, do fato do signo não possuir significado exclusivo decorre que
ele não representa propriamente alguma coisa. Pois a noção de cópia ou representação
pressupõe que haja uma adequação entre signo e objeto, palavra e coisa. Seja o objeto
tido como objeto natural, exterior, ‘parte da natureza’, seja como objeto interior, idéia
ou sentimento de um sujeito, o que se busca representar por meio de um nome é sempre
a tradução de algo que não está na linguagem, e diante do qual a linguagem tem que se
adequar. Para que haja representação, portanto, necessariamente deve haver um referente
exterior a ser representado, seja ele objetivo ou subjetivo. Ora, é justamente a noção
de referente que Merleau-Ponty pretende retirar da linguagem: se a língua é formada
apenas por termos negativos, sem vínculo natural entre palavra e coisa, então aquilo que
ela significa é também por ela criado, o significado não pertencendo ao lado de lá da
linguagem, mas estando estreitamente unido a ela.
Se significado e linguagem, portanto, devem ser compreendidos como não
separados, então os signos, como parte da língua, compondo com ela seu todo, também
não devem ser vistos de forma estanque. Ao chamarmos parte da língua seus signos e
todo da língua sua estrutura, devemos ter em vista que, ao contrário do que se poderia
imaginar, o significado não está definitivamente alojado na estrutura, como se ela fosse
o local determinante da significação. Quer dizer, para Merleau-Ponty, a relação entre
signo e significado não é uma relação na qual as partes da língua – que são os signos
desprovidos de significação positiva – lançam o sentido para um todo mais geral que eles
e que os determinaria. Contrariamente a Saussure, a verdade da linguagem não está na sua
estrutura, porque, se assim fosse, estaria reposto o que se pretendeu eliminar: se não há
referente natural para o signo, não pode haver, de maneira a compensar essa ausência, um
todo ou estrutura que determinasse de fora o sentido da linguagem. Aqui, mais uma vez,
Merleau-Ponty defenderá um critério interno de verdade da linguagem. Mas, se é assim,
caberia a questão: onde está aquilo que a linguagem significa?
Se o que a linguagem significa não está nem em algum referente natural, nem
num todo exterior às suas partes – a estrutura –, se seu sentido está intimamente engastado
nela, então, para que saibamos o lugar da verdade na linguagem, devemos perguntar: como
o sentido é criado, ou, dito de outra forma, como se estabelece a verdade da linguagem?
Merleau-Ponty imagina haver dois usos possíveis da linguagem:
Digamos que há duas linguagens: a linguagem de depois, que é adquirida, e que desaparece diante do sentido do qual ela tornou-se portadora, – e aquela que se faz no momento da expressão, que justamente vai fazer-me passar dos signos ao sentido, – a linguagem falada e a linguagem falante (Merleau-Ponty 2, p. 17).
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A distinção entre dois usos da linguagem obedece a um critério de criação de
sentido. Embora haja, verdadeiramente, ausência de referente natural no momento da
criação de sentido, a linguagem usual, a que opera no registro da comunicação cotidiana,
para que seja eficaz, funciona como se se referisse a algum objeto exterior. Quer dizer,
a linguagem falada, para que tenha sucesso na comunicação, opera no registro de uma
ilusão funcional da representação: nela, os falantes crêem que haja sob cada nome uma
coisa, sob cada signo o mesmo significado. Ora, é justamente esse vínculo aparentemente
natural entre palavra e coisa que a linguagem falante vem abalar. Porque ela cria sentido,
rompe o laço de representação entre signo e significado – laço eficaz, porém ilusório.
Ou melhor, tem como resultado justamente o fato de mostrar que a representação, pela
linguagem, de uma idéia ou coisa não é dada naturalmente, mas é como que o produto
apaziguado de um esforço que foi outrora criação. A linguagem falada, portanto, nada
mais faz do que repetir, reproduzir o que o outro tipo de linguagem, a linguagem falante,
criou, inventou. No momento em que se acreditava que determinado nome era a cópia
exata de um objeto ou idéia específica, como se se pudesse mapear e clarificar todas as
significações, confiante que o único critério para a validação da verdade era o critério de
adequação, nesse mesmo momento percebe-se, quando uma nova criação de sentido se
dá, que é o próprio critério de adequação entre palavra e coisa que é posto sob suspeita,
já que, ao criar-se um novo sentido, cria-se simultaneamente uma nova relação entre a
linguagem e aquilo que ela significa. Podemos ver, assim, que para Merleau-Ponty ocorre
uma espécie de inversão entre o que costumeiramente se chama de verdade e seu oposto,
a ficção. Pois a ficção, entendida como aquilo que não se pode observar ou verificar será
justamente a medida da verdade da linguagem; e inversamente, a verdade, entendida
como adequação de uma coisa a outra, cópia ou correspondência, representação de um
objeto por um nome, será apenas o resultado de uma operação expressiva que, essa sim, é
muito mais ampla que a mera tentativa de representação de coisas. Não é outro o motivo
pelo qual Merleau-Ponty tanto valoriza a arte moderna: abdicando do desejo de descrever
alguma realidade objetiva, foi justamente a arte moderna que, tendo rompido os laços que
uniam representante e representado, propôs novas formas de se ver o real, sem as lentes
dominadoras que o adequavam aos seus critérios tradicionais de representação.
Distante do ideal de representação, a linguagem, para Merleau-Ponty, ainda
assim, e talvez por isso mesmo, é capaz de produzir verdade. Ora, mas quando se trata do
próprio discurso filosófico, o recurso à metáfora não seria algo da ordem do puramente
fantasioso e apenas ilustrativo? Não estaria a metáfora ligada ao procedimento corriqueiro
e extra-filosófico da literatura? Nós já vimos, no entanto, que, levando-se a sério o fato de
que a linguagem, se por um lado parece somente denotar alguma referência objetiva, por
outro cria novas relações entre palavras e coisas, relações que, sedimentando-se, dão-nos
a impressão de que haja referentes naturais, vimos, portanto, que o recurso à metáfora,
visto como literário ou ficcional, não traz propriamente desvantagem à construção de
conceitos filosóficos. Examinemos um trecho de Merleau-Ponty retirado de A linguagem
indireta e as vozes do silêncio:
É que cada fragmento do mundo, – e em particular o mar, ora crivado de turbilhões e ondas, em penachos de cristas, ora maciço e imóvel em si mesmo, – contém todo tipo de figuras do ser, e, pela maneira com que responde ao ataque do olhar, evoca uma série de variantes possíveis e ensina, além dele, uma maneira geral de dizer o Ser (Merleau-Ponty 3, p. 90).
O mar como “uma maneira geral de dizer o Ser” equivale ao que Merleau-Ponty
denomina fenômeno da expressão. Mas o quê expressa o mar, ou, de outra maneira, a
quê o mar faria referência? Precisamos aqui lembrar o contexto de nossa citação. Neste
momento, tratava-se de examinar o modo como Renoir pintava o riacho das Lavadeiras.
Ao pretender figurar esse riacho, conta-se que Renoir não observara um ou outro riacho,
mas sim outro objeto, outro “referente”, o mar. Quer dizer, para que pudesse figurar
aquele fio d’água no qual algumas mulheres lavavam roupa, o pintor não precisou
procurar uma paisagem idêntica à que projetara em sua cabeça. Pelo contrário, prescindiu
completamente de alguma ‘parte da natureza’ que lhe desse as coordenadas exatas a
respeito do modo como se produz um retrato. O que causa surpresa nesse exemplo do
pintor em trabalho é que por meio dele evidencia-se como algo é pintado a partir de outra
coisa, o que nos faz ver que, no processo de criação, importa menos o referente explícito,
objetivo, do que o modo como se trabalha, o qual produz como que uma torção interna
entre o que se tinha como natural e o que se cria. Embora haja estreita relação entre o
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riacho pintado e o mar visto, importa notar que a compreensão do procedimento criador
como mera representação ou cópia do conteúdo visado não só não dá conta de explicar
esse caso específico das Lavadeiras, como resultaria em inevitável paradoxo.
Desse modo, a figura do mar cumpre bem o papel ocupado pela idéia de
expressão em Merleau-Ponty. Pois ela é, justamente, a prática do desvio entre um referente
aparentemente natural e a instituição de um sentido que, partindo desse referente usual,
desloca-o para outro plano, fazendo ver um novo arranjo entre objeto visado e resultado
expressivo. As próprias características do mar, evocadas por Merleau-Ponty por meio
de diversos adjetivos, insinuam tanto a dificuldade em representá-lo nos moldes de um
retrato fiel, seguindo-se alguma pretensão fotográfica, quanto, e principalmente, insinuam
que o próprio objeto, como que se movendo a si próprio, sugere múltiplas configurações,
culminando numa apropriação sua que resulta em outra coisa, o riacho das Lavadeiras,
resultado que pode mesmo dar a verdade daquele mar inicialmente visto. Como parte
da realidade, o mar visto imediatamente significa algo mais que ele mesmo, evoca uma
totalidade que, partindo dele, o supera e dá a medida de sua verdade, tal qual os signos que,
ao invés de dependerem de uma estrutura exterior a eles, conformam imediatamente essa
estrutura, ao mesmo tempo prescindindo de algum conhecimento prévio que determinaria
de antemão seu significado. A metáfora funciona, portanto, não como ilustração de um
conteúdo que, antes dela, já se bastava a si mesmo, ela não é da ordem do acessório ou
arriscado, mas, pelo contrário, ao provocar uma torção nas significações usuais e, junto
com elas, deslocar o referente inicial que lhe serviu de base, produz um novo referente
mais verdadeiro.
Sem dúvida, no momento em que Merleau-Ponty lança mão da metáfora para
construir seu discurso filosófico, ele acaba por avizinhar-se do modo como os romancistas
constroem suas narrativas. Mas podemos inferir daí que esses trechos metafóricos são
estrangeiros à prática filosófica, que são da ordem do puramente ficcional? Em primeiro
lugar, devemos levar em consideração que, se Merleau-Ponty deliberadamente utiliza
procedimentos da literatura, ele não os considera, mesmo do ponto de vista estritamente
artístico, como pertencentes a uma ordem autônoma de significação, absolutamente
separada de uma realidade entendida como simples e prosaica, não-artística. Aqui, não há
propriamente oposição estanque entre a ordem da criação e a ordem que lhe serviu de base,
o que faz com que a idéia de ficção como fantasia ou pura invenção perca sua força.
Mas [a obra de arte] não é arbitrária ou, como se diz, ficção. A pintura moderna, como em geral o pensamento moderno, nos obriga a admitir uma verdade que não se assemelhe às coisas, que seja sem modelo exterior, sem instrumentos de expressão predestinados, e que seja, no entanto, verdade (Merleau-Ponty 3, p. 92).
A arte moderna passou a desobrigar-se de representar objetos ou idéias. Isso
significa, por um lado, que nela não há mais a crença na possibilidade de reproduzir
um retrato fiel da realidade, ou, o que é seu correlato, produzir uma ordem narrativa
absolutamente autônoma em relação ao mundo empírico; pois, por outro lado, a
expectativa de se criar uma esfera puramente literária, como se ela expressasse nada mais
do que os sentimentos íntimos do autor, essa crença romântica também não faz mais
parte da arte moderna. Estão ausentes, portanto, tanto o desejo de reproduzir fielmente
alguma objetividade, quanto pôr em palavras, qual uma confissão ou testamento, as
afecções privadas de um indivíduo. Considerada nesses dois sentidos, a ficção deixou de
estar presente na arte, e é por esse motivo que Merleau-Ponty diz não haver uma esfera
autônoma puramente ficcional.
[...] se a obra literária, e em particular a metáfora, suspendem a referência ordinária, não é para se refugiar na emoção, mas para fazer aparecer, não uma outra referência, mas um outro estatuto da referência (Barbaras 5, p. 273).
A metáfora, portanto, seja no registro próprio da arte, seja, subsidiariamente,
no registro do discurso filosófico, não é artifício que visa maquiar determinações
exteriores a ela, mas, pelo contrário, ela também cria aquilo a quê ela inicialmente se
refere. Procedimento por excelência da narrativa literária, a metáfora é incorporada
por Merleau-Ponty como se ele estivesse diante de uma experiência irrecusável
(experiência histórica, poderíamos dizer), na qual entraram em descrédito formas usuais
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de representação, e ganhou valor uma interrogação a respeito do próprio modo de se
figurar o mundo. A experiência iniciada pela arte moderna, portanto, para Merleau-Ponty,
fornece o modelo do que seja a própria experiência filosófica. Isso aparece tanto na letra
de nosso autor, no modo como constrói seus conceitos, no seu arranjo discursivo, quanto
na própria elaboração positiva do tema filosófico da linguagem. Como vimos, se os
signos articulam-se de maneira opositiva, não necessitando de nenhum referente natural
nem de uma estrutura que os determinasse de fora; se a linguagem falante, partindo de
significações usuais (que é o registro da linguagem falada ou de uma ilusão funcional da
representação), se ela produz uma torção ou desvio em referentes aparentemente naturais,
então podemos ver que aquilo que Merleau-Ponty compreende por criação de sentido, o
que denomina expressão, está intimamente ligado ao modo como seu discurso filosófico
se desenvolve, este tendo como modelo a maneira pela qual a arte moderna trabalha. O
recurso à metáfora é um exemplo que faz ver como um procedimento usualmente literário
pode ser filosoficamente apropriado e, sobretudo, faz ver como estão articulados filosofia
e seu modo de apresentação.
Havíamos visto, inicialmente, que, tal como Blanchot descrevera, Merleau-Ponty
trabalhou e reconheceu o discurso filosófico como problemático. Causa dessa situação
desconfortável era o esgotamento do que Merleau-Ponty chama “prosa do conceito”:
herdeira dos prejuízos do entendimento, os quais impunham todos uma estrita separação
entre interior e exterior, que acarretava uma maneira dualista de ver o mundo, ela impedia
que se visse mais longe, além das determinações que apenas o sujeito atribuía ao mundo.
Ora, mas como lidar com um discurso que escape a isso? Vimos que esse discurso deve
reconhecer que todo referente que lhe pareça natural, que dê a impressão de um solo firme
de significações prontas, deve ser colocado sob suspeita. Essa tentativa, desse modo, deve
trilhar rumo novo, sem nenhuma garantia prévia de seu resultado. Mas, por outro lado,
para Merleau-Ponty, é a própria arte moderna que pode sinalizar o caminho a se seguir,
tanto pelo fato de buscar uma “perfeição sem modelo”, quanto pelo fato de não pretender
que a obra esteja definitivamente pronta, acabada. É aqui, aliás, que se juntam discurso
filosófico e ato de leitura, cabendo a esse último o lugar de complemento e, por assim
dizer, acabamento do sentido da obra.
Mas por uma lei singular e aliás providencial da ótica dos espíritos (lei que talvez signifique que não podemos receber a verdade de ninguém, e que devemos criá-la nós mesmos), o que é o término da sabedoria [dos autores] não nos aparece senão como o começo da nossa, de maneira que, no momento em que eles disseram tudo que nos poderiam dizer, fazem nascer em nós o sentimento de que ainda não nos disseram nada (Proust 6, p. 260-1).
Tópica por excelência da arte moderna e assumida por Merleau-Ponty como
característica essencial à filosofia, o inacabamento da obra, sua incontornável abertura
faz com que o texto extrapole os limites de suas páginas. Por meio da metáfora, Merleau-
Ponty incorpora produtivamente a não-filosofia, sem pretender dominá-la; por meio dela, o
arranjo lógico dos conceitos é alargado; toda a tradição, por fim, é assumida e reformulada,
dando a ver o que nela não aparecia. O discurso filosófico, por ser problemático, isto
é, por não conter todas as explicações definitivas alojadas nele, convoca o leitor como
terceiro termo decisivo entre a letra e seu sentido. Instância notadamente política, o ato
de leitura é aquilo que, exigido pelo texto, o transforma em obra.
REFERêNCIAS bIbLIogRáFICAS
1. BLANCHOT, M. Le discours philosophique, in L’Arc. Merleau-Ponty, 46, Aix-en-Provence, 1971.
2. MERLEAU-PONTY, M. La science et l’expérience de l’expression, in La prose du monde, Paris: Gallimard Tel, 1999.
3. MERLEAU-PONTY, M. Le langage indirect et les voix du silence, in Signes, Paris: Gallimard Folio, 2003.
4. MERLEAU-PONTY, M. Le primat de la perception et ses conséquences philosophiques, Paris: Verdier, 2004.
5. BARBARAS, R. Métaphore et ontologie, in Le tournant de l´expérience, Paris: Vrin, 1998.
6. PROUST, M. Journées de lecture, in Pastiches et mélanges, Paris: Gallimard, 2005.
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Figures of concept. on the language in Merleau-Ponty
Abstract: Merleau-Ponty frequently uses metaphors in his texts. At first sight, such resource would have a functional role, that is, it would allow him to say the same in another way, through images. However, in the absence of the ideal of representation, and therefore of objective reference, the figure must be understood not as an accessory illustration, but as a use of language that modifies its referential status. By metaphorically conceiving the language of philosophy, Merleau-Ponty incorporates a procedure from literary narrative, thus revealing in which way philosophy and language relate in his work, in what concerns both its textual arrangement, and the philosophical problem of language.Keywords: metaphor, language, sign, literature.
MERlEAU-PONTy E O “gRANdE RAcIONAlISMO”: qUE É lER UM clÁSSIcO?
José luiz B. neves*
Resumo: Procura-se mostrar como aquilo a que chamam a “teoria da leitura” merleau-pontiana, calcada na meditação do impensado de outros filósofos, surge apenas no interior de seu projeto ontológico e, mais precisamente, no âmbito das conseqüências que ele traz para a compreensão da idealidade. É assim que a “história da filosofia” só ganha sentido na filosofia de Merleau-Ponty uma vez assumidas decisões filosóficas prévias como a de, para inscrever a significação no domínio do sensível, sublinhar as dimensões passivas da experiência anteriores e fundantes face aos atos expressos da consciência. Tal débito da “teoria da leitura” à problemática estritamente merleau-pontiana da significação assinala, por sua vez, certos limites para o reaproveitamento aparentemente neutro desse modo de leitura em outras paragens filosóficas.Palavras-chave: história da filosofia, leitura, obra de pensamento, sedimentação, idealidade.
Que pensar do tema desta jornada, “Merleau-Ponty e o Grande Racionalismo”****?
É sabido que, em filosofia, a formulação de uma pergunta quase sempre vem junto com o
modo de respondê-la. É o que ocorre aqui, quando a justaposição de dois nomes próprios
nos leva quase espontaneamente a perguntar sobre as relações, influências ou interferências
de um sobre o outro, assumindo de antemão os dois termos como auto-evidentes. Em que
medida a filosofia do século XVII influenciou ou continua presente em Merleau-Ponty?
Ou então: de que modo a ontologia negativa evita as ingenuidades do infinito positivo?
Numa pergunta como noutra, parece que assumimos demais: o Grande Racionalismo
não surge como tal apenas para um leitor externo, que decide arbitrariamente ver numa
multiplicidade de filósofos a manifestação de um só grande movimento? Afinal, poderíamos
sempre o decompor em sistemas exteriores entre si e auto-suficientes. A ordem das razões
de Descartes, considerada em si mesma, não deveria nada ao more geometrico espinosano,
nem este à monadologia. Dizer que esses sistemas comungam no mesmo subentendido do
* Mestrando no Departamento de Filosofia da FFLCH – USP.** Texto apresentado na jornada “Merleau-Ponty e o Grande Racionalismo”, no Departamento de Filosofia da USP, em novembro de 2008. Preferi conservar o tom oral do texto, alterando uma ou outra frase que podia se prestar a equívocos.
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José Luiz B. Neves
infinito positivo, - e desde então agrupá-los sob a rubrica vaga de “Grande Racionalismo”
-, seria uma generalidade vazia, adequada talvez aos manuais escolares, mas que nada
diria de específico sobre os sistemas filosóficos em si. O único pressuposto do método
estrutural em história da filosofia, como se dizia há mais ou menos cinqüenta anos, é a
coerência interna dos sistemas. Assim, se o nome “Grande Racionalismo” pode surgir, ele
só tem uso para um leitor externo ao objeto e avesso ao rigor historiográfico: convertendo a
multiplicidade daqueles sistemas em um só “Grande Racionalismo”, Merleau-Ponty daria
sentido ao conjunto, mas nos deixaria a léguas de distância dos sistemas considerados em
si mesmos. Mas então, por que se dirigir a eles? Se neles vai encontrar apenas o que neles
pôs, não teria sido melhor evitar todo o trabalho?
Contudo, também a objeção supõe demais. De início, não é verdade que a idéia
de “sistemas em-si” seja filosoficamente neutra, nem que o único pressuposto do método
estrutural seja a coerência interna dos sistemas: ele supõe também, pelo menos, a lisura
de uma linguagem cujo sentido se esgotaria naquilo que ela explicita, uma linguagem
senão plenamente constituída em ato, pelo menos constituível de direito. É só com
esse ideal de linguagem pura que é possível o segundo passo do método, qual seja a
objetivação das filosofias em sistemas-em-si; pois só uma vez assumida a linguagem
como plenamente explicitável pode-se querer, então, que um sistema filosófico também
ele explicite seu sentido sem deixar lacunas extra-sistêmicas1. Condição necessária,
porém não suficiente. Restaria considerar o sujeito que realiza essa objetivação: é como
se a imagem de neutralidade ontológica do método só surgisse jogando para debaixo do
tapete a subjetividade do historiador, esquecendo-se que seu “interesse de conhecimento”
ainda é um interesse e que só ele pode dar sentido ao suposto objeto em-si. Ora, se é
assim, teremos de dizer que sobrariam apenas filósofos para-mim na história da filosofia,
e que toda leitura deforma o original de algum modo? Isso seria reconhecer, no limite, que
não há uma “história da filosofia” que não seja ela própria sustentada por uma filosofia
particular, confessada ou não.
Mas será mesmo assim? Talvez a alternativa à objetivação da filosofia em
sistemas em-si, exteriores uns aos outros e rivais, não seja a dissolução de todas as
filosofias em uma só. Isso seria sugerir que ler um clássico em filosofia não é nem tomá-
lo como objeto em-si, totalmente determinável e exposto diante de mim – o que tornaria
a boa leitura uma adequatio -, nem fazer dele espelho de minha própria leitura, em que
eu faria disfarçadamente as perguntas e as respostas desse suposto diálogo. O clássico
resistiria a esses modos de leitura inversamente simétricos, objetivista e subjetivista.
Sob essas condições, talvez valha a pena conservar o tema inicialmente sugerido, mas
reajustando o foco e admitindo esta questão anterior: como Merleau-Ponty lê um clássico
da história da filosofia, que é ler um clássico? Ou ainda, qual a filosofia da “história da
filosofia” que sustenta o título de nossa jornada?
Questão aparentemente banal, mas apenas “aparentemente”: para ter certeza
disso, basta que consultemos um filósofo para quem ela não guardaria muito sentido. Que
se entende normalmente por “ler um clássico da história da filosofia”, ou então, como se
lê? Vou à biblioteca e tomo da estante as Meditações metafísicas. Em seu tempo, Descartes
as escreveu contra o ceticismo e contra as escolas, defendendo - contra esses inimigos
históricos precisos - um certo tipo de sujeito, de método, de verdade etc. Recolocadas
em sua situação, as Meditações eram uma ação, um engajamento de Descartes através da
prosa. Ora, o que acontece quando, num século que não tem mais as mesmas questões que
o XVII, abro Descartes em meu gabinete? Das duas, uma: ou ele se torna um conjunto de
proposições claras, um sistema que se sustenta por si só mas não tem nada a dizer sobre
o mundo exterior; ou então – e isso é apenas um simétrico oposto do primeiro – ele me
fornece “mensagens”: isto é, ensinamentos atemporais sobre a relação de alma e corpo,
sobre as paixões, sobre Deus etc. Em um caso como noutro, Descartes lido hoje torna-
se objeto morto, e o leitor de biblioteca é seu coveiro. A Biblioteca é um cemitério, e “o
clássico” – monumento de cultura para deleite de leitores filisteus – é apenas um outro
nome para uma obra reificada.
Em todo caso, é mais ou menos assim que raciocina Sartre em Que é a literatura2.
Para ele, a expressão “ler um clássico” parece problemática: ou bem se “lê um clássico”
– e a atividade do leitor desfaz a petrificação da obra, que não é mais “um clássico” em
sentido usual; ou bem se “lê um clássico” – e o leitor se petrifica junto com o livro: não lê,
consome. Ali, o eixo de seu argumento estava em minimizar a autonomia ou historicidade
próprias da obra em benefício da atividade atual do leitor, fonte doadora de sentido. No
ponto de partida estava a distinção entre a prosa e as demais artes, com base nos diferentes
modos pelo qual operam os signos. Sobre a pintura, Sartre diz:
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José Luiz B. Neves
“Aquele rasgo amarelo no céu sobre o Gólgota, Tintoretto não o escolheu para significar angústia (...). É uma angústia feita coisa” (Sartre 8, p.11).
A pintura não é linguagem pois não significa, não nos reenvia a um significado
que não é ela mesma e do qual ela seria signo. Ela é coisa, quer dizer, não pode referir a
nada de externo a ela, ou – o que dá no mesmo – seu sentido se consome nela própria3.
Daí porque a diferença com a prosa, que comunicaria, isto é, faria o leitor visar o sentido
do qual as palavras são meros índices. E já que o sentido da pintura se consome nela
própria – o que é também dizer que ela não tem sentido, já que sentido, em idioma
fenomenológico, é reenvio do dado ao não-dado – ela também não tem nada que ver com
a verdade ou com a elucidação de um estado de coisas4. O que acontece com a pintura,
acontece também com a poesia5. Pois, se a poesia trabalha com a linguagem, ela faz
entretanto uso simbólico e não signitivo das palavras: para ela o essencial é o meio da
linguagem (sua matéria sensível, a sonoridade e o ritmo das palavras) e não sua finalidade
(a apresentação de significados e a comunicação):
“Os poetas – diz Sartre – são homens que se recusam a utilizar a linguagem. Ora, como é na linguagem e pela linguagem, concebida como uma espécie de instrumento, que se opera a busca da verdade, não se deve imaginar que os poetas pretendem discernir o verdadeiro, ou dá-lo a conhecer.” (Sartre 8, p.13).
Ora, o que é que Sartre pensa da prosa para poder criticar desse modo a linguagem
poética? A prosa é sobretudo meio de comunicação: mais precisamente, é meio translúcido
através do qual viso o significado. “Há prosa – diz Sartre citando Valéry – quando nosso
olhar atravessa a palavra como o sol atravessa o vidro” (Sartre 8, p.19), o que é dizer
que, sendo vidro, a palavra – componente material e sensível da linguagem – não tem ela
própria sentido imanente, é uma hylé neutra. E, assim sendo, o sentido surge só quando a
matéria for apreendida como x, visada como outra coisa que não ela mesma por um ato
centrífugo do leitor. Se vejo numa folha de papel um traço reto, o que faz com que ele não
seja um mero traço, mas o sinal matemático de subtração, é um ato da minha consciência
que passa da matéria sensível dada a seu sentido não-dado. Por si só, o traço é mero traço
– é coisa. Ele só ganha o sentido de “sinal de subtração” quando visado como algo que
não é o arabesco, e quem faz essa passagem é um ato da consciência, ou, no caso em tela,
o leitor de prosa. É ele é o pólo eminentemente produtivo, e o meio lingüístico através
do qual ele exerce seus poderes torna-se tendencialmente inerte, sem sentido imanente, à
medida que a atividade é concentrada no pólo subjetivo. Donde o caráter instrumental da
prosa: “...a prosa, diz Sartre, não é senão o instrumento privilegiado de certa atividade”
(Sartre 8, p. 19). Já se vê então o que é a prosa para Sartre: ela é o meio translúcido no
qual duas atividades se confrontam – o autor, subjetividade que faz aparecer através de
signos os significados que visa; só que, para eles para não permanecerem meros signos,
é exigida então uma segunda atividade, a do leitor, que faz o caminho de volta, passando
deles (dados) ao sentido (não-dado). Só assim o livro não é coisa, mas objeto literário.
Mas se passa aqui de quê a quê, precisamente? Do mesmo modo que o sentido
não é o significado, mas antes o reenvio de um termo a outro, também o leitor não se limita
a passar das palavras dadas ao referente positivo que o autor teria visado inicialmente.
Nem no signo, nem no significado, o essencial está no próprio passar de um a outro, sem
fixar ou substancializar qualquer um dos pólos. Substancializar o signo é convertê-lo em
poesia, e perder o fato de que significa algo; substancializar o significado é convertê-lo
em mensagens, “aquilo que o escritor queria dizer”. Se o essencial não está nos pólos mas
na pura passagem, é que o essencial está no encontro de duas atividades de que a prosa
é palco: a liberdade do escritor – que se engaja pelas letras – e a liberdade do leitor, que
passa das letras àquilo a que devem seu sentido, o autor - que não é coisa, mas “liberdade
para se engajar”.
A uma matéria que é pura transparência corresponde uma subjetividade que é
pura luz. Não se trata de dizer que o sentido está nessa subjetividade – o que seria voltar
à interioridade –, já que ela é Nada: sendo atividade pura, não tem qualquer conteúdo
próprio, é apenas um dirigir-se a... Está assim sempre engajada na história, no Ser, etc. O
Nada só (é) nadificando, e o engajamento literário exprime disso. A tese segundo a qual
o sensível não pode ter sentido imanente (independente dos projetos do Para Si) é apenas
um avatar desse dualismo sartreano, no qual a atividade vem do pólo Para Si. No limite, o
que está entre o Para Si e o Em Si é sempre segundo face a um projeto inaugural do Para
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Si de quebrar o Em Si6. É o que permite Merleau-Ponty dizer que “o entre-dois, isto é,
o livro tomado segundo a significação que lhe damos normalmente, e as mudanças com
o tempo dessa leitura, a maneira pela qual essas camadas de sentido se acumulam ou se
deslocam um a outra, ou mesmo se completam, em suma, a ‘metamorfose’ do livro e a
história de seu sentido, e minha leitura recolocada nessa história, compreendida por ela,
inserida por ela numa verdade provisória desse livro, nada disso, para Sartre, impede que
a forma canônica do sentido seja aquela que eu faço ser ao ler, eu, e que minha leitura,
formalmente considerada, seja a medida de toda outra” (Merleau-Ponty 3, p.196).
É por isso que, para Sartre, a divisa “ler um clássico” não tem muito valor: contra
o que pensa o senso comum, o clássico não pode, em última instância, dizer sempre mais
do que lemos atualmente nele – isso seria substancializá-lo, dar-lhe independência face ao
leitor. Tampouco pode nos ensinar coisas de que não sabemos: isso seria converter a obra
em mensagens atemporais7. Em qualquer caso, se se preserva algo no clássico que excede
a atividade presente de leitura, é que se apaga a liberdade do leitor.
Que torções Merleau-Ponty terá de produzir no argumento para reabilitar a
expressão “ler um clássico”, que não seja mais culto de cemitério? Seria preciso remontar
até o dualismo de Para Si e Em Si, fundamento da tese – que se trata de rejeitar – segundo
a qual o sensível não pode ter sentido imanente, devendo-o sempre a um projeto inaugural
do Para Si. Evidentemente, não é o caso aqui de acompanhar Merleau-Ponty até àquelas
paragens de ontologia fenomenológica. Contentemo-nos em ver – o que é suficiente para
a questão que estamos perseguindo – como Merleau-Ponty reabilita um sentido imanente,
uma historicidade própria para o clássico (o que exigirá dele o desvelamento de um modo
de ser que não seja nem o do Para Si, nem o do Em Si, mas que, mais original que eles,
esteja no entre-dois). Se assim for, não precisará fazer toda atividade dever-se em última
instância aos atos centrífugos do leitor e do escritor. Será o caso de abandonar a atividade
do leitor? Não, mas de dizer que ela é momento da própria obra, e que portanto não é
atividade pura, mas atividade-passividade. Mas, com isso, veremos que o clássico já não
é mais o clássico no sentido do senso comum – que Sartre parecia aceitar para rejeitá-lo
–, não podendo ser separado da tradição que ele funda. O clássico para nós, dirá Merleau-
Ponty, o modo pelo qual ele nos vem à presença, não é nem em si, nem para si, ele é “obra
+ tradição”.
Será então no interior de um outro projeto ontológico que a idéia de “ler um
clássico” pode ganhar sentido. Apenas ele garantirá que a comunidade sucessiva de
leitores, ao pensar diferentemente um mesmo autor, não está traindo, mas continuando
sua obra, o que permite que a própria obra seja ativa, produzindo-se a si mesma através de
suas leituras, restar falante além dos enunciados explícitos. Mas para ver o que isso quer
dizer, tomemos o texto que abre o ensaio “O filósofo e sua sombra”8. O caso em tela é a
leitura do impensado de Husserl, mas vale para todo clássico:
“A tradição é esquecimento das origens, dizia o último Husserl. Justamente se devemos muito a ele, não estamos em condições de ver exatamente o que lhe pertence. A respeito de um filósofo cujo empreendimento despertou tantos ecos, e aparentemente tão longe do ponto em que se mantinha, qualquer comemoração é também traição, quer lhe prestemos a homenagem muito supérflua de nossos pensamentos, como para lhes encontrar um fiador ao qual eles não têm direito – quer, ao contrário, com um respeito que não deixa de ser distante, reduzamo-lo muito estritamente ao que ele mesmo quis e disse...” (Merleau-Ponty 2, p.201).
Há dois modos de falsear um filósofo: fazer dele um mero álibi de meus próprios
pensamentos, ou, ao contrário, reduzi-lo à letra, à sua filosofia visível que nos chega pelos
textos. Nos dois casos, o leitor se julga externo à obra lida. Mas isso é prejulgar quanto
ao modo de ser da obra, que não é objeto disposto diante do leitor, mas “obra + tradição”:
entre Husserl e o movimento fenomenológico no qual o leitor se insere e que o forma não
há descontinuidade pura, e se ainda assim houver diferença, ela não é da ordem do claro
e distinto: “não estamos em condição de ver o que exatamente lhe pertence”. Na verdade,
a exterioridade entre leitor e obra, a objetivação da obra e sua interpretação como ser-
disposto diante do leitor, pressupõe (e não explicita) a presença da obra ao leitor, um
campo comum que torna a relação entre eles possível. Esse campo comum é precisamente
a tradição que a obra funda, e por isso, nessa camada mais originária da presença, não faz
sentido separar nitidamente Husserl e o husserlianismo: Husserl para nós (sua presença
prévia a partir da qual é possível a objetivação, interpretação particular e segunda do
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modo dessa presença) é Husserl mais o que ele fundou, a tradição.
Mas “a tradição é esquecimento das origens”, havendo então, supostamente,
diferença e descontinuidade entre um e outro. Que entender aqui por “esquecimento”?
Em primeiro lugar, já sabemos que é o modo pelo qual as origens vêm à presença, e que
não haveria como ter acesso direito à obra sem essa tradição interposta, já que é o campo
comum entre eu e ela. Era Sartre quem acreditava poder separar o absoluto Descartes
– aquele que existiu, engajou-se, escreveu tais livros – do cartesianismo, essa filosofia
errante e inapreensível porque diferente em cada um dos cartesianos9. Descartes é uno e
idêntico a si mesmo, o cartesianismo é multiplicidade de leitores. Exteriores entre si, não
pode haver relação: Descartes é inteiramente presente a si, e os leitores não continuam
uma interrogação começada com Descartes, eles recomeçam tudo do zero por sua própria
conta. Mas se as fronteiras entre um e outro não são tão claras assim, e se Descartes é
mais que um homem e um livro, se seu cogito é mais do que evento pessoal e menos do
que essência pura, é preciso que entre ele seus leitores haja um campo de presença no qual
estejam imbricados e no qual a idealidade se ancore e tenha uma história. Esquecimento
das origens, a tradição é ao mesmo tempo constitutiva da obra, já que esta simplesmente
não se apresentaria a nós se não fosse através daquela, se não fosse sedimentando-se
como uma tradição visível.
Sem dúvida, a tradição não é a origem (num juízo de identidade): é origem
sedimentada, e o que era criação e inaudito naquela torna-se usual e corriqueiro nesta,
e o que era novidade torna-se disponível. A obra criadora, falante, torna-se fala falada.
Assim, o cogito que se pronuncia após Descartes não tem a força que tinha em Descartes,
contra os céticos e contra as escolas; nos cartesianos, ele se torna um conceito adquirido.
Mas é o preço que o pensamento paga para deixar de ser evento privado e ganhar duração
pública, abrindo um campo em que outros vão pensar, em que poderá ter uma quase-
objetividade e ser comunicado10. Desse modo, a noção de sedimentação vai aos poucos
substituir a de constituição fenomenológica, substituição que se tornara necessária desde
o bloqueio redução transcendental. Se a redução não consegue pôr entre parêntese a
implicação do filósofo no mundo (a começar pela linguagem, que para Merleau-Ponty não
é passível de purificação lógico-gramatical), então a atitude transcendental é impostura
profissional do filósofo e a constituição não pode dar origem a essências puras. Trata-se
de compreender o modo de ser da idealidade sem introduzir algum corte entre espírito e
natureza, sujeito e mundo percebido (o que seria fazer o jogo dos idealistas), nem assumir
entre eles uma continuidade causal (o que seria tornar a idealidade um ser real e incorrer
conseqüentemente em psicologismo). Com a sedimentação, o cogito não é mais evento
psicológico de Descartes, mas também não é essência pura, sem história e sem gênese:
continuidade e descontinuidade em relação ao mundo percebido, a sedimentação é o
modo pelo qual a idealidade é ancorada no visível como dimensão.
A sedimentação comporta duas faces: aquilo que se sedimenta e o sedimentado,
as origens e a tradição, falante e falado. Entretanto, elas não se opõem como o antes e o
depois, ainda que possam sugerir essa imagem da sucessão (e portanto a idéia de que se
desenrolaria no tempo empírico). Que se tome o caso da linguagem, em que as duas faces
de Janus reaparecem nos termos de fala falante e fala falada. A fala falante, instituinte de
sentido novo, utiliza o material disponível da língua e lhe impinge uma torção a partir
da qual algo novo, que não estava disponível, é dito. Criado o novo significado, ele logo
se sedimenta e passa a fazer parte do corriqueiro, do disponível, torna-se fala falada. A
impressão de sucessão parece vir naturalmente: aquilo que era criação perde a novidade
e se torna, depois de ser criado, disponível. Ou então se dirá que o sedimentado é ilusão
retrospectiva: achamos hoje que ele é algo de adquirido, mas a seu tempo foi criação.
Ora, em um caso como noutro, supõe-se que a criação e a sedimentação são momentos
separados, ou pelo menos, que são separáveis por análise. Mas não é assim: de um lado, o
falado é o modo pelo qual o falante pode vir à presença, pode se tornar visível e deixar de
ser evento privado: é, portanto, a realização do falante, não seu decalque; e por outro lado,
o falante não se retira do falado uma vez a significação nova criada, ele persiste como a sua
sustentação: para falar em outro idioma, a causalidade é não-transitiva, e a gênese é atual
(e é o que garante que possa ser reativada por um novo ato de criação). E se assim não
fosse, as teses de Merleau-Ponty que alocam algum tipo de produtividade na linguagem
ou em outras camadas de instituição se tornariam simplesmente ininteligíveis.
Se não há sucessão, qual a relação entre as duas faces da sedimentação, ou
entre o falante e o falado? Não basta dizer que o falante permanece presente no falado,
e que o falado é realização do falante. Se são co-presentes, é preciso explicitar qual o
modo de ser de um no outro, já que, pelo que se disse acima, o falante não é o falado.
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Em seu curso sobre A origem da geometria de Husserl, Merleau-Ponty diz:
“a tradição é esquecimento das origens, relação a uma origem que não é considerada pelo presente, e que opera em nós e que lança para a frente a geometria, justamente porque ela não é possuída pelo pensamento” (Merleau-Ponty 4, p. 22).
Lá a geometria, aqui a obra de pensamento, o pretexto varia mas o assunto é
o mesmo. A origem não é possuída em pensamento: não é idéia em sentido positivo.
Fundada a tradição, a origem é esquecida: não sendo considerada pelo presente, é da
ordem do passado. Entretanto, é operante e lança pra frente a geometria. O vocabulário
importa, pois é a intencionalidade operante que, em fenomenologia, é a encarregada de
fazer a costura do múltiplo nas camadas ante-predicativas da experiência, garantindo
assim pela estrutura de horizonte a prefiguração de racionalidade daquela experiência.
É o mesmo que está em jogo aqui. O operante é aqui esquecimento, entenda-se, origem
presente enquanto ausente, e a tradição que ela funda, dirá Merleau-Ponty no mesmo
curso, é “certo pleno feito de certo vazio”. E por isso mesmo não terá a presença
massiva do em si, será uma presença que comporta uma falha ou lacuna, que comporta
dimensões negativas. Entende-se por quê: pois é animada, estruturada ou costurada por
um “esquecimento fecundo”, uma negatividade operante. Por isso a tradição é sempre
mais que seu ser visível: comporta um invisível, o lado de pregnância co-presente com o
visível e que chama uma continuação. E numa nota de maio de 60 do Visível, Merleau-
Ponty dirá que “o invisível é... o que, relativo ao visível, não poderia entretanto ser visto
como coisa (os existenciais do visível, suas dimensões, sua membrura não-figurativa)”
(Merleau-Ponty 5, p.305).
Se a tradição é esse visível de um invisível, e se a relação delas com a origem
não é de sucessão, será preciso reconhecer que mesmo o originário não era presença
plena, já era diferença de si consigo. E, no presente caso, que o próprio Husserl não era
detentor de sua obra, que o pensamento que ele abria ao mesmo tempo escapava à sua
posse. Isso porque, se é falante, se é clássico, é que não se reduz a um conjunto de teses,
ele é interrogação, abertura de um campo e não significação fechada.
“Pensar não é possuir objetos de pensamento, é circunscrever através deles um domínio por pensar, que portanto ainda não pensamos. Assim como o mundo percebido (...), também a obra e o pensamento de um filósofo são feitos de certas articulações entre as coisas ditas, a cujo respeito não há dilema entre a interpretação objetiva e o arbitrário, já que aí não se trata de objetos de pensamento, já que, como a sombra e o reflexo, seriam destruídos se fossem submetidos à observação analítica ou ao pensamento isolante, e apenas podemos ser-lhes fiéis e reencontrá-los pensando-os outra vez” (Merleau-Ponty 2, p. 202).
O pensar – e no caso, o pensar de Husserl – não se confunde com a letra, não
é coisa, tampouco é espírito puro, não é supra-sensível. É o que abre e circunscreve um
campo a pensar, e nesse sentido é interrogação. É matriz de idéias, mais do que um objeto
de pensamento. Se Husserl contém um impensado – o que dá a possibilidade da filosofia
de Merleau-Ponty –, é que sua filosofia não é inteiramente presente para si mesma, ela
contém dimensões e vazios a serem pensados.
Se nessa camada mais originária, o filósofo lido não é pura presença a si mesmo,
mas já diferença, então ler um filósofo não pode ser repetir linha a linha o que suas obras
visíveis diziam (já que sua parte visível é apenas o sedimentado da obra), nem dar-lhe
o sentido que bem quisermos (já que, como leitores, estamos presos na própria obra).
Nos dois casos, supõe-se tacitamente que a obra seja inteiramente presente a si mesma.
Se, ao contrário, pensar não é possuir idéias, mas abrir um campo de interrogação, então
comentar uma obra de pensamento não é reduzi-la ao seu dito, mas reativá-la: “apenas
podemos ser-lhes fiéis e reencontrá-los pensando-os outra vez”. E nesse momento,
pensando o impensado de um filósofo, é bem um reencontro que se produz: como se a
identidade do comentado só se revelasse quando o traímos aparentemente, para ser-lhe
fiéis num outro nível – curioso tipo de identidade, que só se revela à distância através
do trabalho da diferença. E, pelo menos nesse ponto (mas sem por isso assumir aquela
meditação historial da metafísica que ia de par com essa noção de leitura), Merleau-Ponty
poderia terminar reiterando as palavras de Heidegger:
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“Toda explicação deve não apenas apreender o sentido do texto, ela deve também – insensivelmente e sem muito insistir – dar-lhe sentido seu. Essa adjunção é o que o profano sempre ressente, medido por aquilo que ele toma pelo conteúdo do texto, como uma leitura solicitada; é o que ele critica, com o direito que se atribui a si próprio, como um procedimento arbitrário. Entretanto, uma verdadeira explicação não compreende jamais o texto melhor do que o compreendeu seu autor; ela o compreende de uma outra maneira. Mas, esta Outra maneira deve ser tal que reencontre o Mesmo que o explicado medita” (Heidegger 1, p.176)11.
Nem subjetivismo, nem objetivismo, comentar os filósofos do século XVII
através do nome “Grande Racionalismo” deve ser alcançar, numa traição apenas aparente,
a identidade da questão aberta por aqueles filósofos. Mas confessemos também que, no
fim das contas, com essa historicidade de sentido, parecemos não ter saído do interior de
uma só filosofia, bem precisa aliás. Mais ou menos como se, lendo os clássicos da história
da filosofia, tivéssemos apenas visitado uma outra cidade – conhecemos outras praças,
outra gente, mas permanecemos no mesmo país e no mesmo idioma em que iniciamos a
viagem... Será isso, “ler um clássico”?
REFERêNCIAS bIbLIogRáFICAS
1. HEIDEGGER, M. Chemins qui ne mènent nulle part , tr. F. Fédier, Gallimard, 1962.2. MERLEAU-PONTY, M. Signes, Gallimard, 1960.3. ______________. Les aventures de la dialectique, Gallimard / Folio, 2000.4. ______________. Notes de cours sur l’ Origine de la Géométrie de Husserl, PUF,
1998.5. ______________. Le visible et l’invisible, Gallimard / Folio, 2004.6. PIGNAUD, B., “Merleau-Ponty, Sartre et la littérature”, in: revista L’Arc, maio /
1990.7. PRADO JR., B., A retórica em Rousseau, Cosacnaify, 2008.8. SARTRE, J.-P. Que é a literatura?, Ática, 1999.
Merleau-Ponty and the “great rationalism”: what does it mean - to read a classic?
Abstract: This essay intends to show how the so-called “theory of reading” presented by Merleau-Ponty, which is based upon the meditation of other philosophers’ “unthought”, receives its proper foundation only in the context of his ontology or, more precisely, in the realm of his project’s consequences concerning the understanding of ideality. It is only in those terms that “history of philosophy” makes sense in Mearleau-Ponty´s work, after having assumed previous philosophical decisions such as the one that determines that in order to inscribe meaning in the domain of the sensitive it is necessary to underline the passive dimensions of experience that are responsible for the thematic acts of consciousness.Keywords: history of philosophy, reading, sedimentation, ideality.
NoTAS
1- É o argumento que Bento Prado, em “Leitura e interrogação”, retoma de Merleau-Ponty e Heidegger para reapresentá-lo e com ele justificar sua leitura de Rousseau. (Cf. Prado Jr. 7).2. “De fato, o livro não é um objeto, tampouco um ato, nem sequer um pensamento: escrito por um morto acerca de coisas mortas, não tem mais lugar nesta terra, não fala de nada que nos interesse diretamente; entregue a si mesmo, ele se encarquilha e desmorona, não restam mais que manchas de tinta sobre o papel embolorado, e quando o crítico reanima essas manchas, transformando-as em letras e palavras, estas lhe falam de paixões que ele não sente, de cóleras sem objeto, de temores e esperanças defuntas. É todo um mundo desencarnado que o rodeia, um mundo em que as afeições humanas, como não comovem mais, passaram à categoria de afeições exemplares, em suma, de valores. Assim ele se convence de haver entrado em contato com um mundo inteligível que é como que a verdade e a razão de ser de seus sofrimentos cotidianos” (Sartre 8, p. 24-25).E adiante: “... os grandes escritores queriam destruir, edificar, demonstrar. Mas nós não guardamos as provas que apresentaram, porque não nos preocupamos com o que eles quiseram provar. Os abusos que denunciaram não são mais do nosso tempo; hoje há outros que nos indignam e que eles nem sequer imaginavam; a história desmentiu algumas de suas previsões, e aquelas que se realizaram se tornaram verdadeiras há tanto tempo que já nos esquecemos de que foram, antes, traços do seu gênio; alguns dos seus pensamentos estão inteiramente mortos, e há outros que o gênero humano inteiro assimilou e que agora tomamos como lugares-comuns. Segue-se que os melhores argumentos desses autores perderam a sua eficácia; hoje admiramos apenas a sua ordem e o seu rigor; por mais bem estruturados que sejam, para nós não passam de ornamento, uma arquitetura elegante da
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demonstração, sem mais aplicação prática do que a arquitetura das fugas de Bach ou dos arabescos de Alhambra” (Sartre 8, p. 26).3. Como resume no mesmo sentido B. Pignaud, “o propósito de Sartre, nas primeiras páginas de seu ensaio, era, de algum modo, livrar-se da ‘arte’ (aí compreendida a poesia) confinando-a no domínio do sentido. Esse sentido, ele o concebia como uma signficação ao mesmo tempo mais larga e mais vaga, privada de toda capacidade referencial porque irremediavelmente atolada no objeto que a carrega” (cf. Pignaud 6).4. Cf. citação abaixo, e também: “o escritor pode dirigir o leitor e, se descreve um casebre, mostrar nele o símbolo das injustiças sociais, provocar nossa indignação. Já o pintor é mudo: ele nos apresenta um casebre, só isso; você pode ver nele o que quiser. Essa choupana nunca será o símbolo da miséria; para isso seria preciso que ela fosse signo, mas ela é coisa. (...) Não duvido de que a caridade ou a cólera possam produzir outros objetos, mas neles elas ficarão atoladas da mesma forma; perderão o seu significado, restarão apenas coisas habitadas por uma alma obscura. Não se pintam significados, não se transformam significados em música; sendo assim, quem ousaria exigir do pintor ou do músico que se engajem?” (Sartre 8, p. 12)5. “Na verdade, o poeta se afastou por completo da linguagem-instrumento; escolheu de uma vez por todas a atitude poética que considera as palavras como coisas e não como signos. Pois a ambigüidade do signo implica que se possa, a seu bel-prazer, atravessá-lo como a uma vidraça, e visar através dele a coisa significada, ou voltar o olhar para a realidade do signo e considerá-lo como objeto” (Sartre 8, p. 13)6. Sigo, evidentemente, a leitura de Merleau-Ponty, que se permite várias passagens ao limite que um sartreano ortodoxo talvez recusasse: “apesar das aparências, Sartre jamais admitiu senão o ser para si, com seu correlativo inevitável: o puro ser em si” (Merleau-Ponty 3, p.198). O sartreano pode aliás consultar a resposta raivosa de Simone de Beauvoir em Privilèges, em que se acusa Merleau-Ponty de pseudo-sartrismo. Como nosso propósito aqui não é estritamente filológico, peço licença para passar ao largo desses problemas.7. “Assim, quando um livro apresenta pensamentos inebriantes que oferecem a aparência de razões só para se dissolverem sob o nosso olhar e se reduzirem às batidas do coração, quando o ensinamento que se pode extrair dele é radicalmente diferente daquele que o autor quis dar, chama-se a esse livro mensagem” (Sartre 8, p. 27)8. Que a leitura do impensado – modo pelo qual o “clássico” será salvo – esteja firmemente fundada na ontologia de Merleau-Ponty, é confirmado pela estrutura daquele ensaio. Ali, Merleau-Ponty começa apresentando sua leitura particular de Husserl nem como traição, nem como fidelidade, mas um prosseguimento (fiel-infiel) das questões husserlianas através daquilo sobre o que elas tinham de silenciar. Apresenta-se o projeto de “ler o impensado” do filósofo, mas tudo poderia ainda soar um pouco vago. É esse “ar” de
meras generalidades que a seqüência do ensaio vai desfazer, “pondo” os pressupostos desse método de leitura. O núcleo duro do ensaio vai avaliar as noções de redução – descobrindo um irredutível último, a Natureza selvagem que toda atitude da consciência pressupõe e não elucida –, descrever o mundo sensível que resiste à reflexão e, finalmente, tirar as conseqüências disso para a constituição fenomenológica. Ali, será apresentada a noção de sedimentação como modo de ser da idealidade uma vez constatado que toda atitude repousa sobre um solo último. E é aqui – como tentarei sugerir – que se produz o método de leitura merleau-pontiano.9. Apenas parafraseio aqui o próprio Merleau-Ponty em “Partout et nulle part” (Merleau-Ponty 2, 139).10. “Precisamente enquanto o pensamento é Erzeugung, superação da vida passiva, entrada em um domínio invisível, ele não pode existir senão como sedimentado e a sedimentação é sua realização como pensamento. Husserl sublinha que o pensamento é sedimentado e que a reativação é apenas uma possibilidade, que a Nachverstehen e Mitverstehen não é, não pode ser reativação, que a síntese aqui não é para mim efetiva de todo o caminho seguido; mas posse de pivôs, dobradiças, matrizes de possibilidades, equivalentes negativos ou rastros de atos positivos, esquecimentos fecundos, isto é, negações operantes. O pensamento é para ele por si temporal.” (Merleau-Ponty 4, p.29). “Rastros = presença de um ausente = experiência de uma ausência” (Merleau-Ponty 4, p.33).11. Um trecho desse texto aparece como epígrafe daquele ensaio de Bento Prado Jr. a que nos referimos acima e que de resto nos serviu de mote.
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NOTícIAS
defesas de doutorado
Mariana Cecilia de Gainza Título: “Espinosa: uma filosofia materialista do infinito positivo”Orientador: Profa. Dra. Marilena de Souza ChauíData: 06.02.2009
Resumo:
A leitura que Hegel fez da ontologia espinosana teve uma influência maiúscula
em gerações inteiras de leitores, que leram Espinosa a partir da representação hegeliana
de suas supostas virtudes e defeitos. O efeito mais evidente da força que teve essa
interpretação foi a difundida tendência a classificar Espinosa como um filósofo idealista. E
isso, por sua vez, derivou em que importantes expoentes do pensamento crítico do século
XX ignorassem seus aportes, por julgá-lo parte de uma tradição alheia às aspirações de
emancipação com as quais se identificaram diversas filosofias logo da fundação teórica
que a obra de Marx significou. Pretendendo abrir diálogos, a partir de Espinosa, com
autores mais ou menos associados com a tradição dialética, defendemos a legitimidade
de uma leitura da Ética sob uma perspectiva materialista. Como pensar a singularidade
e a história no interior de uma filosofia da imanência que se sustenta sobre a afirmação
da existência eterna de uma única substância infinita? Enquanto a ontologia espinosana
coloca, em primeiro lugar, a existência de uma única substância absolutamente infinita,
toda uma tradição de leituras – da qual Hegel formou parte – fez da questão relativa
à determinação dos seres finitos o eixo da crítica ao espinosismo. A dificuldade para
compreender a peculiar concepção espinosana da totalidade (enquanto substância), da
efetividade que realiza (causalidade imanente), e das formas diversas de realidade, de
produção e de determinação que a constituem (atributos, modos infinitos e modos finitos)
foi, então, uma fonte prolífica de polêmicas em torno a um problema que poderíamos
sintetizar assim: qual é a forma mais apropriada de pensar a determinação no interior de
uma totalidade infinita? Uma leitura materialista da concepção espinosana do infinito
positivo é necessária para responder essa questão.
Palavras-chave: Infinito positivo, materialismo, determinação, negação,
expressão
Cristiano Novaes de Rezende Título: “Intellectus Fabrica: um ensaio sobre a teoria da definição sobre no Tractatus de Intellectus Emendatione de Espinosa” Orientador: Luiz Henrique Lopes dos SantosData: 16.03.2009
O presente trabalho é um ensaio sobre a teoria da definição desenvolvida por
Espinosa principalmente no Tractatus de Intellectus Emendatione. Através do exame
dessa teoria, pretende-se demonstrar a tese de que a estrutura conferida por Espinosa
à definição perfeita constitui o núcleo de uma lógica da imanência, apta a presidir, na
modernidade, a elaboração de uma ontologia que enfrenta o clássico problema do uno e
do múltiplo, reformulado em termos de compatibilização entre a afirmação da unidade
e unicidade substanciais e a afirmação de que, não obstante, da natureza dessa mesma
substância una e única, seguem-se necessariamente infinitos entes singulares reais.
Demonstrar essa tese conceitual equivale, numa chave histórica, a refutar a
tradição interpretativa — iniciada já com os interlocutores contemporâneos de Espinosa
mas que interferirá em toda recepção futura de sua obra — que considera a filosofia
espinosana como uma sorte de eleatismo moderno. Demonstrando, a partir da teoria da
definição, que certas acusações feitas pela posteridade já se encontravam implicitamente
respondidas no debate espinosano com a escolástica de inspiração aristotélica, ambiciona-
se, destarte, fornecer subsídios para uma revisão crítica da recepção da obra de Espinosa,
caracterizando sua filosofia imanentista como uma possibilidade do racionalismo moderno
historicamente mal compreendida e, por isso, talvez capaz de exigir alguma ampliação
dos próprios conceitos de racionalismo e de modernidade.
cONTENTS
Merleau-Ponty: froM the constitution to the institution
Marilena chauí................................................................................................11
the PhilosoPher’s Presence
renaud Barbaras.............................................................................................37
“la Grande PolitiQue” or Merleau-Ponty reader of MachiaVelli
leandro neves cardim....................................................................................49
Merleau-Ponty: Between ontoloGy and MetaPhysics
Marcus sacrini a. ferraz..................................................................................74
the concePt of life and the Genesis of the huMan order
silvana de souza ramos..................................................................................90
Merleau-Ponty and the snowBall: coMPliMent and criticisM to BerGson
Pablo Zunino..................................................................................................104
Proust in the liGht of freud – Merleau-Ponty’s readinG
ronaldo Manzi...............................................................................................121
the Vision as oPenness
alex de campos Moura..................................................................................131
fiGures of concePt. on the lanGuaGe in Merleau-Ponty
Júlio Miranda canhada..................................................................................138
Merleau-Ponty and the “Great rationalisM”: what does it Mean - to read a
classic?
José luiz B. neves...........................................................................................149
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palavras cada um, cinco palavras-chave e keywords.
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técnicas da ABNT, seguindo-se a numeração das referências bibliográficas; por exemplo,
(Descartes 1, p.10) ou (Descartes 1, §8, p.10).