ZÉ, o homem político em cena

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sala preta ZÉ, o homem político em cena ZÉ, the politician on the scene Edélcio Mostaço Edélcio Mostaço Doutor em Artes Cênicas pela Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP). Professor titular do Departamento de Artes Cênicas do Centro de Artes (Ceart) da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc). DOI: 10.11606/issn.2238-3867.v20i2p117-129 O Oficina

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sala preta

ZÉ, o homem político em cena

ZÉ, the politician on the scene

Edélcio Mostaço

Edélcio MostaçoDoutor em Artes Cênicas pela Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP). Professor titular do Departamento de Artes Cênicas do Centro de Artes (Ceart) da Universidade do Estado de

Santa Catarina (Udesc).

DOI: 10.11606/issn.2238-3867.v20i2p117-129

O Oficina

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Resumo

O texto enfoca as dimensões políticas que perpassam a figura de Zé Cel-

so Martinez Corrêa, encenador brasileiro e líder do Teatro Oficina. Desde

suas origens marcadas pelo existencialismo até as condutas derivadas

de sua concepção de tragicomediorgya, essa trajetória se mostra forte-

mente marcada pelas suas participações políticas e postura cidadã.

Palavras-chave: Zé Celso, Oficina, Tragicomediorgya.

Abstract

The text focuses on the political dimensions that permeate the figure

of Zé Celso Martinez Corrêa, a Brazilian director and leader of Teatro

Oficina. From its origins marked by existentialism to the behaviors based

on his conception of tragicomediorgya, his trajectory is strongly marked

by his political participation and his citizen posture.

Keywords: Zé Celso, Oficina, Tragicomediorgya.

Berço

“Na ordem natural, a cidade tem precedência sobre a família e sobre

cada um de nós individualmente”, declara Aristóteles em Política (1988, p. 16),

ao balizar o que cada ser humano é em relação ao coletivo ao qual pertence.

A trajetória de José Celso Martinez Corrêa – o Zé Celso do Teatro Oficina –

se encontra profundamente marcada, seja enquanto artista ou enquanto ci-

dadão, por esse desígnio que implica em distinguir o útil do nocivo, a dor

do prazer e o justo do injusto – como situa o dilema do ser político o filósofo

grego em seu raciocínio.

Nascido em 1937 na cidade de Araraquara, no interior do estado de São

Paulo, Zé Celso foi um menino tímido e doentio, e sua família alimentava ex-

pectativas de que ele se tornaria padre. Não foi o que aconteceu. Adolescente,

ele frequentava a piscina do Clube Araraquarense, o mais distinto da urbe e,

enredado por colegas, acabou integrando o Centro Cultural Alberto Torres,

de indefectível perfil autoritário e reacionário, considerado uma das portas de

entrada para os jovens rumo à Ação Integralista comandada por Plínio Salgado.

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O Estado Novo, naquele quadrante histórico, fazia acreditar que todo o

mal estava na esquerda – motivo pelo qual um grupo de integrantes do Centro

Cultural desbaratou um comício de comunistas no centro de Araraquara aos

gritos de “abaixo os agentes de Moscou!”. Zé Celso, porém, cresceu, aban-

donou aquelas ideias antidemocráticas da primeira adolescência e rumou,

em 1955, para São Paulo, onde entrou no curso de direito da Universidade

de São Paulo (USP), instalado no Largo de São Francisco. Nos corredores

da vetusta instituição, tomou contato com as novíssimas ideias do Instituto

Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) sobre o Brasil e a filosofia de Jean-

Paul Sartre, resumida em uma publicação com o título de O existencialismo

é um humanismo (1973).

Uma frase abreviava todo o escrito: “a existência precede a essência”

(SARTRE, 1973, p. 12). Além de ouvir bossa nova, frequentar barzinhos nos

finais de tarde ou festinhas nas casas dos participantes, aquele pequeno gru-

po de moças e rapazes fazia cara de tédio para atender à solicitação existen-

cial antes de alcançar a essencial; decidiram, portanto, iniciar um movimento

de cultura no grêmio da faculdade, denominado “a Oficina” – uma espécie

de fábrica para o novo homem que divisavam no futuro, amplamente ampa-

rado em experiências de vida que fornecessem lastro para a construção de

suas essências. Entre outros, estavam no grupo Amir Haddad e Renato Borghi.

Zé Celso se tomava, então, como autor, mostrando a todos uma peça que car-

regava debaixo do braço: Vento forte para papagaio subir, reminiscências de

sua contraditória juventude no interior paulista, em um tempo e um espaço que

agora desprezava e do qual queria definitivamente livrar-se – um largo passo

de desapego relativo à sua adolescência medíocre, divisando agora os am-

plos céus que o aguardavam ao cortar o fio de papagaio que o prendia à terra,

podendo finalmente rodopiar livre e deixar-se levar pelo vento existencialista.

A transformação do grupo noviço em profissional deu-se em 1958, após

vencer um festival amador de teatro e ganhar a certeza de que o palco era

seu destino. Essa opção se concretizou com a criação da empresa então for-

mada por Renato Borghi, Ronaldo Daniel, Jairo Arco e Flexa, Moracy do Val,

Paulo de Tarso e Zé Celso, que tomou o símbolo da bigorna como distintivo

e o nome de Oficina como marca. Sem elenco e querendo estrear um novo

texto nascido no Seminário de Dramaturgia, Augusto Boal convidou o Oficina

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para a montagem de Fogo frio, no Arena, do qual Zé Celso foi assistente

de direção. A montagem não deu muito certo e atritos entre os dois grupos

indicavam claramente os rumos políticos de um e de outro: o Arena era au-

toritário e seguia as diretrizes preconizadas pelo Partidão; o Oficina, por sua

vez, guiava-se pelas ideias desenvolvimentistas do ISEB e anunciadas por

Juscelino Kubistchek. Um era formado por militantes artísticos de uma cau-

sa, e o outro fazia da arte um laboratório para a realização pessoal. “Porque

nós, do Oficina, éramos acusados de muito psicologismo, de emocionalismo,

de rejeição pelos problemas políticos e sociais em troca da expressão exclu-

siva de nossas emoções pequeno burguesas”, revelou Zé Celso (CORRÊA,

1998, p. 25) sobre os conflitos advindos daquela convivência. Foi então que

Jean-Paul Sartre anunciou uma visita ao Brasil.

Cuba acabara de fazer uma revolução, tornando-se socialista; as elei-

ções para um novo presidente que substituísse JK, no Brasil, estavam em

curso, e Zé Celso e Boal adaptaram, às pressas, o roteiro cinematográfico

A engrenagem, da lavra do filósofo, para levarem à cena antes do pleito e

homenagearem o ilustre visitante. “O que vocês vão fazer dessa engrenagem,

o que vocês vão fazer do imperialismo”, clamavam os atores de frente para o

público, na militante encenação de Augusto Boal. Uma apresentação ao ar livre

no Museu do Ipiranga foi proibida pela Censura e deslocada para o sindicado

dos metalúrgicos, o que fez Zé Celso declarar: “aí entrava a noção sartriana de

‘liberdade’, de que não tem desculpa, de que tem que atirar nas coisas mesmo.

Não tem pai, não tem mãe, não tem ditadura que lhe justifique, não tem opres-

são, não tem nada! Ou você age ou você se fode […] Se você não acontece,

não acontece nada” (CORRÊA, 1998, p. 27). O encenador já divisava, perfei-

tamente, a diferença entre o útil e o nocivo, entre o justo e o injusto1.

Acontecer e mais

O confronto com o Arena, a censura, os ataques sofridos pela impren-

sa e pelos setores militantes e reacionários de plantão, fizeram o Oficina

1 O “político” é a percepção das sociedades humanas como fundamentadas sobre o conflito e os antagonismos que lhe são intrínsecos; a “política” é o conjunto das práticas e institui-ções por meio das quais uma dada ordem é criada e organizada no contexto conflituoso produzido pelo político. Para desdobramentos, ver: MOUFFE, 2015.

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defrontar-se com vários obstáculos e tomar seu primeiro banho de realidade:

as contradições sociais e os conflitos a que estavam expostos todos os que

decidem optar por uma vita activa – conceito central da filosofia política de

Hannah Arendt (2001) que se opõe à vida contemplativa, separando os que

trilham os percursos do enfrentamento das forças sociais reativas à qualquer

mudança, à moral dominante, aos tabus que a sociedade erige como escudo

de proteção à sua integridade ética e institucional daqueles que, fieis a tais

desígnios, sempre dizem amém.

Após Marx e Nietzsche, a vita activa tornou-se mais explicitamente po-

lítica, implicando um posicionamento que ultrapassava o individual e o ético

em busca também do coletivo e dos destinos em comum de toda uma so-

ciedade. A palavra ação passou a designar o vínculo entre o ato praticado e

a palavra que o situa. Encenado por Zé Celso em 1963, Pequenos burgue-

ses aglutinou em um produto artístico todo seu projeto político-existencial até

aquele momento, o cerne de sua ação:

a única verdade explícita conceitualmente através de Teteriev talvez seja

‘a vida avança, velho, e quem não avança ao lado dela fica só, como

você!’, dita nas falas finais e que devem interpretar toda a peça e dar ao

espectador o impacto da fatalidade, do fatum histórico que a própria per-

sonagem vai traçando muitas vezes sem saber. (CORRÊA, 1998, p. 54)

O golpe civil-militar de 1964 obrigou Zé Celso a procurar refúgio na

Europa, onde permaneceu por um ano – em parte para repensar sua vida,

em parte para conhecer teatros europeus, entre eles o Berliner Ensemble.

Suas memórias, contudo, enfatizam duas coisas: um fenomenal porre de dois

dias que tomou em Varsóvia e seu primeiro contato com a maconha, em Roma.

Ao voltar, montou Os inimigos, novamente uma peça russa que refletia me-

taforicamente a situação brasileira e seu conflito de classes. A preconizada

estratégia de aliança de classes efetuada pelo PCB desde 1958 dava sinais

de desgaste e insustentabilidade diante dos avanços da ditadura – coisa que,

aos poucos, foi fazendo ruir as expectativas de alguma reação à crítica situa-

ção do país. Para o Oficina e seu encenador, uma polêmica resposta àque-

le estado de coisas veio a seguir por meio da montagem de O rei da vela,

de Oswald de Andrade: um manifesto antropofágico, um visceral modo de

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responder à sociedade – a burguesia e seus aliados à esquerda – em que a

vita activa demandava revisão e outros posicionamentos.

O período tropicalista, que costuma ser datado entre 1967 e 1968, foi um

dos mais polêmicos no país. Se, por um lado, desmanchava-se o antigo pac-

to com a burguesia nacional preconizado pelo PCB (especialmente quando

as elites percebiam que uma nova ordem econômica se desenhava no hori-

zonte), de outro, agora militarizado pela ditadura e amplo respaldo dos EUA,

os setores progressistas também não se mostravam coesos. Diversos rachas

no setor indicam essa cisão, especialmente pela opção de vários grupos ao

decidirem pela luta armada contra o regime. No plano social e cultural, essa

mesma divisão podia ser percebida, isolando artistas fiéis aos desígnios do

antigo CPC daqueles que deles manifestavam suas discórdias e propunham,

como alternativa, outros modelos de intervenção. O tropicalismo foi marcado

por essa segunda opção.

Assim, O rei da vela foi pensado por Zé Celso como tendo

a necessidade de desmitificar, colocar esse público no seu estado ori-

ginal, cara a cara com sua miséria, a miséria do seu pequeno privilégio

ganho às custas de tantas concessões, de tantos oportunismos, de tanta

castração e recalque e de toda a miséria de um povo. O importante é co-

locar esse público em termos de nudez absoluta, sem defesas, incitá-lo

à iniciativa, à criação de um caminho novo, fora de todos os oportunis-

mos – batizados ou não de marxistas. […] O teatro não pode ser um

instrumento de educação popular, de transformação de mentalidades

na base do bom-mocismo. A única possibilidade é exatamente pela de-

seducação, provocar o espectador, provocar sua inteligência recalcada,

seu sentido de beleza atrofiado, seu sentido de ação protegido por mil e

um esquemas teóricos e que somente levam à ineficácia. […] A eficácia

do teatro político hoje está no que Godard colocou a respeito do cinema:

a abertura de uma série de vietnãs no campo da cultura – uma guerra

contra a cultura oficial, a cultura de consumo fácil. Pois com o consumo

não só se vende o produto, mas também se compra a consciência do

consumidor. (CORRÊA, 1998, p. 96-98)

O teor político do discurso fala por si, bem como situa, sem ambiguida-

des, o agudo dissenso que o Brasil vivia naquele momento, como a percep-

ção em relação à crescente indústria cultural que o tomava de assalto.

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Dentre todas as correntes artísticas que atravessaram nossos anos

1960, o tropicalismo foi a mais radical, unindo uma face estética e outra

política ao propor ações públicas que desafiaram, com igual intensidade,

as manifestações culturais, como até então conhecidas, e suas interfaces

sociopolíticas ao apelar para ações inovadoras que almejavam se opor à

Censura, à procura de experimentar novos formatos expressivos. Roda viva,

a encenação de Zé Celso em 1968, pode ser tomada como uma suma tro-

pical: valia-se do teor místico e ritual das celebrações católicas urdindo-as

como uma missa negra, cuja fábula se centrava sobre a ascensão e queda de

um cantor popular; a outra face, agora decalcada sobre as imagens da cultura

de massa, do novo ídolo adorado por uma multidão de fiéis.

Ao final do mesmo ano, Caetano Veloso proferiu um violento discur-

so para a plateia e os telespectadores do festival da canção da rede Globo,

ao ser vítima de longa e altissonante vaia promovida por alguns setores da

plateia. Interrompendo É proibido proibir e iniciando seus vitupérios, Caetano

urdiu um happening: uma inesperada intervenção que desmascarava as es-

truturas daqueles certames musicais regulados por interesses dos patrocina-

dores e do mercado, menos do que movidos por intenções artísticas. Milhões

de brasileiros assistiram a performance, podendo constatar, sem veleidades,

os limites e as tensões que a situação social e cultural havia adquirido.

As declarações de Zé Celso naquelas ocasiões, para além do discurso

de Caetano, se evidenciam como atos políticos. Implicam, inicialmente, uma

subjetivação, ou seja: uma desidentificação com uma dada comunidade à

qual participavam, o que vem a ser outro modo de promover a desclassifica-

ção. No caso do teatro, em relação ao bom-mocismo promovido pelo teatro

de resistência decorrente do CPC e seu público eufórico, também conhecido

como “povo de pé”2; no caso da música, em relação à MPB, majoritariamen-

te conduzida por artistas que também seguiam as diretrizes cepecistas e

se alinhavam à chamada “esquerda festiva”. O tropicalismo atuou contra tais

diretrizes sociopolíticas, tal público e todo o seu corolário de pressupostos

advindos dos já esgotados pactos do início da década. Ao subjetivar-se,

2 A expressão “povo de pé” integrava uma das canções de Arena conta tiradentes, mon-tagem efetuada pelo conjunto em 1967, que exaltava a resistência contra a ditadura, no formato do teatro coringa ali desenvolvido.

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o tropicalismo colocou-se enquanto sujeito político outro, outra voz presen-

te na arena de poder em disputa. Essa heterologia continha seu desejo de

ser outro, sua desclassificação enquanto suposto todo que a frente polí-

tica apregoava. Esse novo lugar apontava para a insurgente luta armada,

igualmente combatida pela mesma frente que se tomava como progressista.

O político sempre incomoda, pois se recusa a participar das manobras pro-

movidas pela política.

Anos de repressão

Decretado em 13 de dezembro de 1968, o AI-5 evidenciou-se a mais

dura legislação criada pela ditadura civil-militar, abolindo o habeas corpus,

fechando o Congresso nacional, instituindo a forte censura à circulação de

informações e acobertando a tortura e os desaparecimentos de corpos da-

queles que lutavam contra o regime, promovendo o fim da política no país.

A seguir, o Oficina conhece grande crise interna com a montagem de

Na selva das cidades e convive alguns meses com o Living Theatre, convo-

cado para partilhar experiências. A inciativa não deu certo e o conjunto paulis-

ta parte para uma grande viagem pelo Brasil apresentando antigos sucessos.

Ao retornar, em 1973, monta a primeira criação coletiva profissional no país:

Gracias, señor. Com a posterior saída de Renato Borghi, o Oficina original fica

reduzido apenas à presença de Zé Celso, vivendo uma etapa difícil de sobre-

vivência. O espaço torna-se a Casa das Transas e shows de rock, pequenas

montagens cênicas paralelas e o início das atividades ligadas ao vídeo e ao

cinema arrebatam o encenador, até que sobrevém sua prisão, a tortura e o

forçado exílio do país em 1974. Um longo documento por ele escrito, deno-

minado S.O.S, não foi publicado em nenhum jornal, mas circulou em formato

mimeografado entre muita gente. Nele, o apelo à ajuda se confundia com a

análise política do país naquele momento.

Em Portugal, para onde se deslocou, o Oficina conhecerá novos ares.

Em Lisboa, remonta Galileu galilei com fundas alterações no texto original,

além de levar às ruas e praças o Ensaio geral do carnaval do povo. A monta-

gem aproveitava motivos de Galileu e o formato das peças didáticas de Brecht.

Cantando e sambando em praça pública, o elenco iniciava fazendo uma

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pirâmide humana assim constituída: embaixo do capital, o general; embaixo

do general, o industrial; embaixo do industrial, o vigário; embaixo do vigário,

o funcionário; embaixo do funcionário, o operário, embaixo do operário, o tra-

balhador agrário; embaixo do trabalhador agrário, as galinhas, os mendigos e

o rebotalho; essa minha gente é a ordem ordinária; ordem constituída que a

todo custo tem que ser mantida; amém.

A seguir, iniciava-se uma distribuição de pães, percorrendo os dois

sentidos da pirâmide: aquele da “produção”, de baixo para cima, e aquele da

“distribuição”, de cima para baixo, deixando evidente em que setores ocorria

o acúmulo ou a escassez dos pães dentro do regime capitalista. O político

tomou conta do grupo, em sua plena acepção, ao destacar a natureza forte-

mente conflitiva das sociedades humanas, de onde decorre a necessidade de

interlocução entre a comunidade – a política em sua vigência – como modo

de atuação.

Com Celso Lucas, Zé Celso dirigiu O parto para a televisão portuguesa,

um documentário sobre a Revolução dos Cravos, o que estendeu seu alcan-

ce para milhares de espectadores. A seguir, rumou para Angola e depois

Moçambique, onde filmou 25, sobre a libertação do país do jugo do colonia-

lismo lusitano. Tais atividades vão se revelar, na sequência, fundamentais

para Zé Celso reposicionar-se estética e politicamente: em Portugal, viven-

ciou uma revolução que baniu o fascismo do regime salazarista e instituiu

uma das mais fortes democracias da Europa; nas ex-colônias conheceu a

cultura africana e sua força, seus rituais, sua mística, seu profundo sentido

gregário e comunitário.

Em 1979, após Lisboa e Paris, Zé Celso retorna ao Brasil ao lado de

grande quantidade de ex-exilados e disposto a retomar seu antigo endere-

ço teatral, que viveu, durante aqueles anos, como uma casa comercial de

aluguel nas mãos de um empresário sem expressão. Reunindo novos inte-

grantes, redimensionando por completo as atividades artísticas e investindo

no emprego de novas mídias para se comunicar, nasce, em 1981, o Oficina

Uzyna Uzona – um misto de usina cultural e zona de intercâmbios. A antiga

arquitetura do teatro começou a ser desmontada, dando lugar a um imenso

buraco que demandava outro projeto de construção. Enquanto esse não

surgia, uma fase confusa e cheia de altos e baixos registra duas realizações

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que merecem destaque: a gravação de Caderneta de campo, um vídeo

para a TV Cultura que foca na prática do te-ato iniciado em Gracias, señor,

agora multiplicado em um sem-número de usos que permitiram a sobrevi-

vência do grupo por meio de algumas verbas; e a montagem de O homem

e o cavalo, de Oswald de Andrade, em 1985, dentro de um ciclo de leituras

de textos proibidos pela Censura e apresentado apenas um dia no Teatro

Sérgio Cardoso, com um elenco estelar que reunia o grupo: Raul Cortez,

Elke Maravilha, Dionísio Azevedo, Os Parlapatões e uma infinidade de ou-

tros artistas de várias linguagens.

Em 1993, com a estreia de Ham-let dentro no remodelado espaço con-

cebido e realizado sob a supervisão de Lina Bo Bardi, uma rua cultural desti-

nada a dar em um teatro-estádio no centro do quarteirão, Zé Celso e o Oficina

Uzyna Uzona viveram intrépidos episódios de lutas – não apenas com os

órgãos de tombamento do imóvel como, sobretudo, com o poder econômi-

co do Grupo Empresarial Silvio Santos, vizinho do teatro e que ambiciona-

va transformar todo aquele quadrilátero de terreno em um shopping center.

Foram momentos em que o político cedeu à política, à arte da diplomacia e

da negociação, indispensáveis para sobreviver aos tumultos e implantar o que

era uma utopia: dotar o bairro do Bexiga de uma ativa vida cultural, resistindo

à gentrificação.

No novo espaço de Lina e seguindo novas diretrizes estéticas advindas

das diversificações expressivas e de atuação a que o grupo se lançara – criar

o Teatro de Estádio, fundar a Universidade Popular e incentivar em definitivo

o Projeto Bexigão –, Zé Celso forjou o conceito de tragicomediorgya dentro

de um conjunto de parâmetros que vão orientar o coletivo até os dias atuais.

O canto do bode

Do ponto de vista político, Zé Celso abandonou certos radicalismos que o

marcaram em anos anteriores e passou a acreditar no poder do próprio teatro:

de certa maneira, a situação que a gente vive aqui não é muito diferente

da de Canudos. A solução que tem de ser encontrada é política, porque

o teatro é um lugar que propõe o mundo à política, quer dizer, o teatro

é o lugar onde se busca o reforço do poder humano na intervenção dos

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acontecimentos, da máquina social. Então nós, como artistas, temos de

encontrar uma solução não violenta, uma situação de não-guerra, nós

temos que vencer pelo teatro. (LOPES; COHN, 2008, p. 224)

Tal solução foi conceitualmente sustentada pelo revigoramento da tragé-

dia, pelo grotesco inerente à comédia e um forte apelo à condição orgiástica

que deve presidir todas as escolhas e decisões, colorindo com outros tons a

vida comunitária.

A tragicomediorgya foi empregada pela primeira vez no espetáculo

Bacantes (1995) como um amálgama de princípios e noções processuais

devidamente maceradas e deglutidas sob influxo da antropofagia, ema-

nada do Manifesto antropófago de 1928. Ela intenta entrelaçar em viés

aprofundado a arte e a vida, e suas origens mais remotas podem ser esca-

vadas junto ao pensamento de Nietzsche – não apenas a noção de dioni-

sismo (A origem da tragédia) mas, sobretudo, a de corpo como pensador

(Humano, demasiado humano). Nessa acepção, pode-se falar em uma an-

tropologia reversa, como articulada por Roy Wagner (2012), uma vez que

a tragicomediorgya remonta ao ditirambo, às formas pré-cênicas do teatro

ocidental em suas manifestações corais, míticas e coletivas. Porém, mais

que simples soma ou subtração de noções anteriores, o que temos é a

negação da logocêntrica cena ficcional a seguir fixada, bem como daque-

la dramática dialética, de cunho hegeliano, através de uma reversão de

padrões estéticos e gêneros expressivos – uma territorialização em busca

de novos agenciamentos. Essa arquitetônica ditirâmbica é supervisionada

pelo impulso coral, arcaico e anterior à especialização dos formatos mono-

lógicos trágicos e cômicos, momento liminar marcado pela indistinção entre

as fronteiras sacras e profanas.

Fundamente dialógica enquanto manifestação coletiva, a tragicome-

diorgya é também rizomática enquanto ser manifesto: desenvolve-se pre-

ferentemente por meio de prolongamentos e derivações do que de apro-

fundamentos no terreno temático escolhido, tecendo redes associativas ao

invés de buscar a verticalidade das raízes. Privilegia, assim, mais a expres-

sividade alegórica que a nucleação simbólica, embora ambos os procedi-

mentos nela sejam discerníveis dado o agudo perspectivismo que a preside.

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O pulso orgíaco que lhe dá o tônus energético enquanto predicado ritual

indica uma desespecialização de funções sensuais, como se um fio mítico

e onírico enovelasse o corpo dos atuadores e da plateia, cujo trânsito pelo

erotismo é um convite à partilha de tempos e espaços. A carnavalização, na

acepção dialógica de Bakhtin – paródia, inversão de valores, destronização

de heróis, grotesco, orgia sacra, comutação de papéis, baixo corporal, entre

outros – encontra aqui todos os seus componentes e procedimentos poéti-

cos plenamente ativados.

A dimensão da crueldade artaudiana, também, sulca seus propósitos –

não apenas através dos expedientes previstos nos manifestos, mas também

em outra direção: sua negação da metafísica e insistência no poder da peste

enquanto desorganização e contágio, força dirigida aos nervos capaz de reti-

rar as coisas de seu lugar. Outra componente aqui presente é a peça didática

brechtiana, embora por meio de uma releitura que reorientou seus intentos

iniciais para destacar, sobretudo, sua condição produtiva quanto à participa-

ção dos espectadores e seu convite a um perspectivismo diante dos conflitos

e situações encenados. Temos, portanto, mais uma dobra, como pensada por

Deleuze e Guattari (2007. p. 27), em que “um organismo é chamado a desdo-

brar suas próprias partes, sua alma animal ou sensitiva e abre-se a todo um

teatro, teatro em que ela percebe e sente de acordo com sua unidade, inde-

pendentemente do seu organismo e, todavia, inseparável dele”, fomentando

novos – quase sempre surpreendentes – vínculos de performatividade.

Nessa ontologia de transmutação, nessa máquina de guerra nômade,

foram encenados cinco espetáculos tendo como tema Os sertões, baseados

em Euclides da Cunha, apresentados entre 2000 e 2007. Ao radicar essa epo-

peia cênica nascida nos primórdios de nossa República e em estreita con-

junção com nossa própria história, o Oficina afirmou e redefiniu sua própria

concepção de anarquia, decorrente da constatação de que a an-archia pri-

mitiva implicava em uma democracia radical, horizontalizada quanto à sua

comunidade de base e construída com as próprias mãos, enquanto trabalho

que não mais distingue sua dimensão artística daquela cidadã. O Oficina vol-

tou a ser uma oficina – espaço arquetípico onde se forja o futuro –, um futuro

politicamente reorientado à produção de uma nova comunidade.

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WAGNER, R. A invenção da cultura. Trad. Marcela Coelho de Souza. São Paulo:

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Autor convidado

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