ZanattaMariaCecilia M

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III MARIA CECILIA ZANATTA AS METÁFORAS ALQUÍMICAS NO CINEMA AS METÁFORAS ALQUÍMICAS NO CINEMA AS METÁFORAS ALQUÍMICAS NO CINEMA AS METÁFORAS ALQUÍMICAS NO CINEMA Dissertação apresentada ao Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas. Para obtenção do Título de Mestre em Multimeios. Orientadora: Profª. Drª Elisabeth Bauch Zimmermann CAMPINAS 2010

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Cinema e alquimia

Transcript of ZanattaMariaCecilia M

  • III

    MARIA CECILIA ZANATTA

    AS METFORAS ALQUMICAS NO CINEMAAS METFORAS ALQUMICAS NO CINEMAAS METFORAS ALQUMICAS NO CINEMAAS METFORAS ALQUMICAS NO CINEMA

    Dissertao apresentada ao Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas. Para obteno do Ttulo de Mestre em Multimeios.

    Orientadora: Prof. Dr Elisabeth Bauch Zimmermann

    CAMPINAS 2010

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    FICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELAFICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELAFICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELAFICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA DO INSTITUTO DE ARTES DA UNICAMPBIBLIOTECA DO INSTITUTO DE ARTES DA UNICAMPBIBLIOTECA DO INSTITUTO DE ARTES DA UNICAMPBIBLIOTECA DO INSTITUTO DE ARTES DA UNICAMP

    Ttulo em ingls: The Alchemical Metaphors in the Cinema.

    Palavras-chave em ingls (Keywords): C. G. Jung ; Cinema ; Alchemy ; Creative process ;

    Unconscious.

    Titulao: Mestre em Multimeios.

    Banca examinadora: Prof. Dr. Elisabeth Bauch Zimmermann. Prof. Dr. Antonio Fernando da Conceio Passos. Prof. Dr. Walter Fonseca Boechat. Prof. Dr. Vernica Fabrini Machado de Almeida. Prof. Dr. Joel Sales Giglio. Data da Defesa: 10-02-2010 Programa de Ps-Graduao: Multimeios.

    Zanatta, Maria Cecilia. Z15m As Metforas Alqumicas no Cinema. / Maria Cecilia Zanatta. Campinas, SP: [s.n.], 2010.

    Orientador: Prof. Dr Elisabeth Bauch Zimmermann. Dissertao(mestrado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes.

    1. Jung, C. G., 2. Cinema. 3. Alquimia. 4. Processo de Criao. 5. Inconsciente. I. Zimmermann, Elisabeth Bauch. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Artes. III. Ttulo. (em/ia)

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    A Antonio e Elisa, moradores de meu corao, sem os quais muito pouco faria sentido.

    Ao nosso jardim que est sempre ali presente com seus mistrios e sua generosidade para com nosso olhar.

    Ao amor e alegria, que gestam as melhores coisas da vida.

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    AGRADECIMENTOSAGRADECIMENTOSAGRADECIMENTOSAGRADECIMENTOS

    Elisabeth Bauch Zimmermann, pelo apoio e por ter acolhido e apoiado meu desejo em fazer este trabalho e ter confiado em sua validade para a tentativa de compreenso do ser humano de uma forma diferente, coerente com sua prpria prtica como professora e analista. Por sua amizade sempre.

    Ao Fernando Passos, pelo apoio e confiana e por me incentivar em adentrar no mundo das imagens sem tanto medo, pelas indicaes dos filmes e livros, por acolher mais uma psicloga em meio a tantos cineastas, mostrando-me ser possvel este encontro.

    A Joel Giglio, por ter sido o primeiro a me acolher no mundo acadmico, h muito tempo atrs e ter sido sempre to receptivo s minhas poucas contribuies.

    A Walter Boechat, pelas aulas de alquimia e por tanto apoio minha vida pessoal e profissional.

    A Maria do Cu Diel, por compartilhar seu conhecimento com prazer e ter me apresentado obra de vrios diretores de cinema que influenciaram tanto meu trabalho quanto minha vida pessoal.

    A Jos Henrique Marcusso, pelas ideias, questionamentos e indicaes de filmes, mas principalmente pela possibilidade do eterno encontro.

    Aos meus amigos Jos Geraldo, Maria Lucia e Mercedes e aos professores do curso de formao do Instituto Junguiano, pelas discusses enriquecedoras que muito me inspiraram no caminho, pelos livros, pelas comidas deliciosas de sexta tarde, que aqueceram a barriga e o corao.

    Aos meus amigos de longe e de perto, pelo constante apoio e compreenso nos momentos mais angustiantes.

    minha famlia, pelo incentivo em sempre buscar minha felicidade, pelo cuidado, amor, carinho e incentivo dos meus pais, irmos, cunhados e sobrinhos em toda a minha vida.

    A Elisa, minha filha e meu amor, pela compreenso de minhas ausncias e minhas necessidades de estudo.

    A Antonio, meu companheiro e amor, pela enorme ajuda com o texto, as revises e sugestes to pertinentes e pelos questionamentos que, por tentar manter-se to cartesianos e racionais, acabaram sendo instigantes, enfim... pelo apoio amoroso ao meu trabalho.

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    Os poetas e os pintores e as figuras em ns que so poetas e pintores, so os que esto lutando pela continuidade do problema alqumico: a transubstanciao da perspectiva material em alma atravs da arte. O laboratrio alqumico est em seu trabalho com as palavras e as tintas e a psicologia continua sua tradio de aprender com a alquimia ao aprender com eles.

    James Hilmann

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    RESUMORESUMORESUMORESUMO

    Dentre os tericos que buscaram uma viso mais abrangente de ser humano em relao s manifestaes culturais de todos os tempos, C. G. Jung (1875-1961), foi quem se dedicou ao estudo da alma humana atravs de imagens de sonhos, mitos e smbolos da cultura, por acreditar que a atuao do inconsciente se d atravs de vrias formas de expresso. O processo de criao segundo Jung diz respeito traduo feita pelo artista de imagens primordiais, vindas espontaneamente do inconsciente, para a linguagem do presente. Ao criar uma obra de arte, o artista transforma sua conexo com o inconsciente em algo acessvel a todos, possibilitando que cada um de ns possa tambm estar reconectando consigo mesmo. Desta forma que considerado que o cinema pode atuar como fonte de projeo e transformao interna do indivduo. O cinema, como qualquer forma de expresso humana, oferece total condio para que elementos culturais se expressem, mesmo quando utiliza elementos arcaicos da cultura que no se alinham aos transmitidos pela tradio corrente. Este o caso da alquimia e por este motivo ela foi escolhida como foco do trabalho. O desafio proposto foi olhar para o cinema procurando por estes elementos e o resultado foi uma forma de resgate da antiga alquimia em produes humanas atuais. Nesta dissertao analiso quatro filmes como ilustrao da discusso principal: A Festa de Babette, Navigator, uma Odissia no Tempo, Um Beijo Roubado e Stalker. Foi utilizada uma abordagem que, ao mesmo tempo em que procura identificar uma imagem dentro do imaginrio tradicional, pretende ser respeitosa no que diz respeito dimenso simblica inatingvel da obra de arte.

    Palavras-chave: C. G. Jung, Cinema, Alquimia, Processo de Criao, Inconsciente.

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    ABSTRACTABSTRACTABSTRACTABSTRACT

    Among the theoreticians that sought a wider view of the human being in relation to worldwide cultural manifestations, C. G. Jung (1875-1961), chose the study of the human soul through dreams, myths and cultural symbols, because he believed the unconscious acted through several expression forms. The Cinema, as other forms of human expression, offers a good medium for the expression of cultural elements, even when it uses archaic elements that are dissimilar to those transmitted through tradition. This is also the case of Alchemy, which therefore was chosen as the focal point of this Dissertation. We revisited, thus, alchemy through moving pictures. According to Jung, the creative process is related to the translation, made by the artist, of primordial images, spontaneously originated in the unconscious, to the contemporary language. When an artist creates a work of art, she transforms

    her connection to the unconscious into something accessible to everyone, making it possible for us to also reconnect to our own selves. In that way, we can consider the cinema as a source of projection and internal transformation of the individual. In this dissertation I discuss alchemy through the illustrative analysis of four movies: Bebettes Feast, Navigator, a Medieval Odissey, My Blueberry Nights and Stalker. The approach used was to search for images of the movie within the traditional imaginary at the same time as due respect was paid to the unattainable symbolic dimension of the works of art.

    Key-words: C. G. Jung, Cinema, Alchemy, Creative process, Unconscious.

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    SumrioSumrioSumrioSumrio

    Introduo ................................................................................................................................................. 1 Capitulo 1 - O Cinema ............................................................................................................................. 5

    1.1 - O cinema e as projees da psique ............................................................................................... 5 1.2 - Cinema e Psicologia Analtica .................................................................................................... 10

    1.2.1 - Joseph Campbell e a jornada do heri ................................................................................. 12 1.2.2 - A linguagem cinematogrfica e a linguagem onrica .......................................................... 17

    Captulo 2 - C. G. Jung e o processo de individuao ............................................................................ 21 Captulo 3 - C. G. Jung e o processo de criao ..................................................................................... 33 Captulo 4 - O imaginrio e a linguagem simblica ............................................................................... 41 Captulo 5 - A alquimia ........................................................................................................................... 48

    5.1 - Um breve histrico ..................................................................................................................... 48 5.2 - A Alquimia e a psicologia analtica ............................................................................................ 52 5.3 - As fases do processo alqumico .................................................................................................. 56

    5.3.1 - Prima Matria ...................................................................................................................... 59 5.3.2 - A Nigredo ............................................................................................................................ 60 5.3.3 - O Azul .................................................................................................................................. 62 5.3.4 - A Cauda Pavonis.................................................................................................................. 62 5.3.5 - A Albedo .............................................................................................................................. 64 5.3.6 - O Amarelo ........................................................................................................................... 65 5.3.7 - A Rubedo ............................................................................................................................. 66

    5.4 - As operaes ............................................................................................................................... 67 5.4.1 - Calcinatio ............................................................................................................................. 67 5.4.2 - Solutio .................................................................................................................................. 70 5.4.3 - Coagulatio ............................................................................................................................ 72 5.4.4 - Sublimatio ............................................................................................................................ 74 5.4.5 - Coniunctio............................................................................................................................ 75

    Capitulo 6 - A anlise flmica ................................................................................................................. 77 6.1 - A metodologia ............................................................................................................................ 77

    6.1.1 - As etapas do trabalho ........................................................................................................... 79 6.2 - Os filmes ..................................................................................................................................... 82

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    6.2.1 - A Festa de Babette ............................................................................................................... 82 6.2.3 - Um Beijo Roubado .............................................................................................................. 96 6.2.4 - Stalker ................................................................................................................................ 102

    Consideraes finais ............................................................................................................................. 113 Referncias bibliogrficas ..................................................................................................................... 116 Filmografia

    ............................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................ 120

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    IntroduoIntroduoIntroduoIntroduo

    Durante os primeiros anos de meus estudos sobre psicologia analtica, fiquei receosa ao tentar entender os textos de Jung sobre a Alquimia. Achava o contedo confuso e quase sempre incompreensvel. Constantemente me questionava qual seria a relevncia para o mundo de contedos to enigmticos, estudados por adeptos que faziam questo de conservar somente para si mesmos os ensinamentos.

    C. G. Jung passou muitos anos de sua vida dedicando-se ao estudo da Alquimia, pois considerava que esta, alm das contribuies para a cincia, foi uma forma de conhecimento atravs da transformao psicolgica e espiritual do indivduo atravs do domnio da energia criativa que atua tanto na natureza quanto na mente humana. Portanto, ao constatar sua importncia para a compreenso

    do processo de individuao, decidi empenhar-me em ao menos absorver o que Jung dizia sobre os conceitos advindos da Alquimia, j que eu no conseguia acess-los indo diretamente fonte dos tratados alqumicos. Em um primeiro momento, sequer faz sentido a descrio que os estudiosos tentam fazer sobre o que vem a ser um processo alqumico, quanto mais os tratados alqumicos em si.

    Alguns anos se passaram at que eu finalmente comeasse a ver algum sentido no que eu lia. A Alquimia foi realizando em mim seu processo e eu comecei a sair de minha prpria Nigredo no assunto e alguma luz possibilitou que eu intuitivamente comeasse a identificar o processo alqumico em vrias manifestaes humanas e no s em mim.

    Da necessidade de escrever um trabalho para uma disciplina da ps em Psicologia Analtica, veio o desejo de transpor esta barreira com relao alquimia. Naquele momento eu quis mostrar o que eu havia entendido atravs de algo mais concreto e no simplesmente na construo de um texto terico. Ao rever um antigo filme (Navigator uma viagem no tempo), percebi que a histria contada ali relatava metaforicamente uma jornada alqumica. Este trabalho escrito acabou se tornando uma apresentao oral em um congresso que foi bem recebida pelo pblico e apontada como um caminho importante a ser trilhado na psicologia analtica, na medida em que trazia para a atualidade um tema to antigo quanto o da alquimia, fazendo com que ns, seus estudiosos, nos sentssemos mais prximos dela.

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    Meu otimismo inicial ao pretender utilizar meu conhecimento do processo alqumico para assistir a um filme e conseguir encontrar facilmente ali elementos da alquimia talvez se devesse ao fato de acreditar que esses elementos se encontram dentro de ns. Muitas dessas imagens aparecem em sonhos e em fantasias mesmo das pessoas que jamais ouviram falar no assunto. Portanto, identificar a presena de elementos arcaicos e ao mesmo tempo atuais, como o caso da alquimia, na linguagem moderna de imagens e sons do cinema abriu a mim uma nova perspectiva de interpretao como forma de confirmar a teoria de C. G. Jung de que o inconsciente possui elementos arquetpicos inerentes ao ser humano em qualquer tempo e lugar.

    Ao assistir um filme uma primeira vez, fico presa narrativa, historia contada. Isso porque venho de uma tradio de contadores de histrias e difcil deixar que o fascnio pelas palavras e o enredo passe a um segundo plano e sejam aguados outros sentidos. Depois dessa primeira vez, se outros elementos me chamaram a ateno, (como as cores, a paisagem ou cenrio, os sons, a msica), deixo-me levar por esta intuio de que possvel adentrar em uma interpretao maior do que simplesmente ouvir os dilogos e compreender os personagens. Preciso ento assistir uma segunda vez, desta vez, haver outro olhar. J sei a histria e agora poderei simplesmente sentir e olhar sob outra perspectiva.

    Portanto, meu segundo olhar para o filme no pde ser ingnuo e transparente. Ele carregado de intenes e contaminado pelo conhecimento objetivo, por menor que esse seja. Se intuitivamente percebi que h alguma outra coisa, quero saber se ela se encaixa no meu conhecimento da psicologia arquetpica, uma vez que o cinema, como qualquer forma de expresso humana, oferece total condio para que tanto elementos culturais quanto arquetpicos se expressem.

    Alm das dificuldades enfrentadas na tentativa de compreenso da alquimia, ao escolher abordar as artes visuais (cinema, pintura, fotografia...) encontrei-me em um caminho que j havia sido anteriormente trilhado por tantos, mas nunca por mim desta maneira. Neste percurso, houve encontros, mas tambm pude confrontar-me com posies diferentes das que eu esperava encontrar.

    Alguns autores utilizavam uma abordagem muito redutiva das imagens, atribuindo a elas uma finalidade e um sentido apenas para confirmar conceitos, o que acaba transformando-as em palavras, ou seja, em algo que no pertence sua natureza, descaracterizando-as. Esta postura parecia sedutora em um primeiro momento e servia a meu propsito de necessidade de sensibilidade e

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    ampliao das imagens, j que, na presena de um pensamento pr- existente e controlador das reaes, palavras costumam ser formas confortveis.

    Ao estudar autores que se mostravam sensveis a uma abordagem verdadeiramente simblica e no somente semitica e ao acolhimento s imagens de forma que elas pudessem ficar livres dos conceitos e transitar livremente por caminhos antes inexplorados dentro de mim, decidi escolher esta como a abordagem mais adequada do trabalho.

    As transferncias que podem estar sendo operadas entre a alma do espectador e os filmes remetem a uma temporalidade circular e so completamente subjetivas. Como espectadora pesquisadora, o risco grande de que acontea uma projeo de contedos que espero encontrar, vistos somente por mim em minhas projees. Sendo o cinema uma experincia ao mesmo tempo individual e compartilhada e que pode acolher as projees da nossa psique, no h outro mtodo possvel de interpretao seno o que reconhece essas limitaes e as leva em conta.

    Desta forma, os filmes escolhidos para este trabalho talvez acabaram sendo aqueles que me tocaram em meu processo individual, que ressoaram de alguma forma em minha psique para que eu tivesse condies de identificar ali os elementos de minha prpria individuao. Outros filmes seriam escolhidos por outras pessoas e outras pessoas talvez interpretassem os mesmos filmes de maneiras diferentes.

    Em um primeiro captulo, o cinema ser abordado como expresso artstica e transmissor cultural que pode propiciar projees e transformaes internas no indivduo. Sendo tratado como expresso artstica, pode ser fonte de pesquisa da psicologia analtica. Sero tambm abordados alguns estudos referentes anlise flmica, principalmente no que diz respeito utilizao da psicologia analtica como base para a construo de roteiros e estudos flmicos e ser feita uma breve comparao entre a linguagem cinematogrfica e a linguagem onrica.

    No segundo captulo, sero apresentados, de forma sucinta, os principais conceitos da psicologia de C. G. Jung, para que a compreenso do que ele denominou como processo de individuao possa ser posteriormente entendido de maneira anloga ao processo alqumico identificado nos filmes.

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    No terceiro captulo, a expresso artstica ser vista enquanto leitura do mundo e caminho de vrias possibilidades e, portanto, podendo ser submetida a uma abordagem psicolgica em seu processo. Ser explicitado como, segundo C. G. Jung, a objetivao de um complexo interno do artista pode ser considerada como obra de arte, independente do seu desejo, estabelecendo um dilogo entre consciente e inconsciente atravs do smbolo enquanto expresso desse processo. Sero tambm abordadas as ideias de Jung sobre a maneira como as pessoas produzem arte e a apreciam.

    No quarto captulo, sero discutidas algumas conceituaes que no decorrer do trabalho se mostraram importantes no que diz respeito abordagem simblica da obra de arte. Ser relatado o caminho de C. G. Jung com relao ao que considerava como uma atitude adequada com relao ao smbolo emergente e tambm de forma breve, algumas consideraes de Gaston Bachelard e Gilbert Duran, dois pensadores posteriores a C. G. Jung, cujos conceitos sobre o imaginrio influenciaram a abordagem analtica deste trabalho.

    No quinto captulo, ser apresentado um breve histrico da alquimia como produo cultural de suma importncia para o desenvolvimento humano desde milnios. Sero tambm apresentadas de forma sucinta as principais concepes do processo alqumico, dando nfase s correspondncias encontradas por C. G. Jung ao que ele denominou como processo de individuao, de forma com que as anlises dos filmes apresentadas posteriormente possam ser compreendidas com base nestas imagens da alquimia.

    No sexto captulo, sero apresentadas as anlises feitas de quatro filmes: A Festa de Babette, Navigator, uma odissia no Tempo, Um Beijo Roubado e Stalker. Inicialmente ser relatado de forma mais detalhada a metodologia utilizada para as anlises, dando nfase ao significado e importncia de uma abordagem simblica no trato com as imagens e posteriormente ser apresentado cada filme separadamente.

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    Capitulo 1Capitulo 1Capitulo 1Capitulo 1 ---- O CinemaO CinemaO CinemaO Cinema

    1.1 1.1 1.1 1.1 ---- O cinema e as projees da psiqueO cinema e as projees da psiqueO cinema e as projees da psiqueO cinema e as projees da psique

    Uma grande parcela dos seres humanos est formando sua inteligibilidade do mundo a partir das imagens e sons das produes de cinema e televiso, diferente de sculos anteriores onde a linguagem oral escrita dominava. A fotografia j foi um elemento transformador das artes, porm o cinema, alm disso, tem exercido uma enorme influncia na cultura. O cinema pode tornar visvel aquilo que no vamos e talvez nem pudssemos ver antes do seu surgimento. Ele efetivamente nos ajuda na descoberta do mundo. (Monteiro, 1996). A partir do advento do cinema, pudemos entrar em contato no s com o pensamento humano, mas tambm com suas aes.

    Entre os espectadores e a indstria cinematogrfica existe uma distncia enorme preenchida por altas tcnicas e seus consequentes custos. Isso faz com que raramente uma pessoa comum seja o produtor deste tipo de arte. Ela excluda do fazer, assumindo o papel de quem assiste, mas no sob uma forma passiva. Est, de fato, tendo a chance de ser provocada no s em pensar ativamente, mas tambm em entrar em contato com suas emoes e sentimentos.

    Em um filme, h uma histria, composta de fatos e personagens. Um filme de fico conduz o expectador a uma espcie de estado onrico: sua conscincia rebaixada e ele pode, caso seja envolvido com o enredo e os personagens, viver por algum tempo o que ocorre ali, tal como acontece no sonho, transcendendo suas limitaes fsicas no tempo e no espao, projetando a si mesmo.

    Epstein (in: Xavier, 1983), que alm de cineasta e terico tambm era um poeta, apontou as similitudes entre a linguagem flmica e o discurso do sonho. Assim tambm o fez Robert Desnos (1966), cunhando a expresso situao cinema, para definir uma fronteira entre a viglia e o sono, como forma de obter prazer compensatrio para os problemas do dia-a-dia. Outros estudos relativos psicanlise do cinema se referiram a temas como: a passividade do espectador, a ausncia de esprito crtico, o isolamento annimo, o voyeurismo, as questes relativas ao inconsciente da sociedade patriarcal estruturando a forma do cinema, a destruio do prazer como arma poltica, etc.

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    David MacDougall (1995) diz que nossa leitura de um filme e nossos sentimentos sobre ele a todo o momento o resultado de como experimentamos o complexo campo orquestrado pelo cineasta dependendo de quem ns somos e o que trazemos para o filme. Com respeito questo da comunicao ser uma orquestrao e o cinema ser considerado um conjunto de fatores criado com diversos propsitos, mas tambm o da comunicao, podemos citar os tericos da Escola de Palo Alto (pesquisadores de formao antropolgica e psiquitrica: Gregory Bateson, Erving Goffman, Edward T. Hall, Ray Birdwhistell, Don Jackson, Paul Watzlawick e Albert Scheflen) que, segundo Winkin (1988), definem a comunicao como um processo social permanente, integrando mltiplos modos de comportamento: a palavra, o gesto, o olhar, a mmica, o espao individual. Embora seja possvel estabelecer articulaes entre os estudos lingusticos e os da psicologia, j que um e outro abordam os sentidos e as significaes, uma reviso completa das reflexes e teorias conhecidas hoje em dia sobre o tema no seria compatvel com o objetivo e porte deste trabalho, portanto, os autores citados aparecem apenas como exemplo da complexidade do assunto.

    Ainda como forma de assinalar o quanto o cinema hoje em dia tem sido estudado e considerado fonte de transformao para seus espectadores no podemos deixar de notar que, fora do contexto acadmico, mas dentro do que talvez pudssemos classificar como auto-ajuda ou senso comum popular est comeando a surgir de forma incisiva uma linha teraputica chamada Cinematherapy. Os trabalhos esto sendo estruturados na crena de que, quando somos atingidos por uma subjetividade diferente da nossa, algo se modifica e para tal, os terapeutas recomendam que as pessoas assistam a determinados filmes, conforme seus conflitos.

    Em funo deste tipo de abordagem, encontramos hoje vrios autores com obras tais como: John W. Hesley and Jan G. Hesley (Rent Two Films and Let's Talk in the Morning: Using Popular Movies in Psychotherapy - Kindle Edition, 2001) Nancy Peske and Beverly West (Cinematherapy for Lovers: The Girl's Guide to Finding Inspiration One Movie at a Time Delta, 2003) Gary Solomon (The Motion Picture Prescription: Watch This Movie and Call Me in the Morning: 200 Movies to Help You Heal L Ife's Problems - Aslan Publishing, 1995) entre outros. Independente da credibilidade e validade deste tipo de trabalho, uma vez que ainda no foi estruturado e definido enquanto mtodo e nem foram feitas pesquisas para estudar seus efeitos, o surgimento e sucesso de

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    vendas destas obras, refora a ideia de que o cinema est sendo pensado como elemento de transformao.

    Um filme at pode ser pensado, mas tambm percebido e pode constituir-se como forma de conhecer o mundo e existir nele, agindo de forma anloga imaginao, estando condicionado a fatores subjetivos que dizem muito mais respeito associao mental livre de ideias do que aos fatos concretos externos. A arte, como a cincia, um meio de assimilao do mundo, um instrumento para conhec-lo.

    Ao aceitar o cinema como forma de conhecer o mundo, devemos refletir sobre qual a dimenso deste mundo do qual estamos falando. Tanto no caso da fotografia quanto no cinema, h uma tendncia em dizer que tentam retratar a realidade. No cinema, esta suposio se intensifica ainda mais em funo da temporalidade da imagem, atravs do movimento que propriedade essencial da realidade. Este suposto retrato da realidade foi motivo de intenso debate entre tericos do cinema e defensores do seu papel transformador da humanidade. Essa discusso decorre da inegvel dicotomia entre filmes comerciais e filmes como forma de arte e com um carter potico. Uma viso unilateral de que o cinema est somente ligado ao entretenimento levaria os produtores a procurar satisfazer uma forma de desejo do que as pessoas querem ver. Porm, do outro lado desta afirmao, no podemos esquecer do cinema enquanto forma de arte. Hoje em dia no h mais quem possua argumentos slidos contra esta afirmao e pretendemos, portanto, trat-lo como tal em nossa anlise. Escreveu Tarkovski:

    (...) A Experincia do autoconhecimento tico e moral representa, para cada um, o nico objetivo da vida e, em termos subjetivos, ela vivenciada a cada vez como algo novo. (...) E assim, a arte, como a cincia, um meio de assimilao do mundo, um instrumento para conhec-lo ao longo da jornada do homem em direo ao que chamada verdade absoluta. (TARKOVSKI, 2002, p.39)

    Epstein (in: Xavier 1983) afirma que: No olhamos a vida, ns a penetramos. Em seu conceito de fotogenia, ressalta o aspecto potico no movimento das coisas que s ao cinema cabe revelar.

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    Para Andr Basin (in: Xavier, 1977), o cinema uma forma de representao como um decalque do mundo. Para ele, o continum da vida que deveria ser representado, com um olhar que respeitasse os dados constitutivos de uma situao em bloco, sem que fosse maculado e, ao mesmo tempo, fixando no filme a qualidade de cada momento enquanto durao vivida.

    MacDougall (1995) afirma que no necessrio que os dispositivos narrativos utilizados para que se crie uma identificao do expectador com o filme estejam presentes. Portanto, seja em filmes de fico ou em documentrios, a identificao subjetiva pode ocorrer na narrativa sob suas diversas formas, porque o significado de um filme nunca somente linear, tambm corporal, ligado diretamente aos conflitos e no sendo, portanto, capaz de nos levar a uma concluso inequvoca.

    Uma viso unilateral de que o cinema est somente ligado ao entretenimento, levaria os produtores a procurar satisfazer uma forma de desejo do que as pessoas querem ver. Segundo Bromhead (1993), sob esta ideia, a veiculao dos filmes acaba tambm sendo regida por concepes estticas do publico comum, ou seja, os produtores querem filmes que fiquem atraentes ao publico em geral.

    Independente da temtica abordada, um filme que possibilita a participao afetiva do espectador permite que as transferncias que possam estar sendo operadas entre sua psique e o filme, o remetam a uma temporalidade circular - presente e memria - qual no pensamento mtico-religioso, atuante na Humanidade em numa poca em que a cultura no era to separada da Natureza.

    O cinema nos liberta do tempo ao qual estamos habituados em viver. Com a acelerao ou a cmera lenta, mudamos nossa perspectiva espao-temporal. Epstein fala sobre as contraes cinematogrficas do tempo:

    O cinema no explica apenas que o tempo uma dimenso dirigida, correlativa das dimenses do espao, ele explica tambm que todas as estimativas dessa dimenso s tm um valor particular.

    (EPSTEIN in: Xavier 1983, pg. 290)

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    A evoluo da tecnologia naturalmente implicou em uma interiorizao da magia por parte dos indivduos. Essa magia, segundo Edgard Morin, deixa ento de ser crena e passa a se tornar sentimento.

    A conscincia racional e objetiva obrigou a magia a recuar at a sua toca. E assim, de uma vez, se hipertrofia a vida interior e afetiva.

    (MORIN in: Xavier, 1983, p.148)

    (...) No seio do universo esttico, por e atravs das obras imaginrias, um vai e vem de reconstruo mgica e um vai e vem de destruio mgica pelo sentimento. A obra de fico ressuscita a magia e ao mesmo tempo a transmite. (MORIN in: Xavier, 1983 p.157)

    Vivncias autnticas de sentimento, emoo, alegria e tristeza, dvida e indignao... verificar a existncia da beleza e dignidade humana, bem como do horror e desrespeito independente das circunstncias... Isso tanto pode acontecer numa fico quanto num documentrio desde que esta circularidade acontea e permita ao expectador sair de seu tempo linear e lgico. O cinema seja ele de fico ou documentrio , portanto, uma experincia individual e ao mesmo tempo compartilhada que pode acolher as projees de nossa psique (Hauke & Alister, 2001).

    Assistir filmes e analis-los representa tambm a vontade de entender a nossa sociedade, que est se educando por imagens e sons, pois o cinema, como qualquer forma de expresso humana, oferece total condio para que elementos culturais se expressem.

    Assistir filmes provoca nossa noo de identidade:

    Seja para melhor ou para pior, o cinema, em seu registro e reproduo de seres, sempre os transforma, os recria numa segunda personalidade, cujo aspecto pode perturbar a conscincia ao ponto de fazer com que ele se pergunte: Quem sou eu? Onde est minha verdadeira identidade? E ter de acrescentar ao penso, logo existo, o porm no penso em mim do modo como existoe uma atenuante singular evidncia do existir. (EPSTEIN in: Xavier, 1983)

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    Edgar Morin (1997) enfatiza a participao afetiva do espectador, sendo esta um processo de projeo-identificao tal qual ocorre na vida normalmente, no s no cinema. Segundo o autor, nossas percepes so trabalhadas por nossas projees, sendo que as imagens so modeladas pelas aspiraes, desejos, medos, terror, pois na verdade os projetamos em todas as coisas e seres.

    Representamos um papel na vida, no s perante os outros, mas tambm (e sobretudo) perante ns prprios. O vesturio (esse disfarce), o rosto (essa mscara), as palavras (essa inveno), o sentimento da nossa importncia (essa comdia), tudo isso alimenta, na vida corrente, esse espetculo que damos a ns prprios e aos outros, ou seja, as projees-identificaes imaginrias. Na medida em que identificamos as imagens da tela com a vida real, pomos as nossas projees identificaes referentes vida real em movimento. Em certa medida, vamos l encontr-las. (MORIN in: Xavier 1983 p. 151)

    Ver filmes nos possibilita entrar em contato com o olhar do outro. Nosso mundo interno precisa ver-se refletido nas referncias do mundo externo, trazido pelo outro, para que possamos nos reconhecer como sujeitos desta mesma histria que est sendo retratada na tela.

    1.2 1.2 1.2 1.2 ---- Cinema e PsicologCinema e PsicologCinema e PsicologCinema e Psicologia Analticaia Analticaia Analticaia Analtica

    Acredito que a funo do filme vai muito alm do que se pretende e que possvel uma abordagem diferente das questes inconscientes subjacentes ao cinema da maneira como foram abordadas at o momento. Mesmo se ficarmos presos histria durante o tempo em que ela nos contada e se desenrola em nosso pensar, existir outro tempo, entrelaado do passado, presente e futuro, que possibilita que os smbolos relacionados dentro da perspectiva desejada nos transportem para dentro do que foi escolhido para ser mostrado, enquanto o que pode ter sido de certa forma escolhido para ser omitido tambm pode estar presente. Este nvel no do entendimento, mas um nvel mais parecido com um estado potico, mais profundo e completamente inconsciente. A

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    comunicao se daria num nvel no acessado racionalmente pelo pensamento, mas pelo sensvel em cada um de ns.

    Um dos arcabouos tericos que utilizarei nas anlises flmicas deste trabalho baseado na teoria de Jung (1875-1961), pois acredito que trs grandes conceitos de sua teoria analtica podem nos oferecer uma estrutura interessante para a anlise da mdia visual em geral:

    1) As imagens que surgem nos sonhos, mitos, contos e nas formas expressivas das artes em geral so frequentemente projees de contedos arquetpicos inconscientes.

    2) Existe um inconsciente coletivo onde estas imagens so consteladas.

    3) A possibilidade de que estas imagens acessem a conscincia promove um gradual desenvolvimento do nosso senso de si mesmo (identidade)

    Dentre os tericos que buscaram uma viso de ser humano que fosse a mais abrangente em relao s manifestaes culturais de todos os tempos, Jung foi quem se dedicou ao estudo da alma humana atravs de imagens de sonhos, mitos e smbolos da cultura, por acreditar que a atuao do inconsciente se dava atravs de vrias linguagens.

    Identificar nesta linguagem moderna de imagens e sons do cinema, a presena de elementos arcaicos e ao mesmo tempo atuais, como o caso dos temas arquetpicos, pode corroborar a teoria de Jung de que o inconsciente possui elementos inerentes ao ser humano em qualquer tempo e lugar. A relao entre o objeto e o smbolo abstrata e desconhecida, possuindo um carter paradoxal, pois estabelece ao mesmo tempo relaes com o irreal e permite uma adaptao do ser humano realidade. Sem a linguagem simblica, o contedo dos arqutipos no seria difundido e expresso e, desta forma, este espao imaginrio do inconsciente no poderia fazer sua mediao com o espao real. (Jung, 1991a).

    Em alguns filmes, as imagens arquetpicas podem aparecer sob a forma de personagens criados. Em outros, elas podem estruturar a histria contada. Mesmo quando no somos capazes de identificar estas imagens, elas atuam de maneira inconsciente. De qualquer forma, mesmo quando no a inteno do cineasta que isso acontea, como tudo o que emerge do inconsciente no depende de nosso desejo ou inteno, isso simplesmente acontece e pode vir tona para a conscincia no

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    diretamente atravs da percepo, mas como influncia em nossa maneira de ser, sendo, portanto, um elemento transformador.

    Os estudos de Joseph Campbell (2007), inicialmente baseados em Jung, apontaram que se existem diferenas entre as diversas mitologias e religies da humanidade, existem tambm semelhanas e o Heri um arqutipo presente em todos os mitos.

    Com base nesse trabalho, Christopher Vogler (1998) publicou uma espcie de manual para roteiros cinematogrficos (The Writer's Journey: Mythic Structure for Writers) que rapidamente fez grande sucesso. A percepo de que todas as histrias consistem de poucos elementos estruturais que so encontrados em mitos, contos de fadas e sonhos, inspirou no s a realizao de obras cinematogrficas, como tambm lanou uma nova luz sobre o cinema, na forma de interpretao de obras anteriormente realizadas. Alguns exemplos desse tipo de reinterpretao dos filmes sob a perspectiva do Heri so as obras de Voytilla (1999) Izod (2001), Hauke &Alister (2001), Waddell (2006) e Hirschberg (2009), alm de inmeros artigos encontrados em peridicos avulsos, sendo importante mencionar um nmero da revista Spring - Journal of Archetype anda Culture (a mais antiga revista especializada em estudos junguianos) de 2005, dedicado exclusivamente ao cinema.

    1.2.1 1.2.1 1.2.1 1.2.1 ---- Joseph Joseph Joseph Joseph Campbell e a jornada do heriCampbell e a jornada do heriCampbell e a jornada do heriCampbell e a jornada do heri

    Jornada do heri o nome dado a um padro de narrativa identificado pelo estudioso americano Joseph Campbell, que aparece em dramas, narrativas, mito, rituais religiosos, por estar presente no desenvolvimento psicolgico de cada um. Ele descreve a aventura tpica de arqutipo conhecido como Heri, a pessoa que sai e realiza grandes atos em nome de um grupo, uma tribo ou civilizao. Sua obra O Heri de Mil Faces sugere que o heri pode ter muitas faces, mas sua histria sempre a mesma, ou seja, existe um padro.

    O heri, por conseguinte, o homem ou mulher que conseguiu vencer suas limitaes histricas pessoais e locais e alcanou formas normalmente vlidas, humanas. As vises, ideias e inspiraes dessas pessoas vm diretamente das fontes primrias da vida e do pensamento humanos. Eis por que falam com

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    eloqncia, no da sociedade e da psique atuais, em estado de desintegrao, mas da fonte inesgotvel por intermdio da qual a sociedade renasce. O heri morreu como homem moderno; mas, como homem eterno aperfeioado, no especfico e universal , renasceu. Sua segunda e solene tarefa e faanha , por conseguinte (como o declara Toynbee e como o indicam todas as mitologias da humanidade), retornar ao nosso meio, transfigurado, e ensinar a lio de vida renovada que aprendeu. (CAMPBELL, 2007 p 28)

    As fases desta jornada, identificadas por Vogler, se configuraram da seguinte maneira:

    1. APRESENTAO O MUNDO COMUM

    O heri apresentado num determinado ambiente, cotidiano, hereditariedade e histria pessoal.

    2. O CHAMADO

    Algum tipo de polaridade na vida do heri o impulsiona em direes diferentes e isso causa conflito abalando a situao. H presses externas ou internas que o heri deve enfrentar.

    3. A RECUSA DO CHAMADO

    O heri sente o medo do desconhecido e tenta afastar-se da aventura, no entanto este um breve momento. Alternativamente, outro personagem pode expressar a incerteza e o perigo pela frente.

    4. A REUNIO COM O MESTRE

    O heri encontra-se com outro personagem que proporciona treinamento, equipamento ou conselhos que ajudaro na aventura. Alternativamente, o heri encontra algum tipo mgico de fonte de coragem e sabedoria.

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    5. A PRIMEIRA PASSAGEM

    O heri se compromete em deixar o mundo ordinrio e entra em uma nova regio ou condio com valores e regras desconhecidas. Isso normalmente acontece impulsionado por fatores externos. No h uma mudana fsica necessria, mas uma mudana de condies.

    6. TESTES, ALIADOS E INIMIGOS

    Uma vez inserido no misterioso e desconhecido, o heri testado atravs de desafios e tarefas contra inimigos menores e define quais so suas habilidades no mundo especial s vezes com a ajuda de aliados. Pode ser tambm uma continuao do treinamento do mestre. Este teste diz respeito ao seu carter.

    7. A ENTRADA NA CAVERNA PROFUNDA

    Uma vez que o heri e seus aliados estejam preparados para o grande desafio do mundo especial, se dirigem para o local onde o confronto ocorrer. Ajustes finais so realizados, planos e estratgias de aproximao.

    8. A PROVAO O heri confronta a morte ou enfrenta seu maior medo ou desafio. Ele deve morrer para

    renascer. Isto pode acontecer de diversas maneiras: o final de um relacionamento, a runa de um negcio, a morte de uma velha personalidade... que ele sempre supera.

    9. A RECOMPENSA

    Como consequncia por ter renascido, o heri toma posse do tesouro ou do prmio que ganhou enfrentando a morte. O prmio pode no ser necessariamente material. Pode haver algum tipo de comemorao porque no dever haver perigo de perder o tesouro.

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    10. O CAMINHO DE VOLTA

    Uma vez que a recompensa foi obtida e os conhecimentos adquiridos, o heri enfrenta uma escolha: poder permanecer neste mundo especial ou retornar ao mundo comum. A maioria escolhe retornar. Ele orientado para concluir a aventura, deixando o mundo especial para se certificar de que o tesouro ser trazido para casa.

    11. A RESSURREIO

    O heri testado duramente mais uma vez ao se aproximar da volta para casa. Ele purificado por um ltimo sacrifcio, outro enfrentamento da morte com subsequente renascimento, mas desta vez de maneira mais elaborada e completa antes de voltar completamente ao mundo comum. Pela ao do heri, as polaridades que estavam em conflito no incio so finalmente resolvidos.

    12. O RETORNO COM O TESOURO

    O heri volta para casa ou continua a viagem, tendo alguns elementos do tesouro que tem o poder de transformar o mundo da mesma forma como o heri foi transformado.

  • Vogler acentua continuamente o fato de que seguir as orientaes do mito de forma demasiado rgida pode levar a uma estrutura rgida, pouco natural, e h o perigo de ser demasiado bvio. O mito de heri um esqueleto que deve ser mascarado com os detalhes da histria e a estrutura no deve chamar a ateno para si. A ordem das fases do heri como apresentadas aqui apenas uma das muitas variaes perder a qualidade de sua estrutura. Os valoreverso bsica jovens heris que procuram espadas mgicas de assistentes antigos combatemdrages do mal em profundas cavernas, etc. para se adequar o enredo.

    O velho sbio pode ser um xam real ou o assistente, mas ele tambm pode ser qualquer tipo de tutor ou professor, mdico ou terapeuta, chefe bom e justo, sargento, pai, av, etc. Os heris

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    continuamente o fato de que seguir as orientaes do mito de forma demasiado rgida pode levar a uma estrutura rgida, pouco natural, e h o perigo de ser demasiado bvio. O mito de heri um esqueleto que deve ser mascarado com os detalhes da histria e a estrutura no deve chamar a ateno para si. A ordem das fases do heri como apresentadas aqui

    os estgios podem ser excludos, adicionados e misturados sem . Os valores presentes no mito o que importante. As imagens da

    jovens heris que procuram espadas mgicas de assistentes antigos combatemdrages do mal em profundas cavernas, etc. so apenas smbolos e podem ser alterados infinitamente

    O velho sbio pode ser um xam real ou o assistente, mas ele tambm pode ser qualquer tipo de tutor ou professor, mdico ou terapeuta, chefe bom e justo, sargento, pai, av, etc. Os heris

    continuamente o fato de que seguir as orientaes do mito de forma demasiado rgida pode levar a uma estrutura rgida, pouco natural, e h o perigo de ser demasiado bvio. O mito de heri um esqueleto que deve ser mascarado com os detalhes da histria individual, e a estrutura no deve chamar a ateno para si. A ordem das fases do heri como apresentadas aqui

    os estgios podem ser excludos, adicionados e misturados sem o mito o que importante. As imagens da

    jovens heris que procuram espadas mgicas de assistentes antigos combatem a so apenas smbolos e podem ser alterados infinitamente

    O velho sbio pode ser um xam real ou o assistente, mas ele tambm pode ser qualquer tipo de tutor ou professor, mdico ou terapeuta, chefe bom e justo, sargento, pai, av, etc. Os heris

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    modernos podem no ser entrar em grutas e labirintos e efetuar lutas com feras mticas, mas podem ir para o espao, para o fundo do mar, podem penetrar em si prprios, ou nas ruelas da cidade moderna.

    O mito pode ser usado tanto para uma histria em quadrinhos mais simples ou um drama mais sofisticado. Ele cresce e amadurece conforme novas experincias so incorporadas em sua base. Alterar o sexo e idade dos caracteres principais apenas os torna mais interessantes e permite que cada vez mais sejam criadas teias de compreenso entre eles. Os caracteres essenciais podem ser combinados ou divididos em vrios nmeros para mostrar diferentes aspectos da mesma ideia. O mito facilmente traduzido em dramas contemporneos, comdias, romances ou aventuras de ao, j que possvel substituir seu contexto original por equivalentes modernos sem perdas.

    1.2.2 1.2.2 1.2.2 1.2.2 ---- A linguagem cinematogrfica e a linguagem onricaA linguagem cinematogrfica e a linguagem onricaA linguagem cinematogrfica e a linguagem onricaA linguagem cinematogrfica e a linguagem onrica

    Se o cinema parente consanguneo do sonho e o sonho a malha em que o inconsciente se tece, ento cinema e inconsciente se irmanam. (Santaella apud Droguet, 2004)

    O sonho uma experincia individual e inconsciente e um filme um trabalho coletivo, produto de uma experincia social e consciente, mas no decorrer deste trabalho, se tornar mais claro a maneira como tanto as imagens onricas quanto as que aparecem em um filme podem ter sido geradas no inconsciente. Porm, neste momento, sero ressaltadas apenas as similaridades entre o cinema e o sonho no que diz respeito sua linguagem.

    Inicialmente existe um aspecto bem banal: o escuro da sala de projeo anlogo ao fechar dos olhos no sono e o enredo do filme similar ao sonho em si. Outro aspecto a ser considerado o enquadramento, ou seja, nas imagens que foram escolhidas para serem retratadas. Tanto no sonho, quanto no filme, enquadrar implica em ter deixado algo de fora, mas que continua a existir. Aquela imagem foi eleita entre tantas. O que retratado pode possibilitar a suposio do todo que ficou de fora. como um recorte escolhido de algo maior, uma janela para um mundo incomensurvel (Xavier, 2005).

    Assim como o sonho, um filme pode ser visto no apenas como um discurso composto de elementos ou ento de um espao onde as coisas possuem seu lugar. No filme ou no sonho, a presena

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    de cada elemento tem seu ritmo e pode ser geradora de uma experincia nova no mundo visvel. Cada imagem importante se constituindo como camadas inseparveis no tempo, nenhuma parte devendo ser destacada ou privilegiada.

    O filme, como o sonho, traz os fatos narrados de forma que o objetivo pode no ser simplesmente mostrar algo, mas tambm significar algo. Pode no ser um simples testemunho, um registro de algo que existe, mas tambm uma tentativa de sua compreenso. Se o significado existir, o papel da arte, assim como do sonho, ser traz-lo tona atravs da representao. No necessariamente explicit-lo, mas abrir essa possibilidade. A aparncia realista da imagem cinematogrfica uma questo de ponto de vista. Nos filmes que se assemelham a sonhos, a comunicao se dar de alma a alma, como afirmou Lus Buuel (1900-1993) ao defender o expressionismo no cinema. Desta forma, a superfcie material atravessada e atingida uma comunicao direta dentro de cada um de ns.

    Nossa leitura de um filme e nossos sentimentos sobre ele a todo o momento o resultado de quem ns somos e o que trazemos para o filme. Assim tambm, toda interpretao de sonho uma hiptese, apenas uma tentativa de ler um texto desconhecido onde muitas vezes os caracteres se mostram estranhos aos olhos que tentam decifr-los. Muitas vezes, a nossa no compreenso do sonho ou do filme se deve ao nosso ego unilateral e nossa abordagem por demais verbal, por estarmos to acostumados em tentar estabelecer uma coerncia neste nvel. Neste caso, o ideal entrar em contato com as imagens sem forar interpretaes. A compreenso um processo subjetivo e no apenas racional, mas tambm emocional e sentimental.

    Visto que o material utilizado pelo cinema tem total afinidade com o material dos sonhos, no raro encontrarmos filmes que utilizam esta falta de lgica racional ao construir a narrativa, similar ao sonho. Um filme que se aproxima do sonho no se preocupa em apresentar um mundo estabilizado entre frustraes e desejos de forma comportada. Neste tipo de filme, assim como no sonho, no h preocupao com verossimilhana e com regras de percepo comum. Tudo pode ser fruto de interveno: a estrutura das imagens, a construo do tempo e do espao. No h uma preocupao com o tipo de provocao que est sendo gerada. Ela acontece. No h tampouco uma preocupao em gerar conforto atravs de regras. Ao contrrio, o espectador ou o sonhador muitas vezes pode ver-se frustrado ao esperar uma narrao que no tenha referncias claras de espao e

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    tempo. A todo o momento podem surgir descontinuidades e uma coisa vira outra. Objetos somem, pessoas aparecem, cenrios mudam radicalmente, cores se transformam, tudo possvel:

    A analogia entre a linguagem do filme e o discurso do sonho no se limita a esta dilatao simblica e sentimental do significado de certas imagens. Tanto quanto o filme, o sonho amplia, isola detalhes significativos, produzindo-os no primeiro plano dessa ateno que eles mobilizam inteiramente. Do mesmo modo que o sonho, o filme pode desenvolver um tempo prprio, capaz de diferir amplamente do tempo da vida exterior, de ser mais lento ou mais rpido que este. Todas essas caractersticas em comum desenvolvem e apiam uma identidade fundamental de natureza, uma vez que ambos, filme e sonho, constituem discursos visuais. Donde se pode concluir que o cinema deve transformar-se no instrumento apropriado descrio dessa vida mental profunda da qual a memria dos sonhos, mesmo que imperfeita, nos d um bom exemplo. (EPSTEIN in: Xavier 1983 p. 297)

    Em 1929, Lus Buuel associou-se a Salvador Dali para escrever o roteiro do filme Un Chien Andalou (Um Co Andaluz). O ponto de partida foi uma imagem onrica. Por meio de uma espcie de ampliao desta imagem, foram obtendo outras imagens que brotavam espontaneamente, atualizando as precedentes e se atualizando nas seguintes at que por fim compuseram um todo contnuo, imitando a articulao dos sonhos (Deleuze, 1990).

    Alain Resnais em incio de carreira lanou dois filmes cujas temticas no se tratavam de sonhos, mas do tempo e da memria: Hiroshima Meu amor (Hiroshima Mon Amour, 1959) e Ano Passado em Marienbad (L'anne dernire Marienbad, 1951). Embora estes filmes no retratassem sonhos, utilizaram uma forma de discurso onrico, fugindo das referncias tradicionais no que se refere linguagem.

    O filme no necessita ser conduzido totalmente no formato onrico. Esse recurso pode aparecer apenas em algumas cenas, exatamente para ser um elemento de subverso de todo o resto e tambm como forma de questionar a realidade. A lista de filmes que empregam essa estrutura enorme: alguns foram mais populares e satisfizeram um publico que habitualmente se sente atrado pela

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    beleza das imagens; outros foram assistidos apenas pelas pessoas que j mostravam afinidade com a obra do diretor e, dessa forma, foram capazes de se deixar conduzir pela narrativa proposta.

    Desde o invento do cinema, muitos filmes poderiam ser citados como exemplos que contm uma narrativa onrica, bem como muitos diretores e roteiristas fizeram e fazem disto sua marca pessoal. Podemos citar entre tantos, Peter Greenaway, David Lynch, Andrei Tarkovsky, Sokurov, porm lembrando que outros no menos importantes poderiam tambm aqui ser citados.

    Ao assistir um filme, podemos ficar presos narrativa durante o tempo em que ela nos contada e se desenrola em nosso pensar, podemos estabelecer relaes coerentes de tempo e espao com certa dose de causalidade, mas existir tambm outro tempo e tambm outro espao, cheio de dobras e texturas... que nos provocar inconscientemente. Este pode ser um efeito transformador do cinema. Tal qual um conto de fadas, ou um mito, ou qualquer outra forma de arte, o cinema dirige-se ao inconsciente em sua prpria linguagem.

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    Captulo 2Captulo 2Captulo 2Captulo 2 ---- C. G.C. G.C. G.C. G. Jung e o processo de individuaoJung e o processo de individuaoJung e o processo de individuaoJung e o processo de individuao

    Desde o incio de sua carreira como psiquiatra, Jung (1985a) acreditava que, tanto nos doentes mentais, quanto nas pessoas ditas normais, ocorriam processos psquicos paralelos aos conscientes, que determinavam grande parte de seus comportamentos, fossem estes estranhos ou normais. A conscincia parecia ser apenas uma camada que cobria uma rea desconhecida.

    Utilizando a psicanlise a princpio, para reforar suas descobertas, Jung tambm concebeu que a vida psquica do homem no se resumia aos seus processos conscientes, mas sua maneira de entend-los era diferente. A todos os contedos inconscientes cuja origem possa ser reconhecida no passado do indivduo, Jung denominou inconsciente pessoal.

    Entretanto, Jung tambm se deparou com outro tipo de contedo inconsciente. Percebeu que o inconsciente produzia imagens que no poderiam ser explicadas com base nas experincias do indivduo e que, geralmente, possuam um carter mtico que se apresentava de maneira semelhante em toda parte e em todos os indivduos. A estes contedos, Jung (1985a) denominou primeiramente inconsciente coletivo e, posteriormente, psique objetiva, j que no diz respeito a uma subjetividade.

    Investigando este tipo de material, Jung (1980) concluiu que, assim como o corpo humano produto de um longo processo evolutivo, nossa mente inconsciente tambm poderia se constituir de forma anloga. Ao nascer, nosso crebro j teria uma estrutura que foi elaborada ao longo de milhares de anos e representaria esta evoluo. Assim tambm nossa mente inconsciente teria sua histria que foi construda atravs das experincias psquicas que o ser humano repetiu incessantemente, durante toda a sua evoluo. Nossa psique seria moldada e influenciada por estas experincias da humanidade em toda a sua histria de desenvolvimento, o que condicionaria nossa maneira de apreender e lidar com situaes caractersticas e significativas para o ser humano, tais como: o nascimento, a morte, a luta

    contra perigos, a maternidade ou paternidade, a unio com um companheiro, a competio...

    Acreditando que a psique tenha esta conformao bsica presente em todos os seres humanos, denominada inconsciente coletivo que Jung (1980), procura explicar o fenmeno de alguns temas se repetirem no mundo inteiro, alm de explicar porque os doentes mentais podem reproduzir as

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    mesmas imagens e associaes que so encontradas em textos antigos aos quais os mesmos nunca teriam acesso.

    Segundo Jung (1980), o que se transmitiria de alguma forma no so imagens, ou ideias inatas, mas caminhos que na verdade so potencialidades, predisposies, possibilidades de ao que permitiriam ao homem experimentar e responder ao mundo de uma mesma forma: o que se transmite a capacidade de ter tais imagens. A estas matrizes humanas, denominou arqutipos.

    Uma vez que os instintos so fatores impessoais e hereditrios que atuam independentemente conscientizao, os arqutipos podem ser entendidos de forma anloga e podem inclusive ser considerados como imagens inconscientes dos prprios instintos, representando o modelo bsico do comportamento humano.

    Os arqutipos seriam ento matrizes do inconsciente coletivo, constituindo-se em temas que fazem parte da espcie humana como alguns comportamentos biolgicos tambm o so: comer, reproduzir-se, dormir... Estes temas aparecem representando o heri, a me, o pai, a criana, o mestre, o discpulo, a busca do tesouro, a luta contra o inimigo... Os arqutipos seriam todas as possibilidades de atuao psquica que o ser humano j teria ao nascer, que seriam realizadas ao longo de sua vida. Embora o potencial arquetpico seja igual em todos os seres humanos, a realizao deste potencial no acontece de maneira uniforme entre todos os indivduos, porque cada um estar inserido em um contexto diferente de mundo. Interferem a os aspectos ambientais, raciais, culturais, familiares... lidando de forma particular com cada situao tpica da vida.

    O inconsciente fornece, por assim dizer, a formaarquetpica, que em si mesma vazia e, por isso, inimaginvel. No entanto, da parte do inconsciente, essa forma logo estar sendo preenchida com material imaginado, aparentado e semelhante, tornado perceptvel (JUNG apud Jacobi, 1986, p.72)

    O conceito de arqutipo foi tantas vezes mal entendido que difcil falar dele sem que devamos explic-lo sempre de novo. E derivado da variada e repetida observao de que, por exemplo, os mitos e contos de fadas da literatura mundial contm motivos determinados que aparecem sempre e em todos os lugares. Estes mesmos motivos ns os encontramos nas fantasias, sonhos,

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    delrios e alucinaes do homem de hoje. Essas imagens e associaes tpicas so designadas representaes ou ideias arquetpicas. Quanto mais ntidas forem, tanto mais viro acompanhadas de tons sentimentais bem vivos. Isto lhes d um especial dinamismo no mbito da vida psquica. So impressionantes, influenciam e fascinam. Tm sua origem no arqutipo que em si uma forma irrepresentvel, inconsciente e pr-existente que parece ser parte da estrutura hereditria da psique e que pode manifestar-se, por isso, como fenmeno espontneo em qualquer lugar. De acordo com sua natureza instintiva, o arqutipo serve de base aos complexos de cunho afetivo e participa de sua relativa autonomia. O arqutipo tambm o pressuposto psquico das afirmaes religiosas e determina o antropomorfismo das imagens de Deus. Mas isto no razo suficiente para qualquer juzo metafsico, seja positivo ou negativo. (JUNG 2000a 847)

    Teoricamente, no seria possvel definir o nmero de arqutipos, pois eles esto presentes em todas as situaes da vida. Entretanto, geralmente podem ser melhor percebidos nos smbolos que emergem de comportamentos e vivncias que se aglomeram em torno dele, formando o que foi denominado de Complexo por Jung. Quando estes acontecimentos arquetpicos, tipicamente humanos, fazem parte da vida de uma pessoa, o inconsciente em sua dimenso coletiva, tenderia a manifestar-se atravs de certas imagens tpicas de natureza simblica.

    O arqutipo em si mesmo inobservvel, mas gera efeitos que tornam possveis as observaes: as imaginaes arquetpicas. S depois de ter recebido uma forma, manifestada pelo material psquico individual, que ele se torna psquico e penetra na atmosfera do inconsciente. Foi ento atualizado e tornado imagem na matria psquica consciente. (JACOBI, 1986, p 40)

    Nada se pode dizer sobre o que inconsciente, portanto, para relacionar-se com o consciente, esta dimenso humana-coletiva teria que utilizar-se de imagens, de smbolos arquetpicos, j que a percepo ou a sensao no tm referncias concretas para tal. O smbolo a forma como a energia do arqutipo aparece. Funcionaria como um elo entre a conscincia e o inconsciente, uma vez que, o arqutipo em si no consciente. Na medida em que se torna consciente atravs do smbolo, confere uma forma mais definitiva aos contedos da conscincia.

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    Qualquer tentativa de interpretao dos arqutipos constitui-se apenas em uma possibilidade, j que refere-se a imagens primordiais, anteriores conscincia da forma como a vivenciamos hoje. Porm, considera-se que estas imagens vindas do inconsciente, seja em sonhos ou nas artes ou mesmo na lembrana de um conto de fadas preferido da infncia, esto expressando algo do processo psquico do indivduo, permitindo, desta forma, uma espcie de dilogo com ele.

    Jung (1980) dedicou especial ateno aos arqutipos da Persona, Sombra, Anima, Animus e Self, tendo em vista a importncia de suas manifestaes na dinmica psquica de todos os indivduos.

    Conforme se relaciona com o mundo exterior, o indivduo necessita de constantes adaptaes. A Persona o arqutipo envolvido na adaptao do indivduo a esta realidade exterior e coletividade. a mscara social, compatvel com aquilo que a sociedade exige. a roupa que devemos usar sempre, seja a de uso dirio, ou a que usamos em situaes especiais.

    Essa mscara pode ser confundida com o prprio eu: por vezes pode ser difcil reconhecer que no passa de uma personagem social, adequada quilo que a sociedade precisa e espera. Quando muito rgida, o indivduo desenvolveria um pseudo-ego, que um padro de personalidade estereotipado. Quando muito frgil, h a recusa em aceitar qualquer exigncia ou adaptao coletiva e freqentemente torna a pessoa rebelde e insegura. Portanto, ter uma Persona malformada to problemtico quanto seu oposto, ou seja, uma Persona rgida demais.

    As regras do grupo sociais so impostas e, na infncia, o indivduo tem que adaptar-se para ser aceito. Isto o que ele, de certa forma, escolhe ser. Porm, os aspectos da personalidade que no esto adequados, ou seja, que parece no estar de acordo com os valores coletivos, tem que ser deixados de lado para atender a esta sua escolha. Estes so reprimidos e ficam no nvel do inconsciente pessoal, porque dizem respeito somente quela pessoa e constituiriam o que Jung chamou de Sombra. Esta se constitui, portanto a partir das qualidades reprimidas, no aceitas ou no admitidas porque seriam incompatveis com as que foram escolhidas. Segundo Whitmont (1985), a Sombra refere-se parte da personalidade que foi reprimida em benefcio do ego ideal.

    Como a sombra formada a partir da presso social, consequentemente pode ter muitos aspectos positivos tambm, por exemplo, quando algum aspecto de criatividade ocorre na criana na hora errada, ou seja, quando os dons artsticos tm que ser reprimidos porque o ideal social a

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    intelectualidade ou as condies socioeconmicas no favorecem este tipo de expresso, priorizando a sobrevivncia bsica.

    Como a coletividade e a individualidade so um par de opostos, h um relacionamento de oposio e compensao entre a Sombra e a Persona. Quanto mais clara a Persona, mais escura a Sombra. Com o decorrer do desenvolvimento, o ego tem que diferenciar o que se constitui como ns mesmos separados das exigncias externas feitas a ns. Desta maneira, verificamos que, Sombra e Persona seriam constituintes do desenvolvimento do ego e sua existncia ou sua necessidade um fato arquetpico geral, porque sua formao acontece no choque entre a coletividade e a individualidade e isto corresponde a um padro humano geral.

    Como um arqutipo que reflete a tendncia inata de adaptao diante do social, a sombra possui elementos do coletivo. A relao do indivduo com a sociedade dialtica, ou seja, h influncia mtua. Neste caso, podemos dizer que ento existe uma sombra pessoal e tambm uma sombra coletiva, que ser formada na medida em que um grupo social composto de vrios indivduos e suas normas de convivncia. A sombra coletiva aparece a partir do momento em que determinada cultura ou civilizao faz suas escolhas de conduta e normas sociais. O que ficar de lado e for reprimido, se constituir na sombra coletiva (Von Franz, 1985).

    A sombra pode ser observada somente atravs das projees no mundo exterior, portanto, reconheceremos nossos aspectos de sombra ao nos depararmos com os mesmos em outras pessoas. Da mesma maneira, os aspectos de sombra coletiva sero percebidos de maneira geral por quem no est dentro da mesma cultura.

    Por exemplo, muitos orientais acham que nossa atitude coletiva completamente inconsciente com relao a certos fatos metafsicos, e que ingenuamente nos deixamos levar por iluses. assim que eles nos veem, mas no assim que nos vemos. Devemos ter uma sombra que ainda no demos conta, da qual no temos conscincia; e a sombra coletiva particularmente ruim porque cada um apoia o outro em sua cegueira - somente nas guerras ou nos dios entre naes que se revela algum aspecto da sombra coletiva.

    (VON FRANZ, 1985, p.15)

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    Como seres fazendo parte de um universo maior do que a soma de ns todos, vivemos de acordo com algumas leis de organizao e funcionamento. O conflito universal vivenciado por ns o tempo todo e este se expressa sempre em polaridades: positivo/negativo, noite/dia, claro/escuro, consciente/inconsciente, luz/sombra/, Eros/Logos, feminino/masculino, Yin/Yang, etc. Sombra e Persona dizem mais respeito s polaridades do positivo/negativo, luz/sombra, enquanto que Anima e Animus, polaridade feminino/masculino.

    Enquanto a Sombra diz respeito s caractersticas pessoais reprimidas, Anima e Animus seriam padres humanos gerais instintivos, portanto no to influenciveis pelo mundo exterior (cultura, religio, famlia, Estado...) e fazem um elo entre o pessoal e o impessoal, o consciente e o inconsciente.

    Assim como a Persona est voltada para o mundo social e colabora com as necessrias adaptaes externas, tambm a Anima/us est voltada para o mundo interior da psique e ajuda uma pessoa a adaptar-se s exigncias e necessidades dos pensamentos intuitivos, sentimentos, imagens e emoes com que o ego se defronta. (STEIN, 1998, p. 120)

    Os arqutipos Anima e Animus dizem respeito ao que completamente diferente, ao arqutipo do outro, do que nos complementa para que vivamos na mesma equao de polaridades que rege a psique como um todo. No ser humano, o que h de mais outro o sexo oposto e, portanto, estes arqutipos so contra sexuais, ou seja, na mulher apresenta-se como masculino (Animus) e no homem, como feminino (Anima).

    Esta polaridade masculino/feminino no deve ser entendida como algo ligado diretamente ao gnero, mas em termos de implicaes arquetpicas mais amplas, ou seja, a masculinidade ou feminilidade so imagens simblicas e no devem ser confundidas com as caractersticas diretas dos homens ou das mulheres.

    Na psicologia analtica, comum utilizar os princpios de Eros e Logos, mas tambm os conceitos de Yin e Yang da filosofia chinesa, como apoio conceitual e representao simblica das energias que chamamos de feminino e masculino. Desta forma, Yang/Logos caracterizariam a

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    orientao consciente do homem, enquanto que Yin/Eros caracterizariam a da mulher. Paradoxalmente, a orientao do arqutipo num segundo plano, em nvel inconsciente, seria a de Yin/Logos na mulher e Yang/Eros no homem.

    So caractersticas femininas no homem e masculinas na mulher que normalmente esto sempre presentes em determinada medida, mas que so incmodas para a adaptao externa ou para o ideal existente, no encontrando espao algum no ser voltado para o exterior (JUNG,E. 1991, p.17)

    Logos/Yang pode ser traduzido grosso modo, como um interesse objetivo, reflexo, razo, disciplina, fora, impulsividade, discriminao e cognio, enquanto que Eros/Yin representado como dcil, receptivo, envolvente, relacional e sensitivo.

    O carter dessas figuras determinado pela estruturao no sexo oposto, sob a forma da imagem coletiva que o homem teria da mulher e a mulher do homem. Como so arqutipos, s so manifestados atravs das projees, seja no mundo exterior, na pessoa do sexo oposto, ou em sonhos ou fantasias. Segundo Jung (1982), a Anima imprime uma relao, uma polaridade, um potencial de emoo e relacionamento na conscincia do homem e o Animus um carter meditativo e capacidade de reflexo e conhecimento conscincia feminina.

    O Self poderia ser visto como o arqutipo que governa tanto o que consciente quanto o inconsciente. o ncleo da psique e exerce uma ao central reguladora, constantemente buscando a sua realizao, ou seja, a realizao da personalidade como um todo.

    Da mesma forma que o inconsciente, o si-mesmo o existente a priori do qual provm o eu. ele que, por assim dizer, predetermina o eu. No sou eu quem crio a mim mesmo, eu aconteo a mim mesmo. (JUNG, 1979, 391)

    O sistema psquico como um todo consiste em muitas partes. Pensamentos e imagens arquetpicas situam-se num polo do espectro, as representaes de pulses e instintos no outro extremo e entre os dois polos encontra-se uma vasta quantidade de material pessoal, como memrias esquecidas e relembradas e

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    todos os complexos. O fator que ordena todo este sistema e o mantm unido e coeso um agente invisvel chamado si-mesmo. Este o que cria os equilbrios entre os vrios outros fatores e os ata numa unidade funcional.

    (STEIN,1998, p. 152)

    A busca da realizao da totalidade da psique, ou seja, do Self, o que Jung (1985a) chama de Processo de Individuao. Atravs deste processo, o indivduo iria, aos poucos, se livrando da necessidade inconsciente de corresponder s expectativas de seu meio social, ao mesmo tempo em que passaria a se relacionar de maneira mais consciente com a sua realidade interior.

    Segundo Jung, isto acabaria permitindo um processo de diferenciao, fazendo com que cada indivduo pudesse tornar-se o ser nico que realmente , ao mesmo tempo em que realizaria melhor as qualidades coletivas do ser humano. Este desenvolvimento permitiria que ele realizasse de maneira mais completa as suas potencialidades, podendo assim aproximar-se da meta do processo de individuao, que a realizao da sua personalidade com um todo.

    O processo de individuao acontece no decorrer do desenvolvimento da pessoa atravs do crescimento do Ego para fora do inconsciente, conceito contrrio ao psicanaltico que afirma ser o inconsciente formado por contedos reprimidos que previamente foram conscientes.

    A evoluo, o desenvolvimento do indivduo, aconteceria na interao entre a personalidade realizada, centrada no Ego e a inteireza potencial, centrada no Self. Isto aconteceria de forma diferente em cada fase da vida, mas no na forma de estgios de desenvolvimento separados, pois h uma sobreposio das fases. Mas pode acontecer tambm que a conscincia no evolua alm de determinada fase, fazendo com que o individuo se mantenha num determinado estgio de sua individuao.

    A primeira fase acontece na infncia e adolescncia. A evoluo do Ego aconteceria a partir de uma deintegrao desta totalidade com a qual o indivduo nasce. A princpio, o beb age num estado de unidade com tudo o que acontece em torno dele, de forma que no existe diferena racionalmente vivenciada entre dentro e fora, sujeito e objeto, psique e corpo. Isto porque o Ego, que proporcionar a diviso dessas categorias, ainda no est presente. o que o antroplogo francs Levy-Bruhl chamou de Participation Mystique.

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    Segundo Fordham (1994), nascemos com um Self que foi chamado por ele de Self Primal. A partir do contato com o ambiente e tambm com estmulos internos, este Self afetado e vai oferecendo elementos ou projees ou ainda deintegrados que serviro de referncias arquetpicas de existncia humana num processo chamado de deintegrao.

    A deintegrao acontece na medida em que o mundo externo requisita determinada interao. Elementos do Self Primal so acionados em resposta. Ento, segue-se a isso, uma reintegrao destes elementos pelo Self, como forma de renovao de si mesmo e da formao do inconsciente pessoal. Esta sequencia repete-se sem cessar durante todo o amadurecimento. A evoluo do ego aconteceria, portanto, num constante intercmbio entre o mundo interno e externo, a partir da deintegrao desta totalidade com a qual o indivduo nasce e na posterior reintegrao junto ao Self.

    A deintegrao concebida como uma propriedade espontnea do Self por trs da formao do ego. Antropomorficamente falando, poderamos dizer que ela surge de um desejo do Self de tornar-se consciente, de formar um ego dividindo-se. (FORDHAM apud Whitmont, 1995 p.238)

    Frequentemente projetam-se nos filhos aquelas necessidades, angstias e desejos no satisfeitos na prpria infncia ou ento sentimentos extremos de proteo e aceitao. Desta forma, a autoimagem que est emergindo na criana ser modificada ou por falta de separao ou por falta de aceitao. A primeira tende a resultar em um Ego sem fora, sem autoconfiana e dependente. A segunda conduz a sentimentos de inadequao. A autoimagem e a qualidade da experincia de identidade ficam, assim, condicionadas pelos fatores externos.

    Numa segunda etapa, alguns objetos e pessoas passam a ter um significado pessoal atravs da projeo, e desta forma comea a acontecer uma distino eu-outro, mas ainda sem capacidade de distinguir entre o que simblico e o real. uma dimenso mgica onde no existe a capacidade de abstrao.

    A terceira etapa surgir a partir do momento em que a pessoa consegue abstrair, ou seja, reconhecer que as projees no fazem os objetos e pessoas. Eles so o que so quando saem por detrs

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    delas, ou seja: so desidealizados. As projees que dizem respeito unidade e realizao, de onipotncia e oniscincia, voltam-se para entidades abstratas.

    Filosofia e Teologia tornam-se possveis. Valores supremos assumem o poder numinoso que antes era atribudo a pais e professores. (...) Nesta terceira etapa da conscincia, ainda h projees de material inconsciente. Mas estas projees esto investidas menos em pessoas e coisas do que em princpios, smbolos e ensinamentos. (STEIN, 1998, p. 162)

    Como o propsito desta separao que acontece desde o nascimento estabelecer um centro de conscincia, um Ego, este vem sendo investido com todas estas formas de projees e torna-se inflado. Poderamos ento pensar que numa quarta etapa, no existiriam projees e viver-se-ia uma autossuficincia. O que parece ocorrer, no entanto, que as projees continuam acontecendo, j que a dinmica da individuao o tempo todo compensatria entre consciente e inconsciente. Portanto, a projeo nesta fase, voltada para o prprio Ego.

    O ego torna-se o nico rbitro de certo e errado, de verdadeiro e falso, belo e feio. No existe fora do ego nenhuma autoridade que o supere. O significado deve ser criado pelo ego, Deus no est mais l fora, sou eu!

    (STEIN, 1998, p. 164)

    Estas quatro etapas acontecem na primeira metade da vida, se que todos chegam a elas, j que estamos inseridos em um mundo cultural e religioso cheio de exigncias para que permaneamos nesta ou aquela etapa.

    No adulto, o Ego dominante, com o controle consciente de sua vontade. A conexo com o Self original parece ter sido perdida. Na verdade ela deve ser perdida em prol da objetividade da vida cotidiana, das responsabilidades, do fazer. O adulto normal acredita ser senhor do seu prprio destino e desta forma consegue realizar sua vida material.

    A preocupao com o mundo exterior:

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    Quanto mais nos aproximamos do meio da existncia e mais conseguimos firmar-nos em nossa atitude pessoal e em nossa posio social, mais nos cresce a impresso de havermos descoberto o verdadeiro curso da vida e os verdadeiros princpios e ideais do comportamento. Esquecemo-nos de que s se alcana o objetivo social com sacrifcio da totalidade da personalidade. (JUNG, 1991a, 772 )

    A nica maneira para encontrar aquelas partes de ns mesmos das quais no estamos conscientes atravs da outra pessoa. atravs da projeo no outro que chegamos a conhecer a ns mesmos, mesmo quando temos a iluso de que o outro o que vemos neles. Da a necessidade de relacionamentos, o desafio do confronto com o no-eu.

    Numa quinta etapa, se a pessoa no se deixou apanhar pela armadilha da inflao e assume a responsabilidade por suas escolhas e destino, volta a reconhecer os limites do Ego e os poderes do inconsciente possibilitando uma re-unio com este. A isto, Jung (1991b) denominou Funo Transcendente.

    Como vimos, o eu cresce aprendendo a resistir aos apelos do instinto e estabelecendo uma adaptao adequada s exigncias coletivas externas, s necessidades do grupo, da sociedade, do desempenho no trabalho. Porm, na segunda metade da vida, as exigncias do inconsciente no foram mais a adaptao externa, a menos que as necessidades da fase anterior no tenham sido atendidas de forma adequada. Nesta fase, as exigncias de adaptao dizem respeito ao mundo interno.

    Tornamo-nos conscientes dos conflitos inerentes existncia: amores, responsabilidades, compromissos, exigncias externas e necessidades interiores. A existncia parece ser um eterno confronto de opostos, pois aqueles anseios e necessidades que no serviam adaptao pedem para serem realizados em nome de uma integridade total, da pessoa como um todo. Tudo o que foi deixado para trs porque no era adequado adaptao externa, ao sucesso e utilizao prtica, sero exigncias que devero ser ouvidas.

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    Observamos que nesta fase, prepara-se uma mudana muito importante, inicialmente modesta e despercebida; so antes indcios de mudanas que parecem comear no inconsciente. Muitas vezes como que uma espcie de mudana lenta no carter da pessoa; outras vezes so traos desaparecidos desde a infncia que voltam tona; s vezes tambm antigas inclinaes e interesses habituais comeam a diminuir e so substitudos por novos. (JUNG, 1991a, 773)

    Este conflito aberto entre o Ego e o no-ego, alm da experincia das limitaes do Ego, prepara a conscincia para sua ltima limitao: a morte fsica. Diz Jung (1991a) que os primeiros sonhos com a morte, aparentemente numa forma um tanto mascarada, aparecem aproximadamente na metade da vida, como um simples lembrete de que agora ela tem que ser levada em conta.

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    Captulo 3Captulo 3Captulo 3Captulo 3 ---- C. G. C. G. C. G. C. G. Jung e o processo de criaoJung e o processo de criaoJung e o processo de criaoJung e o processo de criao

    importante esclarecer inicialmente que, ao utilizar como objeto de pesquisa uma obra artstica, segundo Jung, o que cabe a ns analisar no a obra de arte em si, mas os caminhos do artista ao chegar at ela. Jung afirma que:

    A arte, em sua manifestao, uma atividade psicolgica e, como tal, pode e deve ser submetida a consideraes de cunho psicolgico; pois, sob este aspecto, ela, como toda atividade humana oriunda de causas psicolgicas, objeto da psicologia. Com esta afirmativa tambm ocorre uma limitao bem definida quanto aplicao do ponto de vista psicolgico: apenas aquele aspecto da arte que existe no processo de criao artstica pode ser objeto da psicologia, no aquele que constitui o prprio ser da arte. Nesta segunda parte, ou seja, a pergunta sobre o que a arte em si, no pode ser objeto de consideraes psicolgicas, mas apenas esttico-artsticas. (JUNG, 1985b 97)

    As imagens arquetpicas podem estar sempre emergindo em nossa vida, seja atravs de sonhos, ou fantasias ou de criaes artsticas, e so essenciais para que possa existir um dilogo entre o ego e o inconsciente. Nosso contato com o inconsciente s possvel atravs da emergncia destas imagens e, de fato, assumimos que os contedos advm do inconsciente tanto por no dependerem de nossa vontade e conscincia, quanto por sabermos muito pouco sobre eles.

    O conceito de complexo fundamental para a psicologia analtica exatamente por este motivo. (Jung, 1991a - 194 a 219). Trata-se de contedos afetivos que podem ser expressos sob a forma de sentimentos, lembranas, comportamentos, atitudes pessoais... Que ficam aglomerados em torno de um ncleo arquetpico que, atravs de sua energia, atrai cada vez mais contedos referentes a ele. Quando lidamos com as manifestaes inconscientes, estamos lidando com estes contedos que de alguma maneira so significativos na forma de vivncias pessoais que se aglomeraram em torno de um

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    arqutipo. A conexo que podemos perceber entre o inconsciente pessoal e o inconsciente coletivo se d nesse nvel, ou seja, no nvel do complexo.

    A emergncia de um contedo vindo de um complexo, exatamente por ser to carregado de energia, muitas vezes deixa a conscincia atordoada, obscurecida. Isso se deve, tambm, ao fato das referncias habituais da conscincia (mundo externo, tempo, espao) ficarem reduzidas em prol de um contedo desconhecido, onde estas mesmas instncias tm outras referncias. Apesar do complexo no ser negativo em si, seus efeitos podem ser, na medida em que o ego pode passar a viver em funo dele e perceber o mundo a partir de referncias diferentes, ou seja, a partir do complexo e no da realidade do ego. Acontece uma espcie de possesso psquica. Porm, faz parte da capacidade auto reguladora do Self, que tais imagens aflorem com o propsito de realizao do indivduo. O afloramento de imagens atravs da manifestao de um complexo pode se constituir tanto em um sintoma quanto em uma obra de arte e em ambos os casos, trata-se de uma direo positiva do Self.

    Quando nos referimos emergncia de imagens arquetpicas em uma criao artstica, isto s possvel atravs da constelao de um complexo, que elaborado para a linguagem com a qual o individuo deseja exprimi-lo.

    Quando se reconhece um complexo psicolgico, parece que se compreende melhor, mais sinteticamente, certas obras poticas. De fato, uma obra potica s pode receber realmente sua unidade de um complexo. Se o complexo falta, a obra privada de suas razes, no se comunica mais com o inconsciente. Parece fria, fictcia, falsa. (BACHELARD, 1999 p.29)

    Portanto, segundo a teoria de Jung, o processo criativo consiste em uma ativao inconsciente do arqutipo atravs do complexo e em uma elaborao e formalizao para que o mesmo seja expresso. Esta elaborao necessria para que a obra de arte corresponda poca de seu nascimento, j que o que o artista estar exprimindo sero aspectos inconscientes que no se fundam em nenhuma regra formal. A obra de arte uma traduo das imagens primordiais para a linguagem do presente feita pelo artista, que possibilita ao expectador ter acesso s mesmas. Ao criar uma obra de arte, o artista transforma sua conexo com o inconsciente em algo acessvel a todos, posibilitando que

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    cada um de ns possa tambm estar reconectando-se consigo mesmo. A importncia disso reside no fato de que so poucas as maneiras de se faz-lo. Podemos ter acesso atravs dos sonhos, das imaginaes e fantasias, mas poucas pessoas do a devida importncia a isso. Para Jung, os sonhos e outras expresses simblicas nos parecem indecifrveis no porque querem esconder ou disfarar seus contedos, mas porque no somos capazes de interpret-los. Diz Jung: Muitas vezes a natureza obscura, sem transparncia, mas ela no usa de artimanhas como o homem. (Jung, 1980 162) E tambm: No temos que interpretar o que poderia existir por trs, apenas temos que aprender a l-lo primeiro. (Jung, 1999 319)

    Uma vez que afirmamos que os complexos dizem respeito a questes pessoais que se aglomeram em torno de questes arquetpicas, e que a criao artstica ser a expresso destes contedos, poderamos questionar qual o papel da vida pessoal do artista, que afinal deu forma a eles. Porm, muito importante esclarecer que a obra de arte s se constitui como tal na medida em que retrata algo alm das questes pessoais. O que pessoal resultar na formatao destas imagens arquetpicas, ou seja, cada artista ter sua marca pessoal na forma de expresso, seu suporte preferido onde as imagens sero expressas. Uma obra cinematogrfica ter um formato mais visionrio, privilegiando aspectos visuais da narrativa ou mais psicolgico-cotidiana de acordo com estas questes de formatao que so pessoais a cada artista.

    Esta abordagem diferente da abordagem das imagens na prtica clnica, onde existe o espao adequado e o desejo do paciente em ser analisado e, desta forma, as imagens so levadas em conta dentro de um contexto tambm pessoal de sua histria de vida.

    O anseio criativo vive e cresce dentro do homem como uma rvore no solo do qual extraiu seu alimento. Por conseguinte, faramos bem em considerar o processo criativo como uma essncia viva implantada na alma do homem. A psicologia analtica denomina isso complexo autnomo. Este, como parte separada da alma e retirada da hierarquia do consciente, leva uma vida psquica independente e, de acordo com seu valor energtico e sua fora, aparece ou como simples distrbio de arbitrrios processos do consciente, ou como instncia superior que pode tomar a seu servio o prprio Eu.

    (JUNG, 1985b 115)

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    Mais adiante em seu texto, Jung (1985b) afirma que, embora o complexo autnomo irrompa na conscincia e seja percebido por ela, no pode ser submetido a qualquer forma de controle ou assimilao. Portanto, a escolha do tema pelo autor tanto de um sonho ou uma fantasia, quanto de uma obra de arte, advm de processos inconscientes, produzidos pela necessidade de criao. Jung afirma que ns, de fato, no escolhemos, mas os contedos que escolhem serem tornados conscientes.

    Outro aspecto da teoria de Jung que podemos e devemos levar em conta ao tentar entender tanto o processo de criao artstica como a maneira como as pessoas apreciam as obras de arte, o que diz respeito ao seu estudo sobre as caractersticas humanas gerais.

    Em sua prtica como mdico, Jung observou que, alm das caractersticas que diferenciavam individualmente seus pacientes, havia tambm aquelas que os agrupavam em determinados tipos. Jung (1991c) baseou-se nas ideias de Frederich Shiller (obra de 1826) que foi o primeiro a tentar uma distino entre atitudes tpicas humanas que foram posteriormente retomadas por Nietzsche em 1871 com sua obra O Nascimento da Tragdia, onde aborda os contrapontos entre dois estados humanos: o apolneo e o dionisaco.

    Na descrio de Nietzsche (Apud Jung 1991c), o estado dionisaco um fluir da energia para cima e para fora, um movimento em direo ao mundo, portanto, uma extroverso. J o apolneo produz uma percepo interna, um estado de introspeco, de contemplao voltada para dentro: uma introverso. Portanto, segundo Jung, as pessoas que direcionam sua energia para o mundo externo teriam uma atitude que ele denominou extrovertida, enquanto que as que direcionam sua energia para o prprio mundo interior teriam uma atitude introvertida.

    Quando predomina a orientao pelo objeto e pelo dado objetivo, de modo que as decises e aes mais frequentes e principais sejam condicionadas no por opinies subjetivas, mas por circunstncias objetivas, ento se fala de uma atitude extrovertida. Se isso for habitual, falaremos de tipo extrovertido

    (JUNG, 1991c 628)

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    Embora todos ns possuamos os dois mecanismos, h uma preponderncia de um ou outro tipo, o que nos influencia em compreender o mundo desta ou daquela maneira. Um tipo introvertido seria aquele que habitualmente per