Zaterka, Luciana. Nietzsche e a Perspectiva Dos Afetos Uma Visão Fisiológica Do Conhecimento...

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA NIETZSCHE E A PERSPECTIVA DOS AFETOS UMA VISÃO FISIOLÓGICA DO CONHECIMENTO LUCIANA ZATERKA Dissertação de mestrado apresentada ao Departamento de Filosofia da FFLCH/USP, para a obtenção do título de Mestre em Filosofia. Orientadora: Prof a Dr a Scarlett Zerbetto Marton. SÃO PAULO junho de 1998.

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Filosofia e Conhecimento

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

    NIETZSCHE E A PERSPECTIVA DOS AFETOS

    UMA VISO FISIOLGICA DO CONHECIMENTO

    LUCIANA ZATERKA

    Dissertao de mestrado apresentada ao Departamento

    de Filosofia da FFLCH/USP, para a obteno do ttulo

    de Mestre em Filosofia.

    Orientadora: Profa Dra Scarlett Zerbetto Marton.

    SO PAULO

    junho de 1998.

  • 1

    LUCIANA ZATERKA NIETZSCHE E A PERSPECTIVA DOS AFETOS UMA VISO FISIOLGICA DO CONHECIMENTO

    COMISSO JULGADORA

    DISSERTAO PARA OBTENO DO GRAU DE MESTRE

    Presidente e Orientador

    2 Examinador

    ..

    3 Examinador

    ..

    So Paulo, de 1998

  • 2

    Como difcil a realizao de um trabalho acadmico! Como gratificante aprender e trocar idias!

    Como prazeroso adquirir conhecimento mediante afeto! Dedico este trabalho intelectual, professora e amiga

    Ana Maria Alfonso-Goldfarb que me mostrou como possvel transmutar paixes tristes em paixes alegres!

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    Agradecimentos

    Scarlett, pela orientao e dedicao. memria de meu pai Sioma: com ele vivenciei o leit motiv

    nietzschiano: faa sempre do obstculo estmulo! minha me Myriam, um motivo vital para desejar que a hiptese do

    eterno retorno do idntico seja verdadeira! Ao Kleverton Bacelar, meu interlocutor. Com ele aprendi que o trabalho

    filosfico s faz sentido mediante discusso. Kl, obrigado por tudo; sem voc este trabalho no faria o menor sentido.

    Yara e Marisa pelo carinho e apoio que me deram durante todo o

    percurso. Simone e Mair, com eles aprendi a resgatar o melhor da vida. Obrigada

    pela eterna amizade. um privilgio compartilhar vida com vocs! Ao Hlio, pela pacincia de me agentar em final de tese. Li, acho que

    superamos tudo! Ao Samuel, por tornar minha casa um lugar absolutamente alegre. minha famlia, especialmente Bia e ao Beno. Obrigada pelo carinho. Aos professores do Departamento de Filosofia da USP, em especial Maria

    das Graas Nascimento, Jos Carlos Estevo e Ricardo Terra. s professoras Marilena Chau e Maria Lucia Cacciola pelas observaes

    feitas no exame de qualificao e por tudo mais... Aos colegas de Ps-graduao do Departamento de Filosofia da USP, em

    especial Brbara Luchesi e Marisa Russo. Mari, Rubem, Roseli, Maria Helena, Vera e Geni: sem vocs o

    Departamento de Filosofia da USP no teria a menor graa. Luna, minha fiel e silenciosa companheira. CAPES pela bolsa de estudos concedida.

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    Lista de abreviaturas

    NT Die Geburt der Tragdie (O nascimento da tragdia)

    HH Menschliches Allzumenschliches (vol.1) (Humano, demasiado humano)

    OS Menschliches Allzumenschliches (vol.2) (Miscelnea de opinies e

    sentenas)

    AS Menschliches Allzumenschliches (vol.2) (O andarilho e sua sombra)

    A Morgenrte (Aurora)

    GC Die frhliche Wissenschaft ( A gaia cincia)

    Za Also sprach Zarathustra (Assim falou Zaratustra)

    BM Jenseits von Gut und Bse (Para alm de bem e mal)

    GM Zur Genealogie der Moral (Genealogia da moral)

    CW Der Fall Wagner (O caso Wagner)

    CI Gtzen-Dmmerung (Crepsculo dos dolos)

    NW Nietzsche contra Wagner

    AC Der Antichrist (O anticristo)

    EH Ecce homo

    VM ber Wahrheit und Lge im aussermoralischen Sinne (Sobre verdade e

    mentira no sentido extramoral)

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    Resumo

    Esta dissertao analisa alguns aspectos da teoria do conhecimento em

    Nietzsche, nomeadamente seu pragmatismo e seu perspectivismo. Antes de

    expor as crticas s categorias clssicas do conhecimento empreendida pelo

    filsofo em sua "doutrina da perspectiva dos afetos", que opera com as

    noes de vida, vontade de potncia e fisiologia, mostraremos o dilogo com

    a filosofia espinosana que est na matriz dessa doutrina (cap. I). Efetuado

    esse trabalho inicial examinaremos o pragmatismo e a noo de verdade que

    dele decorre (cap. II). Por fim, abordaremos o carter perspectivista do

    conhecimento que a marca da teoria gnosiolgica nietzschiana.

  • 6

    Sumrio

    INTRODUO ........................................................ 6

    NIETZSCHE E ESPINOSA: A NATURALIZAO DOS AFETOS .. 18

    A "VERDADE" COMO FICO............................................43 INTERPRETAO: UMA NOVA ATITUDE FRENTE AO CONHECIMENTO..........................................................72 CONCLUSO ..............................................................96 BIBLIOGRAFIA .......................................................... 101

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    INTRODUO

    A recepo de Nietzsche tem sido marcada pela constante preocupao

    em salientar os aspectos inovadores do seu pensamento, a originalidade de

    suas teses. Ao realar sua ruptura radical ou sua viragem decisiva na histria

    do pensamento, a crtica, muitas vezes, esqueceu-se de apontar a posio de

    Nietzsche dentro desta histria. Uma exposio da teoria nietzschiana do

    conhecimento como, alis, de seus outros temas deve acentuar antes seus

    motivos tradicionais, na medida em que julgamos ingenuidade querer isolar

    Nietzsche do seu tempo. O filsofo herdou temas e problemas que o situam no

    entrecruzamento de vrias correntes do pensamento. No campo da literatura,

    lembremos a presena de Dostoivski, de Emerson, dos moralistas franceses e

    dos romnticos. Tambm fcil perceber o dilogo com a cincia do sculo

    XIX, como a fsica de Boscovich ou a biologia de Roux. Quanto filosofia,

    no difcil encontrarmos, dentre outros, motivos espinosanos, kantianos e

    schopenhauerianos. Entretanto, com a exceo de Herclito, Nietzsche nega,

    freqentemente e com o seu estilo corrosivo e destruidor, tais dilogos.

    Este trabalho versa sobre a doutrina nietzschiana da perspectiva dos

    afetos. Trataremos de expor as consideraes do filsofo acerca do

  • 8

    conhecimento, em especial, o seu pragmatismo e perspectivismo, ressaltando-

    se a sua teoria da verdade como fico. Contudo, esta exposio enfatizar

    os motivos tradicionais dessa teoria, reinscrevendo Nietzsche em sua poca.

    Neste sentido, pretendemos apontar no primeiro captulo, Nietzsche e

    Espinosa: a naturalizao dos afetos, o quo importante foi o conceito

    espinosano do conatus para que Nietzsche desenvolvesse a sua doutrina da

    vontade de potncia, matriz da doutrina nietzschiana da perspectiva dos afetos.

    Veremos que os dois filsofos apontam para uma naturalizao dos afetos.

    A legitimidade dessa aproximao atestada pelo prprio Nietzsche em

    vrias passagens de sua obra. Em 30.06.1881 o filsofo escreve a seu amigo

    Overbeck: Estou assobrado e encantado! Tenho um precursor e de que

    gnero! Quase no conhecia Espinosa e o que me trouxe agora desejos de l-lo

    foi qualquer coisa realmente instintiva (Nietzsche, 1881, Sils Maria). No ano

    de 1884 afirma em um fragmento pstumo: Quando eu reflito sobre minha

    linhagem filosfica, eu me sinto em relao com o movimento anti-teolgico,

    ou seja, espinosano, de nosso tempo. Sabemos que Nietzsche travou

    conhecimento com a filosofia espinosana em 1881 por meio da leitura da

    monografia de Kuno Fischer, Geschicte der neueren Philosophie; isto fica

    ntido sobretudo nos excertos sobre Espinosa da primavera/outono de 1881,

    11[193-197] (vol. 9, p. 518 s). Devemos notar que o filsofo alemo ir

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    definir o conceito de vontade de potncia somente entre 1882 e 1885. Entre os

    comentadores, Deleuze no cansou de apontar e defender a proximidade

    Nietzsche/Espinosa: De fato, comecei com livros de histria da filosofia, mas

    todos os autores de que me ocupei tinham algo em comum. E tudo tendia para

    a grande identidade Espinosa Nietzsche (Deleuze, 1992, p. 169).

    Neste contexto, pretendemos mostrar as semelhanas e dessemelhanas

    entre ambos os filsofos. Para tanto, estabeleceremos como fio condutor o

    embate conatus versus vontade de potncia. De incio esclarecemos nossa

    posio: no pretendemos buscar em Espinosa um precursor de Nietzsche.

    Assim, no temos pretenses de discutir uma possvel influncia que o

    pensador da tica teria exercido sobre o pensador alemo. Preferimos pensar

    num encontro ou num dilogo entre ambos os filsofos. Portanto, no temos

    preocupaes genealgicas, pois acabaramos por ignorar dois sculos de

    histria. O sculo XVII a poca da mecnica clssica, do princpio de

    inrcia, da busca do ponto fixo; o sculo XIX o momento da

    termodinmica, da entropia, da morte de Deus. Como se fosse pouco, entre

    eles encontramos o sculo das Luzes, entre eles a filosofia crtica, entre eles

    Hegel, entre eles, entre eles... Ignorar a histria seria incidir de imediato em

    erro. Estamos cientes dos aspectos que diferenciam ambas as filosofias. De

    um modo geral, podemos afirmar que a noo de natureza que est subjacente

  • 10

    ao sculo XVII a mecanicista. Assim, toda a natureza se reduz a um

    conjunto de leis mecnicas. Os adeptos desta corrente filosfica postularam

    que todos os fenmenos naturais poderiam ser explicados, no limite,

    referindo-os matria em movimento. Ao contrrio da cincia antiga, a

    causa eficiente e no mais a causa final que foi o fio condutor desta nova viso

    acerca dos fenmenos naturais. Neste contexto, o mundo era visto como uma

    mquina complexa, um conjunto de partculas agindo umas sobre as outras, e

    cabia ao filsofo natural elucidar suas engrenagens, ou seja, descobrir as leis

    que regem este mundo mquina. Esta revoluo no se restringiu ao

    domnio da astronomia e da fsica, onde se destacavam nomes como os de

    Galileu, Coprnico e Kleper, mas tambm se fez presente no campo da

    histria natural, no qual William Harvey constitui um excelente exemplo. No

    seu famoso livro, De motu cordis et sanguinis (Sobre o movimento do corao

    e do sangue), publicado em 1628, Harvey apresenta uma descrio anatmica

    precisa do corao e do sistema das artrias e das veias. Com base em suas

    experincias, ele demonstra que o sangue corre do corao pelas artrias para

    o corpo todo e regressa pelas veias. O que nos interessa aqui ressaltar que

    Harvey apontou uma causa mecnica da circulao sangnea, a contrao

    muscular do corao. Esse seria um exemplo do modo como operavam os

    homens de cincia ante a nova mecnica. Ele indicou que o corao, as

  • 11

    veias e as artrias constituam um sistema mecnico para o transporte do

    sangue. Harvey descrevia o corao como uma pea de uma mquina, na

    qual, apesar de uma roda mover outra, todas as rodas parecem mover-se

    simultaneamente. No seu trabalho revela-se, antes de mais nada, a viso de

    natureza que prevaleceu nos sculos XVII e XVIII.

    Note-se que no sculo XIX temos o aparecimento de uma certa noo

    de vida e a biologia se firmou efetivamente como uma rea especfica da

    cincia voltada para o estudo das criaturas vivas, incluindo a descrio e

    explicao das suas estruturas e dos processos vitais. O que a vida? essa

    a questo que percorre todo o sculo XIX. Grosso modo poderamos

    destacar trs respostas distintas a esse respeito: a mecanicista, a animista e a

    vitalista. Sabe-se que os filsofos mecanicistas identificam matria bruta com

    matria viva e reduzem os fenmenos vitais a mecanismos fsico-qumicos. O

    animismo teria como fio condutor a crena numa alma transcendente que seria

    incorporada aos corpos. E, finalmente, a resposta da corrente que prevaleceu

    no sculo de Nietzsche, o vitalismo, diferencia a matria bruta da matria

    viva, acreditando que esta ltima possui um princpio vital imanente

    natureza. John Mller, por exemplo, afirmava que: a fora orgnica, a causa

    ltima do ser orgnico, uma fora criadora que modifica adequadamente a

    matria. E Bichat, um renomado histologista francs, distinguia tantas foras

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    vitais como o nmero de espcies de tecidos existentes no corpo, ou seja, para

    cada tecido do corpo existiria um princpio vital particular. Segundo este

    pensador, a fora vital constitua a essncia de tudo o que faz a vida ser vida.

    Podemos encontrar ainda homens de cincia, como Claude Bernard, que

    identificam essencialmente, qualitativamente, matria bruta e matria viva,

    mas que postulam a diferena entre elas assentada apenas na complexidade, ou

    seja, quantitativamente. Acreditamos que Nietzsche, de alguma maneira, filia-

    se a esta corrente filosfico-cientfica. fato entre os comentadores que

    Nietzsche teria se interessado pela biologia da poca. Andler salienta o

    interesse do filsofo por Darwin, e Mller-Lauter o dilogo intenso com

    Roux. Em ambos o casos Nietzsche teria uma posio crtica. No que se refere

    a Darwin, este teria enfatizado a questo da conservao da vida, mas no

    teria compreendido que a vida expanso de potncia: erros fundamentais

    dos bilogos at hoje: no se trata da espcie, mas de indivduos que se

    sobressaem com mais fora. (A maioria apenas um meio). A vida no

    adaptao das condies internas s externas, mas vontade de potncia que, do

    interior, submete e incorpora a si mesma cada vez mais exterior (XII, 7 (9)).

    Nietzsche discordara tambm do trabalho de Roux sobre a luta seletiva das

    partes do organismo (Der zuchtende Kampf der Teile oder die Teilauslese im

    Organismus, zugleich eine Theorie der funktionellen Anpassung), pois este,

  • 13

    por ter tratado os seres vivos como mquinas, teria descartado o dinamismo

    e as hierarquias presentes no interior dos corpos.

    neste contexto que a nossa proposta deve ser compreendida. Espinosa

    prope uma naturalizao dos afetos. Nietzsche, por seu lado, introduzir uma

    fisiologizao dos afetos. So noes distintas? Sem dvida alguma. Contudo,

    o que nos fez esboar uma possvel aproximao entre ambas as filosofias o

    modo como tratam a provenincia dos valores. Para estes filsofos os valores

    derivam deste mundo, desta vida; no so considerados valores-em-si,

    impostos por algum poder divino. A negao do mundo transcendente faz com

    que ambos proponham uma teoria imanente ao mundo; ou, em termos

    deleuzianos, ambos os filsofos apontariam para um plano de imanncia.

    Ora, a noo de afeto que ser o caminho para compreendermos esta

    empreitada. Assim sendo, acreditamos que um estudo comparativo ajude a

    uma melhor compreenso da doutrina nietzschiana da perspectiva dos afetos.

    Mediante a noo de afeto, que remete ao conceito de vontade de

    potncia, pretendemos no segundo captulo, A verdade como fico, expor a

    concepo nietzschiana de verdade. Para tanto, utilizaremos como fio

    condutor sua crtica lgica, cincia, gramtica e linguagem. Veremos

    que a noo de afeto importante para sugerirmos que os pressupostos deste

    ataque esto vinculados perspectiva fisiolgica. Nietzsche aponta a origem

  • 14

    biolgica da conscincia (GC 11) e mostra o seu surgimento concomitante

    com o da linguagem (GC 354). Dessa maneira, o pensador parte da fisiologia

    para empreender sua crtica seduo da gramtica e da lgica: o encanto

    exercido por determinadas funes gramaticais , em ltima instncia, o

    encanto de condies raciais e juzos de valor fisiolgicos (BM 20). Assim,

    Nietzsche teria proposto, no terceiro perodo do seu empreendimento

    filosfico, uma viso pragmtica das questes gnosiolgicas, peculiar, por

    certo. Aqui mostraremos que Nietzsche proporia uma positividade do falso

    na medida em que conhecer seria, antes de mais nada, criar fices por uma

    questo de sobrevivncia. O conhecimento, assim, ilusrio, porm vital. De

    fato, desde o ensaio de 1873, Sobre verdade e mentira no sentido extramoral,

    Nietzsche j apontaria nesta direo. Contudo, a nosso ver, estas reflexes

    ganham dimenso no terceiro perodo de sua obra, pois nessa fase que o

    filsofo elabora o conceito de vontade de potncia. Aqui nos ser de grande

    importncia a anlise dos aforismos 3 e 4 de Para alm de bem e mal, o 349

    da Gaia cincia, alm de vrios fragmentos pstumos.

    Por fim, no terceiro captulo, Interpretao: uma nova atitude frente ao

    conhecimento, analisaremos os conceitos de vida e vontade de potncia a

    partir da noo de relao e mostraremos que o conhecimento , antes de mais

    nada, interpretao. Para Nietzsche, o que constitui o mundo orgnico so

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    foras em relao, o que lhe permite refutar qualquer resduo slido para a

    matria. O conhecimento refletiria esta viso de natureza (physis), e, assim

    sendo, pode ser abordado como relacional, plural, dinmico e perspectivo.

    Aqui, veremos que Nietzsche manteria um dilogo intenso com a cincia de

    sua poca, em especial, com a fsica do jesuta Roger Boscovich. Ocorre que

    ao expormos a concepo nietzschiana do conhecimento, ou seja, o

    pragmatismo e o perspectivismo de qualquer juzo, deparamo-nos com a

    difcil questo de sua auto-refutao: afirmar que tudo interpretao seria

    apenas mais uma interpretao? Em caso afirmativo, a doutrina da vontade de

    potncia que embasa esta teoria seria simplesmente uma hiptese

    compreensiva do efetivo (caos). Em caso negativo, qual seria o estatuto da

    doutrina da vontade de potncia que apresenta, no tocante ao conhecimento,

    uma teoria geral da interpretao? Em qualquer dos casos, a teoria

    nietzschiana do conhecimento acabaria por operar com a positividade do

    falso. Ou seja, a interpretao que temos de algo (de um fenmeno) nos faz

    ver coisas, objetos, etc. onde s h vir-a-ser; pois, no limite, o real o

    efetivo falsificado. A questo reaparece ento: qual o estatuto do efetivo?

    Lembraria a coisa-em-si do kantismo? Ou o efetivo o modo de ser da

    vontade de potncia?

  • 16

    No proporemos respostas a essas complexas questes, pois extrapolam

    o formato desse trabalho. No obstante, a exposio sistemtica dos aforismos

    e fragmentos em que Nietzsche formula uma possvel gnosiologia na qual as

    categorias clssicas da teoria do conhecimento (verdade, objetividade, sujeito,

    objeto) so desterritorializadas a ponto de se tornarem irreconhecveis

    pode nos fornecer valiosos elementos para a resoluo futura desses

    problemas.

    * * *

    No nosso trabalho utilizaremos sobretudo o terceiro perodo da obra

    nietzschiana, pois nessa fase que o pensador elabora o conceito de vontade

    de potncia. Diferentes autores, dependendo do critrio, adotam divises

    distintas da obra nietzschiana. Entre os comentadores de Nietzsche que

    operam com a periodizao, podemos destacar Karl Lwith e Scarlett Marton.

    Seguiremos no nosso trabalho a diviso sugerida por Marton no seu livro Das

    foras csmicas aos valores humanos. Nele podemos identificar trs perodos

    na obra de Nietzsche: o primeiro comearia com O nascimento da tragdia e

    terminaria com as Consideraes extemporneas, abarcando assim os anos de

    1870 a 1876; o segundo se estenderia de Humano demasiado humano aos

    quatro primeiros livros da Gaia cincia, incluindo assim os anos de 1876 a

    1882; e, finalmente, o terceiro (1882-1886) englobaria as seguintes obras:

  • 17

    Assim falou Zaratustra, o Ensaio de autocrtica, o Prefcio de 1886 a O

    nascimento da tragdia, os Prefcios a Humano demasiado humano, Aurora e

    Gaia cincia, o quinto livro da Gaia cincia, Para alm de bem e mal,

    Genealogia da moral, O caso Wagner, Crepsculo dos dolos, O anticristo,

    Ecce homo, Nietzsche contra Wagner e Ditirambos de Dionisio, alm dos

    fragmentos pstumos deste perodo.

    Quanto aos critrios para as referncias bibliogrficas das citaes de

    Nietzsche, nos basearemos na conveno adotada pelos Cadernos Nietzsche,

    publicao semestral do Departamento de Filosofia da FFLCH/USP, tanto

    para as abreviaturas, quanto nas remisses bibliogrficas nas citaes. Nas

    referncias das citaes de textos publicados por Nietzsche, o algarismo

    arbico indicar o aforismo. No caso da GM, o algarismo romano anterior ao

    arbico remeter parte do livro; no caso do Za, o algarismo romano remeter

    parte do livro e a ele se seguir o ttulo do discurso; quanto ao CI e ao EH, o

    algarismo arbico, que se seguir ao ttulo do captulo, indicar o aforismo.

    Nas referncias bibliogrficas dos fragmentos pstumos, o algarismo romano

    indicar o volume, e os arbicos que a ele se seguem, o fragmento pstumo.

  • 18

    NIETZSCHE E ESPINOSA:

    A NATURALIZAO DOS AFETOS

  • 19

    Aqueles que escreveram sobre as Paixes e a conduta da vida humana parecem, na sua maioria, tratar no de coisas naturais que decorrem das leis comuns da Natureza, mas de coisas que esto fora da Natureza. Na verdade, dir-se-ia que concebem o homem na Natureza como um imprio dentro de um imprio. Supem, com efeito, que o homem perturba a ordem da Natureza mais que a segue, que tem sobre suas prprias aes um poder absoluto e tira apenas dele mesmo sua determinao. Procuram, pois, a causa da impotncia e da inconstncia humanas no na potncia comum da Natureza, mas em no sei qual vcio da natureza humana e, por essa razo, choram por causa dela, riem, desprezam-na ou, as mais das vezes, a detestam; quem sabe mais eloqentemente ou mais subtilmente censurar a impotncia da alma humana tido por divino.

    Espinosa, tica, prefcio do Livro III.

  • 20

    Em 30.06.1881 Nietzsche, escrevendo a seu amigo Overbeck, afirma:

    Estou assombrado e encantado! Tenho um precursor. E de que gnero! Quase

    no conhecia Espinosa e o que me trouxe agora desejos de l-lo foi qualquer

    coisa realmente instintiva. Achei que no s a sua tendncia principal igual

    minha fazei do conhecimento a paixo mais poderosa se no que

    coincido com ele em cinco pontos essenciais da sua doutrina, nos quais aquele

    original e solitrio pensador se aproxima grandemente de mim, e que so: a

    negao do livre arbtrio, da intuio, da ordem moral universal, do inegosta e

    do mau. Ainda que seja certo que a diferena entre ns seja enorme, ela

    depende, principalmente, da diferena da poca, da cultura e da cincia.

    Enfim: no isolamento que, como a altura nas elevadas montanhas, me cortava

    por vezes a respirao, encontro agora um companheiro. maravilhoso!1.

    Quais as semelhanas e dessemelhanas que tanto encantaram e

    assombraram Nietzsche? O que propiciou o crtico radical encontrar um

    companheiro? Talvez uma primeira pista esteja na prpria histria da

    filosofia: corpo, paixo, potncia, desejo, vida, esta vida..., conceitos to

    espinosanos quanto nietzschianos, e vistos com to maus olhos pela tradio2.

    1 Carta Overbeck de 30/06/81, Sils Maria. 2 Yirmiyahu Yovel, no seu livro Spinoza and other heretics, volume 2, analisa, no captulo 5, a

    relao entre Espinosa e Nietzsche. Aqui, entre outros temas, o comentador aborda as possveis afinidades pessoais (personal affinities) entre ambos os filsofos. Inicialmente, encontramos a semelhana entre duas vidas solitrias e independentes. A seguir, Yovel menciona suas mensagens revolucionrias: ambos so considerados antimorais, objetos de choque, e foram,

  • 21

    No terceiro perodo de sua produo filosfica, Nietzsche identifica a

    vida vontade de potncia: Somente onde h vida, h tambm vontade; mas

    no vontade de vida, e sim assim vos ensino vontade de potncia (Za, II,

    Da superao de si). Este conceito sem sombra de dvida um dos mais

    problemticos do empreendimento nietzschiano pode ser entendido

    sucintamente como um impulso3. Este impulso s pode manifestar-se em face

    de obstculos, ou seja, a todo momento, a vontade de potncia, vencendo as

    resistncias, se auto-supera. A vontade de potncia efetiva-se numa mesma

    direo fundamental: aumentar a sua prpria potncia. Esta intensificao

    ocorre atravs da dominao ou assimilao de mais potncia: Minha

    concepo que todo corpo especfico tende a tornar-se senhor de todo o

    espao e a estender sua fora ( sua vontade de potncia) e a repelir tudo o que

    se ope a essa extenso. Mas ele se choca constantemente com esforos

    similares de outros corpos e acaba por se unir com aqueles que lhe so mais

    cada um na sua poca, denegridos como ateu ou niilista. Finalmente, observamos a necessidade, para ambos, da utilizao de mscaras: Espinosa, como Nietzsche, foi um grande conhecedor das mscaras e um mestre da ambigidade (Yovel, 1989, p.108).

    3 Lembremos que, para Nietzsche, existe uma distino entre fora e vontade de potncia: Esse conceito vitorioso de fora, graas ao qual os nossos fsicos criaram Deus e o mundo, tem necessidade de um complemento; preciso atribuir-lhe um querer interno que denominarei vontade de potncia, quer dizer, apetite insacivel de demonstrao de potncia; ou uso e exerccio de potncia, sob a forma de instinto criador etc. (XI, 36 (31)). A vontade de potncia no uma propriedade da fora, o impulso de toda fora no prprio ato de efetivar-se. Gostaramos ainda de ressaltar que no somente a vida que identificada vontade de potncia; Nietzsche possui uma concepo de mundo ou, se quisermos, uma cosmologia. Todavia, na presente dissertao, nos limitaremos perspectiva humana, pois acreditamos, antes de tudo, que os aspectos relativos ao conhecimento pertencem predominantemente a esta esfera. Sobre a relao entre fora e vontade de potncia, cf. Marton, 1990, cap.1.

  • 22

    prximos: e ento eles conspiram juntos para tomar o poder. E o processo

    continua... (XIII, 14 (186)). Percebemos aqui o carter hierrquico presente

    na filosofia nietzschiana: sempre teremos os que dominam e os que so

    dominados. Contudo, dizer que a vontade de potncia s pode manifestar-se

    em face de obstculos no significa que as lutas tm um fim; no existe

    nenhum telos, a luta no visa a metas nem a objetivos: O mundo subsiste, no

    nada que perece. Ou antes: vem a ser, perece, mas nunca comeou a vir a ser

    e nunca cessou de perecer - conserva-se em ambos... Vive de si prprio: seus

    excrementos so seu alimento" (XIII, 14 (188)).

    Nietzsche concebe o mundo orgnico como vontade de potncia. Como

    entender, ento, as diferenas entre os seres? Para o filsofo, os seres se

    distinguem quantitativamente: Sob determinadas mudanas de quantidade

    nasce isso que ns sentimos como uma qualidade (XII, 27 (31)). Assim, a

    qualidade uma conseqncia de relaes quantitativas presentes no mundo;

    no limite, a qualidade provm da quantidade. Contudo, os homens interpretam

    a quantidade como qualidade, acreditando que a ltima originria: As

    qualidades so nossos limites intransponveis; ns no podemos nos impedir

    de sentir atravs de simples diferenas de quantidade algo completamente

    diferente da quantidade, a saber como qualidades, que no so mais redutveis

  • 23

    umas s outras (XII, 6 (14))4. Assim, Nietzsche acredita que as diferenas

    qualitativas no so nada mais que graus de potncia diferenciados; desta

    maneira, a distino entre o orgnico e o inorgnico tratada, no limite, como

    uma diferena de graus5. O que ir diferenciar a vida como vontade de

    potncia da matria inorgnica o seu grau de complexidade6; por exemplo, o

    aparecimento de rgos tardios como a conscincia. A vida humana est em

    combate constante, e nesta luta cada espcie viva tenta sobreviver, seja

    4 Sobre a relao entre quantidade e qualidade no terceiro perodo da obra de Nietzsche, cf.

    Brando, 1997, Causalidade e perspectiva na obra de maturidade de Nietzsche, cap. 1. 5 Sabemos que Nietzsche, desde cedo, interessou-se pela hiptese da sensibilidade da matria de

    Lange. Comentando a influncia que o historiador exerceu sobre Nietzsche, Stack afirma: Pelo seu estudo entre 1866 e 1868 da Histria do materialismo, Nietzsche aceitou a viso de que a essncia das coisas no pode ser conhecida. Ele adotou a nfase dada por Lange na organizao psico-fsica do homem como a base da experincia e do conhecimento no lugar da unidade transcendental da apercepo de Kant (Stack, 1994, p. 31). Seguindo esta trilha, o filsofo acreditaria que entre orgnico e inorgnico no existe distino fundamental: tudo vontade de potncia (BM 36). Para dar conta deste problema, o filsofo, no terceiro perodo, prope a chamada teoria das foras; no limite, o mundo orgnico e o inorgnico so constitudos por foras em relao. No terceiro captulo da presente Dissertao, veremos que Nietzsche utilizar o conceito de fora (Kraft) para criticar a viso mecanicista de natureza. Contudo, no presente trabalho, no examinaremos a teoria das foras propriamente dita. Para ns, vontade de potncia e fora possuem o mesmo registro: constituem o mundo orgnico, ou melhor, so o mundo orgnico.

    6 Neste sentido, Nietzsche identifica qualitativamente matria bruta e matria viva, e as distingue quantitativamente. A diferena, no limite, de complexidade. Alguns fisilogos da poca pensavam a matria desta maneira, entre os quais podemos destacar Claude Bernard (1813-1878). Este pensador, na sua famosa obra, Introduo medicina experimental, afirma: Em resumo, os fenmenos vitais so o resultado do contato dos elementos orgnicos do corpo com o meio interior fisiolgico; esse o eixo de toda a medicina experimental. Quando se chegar a conhecer quais so, nesse meio interior, as condies normais e anormais da manifestao da atividade vital dos elementos orgnicos, o fisiologista e o mdico tonar-se-o senhores dos fenmenos da vida; porque, salvo a complexidade das condies, os fenmenos de manifestao vital so, assim como os fenmenos fsico-qumicos, o efeito de um contato de um corpo que age, e do meio no qual ele age (Bernard, 1978, p. 99). E ainda: Mas, se esta complexidade dos fenmenos vitais constitui grande obstculo, isso no deve, no entanto, aterrorizar-nos; porque, no fundo, como j o dissemos, a menos que se queira negar a possibilidade de uma cincia biolgica, temos de reconhecer que os princpios so idnticos por toda a parte (id., p.94, grifo nosso).

  • 24

    criando valores como os da cincia e os da religio, seja criando rgos como

    a conscincia. Nietzsche acredita que estes rgos foram desenvolvidos para a

    prpria manuteno e intensificao da vida humana: Todos os nossos rgos

    de conhecimento e sentidos desenvolveram-se apenas em relao s condies

    de conservao e crescimento (XII, 28 (38)).

    Em Assim falava Zaratustra, especificamente no discurso Dos

    Desprezadores do Corpo, Nietzsche aborda questes fundamentais relativas

    ao homem, especialmente relao entre o corpo e a alma, ou, para

    sermos mais precisos, entre a grande e a pequena razo. Inicialmente, o

    filsofo afirma: O corpo (Leib) uma grande razo, uma multiplicidade com

    um nico sentido, uma guerra e uma paz, um rebanho e um pastor. Aqui o

    corpo identificado grande razo, ou seja, o corpo visto como uma

    multiplicidade de vontades de potncia, e a grande razo temporariamente

    fornece o sentido da vontade de potncia dominante: o teu corpo e a tua

    grande razo: esta no diz eu, mas faz o eu. Percebemos que a multiplicidade

    do corpo a grande razo no uma unidade do dizer, no uma unidade

    consciente; , antes de qualquer coisa, o resultado de uma operao; no limite,

    a unidade no se funda mais no logos. Em seguida, Nietzsche far a imploso

    da dicotomia entre corpo e alma: Instrumento de teu corpo , tambm, a tua

    pequena razo, meu irmo, qual chamas esprito, pequeno instrumento e

  • 25

    joguete da tua grande razo. A pequena razo (Ich), to enfatizada pela

    tradio, somente um instrumento e joguete da grande razo. O Ich, se

    quisermos, a alma, o esprito, o eu, a conscincia o resultado de um

    processo, de um fazer corporal. Neste sentido, no existe um eu consciente,

    separado e autnomo do seu corpo. Para o filsofo do Zaratustra, o Selbst, em

    seu prprio benefcio e em um momento determinado do desenvolvimento7 do

    homem, criou a conscincia. O filsofo acrescenta: Instrumentos e joguetes,

    so os sentidos e o esprito; atrs deles acha-se, ainda, o si-mesmo (Selbst). O

    si-mesmo procura tambm com os olhos dos sentidos, escuta tambm com os

    ouvidos do esprito. Aqui o filsofo esclarece que o si-mesmo a "estrutura"

    que compe o corpo. Ocorre que, para Nietzsche, essa "estrutura"

    necessariamente hierrquica. O corpo, no nos esqueamos, uma

    complexidade de vontades de potncia sempre em luta8. O que constitui este

    corpo exatamente o Selbst. Desta maneira, o esprito e os sentidos, assim

    7 Sabemos que Nietzsche se interessou pelas epistemologias naturalistas de feio neodarwinista.

    Por este motivo, acreditamos que o uso da palavra desenvolvimento mais adequado que evoluo. Embora a seleo natural darwinista no aponte necessariamente para uma melhoria das espcies o que apto para um determinado meio pode no ser apto para outro , este termo posteriormente adquiriu tal conotao. Lembremos, por exemplo, do neodarwinismo, do darwinismo-social, da sociobiologia e da eugenia. Evoluo muitas vezes confundida com progresso. Como para o empreendimento nietzschiano no cabe nenhum tipo de teleologia, ficamos com a primeira opo. Concordamos aqui com a posio de Antonio Marques em o Sujeito e o Perspectivismo, onde este comentador afirma que, para Nietzsche, as novas formas criadas a partir de dentro no se orientam segundo um fim (Marques, 1989, p. 94).

    8 No aforismo 19 de Para alm de bem e mal Nietzsche afirma: ...pois nosso corpo apenas uma estrutura social de muitas almas... Em todo querer a questo simplesmente mandar e obedecer, sobre a base, como disse, de uma estrutura social de muitas almas: razo porque um filsofo

  • 26

    como o fgado, o corao, o bao etc. so simples ferramentas da grande

    razo. No mbito gnosiolgico isto significa, antes de mais nada, uma crtica

    s correntes racionalistas e empiristas: Aquilo que os sentidos experimentam,

    aquilo que o esprito conhece nunca tem seu fim em si mesmo. Mas os

    sentidos e o esprito desejariam persuadir-te de que so eles o fim de todas as

    coisas: tamanha sua vaidade. Mas partir dos sentidos, como os empiristas,

    ou do esprito, como os racionalistas ou criticistas, para atingir o

    conhecimento, uma iluso. Subjacente ao esprito, ou aos sentidos,

    encontramos o si-mesmo9. ele que ter que ser o referencial para as questes

    gnosiolgicas. Percebemos, assim, que Nietzsche volta sua crtica contra

    sistemas como os de Locke, Hume, Descartes e Kant, dentre tantos outros.

    Todos esses pensadores no teriam compreendido a anterioridade do si

    mesmo, construindo uma dicotomia inexistente, ou melhor, ficcional, ou seja,

    a dicotomia entre o corpo e a conscincia. Observamos, assim, que a to

    endeusada conscincia se torna, com Nietzsche, um simples instrumento do

    corpo; ele que ser o fio condutor da filosofia nietzschiana da maturidade. O

    deve se arrogar o direito de situar o querer em si no mbito da moral moral, entenda-se, como a teoria das relaes de dominao sob as quais se origina o fenmeno vida.

    9 Lembremo-nos do aforismo 16 de Para alm de bem e mal, onde Nietzsche faz uma crtica noo de sujeito: por exemplo, que sou eu que pensa, que tem de haver necessariamente um algo que pensa, que pensar atividade e efeito de um ser que pensado como causa, que existe um Eu, e finalmente que j est estabelecido o que designar como pensar que eu sei o que pensar. Pois se eu j no tivesse me decidido comigo a respeito, por qual medida julgaria que o que est acontecendo no talvez sentir ou querer?

  • 27

    corpo, a grande razo, os afetos, enfim, a vontade de potncia ser o

    paradigma para o ato de conhecer10.

    Gostaramos de ressaltar um aspecto que nos parece fundamental para a

    histria da filosofia. Sem sombra de dvida, Nietzsche, implodindo a

    dicotomia entre corpo e alma, mostra que a conscincia se torna

    simplesmente um instrumento do corpo. Contudo, acreditamos que Espinosa,

    de alguma maneira, j apontava para esta questo. Na verdade, o filsofo da

    tica foi o primeiro a enfatizar a importncia do corpo, ou melhor, a no

    subordinao do corpo em relao alma, o que quer dizer que Espinosa nega

    a superioridade da alma em relao ao corpo. Seno vejamos: essncia do

    homem no pertence o ser da substncia; por outras palavras, a substncia no

    constitui a forma do homem afirma Espinosa na proposio 10 do Livro II

    da tica. Para compreendermos o sentido desta proposio e o enorme

    rompimento dezessete sculos de histria da filosofia que efetua Espinosa

    em relao tradio, necessrio analisarmos o que o filsofo entende por

    substncia. Inicialmente, Espinosa vai definir esse conceito: Por substncia

    entendo o que existe em si e por si concebido, isto , aquilo cujo conceito

    10 Scarlett Marton aponta a relao, em Nietzsche, entre pensar, querer e sentir: pressupe-se aqui

    que todo o organismo pensa, todas as formas orgnicas tomam parte do pensar, no sentir, no querer , por conseguinte, o crebro apenas um enorme aparelho de centralizao. No s o querer, mas tambm o sentir e o pensar esto disseminados pelo organismo; a relao entre eles de tal ordem que, no querer, j se acham embutidos o sentir e o pensar, de modo que pensamento, sentimento e vontade aparecem como indissociveis (Marton, 1990, p.32).

  • 28

    no carece do conceito de outra coisa do qual deva ser formado (E, I, P III).

    Substncia, para o filsofo da tica, aquilo que em si e por si e que

    concebido por si mesmo11. Assim, a substncia espinosana , antes de

    qualquer coisa, causa de si, ou seja, aquilo cuja essncia exige a existncia

    necessria: Por causa de si entendo aquilo cuja essncia envolve a existncia;

    ou, por outras palavras, aquilo cuja natureza no pode ser concebida seno

    como existente (E, I, P 1). Notemos que aquilo que causa de si no se limita

    a si mesmo, sendo necessariamente infinito. Ele forma a si mesmo e tambm a

    totalidade dos seus atributos. Dentro de tal contexto, s podemos pensar em

    uma nica substncia: Deus12. Espinosa afirma que, pelo fato de Deus ser uma

    substncia, ele causa de si, porm ele tambm causa de todas as coisas, ou

    seja, o ato pelo qual a substncia se autoproduz o ato pelo qual ela produz

    tambm todas as coisas. Temos aqui a causalidade imanente. Deus imanente

    natureza porque a sua essncia se exprime em todas as coisas. Assim, Deus

    concebido como uma substncia que nica, infinita, complexa e constituda

    por uma infinitude de qualidades infinitas. Como Deus a nica substncia,

    tudo o que existe na natureza ser entendido como uma modificao desta

    substncia. Percebemos aqui claramente o rompimento com a filosofia

    11 Por meio desta definio, Espinosa deixa claro que a substncia no pode ser considerada um

    suporte de acidentes, ou um sujeito de inerncia de predicados, pois ela ontologicamente se auto-explica. Alm disto, o filsofo demonstra que a substncia existe e subsiste por si mesma.

  • 29

    cartesiana: o homem no uma substncia, ou um composto substancial, ele

    uma modificao de Deus. Por isso, na proposio 10 acima citada, o filsofo

    afirmou que a substncia no constitui a forma do homem. O homem,

    modificao substancial, finito e constitudo por duas modificaes finitas

    de dois atributos divinos: a alma e o corpo.

    Espinosa desenvolve a sua teoria do corpo ou, se quisermos, a sua

    fsica, no Livro II da tica. Levando em considerao o princpio de inrcia

    elemento central da nova mecnica e, portanto, operando com a causa

    eficiente interna, e no mais com a causa final, Espinosa define um corpo

    como um indivduo complexo composto de outros corpos e constitudo por um

    equilbrio interno na proporo de movimento e repouso13. No postulado

    referente proposio XIII do Livro II da tica, Espinosa afirma que O

    corpo humano composto de um grande nmero de indivduos (de natureza

    diversa), cada um dos quais tambm muito composto, e ainda os

    12 Espinosa constri a essncia de Deus nas proposies de 1 a 15 do Livro I da tica, tendo como

    base a idia de substncia. 13 Afastamo-nos aqui da posio de Diogo Pires Aurlio em seu artigo Espinosa e Nietzsche: a

    vontade de poder. Este comentador afirma: Mas o conatus, tal como Espinosa o concebe, alm de no se confundir com a potncia aristotlica, tambm no se confunde com a verso mecanicista que dele apresenta Descartes, toda ela decalcada no princpio de inrcia (org. Marques, 1986, p. 56). Para Diogo Aurlio, o fato de no podermos pensar o conatus espinosano como um corpora simplicissima j afastaria Espinosa do contexto que envolve o princpio de inrcia. Sem sombra de dvida, o corpo para Espinosa uma complexidade, e aqui o filsofo se distancia consideravelmente das partculas duras da fsica cartesiana. Todavia acreditamos que a mecnica a via de acesso fsica espinosana; veremos que o conatus espinosano s poder ser pensado perante a nova mecnica, pois graas a ela que a idia de uma finalidade, de uma causa final rompida, elemento essencial da doutrina espinosana.

  • 30

    indivduos que compem o corpo humano e, consequentemente, o prprio

    corpo humano, so afetados de numerosas maneiras pelos corpos exteriores.

    Note-se que o que ir diferenciar um corpo de outro exatamente a diferena

    entre movimento e repouso, rapidez e lentido. Assim, a idia de um

    equilbrio interno fundamental para entendermos a noo espinosana do

    conatus. O corpo vai agir, o corpo ir tornar-se uma causa agente, para

    garantir este equilbrio interno. No nos esqueamos: Espinosa define o

    indivduo pela causa, ou seja, quando vrios corpos atuam no mesmo sentido,

    com uma causa nica, eles constituem um indivduo14. O filsofo afirma que a

    alma idia do seu corpo e idia de si mesma. A alma , portanto, a

    conscincia do que se passa no seu corpo, ou seja, conscincia das afeces

    corporais afetos , alm de ser conscincia de si prpria15. Desta maneira, o

    corpo constitui o objeto da alma, pois faz parte da sua essncia pens-lo16.

    14 Como nos alerta Marilena Chau, no seu livro Espinosa uma filosofia da liberdade, O corpo

    humano... uma unidade estruturada: no um agregado de partes, mas unidade de conjunto e equilbrio de aes internas interligadas de rgos, portanto, um indivduo. Sobretudo, um indivduo dinmico, pois o equilbrio interno obtido por mudanas internas contnuas e por relaes externas contnuas, formando um sistema de aes e reaes centrpeto e centrfugo, de sorte que, por essncia, o corpo relacional: constitudo por relaes internas entre seus rgos, por relaes externas com outros corpos e por afeces, isto , pela capacidade de afetar outros corpos e ser por eles afetado sem se destruir, regenerando-se com eles e os regenerando. O corpo, sistema complexo de movimentos internos e externos, pressupe e pe a intercorporeidade como originria (Chau, 1995, p.54). No captulo III da Dissertao, veremos como importante para Nietzsche a idia de relao. Alis esta noo fundamental, a nosso ver, para todo o projeto nietzschiano. No nos esqueamos: vida luta; e, para lutar, necessrio sobretudo oponentes, obstculos, enfim, relaes.

    15 Como nos lembra Marilena Chau, A alma no idia de uma mquina corporal que ela observa de fora e sobre a qual formaria representaes. Espinosa demonstra com preciso: ela idia das afeces corporais. Em outras palavras, conscincia dos movimentos, das mudanas, das aes

  • 31

    Na proposio 7 do Livro II da tica, Espinosa nos apresenta as

    relaes complexas que se estabelecem entre o corpo e a alma: A ordem e a

    conexo das idias a mesma que a ordem e a conexo das coisas. Para ele,

    existe uma nica substncia operando em ns atravs de dois modos de dois

    atributos: o corpo e a alma. Assim, o homem simplesmente exprime a unidade

    complexa dos atributos na substncia. O que o atributo extenso faz o atributo

    pensamento compreende. Contudo, ele acrescenta: Nem o corpo pode

    determinar a alma a pensar, nem a alma determinar o corpo ao movimento ou

    ao repouso ou a qualquer outra coisa (se acaso existe outra coisa) (E, III, P

    2). Para o filsofo da tica no existe relao causal entre o corpo e a alma.

    Os corpos so determinados pelo atributo extenso e as almas so

    determinadas pelo atributo pensamento. O que existe entre eles uma

    correspondncia, se quisermos, um paralelismo. Assim, a causalidade que

    rege os modos uma causalidade intra-atributiva: a alma opera no interior do

    atributo pensamento, e o corpo no interior do atributo extenso, havendo a

    completa independncia entre a causalidade psquica e a causalidade corporal.

    e reaes de seu corpo na relao com outros corpos, das mudanas no equilbrio interno de seu corpo sob a ao das causas externas. A alma conscincia da vida de seu corpo e conscincia de ser consciente disso. Deixa de existir, portanto, o problema metafsico da unio entre a alma e o corpo: da essncia da alma, por ser atividade pensante estar ligada ao seu objeto de pensamento, o corpo. Melhor, vida do seu objeto (Chau, 1995, p. 60).

    16 Este pensamento pode ocorrer de vrias maneiras: atravs das noes comuns, de idias imaginativas, de desejos ou por meio de idias reflexivas. Assim, o conhecimento pode se dar de modo confuso e imaginativo, como tambm de modo verdadeiro. No presente trabalho, por questes metodolgicas, no trabalharemos a teoria do conhecimento espinosana.

  • 32

    Como esta relao deriva diretamente da unidade dos atributos na substncia,

    o homem ontologicamente concebido como uma unidade entre corpo e alma.

    Este corpo e esta alma no possuem uma relao hierrquica, so ativos

    juntos, ou passivos juntos. O que ao na alma tambm necessariamente

    ao no corpo, e o que paixo no corpo necessariamente paixo na alma

    (E, III, P2, E). Neste sentido, no existe predomnio do corpo em relao

    alma, nem da alma em relao ao corpo. Desta maneira, no podemos explicar

    a ao e a paixo pela atividade causal entre o corpo e a alma, ou seja, a alma

    no possui mais o poder sobre as paixes do corpo como afirmava a tradio,

    pois a alma passiva junto com o corpo. Expliquemos: a alma s pensa aquilo

    que o corpo faz. Portanto, se a alma anseia por crescer, necessariamente o

    corpo tem que aumentar a sua potncia17. Neste sentido o empreendimento

    espinosano abre a possibilidade para pensarmos a relao entre corpo e alma

    de uma maneira distinta da tradio. As paixes, os afetos, enfim, o corpo tem

    seu lugar assegurado neste novo modo de refletir sobre a natureza humana.

    Notemos que, em pleno sculo XVII, existe uma filosofia que sob o mos

    geometricus denuncia a conscincia, os valores e as paixes tristes.

    17Deleuze, em seu livro Espinosa e os signos, escreve que Espinosa prope aos filsofos um novo

    modelo: o corpo. Prope-lhes instituir o corpo como modelo: No se sabe o que pode o corpo.... Esta declarao de ignorncia uma provocao: ns falamos da conscincia e dos seus decretos, da vontade e dos seus efeitos, dos mil meios de mover o corpo, de dominar o corpo e as paixes mas no sabemos realmente o que pode um corpo. Tagarelamos, falta de o saber. Como dir Nietzsche, espantamo-nos diante da conscincia, mas o que surpreendente , acima de tudo, o corpo (Deleuze, 1970, p.25).

  • 33

    Para Espinosa, o corpo composto de outros corpos e constitudo por

    um equilbrio interno na proporo de movimento e repouso. Utilizando a

    nova mecnica, ele pode afirmar que um corpo no age em busca de uma

    finalidade: ele opera segundo sua causa eficiente interna. E no poderia ser

    diferente; por meio da ontologia espinosana observamos que a natureza

    humana um modo finito dos atributos da substncia. Os atributos no agem

    tendo em vista fins; agem como um desdobramento necessrio da sua

    potncia. O homem exprime os atributos da substncia; assim, os homens

    operam tambm segundo a causa eficiente interna. E se, para Espinosa, a alma

    idia das afees do corpo e idia de si mesma, seja na relao da alma com

    o corpo, seja na relao da alma consigo mesma, tambm no encontraremos

    uma relao finalista. Assim, afirmando somente a causa eficiente interna,

    Espinosa pode definir o conatus: Toda a coisa se esfora, enquanto est em

    si, por perseverar no seu ser (E, III, P 6); e ademais: O esforo pelo qual

    toda coisa tende a perseverar no seu ser no seno a essncia atual dessa

    coisa (E, III, P 7). Assim, o corpo apresenta internamente,

    imanentemente, um esforo para manter o seu equilbrio interno, e a alma,

    da mesma maneira, possuiria a conscincia deste esforo.

    No corpo, o conatus se chama apetite e, na alma, se chama desejo. O

    corpo humano, como uma complexidade, pode afetar e ser afetado de

  • 34

    inmeras maneiras por outros corpos. Espinosa construir a sua teoria dos

    afetos apoiado em um nico critrio a variao da intensidade do conatus, ou

    em termos nietzschianos, "o aumento ou a diminuio da potncia. Desta

    maneira, o corpo humano interage com outros corpos sempre aumentando ou

    diminuindo a sua potncia de agir. O pensador acrescenta que o conatus

    envolve uma durao indefinida, pois perseverar durar: O esforo pelo qual

    cada coisa tende a perseverar no seu ser no envolve tempo finito, mas um

    tempo indefinido (E, III, P 8). Podemos dizer que o homem, relacionando-se

    com outros modos, pode determinar-se e ser determinado pelo mundo exterior.

    Aqui o homem esfora-se por aumentar a sua potncia ou, na linguagem

    espinosana, busca paixes alegres18: Quando a alma imagina coisas que

    diminuem ou reduzem a potncia de agir do corpo, esfora-se, tanto quanto

    pode, por se recordar de coisas que excluem a existncia delas (E, III, P 13).

    Contudo, corre-se o risco de encontrar algo mais potente que ns, sob o qual

    se pode at morrer. Como o conatus uma essncia atual de um modo finito,

    18 Como nos lembra Deleuze: De qualquer modo, o conatus define o direito do modo existente.

    Tudo aquilo que eu sou determinado a fazer para perseverar na existncia (destruir o que no me convm, o que me nega, conservar o que me til ou me convm) pelas afeces dadas (idias de objetos), sob afetos determinados (alegria e tristeza, amor e dio), tudo isso o meu direito ou natureza. Este direito rigorosamente idntico minha potncia, e independente de toda a ordem de fins, de toda a considerao de deveres, visto que o conatus fundamento primeiro, primum movens, causa eficiente e no final. Este direito no contrrio nem a lutas, nem a dios, nem a clera, nem ao engano, nem absolutamente a nada do que o apetite aconselha. O homem racional e o insensato distinguem-se pelas suas afees e pelos seus afetos, mas esforam-se igualmente por perseverar na existncia em funo de tais afees e afetos: deste ponto de vista, a sua nica diferena radica na potncia (Deleuze, 1970, p.122-3).

  • 35

    ele no possui internamente nenhuma causa para desaparecer. Assim, a morte

    sempre aquilo que vem de fora; ela s surge por intermdio da luta com

    corpos exteriores, portanto, o conatus possui uma durao ilimitada at que

    causas exteriores mais fortes o destruam. No limite, a finitude o que vem de

    fora, ela s ocorre na relao com o outro19. Dentro de tal contexto, evidente

    que o homem buscar sempre elevar a sua potncia de agir e fugir daquilo que

    diminui a sua potncia, ou seja, das paixes tristes.

    No final do livro III da tica, Espinosa apresenta a definio geral dos

    afetos: Um afeto, chamado paixo do nimo (animi pathema), uma idia

    confusa pela qual a alma afirma a fora de existir, maior ou menor do que

    antes, do seu corpo ou de uma parte deste, e pela presena da qual a alma

    determinada a pensar tal coisa de preferncia a tal outra. Por conseguinte, as

    paixes so afetos pelas quais a potncia de agir deste corpo aumentada ou

    diminuda, e pelo paralelismo, o mesmo ocorrendo com a potncia da

    mente. A paixo, para o filsofo, est vinculada ao campo da imaginao. Por

    qu? Pois necessariamente na paixo somos causa inadequada de nossos

    apetites e desejos. Em outras palavras, a exterioridade aqui mais potente do

    que nossa interioridade corporal e psquica. De fato, a grande virada da

    filosofia espinosana em relao tradio que as paixes no so vistas

    19 Como afirma Espinosa (E, III, P IV): Nenhuma coisa pode ser destruda, a no ser por uma

    causa exterior.

  • 36

    como vcios ou foras do mal20. Os homens so naturalmente seres

    passionais21. Mediante a teoria das paixes, Espinosa demonstra que o acesso

    verdadeiro pode ser atingido pela alma. Decerto isto ocorre quando ela assume

    sua prpria essncia, sua prpria potncia, ou seja, a capacidade plena para

    pensar. Contudo, o contrrio tambm pode ocorrer. A paixo aumentando ou

    diminuindo imaginariamente a intensidade do conatus. Esse aumento ou esta

    diminuio da fora para existir, no campo imaginativo, o que Espinosa

    denomina servido22.

    A filosofia espinosana prope a busca da alegria e a impossibilidade de

    se fugir das paixes; os homens so intrinsecamente apetites e desejos.

    Portanto, temos em Espinosa a naturalizao dos afetos; ao homem s cabe

    controlar estes afetos. Este controle ocorre quando o sujeito a causa total do

    20 Lembremos o comentrio de Marilena Chau: Esto desfeitos tanto o voluntarismo quanto o

    intelectualismo que pretenderam, durante sculos, outorgar vontade e razo um poder que no possuem e que, justamente para encobrir a impotncia de ambas, inventou a moral asctica e a moral dos fins e valores como paradigmas externos a serem obedecidos pelos humanos. O moralismo, impondo finalidades externas ao apetite e ao desejo humanos, impondo modelos de virtudes e vcios, a forma imaginria de suprir o fracasso de um outro imaginrio: o da vontade onipotente e da razo onisciente capazes de exercer o pleno imprio da alma sobre o corpo... Da decorre uma outra inovao espinosana [que sem dvida ser retomada por Nietzsche, LZ]: ...bom e mau no so valores em si nem correspondem a qualidades que existiriam nas prprias coisas. Bom tudo quanto aumente a fora de nosso conatus. Eis por que Espinosa afirma que algo no desejado por ns por ser bom, mas bom porque o desejamos (Chau, 1995, p.67).

    21 Espinosa apresenta as definies dos afetos no Livro III da tica. A seguir daremos as definies dos trs afetos primrios. Os demais so dedues destes. O desejo (Cupiditas) a prpria essncia do homem, enquanto esta concebida como determinada a fazer algo por um afeto qualquer nela verificada (E, III, P IX, E); A alegria (Laetitia) a passagem do homem de uma perfeio menor para uma maior (E, III, P XI, E); A tristeza (Tristitia) a passagem do homem de uma perfeio maior para uma menor (E, III, P XI, E ).

    22 Sobre a relao entre servido e liberdade em Espinosa, cf. o artigo de Chau, 1993, "Servido e Liberdade na tica IV", in Discurso, 22, p.63.

  • 37

    que se passa com ele (causa adequada); caso contrrio, o sujeito poder ser

    controlado por algo exterior a ele (causa inadequada). A diferena entre o

    esforo de autopreservao adequado e o inadequado que o primeiro realiza

    este esforo exclusivamente a partir da sua potncia interna, enquanto o

    segundo depende de causas exteriores. Podemos afirmar que a natureza

    humana sempre buscar o que a favorece e afastar o que a prejudica, pois o

    nico critrio o aumento ou a diminuio da potncia. Por isso, a essncia do

    homem nunca se modifica o que varia a intensidade do conatus, a essncia

    singular permanece indefinidamente a mesma. Neste contexto, Nietzsche se

    aproxima da posio espinosana. Na Genealogia da Moral, o pensador mostra

    que os tipos so constitudos por uma multiplicidade de instintos, sugerindo,

    portanto, graus nesta tipologia. Assim, o que varia, tal como em Espinosa, a

    intensidade da vontade de potncia23. A essncia, o tipo, permanece, no

    limite, o mesmo.

    Desta aproximao surge um outro aspecto fundamental para

    entendermos o empreendimento de ambos os filsofos. Espinosa define a

    paixo como inadequao; contudo, ela absolutamente natural. O homem

    23 No poderamos deixar de mencionar o background fisiolgico que existe no filosofar de

    Nietzsche. Os tipos so complexos de vontades de potncia, complexos de impulsos e so estes que iro, no limite, servir de fundamento para a tipologia nietzschiana. Lembremos do seguinte pstumo: Os estados morais so estados fisiolgicos (IX, 6 (445)). Sobre esta questo, cf. Onate, 1997, dissertao de mestrado de Alberto Marcos Onate, O Crepsculo do sujeito em Nietzsche ou como abrir-se ao filosofar sem metafsica.

  • 38

    finito, portanto, ele necessita da relao com os outros corpos para existir. E

    neste momento que surge a paixo, na luta com os corpos exteriores.

    Observamos que, para a filosofia espinosana, o conflito originrio, pois os

    homens intrinsecamente como modos finitos relacionam-se com os outros

    corpos24. Logo, o filsofo da tica rompe com qualquer transcendncia

    moral, ou, se preferirmos, os valores esto para alm de bem e mal. Cada

    corpo distintamente guiado pelo seu prprio conatus; no limite, somos ns

    humanos que impomos valores s coisas. No existe, portanto, possibilidade,

    dentro da filosofia espinosana, para uma tica normativa. Assim, o homem

    no age por bondade, por caridade ou por amor ao prximo, por exemplo;

    sempre o conatus, logo, o interesse particular de cada corpo que o guia. No

    limite, a direo sempre dada pelo desejo e pelo apetite de cada um de ns.

    A filosofia nietzschiana, sabemos, tem como fio condutor esta mesma

    impossibilidade. Nietzsche, por intermdio do procedimento genealgico,

    mostra a origem humana de todos os valores. Para a conservao e aumento de

    sua potncia, a vida, em suas manifestaes complexas, institui valores (bem e

    mal, verdadeiro e falso, belo e feio). Desta maneira, todos os tipos de valores

    24 Contudo, gostaramos de lembrar que cada modo finito uma potncia de agir que busca a

    autopreservao. Essa busca, ao fazer-se imaginativamente por meio das paixes, institui a luta originria entre todos os seres e entre todos os homens, na medida em que o direito natural se define pela fora. Espinosa considera, porm, que a Natureza Naturada um sistema racional de relaes necessrias de concordncia entre as partes, de sorte que, inimigos passionais, os homens podem tornar-se amigos racionais quando seguem as leis da Natureza de maneira no passiva (passional), mas ativa (racional afetiva) .

  • 39

    estaro vinculados sempre a condies de conservao e aumento de potncia

    especficos de cada corpo. Para o filsofo alemo, a vida humana um

    combate constante, e nesta luta cada espcie viva sobrevive criando valores.

    Desta maneira, Nietzsche vincula os valores a interesses de ordem prtica25.

    Temos aqui, de modo similar a Espinosa, a naturalizao dos valores.

    Para Espinosa, o critrio utilizado para determinar a relao entre os

    corpos o aumento ou a diminuio da potncia de agir de um determinado

    corpo. Portanto, necessariamente o homem busca o aumento da sua potncia,

    consequentemente, o homem busca, no limite, as paixes alegres. Observamos

    tambm que este critrio a variao da intensidade do conatus no

    guiado por uma causa final. Desta maneira, acreditamos poder apontar um

    equvoco por parte de Nietzsche. Em Para alm de bem e mal, aforismo 13, o

    filsofo afirma: Os fisilogos deveriam refletir, antes de estabelecer o

    impulso de autoconservao como o impulso cardinal de um ser orgnico.

    Uma criatura viva quer antes de tudo dar vazo sua fora a prpria vida

    vontade de potncia : a autoconservao apenas uma das indiretas, mais

    freqentes conseqncias disso. Em suma: nisso, como em tudo, cuidado

    com os princpios teleolgicos suprfluos! um dos quais o impulso de

    autoconservao (ns o devemos inconseqncia de Espinosa). Assim pede

    25 Sobre esta questo, cf. o captulo II da Dissertao, A verdade como fico.

  • 40

    o mtodo, que deve ser essencialmente economia de princpios. Inicialmente,

    o conatus no simplesmente um impulso de autoconservao. evidente

    que o conatus pode ser definido como a tendncia de um corpo para

    perseverar no seu ser. Contudo observamos que, pela construo da sua

    teoria dos afetos, Espinosa deixa claro que o aumento (e eventualmente a

    diminuio) da potncia de um determinado corpo essencial para a vida

    deste corpo. Alis, os corpos, modos finitos, necessitam da relao com os

    corpos exteriores e, portanto, aumentam ou diminuem a sua potncia quando

    interagem. Em segundo lugar, o conatus no um princpio teleolgico

    suprfluo. Vimos que Espinosa rompe com a idia aristotlica de

    finalidade26.

    Contudo gostaramos de apontar uma diferena que nos parece

    fundamental. O indivduo, para Espinosa, a convenincia dos corpos

    microscpicos numa ao comum. No obstante, o conflito pode ser

    considerado originrio da natureza humana, pois este ocorre na relao entre

    26 O conceito nietzschiano Wille Zur Macht traduzido, dependendo dos comentadores, ora por

    vontade de potncia, ora por vontade de poder. Analisando o percurso que fizemos at aqui, acreditamos que a primeira traduo a que melhor expressaria o conceito nietzschiano. Lembremos que a vida, para Nietzsche, entendida como conservao e intensificao de potncia. Esta intensificao no possui teleologia alguma, ela simplesmente efetiva-se. A todo momento a vontade de potncia tenta se superar. A vida como um todo identifica-se com esta superao, dominao. Ora, vimos em vrias passagens que o conatus uma potncia; uma potncia imanente que se efetua sem nenhuma finalidade. Portanto encontramos, j em Espinosa, a desconstruo do sentido aristotlico do termo potncia. Como este conceito chave para a elaborao da teoria gnosiolgica de Nietzsche, bem como para seus outros temas, acreditamos que restringi-lo ao mbito poltico vontade de poder seria limitar a prpria filosofia de Nietzsche.

  • 41

    os corpos. Por isso, Espinosa define a paixo como inadequao quando a

    exterioridade mais potente que a interioridade. No caso nietzschiano, a luta

    ocorre em todos os seres vivos microscpicos. Portanto, a vontade de potncia

    essencialmente dominao. O que no ocorre na definio espinosana do

    conatus. Talvez neste sentido, e somente neste sentido, Nietzsche possa ter

    pensado o conatus espinosano como um princpio de autoconservao do ser.

    Pois o corpo sozinho, para Espinosa, tende somente a se perseverar no seu

    estado e no a se intensificar. Aqui, Nietzsche teria radicalizado: o conflito

    que era intrnseco relao entre os corpos passa a ser intrnseco a um mesmo

    corpo. Talvez a diferena esteja no que ambos entendem por corpo: para

    Espinosa, nos simplssimos que compem o complexo o conatus

    perseverao no seu estado, ou seja, temos aqui somente a conservao; j nos

    complexos que constituem o indivduo, o conatus perseverao no ser, e

    aqui sim temos a intensificao.

    Observamos que Nietzsche, escrevendo ao seu amigo Overbeck, disse

    em 1881 estar surpreso e encantado por encontrar em Espinosa um

    predecessor capaz de transformar sua prpria solido em uma solido a dois27.

    Nesta carta, ele enumerou cinco pontos todos temas ticos da filosofia de

    Espinosa que coincidem com seus prprios argumentos. A noo de afeto

    27 Carta Overbeck de 30/06/81, Sils Maria.

  • 42

    em Espinosa aponta para a impossibilidade de uma tica normativa, o mesmo

    ocorrendo com Nietzsche. Em 1888, tendo j elaborado toda a sua filosofia,

    Nietzsche assim resumiu sua tica: O que bom? Tudo o que aumenta no

    homem o sentimento de potncia, a vontade de potncia, a prpria potncia. O

    que ruim? Tudo o que nasce da fraqueza. O que a felicidade? O sentimento

    de que a potncia cresce, de que uma resistncia foi vencida. No o

    contentamento, mas mais potncia. No a paz finalmente, mas a guerra; no a

    virtude, mas a excelncia (virtude no estilo do Renascimento, virt, virtude

    isenta de moralismos) (AC 2). Aps este breve percurso em que abordamos

    a ontologia espinosana, no ficaramos surpresos, de forma nenhuma, se este

    aforismo fosse de autoria de Espinosa28.

    Vontade de potncia e conatus apontam para a naturalizao dos afetos,

    impossibilidade de uma tica normativa e, enfim, rompem com qualquer

    transcendncia moral29. claro que no empreendimento espinosano, em pleno

    sculo XVII, no fervor da chamada revoluo cientfica, a razo possui um

    lugar privilegiado. Inimigos passionais, os homens, seguindo as leis da

    natureza de maneira ativa racional afetiva , podem tornar-se amigos.

    Existe, portanto, um sistema racional que garante uma necessria

    28 Claro que, no caso de Espinosa, ele no concordaria com a posio de Nietzsche em relao

    guerra. Afinal, para o filsofo excomungado do judasmo, a paz superior guerra. Quanto ao restante do aforismo, acreditamos que os dois pensadores se poriam de acordo.

    29 Em termos deleuzianos, ambos os pensadores apontam para um plano de imanncia.

  • 43

    concordncia entre as partes. E este o objetivo para aqueles que almejam a

    verdadeira liberdade. No caso de Nietzsche, a conscincia simplesmente um

    instrumento do corpo. Assim, fica sem sentido enumerar as faculdades

    intelectuais. Querer, pensar, agir, sentir fazem parte de um todo e mesmo

    processo. o corpo, no limite, que comanda. Contudo, ambos apontam para a

    necessidade de um olhar interessado para o mundo; pois, antes de qualquer

    coisa, so os afetos que conduzem este novo olhar.

  • 44

    A verdade como ficoA verdade como fico

  • 45

    Verdade

    A porta da verdade estava aberta,

    mas s deixava passar meia pessoa de cada vez.

    Assim no era possvel atingir toda a verdade,

    porque a meia pessoa que entrava s trazia o perfil de meia verdade.

    E sua segunda metade voltava igualmente com meio perfil.

    E os meios perfis no coincidiam.

    Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta. Chegaram ao lugar luminoso

    onde a verdade esplendia seus fogos. Era dividida em metades diferentes uma da outra.

    Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.

    Nenhuma das duas era totalmente mais bela. E carecia optar. Cada um optou conforme

    seu capricho, sua iluso, sua miopia.

    Carlos Drummond de Andrade

  • 46

    Na tradio filosfica o termo verdade recobre uma vasta gama de

    significados. Em seu sentido mais amplo, a razo o meio para se alcanar a

    verdade. Na medida em que se fez guardi da racionalidade, a filosofia

    debateu-se exaustivamente em estabelecer as condies do conhecimento

    verdadeiro. Ora, Nietzsche na contracorrente prope o corpo como

    paradigma do conhecimento, ou seja, com ele teremos de repensar o estatuto

    dos conceitos gnosiolgicos. O que significa esta fisiologizao da teoria do

    conhecimento? Ser que Nietzsche, nesse contexto, possuiria um critrio de

    verdade? Acreditamos que seja necessrio refazer o percurso da crtica

    nietzschiana lgica e linguagem para que, ao final deste trajeto, possamos

    reunir elementos suficientes para responder a estas questes.

    No terceiro aforismo de Para alm de bem e mal Nietzsche escreve:

    Por trs de toda lgica e de sua aparente soberania de movimentos existem

    valoraes, ou, falando mais claramente, exigncias fisiolgicas para a

    preservao de uma determinada espcie de vida... tais avaliaes poderiam,

    no obstante a sua importncia reguladora para ns, ser apenas avaliaes-de-

    fachada, um determinado tipo de niaiserie, tal como pode ser necessrio

    justamente para a preservao de seres como ns.... O pensador vincula

    valoraes com exigncias fisiolgicas, ou seja, o conhecimento, no caso

  • 47

    especfico a lgica, ligado preservao ou, se quisermos, conservao de

    determinadas formas de vida. Nietzsche, na esteira de Schopenhauer, aborda

    as questes do conhecimento no registro fisiolgico: A questo em que

    medida ele promove ou conserva a vida, conserva ou at mesmo cultiva a

    espcie (BM 4).

    Ns vemos que o instrumento da inteligncia, quer dizer, o sistema

    cerebral e os rgos dos sentidos foram desenvolvidos de acordo com as

    necessidades do organismo; o aumento da parte representativa (em oposio

    parte volitiva) da conscincia, tem sua expresso fsica (corporal) na

    predominncia do crebro sobre o cerebelo (grifo nosso) afirma

    Schopenhauer no captulo XIX dos Suplementos do Mundo como vontade e

    representao (Schopenhauer, 1978, p.13). Apontando o a priori no crebro e

    introduzindo a vontade no lugar do sujeito transcendental, Schopenhauer

    opera uma inverso em relao ao kantismo. Enquanto Kant pretende mostrar

    o funcionamento da mente, aplicando o a priori na experincia, Schopenhauer

    vai alm, objetivando apresentar a origem deste a priori. Para ele, so dados

    cerebrais inatos. Analisemos mais de perto como o filsofo opera esta

    fisiologizao do crebro, pois conduzir, sem sombra de dvida, a uma nova

    viso das questes gnosiolgicas.

  • 48

    No captulo intitulado Da primazia da vontade sobre a conscincia de

    si30 encontramos a tese schopenhaueriana da superioridade da vontade sobre

    o intelecto. Aqui o filsofo mostra que a conscincia condicionada pelo

    intelecto e, este, um mero acidente do ser, pois ele uma funo do crebro

    e, como outros rgos do corpo (nervos, medula, etc.) um parasita do

    organismo. De fato, o crebro, para o filsofo do Mundo, serve somente para a

    autoconservao. Inicialmente, o pensador afirma: O organismo, ele mesmo,

    a vontade individual objetivada; o organismo sua imagem e como imagem

    que aparece para o crebro (p.13). Esta imagem fenmeno se d pelas

    formas do conhecimento que se localizam no crebro: espao, tempo e

    causalidade. O filsofo prossegue: o intelecto o fenmeno secundrio, o

    organismo o fenmeno primrio, a saber, o fenmeno imediato da vontade; a

    vontade metafsica, o intelecto fsico. O intelecto tanto quanto estes

    objetos um puro fenmeno; a vontade somente coisa-em-si... A vontade a

    substncia no homem, o intelecto o acidente; a vontade a matria, o

    intelecto a forma, a vontade o calor, o intelecto a luz (p.13). Percebemos

    que o elemento primeiro e original a vontade; o sujeito cognoscente, por

    outro lado, somente o fenmeno secundrio e derivado. Assim, encontramos

    30 Este captulo o XIX dos Suplementos do Mundo como vontade e representao. Todas as

    citaes a seguir referem-se a ele.

  • 49

    necessariamente a superioridade da vontade sobre o intelecto. Este ltimo

    somente uma frao em relao ao organismo como um todo.

    Para Schopenhauer, a conscincia de si s possvel perante a

    dicotomia sujeito/objeto: A inteligncia como o sol que somente ilumina o

    espao graas presena dos corpos, que reflete seus raios (p.14). Isto

    significa que sem a presena dos objetos exteriores no h o que ser refletido.

    Sabemos ainda, continua o filsofo, que o sujeito do conhecimento no pode

    ser conhecido; isto s ocorreria se ele fosse o objeto conhecido de um outro

    sujeito do conhecimento. Assim, o pensador conclui: mas como o elemento

    conhecido na conscincia de si ns encontramos exclusivamente a vontade

    (p.14), e ainda: So, em efeito, as pulses e as modificaes da vontade e,

    no somente a volio e a resoluo, no sentido restrito do termo, mas ainda

    toda aspirao, todo desejo, toda repulso, toda esperana, toda crena, todo

    amor, todo dio, em suma, tudo que imediatamente constitui a felicidade ou o

    sofrimento, o prazer e a dor; todos estes estados da alma so precisamente os

    atos da vontade, enquanto agindo no exterior (p.14). Assim, em qualquer

    conhecimento, o elemento conhecido e no o que conhece o elemento

    primeiro e essencial, o prottipo; o sujeito que conhece, por outro lado, a

    cpia ou o ctipo. Utilizando uma rvore como analogia, Schopenhauer

    afirma: a raiz a vontade, a corola o intelecto e o ponto comum entre as duas

  • 50

    o eu. O eu o milagre por excelncia o sujeito pro tempore do

    conhecimento e da vontade. O eu o ponto de partida e de contato de todo

    fenmeno, ou melhor, da objetidade (Objektitt) da vontade31: Do mesmo

    modo que uma grande corola provm geralmente de uma grande raiz, as

    grandes habilidades mentais so encontradas somente nos indivduos que

    possuem uma vontade violenta e passional (p.15). Encontramos aqui uma

    prova fisiolgica da relao entre a vontade e o intelecto; a impetuosidade

    da vontade condio para a potncia intelectual: atividade cerebral que

    determinada pelo movimento que as grandes artrias que correm base do

    crebro e se comunicam com ele a cada pulsao (p.15).

    Para reafirmar sua tese, o filsofo introduz a seguinte questo: o que

    diferencia os homens dos animais? Sabemos, pois nos familiar, que os

    animais querem viver, se propagar, se reproduzir. E, como os objetos desta

    vontade so idnticos aos homens, estes no hesitam por analogia em

    atribuir aos animais todas as afeces da vontade que os homens observam

    neles mesmos: desejos, repugnncias, clera, dio, amor, tristeza etc.

    Contudo, o filsofo acrescenta que, quanto aos fenmenos do conhecimento

    animal, ns freqentemente camos em incertezas: De um lado, o que

    31 Com o termo objetidade Schopenhauer indica o corpo humano como um ponto privilegiado entre

    subjetividade e objetividade. De um lado encontramos a imediatez da vontade, de outro, a mediatez do intelecto. a partir deste cruzamento que se pode ter acesso aos objetos exteriores.

  • 51

    peculiar a toda conscincia, o desejo, as aspiraes, a vontade, a repugnncia,

    a averso, o no-querer. Isto o essencial e a base de toda conscincia. De

    outro lado, encontramos o abismo entre ns e os animais: o intelecto (p.16).

    Assim, ele pode concluir que em todos os seres animais a vontade o

    elemento primeiro e o intelecto uma derivao deste; de fato, o intelecto um

    mero instrumento a servio da vontade. Em tal contexto, no nos

    surpreenderia em nada se Schopenhauer tivesse afirmado: Instrumento do teu

    corpo , tambm, a tua pequena razo, meu irmo, qual chamas esprito,

    pequeno instrumento e joguete da tua grande razo (Nietzsche, Zaratustra, II,

    Dos desprezadores do corpo). esta a grande herana que Nietzsche receber

    de Schopenhauer: o fisiolgico como ponto de partida para o conhecimento.

    Ora, qual foi o erro fundamental de todos os filsofos? (p.17). Eles

    acreditaram sempre que o elemento essencial o pensamento alma e

    sempre olharam a vontade como alguma coisa secundria e adicional32.

    Contudo, se verdade que a vontade emana da inteligncia, como podem os

    animais ter um conhecimento extremamente pobre e ao mesmo tempo uma

    32 Como nos lembra Maria Lcia Mello e Oliveira Cacciola, no seu artigo Schopenhauer e o

    inconsciente, quanto maior a complexidade do organismo e quanto maiores suas necessidades, tanto mais extensa a parte representativa da conscincia. no homem que esta fora de representao adquire o maior grau de perfeio e ele no somente capaz de representaes intuitivas, mas tambm de representaes abstratas e, portanto, dotado de pensamento e Razo. por isso que nele a parte secundria da conscincia adquire papel preponderante e, por mais fortes que sejam seus apetites e paixes, sua mente est sempre ocupada com representaes e pensamentos. a que Schopenhauer detecta a gnese do erro fundamental cometido pelos

  • 52

    vontade veemente e violenta? este o grande erro cometido pela tradio:

    falar em acidente no lugar de substncia. O intelecto limitado e imperfeito,

    j a vontade: Por sua simplicidade como coisa-em-si, como parte metafsica

    do fenmeno, seu ser no admite graus, sempre e inteiramente a mesma

    (p.18). Na verdade, o organismo, como um todo, a prpria vontade

    corporificada, quer dizer, vista objetivamente no crebro.

    Todavia, no nos enganemos. Para o pensador do Mundo, o crebro

    uma estrutura que est presente igualmente em todos os seres, e isto garante a

    objetividade do conhecimento. Schopenhauer do ponto de vista da

    representao33 mantm ainda uma estreita ligao com o chins de

    Knisgberg34. Por outro lado, no podemos esquecer que a filosofia

    filsofos que atribuem a primazia ao pensamento ou quilo que chamam de alma, isto , a vida espiritual ou inferior dos homens (Cacciola, 1991, p.20).

    33 Referimo-nos aqui ao livro de Cacciola, Schopenhauer e a questo do dogmatismo, onde a autora mostra que, para se compreender o empreendimento schopenhaueriano, necessrio olhar para os dois lados do mundo: Assim, o dualismo Vontade e intelecto, coisa-em-si e representao, pode ser interpretado de forma no-reificadora, mas como expresso de uso corrente nos textos schopenhauerianos: os dois lados da mesma moeda, os dois lados da lua, o visvel e o no-vivvel (Cacciola, 1994, p.53).

    34 Rubens Rodrigues Torres Filho, no seu belo artigo Dogmatismo e Antidogmatismo Kant na sala de aula (Torres Filho, 1987), mostra a importncia da proposio als na Crtica da razo pura. Esta proposio, inexistente em portugus, significa no sentido de, ou tomadas como. Assim, teramos de um lado, as coisas als objetos da experincia, e de outro, as mesmas coisas als coisas em-si mesmas. Schopenhauer, na esteira de Kant, tambm afirma a dupla significao do Mundo, ora considerando-o como (als) representao, ora como (als) vontade. Alis, dentre os elogios que o pensador do Mundo faz a Kant, encontramos a distino entre fenmeno e coisa-em-si. Nesta direo, Schopenhauer pode ser considerado um continuador do criticismo. Se a dupla significao do Mundo j pode ser considerada uma matriz do perspectivismo nietzschiano, infelizmente, no temos argumentos suficientes para responder. De qualquer maneira, acreditamos que esta dupla significao introduz uma dicotomia, que no cabe no empreendimento nietzschiano. Sobre esta questo, cf. captulo III desta Dissertao.

  • 53

    schopenhaueriana no possui fundamento transcendente. A vontade como

    coisa-em-si est em toda parte, do reino mineral ao orgnico. No entanto,

    Schopenhauer claro: para conhecer o ntimo da vontade teramos de aplicar o

    princpio de razo. Ora, este s pode ser aplicado no mundo enquanto

    representao: A vontade como coisa-em-si permanece estrangeira ao

    domnio do princpio de razo em todas as suas figuras e , por conseguinte,

    absolutamente sem fundamento. Assim sendo, encontramos neste

    empreendimento filosfico uma metafsica imanente. O pensador rompe com

    qualquer mundo supra-sensvel ou transcendente. Afinal, no nos esqueamos:

    o nosso mundo rodeado por guerras, dios, sofrimentos. Assim, a vontade

    originariamente autodiscrida, um impulso cego. Neste sentido, onde o mal

    prevalece, o bom Deus est excludo.

    Deus est morto! com esta afirmao Nietzsche aponta o maior

    acontecimento da histria universal e localiza, assim, o ponto de partida de

    sua reflexo filosfica. Deus sinnimo de transcendncia, de idealidade; ele

    o fundamento dos valores absolutos: Belo, Bem, Verdadeiro. Com a morte

    de Deus, o filsofo alemo coloca a vida humana na sua verdadeira dimenso,

    denunciando os antropomorfismos e as iluses transcendentes. Neste sentido,

    a divinizao do mundo, o alm-mundo, a metafsica sero o alvo privilegiado

    da crtica nietzschiana. Anunciada a morte de Deus, o conhecimento no pode

  • 54

    mais possuir legitimao transcendente; portanto, cabe ao homem ser o doador

    de todo e qualquer sentido. Vimos que Nietzsche, na esteira de Espinosa,

    acredita ser a perspectiva humana, com o seu olhar interessado, o fio condutor

    desta nova viso acerca do conhecimento. A to sonhada verdade torna-se

    uma criao humana, demasiado humana; contudo, nada de niilismos. Se o

    conhecimento no mais visto como passivo e necessrio, no importa; o

    homem que fornecer este sentido. Neste contexto, o filsofo abre um espao

    para se pensar os valores dentro de uma concepo naturalista, na qual a

    fisiologia possui um papel determinante.

    A gnosiologia ser abordada como uma atividade ligada vida que

    necessita intrinsecamente conservar-se, preservar-se. Todos os tipos de valores

    esto ligados s condies de conservao e eventualmente de crescimento de

    potncia, e com o conhecimento no seria diferente: no conhecer, mas

    esquematizar, impor ao caos suficiente regularidade e formas para satisfazer

    s nossas necessidades prticas... O constrangimento subjetivo de no poder

    sustentar o contrrio um constrangimento biolgico: o instinto do interesse

    prtico que existe a raciocinar como ns raciocinamos, ns o temos no sangue,

    ns somos por assim dizer este instinto... (XIII,14 (152)). Dentro deste

    mbito, a proposta nietzschiana em relao ao conhecimento a de perceber a

    realidade de diferentes modos, explorar suas implicaes e conseqncias e

  • 55

    localizar quais so mais ou menos teis para o homem, porque, no limite, o

    homem conhece o mundo sempre com o objetivo de control-lo. Os

    instintos, para os homens se conservarem, visam utilidade: A aberrao da

    filosofia vem do fato de que em lugar de ver na lgica e nas categorias da

    razo meios de acomodar o mundo para fins utilitrios (logo, por princpio,

    de uma falsificao utilitria), acreditamos ver a o criterium de verdade ou de

    realidade. O critrio de verdade era somente a utilidade biolgica de um

    tal sistema de falsificao por princpio: e como uma espcie animal no

    conhece nada mais importante que sua preservao, poderamos de fato falar

    aqui de verdade (XIII, 14 (153)). O terreno aqui presente no o de

    veracidade ou falsidade; o registro fisiolgico um terreno extralgico,

    inserindo-se numa concepo fisiolgica a utilidade biolgica: sentido do

    conhecimento... a utilidade da conservao, e no qualquer necessidade

    abstrata e terica de no estar enganado, o motivo que se deve buscar atrs do

    desenvolvimento dos rgos do conhecimento... (XIII, 14 (122)). Podemos

    notar que Nietzsche dirige sua crtica a um tipo de conhecimento enfatizado

    pelo nascimento da cincia moderna que permanece entre ns: o

    conhecimento neutro e terico. Para o pensador, a gnosiologia est

    necessariamente ligada praxis. Lembremos que o ato de conhecer est, antes

    de mais nada, ligado vida; portanto, a famosa e to endeusada dicotomia

  • 56

    entre teoria e prtica somente uma funesta distino (cf. XIII, 14 (142)).

    Os conceitos gnosiolgicos estaro vinculados diretamente utilidade

    biolgica e s tero sentido no terreno das chamadas hipteses regulativas35:

    Na cincia, as convices no tm nenhum direito de cidadania; assim se diz

    com bom fundamento: somente quando elas resolvem rebaixar-se modstia

    de uma hiptese, de um ponto de vista provisrio de ensaio, de uma fico

    regulativa, pode ser-lhes concedida a entrada e at mesmo um certo valor no

    reino do conhecimento (GC 344). Com o mundo do ser, portanto, da

    identidade, o homem cria as hipteses regulativas sempre com propsitos

    prticos36. A vida para Nietzsche necessita destas fices, e, no limite, o

    mundo ilusrio do sujeito, da substncia, da razo, do tomo condio

    necessria para a prpria perspectiva humana: uma questo de

    sobrevivncia. Vejamos porque.

    Num fragmento pstumo, redigido na primavera de 1888, Nietzsche

    escreve: O homem procura a verdade: um mundo que no se contradiz, no

    se engana, no muda, um mundo verdadeiro... (XII, (46) 9 (60)). Notemos de

    35 Sobre o terreno kantiano em que Nietzsche se move, cf. Stack (1994), Marques (1989), Vaihinger

    (1968). 36 Gostaramos aqui de esclarecer que Nietzsche no se aproxima de forma alguma dos chamados

    utilitaristas. Sabemos que esta corrente afirma que o valor de uma cincia encontra-se na quantidade de aplicaes prticas que ela possa desenvolver. o uso ou a utilidade imediata dos conhecimentos que prova a verdade de uma teoria cientfica e lhe confere valor. Ora, na tica nietzschiana no podemos pensar a Verdade conferindo-lhe uma veracidade ou falsidade universal. Essa questo ser retomada no captulo III da presente dissertao.

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    incio como o filsofo redige as palavras verdade e verdadeiro: a primeira

    entre aspas e a segunda destacada no escrito original. Sabendo-se da