Zen Budismo e Gênero

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Revista de Estudos da Religião Nº 2 / 2005 / pp. 46-57 ISSN 1677-1222 Zen Budismo e Gênero Monja Coen * [zendobrasil uol.com.br] "Eu e todos os seres da Grande Terra simultaneamente nos tornamos o Caminho." 1 Essa é a frase original da experiência iluminada de Sidharta Gautama, vivida há 2.571 anos. Ele passou a ser chamado, então, de Buda (Buddha), "aquele que despertou". Desperta junto com todos os seres e simultaneamente percebe o Caminho em todas as formas de vida, sem distinção de gênero ou espécie. Penetra na Lei Verdadeira (Dharma, Dhamma, Darma) onde tudo e todos estão incluídos. Se essa foi sua percepção consciente no momento da Iluminação e esse era seu ensinamento principal - de que todos os seres podem atingir a mesma compreensão de Buda - por que inicialmente recusa e, quando finalmente consente que mulheres participem da comunidade monástica, as obriga a aceitar regras especiais que restringem sua equidade na comunidade religiosa? Os atuais estudos budistas vêem Xaquiamuni Buda (Shakyamuni Buddha) como um ser humano iluminado, desperto e também limitado pela cultura, tradições, linguagem e discriminações de uma época. A Iluminação, o Despertar, não é suficiente para eliminar preconceitos culturais, mas facilita sua percepção e transformação. A insistência de Mahaprajapati, sua tia e mãe adotiva, que se tornaria a primeira monja histórica, somada ao interceder de Ananda, seu primo e assessor principal, foi essencial para que o Sábio Iluminado aceitasse mulheres na comunidade monástica - a Sanga (Sangha) Budista que estava em formação. Quando Xaquiamuni Buda se torna O Iluminado e exclama "Eu e todos os seres" , precisamos compreender que o "Eu" já se refere a "todos os seres". Não há mais dualidade. É a percepção do Uno. "Eu" é o mesmo que todos os seres. O "e" da frase é um indicador de igualdade. * Monja Coen é missionária oficial para o Brasil da religião Soto Zen Budista, que tem sede principal no Japão. Iniciou seus estudos budistas em Los Angeles, praticou no Mosteiro Feminino de Nagóia por oito anos e fez outros cursos especiais para formação de professores da Ordem Soto Shu. Participa de encontros inter religiosos desde seu retorno ao Brasil, em 1995. 1 Denkoroku "Anais da Transmissão da Luz", de Mestre Keizan Jokin, século XIV, Japão. www.pucsp.br/rever/rv2_2005/p_coen.pdf 46

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  • Revista de Estudos da Religio N 2 / 2005 / pp. 46-57ISSN 1677-1222

    Zen Budismo e GneroMonja Coen* [zendobrasil uol.com.br]

    "Eu e todos os seres da Grande Terra simultaneamente nos tornamos o Caminho."1 Essa afrase original da experincia iluminada de Sidharta Gautama, vivida h 2.571 anos. Elepassou a ser chamado, ento, de Buda (Buddha), "aquele que despertou". Desperta juntocom todos os seres e simultaneamente percebe o Caminho em todas as formas de vida,sem distino de gnero ou espcie. Penetra na Lei Verdadeira (Dharma, Dhamma, Darma)onde tudo e todos esto includos.Se essa foi sua percepo consciente no momento da Iluminao e esse era seuensinamento principal - de que todos os seres podem atingir a mesma compreenso deBuda - por que inicialmente recusa e, quando finalmente consente que mulheres participemda comunidade monstica, as obriga a aceitar regras especiais que restringem sua equidadena comunidade religiosa?Os atuais estudos budistas vem Xaquiamuni Buda (Shakyamuni Buddha) como um serhumano iluminado, desperto e tambm limitado pela cultura, tradies, linguagem ediscriminaes de uma poca.A Iluminao, o Despertar, no suficiente para eliminar preconceitos culturais, mas facilitasua percepo e transformao.A insistncia de Mahaprajapati, sua tia e me adotiva, que se tornaria a primeira monjahistrica, somada ao interceder de Ananda, seu primo e assessor principal, foi essencialpara que o Sbio Iluminado aceitasse mulheres na comunidade monstica - a Sanga(Sangha) Budista que estava em formao.Quando Xaquiamuni Buda se torna O Iluminado e exclama "Eu e todos os seres",precisamos compreender que o "Eu" j se refere a "todos os seres". No h mais dualidade. a percepo do Uno. "Eu" o mesmo que todos os seres. O "e" da frase um indicadorde igualdade.

    * Monja Coen missionria oficial para o Brasil da religio Soto Zen Budista, que tem sede principal no Japo.Iniciou seus estudos budistas em Los Angeles, praticou no Mosteiro Feminino de Nagia por oito anos e fezoutros cursos especiais para formao de professores da Ordem Soto Shu. Participa de encontros interreligiosos desde seu retorno ao Brasil, em 1995.

    1 Denkoroku "Anais da Transmisso da Luz", de Mestre Keizan Jokin, sculo XIV, Japo.

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    "Todos os seres" no se refere apenas aos humanos, mas abrange toda a grande naturezaem sua diversidade. Abrange pedras e rios, flores e montanhas, animais e peixes, o cu e omagma. Por que, ento, o Buda Histrico, ao permitir a entrada de mulheres na vidamonstica, faz a exigncia de que se submetam s "Oito Regras Principais" para superarobstculos? E por que Mahaprajapati as aceita to docilmente, dizendo que eram "como umcolar de flores"?

    As Oito Regras1. Uma monja, mesmo de cem anos, deve respeitosamente cumprimentar, levantar-se

    na presena, fazer reverncia e todos os outros deveres para um monge mesmo queordenado a um s dia (na presena dos monges, Ananda, esperado que asmulheres requeiram ordenao para se tornarem monjas. Anuncio isso como aprimeira regra importante para as mulheres superarem os obstculos de forma que osensinamentos possam ser mantidos durante toda a vida)2.

    2. Uma monja no deve passar a estao das chuvas em um local onde no haja ummonge (na presena de monges, Ananda, uma monja deve procurar os ensinamentose instrues a cada meio ms. Anuncio essa como a segunda regra importante...).

    3. A cada meia lua uma monja deve esperar duas coisas da ordem dos monges: a datada Cerimnia de Uposatha3 e a data em que os monges viro dar os ensinamentos(nenhuma monja pode passar a estao das chuvas, Ananda, em um local onde nohaja monges residentes. Essa, Ananda, a terceira regra importante).

    4. Depois do retiro das chuvas, as monjas devem fazer Pavarana (inquirir se algumafalta foi cometida) em frente das duas Sanghas - a dos monges e a das monjas - emrelao ao que foi visto, ao que foi ouvido e ao que foi suspeitado (depois da estaodas chuvas uma monja deve fazer a cerimnia do final da estao das chuvas juntos duas Sanghas - comunidades monsticas masculina e feminina - em referncia afaltas que tenha visto, ouvido ou suspeitado. Essa a quarta regra importante).

    2 Coloco em parnteses, para comparao, uma segunda traduo do Bhiksunikarmavacana, do Livro deDisciplina (Vinaya Pitaka) texto original em snscrito, esta traduo ao Ingls de Frances Wilson - do folio 4b,linha 2).3 Uposadha - arrependimento.

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    5. Uma monja que tenha sido culpada de uma ofensa sria (transgresso emmoralidade, pontos de vista herticos, conduta ou meio de vida) dever passar peladisciplina frente s duas Sanghas - dos monges e das monjas ( proibido a umamonja, Ananda, acusar ou admoestar um monge sobre transgresses em moralidade,pontos de vista herticos, conduta ou meio de vida. No proibido a um mongeacusar ou admoestar uma monja sobre moralidade, pontos de vista herticos, condutaou meio de vida. Essa a quinta regra importante).

    6. Depois de a novia treinar por dois anos nos "Seis Preceitos" (cinco primeirospreceitos mais o preceito de comer apenas uma vez por dia antes do meio-dia) deveprocurar a ordenao (Upasampada) de ambas as Sanghas (uma monja, Ananda,no deve repreender, ficar brava nem admoestar um monge. Anuncio essa como asexta regra importante).

    7. Uma monja no pode se enraivecer, nem ofender, nem abusar de um monge sobnenhuma circunstncia (quando uma monja violar as regras importantes, Ananda, oarrependimento deve ser feito a cada metade do ms. Essa eu declaro como a stimaregra importante).

    8. Admoestao de monjas para monges proibida; admoestao de monges paramonjas no proibida (uma monja de cem anos de idade deve prestar os devidosrespeitos a um monge. Ela deve, com as mos em prece, levantar-se para ocumprimentar e ento fazer uma reverncia a ele. Isto deve ser feito com asapropriadas palavras de saudao. Eu declaro essa como a oitava regra importante).

    A ordem dessas duas verses das Oito Regras diferente, mas o contedo o mesmo,revelando as discriminaes que sofriam as mulheres naquela poca - discriminaesperpetuadas pelas prprias regras de Buda.Alm dessas Oito Regras Especiais, as monjas se comprometiam a manter um total de 311regras, enquanto os monges seguiam 227 regras.Em muitas delas, os monges incorriam em penalidades menores do que as monjas. Exigia-se muito mais das monjas em termos de disciplina e conduta.

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    O Vinaya, ou Regras de DisciplinaEram regras de treinamento criadas por Gautama Buda e por seus discpulos para facilitar avida em harmonia comunitria e alcanar a meta principal de Nirvana. Geralmente eramfeitas para atender demandas, em resposta a alguma ofensa que houvesse sido cometida.No significava que os monges se sentaram e pensaram em regras e codificaes, mas simque responderam s necessidades que iam surgindo no decurso da prtica comunitria, doserros e acertos dos praticantes e dos comentrios e expectativas dos leigos.

    Posio das Mulheres na ndia AntigaQual a situao das mulheres na ndia antiga? No eram elas tratadas nos textos sagradoscomo impuras, tentadoras, sedutoras, ciumentas, sexualmente insaciveis e incontrolveis?No dependiam as mulheres de seus maridos, pais, filhos, consortes para ter qualquerqualificao social? Se a dignidade das mulheres dependia dos homens aos quais estavamligadas, o que acontecia a elas quando seus maridos ou outros parentes homens asabandonavam para entrar na vida religiosa?No perodo pr-budista h algumas referncias histricas a mulheres sbias. So casosraros, como meteoros que surgissem do nada e desaparecessem sem deixar trao. Semdvida h uma tradio de mulheres mestras e professoras sbias, mas seus nomes edetalhes da tradio so obscuros ou se perderam.As incurses arianas na ndia, por volta de 1.500 antes de Cristo, acabaram impondo umaordem patriarcal e predominantemente masculina, que substituiu a sociedade matriarcal dosvales Hindus.Anteriormente dominao ariana as mulheres contribuam economicamente, participavamdo trabalho agrcola, faziam roupas, cestas, flechas.As meninas, assim como os meninos, eram iniciados nos sagrados textos dos Vedas. Asmulheres podiam participar com seus maridos dos rituais religiosos e, mesmo as que notinham companheiros, podiam fazer ofertas nesses rituais. Entretanto, isso se aplicavaapenas s mulheres das castas superiores.Sudras (escravas ou servas) no tinham nenhum direito ou privilgio dentro da religio. Hcontribuies importantes de mulheres poetas, estudiosas e professoras dentro dastradies vdicas. Entretanto, entre os sculos X e V a.C., a expanso ariana foi completa,

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    abrangendo a regio do rio Ganges e os vales hindus. Grande parte da populao se tornousudra (escravos ou servos). O trabalho feminino perdeu seu valor. As mulheres deixaram departicipar na agricultura - a principal fonte de economia nacional - e se limitaram a trabalharem suas casas ou pequenas manufaturas locais. O casamento com arianos rebaixava apessoa no sistema de castas. Os textos sagrados se tornaram esotricos, aumentaram osrituais de sacrifcio e a complexidade dos ensinamentos no permitiu mais a participaofeminina nem a iniciao das meninas.Nesse burburinho surge o Budismo. Reaparecem mulheres mestras e sbias. Embora atransmisso dos ensinamentos estivesse nas mos dos monges, a regra permitia que asmonjas instrussem outras pessoas.Era uma sociedade patriarcal, onde as mulheres passavam das mos de um homem a outro,do pai ao marido. Acredita-se que maioria no tivesse acesso aos estudos, no soubessemler ou escrever, nem ter sua opinio ouvida nas decises particulares ou coletivas, comrarssimas excees. Na verdade, pouco se sabe sobre a posio das mulheres em todo processo histrico. E,mesmo dentre os textos sagrados budistas, so necessrias muita pacincia e persistnciapara pesquisar sobre as mulheres. Raras so as referncias, as frases, os ensinamentosligados a mulheres. Quantas teriam sido esquecidas nos textos escritos pelos homens?

    "Como Judasmo e Cristianismo, Budismo uma instituio criada pelomasculino e dominada pela poderosa estrutura patriarcal. Como conseqnciadessa dominao masculina, o feminino freqentemente associado com osecular, sem poder, profano ou imperfeito. Os homens budistas, como outroslderes religiosos em outras culturas, estabelecem normas de comportamentopara mulheres criando certos ideais de feminilidade. Ao mesmo tempo, asoportunidades para interao com mulheres eram minimizadas pelas restriesdas prticas devotas. Nas comunidades monsticas do budismo primitivo, ainterao entre os monsticos e as mulheres leigas era apenas para amanuteno econmica. Qualquer outro relacionamento devia ser evitado."4

    Pela tica dualista h o masculino e o feminino, categorias distintas. No plano do Absoluto,atravs da tica integrativa, masculino e feminino so aspectos do Uno, se manifestando em

    4 Women in Buddhism, Dianna Y. Paul.

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    forma de compaixo e sabedoria. Esses dois aspectos esto presentes, se alternando e secompletando na viso do Budismo Mahayana, do qual o Zen uma das vertentes.O processo religioso o de reverter o apego ao mundo dos desejos. A questo levantadaem muitos textos sagrados se referia a questo da sexualidade: as mulheres teriamcapacidade de reverter ou pelo menos controlar sua sexualidade e seus desejos mundanos?Os textos foram escritos por monges. Muitos deles dependiam das mulheres para suasobrevivncia, pois eram geralmente elas que davam esmolas, alimentos, roupas aosmendicantes andarilhos seguidores de Buda.Diana Y. Paul escreve: "a interpretao da mulher como tentadora e sedutora representavaum tendencioso ressentimento masculino entre os monges budistas. A projeo doressentimento com as mulheres evidenciada desde a primeira Sangha.Enquanto o objetivo pragmtico da ordem monstica era de manter a organizao, o objetivoreligioso era alcanar crescimento espiritual. Simbolicamente, a mulher representava oprofano, sansara. As mulheres tambm eram obstculos potenciais na procura atual docrescimento espiritual. O jovem novio abandonara sua mulher e famlia pela ordem ecertamente, de tempos em tempos, desejava retornar companhia e segurana de suafamlia. Na verdade, a mulher como esposa era uma ameaa observncia do celibatoindividual.Do ponto de vista religioso, a esposa ou amante eram um competidor poderoso para alealdade ao e suporte do grupo.Enquanto a Sangha poderia oferecer abrigo espiritual e salvao atravs da disciplinapessoal, a mulher poderia oferecer conforto sensual e suporte emocional, aliviando a solidoe as austeridades.

    Mulher como TentadoraQuando Buda est se aproximando da iluminao, Mara, soberano do reino dos desejos queamarram as pessoas condio humana, tenta, desesperadamente, dissuadir Sidhartaenviando suas trs filhas: Luxria (Raga), Averso (Arati) e Apego (Trsna). A seduo (emforma de mulheres) repelida pelo futuro Buda.

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    Os monges deveriam meditar sobre mulheres como velhas, corpos em decomposio,decadentes, morrendo, em putrefao. Essas visualizaes eram feitas quando mulheresbonitas estavam presentes, para evitar que sucumbissem ao charme feminino.As mulheres representavam uma ameaa estabilidade da comunidade monstica. Regrasdisciplinadoras surgem enfatizando a necessidade de evitar todo e qualquer contato commulheres; isso se torna a base da castidade.Dilogo entre Buda e seu discpulo Ananda:

    Ananda: "Como nos devemos conduzir, Senhor, em relao s mulheres?"

    Buda: "Como se no as visse, Ananda."

    Ananda: "Mas se as virmos, o que devemos fazer?"

    Buda: "No falar, Ananda."

    Ananda: "Mas se elas falarem conosco, Senhor, o que devemos fazer?"

    Buda: "Mantenha-se bem desperto, Ananda."

    MendicnciaOutro fator que complicava o relacionamento com as mulheres era que os mongesesmolavam de porta em porta como sua rotina diria. Geralmente a dona da casa, a mulher,era a principal doadora. Os monges dependiam delas e ao mesmo tempo tinham medodelas - receio de que com elas no se comportassem devidamente.Essa identificao negativa do feminino nunca foi completamente removida dos textossagrados. Foi ignorada, pois, a natureza espiritual da mulher.

    A MeAs religies patriarcais reconhecem a mulher como um ser religioso atravs da maternidade,que sagrada. Idealmente a maternidade nutre, cria, est sempre conectada com o filho, afilha.O Hinduismo santificava mulheres, pois poderiam procriar vares.No Budismo, a me est fora da ordem e no sagrada. Mes eram sofredoras e estavamsempre oferecendo em dor suas vidas, como se fosse natural para as mulheres o sofrer.

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    No Budismo Mahayana, as imagens vo alm do maternal. Podem representar a perfeioda sabedoria, a beno, a compaixo, a instrutora e a amiga que revela o mundo daverdade.O ideal feminino no o da "sagrada me". A maternidade um obstculo para maiorenvolvimento religioso: as mes ficam muito ocupadas com os filhos e no podem renunciar famlia em nome da religio.

    A MonjaOs caminhos que levam a salvao estavam abertos as mulheres que se tornassem monjas.Um ideal assexuado que significava, tanto para o homem quanto para a mulher, a conquistae o controle da sexualidade como caminho para a espiritualidade.No entanto, o prprio Buda disse que sair de casa e viver sob as regras do Darma no eraapropriado para mulheres, e que no deveria haver ordenao feminina e nem monjas. Porqu?

    Se as mulheres sarem da vida familiar a regra do Darma no se manter pormuito tempo. Assim como, Ananda, se houvesse uma famlia com muitasmulheres e poucos homens, estaria sujeita a ataques e explorao de ladres eassaltantes; da mesma forma, se as mulheres entrarem sobre a regra do Darma,esta regra do Darma no durar muito.

    Buda quem desperta para a realidade da vida, para a teia de inter-relacionamentostransitrios e palpitantes, universo de causas, condies e efeitos simultneos, que seintercruzam e tecem a tapearia da existncia. Quando Xaquiamuni Buda questionado porAnanda sobre se todos os seres so capazes de obter a mesma Iluminao, o mesmoDespertar, Buda responde que sim. Ento Ananda pergunta por que no ordenar asmulheres, por que no ordenar Mahaprajapati e suas quinhentas seguidoras?Ananda leva o Grande Ser Iluminado a uma reflexo e Buda acaba permitindo s mulheres aentrada na ordem monstica desde que obedecessem s Oito Regras Especiais, que asdeixavam subalternas aos monges.

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    Buda MulherO Buda Histrico, Xaquiamuni (Shakyamuni), fez vrias predies de futuros Budas tantopara monges como para monjas, homens e mulheres. Os tradicionais textos Mahayana,porm, no reconhecem ou mencionam nenhuma Buda Mulher.A condio para que se tornem Budas a de que ocorra uma transformao sexual.Deixando de ser mulher, se tornam Budas.Poderamos compreender esses textos no sentido de que abandonando todas as dualidadesse atinge o Uno, a Sabedoria Suprema, sem diferenciao de masculino e feminino. Noentanto, esse no parece ser o sentido dos textos antigos, visto que no h referncias ahomens deixando de ser homens para se tornarem Budas.H alguns sutras que mencionam mulheres de grande sabedoria, tanta quanto a de Buda, emesmo meninas sbias, mas nenhuma delas chamada diretamente Buda. Algumas, paraprovar sua compreenso superior, se transformam em homens e depois retornam suacondio feminina. Em um dos textos a mulher sbia no se transforma em homem, e capaz de conduzir seus ouvintes Sabedoria Superior.A tradio diz que todo ser que atinge a iluminao se torna o prprio Xaquiamuni Buda eque h tantos Budas quanto gros de areia no rio Ganges. Se cada gro de areia do Gangesfosse um outro rio Ganges e se cada gro de areia desses outros Ganges fossem outrosrios, a quantidade de gros de areia de todos esses rios seria a quantidade de Budas nomundo.Definitivamente, essa assertiva no se refere apenas a homens Budas.

    Zen Budismo JaponsInteressante, tambm, notar que, ao tratar da Transmisso do Dharma, Mestre EiheiDogen (1200-1254), fundador da tradio Soto Zen do Budismo Japons, escreve queapenas um Buda transmite a outro Buda. Apenas quando a mente penetra no estadoiluminado recebe a confirmao da iluminao que j atingiu.No Budismo Chins e Japons h menes a monjas famosas por sua sabedoria ecompreenso profunda do Dharma. Mas nenhuma delas faz parte da linhagem desucessores da transmisso. Seus nomes so mencionados, bem como algumas de suasexperincias ou ensinamentos especficos, mas pouco se sabe sobre suas vidas.

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    Da linhagem feminina iniciada por Mahaprajapati na ndia h grandes lacunas histricas. Osgrupos dos mais antigos, tradicionalistas, no admitem mulheres monjas pois, segundo eles,a continuidade histrica uma vez interrompida s poderia ser restaurada pelo prprio BudaXaquiamuni.J no Budismo Mahayana, do "Grande Veculo", homens e mulheres podem igualmentepraticar e h grandes mosteiros femininos na Coria, China e Japo.Nos Estados Unidos da Amrica do Norte h muitas monjas e mestras Zen liderandograndes comunidades, transmitindo ensinamentos e ordenando tanto homens comomulheres, sem distino de gnero.Outro fato curioso que no Japo, as duas primeiras pessoas que entraram para a vidamonstica, com a introduo do Budismo por volta do sculo VI, foram duas mulheres5.Atualmente, o nmero de monges supera o de monjas. Na tradio Soto Shu, a queperteno, h cerca de trs mil monjas, para trinta mil monges.No Japo, essa tradio ainda no tem mil anos. Foi iniciada no sculo XIII pelo Mestre EiheiDogen. Ele ordenou tambm mulheres, e menciona em seus escritos a questo daigualdade de homens e mulheres para atingir a Iluminao.As monjas da tradio Soto Shu (Zen Budista) at um sculo atrs no tinham local prpriode treinamento. Eram quase todas ordenadas por monges e praticavam em templos oumosteiros masculinos, servindo como cozinheiras, lavadeiras, servindo ch, limpando,recebendo hspedes. As tarefas de ensino e liturgia eram apenas masculinas. A maioria dasmonjas no tinha acesso educao superior.Depois da Segunda Guerra Mundial, a monja Kojima deixou o seu calmo templo e passou avisitar os grandes lderes budistas procura de apoio para a igualdade das monjas nasliturgias, nas transmisses, nos estudos. Foram anos de muito trabalho que resultaram nasseguintes mudanas:

    que as monjas usassem os mantos ocre da transmisso, que pudessem ordenarnovias e novios, que pudessem oficiar casamentos, enterros e cerimniasmemoriais,

    que se tornassem mestras e orientadoras de leigos, leigas, monges e monjas.

    5 Paula Araia, trabalho de ps-graduao sobre Monjas Zen Budistas.

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    Entretanto, a posio das mulheres na sociedade japonesa ainda era desigual. Como ocasamento permitido aos religiosos budistas, quando uma monja se casava - assim comoqualquer mulher que seguiam carreira profissional - geralmente abandonava o hbito (ou aprofisso) para se tornar me e dona-de-casa. Quem tinha uma monja como discpula temiaenvi-la s universidades, pois poderia se casar e abandonar o hbito monstico. Assim, oestudo superior ficou limitado a poucas mulheres.Dentro da hierarquia nunca se cogitou na possibilidade de uma monja ser lder de ummosteiro masculino ou da parte administrativa. Na verdade, poucas monjas participam daadministrao. Existe uma Associao de Monjas fundada para proteger os interesses dasmulheres ordenadas. Na ltima reunio de que pude participar no Mosteiro de Aichi, nacidade de Nagia, Japo, durante a celebrao de cem anos de sua fundao, fiqueisurpresa ao notar que o questionamento principal era o de como cobrar as taxasassociativas de monjas que moram em locais isolados e que, estando adoentadas e idosas,no podiam chegar at os postos de correio para enviar suas contribuies.Os assuntos relacionados s discriminaes, s limitaes que ainda sofrem as monjas, noforam tocados nessa reunio.Se hoje h grandes mestras, como Shundo Aoyama Roshi, abadessa do Mosteiro deTreinamento para Monjas Especiais em Nagoya, no Japo, isso s foi possvel graas smonjas que conseguiram atravessar as grandes discriminaes e se mantiveram firmes nopropsito de seguir a vida religiosa, exigindo a igualdade de direitos.Shundo Aoyama Roshi a primeira monja a assumir historicamente a funo de Conselheirano Mosteiro Sede de Sojiji6. um cargo que corresponderia, na hierarquia catlica, ao decardeal, pois uma instncia superior que, quando necessrio, escolhe o novo AbadeSuperior (em casos de morte, impedimento ou renncia).Shundo Aoyama Roshi foi uma das poucas monjas que fizeram mestrado e doutorado emEstudos Budistas na Universidade de Komazawa7, optando pela vocao e no pelocasamento (como expliquei anteriormente, para as mulheres exclusivo e, para os homens,inclusivo). Foi uma das Abadessas mais jovens a assumir esse cargo, uma escritora6 Mosteiro de Sojiji, na provncia de Yokohama, Japo, um dos mosteiros sede da tradio Soto Shu e foifundado no sculo XIV pelo Mestre Zen Keizan Jokin.

    7 Universidade de Komazawa, em Tquio, um dos grandes centros atuais de estudos e pesquisas budistas. a universidade da tradio Soto Shu.

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    budista reconhecida no Japo e no mundo, sendo constantemente convidada a dar palestraspor todo Japo e algumas partes dos Estados Unidos e Europa. Mas a nica, no momento,a desfrutar de uma posio de to alto destaque dentro da hierarquia monstica Soto Shu8.Apesar disso, nas grandes cerimnias, muitas vezes, os monges esperavam que elatomasse o ltimo lugar na fila de entrada da sala de Buda. Apesar do respeito que lhedevotam todos os monges e monjas, nunca a ouvi falar ou discutir sobre igualdade degneros. Aceitando as posies nas liturgias de seguir atrs dos monges, mesmo os maisnovos, hoje convidada a ser Mestra dos Preceitos em cerimnias oficiais, em que atrecentemente apenas monges eram convidados.Ainda h muito a ser conquistado em termos de igualdade entre monges e monjas natradio Soto Shu do Zen Budismo japons.Quando estive h poucos anos no Japo, conversando com nosso Abade Superior doMosteiro de Eiheiji9 (hoje com mais de cem anos de idade), ele fez questo de se sentarnuma almofada ao meu lado (e no na cadeira que haviam colocado na sala para ele) e meconfidenciou: "Cabe agora s monjas continuar e transmitir os ensinamentos de Mestre EiheiDogen10, de Xaquiamuni Buda".

    BibliografiaWomen in Buddhism -Images of the Feminine in the Mahayana Tradition by Diana Y. Paul

    with contributions by Frances Wilson, Asian Humanities Press, Berkeley, California,1979

    Buda - autora Karen Armstrong, Editora Objetiva Ltda, 2001Denkoroku - Anais da Transmisso da Luz de Mestre Keizan Jokin (sculo XIV)Shobogenzo - Olho Tesouro do Verdadeiro Darma de Mestre Eihei Dogen (sculo XIII)The First Buddhist Women - Translations and Commentary on the Therigatha (poemas das

    Antigas) por Susan MurcottParallax Press, Berkeley, California, 1991

    8 Soto Shu a tradio Zen Budista fundada no Japo por Mestre Eihei Dogen, no sculo XIII, caracterizadapela nfase na meditao sentada - Zazen.

    9 Mosteiro de Eiheiji - na provncia de Fukui, no Japo, mosteiro sede da tradio Soto Shu fundada por MestreEiehei Dogen no sculo XIII. Eiheiji significa Templo da Paz Eterna.10 Eihei Dogen - 1200-1254, fundador da tradio Soto Shu no Japo, autor do Shobogenzo (Olho Tesouro doVerdadeiro Darma).

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