Zero_Eu Um Negro

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Eu, um negro O filme, produzido por Jean Rouch nos anos 50 na Costa do Marfim, mostra uma situação-típica de marginalização, ou o que se imagina do lugar de inferioridade do outro social em relações de poder étnico-raciais. No filme, os nigerianos são os excluídos. No Brasil, os negros e pardos, aprofundando o sentimento de ser e não pertencer. Esse princípio, que historicamente já foi política de estado, tornou-se senso comum. Como escreve a professora Liv Sovik, a branquitude mantém-se como um valor na sociedade brasileira, a ser buscado pela valorização da mestiçagem. Ao contrário do que prega o senso comum, as relações raciais no Brasil não são cordiais e não estão resolvidas. Essas continuam estruturadas de maneira evolucionista em que os negros ocupam as posições mais baixas, seja na vida, ou no imaginário. As barreiras simbólicas e a desumanização são permanências do sistema escravista e servem de estratégia para manutenção de privilégios de parte da população. As manifestações racistas dos deputados gaúchos e das torcidas, que trouxeram o tema ao debate público, são exemplos disso. Enquanto os deputados utilizaram-se de estereótipos para ligar os negros, junto com outros grupos e movimentos sociais, ao que não presta, as torcidas tem adjetivado jogadores e juízes de macaco em discursos de desumanização. Nos dois casos, os negros estavam onde, por essa concepção, não deveria estar. Os assessores do ministério e o juiz de futebol em lugares com poder de decisão e os jogadores com poder econômico. A discussão, no entanto, não deve se resumir a esses casos. O problema deve ser discutido em seu contexto. Os atos racistas não podem ser tratados como exteriores à sociedade na qual estão inseridos, o que tem acontecido repetidamente na política e no futebol. Essa tolerância fomenta a repetição nas mais diferentes relações sociais, como os cantos de algumas torcidas organizadas. Neste sentido, os poderes públicos, que deveriam garantir o bem comum, têm se mostrado omisso frente aos acontecimentos, principalmente os que não são noticiados. Esses acontecem diariamente nas relações cotidianas, no SUS, na educação, na Justiça e em vários outros serviços públicos e privados.

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Artigo publicado em ZH.

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Eu, um negro

O filme, produzido por Jean Rouch nos anos 50 na Costa do Marfim, mostra uma situao-tpica de marginalizao, ou o que se imagina do lugar de inferioridade do outro social em relaes de poder tnico-raciais. No filme, os nigerianos so os excludos. No Brasil, os negros e pardos, aprofundando o sentimento de ser e no pertencer. Esse princpio, que historicamente j foi poltica de estado, tornou-se senso comum. Como escreve a professora Liv Sovik, a branquitude mantm-se como um valor na sociedade brasileira, a ser buscado pela valorizao da mestiagem.Ao contrrio do que prega o senso comum, as relaes raciais no Brasil no so cordiais e no esto resolvidas. Essas continuam estruturadas de maneira evolucionista em que os negros ocupam as posies mais baixas, seja na vida, ou no imaginrio. As barreiras simblicas e a desumanizao so permanncias do sistema escravista e servem de estratgia para manuteno de privilgios de parte da populao. As manifestaes racistas dos deputados gachos e das torcidas, que trouxeram o tema ao debate pblico, so exemplos disso.Enquanto os deputados utilizaram-se de esteretipos para ligar os negros, junto com outros grupos e movimentos sociais, ao que no presta, as torcidas tem adjetivado jogadores e juzes de macaco em discursos de desumanizao. Nos dois casos, os negros estavam onde, por essa concepo, no deveria estar. Os assessores do ministrio e o juiz de futebol em lugares com poder de deciso e os jogadores com poder econmico. A discusso, no entanto, no deve se resumir a esses casos. O problema deve ser discutido em seu contexto.Os atos racistas no podem ser tratados como exteriores sociedade na qual esto inseridos, o que tem acontecido repetidamente na poltica e no futebol. Essa tolerncia fomenta a repetio nas mais diferentes relaes sociais, como os cantos de algumas torcidas organizadas. Neste sentido, os poderes pblicos, que deveriam garantir o bem comum, tm se mostrado omisso frente aos acontecimentos, principalmente os que no so noticiados. Esses acontecem diariamente nas relaes cotidianas, no SUS, na educao, na Justia e em vrios outros servios pblicos e privados. No filme de Rouche, o personagem narrador Robinson, passivo frente a essa situao de discriminaes e marginalizao. Eu, um negro, sou Mrcio, Arouca, Tinga, os Benfica e todos os que sofrem qualquer forma de discriminao, pois quem tem um preconceito tem todos. Felizmente, parte dos gachos reagiram indignados ao descobrirem que o preconceito e a discriminao so reais e o que no existe to falada democracia racial. Sejam bem vindos.Deivison Campos, professor de jornalismo da Ulbra.