Zine BaixaCultura Nº1

2

description

Zine BaixaCultura nº1: Pequenos Grandes Momentos da História da Recombinação: Deturnamento. Apresentação + guia para os usuários do deturnamento, de Guy Debord e Gil Wolman. Tradução do Guia de Railton Sousa Guedes, do Arquivo Situacionista Brasileiro/Projeto Periferia, publicada pela primeira vez no Rizoma.net (já não mais disponível).

Transcript of Zine BaixaCultura Nº1

  • PEQUENOS GRANDES

    MOMENTOS DA

    HISTRIADA

    RECOMBINAO:

    DETURNAMENTO

    Como voc pode supor (ou no), muito se tem

    conversado sobre as mudanas que a rede e o

    compartilhamento de arquivos trazem para a

    sociedade, mas muito pouco tem se tratado das

    prticas criativas ligadas ao roubo que a internet

    potencializa demais, ao colocar a dois toques do

    mouse um mundo de material prontinho para ser

    baixado, visto e usado como bem se quiser.

    natural que o debate mantenha o foco na

    recepo, pois as novas prticas de distribuio e

    consumo de cultura dizem respeito a toda a

    sociedade, enquanto que as prticas criativas

    dizem respeito a um grupo (ainda) seleto de

    pessoas.

    Pensando nisso que ns comeamos esta srie,

    Pequenos Grandes Momentos Ilustrados da

    Histria da Recombinao, com o objetivo de

    resgatar algumas prticas (momentos, charadas,

    causos) criativas do sculo XX ligadas ao uso e

    roubo de outras criaes. Existiram diversas

    formas e ocasies de apropriao de obras de

    outros artistas neste sculo passado, e, ademais

    de algumas prticas e causos serem popularmente

    conhecidas hoje (remix, mashup, memes) existem

    outras tantas que pouco saram dos guetos

    artsticos.

    Nosso resgate inicia com uma dessas prticas

    pouco conhecidas, o chamado dtournement,

    apresentado no guia para os usurios do

    deturnamento, texto seminal feito por Guy

    Debord e Gil J. Wolman e publicado pela primeira

    vez na revista surrealista belga chamada Les

    Lvres Nues #8, de 1956.

    Nesse guia, os autores introduziam, conceituavam

    e abusavam da prtica sempre com muito

    sarcasmo e ironia, talvez a fim de que ningum

    levasse totalmente a srio aquilo que eles diziam.

    As duas leis fundamentais do deturnamento

    apontadas inicialmente seriam: 1) a perda de

    importncia de cada elemento detunado, que

    pode ir to longe a ponto de perder

    completamente seu sentido original; e, ao mesmo

    tempo, a 2) reorganizao em outro conjunto de

    significados que confere a cada elemento um

    novo alcance e efeito. So apresentados dois tipos

    principais: os menores, onde feito um desvio

    de um elemento que no tem importncia

    prpria, e que portanto toma todo seu significado

    do novo contexto onde foi colocado; e os

    enganadores, onde feito o desvio de um

    elemento intrinsecamente significativo, o qual

    toma um dimenso diferente a partir do novo

    contexto. Na sequncia, o guia cita diversos

    exemplos de deturnamento; falam da prtica na

    literatura, melhor usada no processo da escrita do

    que no resultado final: No h muito futuro no

    deturnamento de romances inteiros, mas durante

    a fase transitiva poderia haver um certo nmero

    de empreendimentos deste tipo". Na poesia, citam

    a metagrafia uma tcnica de colagem grfica

    inventada pelo romeno Isidore Isou e adotada

    pelo movimento do letrismo, que inspirou os

    situacionistas. E tratam o cinema como a rea

    onde a prtica se pode atingir maior efetividade e

    beleza, j que os poderes do filme so to

    extensos, e a ausncia de coordenao desses

    poderes to evidente, que virtualmente

    qualquer filme que esteja acima da miservel

    mediocridade prov tema para infinitas polmicas

    entre espectadores ou crticos profissionais.

    Ao contrrio do plgio praticado por pura falta de

    talento, a ideia do deturnamento funciona mais

    para revelar do que para ocultar suas origens.

    Talvez seja uma forma de entrar diretamente no

    longo dilogo do conhecimento, de expor

    referncias e mostrar todos o que se quer

    absorver destas e da unio do que se aproveita

    de um lado com o que se aproveita de outro que

    nasce algo diferente. Parece sempre ter sido assim

    a criao, e barrar o uso dessas referncias , em

    todos os sentidos, limitar a criatividade.

    No fim de sua vida, Debord passou a desistir do

    deturnamento, por acreditar que esse tipo de

    tcnica seria adequada apenas a sociedades que

    fossem capazes de reconhec-la. Ser que hoje,

    com o advento da internet e toda a cultura que ali

    est disponvel, ele faria o mesmo?

    O guia para os usurios do deturnamento foi

    traduzido para o portugus por Railton Sousa

    Guedes, do Arquivo Situacionista

    Brasileiro/Projeto Periferia, e publicado pela

    primeira vez no site Rizoma, que abrigou um

    acervo significativo de artigos, tradues,

    entrevistas sobre hackativismo, contracultura e

    interveno urbana entre 2002 e 2009. Ricardo

    Rosas, o editor do site, formou uma gerao de

    recriadores e entusiastas da contracultura digital

    justamente no perodo em que a ideia de uma

    cultura digital brasileira foi sendo gestada para

    hoje ser dissipada na onipresena das redes e

    ruas. Ricardo nos deixou cedo, em 2007, mas seu

    legado rizomtico continuam relevantes, o que

    atestam os diversos e-books que disponibilizamos

    na biblioteca do BaixaCultura

    (http://baixacultura.org/biblioteca).

    Publicamos no Baixa o primeiro texto sobre o

    deturnamento em maio de 2010. Dois anos

    depois, em agosto de 2012, publicamos este guia

    em duas partes, edio a qual reproduzimos aqui

    com alguns ajustes e revises. A ideia de lanar

    este texto em papel nasceu mais ou menos por

    esta poca, no contexto de criao de nosso

    pequeno selo editorial de cultura livre e (contra)

    cultura digital. Trs longos anos depois, c est.

    Porto Alegre, junho de 2015

    UM GUIAPARA

    USURIOS DO

    DETURNAMENTO

    i

    Toda pessoa razoavelmente atenta em nossos dias

    est alerta ao bvio fato de que a arte j no pode

    mais ser considerada como uma atividade

    superior, ou nem mesmo como uma atividade

    compensatria qual algum honradamente

    poderia dedicar-se. A razo para esta deteriorao

    o claro aparecimento de foras produtivas que

    necessitam de outras relaes de produo e de

    uma nova prtica de vida. Na atual fase da guerra

    civil em que estamos engajados, e em ntima

    conexo com a orientao que estamos

    descobrindo para certas atividades superiores por

    vir, acreditamos que todos os meios conhecidos

    de expresso iro convergir para um movimento

    geral de propaganda que ter que abarcar todos os

    aspectos eternamente inter-relacionados da

    realidade social.

    H vrias opinies contraditrias sobre as formas

    e at mesmo sobre a verdadeira natureza da

    propaganda educativa, essas opinies geralmente

    refletem uma ou outra variedade do reformismo

    poltico da moda. Basta-nos dizer que, em nossa

    viso, as premissas para revoluo, tanto no

    aspecto cultural como no estritamente poltico,

    no apenas esto maduras como comearam a

    apodrecer.

    No se trata aqui de voltar ao passado, o que

    reacionrio; at mesmo os modernos objetivos

    culturais so em ltima anlise reacionrios na

    medida em que dependem de formulaes

    ideolgicas de uma sociedade passada que

    prolongou sua agonia de morte at o presente. A

    nica ttica historicamente justificada inovao

    extremista. A herana literria e artstica da

    humanidade usada para propsitos de

    propaganda partidria. claro que necessrio ir

    alm de qualquer ideia meramente escandalosa. A

    oposio noo burguesa da arte e do gnio

    artstico tornou-se um chapu roto. O bigode que

    Duchamp rabiscou na Mona Lisa no mais

    interessante que a verso original daquela

    pintura. Temos agora que empurrar este processo

    ao ponto de negar a negao.

    Bertolt Brecht revelou em uma recente entrevista

    no Frane-Observateur que ele fez cortes em

    clssicos do teatro de forma a torn-los mais

    educativos nesse aspecto ele est mais prximo

    que Duchamp da orientao revolucionria que

    proclamamos. necessrio destacar, contudo,

    que no caso de Brecht tais salutares alteraes so

    estreitamente limitadas por seu infeliz respeito

    cultura definida pelos parmetros da classe

    governante aquele mesmo respeito, ensinado

    tanto nos jornais dos partidos operrios como

    tambm nas escolas primrias da burguesia, que

    induz at mesmo os distritos operrios mais

    vermelhos de Paris a sempre preferir El Cid

    Me Coragem [de Brecht] .

    Na realidade, necessrio eliminar todos

    resqucios da noo de propriedade pessoal nesta

    rea. O aparecimento das j ultrapassadas novas

    necessidades por obras inspiradas. Elas se

    tornam obstculos, hbitos perigosos. No se trata

    de gostar ou no delas. Temos que super-las.

    Pode-se usar qualquer elemento, no importa de

    onde eles so tirados, para fazer novas

    combinaes.

    As descobertas de poesia moderna relativas

    estrutura analgica das imagens demonstram

    que quando so reunidos dois objetos, no

    importa quo distantes possam estar de seus

    contextos originais, sempre formada uma

    relao. Restringir-se a um arranjo pessoal de

    palavras mera conveno. A interferncia

    mtua de dois mundos de sensaes, ou a

    reunio de duas expresses independentes,

    substitui os elementos originais e produz uma

    organizao sinttica de maior eficcia.

    Pode-se usar qualquer coisa.

    Desnecessrio dizer que ningum fica limitado

    a corrigir uma obra ou a integrar diversos

    fragmentos de velhas obras em uma nova; a

    pessoa pode tambm alterar o significado

    desses fragmentos do modo que achar mais

    apropriado, deixando os imbecis com suas

    servis referncias s citaes. Tais mtodos

    pardicos foram frequentemente usados para

    obter efeitos cmicos. Mas tal humor o

    resultado das contradies dentro de uma

    condio cuja existncia tida como certa.

    Como o mundo da literatura quase sempre nos

    parece to distante quanto o da Idade da Pedra,

    tais contradies no nos fazem rir. ento

    necessrio conceber uma fase pardica-sria

    onde a acumulao de elementos deturnados,

    longe de contribuir para provocar indignao

    ou riso em sua aluso a algum trabalho

    original, expresse nossa indiferena para com

    um inexpressivo e desprezvel original, e se

    interesse em fazer uma certa sublimao.

    Lautramont foi to longe nesta direo que

    ele ainda parcialmente mal compreendido at

    mesmo pelos seus mais declarados

    admiradores. A despeito de suas bvias

    aplicaes deste mtodo na linguagem terica

    de Poiesies onde Lautramont (utilizando as

    mximas de Pascal e Vauvenargues,

    particularmente) se esfora por reduzir o

    argumento, atravs de sucessivas

    concentraes, to somente a mximas um

    certo Viroux, trs ou quatro anos atrs, causou

    considervel espanto ao demonstrar

    conclusivamente que Os Cantos de Maldoror

    um grande deturnamento de Buffon e de

    outras obras de histria natural, entre outras

    coisas.

    O fato dos proslitos do Figaro, como o prprio

    Viroux, serem capazes de ver nisto uma

    justificao para desacreditar Lautramont, e

    de outros acreditarem que tinham que

    defend-lo elogiando sua insolncia, apenas

    testifica a senilidade destes dois agrupamentos

    de parvos em elegante combate. Um lema

    como o plgio necessrio, o progresso o

    implica ainda pobremente compreendido, e

    pelas mesmas razes que a famosa frase sobre

    a poesia, que deve ser feita por todos.

    Aparte da obra de Lautramont que bem

    frente de seu tempo foi em grande parte uma

    crtica precisa as tendncias para o

    deturnamento que podem ser observadas na

    expresso contempornea so em sua maior

    parte inconscientes ou acidentais. na indstria

    da propaganda, mais do que na decadente

    produo esttica, onde esto os melhores

    n1

    Expediente

    Leonardo Foletto (edio)

    Calixto Bento (diagramao)

    Sheila Uberti (capa sobre mosaico criado

    durante a oficina da artista Silvia

    Marcon - Vila Flores - Porto) Alegre/RS

    Licena CC Share A Like

  • exemplos. Podemos em primeiro lugar definir

    duas categorias principais de elementos

    deturnados, levando em considerao se o

    ajuntamento vem ou no acompanhado por

    correes inseridas nos originais. Temos

    aqui deturnamentos secundrios e

    deturnamentos enganosos.

    O deturnamento secundrio

    ii

    o deturnamento

    de um elemento que no tem nenhuma

    importncia em si mesmo e que tira todo seu

    significado do novo contexto em que foi colocado.

    Por exemplo, um recorte de jornal, uma frase

    neutra, uma fotografia comum.

    O deturnamento enganoso, tambm chamado

    deturnamento de proposio-premonitria,

    em contraste o deturnamento de um

    elemento intrinsecamente significante que

    deriva de um diferente escopo de um novo

    contexto. Por exemplo, um slogan de Saint-Just

    ou um trecho de um filme de Eisenstein.

    Obras extensamente deturnadas so

    usualmente compostas por

    uma ou mais sries de deturnamentos

    enganosos e secundrios.

    Agora pode-se formular vrias leis

    no uso do deturnamento.

    O mais distante elemento deturnado aquele

    que contribui mais nitidamente impresso

    global, e no os elementos que diretamente

    determinam a natureza desta impresso. Por

    exemplo, em uma metagrafia [poema-colagem

    iii

    ]

    relativa Guerra Civil Espanhola, a frase que

    mais destaca o sentido revolucionrio o

    fragmento de um anncio de batom:

    Belos lbios so vermelhos. Em outra

    metagrafia (AMorte de J.H.) 125 anncios

    classificados expressam um suicdio mais

    notvel que os artigos do jornal que o narram.

    As distores introduzidas nos elementos

    deturnados devem ser to simples quanto

    possvel, pois o impacto principal de um

    deturnamento tem relao direta com a

    lembrana consciente ou semiconsciente dos

    contextos originais dos elementos. Isto bem

    conhecido. Basta simplesmente notar que se esta

    dependncia da memria insinua a necessidade

    de determinar o pblico alvo antes de inventar

    um deturnamento, este apenas um caso

    particular de uma lei geral que governa no

    apenas o deturnamento mas tambm qualquer

    outra forma de ao no mundo.

    A ideia da expresso pura, absoluta, est morta;

    sobrevive apenas temporariamente na forma

    pardica na medida em que nossos outros

    inimigos sobrevivem. Quanto mais prximo de

    uma resposta racional menos efetivo o

    deturnamento. Este o caso de um nmero bem

    grande de mximas alteradas por Lautramont.

    Quanto mais aparente for o carter racional da

    resposta, mais indistinguvel se torna do esprito

    ordinrio da rplica, que semelhantemente usa as

    palavras opostas contra ele. Isto naturalmente

    no se limita linguagem falada. Foi nesse

    sentido que contestamos o projeto de alguns de

    nossos camaradas que propuseram deturnar um

    cartaz antissovitico da organizao fascista Paz

    e Liberdade que proclamava, em meio a

    imagens de bandeiras sobrepostas dos poderes

    Ocidentais, a unio faz fora acrescentando

    por cima em uma folha menor a frase e coalizes

    fazem a guerra.

    II

    O deturnamento atravs da simples reverso

    sempre o mais direto e o menos efetivo. Assim, a

    Missa Negra reage contra a construo de um

    ambiente baseado em determinada metafsica

    construindo outro ambiente na mesma base, que

    apenas inverte mas ao mesmo tempo conserva

    os valores de tal metafsica. No obstante, tais

    reverses podem ter um certo aspecto

    progressivo. Por exemplo, Clemenceau chamado

    o Tigre poderia ser chamado o Tigre chamado

    Clemenceau.

    Das quatro leis fixadas, a primeira essencial e se

    aplica universalmente. As outras trs, na prtica,

    aplicam-se apenas a elementos deturnados

    enganosos. As primeiras conseqncias visveis

    da difuso do uso do deturnamento, fora seu

    intrnseco poder de propaganda, foram a

    revivificao de uma multido de livros ruins, e a

    extensa (no intencional) participao de seus

    desconhecidos autores; uma transformao cada

    vez maior de frases ou obras plsticas produzidas

    para estar na moda; e acima de tudo uma

    facilidade de produo que supera em muito, em

    quantidade, variedade e qualidade, a escrita

    automtica que tanto nos chateia.

    O deturnamento no conduz apenas descoberta

    de novos aspectos do talento; tambm colide

    frontalmente com todas as convenes sociais e

    legais, e pode ser uma arma cultural poderosa a

    servio de uma verdadeira luta de classes. A

    barateza de seus produtos a artilharia pesada

    que derruba todas as muralhas da China do

    entendimento

    iv

    . um verdadeiro meio de

    educao artstica proletria, o primeiro passo

    para um comunismo literrio. No reino do

    deturnamento se pode multiplicar ideias e

    criaes vontade. No momento nos limitaremos

    a mostrar algumas possibilidades concretas em

    vrios setores atuais da comunicao estes

    setores separados so significantes apenas em

    relao s tecnologias atuais, com tudo tendendo

    a fundir-se em snteses superiores com o avano

    destas tecnologias.

    Aparte dos vrios usos diretos de frases

    deturnadas em cartazes, registros e radiodifuso,

    as duas aplicaes principais de prosa deturnada

    esto em escritos metagrficos e, em menor grau,

    na hbil perverso da moderna forma clssica.

    No h muito futuro no deturnamento de

    romances inteiros, mas durante a fase transitiva

    poderia haver um certo nmero de

    empreendimentos deste tipo. Se um

    deturnamento fica mais rico quando associado a

    imagens, tais relaes para com textos no so

    imediatamente bvias. Apesar das inegveis

    dificuldades, acreditamos que seria possvel

    produzir um instrutivo deturnamento

    psicogeogrfico da "Consuelo" de George Sand,

    que poderia ser relanada no mercado literrio

    disfarada sob algum ttulo incuo como Vida

    nos Subrbios, ou at mesmo sob um ttulo

    deturnado, como A Patrulha Perdida. (seria uma

    boa ideia reutilizar deste modo muitos ttulos de

    velhos filmes deteriorados dos quais nada mais

    permanece, ou de filmes que continuam

    enfraquecendo as mentes dos jovens nos clubes

    de cinema).

    A escrita metagrfica, no importa quo

    antiquada possa ser sua base plstica, apresenta

    oportunidades bem mais ricas para a prosa

    deturnada, como outros objetos

    apropriados ou imagens. Pode-se obter uma ideia

    do significado disso pelo projeto, concebido em

    fabricar uma mquina de fliperama arranjada de

    tal forma que o jogo de luzes e trajetrias mais

    previsveis das bolas formaria uma composio

    metagrfica-espacial intitulada "Sensaes

    Trmicas e Desejos de Pessoas que Passam pelos

    Portes do Museu do Cluny Cerca de uma Hora

    depois do Poente em Novembro". Percebemos

    desde ento que um empreendimento

    situacionista-analtico no pode avanar

    cientificamente por meio de tais obras. No

    obstante, os meios permanecem satisfatrios para

    metas menos ambiciosas.

    obviamente no reino do cinema que o

    deturnamento pode atingir sua maior efetividade

    e, para os que se interessam por este aspecto, sua

    maior beleza. Os poderes do filme so to

    extensos, e a ausncia de coordenao desses

    poderes to evidente, que virtualmente

    qualquer filme que esteja

    acima da miservel mediocridade prov tema

    para infinitas polmicas entre espectadores ou

    crticos profissionais. Apenas o conformismo

    dessas pessoas lhes impede descobrir tanto a

    atrao apelativa como as falhas berrantes dos

    piores filmes.

    Para ilustrar esta absurda confuso de valores,

    podemos observar que O Nascimento de uma

    Nao de Griffith um dos filmes mais

    importantes na histria do cinema por causa de

    sua riqueza de inovaes. Por outro lado, um

    filme racista e portanto no merece

    absolutamente ser mostrado em sua presente

    forma. Mas sua proibio total poderia ser vista

    como lamentvel do ponto de vista do

    secundrio, mas potencialmente meritrio,

    domnio do cinema. Seria melhor deturn-lo em

    sua totalidade, sem a necessidade de sequer

    alterar a montagem, adicionando uma trilha

    sonora que faa uma poderosa denncia dos

    horrores da guerra imperialista e das atividades

    da Ku Klux Klan que at hoje continua atuando

    nos Estados Unidos.

    Tal deturnamento um tanto moderado em

    ltima anlise nada mais que um equivalente

    moral da restaurao de velhas pinturas em

    museus. Mas a maioria dos filmes merece apenas

    serem cortados para compor outras obras. Esta

    reconverso de sequncias preexistentes sero

    obviamente acompanhadas de outros elementos,

    musicais ou pictricos como tambm histricos.

    Enquanto a reproduo cinematogrfica da

    histria permanecer em grande parte semelhante

    reproduo burlesca de Sacha Guitry, algum

    poder ouvir Robespierre dizer, antes de sua

    execuo: Apesar de tantos julgamentos, a minha

    experincia e a grandeza de minha tarefa me

    convence que tudo est bem. Se neste caso uma

    apropriada reutilizao de uma tragdia grega nos

    permite exaltar Robespierre, podemos imaginar

    uma sequncia tipo neorrealista, no balco de um

    bar de beira de estrada para caminhoneiros, por

    exemplo, com um motorista de caminho dizendo

    seriamente para outro: Antigamente a tica se

    restringia formalmente aos livros dos filsofos;

    ns a introduzimos no governo das naes.

    Percebe-se que esta justaposio elucida

    a ideia de Maximilien, a ideia de uma

    ditadura do proletariado

    v

    .

    A luz do deturnamento propaga-se em linha reta.

    medida que a nova arquitetura parece ter

    comeado com uma fase barroca experimental, o

    complexo arquitetnico que concebemos como

    a construo de um ambiente dinmico

    relacionado a estilos de comportamento

    provavelmente deturnar as formas

    arquitetnicas existentes, e em todo caso far um

    uso plstico e emocional de todos os tipos de

    objetos deturnados: arranjos cuidadosos de

    coisas como guindastes ou andaimes de metal

    substituiro uma tradio escultural defunta. Isto

    choca apenas os mais fanticos admiradores dos

    jardins estilo francs.

    Comenta-se que em sua velhice DAnnunzio,

    aquele suno pr-fascista, mantinha a proa de um

    barco torpedeiro em seu parque. Sem considerar

    seus motivos patriticos, a ideia de tal

    monumento no est isenta de um certo charme.

    Se o deturnamento fosse estendido a realizaes

    urbansticas, no seriam poucas as pessoas que

    seriam afetadas pela exata reconstruo em uma

    cidade de um bairro inteiro em outro. A vida

    nunca pode estar demasiado desorientada: o

    deturnamento neste nvel realmente a faria bela.

    Os prprios ttulos, como vimos anteriormente,

    so um elemento bsico no deturnamento. Isto

    resulta de duas observaes gerais: que todos os

    ttulos so intercambiveis e que eles tm uma

    importncia decisiva em vrios gneros.

    Todas as histrias de detetive Srie Noir

    so extremamente semelhantes, contudo

    basta simplesmente mudar continuamente

    os ttulos para garantir uma considervel

    audincia. Na msica um ttulo sempre exerce

    uma grande influncia, contudo a escolha

    bem arbitrria. Assim no seria uma m

    ideia fazer uma correo final ao nome

    Sinfonia Heroica mudando-a, por exemplo,

    para Sinfonia Lnin

    vi

    .

    O ttulo contribui fortemente no deturnamento de

    uma obra, mas h uma inevitvel ao contrria

    obra no ttulo. Assim pode-se fazer extenso uso

    de ttulos especficos retirados de publicaes

    cientficas (Biologia Litoral dos Mares

    Temperados) ou militares (Combate Noturno de

    Pequenas Unidades de Infantaria), ou at ou at

    mesmo de muitas frases encontradas nos livros

    ilustrados infantis (Paisagens Maravilhosas

    Cumprimentam os Passageiros).

    Para encerrar, mencionaremos rapidamente

    alguns aspectos do que chamamos de

    ultradeturnamento, quer dizer, as tendncias para

    um deturnamento que atue na vida social

    cotidiana. Pode-se dar outros significados a gestos

    e palavras, e isto tem sido feito ao longo da

    histria por vrias razes prticas. As sociedades

    secretas de China antiga fizeram uso de tcnicas

    bem sutis de sinalizao que abrangiam a maior

    parte do comportamento social (a maneira de

    organizar xcaras; de beber; de declamar poemas

    interrompendo-os em determinados pontos).

    A necessidade de um idioma secreto, de

    contrassenhas, inseparvel de qualquer

    tendncia em jogo. No final das contas,

    qualquer sinalizao ou palavra suscetvel

    de ser convertida em qualquer outra coisa,

    at mesmo em seu contrrio.

    Os insurgentes monarquistas do Vende, por

    conduzirem a asquerosa imagem do Sagrado

    Corao de Jesus, foram chamados de Exrcito

    Vermelho. No domnio limitado do vocabulrio

    poltico de guerra esta expresso foi

    completamente deturnada durante um sculo.

    Fora da linguagem, possvel usar os mesmos

    mtodos para deturnar roupas, com todas

    suas fortes conotaes emocionais. Aqui

    novamente encontramos a noo de disfarce

    que inerente ao jogo.

    Finalmente, quando alcanamos fase de

    construir situaes a meta ltima de toda nossa

    atividade todo mundo ser livre para deturnar

    situaes inteiras mudando deliberadamente esta

    ou aquela condio que as determina.

    No apresentamos estes mtodos brevemente

    expostos aqui como algo inventado por ns, mas

    como uma prtica geralmente difundida a qual

    nos propomos sistematizar.

    Em si mesma, a teoria do deturnamento bem

    pouco nos interessa. Contudo achamos que ela

    est ligada quase todos os aspectos construtivos

    do perodo pr-situacionista da transio. Assim

    seu enriquecimento, pela prtica, parece

    necessrio. Futuramente prosseguiremos no

    desenvolvimento dessas teses.

    GUYDEBORD E GILWOLMAN, 1956

    Notas

    i A traduo para o portugus desse texto foi feita por Railton Sousa Guedes, do Arquivo Situacionista Brasileiro/Projeto Periferia, publicada pela primeira vez no Rizoma.net (j no mais disponvel) e revisada por ns. A traduo a partir do texto em

    ingls de Ken Knabb, que, por sua vez, traduziu do francs original. Ou seja, estamos falando mais de uma outra edio do que propriamente de uma traduo.

    ii A palavra francesa dtournement significa desvio, diverso, reencaminhamento, distoro, abuso, malversao, sequestro, ou virar ao contrrio do curso ou propsito normal. s vezes traduzida como diverso, mas esta palavra gera confuso por

    causa de seu significado mais comum como entretenimento inativo. Como a maioria das outras pessoas que de fato pratica o deturnamento, eu simplesmente preferi aportuguesar a palavra francesa. (Nota do Tradutor). Nota do BaixaCultura:

    Optamos pelo uso de deturnamento em vez de deturnao.

    iiiAmetagrafia foi uma tcnica de colagem grfica inventada pelo romeno Isidore Isou e adotada pelo movimento do letrismo, que inspirou os situacionistas como uma prtica adequada a aplicao do deturnamento. Debord e Wolman tratam o cinema

    como a rea onde o deturnamento pode atingir sua maior efetividade e beleza, j que os poderes do filme so to extensos, e a ausncia de coordenao desses poderes to evidente, que virtualmente qualquer filme que esteja acima da miservel

    mediocridade prov tema para infinitas polmicas entre espectadores ou crticos profissionais (Nota do Rizoma).

    iv Os autores esto deturnando uma sentena do Manifesto Comunista: O baixo preo das mercadorias da burguesia foi a artilharia pesada que derrubou todas as muralhas da China, que forou a capitulao do intenso, obstinado e brbaro dio aos

    estrangeiros (NT).

    vNa primeira cena imagina-se uma frase de uma tragdia grega (Oedipus em Colonus de Sfocles) sendo colocada na boca de Maximilien Robespierre, lder da Revoluo francesa. Na segunda, uma frase de Robespierre sendo colocada na boca de um

    motorista de caminho (NT).

    vi Beethoven originalmente nomeou sua terceira sinfonia em homenagem a Napoleo (tido como defensor da Revoluo Francesa), mas quando Napoleo coroou a si mesmo como imperador o compositor rasgou furiosamente tal dedicatria

    renomeando-a como Heroica. A aluso a Lenin nesta passagem (como eventualmente mencionado em estados operrios no Relatrio na Construo de Situaes de Debord) um vestgio de um vago anarco-trotskyismo nos primitivos letristas,

    em um perodo politicamente menos sofisticado (NT).