- Rita Amaral & Vagner Gonalves da Silva
Cantar para subir - um estudo antropolgico da msica ritual no
candombl paulista
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O candombl, enquanto culto organizado no remonta, em So Paulo, h mais de
trs ou quatro dcadas. Marcado por um desenvolvimento particular, a partir dos
processos migratrios ocorridos nesse perodo, o candombl paulista surgiu como uma
religio de possesso ao lado daquelas aqui j existentes, como o espiritismo Kardecista
e as inmeras variaes da umbanda sulista.O processo de instalao e difuso do culto
aos orixs na regio de So Paulo caracterizou-se pelas influncias e emprstimos entre
as prticas espritas em geral e da umbanda em particular, observvel seja pelas
semelhanas entre as estruturas rituais, seja pela viso mtica, formada por divindades
comuns a ambos os cultos. Originou-se, assim, um culto cuja referncia s divindades
africanas (os orixs) e s divindades nacionais (caboclos, ndios, boiadeiros, pretos-
velhos), tornou-se comum, tanto nas regies perifricas, as primeiras a localizarem os
terreiros, como nas regies mais centrais da rea metropolitana. O termo
"umbandombl" com o qual se designa (comumente de modo pejorativo) esse tipo de
culto, pode ser aplicado a um nmero significativo de terreiros paulistas atualmente em
funcionamento. bom lembrar, ainda, que o candombl que aqui se instalou, vindo de
localidades como Salvador, Recncavo Baiano, Recife e Rio de Janeiro, no primava
por um "purismo" de prticas rituais tal como se imagina quando idealmente o dividimos
em "naes" como : Ketu, Angola, Jeje, alm das denominaes locais como "Xang"
em Pernambuco ou "Tambor de Mina" no Maranho. Na verdade, ainda que todas essas
"naes" estejam representadas em So Paulo, podemos supor que o processo de
influncias e emprstimos verificados aqui tambm fenmeno caracterstico do
candombl em seus locais de origem, como bem atesta o candombl de caboclo,
principalmente nos terreiros angola da Bahia.
Estas referncias tornam-se necessrias na medida em que o universo dos cultos
afro-brasileiros, em seus mltiplos aspectos, manifesta-se empiricamente de tal forma
integrado que uma classificao como a que iremos expor, privilegiando o ponto de vista
musical, deve ser entendida como uma ordenao analtica possvel, entre tantas outras.
Do mesmo modo que (para o desespero dos pesquisadores desacostumados com a
exceo) no candombl vale mais o detalhe que, quebrando a regra, insinua um
conhecimento que diferencia e ao mesmo tempo testemunha a vitalidade e importncia
da norma para o grupo. Se Oxum, a divindade das guas, sempre veste amarelo, come
ipet, dana de modo lento e dengoso ao som do ritmo ijex e saudada com a
expresso "Ora ieieu!", uma fitinha azul arrematando sua saia dourada, um quitute
inesperado entre as folhas de mamona do ipet e uma certa agressividade no jeito de
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danar sob as saudaes efusivas de "Ora ieieu mi ka fiderioman" pode revelar a
exceo que consubstancia a generalidade do esteretipo na riqueza de sua variao.
Assim, este trabalho, privilegiando a msica ritual, ocupar-se- de uma parcela de
um todo integrado, tratando, principalmente, dos aspectos recorrentes. Faremos
contudo, uma breve descrio do culto de forma a contextualizar previamente nossas
afirmaes sobre a msica.
I- A Estrutura do Rito
A noo em que se baseia este trabalho a de que o candombl, uma religio
inicitica e de possesso, apresenta dois momentos que, grosso modo, constituem as
duas principais modalidades da expresso religiosa: as cerimnias privadas, s quais
tm acesso apenas os iniciados (entre elas os ebs, boris e ors) e as cerimnias
pblicas (abertas ao pblico em geral) comumente denominadas "toques". Sem dvida,
a separao sobretudo analtica e sua artificialidade se justifica pela tentativa de tornar
a exposio o mais clara possvel. De fato, as cerimnias privadas ou pblicas podem se
articular, constituindo uma unidade, como, por exemplo, num toque de sada de ia.
A- As cerimnias privadas da iniciao.
A sustentao social e religiosa do candombl depende do fluxo renovado de
iniciados que investem parte de seu tempo e seu trabalho para garantir a continuidade
do grupo do terreiro e do conjunto de prticas que, somadas, constituem o arcabouo
religioso do culto. A iniciao , ainda, um forte elemento de coeso do grupo, j que
todos os que passaram pelos rituais iniciticos sabem das dificuldades, de todos os
gneros, que devem ser enfrentadas: financeiras, emocionais, psicolgicas e sociais; da
necessria fora de vontade e humildade imprescindveis para comear a nova vida, na
qual uma nova personalidade ser construda. Novo nome, novos hbitos, novas
referncias. Postura que se refletir na vida cotidiana em casa, na rua, no trabalho ou
mesmo no lazer. O iniciado assume um compromisso eterno com seu orix e, ao mesmo
tempo, com seu "pai" ou "me" de santo. H uma nova famlia que se forja; novos
vnculos de parentesco, que se pretendem mais significativos que os laos sanguneos.
Como dizem no candombl um "irmo de folha mais irmo que um irmo de sangue".
H uma nova estruturao do mundo que dever ser aprendida por etapas e que
comea no ato de "bolar", quando o indivduo "morre" para a vida profana, iniciando o
perodo do recolhimento, para renascer no dia de sua sada pblica.
Bolar
"Bolar", ou "cair no santo", indcio da necessidade da futura iniciao.
Geralmente acontece quando a pessoa participa de um "toque" e o orix a incorpora,
ainda no estado que os adeptos denominam de "bruto" (ainda no assentado ou "feito").
Bolar, aparentemente, como desmaiar. Mas o orix est ali. Tomou a cabea de seu
filho, mesmo contra a vontade deste, cobrando sua iniciao. A "bolao" geralmente
acontece enquanto as pessoas cantam e danam para os orixs, sendo significativa,
para a identificao do orix ao qual a pessoa pertence, a divindade para a qual se
cantava quando a pessoa bolou.
Uma vez "bolada" a pessoa levada para o ronc ou para o quarto de santo, onde
ser "acordada". Se depois de bolar uma ou mais vezes, a pessoa decidir se iniciar, o
pai-de-santo consultar o orculo (jogo de bzios) para determinar que orix ser feito e
como (com que folhas, de que modo, com que quantidades, que animais sero
sacrificados etc.). O pai-de-santo prepara o ronc com a esteira sob a qual sero
depositadas as devidas folhas, as representaes materiais do orix (como quartilhes,
alguidares, ferramentas, pratos etc.) e tudo o mais que ser necessrio durante o tempo
do recolhimento. S ento feito o "toque de bolar", quando o abi (iniciando) ser
levado para o barraco onde, ao som dos atabaques, danar para o seu orix at que
este incorpore. Bolado, o abi ser recolhido, para s reaparecer em pblico no dia da
festa da sada.
Durante este perodo, o abi vai sendo inserido no grupo atravs do aprendizado
das prticas rituais. Aprende a hierarquia da casa, os tabus, os preceitos, oraes para o
seu e para todos os outros orixs, aprende cantigas, aprende a danar para o orix,
aprende os mitos, os cumprimentos, suas obrigaes, enfia contas para compor seus
colares iniciticos, reza, come e dorme. So vinte e um dias, em geral, em que ele
permanecer dia e noite na casa de santo, confinado ao ronc, dele saindo apenas para
os banhos rituais ou outras cerimnias necessrias para sua purificao, como os ebs,
que visam desligar o abi de suas ligaes com o mundo exterio, com as doenas, os
mortos, a sexualidade, enfim, da vida anterior. Purificado o corpo, inicia-se o processo
de assentamento do orix, propriamente dito.
O Bori
O bori consiste, segundo os adeptos, em "dar comida cabea", ao ori (que , em
si, uma entidade), com o objetivo de fortific-la e ao mesmo tempo reverenci-la, pois o
orix s tomou aquela cabea (aquele ori) porque esta assim o permitiu. Nesta
cerimnia so oferecidos alimentos secos e sangue de um pombo cabea do abi,
iniciando a aliana definitiva deste com seu ori e com seu orix. Do mesmo modo o bori,
ainda quando feito fora do processo de iniciao, cria um vnculo do indivduo com a
casa de santo e o obriga a determinados comportamentos rituais.
O Or
Chega finalmente o dia do or, a cerimnia de assentamento do orix, na qual o
abi ter sua cabea depilada e sero sacrificados os animais correspondentes ao orix
que est sendo assentado. Geralmente os orixs recebem como sacrifcio um animal "de
quatro patas" (de acordo com suas preferncias caractersticas: para Ogun, por
exemplo, sacrifica-se um bode escuro; para Oxum, uma cabra amarelada). Para cada
pata do animal, deve-se sacrificar uma galinha. Outras aves, como galinhas d'angola,
pombos e patos, tambm podem ser sacrificados. Alm da cabea, os assentamentos
que foram preparados recebem tambm parte dos sacrifcios dos animais, pondo o
corpo do iniciado em relao com os smbolos do deus, unindo as vrias formas de um
mesmo contedo: o orix.
Sendo a cabea considerada o ponto privilegiado da manifestao divina, nela
que se faro os cortes rituais (abers) propiciatrios incorporao, bem como as
pinturas feitas com as tintas sagradas obtidas a pa
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