Título: Desenvolvimento, empobrecimento e espoliação: o caso das famílias atingidas
pela UHE Belo Monte e mineração Belo Sun Resumo: A região da Volta Grande do Xingu (PA) recebe em seu território a Usina
Hidrelétrica de Belo Monte, em operação desde fevereiro de 2016. A redução da vazão
num trecho de 100 km, à jusante do barramento, compromete a relação da população
com o rio. Na mesma área pretende-se instalar o projeto de mineração de ouro Belo
Sun, impactando duplamente a população da região. O presente trabalho propõe-se a
discutir o processo de deslocamento econômico, empobrecimento e espoliação das
famílias habitantes da região, resultante da expropriação de seus meios de subsistência,
etapa fundamental do processo de acumulação por espoliação tal como aponta Harvey
(2012). O estudo de caso constrói-se à partir da análise de conteúdos de depoimentos,
observações em campo e revisão bibliográfica e documental.
Palavras-chave: UHE Belo Monte; Mineração Belo Sun; Empobrecimento;
Acumulação por espoliação; Deslocamentos econômicos;
Introdução:
A Volta Grande do Xingu (PA) sofre profundas transformações em decorrência da
instalação de dois grandes projetos de investimento em seu território. Além de abrigar a
Usina Hidrelétrica de Belo Monte, parcialmente em operação desde fevereiro de 2016, a
região recebe também o projeto de mineração de ouro da canadense Belo Sun Mining,
parte do grupo Forbes&Manhattan.
O barramento do Xingu em função da hidrelétrica deu origem ao Trecho de Vazão
Reduzida (TVR), que se estende ao longo de 100km entre a barragem principal e o
vertedouro de água da usina. Centenas de famílias indígenas e ribeirinhas sentem as
alterações causadas pela redução do volume e fluxo de água no Xingu, entre elas o
comprometimento das atividades de pesca, piora das condições sanitárias nas
comunidades e alterações na navegação. À situação somam-se as pressões para
instalação da mineradora, que tem sua área de implantação neste mesmo trecho, à cerca
de 10km da barragem, potencializando os riscos e impactos socioambientais.
Os habitantes da região assistem à piora de suas condições de vida e convivem
com a iminência da perda de seu território. Embora não sejam consideradas diretamente
atingidas pela Usina Hidrelétrica e o projeto de mineração de ouro ainda esteja em
processo de licenciamento, muitas famílias já deixaram a região em busca de outras
possibilidades de sobrevivência.
Grandes projetos de infraestrutura e desenvolvimento estão entre os principais
causadores de deslocamentos e migrações internas no mundo. De acordo à CERNEA
(1997) na década de 1990 mais de 100 milhões de pessoas foram deslocadas por
projetos grandes projetos de desenvolvimento. Atualmente no Brasil muitas situações
podem compor este quadro, no caso da UHE Belo Monte mais de 10 mil famílias foram
removidas para instalação dos canteiros de obra, abertura de estradas e acessos,
construção de alojamentos para trabalhadores, além da construção de reservatórios e
canais de derivação. Em toda a região, e em especial na Volta Grande do Xingu, muitas
famílias por não conseguirem se adequar às dinâmicas econômicas e novas condições de
vida desencadeadas pela chegada dos empreendimentos, perderam a possibilidade de
reprodução de suas atividades cotidianas e acabaram abandonando seu território e modo
de vida tradicional. Os deslocamentos econômicos (VAINER, 2008) causados pelos
grandes empreendimentos têm como consequência frequente o empobrecimento das
famílias (CERNEA, 2006) que, espoliadas de seus meios de vida, migram em busca de
novas formas de subsistência.
O trabalho que se apresenta é parte da pesquisa de mestrado da autora e tem como
objetivos discutir elementos do processo de acumulação por espoliação (HARVEY,
2012) em curso que acarreta no deslocamento econômico, espoliação e consequente
empobrecimento das famílias duplamente atingidas na Volta Grande do Xingu.
1. Acumulação do capital, desenvolvimento desigual e espoliação
A incorporação de novos territórios marginais ao processo de acumulação é
necessidade imprescindível para a manutenção da modo de produção capitalista. A
modificação contínua das formas de exploração da mais valia, ou incorporação de novas
regiões marginais ao sistema, são processos que garantem a continuidade da
acumulação primitiva. A expansão através da incorporação de novos territórios é central
no caráter imperialista do capitalismo, sendo este a “expressão política do processo de
acumulação do capital, em sua competição pelo domínio de áreas do globo ainda não
conquistadas pelo capital” (LUXEMBURGO, 1985, p.305).
A reorganização e expansão geográfica do modo de produção capitalista, ao criar
novas divisões territoriais do trabalho, “novos complexos de recursos e novas regiões
como espaços dinâmicos de acumulação” (HARVEY, 2016, p.144), permite o controle
de crises de sobreprodução, indicando possibilidades de reinvestimento de capitais,
necessários para realização da acumulação. O movimento do capital no espaço é,
portanto, produto da busca incessante pela manutenção do processo de acumulação, e
sua mobilidade depende das diferenças econômicas e geográficas na estruturação do
desenvolvimento dos lugares. O desenvolvimento desigual, ao garantir desequilíbrios na
distribuição de recursos e infraestrutura, é condição para manutenção do modo de
produção capitalista, uma vez que permite o deslocamento das falhas sistêmicas do
capital entre os lugares (HARVEY, 2007; 2016).
A acumulação por espoliação - expressão atual do processo de acumulação
primitiva, tal como proposto por Harvey (2012) - possibilita liberação de ativos,
tornando-os disponíveis a custos muito baixos para que o capital possa extrair deles a
mais valia. Assim, apoiada na possibilidade de espoliar populações e territórios, a fim
de manter sua capacidade de acumulação, a busca incessante por estender o poder
capitalista a novos territórios sustenta-se, no período atual, na acumulação por
espoliação.
No Brasil a lógica desenvolvimentista que impera no planejamento do uso do
território coloca os “Grandes Projetos de Investimento” (VAINER e ARAÚJO, 1992)
como motor do desenvolvimento regional, devendo estes funcionarem como força
desencadeadora de novas ações que promovam o desenvolvimento dos lugares. Tais
empreendimentos, contraditoriamente, aprofundam processos de apropriação dos
recursos territoriais e humanos sob uma lógica predominantemente econômica, tendo
como resultados nos territórios em que se instalam a desestruturação ou perda de
atividades econômicas preexistentes, crescimento urbano desordenado, degradação do
meio ambiente, e a marginalização da população atingida (VAINER e ARAUJO, 1992).
Em especial no caso da Amazônia brasileira, grandes projetos de investimento
buscaram historicamente consolidar a região como uma fronteira que possibilitasse a
expansão do modo de produção, tomando a natureza “como recurso escasso e como
reserva de valor para a realização do capital futuro” (BECKER, 2005, p.74).
Atualmente, o volume de investimentos em grandes projetos na região, sobretudo
voltados à geração de energia, implantação de corredores logísticos e extração mineral,
sofreu considerável ampliação nos últimos anos. O Programa de Aceleração do
Crescimento (PAC), lançado em 2007 pelo governo federal, direciona vultosas cifras ao
estados amazônicos: hidrelétricas, linhas de transmissão, hidrovias, ferrovias, estradas,
portos, terminais de cargas, somam mais de R$ 110 bilhões distribuídos em mais de 260
projetos voltados à ampliação da infraestrutura em toda a região (MPOG, PAC, 2016).
Guiados pela lógica da acumulação, a instalação de grandes empreendimentos
causa danos irreparáveis à população afetada. O caso das hidrelétricas no Brasil é
emblemático, nos últimos 40 anos o setor causou o deslocamento de mais de 300 mil
famílias sem que essas fossem reconhecidas como atingidas ou que houvesse a justa
reparação dos impactos causados (MAB, 2004, p.1).
De acordo com relatório da Comissão Mundial das Barragens (WCD, 2000), entre
40 e 80 milhões de pessoas foram fisicamente deslocadas por barragens em todo o
mundo. Grande parte, por não serem reconhecidos como atingidos, não obtiveram a
reparação necessária, perdendo seus meios de subsistência e garantias de manutenção de
seu trabalho e condições de vida. Para a comissão, quanto maior a magnitude dos
impactos, gerando deslocamento compulsório das famílias, “menor a probabilidade de
que os meios de subsistência das populações afetadas possam ser restaurados” (WCD,
2000, p.20).
Michel Cernea (1997; 2004; 2006), afirma que a principal consequência da
instalação de grandes projetos de investimento é o empobrecimento da população
diretamente atingida. O autor conceitua os deslocamentos e reassentamentos induzidos
pelo desenvolvimento (Development - Induced Displacement and Resettlement - DIDR)
como aqueles em que a instalação de grandes projetos resulta no deslocamento físico e
econômico das famílias atingidas em razão da perda de suas terras, moradia, áreas
agricultáveis, ou ainda pela restrição de acesso às áreas utilizadas econômica ou
culturalmente, mesmo que não sejam de propriedade das famílias e ainda que não haja
remoção física dos atingidos. Para Cernea (2006, p.12) a imposição do acesso restrito
aos recursos vitais para subsistência equivale ao deslocamento econômico, acarretando
no empobrecimento da população afetada.
Oliver-Smith (2009) conceitua os processos de deslocamento e reassentamento
forçados pelo desenvolvimento (Development-Forced Displacement and Resettlement -
DFDR) como um fenômeno totalizante, afetando amplos aspectos da vida das famílias
atingidas e que acarreta em perdas sociais, culturais e econômicas. O autor afirma ainda
que, embora apresentados como impulsionadores do bem-estar nacional, ou da
população local, grandes projetos de investimento causam perdas irreparáveis aos
territórios, acarretando na permanentemente destituídos dos atingidos de seus meios
subsistência, acusando os deslocamentos físicos e econômicos de serem verdadeiros
“desastres do desenvolvimento” (OLIVER-SMITH, 2009, p.03).
O relatório da comissão especial de atingidos por barragens (CDDPH, 2010), a
partir do estudo da implantação de sete barragens no Brasil, apontou 16 violações
frequentes no contexto “barrageiro” no país, dentre os quais destacamos a violação do
direito ao trabalho e a um padrão digno de vida. A violação resulta do deslocamento
compulsório das populações, que no processo, perdem acesso aos meios de reprodução
de sua subsistência, raramente recompostos a contento. A piora nas condições de vida é
considerada como deslocamento econômico das famílias, que mesmo que não tenham
sido removidas de suas terras, são afetadas pelas novas dinâmicas econômicas
deflagradas pelos empreendimentos (CDDPH, 2010, p.29).
Carlos Vainer (2008) também aponta o deslocamento econômico como parte do
processo de espoliação das famílias atingidas, segundo o autor:(…) o deslocamento físico não se restringe ao resultante da inundação, mas
inclui aquele resultante da perda de acesso a recursos produtivos. Assim, por
exemplo, pescadores que perdem ou veem reduzida a possibilidade de pescar,
agricultores que deixam de ter acesso à agricultura de vazante, encontram-se
na condição de deslocados econômicos (VAINER, 2008, 218).
Segundo a Internacional Finance Corporation (IFC) o deslocamento econômico é
aquele em que, mesmo que as famílias não sejam retiradas de seus territórios originais,
há a perda de bens - inclusive a propriedade e o acesso a propriedade comunal e aos
recursos naturais - ou de acesso a bens ocasionando perda de fontes de renda ou de
outros meios de sustento – entendendo como sustento o conjunto de meios dos quais os
atingidos se utilizam para reprodução de sua subsistência, tais como renda salarial, a
agricultura e a pesca, pequeno comércio, entre outras atividades (IFC, 2012, p.01).
É consenso entre os autores, das mais diversas linhas, que os deslocamentos
econômicos, o empobrecimento e a espoliação, são frequentes, mesmo que não haja
deslocamento físico das populações atingidas. Tais processos estão combinados quando
tratamos da territorialização de projetos de desenvolvimento concebidos dentro da
lógica da capitalista. Os atingidos são deslocados de seus territórios (direta ou
indiretamente) por projetos cuja finalidade é a expansão do modo de produção buscando
a manutenção da acumulação. Vivem processos violentos de espoliação que acarretam
na perda dos meios de vida e empobrecimento das famílias, como será melhor
explorado à seguir.
2. Volta Grande do Xingu: condições de vida e empobrecimento
Michel Cernea (1997; 2004) é um dos principais teóricos que afirma ser o
empobrecimento das populações atingidas uma das principais consequências do modelo
de desenvolvimento capitalista. Embora não mencione a acumulação por espoliação, o
autor aponta um conjunto de riscos de empobrecimento (econômico, cultural,
nutricional, etc.) aos quais estão expostas as populações atingidas por grandes projetos
de investimento (barragens, mineração, projetos logísticos, intervenções urbanas, entre
outros), e que demonstram a expropriação dos meios de produção sofrida pelas famílias
atingidas, característica fundamental do processo de acumulação.
Dentre os riscos mencionados por Cernea (2004) destacamos aqui: a perda das
terras - considerada pelo autor como a principal forma de descapitalização e
pauperização das pessoas deslocadas, uma vez que ela é a base sobre a qual muitas
famílias desenvolvem suas atividades produtivas; o desemprego – à perda dos postos de
trabalho vincula-se diretamente com a perda dos meios de subsistência da população
afetada; marginalização – a marginalização econômica das famílias que é, de acordo ao
autor, consequência da perda das atividades produtivas, postos de trabalho e
empobrecimento da população atingida; e a perda de acesso a propriedade comum -
sofrida por agricultores, pescadores e extrativistas, apartados dos bens comuns
pertencentes a comunidades (perda de acesso a florestas, corpos de água, pastagens,
etc.) (CERNEA, 2004, 15-17).
A contradição explícita do modelo de desenvolvimento por grandes projetos está
no desequilíbrio entre os montantes de recursos investidos nos projetos (naturais,
políticos e econômicos) e que estes tenham como consequência o empobrecimento das
populações atingidas.
Na Volta Grande do Xingu, o cenário aponta para mais uma possibilidade de
constatação desta contradição, e reconhecimento dos riscos de empobrecimento das
famílias em face ao processo de acumulação por espoliação.
A população disputa seu território com a Usina Hidrelétrica de Belo Monte,
projeto, parcialmente em operação desde 2016, e com o projeto de mineração de ouro da
canadense Belo Sun (Grupo Forbes & Manhattan), em processo de licenciamento desde
2013.
A Usina de Belo Monte é a maior usina hidrelétrica em construção hoje no país.
Uma vez que completamente em operação estará entre as maiores usinas hidrelétrica do
mundo, com capacidade instalada de 11.233,1 MW de potência e geração média anual
de 4.571 MW. A estrutura da UHE é composta por dois reservatórios, o principal
localizado na própria calha do Rio Xingu, entre os municípios de Altamira e Vitória do
Xingu, e o reservatório intermediário, localizado entre os braços da Volta Grande, no
município de Vitória do Xingu. O projeto realiza-se através de investimentos públicos e
privados que ultrapassam os R$28 bilhões. Deste total 78% corresponde ao
investimento do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES
totalizando R$22 bilhões (BNDES, 2014, p.119).
O fechamento da barragem – em novembro de 2015 – originou o Trecho de Vazão
Reduzida (TVR), que, localizado na Volta Grande, estende-se ao longo de 100 km
entre a barragem principal e o vertedouro da usina. Neste trecho a população indígena,
ribeirinha, agricultora e garimpeira que habita a região, convive com a redução dos
níveis e volume de água no rio, que acarreta em alterações nas atividades de pesca,
mudanças no padrão de fertilização das terras e na navegabilidade.
É justamente no Trecho de Vazão Reduzida onde pretende se instalar o projeto de
mineração de ouro da canadense Belo Sun Mining, com investimento previsto de US$
1.076.724.000,00 (Belo Sun, 2012). Situado a cerca de 50 km ao sul de Altamira/PA, a
pouco mais de 10km da barragem principal da UHE Belo Monte, o Projeto Volta
Grande, como foi batizado pela mineradora, aspira operar uma das maiores minas à céu
aberto do país.
Desde os 1940 realiza-se a extração artesanal de ouro na região, data do
estabelecimento das primeiras comunidades garimpeiras. Atualmente as cinco
comunidades - Vila da Ressaca, Itatá, Garimpo do Galo, Ouro Verde e Ilha da Fazenda
– abrigam cerca de 1000 famílias, dentre elas estão gerações de indígenas, ribeirinhos e
garimpeiros.
Apesar da amplitude dos impactos de ambos os empreendimentos, os estudos não
indicam o risco potencial da interação destes sob um mesmo território. Em seus estudos
Belo Sun1 apresenta de forma muito simplificada os impactos gerados pelo próprio
empreendimento. No que diz respeito à população diretamente atingida, não há
caracterização específica do modo de vida tradicional ribeirinho, nem mesmo
1 Nota Técnica de Esclarecimento da Audiência Pública. Senador José Porfírio/PA, 2012. Disponível em: https://www2.mppa.mp.br/sistemas/gcsubsites/upload/41/Nota%20Tecnica%20PVG(1).pdf , acesso em 05/04/2017. A nota técnica traz esclarecimentos e detalhamento sobre os impactos socioambientais do empreendimento.
dimensiona-se o quantitativo de famílias afetadas pelas atividades a serem
implementadas.
No caso da UHE Belo Monte, os estudos de impacto não consideram a população
do TVR como diretamente atingida, não indicando reassentamento ou indenização para
as famílias que vivem na região. Estão destinadas às comunidades a instalação de
estruturas de saneamento básico, saúde e educação, além do monitoramento das
condições de vida (NORTE ENERGIA, EIA, 2009).
Tradicionalmente os estudos de avaliação impacto para Usinas Hidrelétricas
negligenciam os possíveis impactos à jusante dos barramentos. A Comissão Mundial
das Barragens (2000) identificou em seu relatório que, embora não fossem
reconhecidas, milhares de famílias habitantes das áreas localizadas à jusante das
barragens, sobretudo famílias ribeirinhas – cujo modo de vida está intimamente
vinculado às dinâmicas do rio – “também sofreram graves prejuízos em seus meios de
subsistência e a produtividade futura dos recursos foi colocada em risco” (WDC, 2000,
p.20).
De acordo com o relatório do CDDPH (2010), caso emblemático é o da barragem
de Tucuruí (Pará), cujos relatos da população localizada à jusante da barragem, apontam
para alterações substanciais em sua relação com o rio. Dentro outras alterações, são
mencionadas pela população a queda no volume de peixes, perda da renda dos
pescadores, mudança na dieta alimentar, incomodo com a textura, cor e cheiro da água,
e transformações da rotina doméstica da população (CDDPH, 2010, 92).
Em pouco mais de um ano do fechamento da barragem de Belo Monte muitas
das queixas identificadas à jusante de Tucuruí se repetem na Volta Grande do Xingu. A
população denuncia em audiências públicas2 e entrevistas, a mortandade e queda na
quantidade de peixes no Rio Xingu – as mudanças no regime de inundações das várzeas
do rio já acarretam em alterações nos ciclos reprodutivos da ictiofauna, culminando na
redução do volume de peixes consumidos na região; mudança nos hábitos alimentares –
com a redução do consumo de peixes há um aumento no consumo de industrializados
por parte da população local; alterações na qualidade da água e contaminação pelo
apodrecimento da vegetação submersa na área do reservatório; redução do uso da água
para atividades cotidianas, tais como lavar roupas, uso para banho, preparação de
alimentos e consumo humano; alterações nas rotas de navegação e mesmo isolamento
2 Depoimentos realizados em audiência pública ocorrida em 21 de março de 2017 em Altamira/PA. banco de dados da autora principal, arquivo .mp3 (3h20’).
de algumas famílias e comunidades localizadas nas áreas mais encachoeiradas do rio –
em que a redução da vazão nas áreas pedregosas ou muito rasas impossibilita o trânsito
das embarcações.Tabela 1. Principal uso do rio (Vila da Ressaca, Ilha da Fazenda e Garimpo do Galo)
2012 2016Abastecimento doméstico 15,60% 5,00%Banho diário 51% 19,20%Consumo humano 5,20% 1,70%Irrigação (hortaliças/plantas frutíferas) 1% 2,50%Lavagem de roupa/louça 71,90% 25,80%Limpeza de pescado e caça 29,20% 2,50%Pesca 75% 73%Transporte/Navegação 61,50% 75,80%
Fonte: Elaboração própria a partir dos dados da Norte Energia, 2017.
Somada à atual situação ambiental da volta grande estão as pressões para
instalação da mineradora de ouro, que iniciou a compra das terras antes mesmo da
liberação da licença de instalação para o empreendimento, e proibiu os ribeirinhos e
garimpeiros de circular e realizar suas atividades nas áreas de “propriedade” da Belo
Sun.
A extração de ouro configura a principal fonte de renda das comunidades
localizadas na região. A população ribeirinha é pluriativa, realiza diversas atividades
produtivas que combinadas garantem o sustento das famílias. Pesca, caça, roçado,
extração de castanha, criação de pequenos animais, garimpo, pequeno comércio,
compõem o universo de possibilidades de subsistência da população da região.
A impossibilidade de extração do ouro e utilização das áreas comuns imposta pela
Belo Sun, combinada com as condições de uso do rio após o fechamento da barragem
de Belo Monte, coloca em risco a manutenção da vida das famílias da região. Muitos já
abandonam suas terras em busca de emprego na cidade de Altamira (maior cidade da
região). O empobrecimento da população é mencionado pelos moradores que reúnem
casos de famílias sem recursos para se manterem no local. A tabela abaixo, organizada a
partir dos dados do monitoramento realizado pela Norte Energia (2017), demonstra
transformações nas atividades de geração de renda da família, apontando para redução
da pesca, do comércio e do extrativismo mineral – importantes atividades econômicas
da região - na composição da renda das famílias. Tabela 2. Principal fonte de renda da população (Vila da Ressaca, Ilha da Fazenda e Garimpo do Galo)
2012 2016Pesca 19,20% 7,30%
Extrativismo Mineral 16,20% 6,10%Construção civil 1% 4,90%Comércio 15,20% 2,40%Agropecuária 8,10% 11%Outras atividades 11,10% 39%Não possui/Não respondeu 3% 14,60%
Fonte: Elaboração própria a partir dos dados da Norte Energia, 2017
Além de reconhecer a perda das terras, desemprego, marginalização e perda de
acesso aos bens comuns - tal como proposto por Cernea (2004), é possível identificar
na situação dos moradores da Volta Grande do Xingu a violação do Direito ao trabalho
e a um padrão digno de vida, mencionado pelo CDDPH (2010). Na medida em que os
impactos da UHE nas dinâmicas do rio Xingu aos quais se sobrepõe a atuação da Belo
Sun, inviabilizou as condições de trabalho da população. O caso também permite
observar o deslocamento físico e econômico das famílias e comunidades, uma vez que
impossibilidade de trabalho e manutenção da vida na região deixa poucas opções aos
moradores, que migram para outras áreas.
Conclusões:
O afastamento do trabalhador das condições para reprodução e realização do
próprio trabalho, possível a partir da expropriação dos modos de produção, estaria,
segundo Marx (1985), na base processo de acumulação primitiva. Com a finalidade de
liberar ativos para apropriação do capitalista, “o processo que cria a relação- capital não
pode ser outra coisa que o processo de separação do trabalhador da propriedade das
condições de seu trabalho (MARX, 1985, p.262).
A manutenção do processo de acumulação requer a expansão do modo de
produção capitalista e a incorporação de territórios cujas relações capitalistas ainda
sejam insipientes ou não hegemônicas.
A relação estabelecida com a Amazônia, tanto pelo Estado brasileiro, quanto
pelo capital nacional e internacional, está marcada pela compreensão da natureza como
recurso, reserva de capital a ser explorada em função da expansão do processo de
acumulação capitalista. O olhar para Amazônia carrega o entendimento da região como
espaço de atraso tecnológico, baixo desenvolvimento humano, pobreza e falta de acesso
à produtos e mercados, carente de investimentos, de forma a justificar a instalação de
Grandes Projetos de Investimento, desconectados das realidades locais e que
negligenciam as necessidades e impactos nas condições de vida da população.
Desproporções entre os volumes de investimento e o empobrecimento da
população, entre os custos e benefícios dos grandes projetos, sobretudo na região
Amazônica, requerem urgentemente que o desenvolvimento da região seja pensado
sobre novas bases, apontando para novos caminhos que não a espoliação de populações
em função da acumulação de capitais.
A lucratividade econômica dos projetos é imponderável se observada do ponto de
vista das famílias atingidas, dos custos ambientais e das perdas culturais. A implantação
destes grandes projetos, em especial hidrelétricas, por sua amplitude, levaram ao
empobrecimento e sofrimento de milhões de pessoas em todo o mundo (WDC, 2000,
21). Além da oposição frequente à construção de barragens, e à instalação de grandes
projetos de investimento, a situação tem gerado questionamento do curso do
desenvolvimento com bases capitalistas, apontando cada vez mais para a necessidade de
superação deste modelo.
O caso apresentando permite a constatação do processo de empobrecimento e
espoliação da população, contribuindo para o entendimento do processo de acumulação
nos dias atuais. A grave situação que acomete a Volta Grande do Xingu coloca em risco
a sobrevivência da povos que vivem na região. Indígenas, ribeirinhos, agricultores,
garimpeiros artesanais, sofrem as consequências do desenvolvimento desigual e da
apropriação de seu território por uma lógica alheia à região, voltada ao interesse do
grande capital.
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