Download - 04_06_2011 1a. PENSAR_ET_Especial Tabloide_5

Transcript
Page 1: 04_06_2011 1a. PENSAR_ET_Especial Tabloide_5

guaescorrenovaso-bre o chão da cozi-

nha. Veio da máquina de lavar,fazendo barulho. A Flor, minhacachorra, se virou atenta aosom, depois suspirou com des-dém. O barulho da máquina delavar incomodou meu corpo.Achei absurda a quebra de umsilênciosemacordes.Acheiqueera melhor como estava antes,volumebaixodatelevisão,brisadesábadoentrandodelicadanasaladeestar.Mastivepaciência,paciência, a máquina termina-ria seu trabalho. Um dia desco-bri que devo ter paciência.

Até com o volume permean-dooscômodosdacasa...atécoma obra de construção no aparta-mento de cima... Até comigo.

Estou preocupada com a si-tuação da merenda escolar noBrasil. Os meninos estão co-mendo comida estragada. O“Jornal Nacional” mostrou umasérie de reportagens revelandoo absurdo a que devemos estaratentos: a merenda – quandoexiste–estásendoguardadaemambientesprecários,emmeioamofos e baratas. O assunto nemganhou tanta fama. Quase nãohouve discussão parlamentar,as universidades estudarampouco a questão, nada escuta-mos do que esses professores ealunosdaredepúblicaestãonosdizendo. Dilma nem veio ao arproibir a entrada de baratas nascantinas como o fez com a en-trada do “Kit gay” nas escolas.Na próxima segunda-feira osalunoscomerãodenovooarrozque passou da validade. Paciên-cia? Não sei. Há limites.

Hálimitesparaosilêncio,ne-nhuma voz começa em vão. In-vejo agora a máquina de lavarquefazbarulhonaminhacalma,

CRÔNICAS E POESIA. O descaso com a merenda escolar, a força do----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

corpo e a presença viva dos objetos inspiram nossas colaboradoras----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

Cálice

“...Como é difícil acordarcaladoSe na calada da noite eume danoQuero lançar um gritodesumanoQue é uma maneira de serescutadoEsse silêncio todo meatordoaAtordoado eu permaneçoatentoNa arquibancada pra aqualquer momentoVer emergir o monstro dalagoa

Pai, afasta de mim essecálicePai, afasta de mim essecálicePai, afasta de mim essecáliceDe vinho tinto desangue”

Nayara Lima éescritora, graduanda emPsicologia pela Ufes eautora do blogwww.nayaralima-versoeprosa.blogspot.com

para cumprir com seu trabalho.Ela só descansa depois quecumpre. Se tivesse alma, meolhariacomdesdém,feitoaFlordeitadanasalaindiferenteaoin-cômodo do ar. Queria que estacrônica fosse leve, mas pareceimpossível. O leitor percebe: aspalavrasfazembarulhonosilên-cio de dentro.

No princípio era o verbo.Agora é o quê?

Chico Buarque e GilbertoGil, em 1973, romperam com osilêncio para cantar:

RENATA BOMFIM

MEMÓRIAS DO CORPO

Todo corpo tem memóriaguarda lembranças dasdores, prazeres, fracassos,glórias.Todo corpo tem, também,Deus e o Diabo, dentro.

Viva o corpoCorpo vivoViva sim, que a Mortevem!

Cada parte do corpoinventa para si um viver:algumas mãos escolhemcavarem busca de ourooutras em busca de ossos.

Pés decidem tornar-se umcom a estradajá outros, criam raízeschegando a conheceráguas profundas.

Há bocas que sorriemcomo meninas que usamtranças,outras tornam-sefechaduras,lacres, selos, labirinto.

Os ventres pulsam eabrigam vidamas alguns, menoscompromissados,gostam de fazer ventania.

O corpo se reinventasempreaté mesmo no seu últimoestágioquando se desintegrapassando a compor algomaior que ele mesmo.Então ele realiza o seudestinoo mais nobre de todos:ser Terra!

ESPAÇO DA POESIACircunspecção

e uma certa distân-cia, olho minha mesa

detrabalho.Estárepletadecoi-sas, e gosto de observá-la sobessaluz.Acortinalaranjamedáilusões cálidas de lareira crepi-tando,eeuacreditotanto,queaideia de subi-la um pouco meencheocorpodetremores.De-tenho-me, então, de cá de mi-nha segurança abrigada, a ob-servar os objetos banhados decalor laranja. O caos é genera-lizado. Há muitos livros, pilhasde papéis sobre os livros, den-tro de “Rayuela” de Cortázarumlápismarcandoaúltimapá-ginaqueli,hásemanas.Capítu-lo5.Sobreumcaderno,duasfo-lhas de outono: uma amarela eoutraacobreada.Estãomaisse-cas, as pontas viradas pra den-tro.Tenhodoisgatosdemadei-ra, um deles caiu sem que eusaibaporquê.Etudomelembrao dia em que conheci a casa deTereza.

Tereza é amiga antiga destafamília com a qual vivo. Moraem Santiago, mas também mo-ra em Paris. É uma artista de arrelaxado, cabelos grisalhos,óculos arredondados e riso fá-cil. Vai andando leve e pluralpor entre seus vitrais, mosai-cos,quadroseesculturas.Entreelaeacasaháumacumplicida-de que não guarda hierarquiasde posse. Tereza transita peloscômodoscomosenadadaquilofosseresponsabilidadedela,eacasa se recriasse todos os diascom a pura vontade própria. Averdadeéquenessestrêsanda-resemeio(contandocomosó-tão de pé direito baixo demais)há tantas miudezas e preciosi-dades, que eu queria estar ca-minhando com um bloco denotas, inventariando:

pé de tomate; escultura de

Milena Paixão écachoeirense, poetae professora deLíngua Inglesa [email protected]

Teresa nua; lampião vermelhopendurado em galho aleatóriode árvore; lucumeiro com umalúcumaverde;tronofeitodeto-co de árvore com cachorro emcima; violão com uma corda;trêsaranhas;cinzeiroemformade gelatina; piano desafinado;Chilita, velhinha de 97 anos.

etc, etc, etc.A casa é grande e viva: res-

ponderangendosobcadapassode nossos pés. Responde sono-lenta, é verdade. Por todo ladohá uma impressão de penum-bra–mesmoduranteodia,comas janelas abertas – e cada ob-

Da ditadura do cale-se, che-gamos hoje à liberdade de “po-der” falar. E o que estamos fa-lando quando deixamos silen-ciadas as notícias que gritamsocorro?Pensaropaís temsidotão simples quanto desligar aincômodamáquinade lavar,ouchorardoisminutospelascasasque desmancharam nas en-chentes, ou discutir na mesa debarquantoogovernoroubaporimpostos. Pensar o país tem si-do tão simples quanto virar apágina de um jornal.

Tereza transita peloscômodos como senada daquilo fosseresponsabilidade dela,e a casa se recriassetodos os dias com apura vontade própria.

jeto parece estar em seu lugarnão por acaso ou vontadealheia, mas por eleição própriade quem sabe bem suas miste-riosas utilidades. A cadeira deestofado velho e empoeiradono canto do sótão, só ela enten-de e cumpre a importantíssimaserventia de estar ali. E não é aconvencional,deescorartrasei-ros. Os objetos, reinventadosassim, realmente habitam. Eu,mera visitante, entrei em cadacômodo com uma sensação es-tranha, que revivo agora. Olhopra mesa e não quero interferir.Preciso limpá-la, liberar espa-ços, dar ordem aos papéis, masaí está esse aglomerado de coi-sas tão humanamente logrado.Há personalidade nesse bilhetede pontas amassadas, dias en-tranhadosnessasfolhasdearce,circunstância nesse gato caído.Bobagens. Aproximo-me damesa e ergo a cortina. Peço li-cença ao gato, e começo.

Renata Bomfim é poeta, ativista socioambiental,artista plástica e membro da AcademiaFeminina Espírito-Santense de [email protected]

--------------------------------

5PensarFale com o editor:José Roberto Santos Neves - [email protected] A GAZETA Vitória (ES), sábado, 04 de junho de 2011

Á D

Documento:Terceiro_04_06_2011 1a. PENSAR_ET_Especial Tabloide_5.PS;Página:1;Formato:(277.64 x 315.74 mm);Chapa:Composto;Data:03 de Jun de 2011 13:51:08