O teatro e seu avesso
Angela Leite Lopes Angela Leite Lopes tradutora e professora do Curso de Artes Cnicas e do Programa de Ps-Graduao em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
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Sai do mtodo Stanislvski! Salta em Meyerhold! Trabalha
tudo no avesso revirado, numa outra perspectiva.1 Foi es-se um dos conselhos dados por Valre Novarina a atores
da montagem da sua Opereta imaginria que dirigiu na Hungria em 2009. E ele explica, numa longa entrevista a
Olivier Dubouclez, que o problema com o qual se deparou
durante essa experincia no estava tanto relacionado com
Stanislvski grande mestre do teatro, cujo pensamento
tudo menos rgido mas com a to conhecida limitada com-
preenso de seus ensinamentos, cristalizada numa leitura
unicamente psicolgica do personagem.2
Prosseguindo no seu relato e no seu raciocnio, Novarina
conta que os atores no podiam conceber que a relao a ser estabelecida com aquela pea e aquele espetculo pudesse se dar por outro vis que no o do personagem. Narra ele:
No incio, eles estavam permanentemente em busca
do personagem, como se houvesse uma verdade a ser
revelada, como se fosse possvel encontrar a lgica do
papel por dentro dele: O que sinto? Qual meu estado?
Qual o estado do personagem? Eles buscavam ref-
gio nesse psicologismo com o qual esto habituados.3
Novarina, por sua vez, empenhou-se em mostrar a eles
que no se tratava de construo de personagem e sim de uma pea. No tece mais uma construo de personagem
[...] mas presta extrema ateno aos traos (como um pin-tor), aos traos que voc traa, que voc joga nas figuras
1 Valre Novarina. La Quatrime personne du singulier. Paris: POL, 2012, p. 52.
2 Olivier Dubouclez; Valre Novarina. Paysage parl. Paris: Les ditions de la Transparence, 2011, p. 71.
3 Ibid., p. 72.
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humanas que se erguem e que sero combinadas no cre-bro e no corpo do espectador.4 Naquele contexto, no havia
emoo a ser vivenciada, e sim um jogo a ser construdo.
Como a tradio teatral est impregnada por um vocabu-lrio que tende facilmente para o psicolgico, Novarina usa
e abusa de termos oriundos da visualidade: perspectiva re-
virada, traos, figuras. De fato, ele no nos deixa esquecer
que o teatro quer dizer a vista.5 Para ilustrar as colocaes de Novarina, aqui vai a pri-
meira fala dessa Opereta imaginria:
O E Mudo (de joelhos.) Pblico de opereta, fique aten-to! Paredes, fechem limites! cho, sustente ps! pes-
soas em frente: recuem no, avancem no! teto, nos
proteja do sol e das multides da chuva! tempo, nos
aguarde! pessoas dentre aqui, toram por ns! Pblico
de opereta, me impea de espalhar sangue, de esten-
der e enrolar esses panos em tirinhas na minha cabea
como fao nesse instante ensanguentado diante de
ti! Pblico de opereta, me impea de pousar minha ca-
bea no cho, pblico de opereta, impea minha ca-
bea! Impea a opereta, pblico! pblico de opereta,
faa com que o espao no tenha lugar! No cho daqui
impea de agir! Pblico de opereta, no escuta que es-
palho diante de ti essas palavras e recebe aqui minha
cabeEeEeheEea. No centro havia um morto que s se
exprimia em canes. (Ato I, 1. Abertura)
Como se pode depreender dessa fala do E Mudo, o cerne da operao artstica de Novarina est na linguagem e, mais
4 V. Novarina. La Quatrime personne du singulier, op. cit. p. 53.
5 Ibid., p. 117. Novarina nos faz lembrar que theatron designa o lugar de onde se v.
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especificamente, na ideia de que a linguagem um fluido
que se derrama no espao. O que importa para ele essa
projeo da palavra.
Tal concepo foi primeiramente compreendida pelos atores hngaros como uma volta ao velho teatro do sculo
XIX em que interpretar equivalia a declamar na boca de ce-
na. Sabe-se que Stanislvski se insurge contra esse tipo de
teatro e passa a figurar quase como seu antdoto. Perceber
que na proposta de Novarina no se tratava nem de avano
nem de recuo, foi algo que se deu na experincia, no passo
a passo dos ensaios.
No Brasil, vrios artistas vm dando passos nessa dire-
o, ao tomar contato com a obra de Novarina ou ao enve-
redar por outras experincias. Penso muito especialmente
no trabalho que vem sendo desenvolvido por Ana Kfouri
frente da sua Cia Teatral do Movimento ou em parceria com Antonio Guedes, Thierry Trmouroux e Isabel Cavalcanti.
A Companhia de Teatro Autnomo, dirigida por Jefferson Miranda ou a Companhia Brasileira de Teatro, dirigida por Mrcio Abreu, so bons exemplos desse teatro que busca
Opereta imaginria, direo de Valre Novarina. Teatro Csokonai, Debrecen Hungria. Da esquerda para a direita: Nelli Szcs, Jzsef Jmbor, Anna Rckevei, Artr Vranyecz, Kinga jhelyi, Attila Kristn, Jzsef Varga, Tibor Mszros e rpd Kti. Foto de Andrs Mth, 2009.
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outros aspectos da cena e do trabalho do ator. Muitos ou-
tros artistas e grupos que se dedicam chamada pesquisa
de linguagem tm trajetrias consolidadas nesse caminho.
Mas no deixa de ser curioso constatar que os rumos da
cena na atualidade parecem ainda confluir para essa encru-
zilhada: avanar ou recuar. Foi nesses termos, por exemplo,
que Denis Gunoun props algumas reflexes no artigo in-
titulado Objeo ao retorno, publicado em 2000 no nme-
ro 8 do Folhetim. Ali, ele situava a hiptese de trabalho de Novarina nos seguintes termos: findo o drama, o que sobra
a lngua e dela ento que se vai extrair teatralidade.6 De fato, Gunoun transita em seu texto entre um antes e
um depois do fim da crise do drama.
Evoco o episdio da montagem hngara de A opereta imaginria de e por Novarina junto a essa breve anlise de Denis Gunoun para desmistificar as abordagens evoluti-vas ou, pelo menos, causais do fenmeno artstico e tor-nar relativos esses parmetros de um antes e um depois.
A crise do drama e o seu fim no chegam a ser um marco e sim um conceito para continuar traando parmetros para a dramaturgia. Dessa maneira, indica, sim, uma mudana na
engenharia da pea teatral e no uma medida temporal. Ora,
um sculo separa Stanislvski e Novarina, o que acarreta
uma inevitvel diferena de ponto de vista. E justamente
disso que se trata.
Stanislvski debruou-se sobre o ator. Foi o primeiro
a faz-lo e a expressar sob forma de dilogos e de notas
o que enxergava, intua, deduzia na sua labuta diria co-
mo ator e como encenador. Ele no se ateve a um nico
foco, como os diversos artigos presentes neste nmero
do Folhetim no se cansam de apontar. Mas, sem dvida
6 Denis Gunoun. Objeo ao retorno, Folhetim. Rio de Janeiro: Teatro do Pequeno Gesto, n. 8, p. 6, set.-dez. 2000.
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nenhuma, Stanislvski enxergava o ser humano como su-
jeito, dotado, por um lado, de corpo e, por outro, de espri-to, com redutos insondveis nesses seus domnios fsicos e psquicos. Concentrou-se em saber como estimular e como
utilizar todos eles na arte de atuar, entendida por ele como
viver um papel. 7
Novarina debrua-se por sua vez sobre a palavra. Uma
palavra que para ele o verdadeiro sangue. Uma palavra que fala, sopro, movimento, como se pode perceber, por exemplo, na acepo francesa do verbo ser: je suis diz ao mesmo tempo eu sou e eu sigo. Algo da ordem tanto do es-pao quanto do tempo. Ou seja, a lngua tudo menos uma
sobra. Ela o nico lugar onde algo se d.
A lngua no teu instrumento, teu utenslio, mas tua
matria, a prpria matria da qual voc feito; os tra-
tamentos aos quais voc a submete, a voc mesmo
que voc inflige, e mudando a tua lngua, voc mes-
mo que voc muda. Pois voc feito de palavras. No
de nervos e de sangue. Voc foi feito pela lngua, com
a lngua. 8
Cito esse trecho do Teatro dos ouvidos quase que ao acaso: h inmeros outros que discorrem sobre essa sua
ideia central. Como Stanislvski, Novarina tambm se di-
rige ao ator de maneira privilegiada e dois de seus textos
mais emblemticos so justamente Carta aos atores e
7 Ver sobre esses temas os artigos que publiquei nos nmeros 6 e 9 do Folhetim: O ator e a interpretao (Rio de Janeiro: Teatro do Pequeno Gesto, jan.-abr. 2000) e Alm da interpretao: de Stanislvski a Grotowski (Rio de Janeiro: Teatro do Pequeno Gesto, jan.-abr. 2001).
8 Valre Novarina. O teatro dos ouvidos. Trad. Angela Leite Lopes. Rio: 7Letras, 2011, p. 39-40.
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Para Louis de Funs, respectivamente de 1974 e de 1985. Recentemente, Luzes do corpo, O avesso do esprito e A quarta pessoa do singular 9 do prosseguimento a essa sua contnua reflexo, enriquecida por experincias as mais di-
versas: msica, pintura, filosofia, religio.
E esse o ponto comum entre esses dois artistas: no
distinguir o gesto artstico do gesto da reflexo. Fazer
com que os dois confluam preferencialmente para a arte
do ator.
Na sua Preparao do ator, Stanislvski procura ofere-cer aos seus atores caminhos que os levem a viver o papel e assim fazer da atuao uma arte. A escolha pelos dilogos
entre professor e alunos imaginrios certamente colaborou muito para que se viesse a apreender seu pensamento como mtodo a ser aplicado. Mas essa escolha remete no fundo
aos primrdios do ato de pensar, desde os dilogos socr-ticos de Plato, trazendo para os ensinamentos algo desse
movimento da palavra ao ser proferida, to cara a Novarina.
Novarina por sua vez tambm se mostra ao mesmo tempo
fascinado e intrigado com o que acontece com o ator. Ele
chega a propor, em Carta aos atores:
Ser preciso que um dia um ator entregue seu corpo
medicina, que seja aberto, que se saiba o que acon-
tece ali dentro, quando se est atuando. Que se saiba
como o outro corpo feito. Porque o autor joga com
um outro corpo que no o seu. Com um corpo que fun-
ciona no outro sentido. Um corpo novo entra no jogo,
na economia do jogo. Um corpo novo? Ou uma outra
9 Cito tudo em portugus para facilitar a leitura desse artigo. Mas s Carta aos atores e Para Louis de Funs esto editadas no Brasil pela 7Letras (2009). Os outros trs livros, respectivamente Lumires du corps, LEnvers de lesprit e La Quatrime personne du singulier foram editados pela POL em 2006, 2009 e 2012.
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economia do mesmo? No se sabe ainda. Seria preciso
abrir. Quando ele est atuando. 10
O desafio no se aproximar tambm da proposta de
Novarina buscando resultados precisos. O fato de ele inse-
rir muito humor nas suas reflexes pode servir de antdoto
contra tais mistificaes. O humor est presente desde a
escolha do cmico francs Louis de Funs como porta-voz
imaginrio privilegiado das sentenas do autor at o des-vio constante das finalidades esperadas de determinadas atividades, como a dissecao para se descobrir a anatomia do outro corpo que o do ator em plena atuao. Ao mes-mo tempo, o humor serve como recurso para tornar suas reflexes absolutamente concretas. Eis como Novarina se
refere mais uma vez aos atores hngaros por ele dirigidos
em A opereta imaginria:
Houve tambm, depois do perodo psicologizante, um
perodo em que os atores hngaros faziam coisas mui-
to abstratas, recusando arraigar as frases no dilogo
cotidiano, na cadncia das frases das ruas. Era uma
palavra sem interrogao, sem exclamao, sem ento-
nao: sem a vivacidade da frase comum. Eles iam por
um caminho errado, se tornavam exteriores e mecni-
cos, inumanos como mquinas. Era preciso permane-
cer inumano como homens. Inumanos como ningum.11
Antes de mais nada, preciso fazer um parntese para
esclarecer que ningum a traduo possvel de personne, palavra cara a Novarina por poder significar tanto algum
10 Valre Novarina. Carta aos atores e Para Louis de Funs. Traduo de Angela Leite Lopes. Rio: 7Letras, 2009, p. 21.
11 O. Dubouclez; V. Novarina, op. cit., p. 73.
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quanto ningum. Como o aspecto que ele se empenha em
valorizar no trabalho do ator o ato de desaparecer, em
contraposio ao carter de exibio que est por assim
dizer colado a essa funo, opto na maioria das vezes por
traduzir simplesmente por ningum.
Se juntarmos os sentidos presentes em personne e em je suis, temos a chave da operao artstica de Novarina e a sua principal contribuio na atualidade. Se Stanislvski
participava, tanto pelo seu tempo quanto por seu tempe-ramento, do arcabouo final do sujeito, Novarina, por seu
tempo e por seu temperamento, proclama que nada a no ser no perptuo vir a ser.
Esse aspecto no pode ser expresso, traduzido, indicado
seno no movimento que lhe prprio. Nada sem lingua-
gem, Novarina gosta de citar essa afirmao de So Paulo.12 E o movimento que lhe prprio o que move a linguagem, a palavra, nosso verdadeiro sangue. E nos permite desco-
brir, um sculo depois de Stanislvski, o teatro pelo avesso.
O ator imita o homem? no, ele o joga! ele o traa no ar;
ele lana antropglifos: figuras humanas que surgem e se desfazem. 13
12 Valre Novarina. Valre Novarina no Rio: a onda da linguagem. Novarina em cena, organizado por Angela Leite Lopes em colaborao com Ana Kfouri e Bruno Netto dos Reys. Rio de Janeiro: 7Letras/Faperj, 2011, p. 17.
13 V. Novarina. La Quatrime personne du singulier, op. cit., p. 92.
Opereta imaginria, direo de Valre Novarina. Teatro Csokonai, Debrecen Hungria. Fotos de Andrs Mth, 2009.
Acima: Attila Kristn e Anna Rckevei. Abaixo: Kinga jhelyi e Tibor Mszros .
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