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1- edição - 2005

€> C o p y r ig h t

C h a rle s l ’V itosa , D an ie l L in s . jo sc CltL J.u ix B . L . O r h n J i .

M arco A n tô n io C asa n u v a . lV u .r Pál P e lbart e Suelv R nlntk

Capa: Leonardo M ineira e Lucíola Feiió Ilustração da capa: “Cartografia N ôm ade" (ai|u;ire!a. scl./20Q5i. J c Le^intrüo Moreira

Editoração eletrônica: T extos Sc Formas

CIP-Brasil. Catalugaçào-nu-tònte Sindicato Nacional dos Editores de Livros. RJ

R 2I8Razão Nõniade / organizador Daniel Lins: Charles Feitosu... [st 'dl.,. - Rio Je

Janeiro: Forense Universitária, 2005.

Tradução do capírulo "A s pequenas percepçü-rs" Aline M arij Vieira J e Araújo ISB N 85-218-0387-7

1. N ieizscht. Friedridi Wilhelnt. 1844-1900. 2. Dekuze, Gilles. 1925-1995.3. R a2 ão. 4. F ilosofia moderna. I. Lins. Daniel Soares. 1943-. i

CDD 121.3 CDU 162

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Apresentação

Luiz B. L. Orlandi

Esta apresentação quer apenas uma coisa, que o possível leitor experimente algo certamente ocorrido com ele algumas vezes em sua vida: que ele se disponha a praticar lances de leitura nômade, isto é, que se deixe banhar por aquelas vagas de leitura que nos as­saltam em certos momentos de descuido de nós mesmos ou das nossas obrigações burocratizadas. Por que desejar isso? Porque es­ses lances têm a virtude de nos mover quando, de antemão ou em face das primeiras palavras, não submetemos o escrito alheio a um presunçoso ou cansado j á sei. Ler como quem contempla um ros­to: não sabemos o que pode vir de um rosto, pois há imanência entre ele e uma espécie de direito à expressão inesperada. Por isso, só quando sentimos nosso olhar intensificar-se como “olhar pene­trante”, diz o texto de José Gil, como um ver sintonizado com a variabilidade das “pequenas percepções”, é que chegamos a entre­ver defasagens, “deslocamentos” que pulsam na rostidade, ali onde um “sorriso que se quer amigável” , por exemplo, pode ser molecularmente surpreendido como imperceptível deslize “hipó­crita” . Que a leitura seja também assim: uma sintonia multiplica- dora de deslizamentos. Ler em estado de nomadismo, seja para usar a coisa lida como instrumento intelectual ou para fruí-la como ocasião de gozo, pouco importa, contanto que se leia como quem pega ondas sem a ilusória certeza de já estar dominando o mar inteiro. Que o leitor se aproxime dos textos com essa alma

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As Pequenas Percepções

José Gil*

1. Em Diferença e repetição, em que surge pela primeira vez a noção leibniziana de pequenas percepções, estas não cessam de se tornar objeto de um tratamento vago e ambíguo: desde o princí­pio rejeitadas e identificadas com o virtual e com o inconsciente (tratar-se-á mesmo de um “microinconsciente”), elas serão defini­tivamente substituídas pelo “molecular” a partir de O anti-Edipo.

Não examinaremos aqui as razões de tal abandono. Se reto­mamos tal noção é porque ela nos parece poder contribuir para a constituição de uma semiótica do infinitamente pequeno, neces­sária à inteligibilidade de um grande número de fenômenos (em múltiplos domínios, como a estética, a etnologia, a psiquiatria, a retórica). Não tentaremos fazer nenhuma elaboração teórica; li- mitar-nos-emos a mostrar a pertinência da idéia de “pequenas percepções” no campo da percepção da obra de arte.

2. A descrição que se segue será forçosamente esquemática, simplificada, reduzida e redutora. Deter-nos-emos apenas no que importa para a nossa proposta, a saber, o papel desempenhado pe­las pequenas percepções no processo perceptivo do objeto artísti­co (de preferência, visual).

Tomemos a percepção de um quadro. Distinguiremos nela três fases, que correspondem a três regimes do olhar:

* José G il, professor catedrático da U n iversid ade N o va de Lisboa, é autor de diversos

livros em português e francês.

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a) Uma percepção trivial (ou meramente cognitiva) das for­mas (uma paisagem, linhas, figuras geométricas). Fase de recog- nição, ou de apercepção, de uma estranheza que, no entanto, comporta sempre elementos familiares.

b) A percepção de um outro espaço ou “lugar” , no qual o olhar descobre outros movimentos e outras relações entre as for­mas, entre as cores, outros espaços e luzes. Trata-se então da percepção não trivial de um nexo diferente que atravessa os ele­mentos pictóricos. O olhar percebe, nesse momento, uma outra combinação ou composição do espaço, dàs cores e do tempo. Em um certo sentido, precisaríamos ir mais longe, pois o “espectador” entra no quadro, “torna-se parte dele” . Textos belíssimos de Kan- dinsky, em Olhares sobre o passado, descrevem essas transforma­ções e esse salto do olhar para o nível não trivial das “estruturas” não aparentes ou escondidas. Notemos que o pintor tem plena consciência desses dois níveis de percepção, e trabalha a fim de que o olhar deslize facilmente de um para o outro. Eis um elemen­to que é preciso levar em conta na técnica - ou “cozinha” - do ar­tista, visto que nada está dado na natureza para que suas formas ofereçam o belo ao olhar, como dizia Kant.

c) Por fim, em uma terceira fase, o que muda é a percepção do conjunto das formas. Mais deslocamento entre a percepção trivial e a não trivial. Pelo contrário, pois nessa fase essas mesmas formas que parecem triviais “se animam” com uma vida própria. O objeto deixa de ser “objetivamente” percebido, através-de suas silhuetas ou Abscbattungen, porque cada percepção singular se oferece por inteiro ao olhar, sem aspectos obscuros ou dissimulados: uma ca­bana na praia de uma tela de Malévitch não possui uma parede de fundo, mas, ao mesmo tempo, não se pode falar que lhe falte essa parede (não vemos a parede e, ao mesmo tempo, queremos vê-la). Doravante, cada forma vai se inserir em uma multiplicidade vir­tual obtida pelo deslocamento do nível trivial para o nível percep- :;vo não trivial.

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Este terceiro nível de percepção, que poderíamos chamar de “estético” ou “artístico”, comporta três características essenciais. Em primeiro lugar, trivial e não trivial coincidem nesse nível, mas deixam aberta essa diferença. O olhar vê muito bem a paisagem objetiva, as casas, as árvores, os camponeses. No entanto, ele os vê transformados, cheios de força, como se uma intensificação das formas e das cores tivesse se produzido por conta da coincidência do trivial e do não trivial (a estrutura escondida que agora é visí­vel). Em segundo lugar, a percepção trivial, ainda que esteja pre­sente, deixa de ser pregnante. Ela passa para o último plano, enquanto as relações, que antes eram não visíveis, chegam ao pri­meiro plano. E, por fim, a percepção não se dá mais como sim­plesmente cognitiva ou unicamente sensorial. Trata-se agora de uma percepção de forças. Costumamos dizer que um quadro bem-sucedido é “poderoso”; e de uma tela que tenha fracassado, diríamos que é “fraca” ou que não produz nenhum “ impacto” : tra­ta-se de uma linguagem de forças.

Porque aquilo que torna singular essa marina de Turner, para além de sua composição, da organização de seus elementos e de seus “signos”, é uma certa qualidade da força que emana da tela. Essa qualidade tem suas intensidades próprias, suas velocidades de cor e de profundidade. Ela possui, ao mesmo tempo, modulações infinitas da força que dela se emana, e uma singularidade que faz com que sejaum Turner, e que dentre as telas de Turner seja essa a marina em questão, e não uma outra.

De onde vem essa dupla característica da força artística? O que é uma linguagem das forças? E por que toda obra de arte é um reservatório inesgotável de forças?

3. Recordemos brevemente (e sumariamente) o que Leibniz escreve sobre as pequenas percepções, já que a percepção de um quadro revela uma dinâmica de percepções mínimas.

O primeiro nível trivial remete-nos a representações e forças macroscópicas (melhor dizendo, a representações que absorvem

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forças imperceptíveis). Ora, quando o olhar descobre as relações dissimuladas que constituejri o nexo da obra, surge uma espécie de nuvem de pequenas percepções que primeiro envolve e depois impregna e transforma as formas visíveis triviais; no hnal, quando o quadro é percebido na singularidade de sua força, é ainda de blocos de pequenas percepções que precisamos.

Isto é, o que permite definir a força como um “invisível visí­vel” , à maneira de Merleau-Ponty com respeito aos traços de Klee, não é a presença de algo visível que o olhar captura na força. Por­que é possível que o olhar não capture, mas que ele próprio sofra uma transformação. E, sobretudo, não podemos nos fechar na ca­tegoria da “presença” fenomenológica, este invisível que a arte tor­naria visível. Estamos diante de um outro tipo de fenômeno.

C om o é sabido, Leibniz caracteriza as pequenas percep­ções pela ausência de consciência de si: elas são percepções sem apercepção, mas acompanhadas de consciência. Por não terem consciência de si, são “insensíveis” ou “imperceptíveis” , ou seja, inconscientes. Inconscientes porque microscópicas ou porque, se unidas umas às outras, não se deixam distinguir. Ou ainda por­que, se fracas ou pouco intensas, não chegam a ter uma percepção distinta de si mesmas. •

Leibniz gosta de dar muitos exemplos: o barulho do moinho que se apaga em nossa consciência por meio do hábito e da repeti­ção. O barulho não deixa de impressionar menos a nossa audição, mas não o ouvimos mais - ele se tornou uma percepção inconsci­ente. Ou o exemplo do brado das ondas do mar, composto de ruí­dos múltiplos das pequenas ondas que fazem parte dele. Ouvimos apenas o brado da grande onda, da qual, entretanto, não teríamos consciência se apreendêssemos também as impressões sensíveis microscópicas da infinidade de ondas pequenas, das quais não te­mos uma consciência distinta ou consciência do todo.

As pequenas percepções, escreve Leibniz, são percebidas “con­fusamente em suas partes e claramente no seu conjunto”. A per­

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cepção confusa não possui elementos suficientes para que possamos defini-la, ainda que possamos distingui-la das outras. A idéia confusa não se opõe à idéia clara, mas à idéia distinta. Há, então, idéias (ou percepções) simultaneamente claras e confusas; claras porque possuem ao menos um elemento que permite dis- tingui-las das outras, mas não elementos suficientes para que sai­bamos o que elas contêm: o que permitiria defini-las (caso das únicas idéias claras e distintas).

A percepção do brado da grande onda é clara e confusa; clara porque podemos distingui-la da percepção de um outro barulho e confusa porque não podemos separar claramente os elementos que a compõem (a quantidade, a intensidade, a forma dos baru­lhos das ondas pequenas).

Leibniz também descreveu, porém, um outro tipo de peque­nas percepções, sem diferenciá-las de maneira nítida daquelas pró­prias ao ruído do moinho e das ondas pequenas. Além de formar as macropercepções, as pequenas percepções asseguram, ainda, a função de passagem entre as duas macropercepções.

Com o se sabe, na mônada, na qual só existem apercepções, percepções e apetiçQes, estas últimas marcam o movimento de transição entre as percepções. Esse movimento é provocado por uma força, e sua percepção é garantida pelas pequenas percepções: há uma continuidade absoluta no- movimento das percepções, mesmo quando não nos apercebemos dele. O princípio de conti­nuidade — psicológica, mas também metafísica — se apóia na exis­tência das pequenas percepções.

Isso significa dizer que podemos reunir em uma outra catego­ria as pequenas percepções que garantem a passagem de uma ma~ cropercepção à outra. Não se trata mais de pequenas percepções, como componentes do brado da grande onda, mas de percepções intersticiais, descritas nos fenômenos que Leibniz evoca: infinitas pequenas percepções marcam a transição entre a vigília e o sono,

Não entendi...
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entre a corda estendida e a corda relaxada do arco. Entre as duas macropercepções passamos por uma infinidade de estados inter­mediários aos quais corresponde uma infinidade de percepções infinitesimais.

Essas pequenas percepções diferem das precedentes porque não compõem nenhuma macropercepção visível. Eis como Leib­niz as descreve no Prefácio aos Novos ensaios sobre o entendimento humano: “São elas [as pequenas percepções] que formam esse não sei o quê, esses gostos, essas imagens das qualidades dos sentidos, claras no conjunto, mas confusas nas partes, essas impressões que os corpos vizinhos provocam em nós, que envolvem o infinito, essa ligação que cada ser possui com o resto do universo. Podemos dizèr que, por conseqüência dessas pequenas percepções, o pre­sente está pleno do futuro e carregado do passado, que tudo é (<t u j j . t t v o i c x t to c v t c c , como dizia Hipócrates), e que, na menor das substâncias, os olhos tão penetrantes quanto os olhos de Deus po­deriam ler toda a sucessão das coisas do universo.”

As pequenas percepções asseguram também a continuidade entre a consciência e o inconsciente, continuidade na escala das percepções das mônadas. H á infinitos graus de consciência por­que há uma infinidade de estados intermediários - desde aquele das mônadas “todas nuas” , da MonadoLogia, no qual a consciência é capturada por uma espécie de turbilhão e de vertigem, até os es­tados de percepção clara e distinta que excluem toda confusão.

Podemos, então, considerar dois tipos de pequenas percep­ções: a) as percepções infinitesimais, imperceptíveis, visto que são pequenas demais para serem percebidas. Temos uma consciência subliminar delas, como aquela que acompanha o barulho das on­das pequenas; b) as pequenas percepções, que recobrem as des- continuidades aparentes entre as percepções. De fato, ainda que a questão não seja tratada por Leibniz, não podemos reduzir esta ca­tegoria à primeira, em nome do continuum, cujo tecido é formado

Parece um atomismo, assegurado pela descontinuidade das pequenas percepções, na ordem do infinitesimal. Não se vê aí uma dinâmica que ultrapasse os estados intermediários...
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precisamente pelas pequenas percepções. Mas isso remete a uma discussão sobre o continuum no campo da doutrina leibniziana - o que não nos interessa no momento.

4. Aproveitemos essa questão, em todo caso, para alargar a noção de pequena percepção, fazendo com que ela não dependa mais unicamente da diferença de escala. Dito de outra maneira, enquanto Leibniz não distingue a percepção comum da pequena percepção, graças à escala de grandeza que as separa (provocando outras linhas distintivas), tentaremos definir a percepção mínima por sua natureza, muito diferente desta da macropercepção.

Tomemos um rosto e, sobre esse rosto, um sorriso. O sorriso se quer amistoso e, entretanto, percebemos nele um “não sei o quê” que nos revela exatamente o contrário: ele esconde uma anti­patia profunda, mesmo uma hostilidade. Todavia, apenas um olhar penetrante captura o deslocamento entre aquilo que o sorri­so pretende exprimir e o que realmente exprime. Esse desloca­mento é percebido graças às pequenas percepções: trata-se de um sorriso “imperceptivelmente” hipócrita.

Uma análise simples mostraria que o deslocamento se estabe­lece entre o contexto'habitual das linhas de rosto que acompa­nham esse sorriso e um novo contexto criado por uma ínfima mudança de um ou dois elementos; mudança não suficientemen­te grande para que a qualidade do sorriso se altere de maneira per­ceptível e já bastante eficaz para fazer surgir uma diferença de contexto que perturbe (“imperceptivelmente”) a percepção do sorriso. Dito de outra forma, as pequenas percepções nascem de um deslocamento entre dois contextos:'com efeito, a sombra que nasceu nesse sorriso não remete a um outro sorriso que se dissimu­laria por trás de uma aparência, mas a uma diferença interna sur­gida na própria forma do sorriso sincero. Orá, essa diferença interna - que se dissolve em uma diferença entre dois contextos: um, habitual, tornado virtual; o outro, novo, tornado atual - não

Não se trata de uma diferença de grau, mas uma diferença de natureza entre a micro e a macropercepção.
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tem forma visível, já que essa “sombra” de sorriso é apenas uma se­paração, uma diferença, um vazio.

Entretanto, “percebemos” alguma coisa que se prende ao sor­riso visível. Chamemo-la de o contorno de um vazio.

Se tomarmos o exemplo de uma palavra que repentinamente acumula pequenas percepções que lhe invertem o sentido, tería­mos um deslocamento entre dois contextos (de entonações, de gestos, de sons, mesmo de situações globais de enunciação) e obte­ríamos pequenas percepções de silêncio, de separações entre as pa­lavras ou as frases, ou entre os contextos. A sombra imperceptível (e, no entanto, percebida), lançada sobre essa palavra, poderia ser chamada de o contorno do silêncio.

O que supõe que capturaríamos mais do que uma seqüência isolada de pequenas percepções; capturaríamos quase uma forma (um “contorno”). Precisaríamos dizer que se trata, provisoriamen­te, da forma de uma ausência.

Como diz Leibniz, as pequenas percepções são “essas impres­sões dos corpos vizinhos que envolvem o infinito” . Elas compõem nuvens ou “poeiras” (expressão de Leibniz). Preferimos chamar es­sas poeiras de atmosferas. Pois as pequenas percepções fornecem impressões confusas mas globais, em constante movimento. E, antes de compor macropercepções - antes que as miríades de pig­mentos de amarelo e de azul que se agitam se misturem para definir o verde —, há uma espécie de tendência anunciada e pres­sentida no turbilhão das pequenas percepções: isso é a atmosfera.

Essa tendência é, na verdade, uma força. Ela possui uma in­tensidade e uma direção. Percebemos a natureza da força na at­mosfera que já anuncia o que vai se mostrar do ponto de vista da macropercepção. No entanto, em sua indeterminação, a atmosfe­ra já possui um vetor, um quantum intensivo, um tônus.

Precisaríamos dizer que a atmosfera desenha a forma da força. O “não sei o quê” que capturamos no sorriso amistoso é uma at­mosfera precisa, a forma de uma força que atravessa as pequenas

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percepções, E se a sombra do sorriso esboça o contorno de um va­zio, é justamente a forma desse contorno que nos remete à forma da força.

5- Binswanger e Tellenbach, depois Deleuze e Guattari, se in­teressaram pela noção de atmosfera. Precisemos, então, alguns as­pectos de tal noção.

Se a atmosfera é feita de tensões entre micropercepções é por­que resulta de investimentos de afeto que abrem os corpos. Na verdade, é o corpo que “percebe” a atmosfera, sua densidade, sua porosidade, sua rarefação, seu teor de acolhimento ou de exclusão, sua velocidade de transformação, sua rugosidade ou, às vezes, seu aveludado que nos atrai como uma doença. Se o corpo percebe to­das essas modulações da força é porque está aberto, ou seja, suas próprias forças entraram em contato com as forças da atmosfera. Pois a atmosfera induz à abertura dos corpos, convidando à osmo­se. Ela constitui um meio que impregna imediatamente os corpos, quebrando a barreira que separa o interior do exterior, um corpo de outro corpo, os corpos e as coisas.

Eis o que a distingue nitidamente do contexto que é visível e redutível a um conjunto de relações ou de signos, que é semiotizá- vel. A atmosfera é infra-semiótica, ela se estende em um con- tinuum. Compreendemos, então, que o ínfimo deslocamento dos contextos pode produzir pequenas percepções: através da fratura, assim aberta, exalam forças rapidamente captadas pelas forças do corpo. Há toda uma dinâmica da osmose do exterior e do interior (“um interior coextensivo ao exterior” , diz Deleuze): a reversão do espaço interior para a superfície da pele, a dilatação do espaço do corpo (virtual, prolongando os limites do corpo para além da pele), o investimento e a quase-inscrição dos afetos nas coisas e nos corpos. A quase-inscrição ou, mais precisamente, a criação de um meio-entre as coisas e os corpos que pertencem a ele, já que a atmosfera é aérea. Os corpos estão semi-abertos na atmosfera. O

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investimento afetivo não se aplica exclusivamente a um objeto de­terminado: “está no ar” . (Mas uma atmosfera pode se formar en­tre dois corpos, como no encanto, no carisma, na sedução, na influência de maneira geral, ou na simples amizade. Mas então é porque esses corpos se dissiparam nas multiplicidades de “partícu­las” ou singularidades que constituem agora a atmosfera. Adora­mos ser afetados em mil pontos.)

Agora podemos compreender o que acontece quando, na per­cepção de um quadro, descobrimos as-estruturas escondidas sob as formas triviais. De repente, um deslocamento se estabelece en­tre essas formas e o seu novo contexto (que não é mais o da paisa­gem simplesmente visível). Eis as mesmas casas e os mesmos corpos em outros espaços e outras relações (que permanecem, no entanto, quase que inalteradas): da separação entre os dois contex­tos jorram infinitas pequenas percepções que compõem uma at­mosfera vibrátil. O quadro se encheu de vida. Capturamos sua potência precisa, a forma de suas forças, isto é, a curvatura (que não possui traçado figurai visível) que o movimento das pequenas percepções esboça na atmosfera.

Poderíamos continuar a descrição tentando nos dedicar à complexidade da percepção artística. Poderíamos mostrar, por exemplo, como na terceira fase, na fase em que cessa o desloca­mento entre os contextos, a forma das forças se torna força dás for­mas; e como essa inversão jamais se completa, como a força das formas inverte o seu giro, de novo e necessariamente, na forma das forças, reconstituindo a atmosfera e o deslocamento entre o trivial e o não trivial; como esse movimento de oscilação se acelera, tor- nando-se quase instantâneo, e como se quebra ou se estabiliza de­finitivamente; como a captura da atmosfera induz a uma osmose com o espectador (o que Duchamp já havia descrito como uma osmose “material” : o afeto do material se mistura ao afeto investi­do pelo artista ou pelo “observador”); e como essa osmose produz

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um devir-forma intensivo - isso tudo a parar ca Icèra c-t :;rr^à õí uma força.

Preferimos evocar um outro problema: se a percepção da obra de arte é antes de tudo capturada pelo contorno de um vazio ou pelo contorno de um silêncio — de onde jorra a forma singular de uma força então é preciso entender essa osmose estética (que chamaríamos tradicionalmente de “comunicação”) como transfe­rência e mistura de vazios.

Primeiramente, queremos precisar que a forma de uma força supõe o contorno de um vazio. Por não possuir traçado figurai, ela constitui a qualidade intensiva própria à atmosfera do quadro. Ela não delimita um contorno (nem se encontra encerrada nele). Pelo contrário, em seu espaço singular, não encontra bordas (porque há sempre o infinito na percepção estética), ainda que seja sempre limitada a partir do exterior (pelo objeto que está no espaço obje­tivo; e pelas figuras triviais que não deixam de ser vistas). Se a res­peito da forma trata-se agora de uma força e não de uma figura, é porque entre a não-delimitação interna da atmosfera e seus limites externos se estende uma faixa vazia, uma separação não visível: o intervalo que marca a autonomia paradoxal de uma força que pos­sui uma “forma” . O intervalo é o contorno do vazio, que é o vazio de uma distância (que destaca a atmosfera intensiva do quadro de sua percepção trivial). E esse vazio que abre tensões'que povoam a atmosfera; e é porque ele separa a força das formas triviais e das re­presentações (que possuem um poder entrópico, absorvendo e dissolvendo a energia) que tal força tem uma forma, a forma de um vazio de formas (que parte da separação entre dois contextos). Daí, então, a intensidade pura, concentrada, amplificada, “satura­da” , da força que confere toda a pregnância perceptiva à suaa r 55rorma .

Mas o que é esse vazio? É preciso dizer que esse vazio - uma diferença, um intervalo, algo irrepresentado - é o que se acha “ ins­

da ideia de forma de
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crito” na obra como não-inscrição. É o lugar de uma não-ins- crição.

O que é uma não-inscrição? Tal idéia vem de Ferenczi, e sere­mos bastante breves ao evocá-la. Há traumas psíquicos tão in­tensos que provocam um efeito de sideração. Tudo se apaga da consciência e do inconsciente, o trauma não se inscreve. No seu lu­gar surge um “branco psíquico” . De outra maneira, no que diz res-- peito à transferência e à contratransferência, Pierre Félida se. ocupou dessa noção de “branco psíquico” . A dificuldade do ana­lista, insiste Ferenczi, surge da ausência de qualquer traço do trau­ma, até mesmo no inconsciente.

Transformando-se essa idéia de não-inscrição, é possível le­vá-la para outros domínios. Por exemplo, ao próprio cerne da vida social. O horror das imagens dos massacres, vistos na televisão, ra­ramente se inscrevem - ainda que elas não deixem de ter seus efei­tos. E porque, curiosamente, elas sideram, no sentido de Ferenczi, ultrapassam o limiar atual de tolerância ao sofrimento, mas tam­bém porque as condições midiáticas de comunicação das imagens provocam uma anestesia diante das imagens do sofrimento dos outros. Assistimos a elás, e aquilo que deveríamos experimentar não é mais experimentado. Não é mais o trauma o que sidera, so­mos nós que já estamos, de antemão, siderados e anestesiados, imunizados contra os traumas e a violência. Tornamo-nos bran­cos psíquicos; ou melhor, praias cada vez mais extensas de brancos psíquicos invadem nossa consciência e nosso inconsciente.

Trata-se de um fato banal e bastante óbvio. Poderíamos partir de pequenos fenômenos tão sutis quanto aquele que Walter Ben- jamin descrevia quando, ao falar dos transportes públicos, notava que, sem dúvida alguma, os seres humanos jamais conseguiam se manter sentados um em face do outro, sem se falar, por muito tempo. O não-evento, a evaporação do sentido, a não-inscrição se tornaram constantes na vida cotidiana do homem ocidental.

Fédida
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Voltemos à arte. O que é, então, esse lugar vazio cuia rorma da força, graças às pequenas percepções, compõe um “contorno"? O que é o contorno do vazio ou do silêncio? E o lugar da não- inscrição. E isso não significa que a obra de arte inscreva o que foi apagado como inscrição, mas que ela inscreve o lugar perdido da não-inscrição.

A arte inscreve o lugar da não-inscrição, abre-o, cerca-o e o defme. O que nos toca em uma tragédia de Sófocles não é a nossa “identificação” com os personagens, mas a abertura, em nós, de múltiplos possíveis (que eventualmente conduzem a um de- vir-personagem). (Empregamos “possível” aqui em um sentido li­geiramente diferente do “virtual” deleuzeano; em todo caso, no sentido de um devir-outro próprio à singularidade.)

O lugar desses possíveis, o movimento que permitirá os devi- res-outro reais, traça seu contorno: eis a inscrição do lugar da não-inscrição. Então, a peça de Sófocles não é mais do que o jogo das inscrições possíveis, ou dos múltiplos devires-outro que se des­dobram a partir desse lugar.

Então, o que uma obra de arte apresenta de invisível? Nada que não vejamos. Nem a ausência do visível, nem mesmo sua não-inscrição. A extrema presença perceptiva das formas, o relevo das cores, a plenitude das superfícies e dos volumes extraem sua pregnância do movimento invisível de forças que inscrevem um branco (a não-inscrição). Pois esse lugar não é o negativo de um território visível, determinável, mas o espaço positivo “desenha­do” por forças e do qual elas emanam. O brilho intenso e extraor­dinário das cores de Bonnard vem de um movimento que nos faz entrar no quadro enquanto ele entra em nós, gerando nossos pen­samentos e nossas emoções. Graças à sua potência, ele nos obriga a descobrir possíveis insuspeitados, suscitando movimentos de es­paço que perturbam nosso conhecimento e nossa vida.

Em suma, ao inscrever o lugar da não-inscrição, não se trata de preencher um vazio ou de traçar fronteiras para aquilo que não

Page 16: 1- edição - 2005 - colapsi.files.wordpress.com · Razão Nômade 21 Este terceiro nível de percepção, que poderíamos chamar de “estético” ou “artístico”, comporta

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as possui, ou ainda de definir o indefinido, mas de traçar um pla­no de movimento; não uma superfície de inscrição, mas a área de uma circulação infinita de forças, em que o possível se reúne ao in­finito.