Militância anarquista e a imaginação da revolução social (1917-1924)
Ricardo Ferrini Garzia∗
Ao longo da Primeira República, os grupos de militantes que atuavam no eixo Rio-São
Paulo constituíram a voz antagônica mais radical ao sistema político nacional – marcado pelas
relações de compromisso próprias da feição assumida pela fórmula republicana em solo
brasileiro, cuja tradução máxima seria o arranjo político denominado “política dos estados”,
elaborado na presidência de Campos Sales (1898-1902) –, traçando uma forma de contestação
inflexível contra as bases de legitimação de seu processo político, ao pregarem, entre a classe
operária, a favor de uma sociedade livre, sem governos, leis e propriedade.
Não por menos, as autoridades públicas, amparadas pelo grande empresariado e por
amplos setores da imprensa, desencadearam contra o anarquismo e seus propagadores um
verdadeiro “front ideológico” na conjuntura do pós-Grande Guerra (Gomes, 2005: 102). Sob a
intensidade das agitações operárias, entre os anos de 1917 e 1924, o discurso das autoridades
se valeu de um “mito mobilizador” (Girardet, 1987: 49) – que imputava aos anarquistas uma
trama conspiratória cujo objetivo era difundir entre os trabalhadores nacionais o radicalismo
característico das lutas sociais europeias, corrompendo o ordeiro modo de vida brasileiro –
capaz de manipular a opinião pública brasileira contra a militância libertária – além de
dissimular a “questão social” nacional –, identificando o anarquismo com o estrangeiro – um
“elemento flutuante”, ameaçador e imprevisível –, responsável pela inquietude sociopolítica.
Cercados pelos infortúnios da repressão desencadeada pelo poder constituído, que os
temiam e jamais os perderam de mira – como atestam os arquivos das polícias políticas (cf.
Parra, 2003) – esses militantes insistiram em lançar os lampejos e esperanças intermitentes de
suas “palavras-vaga-lumes” (Didi-Huberman, 2011: 131), nos seus órgãos impressos, como
nas páginas do jornal A Plebe, bem como em suas outras diversas manifestações culturais,
reivindicando uma sociedade mais próspera para os trabalhadores – mas não apenas para eles
–, que em sua concepção se faria em bases anárquicas, resistindo e ousando imaginar outro
mundo – e imaginar, diria Didi-Huberman, é fazer política – cuja instauração se faria no
futuro.
∗
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(PPGHIS-UFRJ), bolsista da CAPES.
Conduzidos pela intenção de afirmar uma identidade para a classe trabalhadora, a
militância anarquista elaborou e cultivou um universo cultural independente, com suas
manifestações próprias, que buscavam tocar os mais diversos aspectos da vida operária, como
a imprensa, o teatro social e o sindicato – além das escolas de ensino racionalista, dos centros
culturais e das bibliotecas de estudos sociais. Por meio dessas manifestações, os militantes
pretendiam instaurar entre os trabalhadores uma comunidade de imaginação social (Baczko,
1985: 324), assentada sobre as experiências e esperanças compartilhadas pela classe,
compondo uma linguagem capaz de influenciar e orientar a sensibilidade coletiva. Ao influir
no imaginário dos trabalhadores, lhes transmitindo o seu ideário, a militância libertária
intencionava, a partir desse sistema de representações coletivas, conferir certo sentido ao
mundo operário, traduzindo numa linguagem os seus anseios, constituindo uma realidade
paralela que se constrói sobre a realidade. Assim sendo, tal como afirmado pela historiadora
Sandra Jatahy Pesavento, “na construção imaginária do mundo, o imaginário é capaz de
substituir-se ao real concreto, como um seu outro lado, talvez ainda mais real, pois é por ele e
nele que as pessoas conduzem a sua existência” (Pesavento, 2008: 47-48).
Dentro desse universo cultural independente, os festivais de propaganda forneciam
oportunidades para o entretenimento operário, impregnado pelo discurso militante,
constituindo uma ocasião para a congregação da “família operária” e colaborando, assim, para
a difusão da representação da identidade operária elaborada pelos anarquistas. Composto,
geralmente, por um programa de quatro partes, as festividades eram abertas com a execução
de uma música característica do movimento operário por uma orquestra, poderia ser o Hino
aos Trabalhadores, mas a preferida era A Internacional. Em seguida, era realizada uma
conferência por um militante, que discorria sobre temas da atualidade, ou, por exemplo, sobre
temas da história das lutas operárias – como os “Mártires da liberdade”, por Florentino de
Carvalho, em 7 de junho de 1924 – e questões da doutrina anarquista – como “Nós e os
outros”, por Fabio Luz, em 12 de agosto de 1922.
A terceira parte consistia na encenação de uma peça por um grupo de teatro amador. O
teatro social constituía um elemento essencial dentro do programa cultural elaborado pelos
anarquistas para a construção de uma identidade própria para a classe trabalhadora, sendo
tomado como “instrumento didático de conscientização” (Hardman, 2002: 102). O espetáculo
libertário propunha como questão fundamental despertar a comoção da plateia a partir da
identificação de experiências em comum, estimulando um diálogo, “que transcende a
comunicação explícita do texto encenado” (Lima & Vargas, 1987: 186-187), entre o palco e a
assistência, tendo como escopo a promoção da formação doutrinária e a educação moral dos
trabalhadores a partir dos dramas encenados.
Após o teatro, as festividades eram encerradas com um controverso baile, alvo de
constantes polêmicas entre os militantes. Em sua essência, os festivais de propaganda
pretendiam “consolidar padrões de atitudes operárias no seio da própria classe” (idem: 203),
sob a orientação libertária.
Os sindicatos, por sua vez, providenciavam uma educação prática aos trabalhadores –
inflamando-lhes a vontade de lutar por melhorias – reivindicada por militantes como o
italiano Errico Malatesta (Malatesta, 1918: 14-15). Ainda que fosse alvo de críticas por parte
dos militantes, digamos assim, mais ortodoxos, a atuação libertária entre os sindicatos era
considerada essencial aos propósitos propagandísticos da anarquia, como defendia Malatesta,
para quem o não envolvimento na organização sindical “condenaria o movimento anárquico a
uma perpétua esterilidade” (idem, 1920: 2). O sindicato conferia aos militantes um “vetor
social de inserção” (Samis, 2007: 100), lhes fornecendo um espaço de diálogo direto e
constante com o operariado, propiciando a promoção de uma nova sociedade, sobre chão
anarquista.
Imaginando a revolução
O imaginário anarquista era impregnado pela ideia da revolução social, momento da
radical transformação da sociedade e tempo de redenção para os trabalhadores. Portadores do
que definiam como uma mentalidade nova – a mentalidade anarquista –, os militantes se
afirmavam iconoclastas, apresentando-se, pois, como regeneradores da humanidade (Soares,
1917: 4). A restauração da sociedade teria de lançar por terra a ordem regida pela propriedade
e, com ela, derribar todas as instituições que lhe garantiam sustentação, constituindo, portanto,
uma ruptura brusca – como diria o militante Edgard Leuenroth, um novo 13 de maio, ocasião
da conquista da alforria derradeira pelos trabalhadores (Leuenroth, 1917: 1).
No imaginário da militância libertária a única maneira possível de ruptura com a
sociedade capitalista, e a consequente transformação social, era através da revolução.
Contrária ao sistema de representação parlamentar clássico da fórmula liberal, a concepção
anarquista deslocava a demanda de cidadania política do centro de suas propostas, afastando-
se radicalmente do modelo político vigente, por não perceber nele a possibilidade de
transformar a sociedade. O rompimento do poder estabelecido não poderia ser realizado de
forma branda, tendo em conta o caráter extremamente antitético de suas estruturas em relação
ao sonho da comunidade ansiada pelos libertários. O tempo de esperança antevisto pelos
militantes teria de nascer a partir de uma profunda transformação do mundo presente, num
processo onde o embate entre forças sociais tão contrastantes – trabalho × capital – seria
inevitável, apresentando a violência como signo – ou mesmo condição – para a satisfação do
sonho anarquista. Não havia hipótese de conciliação entre a sociedade capitalista e o discurso
anarquista, em razão da essência contraditória de suas propostas, existindo mesmo uma
relação de “recíproca negação” (Addor, 2009: 28).
Como diria Saverio Merlino – em seu folheto Por que somos anarquistas? – dois
caminhos se abriam diante dos operários, isto é, o das reformas e o da revolta (Merlino, 1901:
21). Entretanto, aos operários, “o único remédio para os seus males”, seria a revolução –
“primeiro passo para a sociedade futura” –, uma vez que as classes dirigentes “só cedem à
força” (idem: 24-25). Para Errico Malatesta, a luta contra o governo seria resolvida, “em
última análise, em luta física, material”, sendo forçoso opor “às carabinas e canhões, que
defendem a propriedade, os melhores meios que o povo puder achar para vencer a força com a
força” (Malatesta, 1918: 19 e 21). Conforme o italiano, a revolução constituiria um estado de
legitima defesa no qual, “contra a violência que oprime”, os trabalhadores deveriam aprovar
“a violência que liberta” (idem, 1924: 4).
Em seu folheto Violencia y anarquismo, Gastón Leral versa sobre a utilidade da
violência a favor da obra revolucionária pelos libertários. Para ele, sob o regime da
propriedade, a população sofria uma série de constrangimentos contra a sua “soberania
individual”, tornando-a vítima de uma agressão sistemática e perene, sobre a qual tinha o
direito de defender-se. Tratava-se, pois, de empregar a violência que liberta sobre a violência
que escraviza, em suas palavras:
la violencia anárquica tiene como fin único repeler la violência autoritaria. (...) La violencia anárquica es, pues, puramente defensiva; tiene por misión la salvaguardia de nuestra libertad, de nuestro bien estar, de nuestra dignidad; no ataca, repele el ataque contra-atacando a veces; su finalidad es la destrucción de las fuerzas de opresión (Leral, 1925: 4-5).
Leral não deixa de alertar para a essência autoritária da violência e para os perigos de sua
tendência liberticida, observando, entretanto, que “un determinismo inexorable nos obliga a
hacer uso de ella” (idem: 20).
A revolução era um esforço de progressão que atacaria a prática da autoridade e a
propriedade em sua essência, devendo cumprir uma missão instauradora de maior justiça –
“en la equitativa repartición de los deberes y derechos” – e de maior liberdade – “por la
posible satisfacción de todas las aspiraciones, de todas las necesidades” (idem: 13). A
revolução seria a criação de um novo mundo, razão de toda doutrina e atividade libertária,
bem como de seus anseios, dando fim ao regime capitalista, se valendo da violência
libertadora. Conforme Leral: “Destruir es el medio, construir es el fin” (idem: 13).
Na representação da revolução pelos libertários, a construção do novo mundo é
constantemente acompanhada por imagens de destruição, traduzindo uma concepção a partir
da qual seria inconcebível o despertar da nova sociedade sem a completa e violenta redução
de sua antecessora. Conforme a historiadora Lily Litvak, a revolução e a utopia se entrelaçam
no discurso libertário, o que não deixa de ser traduzido em suas expressões culturais, sendo a
cólera dos tempos de transformação seguida pela serenidade, surgindo um mundo poético da
destruição, iluminado pela visão do futuro (Litvak, 1981: 381). Nas palavras de Litvak:
La utopia anarquista debe ser comprendida como metáfora doble, concebida tanto por esperanza como por desesperación. La visión del porvenir anarquista se teje en nombre de valores ideales; despreciados o traicionados en el presente, existentes a veces en el pasado, realizados en el futuro, pero siempre, el sueño de lo que vendrá, se opone a la pesadilla de lo que hoy domina. Por eso motivo, (...) la estructura de la sociedad perfecta se levanta sobre las humiantes ruinas del mundo capitalista y a la visión de la utopía, precede, como préambulo imprescindible, la Revolución Social. (idem: 371-372).
O professor José Oiticica manifesta a crença regeneradora libertária no poema A
destruição, colorindo-a com imagens carregadas por uma sanha violenta, metaforizando a
ideia da revolução na figura de um indômito Sansão:
Desejo ser Sansão; novo Sansão mais forte, Capaz de combalir a coluna inconcussa... Destruir para reerguer; pôr, no alfange da morte, O signo deste ideal que em meu ser se oura e aguça. Destruir, a ferro e a fogo, a prostituída corte Que vive do labor da turba que soluça. Sacerdotes cristãos, sou a espada da sorte Que, sobre a vossa cruz, afiada, se debruça! (Oiticica, 1919: 150).
Oiticica explicita a dupla metáfora que acompanha a representação da transformação social
libertária, elaborada sobre o par destruição/construção, permeando-a por espasmos de uma
violência vivificante – “Destruir para reerguer”. Além de sua intenção vivificadora, essa
violência que compõe a representação da ação revolucionária é também marcada por uma
cólera vingativa, como revelam diversos poemas.
Em Rebelião, de Ricardo Gonçalves, a “voz cheia de ameaças” dos desprotegidos
prenuncia a tormenta transformadora que há de fazer “cair aos pedaços” – “Numa ruína
espantosa” – a “sociedade corrupta”.
Ah! nesse grito funesto, Nesse rugido palpita Um rancoroso protesto; É o povo, a plebe maldita, Que sombria, ameaçadora, Nas vascas do sofrimento Mistura aos uivos do vento A grande voz vingadora. (...) Não tarda que chegue o instante Em que a turba se levante Sedenta, faminta e rota (Gonçalves, 1917: 2).
Em Ódio em marcha, de Miranda Santos, é a “voz da justiça” que surge do “furor das turbas
desgrenhadas”, tal como “um ódio rubro de gigante”, projetando “nas sombras do futuro” –
nas campanhas revolucionárias – “Ensanguentadas alucinações” (Santos, 1919: 4). Tom
semelhante compõe Abre! Eu chamo-me a Anarquia!, de Gomes Leal, onde a anarquia,
conduzindo a plebe produtora, vítima das restrições de uma amarga sobrevivência, desafoga
os infortúnios dos de baixo numa fúria arrebatadora.
Eu sou o turbilhão colérico e profundo, que vem varrer a terra, o ralo nunca visto. Venho cheio de pó, cansado, todo imundo. Em toda a parte o mal! Em toda a parte o Cristo! Sou quem trago a sentença escrita contra o mundo, e que açoito o cavalo em sangue do Anticristo! Sou quem trago comigo os rotos esquadrões da plebe esgadelhada, anônima, assassina. Sou quem há de varrer reis e religiões, a indignação de baixo, a cólera ferina (Leal, 1917: 2).
Neno Vasco, em Marselhesa do fogo, traça imagens de uma grandiosa exaltação regeneradora
– protagonizadas por uma chama transformadora – revelando a dupla qualidade assumida pelo
fogo, elemento composto por uma força tão destruidora, quanto vivificadora. A celebração do
resplendor de uma nova luz, sob o deleite revolucionário, ganha formas de um ritualismo
pagão, onde os párias da sociedade são convidados aos festejos em torno da fogueira que
consome a velha formação social, exultando entre cantos e danças pela promessa de uma nova
vida.
A chama a crepitar! Em círculo formai! Dançai! Dançai! De archote aceso, o mundo iluminai! (...) A chama heroica sobe, voa Sobre as pocilgas rubro véu; E a crepitar o fogo entoa Uma canção que sobe ao céu Quanta miséria desinfeta A chama audaz de rubro tom!... O burgo é velho, o fogo é bom A chama sobe em linha reta... O burgo todo se esboroa A chama varre a podridão, Oh! como a terra será boa! Oh! quantas messes brotarão! Colhe as panteras no covil, Queimada vá! Colhe as serpentes! A chama tem línguas frementes, E põe no céu um tom febril... (...) E enquanto o burgo se reduz À brasas rubras fumegantes, A chama tem tons fulgurantes, Duma potente e nova luz. (...) Ó párias nus, vinde dançar, Dançar em roda correr, cantar, Que esta fogueira é vossa festa! (Vasco, 1923: 13-14).
Na representação visual da revolução, surge como usual a sugestão do embate entre o
regime social vigente – simbolizado a partir de personagens que traduzem as diversas
instituições que lhe garantem sustentação – e o ideal revolucionário. Como já afirmamos a
concepção libertária da regeneração social não se fazia sobre bases conciliatórias, logo, a ideia
do confronto não se faz ausente nas ilustrações anarquistas. Há na composição de suas cenas
certa intenção de ação, impregnando-as de tensão, impondo-se a anarquia sobre as ruínas da
antiga formação social. A revolução apresenta-se nessas ilustrações habitualmente de forma
alegórica, geralmente sob uma aparência feminina – podendo representar a anarquia, a nova
era, a revolução social...
É o caso da figura I, na qual uma musa revolucionária conduz a transformação social,
empunhando um archote que irradia a luz de uma nova era. A serenidade de seu semblante
contrasta com a tensão da cena, revelando a altivez do ideal anárquico que surge sob os
destroços da velha sociedade, instaurando um novo mundo. As marcas do antigo regime
social restam sob os seus pés – entre as quais identificamos um rosário, uma bolsa cheia de
moedas, uma coroa e um canhão – e inabalável a musa segue seu caminho, não arrefecendo
frente aos ataques desferidos pelas forças que buscam reprimi-la – no caso dois clérigos que
buscam constranger sua ação. Cercada por olhares apavorados ela expõe a nudez de seus
seios, transmitindo a correção moral de sua intenção. Coberta apenas por um suave véu, que
lhe guarda o sexo, a austeridade dessa musa guarda um evidente contraste com a faustosa
vestimenta dos clérigos que a espreitam.
A Plebe, São Paulo, 12/04/1919. p. 1 – Fonte: Arquivo de Memória Operária do Rio de Janeiro
Na figura II é a própria revolução social que está representada sob uma forma
feminina gigantesca, traduzindo tanto a ansiedade pela transformação, quanto a robustez do
ideal e a grandiosidade da obra revolucionária. Publicada na capa do jornal A Plebe, no 1° de
maio de 1919 – o que lhe aguça o significado –, a ilustração revela o ânimo despertado pela
Revolução Russa entre os libertários, compondo uma tradução da esperança que então tomava
o espírito militante. Evento essencial por incidir de forma determinante sobre a crença
revolucionária, a Revolução Russa tornou-se exemplo e fonte animadora do sonho da
regeneração social entre o movimento anarquista nacional. Desde então, avivou-se entre os
militantes a fé no iminente nascimento de um novo mundo – que a partir das geladas estepes
russas se alastrava sobre o continente europeu e já se fazia sensível nas margens brasileiras do
Atlântico, tal como exemplificado pela insurreição anarquista de novembro de 1918 na cidade
do Rio de Janeiro (cf. Addor, 2002).
A Plebe, São Paulo, 01/05/1919. p. 1 – Arquivo Edgard Leuenroth, Unicamp
A composição é protagonizada pela revolução social, sob a forma alegórica de uma
imensa figura feminina, que em sua marcha altiva sobre o globo, desde a Rússia, rompe
fronteiras. Condutora de uma nova era, ela desperta tormentas que prenunciam a derrocada do
regime da propriedade e causam uma pavorosa agitação entre os seus favoritos, contra os
quais ela vai de encontro. A cena é bombástica, o conflito é inevitável. Essa majestosa figura
traz consigo uma turba exultante que, ao fundo, parece surgir do próprio fogo, lançando-se na
batalha sob um grande deleite. A excitação dessa multidão contrasta com a ansiedade do
exército de vilões sociais – entre os quais se destacam burocratas, juízes, clérigos, militares e
capitalistas – que guarda território e se arma para o embate.
Em ambas as ilustrações é curioso como o fogo surge como uma imagem simbólica
importante para o desenrolar de suas ações, iluminando o despontar de uma nova era, na
figura I, e animando o embalo revolucionário, na figura II. Carregado por uma ambivalência,
que lhe confere sua dupla força, o fogo surge como elemento capaz de produzir o ocaso da
velha sociedade, fazendo despertar de suas cinzas um novo mundo.
Nas representações por nós aqui analisadas, ao imaginarem a satisfação do sonho
revolucionário – seja sob a forma literária ou visual –, os anarquistas coloriram-no com traços
que expressavam, ou ao menos sugeriam, a ansiedade por embates violentos. Na concepção
libertária a transformação social não resultaria a partir da harmonização de interesses tão
contrastantes. A mudança teria de dar-se de maneira brusca, de forma que de um caos
apocalíptico desabrocharia uma era de sonhos e esperanças. Tal compreensão encontra
tradução tanto na representação da revolução, quanto na teorização anarquista. Entretanto, ao
passo que em sua construção teórica os libertários buscavam legitimar o uso da violência
sobre bases que rejeitavam seus perigos liberticidas, em diversas representações, sobretudo
nas literárias, a aplicação da força assumia feições de certa irracionalidade, revelando uma
exaltação da ação violenta, caracterizada por Lily Litvak como um inebriante “espírito
dionisíaco” (Litvak, 1981: 374).
Ao longo dos anos, a militância anarquista teve de enfrentar estigmas como os de
assassinos e dinamiteiros, propagandeados pelos poderes constituídos e seus órgãos afins, que
buscavam reduzir seus discursos e ações à selvageria, marginalizando-os. Ainda assim, os
militantes não se constrangeram em lançar mão de uma concepção libertária para o uso da
violência, conferindo-lhe uma importante dimensão dentro dessa peça fundamental no
imaginário anarquista que era a revolução. A representação do ideal revolucionário, fosse ela
visual ou literária, proporcionava uma tradução do sonho de constituição de um mundo que
oferecesse aos trabalhadores algo além da amargura da sobrevivência.
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