ROSE, Nikolas. Inventando nossos eus. In.: SILVA, Tomaz Tadeu. (Org.). Nunca fomos humanos. Belo Horizonte: Autntica, 2001. p. 137-204.
Inventando nossos eus
Nikolas Rose
A idia de "eu"1 entrou em uma crise que pode muito bem ser irreversvel. Os
tericos sociais tm escrito inmeros obiturios da imagem de ser humano que animou
nossas filosofias e nossas ticas por tanto tempo: o sujeito universal, estvel, unificado,
totalizado, individualizado, interiorizado. Para algumas anlises, particularmente
aquelas inspiradas na psicanlise, essa imagem sempre foi "imaginria": os humanos
nunca existiram, nunca puderam existir, nessa forma coerente e unificada- a ontologia
humana necessariamente a ontologia de uma criatura despedaada no seu prprio
ncleo. Para outros, essa "morte do sujeito" , ela prpria, um evento histrico real: o
indivduo ao qual essa imagem do sujeito correspondia surgiu apenas recentemente, em
uma zona limitada de tempo-espao, tendo sido, agora, varrido pela mudana cultural.
No lugar do eu, proliferam novas imagens de subjetividade: como socialmente
construda; como dialgica; como inscrita na superfcie do corpo; [p.140] como
espacializada, descentrada, mltipla, nmade; como o resultado de prticas episdicas
de auto-exposio, em locais e pocas particulares.
Deve-se assinalar, entretanto, que no mesmo momento em que essa imagem do
ser humano declarada pass pelos tericos sociais, certas prticas regulatrias buscam governar os indivduos de uma maneira que est, mais do que nunca, ligada quelas
caractersticas que o definem como um "eu". Da mesma forma, as idias de identidade e
seus cognatos tm se colocado no centro de muitas das prticas nas quais os seres
humanos se envolvem. Na vida poltica, no trabalho, nos arranjos domsticos e
conjugais, no consumo, no mercado, na publicidade, na televiso e no cinema, no
complexo jurdico e nas prticas da polcia, nos aparatos da medicina e da sade, os
seres humanos so interpelados, representados e influenciados como se fossem eus de um tipo particular: imbudos de uma subjetividade individualizada, motivados por
ansiedades e aspiraes a respeito de sua auto-realizao, comprometidos a encontrar
suas verdadeiras identidades e a maximizar a autntica expresso dessas identidades em
seus estilos de vida. As imagens de liberdade e autonomia que inspiram nosso
pensamento poltico operam, da mesma forma, em termos de uma imagem do ser
humano que o v como o foco psicolgico unificado de sua biografia, como o locus de direitos e reivindicaes legtimas, como um ator que busca "empresariar" sua vida e
seu eu por meio de atos de escolha. A julgar pela popularidade das problemticas do psi
na mdia, pelas demandas por toda espcie de terapia e pela enorme quantidade de todo
[p.141] tipos de conselheiros, parece que os seres humanos, ao menos em certos locais e
entre certos setores, acabaram por se reconhecer nessas imagens e nesses pressupostos e
por se relacionar consigo mesmos e com suas vidas em termos anlogos - isto , nos
termos da problemtica do "eu". A disperso conceitual do "eu" parece caminhar em
paralelo com sua intensificao "governamental".
Teremos ns, ento, apesar dos argumentos dos filsofos e tericos crticos, nos
tornado "sujeitos psicolgicos"? hora de abordar a questo da "subjetividade" mais
diretamente. No em termos dos efeitos da "cultura" sobre a "pessoa" ou em termos de
uma "teoria do sujeito", mas buscando caracterizar, por assim dizer, o modo de ao das
diversas tecnologias psi de subjetivao. Isso nos obriga a um desvio por alguns textos
contemporneos sobre o "problema do sujeito", antes de retomar, em concluso, a uma
anlise do tipo de criatura que ns nos tornamos.
VOC MAIS PLURAL DO QUE PENSA
Gilles Deleuze e Flix Guattari foram, provavelmente, os autores que
formularam a alternativa mais radical imagem convencional da subjetividade como
coerente, durvel e individualizada: "Voc longitude e latitude, um conjunto de
velocidades e lentides entre partculas no formadas, um conjunto de afectos no
subjetivados. Voc tem a individuao de um dia, de uma estao, de um ano, de uma
vida (independentemente da durao); de um clima, de um vento, de uma neblina, de
um enxame, de uma matilha (independentemente da [p.142] regularidade). Ou pelo
menos voc pode t-la, pode consegui-la" (MP4, p. 49).3 Voc pode t-la - para Deleuze
e Guattari, os humanos, ao menos ao longo de um determinado plano de existncia, so
mais mltiplos, mais transientes e mais no-subjetivados do que somos levados a
acreditar. Alm disso, podemos agir sobre ns mesmos para habitar essas formas no-
subjetivadas de existncia. Eles chamam essas formas no-subjetivadas de
"hecceidades" - modos de individuao que no so os de uma substncia, de uma
pessoa ou de um sujeito, mas os de uma nuvem, de um inverno, de uma hora, de uma
data - "relaes de movimento e de repouso entre molculas ou partculas, poder de
afetar e ser afetado" (MP4, p. 47). Entretanto, em oposio a essa dimenso ou a esse
"plano de consistncia" - que no deve ser pensado como uma estrutura oculta, mas
como um plano "imanente", formado apenas da distribuio e da relao entre seus
efeitos - est um outro plano de organizao, estratificao, territorializao. De modo que o plano de organizao no pra de trabalhar sobre o
plano de consistncia, tentando sempre tapar as linhas de fuga, parar
ou interromper os movimentos de desterritorializao, lastre-los,
reestratific-los, reconstituir formas e sujeitos em profundidade.
Inversamente, o plano de consistncia no pra de se extrair do plano
de organizao, de levar partculas a fugirem para fora dos estratos, de
embaralhar as formas a golpe de velocidade ou lentido, de quebrar as
funes fora de agenciamentos, de microageciamentos. (MP4, p.
60). [p.143]
Se a experincia e a relao que temos com ns mesmos no de movimentos,
fluxos, decomposies e recomposies por causa da localizao dos humanos nesse
outro plano, esse plano de organizao que tem a ver com o desenvolvimento de formas
e com a formao de sujeitos, no interior de agenciamentos, 3 cujos "vetores, foras e
interconexes subjetivam o ser humano, ao nos reunir - em um agenciamento - com
partes, foras, movimentos, afectos de outros humanos, animais, objetos, espaos e
lugares. nesses agenciamentos que so produzidos os efeitos de sujeito, efeitos do fato
de sermos-reunidos-em-um-agenciamento. A subjetivao , assim, o nome que se pode
dar aos efeitos da composio e da recomposio de foras, prticas e relaes que
tentam transformar - ou operam para transformar - o ser humano em variadas formas de
sujeito, em seres capazes de tomar a si prprios como os sujeitos de suas prprias
prticas e das polticas de outros sobre eles.
Existem, sem dvida, muitas dificuldades com essas hipteses, as quais eu retirei
de seu contexto para utiliz-las em minha prpria teorizao.4 Estou menos preocupado,
de qualquer forma, em ser "fiel a Deleuze e Guattari" - o que seria uma aspirao
curiosa - do que em usar o que eles escreveram como uma plataforma de lanamento
para minha prpria questo: como os humanos so subjetivados, em quais
agenciamentos, e como podemos pensar as prticas psi como um elemento operativo no
seu interior. Aqueles que utilizam uma "teoria do sujeito" - cujas condies mesmas de
possibilidade se situam no interior de um certo regime histrico [p.144] de subjetivao
- para explicar esse regime de subjetivao encontram-se em uma situao contraditria.
Essas teorias da subjetividade so desenvolvidas para explicar eventos que aquelas
prprias teorias ajudaram a produzir, eventos que elas plantaram ao longo de nossa
existncia, localizando-os em uma interioridade que elas prprias ajudaram a cavar. Em
contraste com essa perspectiva, proporei, na discusso que se segue uma anlise da
subjetivao que no utiliza uma metapsicologia para explicar como, em um momento
histrico e cultural particular, nos tornamos o que somos.
O eu no deveria ser investigado como um espao contido de individualidade
humana, limitado pelo envelope da pele, que foi precisamente a forma como,
historicamente, ele acabou por conceber sua relao consigo mesmo. "Por que nossos
corpos devem terminar na pele? Do sculo XVII at agora, as mquinas podiam ser
animadas - era possvel atribuir-lhes almas fantasmas para faz-las falar ou movimentar-
se ou para explicar seu desenvolvimento ordenado e suas capacidades mentais. [...]
Essas relaes mquina/organismo so obsoletas, desnecessrias" (HARAWAY, 2000,
p. 101). De fato, a prpria idia, a prpria possibilidade, de uma teoria sobre um corpo
separado e envelopado, habitado e animado por sua prpria alma - "o" sujeito, "o" eu,
"a" pessoa - parte daquilo que tem que ser explicado, constituindo justamente o
prprio horizonte de pensamento que esperamos ultrapassar. Se os seres humanos
acabaram por se conceber como sujeitos, com um desejo de ser, com uma predisposio
ao ser, isso no surge, como alguns sugerem, de [p.145] algum desejo ontolgico,
sendo, em vez disso, a resultante de uma certa histria e de suas invenes (cf.
BRAIDOTTI, 1994b, p. 160). Escrever no esprito de Deleuze significa formular nossas
questes em termos daquilo que os humanos podem fazer e no daquilo que eles so.
Nossas investigaes deveriam buscar as linhas de formao e de funcionamento de
uma gama de "prticas de subjetivao" historicamente contingentes, nas quais os
humanos, ao se relacionarem consigo mesmos sob formas particulares, dotam-se de
determinadas capacidades, tais como: compreender a si mesmos; falar a si mesmos;
colocar a si mesmos em ao; julgar a si mesmos. Essa "aquisio" de capacidades d-
se em conseqncia das formas pelas quais suas foras, energias, propriedades e
ontologias so constitudas e moldadas ao serem utilizadas, inscritas e talhadas por
agenciamentos diversos e ao serem conectadas a agenciamentos diversos.
Dessa perspectiva, a subjetividade no deve, certamente, ser vista como um dado
primordial e nem mesmo como uma capacidade latente de um certo tipo de criatura. Ela
tampouco algo que deve ser explicado pela "socializao", pela interao entre, de um
lado, um animal humano biologicamente equipado com sentidos, instintos, necessidades
e, de outro, um ambiente externo, fsico, interpessoal, social, no qual um mundo
psicolgico interior produzido pelos efeitos da cultura sobre a natureza. Ao contrrio,
sugiro que todos os efeitos da interioridade psicolgica, juntamente com uma gama
inteira de outras capacidades e relaes, so constitudos por meio da ligao dos
humanos a outros objetos e [p.146] prticas, multiplicidades e foras. So essas variadas
relaes e ligaes que produzem o sujeito como um agenciamento; das prprias fazem
emergir todos os fenmenos por meio dos quais, em seus prprios tempos, os seres
humanos se relacionam consigo prprios em termos de um interior psicolgico: como
eus desejantes, como eus sexuados, como eus trabalhadores, como eus pensantes, como
eus intencionais - como eus capazes de agir como sujeitos (ver ROSE, 1995a, 1995b; cf.
GROSZ, 1994, p. 116). Uma forma melhor de ver os sujeitos como "agenciamentos"
que metamorfoseiam ou mudam suas propriedades medida que expandem suas
conexes: eles no "so" nada mais e nada menos que as cambiantes conexes com as
quais eles so associados (MP1, p. 16-37). Sugiro tambm que a multiplicidade de
linhas que tem reunido, em uma montagem, os seres humanos a diferentes relaes no
sculo XX - os "rizomas" que tm conectado, apreendido, diversificado, expandido,
divergido, formado pontos de entrada, pontos de separao e sada para os humanos -
deve algo importante a esses conceitos, aes, autoridades, estratificaes e ligaes
para os quais eu utilizei o termo psi.
A psicologia, como um corpo de discursos e prticas profissionais, como uma
gama de tcnicas e sistemas de julgamento e como um componente de tica, tem uma
importncia particular em relao aos agenciamentos contemporneos de subjetivao.
As disciplinas psi compreendem mais que uma forma historicamente contingente de
representar a realidade subjetiva. As disciplinas psi, no sentido que lhes dou aqui, tm
feito parte, de forma constitutiva, [p.147] de reflexes crticas sobre a problemtica do
governo das pessoas de acordo com, por um lado, sua natureza e verdade e, por outro,
com as exigncias da ordem social, da harmonia, da tranqilidade e do bem-estar. Os
saberes e as autoridades psi tm gerado tcnicas para moldar e reformar os eus, as quais
tm sido reunidas - em um agenciamento -com os aparatos dos exrcitos, das prises,
das salas de aula, dos quartos de dormir, das clnicas... Eles esto presos a aspiraes
sociopolticas, a sonhos, a esperanas e a medos, relativamente a questes tais como a
qualidade da populao, a preveno da criminalidade, a maximizao do ajustamento,
a promoo da autodependncia e da capacidade de empreendimento. Eles tm sido
corporificados em uma proliferao de programas, intervenes sociais e projetos
administrativos. Dessa forma, as disciplinas psi estabeleceram uma variedade de
"racionalidades prticas", envolvendo-se na multiplicao de novas tecnologias e em
sua proliferao ao longo de toda a textura da vida cotidiana: normas e dispositivos de
acordo com os quais as capacidades e a conduta dos humanos tm se tornado
inteligveis e julgveis. Essas racionalidades prticas so regimes de pensamento, por
meio dos quais as pessoas podem dar importncia a aspectos de si prprias e sua
experincia, e regimes de prtica, por meio dos quais os humanos podem fazer de si
prprios seres "ticos" e dotados de "agncia", definidos de modos particulares, como
pais, professores, homens, mulheres, amantes, chefes, e por meio de sua associao com
vrios dispositivos, tcnicas, pessoas e objetos. 8 [p.148]
NARRANDO O EU
Comecemos com a linguagem. Marcel Mauss, em seu famoso ensaio sobre a
histria da noo ou concepo de eu, argumentava que essa categoria havia surgido
apenas recentemente, ressaltando o associado culto do eu e o respeito pelo eu na lei e na
moralidade. Ele advertia, entretanto, que no ia dis-cutir a questo da linguagem. Ele
acreditava que no havia nenhuma tribo ou linguagem na qual a palavra "eu" no
existisse, na qual ela claramente no representasse algo, e que a onipresena do eu se
expressa tambm na linguagem, o que visvel na abundncia de sufixos posicionais
que dizem res-peito s relaes no tempo e no espao entre o su-jeito falante e aquilo
sobre o qual ele fala (MAUSS, 1979b, p. 61). Concedia-se, aqui, prpria linguagem,
efeitos subjetivantes, mesmo que os sujeitos assim formados nem sempre refletissem
sobre si mesmos como sujeitos no sentido que nossa cultura d a esse termo. Um
argumento diferente, mas relacionado, com respeito s propriedades subjetivantes da
linguagem, foi apresentado por mile Benveniste, o qual colocava uma grande nfase
na capacidade de criao de sujeito que tm os pronomes pessoais. Para Benveniste
(1971), o eu, como sujeito de enunciao, forma um locus de subjetivao, criando uma "posio de sujeito", um lugar no interior do qual um sujeito pode surgir. atravs da
linguagem, argumentava ele, que os humanos se constituem a si prprios como sujeitos,
porque apenas a linguagem que pode estabelecer a capacidade de a pessoa se colocar
como um sujeito, "como [p.149] a unidade psquica que transcende a totalidade das
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experincias reais que ela rene, produzindo a permanncia da conscincia". A
subjetividade " apenas a emergncia, no ser, de uma propriedade fundamental da
linguagem" (ibidem, p. 224). A linguagem tanto torna possvel que cada falante se
estabelea a si mesmo como um sujeito, ao se referir a si prprio como "eu" em seu discurso, quanto tornada possvel por esse mesmo fato. As formas pronominais so
um conjunto de signos "vazios", sem referncia a qualquer realidade, que se torna
"plena" quando o falante introduz a si prprio em uma instncia de discurso. Entretanto,
precisamente por causa disso, o lugar do sujeito um lugar que tem que ser
constantemente reaberto, pois no existe qualquer sujeito por detrs do "eu" que posicionado e capacitado para se identificar a si mesmo naquele espao discursivo: o
sujeito tem que ser reconstitudo em cada momento discursivo de enunciao (cf.
COWARD & ELLIS, 1977, p. 133).
Para o presente objetivo, entretanto, essa nfase nas propriedades subjetivantes
da linguagem concebida como um sistema gramatical, como uma relao entre
pronomes colocada em jogo em instncias de discurso, insuficiente. A subjetivao
nunca pode ser uma operao puramente lingstica. Devemos concordar, aqui, com
Deleuze e Guattari que a subjetivao nunca um processo puramente gramatical; ela
surge de um "regime de signos e no de uma condio interna linguagem" e esse
regime de signos est sempre preso a um agenciamento ou a uma organizao de poder
(MP2, p. 85-6). A subjetivao, dessa perspectiva, deve referir-se [p.150], antes de tudo,
no linguagem e s suas propriedades internas, mas quilo que Deleuze e Guattari
chamam, seguindo Foucault, de um "agenciamento de enunciao". Em A arqueologia do saber, Foucault props o termo "modalidades enunciativas" para conceptualizar as formas sob as quais a linguagem aparece em espaos e pocas particulares, formas que
so irredutveis s categorias lingsticas (FOUCAULT, 1986a). Quem pode falar? De
qual lugar fala? Que relaes esto em jogo entre, de um lado, a pessoa que est falando
e o objeto do qual ela fala e, de outro, aqueles que so os sujeitos de sua fala? Pode-se
pensar, aqui, no regime que, em qualquer espao ou poca particular, governa a
enunciao de um enunciado diagnstico na medicina, uma explicao cientfica em
biologia, um enunciado interpretativo em psicanlise ou uma expresso de paixo em
relaes erticas. Essas enunciaes no so colocadas em discurso por meio de "uma
funo unificante de um sujeito", nem tampouco produzem esse sujeito como uma conseqncia de seus efeitos: trata-se, aqui, de uma questo dos "diversos status, dos diversos lugares, das diversas posies" que devem ser ocupadas em regimes
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particulares para que algo se torne dizvel, audvel, opervel: o mdico, o cientista, o
terapeuta, o amante (FOUCAULT, 1986a, p. 61). Assim, as relaes entre os signos so
sempre reunidas no interior de outras relaes: "O agenciamento s enunciao, s
formaliza a expresso, em uma de suas faces; em sua outra face inseparvel, ele
formaliza os contedos, agenciamento maqunico ou de corpo" (MP2, p. 98). [p.151]
Dessa perspectiva, a prpria linguagem, mesmo na forma de "fala", aparece
como um agenciamento de "prticas discursivas", desde contar, listar, fazer contratos,
cantar, passando pela recitao de preces, at emitir ordens, confessar, comprar uma
mercadoria, fazer um diagnstico, planejar uma campanha, discutir uma teoria, explicar
um processo. Essas prticas no habitam domnio amorfo e funcionalmente homogneo
dc significao e negociao entre indivduos - elas esto localizadas em locais e
procedimentos particulares, os afectos e as intensidades que os atravessam so pr-
pessoais, elas so estruturadas em variadas relaes que concedem poderes a alguns e
delimitam os poderes de outros, capacitam alguns a julgar e outros a serem julgados,
alguns a curar e outros a serem curados, alguns a falar a verdade e outros a reconhecer
sua autoridade e a abra-la, aspir-la ou submeter-se a ela.
Logo retomarei a esse argumento. As a luz do que foi dito at agora, quero
examinar alguns desenvolvimentos recentes na prpria psicologia, os quais consideram
a subjetivao em relao linguagem e que buscam explicar o eu em termos de
"narrativa": as estrias que contamos uns aos outros e a ns prprios.
"No se trata apenas do fato de que dizemos nossas vidas como estrias: mas
existe um sentido importante no qual nossas relaes mtuas so vividas de forma
narrativa" (GERGEN & GERGEN, 1988, p. 18). Para aquelas pessoas que argumentam
dessa forma, os eus so realmente constitudos no interior da fala. A linguagem, aqui,
entendida como um complexo de narrativas do eu que nossa [p.152] cultura torna
disponvel e que os indivduos, utilizam para dar conta de eventos em suas prprias
vidas, para dar a si mesmos uma identidade no interior de uma estria particular, para
atribuir significado sua prpria conduta e s condutas de outros em termos de
agresso, amor, rivalidade, inteno, e assim por diante. Isto , falar sobre o eu tanto
constitutivo das formas de autoconscincia e de autocompreenso que os seres humanos
adquirem e exibem em suas prprias vidas quanto constitutivo das prprias prticas
sociais, na medida em que essas prticas no podem ser levadas a efeito sem certas
autocompreenses:
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Em vez de supor que as relaes das pessoas com a natureza e com a
sociedade so pouco ou nada afetadas pela linguagem no interior da
qual elas so formuladas, descobrimos que essas mesmas relaes so
constitudas pelas formas de fala que as inspiram, pelas formas de
responsabilizao [accountability] pelas quais elas so, por assim dizer, mantidas em bom estado... Se nos descobrimos agora como
vivendo a ns prprios como indivduos autocontidos,
autocontrolados, no devendo nada a outros por nossa natureza como
tal, acabamos por supor que esse um estado "natural" ou fixo das
coisas. Em vez disso, trata-se de uma forma de inteligibilidade
historicamente dependente, que exige, para sua sustentao
continuada, um conjunto de compreenses partilhadas. (SHOTTER &
GERGEN, 1989, p. x)
A subjetividade e as crenas sobre os atributos do eu, dos sentimentos, das
intenes, so entendidas aqui como propriedades no de mecanismos [p.153] mentais,
mas de conversas, de gramticas de fala. Elas so possveis e, ao mesmo tempo,
inteligveis, apenas em sociedades onde essas coisas podem, apropriadamente, ser ditas
por pessoas sobre pessoas. "A tarefa da psicologia a de expor nossos sistemas de
normas de representao... o resto fisiologia" (HARR, 1989, p. 34). As regras de
"gramtica" que dizem respeito a pessoas ou ao que Wittgenstein chamou de "jogos de
linguagem" produzem ou induzem um repertrio moral de caractersticas relativamente
duradouras, as quais so atribudas, nos habitantes de culturas particulares,
pessoalidade. "Nossa compreenso e nossa experincia de nossa realidade constituda
para ns, em grande parte, pelas formas pelas quais ns devemos falar em nossas tentativas [...] para dar conta dela" (SHOTTER, 1985, p. 168) e devemos falar dessa
forma porque as exigncias para cumprir nossas obrigaes como membros
responsveis de uma sociedade particular tm uma qualidade moralmente coerciva.
Essas noes de constituio das caractersticas da pessoalidade por meio da fala
so frequentemente consideradas como exigindo uma anlise mais explicitamente
"dialgica". Uma anlise desse tipo, argumenta-se, poderia, ela prpria, servir como
uma espcie de crtica de certas formas de falar o eu; a referncia ao indivduo solitrio
serve, de forma enganadora, para localizar no "eu" aquilo que , na verdade, o produto
de um conjunto de relaes: "ns falamos dessa forma sobre ns mesmos porque estamos presos no interior do que se pode pensar como um 'texto', como um recurso
textual desenvolvido de forma cultural - o texto do 'individualismo [p.154] possessivo' -
para o qual ns, aparentemente, deve-mos (moralmente) nos voltar, quando
confrontados com a tarefa de descrever a natureza de nossas experincias de nossas
relaes com os outros e com ns mesmos" (SHOTTER, 1989, p, 136). Procedimentos,
prticas ou mtodos, histrica e culturalmente desenvolvidos, para a produo de
sentido, "so colocados nossa disposio como recursos no interior das ordens sociais nas quais fomos socializados" (ibidem, p. 143) e ao lanar mo deles e ao us-los em
seus encontros, as pessoas vm a conhecer a si prprias como pessoas de um tipo
particular, por meio de um ato de reconhecimento mtuo. A anlise, aqui, toma, pois, a
forma de uma espcie de "etnografia interacional" das "formas de falar" que so
utilizadas pelas pessoas ao colocar em ao seus encontros sociais e nos quais elas
mutuamente constroem-se a si prprias por meio do gerenciamento do sentido.
Foi esse carter dialgico das autonarrativas, o fato de que elas so "sociais e
no individuais", que recentemente acabou por se destacar (cf. HERMANS &
KEMPEN, 1993). Por "social", como j se ter tornado evidente, esses autores querem
dizer "interpessoal" e "interacional". Assim, Mary e Kenneth Gergen argumentam em
favor da importncia do que eles chamam de "autonarrativas", estrias sobre os eus
culturalmente fornecidas, as quais, na passagem por suas vidas, fornecem os recursos
dos quais os indivduos lanam mo em suas interaes mtuas e com eles mesmos. "As
narrativas so, na verdade, construes sociais, sofrendo alterao contnua medida
que a interao avana [...]. A autonarrativa um implemento lingstico construdo
pelas pessoas, em [p.155] relaes para sustentar, reforar ou impedir uma diversidade
de aes [...]. As autonarrativas so sistemas simblicos utilizados para propsitos
sociais tais como justificao, crtica e solidificao social" (GERGEN & GERGEN,
1988, p, 20-1). Ao organizar, explcita ou implicitamente, suas relaes consigo
mesmos e com outros em termos dessas narrativas, um eu , por assim dizer, "gerado
pela estria", com o indivduo escolhendo entre as diferentes formas de narrativa s
quais foi exposto.
A "multiplicidade" do eu , aqui, compreendida como uma conseqncia da
proposio de que "o indivduo aloja a capacidade para uma multiplicidade de formas
narrativas" e domina uma gama de meios de se tornar inteligvel por meio de narrativas,
de acordo com as exigncias feitas na negociao da vida social por exemplo, de que a
pessoa se faa inteligvel como uma identidade duradoura, integral, coerente (GERGEN
& GERGEN, 1988, p. 35). Mas "embora o objeto da autonarrativa seja um s eu, seria
um engano ver essas construes como o produto ou a propriedade de eus isolados [...].
Thelmo Rodrigo Dutra Correa
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Ao compreender a relao entre eventos em nossa vida, apoiamo-nos no discurso que
nasce da troca social e que inerentemente implica uma audincia" (p.37), Trata-se de
uma socialidade que reforada pelas formas e respostas relacionais que certos modos
de falar sobre o eu recebem em trocas contnuas entre as pessoas de vrios tipos, nas
quais os indivduos negociam conjuntamente teorias particulares sobre si mesmos e
sobre outros, negociaes que assumem, elas prprias, certas formas estoriadas
culturalmente disponveis. [p.156]
Esses estudos sobre o eu, que o tomam como sendo construdo em narrativas
interacionais de acordo com os recursos culturais disponveis, certamente apreendem
algo de importante. Se a subjetivao analisada em termos das relaes dos humanos
consigo mesmos, os vocabulrios discursivamente estabelecidos exercem um papel
importante na composio e recomposio dessas relaes. Mas as anlises conduzidas
sob os pressupostos do "construcionismo social" so problemticas por causa da viso
de linguagem que elas sustentam. A linguagem, nessas anlises, vista como "fala",
como constituda de significados situacionalmente negociados entre indivduos. Como
"fala", sua anlise segue o modelo banal da comunicao, ou da falta de comunicao,
na qual as partes envolvidas, os indivduos humanos, utilizam vrios recursos
lingsticos - palavras, explicaes, estrias, atribuies - para construir mensagens que
transmitem intenes, ou para mutuamente afetar, persuadir, agir. Essas anlises
inescapavelmente colocam o agente humano como o ncleo dessas atividades de
produo de sentido, ao ativamente negociar sua trajetria atravs das teorias
disponveis a fim de viver uma vida significativa. Portanto, o ser humano entendido
como aquele agente que se constri a si prprio como um eu ao dar sua vida a
coerncia de uma narrativa. Evidentemente, o eu, simplesmente em virtude de ser capaz
de se narrar a "si prprio", em uma variedade de formas, implicitamente reinvocado
como um exterior inerentemente unificado relativamente a essas comunicaes. Isso nos
faz lembrar a observao de Nietzsche de que "um pensamento vem quando 'ele' quer e
no [p.157] quando 'eu' quero [...]. Isso pensa: mas que este 'isso' seja precisamente o
velho e decantado 'eu' , dito de maneira suave, apenas uma suposio, uma afirmao,
e certamente no uma 'certeza imediata'" (NIETZSCHE, 1992 [1886], p. 23).
Entretanto, o que nossos psiclogos radicais invocam , na verdade, o velho e familiar
eu, aquele reconfortante "eu" da filosofia humanista, que o ator que interage com
outros em um contexto cultural e lingstico, a pessoa em quem os efeitos de sentido,
comunicao, assumem sua forma, com todos os pressupostos que o acompanham,
pressupostos que afirmam a singularidade e o carter cumulativo do tempo vivido da
conscincia. Trata-se do eu da hermenutica, do eu da fenomenologia, agora sendo
postulado aqui como a soluo para o problema de como poderia, ele prprio, constituir
uma possibilidade.9
Obviamente, seria absurdo colocar anlise produzida por lingistas como
Benveniste nesse mesmo campo hermenutico. Seu trabalho refrescante como um
copo d'gua tomado depois do adocicado humanismo dos "construcionistas sociais",
exigindo uma ateno mais generosa e produtiva do que a que eu serei capaz de dar
aqui. hora, entretanto, de questionar toda a tirania da "linguagem", da "comunicao",
do "significado", desde h muito invocados pelas "cincias sociais", no curso de suas
pretenses a se distinguirem das "cincias naturais", supostamente em virtude da
natureza especial de seu objeto. Ao tentar explicar nossa histria e nossa especificidade,
no para o domnio dos signos, dos significados e das comunicaes que devemos nos
voltar, mas para a analtica das tcnicas, [p.158] das intensidades, das autoridades e dos
aparatos. Anlises como as que estive discutindo aqui atribuem coisas demasiadas
linguagem como comunicao e absolutamente nada linguagem como agenciamento.
Pode ser "relativamente fcil no dizer mais 'eu', mas sem com isso ultrapassar o regime
de subjetivao; e inversamente, podemos continuar a dizer Eu, para agradar, e j estar
em um outro regime onde os pronomes pessoais s funcionam como fices" (MP2, p.
95). Se a linguagem est organizada em regimes dc significao por meio dos quais ela
se distribui ao longo de espaos, pocas, zonas e estratos, e se ela est agenciada em
regimes prticos de coisas, corpos e foras, ento deve-se conceber a "construo
discursiva do eu" de uma forma bem diferente. Quem fala, de acordo com que critrios
de verdade, de quais lugares, em quais relaes, agindo sob quais formas, sustentado
por quais hbitos e rotinas, autorizado sob quais formas, em quais espaos e lugares, e
sob que formas de persuaso, sano, mentiras e crueldades? Em relao s disciplinas
psi, esses so precisamente os tipos de questes com que devemos lidar: a emergncia
de prticas, locais e regimes de enunciao que do poder a certas autoridades para falar
nossa verdade na linguagem da psique; os regimes que constituem a autoridade por
meio de uma relao com aqueles que so seus sujeitos como pacientes, analisandos,
clientes, fregueses; as paisagens, os edifcios, as salas, os arranjos desenhados para esse
encontros, desde as salas de consulta at as enfermarias dos hospitais; os vetores
afetivos da compulso, da seduo, do contrato e da converso que fazem a conexo das
linhas. [p.159]
Isto , no se trata de uma questo sobre o que uma palavra, uma sentena, uma
estria ou um livro "quer dizer" ou o que "significa", mas, antes, sobre "com o que ele
funciona, em conexo com o que de faz ou no passar intensidades, em que
multiplicidades ele se introduz e metamorfoseia a sua [multiplicidade] (MP1, p. 12).
Isso no significa voltar as costas para a linguagem ou para todos os instrutivos estudos
que tm sido conduzidos sob os auspcios de uma certa noo de "discurso" ou que tm
desenvolvido a analtica da retrica. Mas significa sugerir que essas anlises so mais
instrutivas quando se focalizam no no que a linguagem significa, mas no que ela faz: que componentes de pensamento ela coloca em conexo, que vnculos ela desqualifica,
o que capacita os humanos a imaginar, a diagramar, a fantasiar uma determinada
existncia, a se reunirem em um agenciamento: os sexos com seus gestos, formas de
andar, de vestir, de sonhar, de desejar; as famlias com suas mes, seus papais, seus
bebs, suas necessidades e suas desiluses; as mquinas de curar com seus mdicos e
pacientes, seus rgos e suas patologias; as mquinas psiquiatras com suas arquiteturas
reformatrias, suas grades de diagnstico, sua mecnica de invenes e suas noes de
cura.10
Em qualquer circunstncia, devemos reconhecer que a linguagem no , de
forma alguma, primria na produo de pessoas. Em primeiro lugar, a linguagem ,
obviamente, mais que apenas "fala" - da a importncia, que bem reconhecida, da
inveno da escrita pela qual os humanos so capazes de se tornar "mquinas
escreventes" por meio do [p.160] treinamento da mo e do olho; por meio da fabricao
de instrumentos tais como os estilos, os pincis, as penas; por meio de um certo
conjunto de hbitos corporais; por meio de um modo de compor e decifrar; por meio de
uma relao com a superfcie mais ou menos transportvel de inscrio. Ao escrever, o
ser humano torna-se capaz de novas coisas: fazer listas; enviar mensagens; acumular
informao, a partir de locais distantes, em um nico lugar e em um nico plano; e de
comparar, tabular mudanas, diferenas e similaridades, estendendo novas linhas de
fora (GOODY & WATT, 1968; GOODY; 1977, p. 52-111; ONG, 1982). A inveno
da imprensa torna possvel a generalizao de "mquinas de leitura" e uma variedade de
novas coisas se torna pensvel: novas formas de compreender o lugar dos humanos em
uma cosmologia, por meio de clculo dos movimentos dos corpos celestes, por
exemplo, ou novas formas de praticar a espiritualidade em relao ao "livro sagrado"
(EISENSTEIN, 1979). A inveno de tcnicas por meio das quais os humanos
desenvolvem a capacidade de calcular torna, similarmente, os humanos capazes de
novas coisas, disciplina o pensamento e as auto-relaes de uma forma distintiva
(previso e prudncia, por exemplo, quando se calcula a situao financeira futura na
forma de um oramento) e similarmente dependente de tcnicas e aparatos -
agenciamentos maquinados nos quais as foras do humano so criadas e estabilizadas
(CLINE-COHEN, 1982; cf. ROSE, 1991).
Plato, como bem sabido, expressou reservas srias escrita, concebendo-a
no apenas como inferior palavra falada, "escrita na alma do ouvinte [p.161] para
capacit-lo a aprender sobre o certo, o bem e o bom", mas tambm como destrutiva das
artes da retrica e da memria (PLATO, Fedro, 278a). Mas a memria no deveria ser contraposta escrita como algo imediato, natural, como uma capacidade psicolgica
universal, mas vista em termos daquilo que Nietzsche chamou de "mnemnica"
(NIETZSCHE, 1998 [1887], p. 51; cf. GROSZ, 1994, p. 131).5 Esse termo refere-se aos
aparatos pelos quais se "marca a ferro em brasa" o passado em si prprio, tornando-o
disponvel como uma advertncia, um consolo, um aparato de negociao, uma arma ou
uma ferida. "Jamais deixou de haver sangue, martrio e sacrifcio quando o homem
sentiu a necessidade de criar em si uma memria" (NIETZSCHE, 1998, p. 51). As
preocupaes de Nietzsche so com as variedades histricas de punio cruel, como
exemplos do preo pago pelos seres humanos para faz-los superar seu esquecimento e
"reter na memria cinco ou seis 'no quero' [...] a fim de viver os benefcios da
sociedade" (p. 52). No se trata de uma questo, para meus propsitos, da validade das
asseres genealgicas especficas de Nietzsche - elas so certamente problemticas.
Mas a noo de mnemnica abre um campo muito importante de investigao para o
agenciamento de sujeitos. Frances Yates mostrou, de forma convincente, que a memria
pode ser entendida como uma arte ou uma srie de tcnicas inculcadas na forma de
procedimentos particulares: uma arte que foi revivida e ampliada na Idade Mdia e
envolvia tcnicas tais como a inveno de lugares ou espaos nos quais itens de saber
ou experincia eram "colocados" e que poderiam ser "recuperados" pelo [p.162] sujeito
ao fazer um passeio imaginrio atravs deles (YATES, 1966; cf. HIRST & WOOLEY,
1982, p. 39). As prticas da pedagogia tm, obviamente, inventado toda uma gama de
outras tcnicas de memria, buscando inculc-las nas salas de aula, tendo proliferado ao
longo da experincia de quase todos os humanos contemporneos e tendo sido das
prprias alimentadas pelas disciplinas psi. Mas reconhecer o xito tcnico e prtico da
memria apenas um primeiro passo: essas tcnicas da memria no so limitadas pelo
envelope da pele do sujeito e muito menos pelo volume de seu crebro. No apenas os
golpes, a tortura, os sacrifcios que Nietzsche descobre como constituindo as razes
impuras de nossos aparentemente blsamos morais puros, mas tambm juramentos,
rituais, canes, escritas, livros, gravuras, bibliotecas, dinheiro, contratos, dvidas,
edifcios, projetos de arquitetura, a organizao do tempo e do espao: tudo isso - e
muito mais - estabelece a possibilidade de que um passado mais ou menos imaginrio
possa ser re-evocado, no presente ou no futuro em locais particulares. Isto , a memria
, ela prpria, agenciada. A memria que temos de ns prprios como um ser com uma
biografia psicolgica, uma linha de desenvolvimento da emoo, do intelecto, da
vontade, do desejo, produzida por meio dos lbuns de fotografia de famlia, a
repetio ritual de estrias, o dossi real ou "virtual" dos boletins escolares, a
acumulao de artefatos e a imagem, o sentido e o valor que lhes so vinculados.
As disciplinas psi, obviamente, tm adotado e desenvolvido as tecnologias da
memria desde ao menos a poca de Mesmer e tm-se envolvido em [p.163] toda uma
histria de competio sobre o status das memrias assim produzidas (MESMER, [1799] 1957), A memria foi central s concepes de "desordem nervosa" antes que
Freud anunciasse que a histrica sofria de reminiscncias e levantasse a possibilidade de
que a memria podia no distinguir entre experincia e fantasia. Por pelo menos um
sculo, as asseres das disciplinas psi sobre a memria tm sido controversas
precisamente porque as memrias em questo pareciam ser o produto de suas
"tecnologias" no-naturais - das quais a hipnose e a associao livre constituam apenas
dois exemplos. As dificuldades contemporneas da mnemotcnica psi so
exemplificadas naquilo que se poderia chamar de "crise de memria" em torno da
produo, por meio das tecnologias da psicoterapia, das anteriormente ausentes
memrias da violncia contra crianas - "memrias falsas", "memrias recuperadas.6
As disputas sobre essa questo revelam, ao menos em parte, a dificuldade de reconhecer
que aquilo que lembrado s o por meio do envolvimento dos humanos com as
tecnologias da memria. Certas dessas tecnologias, que continuam estranhas e malignas
a muitas culturas, tem sido "naturalizadas" em nossa prpria cultura - espelhos, retratos,
inscries durveis (por exemplo, dirios, cartes de aniversrio e cartas, que servem de
"substitutos" para eventos passados mas "no esquecidos"), romances narrativos,
fotografias, agora talvez o vdeo da gravidez de nossa me e o momento de nosso
nascimento. Muitas daquelas tecnologias inventadas na genealogia das disciplinas psi -
embora, surpreendentemente no sejam aparatos [p.164] de memrias tais como a
"histria de caso" da medicina - continuam tendo um status problemtico, ainda no
naturalizado, mas mesmo assim so vistas como suspeitas por causa de sua associao
com a tecnologia aparentemente antinatural que as fizeram nascer. Mas me possvel
ser "uma-pessoa-com-memria" to-somente em virtude de eu "ter-entrado-em-
composio" com esses elementos heterogneos - a memria, no sentido em que faz
uma diferena nas formas pelas quais os humanos agem e se relacionam consigo
mesmos, uma propriedade de "mquinas de lembrar".
A memria, a habilidade de clculo, a escrita simplesmente exemplificam o fato
de que as anlises da linguagem que se centram na questo do significado concedem
demasiada autonomia semntica e sinttica e do muito pouca ateno s prticas
situadas que intimam, inscrevem, incitam, certas relaes da pessoa consigo mesma.
Elas ignoram os aparatos de inscrio, desde livros de estria, tabelas, grficos, listas e
diagramas, at vitrais e fotografias, desenho de salas e peas de equipamento, tais como
aparelhos de televiso e foges. Esses aparatos consumem tecnologias culturais que
funcionam como formas de codificar, estabilizar e intimar "seres humanos. Eles vo
alm do envelope da pessoa, perduram em locais, prticas, rituais e hbitos particulares
e no esto localizados em pessoas particulares, nem so intercambiados de acordo com
o modelo da comunicao.
Assim, embora as linguagens, os vocabulrios e as formas de julgamento sejam,
indubitavelmente, de imensa importncia em intimar e estabilizar certas [p.165] relaes
da pessoa consigo mesma, eles no deveriam ser entendidos como sendo primariamente
intencionais e interacionais. Aquilo que torna qualquer intercambio particular possvel
surge de um regime de linguagem, o qual est alojado em prticas que apreendem o ser humano sob variadas formas, que inscrevem, organizam, moldam e exigem a produo
da fala - mdica, legal, econmica, ertica, domstica, espiritual. Mas essa referncia s
prticas e aos agenciamentos dos quais a linguagem faz parte chama a ateno para
outra das inescapveis debilidades das estrias "psicolgicas" do eu narrado. Quando a
linguagem, nessas explicaes, vista como algo situado, ela o apenas ao modo
wittgensteiniano vago de "formas de vida", nas quais a "responsabilizao"
[accountability] funciona para tornar possveis as aes. Essas disponveis referncias a formas de vida so pouco adequadas tarefa. O que precisa ser analisado o modo da
relao consigo mesmo que intimado nas prticas e nos procedimentos, nos vnculos,
nas linhas de fora e nos fluxos definidos que constituem pessoas e as atravessam e as
circundam em maquinaes particulares de fora - para trabalhar, para curar, para
reformar, para educar, para trocar, para desejar, no apenas para responsabilizar
[accounting] mas para manter como responsabilizvel. No se trata de um apelo por uma localizao mais delicada e sutil da comunicao "em seu contexto social", mas por
uma rejeio da forma binria que separa a linguagem de seu contexto apenas para
reinseri-la contextualmente em um mundo que reduzido a uma espcie de pano de
fundo cultural para o significado. [p.166]
Uma vez tecnicizadas, maquinadas e localizadas em lugares e prticas, emerge
uma imagem diferente do processo de "construo de pessoas". As pessoas funcionam,
aqui, como uma forma inescapavelmente heterognea, como arranjos cujas capacidades
so fabricadas e transformadas por meio de conexes e ligaes nas quais elas so
apreendidas em locais e espaos particulares. No se trata, portanto, de um eu que
emerge por meio da narrao de estrias, mas, antes, de examinar o agenciamento de
sujeitos: de sujeitos combatentes em mquinas de guerra, de sujeitos laborais em
mquinas de trabalho, de sujeitos desejantes em mquinas de paixo, de sujeitos
responsveis nas variadas mquinas da moralidade. Em cada caso, a subjetivao em
questo no um produto nem da psique nem da linguagem, mas de um agenciamento
heterogneo de corpos, vocabulrios, julgamentos, tcnicas, inscries, prticas.
ANATOMIAS IMAGINRIAS
Sugeri, anteriormente, que podemos produzir mais em termos de inteligibilidade
se consideramos a questo da subjetivao menos em termos de que tipo de sujeito
produzido - um eu, um indivduo, um agente - e mais em termos daquilo que os
humanos so capacitados a fazer por meio das formas pelas quais eles so maquinados
ou compostos. Aquilo que os humanos esto capacitados a fazer no intrnseco
carne, ao corpo, psique, mente ou alma: est constantemente deslocando-se e
mudando de lugar para lugar, de poca para poca, [p.167] com a ligao dos humanos
a aparatos de pensamento e ao - desde a mais simples conexo entre um rgo (ou
uma parte do corpo) e outro em termos de uma "anatomia imaginria" at aos fluxos de
fora tornados possveis pelas ligaes de um rgo com uma ferramenta, com uma
mquina, com partes de outro ser humano ou de outros seres humanos, em um espao
montado tal como um quarto de dormir ou uma sala de aula. Dessa perspectiva, as
questes a serem tratadas tm a ver no com a "constituio do eu", mas com as
ligaes estabelecidas entre, de um lado, o humano e, de outro, outros humanos,
objetos, foras, procedimentos, as conexes e fluxos tornados possveis, as capacidades
Thelmo Rodrigo Dutra Correa
e os devires engendrados, as possibilidades assim impedidas, as conexes maqunicas
formadas, que produzem e canalizam as relaes que os humanos estabelecem consigo
mesmos, os agenciamentos dos quais eles formam elementos, condutos, recursos ou
foras (cf. GROSZ, 1994, p. 165; MP1, p. 91).
Ao pensar dessa forma, podemos ler ao contrrio, por assim dizer, os muitos e
recentes textos que buscam fundamentar sua analtica de relaes de poder e formas de
saber sobre "o corpo". A corporeidade humana, como muitas vezes se sugere, pode
fornecer a base para uma teoria da subjetivao, da constituio dos desejos, das
sexualidades e das diferenas sexuais, dos fenmenos de resistncia e agncia. Os seres
humanos so, afinal, como afirmam esses argumentos, corporificados, a despeito de
todas as tentativas dos filsofos, desde o Iluminismo, para descrev-los como criaturas
de razo e para afirmar que essa capacidade para raciocinar afasta os [p.168] humanos -
ou ao menos os humanos masculinos - quase que inteiramente de suas caractersticas
como criaturas. E embora aceitando que a corporeidade no d qualquer forma essencial
ou estvel subjetividade, como poderamos negar a assero dessas anlises de que
sobre esse material bruto do "corpo" que a cultura trabalha sua constituio da
subjetividade? Embora abjurando todas as formas de essencialismo, como poderamos
discordar da assero de que as formas da subjetividade so irrecuperavelmente
marcadas pela facticidade biolgica de corpos sexuados, de corpos infantis que so
incapazes de automanuteno, de todos os corpos que comem, bebem, copulam,
defecam, deterioram e morrem (por exemplo, BUTLER, 1990,1993). Essa ambivalncia
est resumida na assero de Braidotti de que "o ponto de partida para as redefinies
feministas da subjetividade uma nova forma de materialismo que coloca nfase na
estrutura corporificada e, portanto, sexualmente diferenciada, do sujeito falante" (1994a, p. 199, nfase minha). E tal a aparente compulso de uma tal forma de pensar
que mesmo uma escritora antinaturalista como Elizabeth Grosz, que quer questionar
todos os essencialismos e todos os binarismos, sugere que "o corpo" o material sobre o
qual a cultura, a histria e a tcnica escrevem e, portanto, "a bifurcao de corpos
sexuados um universal cultural irredutvel" (GROSZ, 1994, p. 160).
Mas "o corpo" , ele prprio, um fenmeno histrico. Nossa presente imagem
dos lineamentos e da topografia do "corpo" - seus rgos, processos, fluidos vitais e
fluxos - o resultado de uma histria [p.169] cultural, cientfica e tcnica particular. As
propriedades do corpo - andar, sorrir, cavar, nadar - no so propriedades naturais mas
conquistas tcnicas (MAUSS, 1979a). Mesmo o carter aparentemente natural dos
limites e das fronteiras do corpo, que parece definir como que inevitavelmente a
coerncia de uma unidade orgnica, um fato recente e pertence a uma cultura
especfica (FOUCAULT, 1994; cf. GROSZ, 1994, sobre a histria da noo de
"imagem do corpo"). E quanto aos "dois sexos", h tantos estudos histricos mostrando
quo diversa essa aparentemente imutvel diviso, que trabalhos intelectuais
estiveram implicados em estabiliz-la na forma da natureza duplicada do corpo
masculino e do corpo feminino, em fazer de nosso desejo sexual nosso desejo secreto,
conectando prazer, sexo, vontade, saber, reproduo e companheirismo em uma
"sexualidade ciborgue" que acabamos por habitar como sendo nossa verdade (por
exemplo, FEHER, NADAFF & TAZI, 1989; LAQUEUR, 1990; BROWN, 1989; cf.
VALVERDE, 1995, sobre nossa fabricao como sujeitos sexualmente desejantes). Da
que grande parte da recente nfase, na escrita feminista, sobre o corpo e sobre a
corporificao, conserva a prpria analtica que busca subverter, deslocando a
normalizao "iluminista" das propriedades da razo e da abstrao, ao simplesmente
inverter o velho tropo de que as mulheres so mais corpreas, mais carnais, mas
retendo, entretanto, a carne como a perspectiva governante da razo feminista. Mas os
corpos so sempre "corpos pensados" ou "corpos-pensamento": algum dia, talvez, ns
viremos a olhar retrospectivamente para o "sexo-pensamento-corpo" [p.170] que tanto
tem afetado nosso prprio sculo, nossa prpria repetitiva e cansativa ansiedade sobre
nossos corpos sexuais, nossos compromissos com a diferena de gnero que nos marca
to indelevelmente, as foras transgressivas e os poderes restauradores do sexual e tudo
o resto, com um certo deleite perverso (cf. FOUCAULT, 1985a).
Abandonemos, pois, esse "carnalismo" do corpo de uma vez por todas. 10 O
corpo muito menos unificado, muito menos "material" do que costumamos pensar.
possvel, pois, que no exista essa coisa de "o corpo": um envelope limitado que pode ser revelado para conter no seu interior uma profundidade e um conjunto de operaes
que funcionem maneira de uma lei. Deveramos estar preocupados no com corpos,
mas com as ligaes estabelecidas entre superfcies, foras e energias particulares. Em
vez de falar de "o corpo", precisaramos analisar apenas como um particular "regime de
corpo" foi produzido, descrevendo a canalizao de processos, rgos, fluxos, conexes,
bem como o alinhamento de um aspecto com outro. Em vez de "o corpo", tem-se, pois,
uma srie de "mquinas" possveis, agenciamentos - de dimenses variadas - de
humanos com outros elementos e materiais: conectados a livros para formar uma
mquina literria, a ferramentas para formar uma mquina de trabalho, a bens para
formar uma mquina de consumo... O corpo , pois, "no uma totalidade orgnica que
capaz de expressar globalmente a subjetividade, uma concentrao das emoes,
atitudes, crenas ou experincias do sujeito, mas um agenciamento de rgos,
processos, prazeres, paixes, [p.171] atividades, comportamentos, ligados por tnues
linhas e imprevisveis redes a outros elementos, segmentos e agenciamentos" (GROSZ,
1994, p. 120). E os prprios rgos so "tcteis": o olho, o nariz, o ouvido, o tato,
renem pensamento e objeto em sensuais relaes de contato, troca e interpenetrao,
criando uma multiplicidade de novos sentidos atravs de cada qual "reluzem momentos
de conexo mimtica, simultaneamente corporificados e mentalizados, simultaneamente
individuais e sociais" (TAUSSIG, 1993, p. 23; embora o argumento seja de Taussig, ele
est discutindo aqui o trabalho de Walter Benjamin).
Nosso regime de corporeidade deveria, assim, ele prprio, ser "isto como a
resultante instvel dos agenciamentos nos quais os humanos so surpreendidos,
induzindo uma certa relao consigo mesmos como corporificados; tornando o corpo organicamente unificado, atravessado por processos vitais; diferenciando - hoje por
meio do sexo, em grande parte de nossa histria por meio da "raa"; dando-lhe uma
certa profundidade e um certo limite; equipando-o com uma sexualidade estabelecendo
as coisas que ele pode e no pode fazer; definindo sua vulnerabilidade em relao a
certos perigos; tornando-o praticvel a fim de amarr-lo a prticas e a atividades (sobre
"o corpo da mulher", ver, por exemplo, LAQUEUR, 1990, DUDEN, 1991; sobre o
corpo racializado, ver GILMAN, 1985). A questo de Deleuze, que para ele era a
questo de Spinoza '' De que um corpo capaz?'' (o que ele pode fazer; que afectos ele
pode ter; como esses afectos reforam, enfraquecem, capacitam-no de diferentes
formas; como o multiplicam; como o [p.172] metamorfoseiam?) um ponto de partida
(DELEUZE, 1992b, cap. 14). Mas isso apenas na medida em que concordemos que um
corpo no "o corpo", mas apenas uma relao particular, capaz de ser afetada de
formas particulares. Trata-se de uma questo de rgos, de msculos, de nervos, de
aparelhos que so, eles prprios, enxames de clulas em troca constante entre si, ligando
e separando, morrendo, reconfigurando, conectando e combinando, onde o lado de fora
de um , simultaneamente, o lado de dentro de outro. Trata-se tambm de uma questo
de crebros, hormnios, molculas qumicas, que conectam e transformam as
capacidades das vrias partes - excitando-as, coordenando-as, fundindo-as ou
desligando-as.
Esses agenciamentos no so delineados pelo envelope da pele, mas ligam o
"lado de fora" e o "lado de dentro" - vises, sons, aromas, toques, colees - juntando-os
com outros elementos, maquinando desejos, afeces, tristeza, terror e at mesmo
morte. Consideremos as variadas maquinaes das quais o corpo capaz: a coragem do
guerreiro na batalha, a ternura ou a violncia do amante, a resistncia do prisioneiro
poltico sob tortura, as transformaes efetuadas pelas prticas da ioga, a experincia da
morte vodu, as capacidades de transe que tornam os rgos capazes de suportar
queimaduras ou de recuperar-se de feridas. No se trata de propriedades de "o corpo",
mas de maquinaes do "corpo pensado", cujos elementos, rgos, foras, energias,
paixes, temores so reunidos por meio de conexes com palavras, sonhos, tcnicas,
cantos, hbitos; julgamentos, armas, ferramentas, grupos. [p.173]
Isso no significa sugerir que os humanos possam ser anjos, que possam voar
pelas janelas ou que possam movimentar-se como minhocas, mas que apelos
"materialistas corporeidade como o "material" sobre o qual a cultura trabalha no so
coisas "boas para pensar". Os corpos so capazes de muita coisa, em virtude, ao menos
em parte, de "serem pensados" e ns no sabemos os limites do que essas mquinas-
corpo-pensamento so capazes.11 Se nos tornamos criaturas psicolgicas no foi por
causa do carter dado de um interior, nem por causa dos significados de uma cultura,
mas por causa das formas pelas quais, em tantos locais e prticas, os vetores psi
acabaram por atravessar e por ligar essas maquinaes.
Duas metforas para as maquinaes dos corpos-sujeito foram recentemente
propostas: performatividade e inscrio. Judith Butler props a noo de
performatividade ao desenvolver uma anlise da construo da "identidade de gnero"
que no supe qualquer sujeito essencial ou pr-dado situado por detrs de suas aes.
Para Butler, no precisamos "nenhuma teoria da identidade de gnero por detrs de
expresses de gnero..." a identidade performativamente constituda pelas prprias
'expresses' que se supe ser seus resultados" (BUTLER, 1990). Sua noo de
performatividade baseia-se, aqui, em Austin e Derrida, para argumentar que o gnero
o resultado de atos performativos. "Um ato performativo aquele que faz nascer ou
coloca em ao aquilo que nomeia, marcando, assim, o poder constitutivo ou produtivo
do discurso...Para que um performativo funcione, ele deve basear-se e [p.174] recitar
um conjunto de convenes lingsticas que tm tradicionalmente funcionado para
assegurar ou implicar certos tipos de efeitos" (BUTLER, 1995, p. 134). O gnero ,
pois, uma fantasia "instituda e inscrita na superfcie de nossos corpos", constitudo por
meio dos efeitos de significao engendrados pelas perfomances da linguagem (1990, p.
136). Mas essa noo de performatividade limita-se a si prpria ao manter a nfase no
lingstico. Consideremos este argumento sobre a performance da feminilidade, o qual
devo a Susan Bordo (BORDO, 1993, p. 19):12 Sente-se em uma cadeira reta. Cruze suas pernas na altura dos
tornozelos e mantenha seus joelhos pressionados um contra o outro.
Tente fazer isso enquanto est conversando com algum, mas tente o
tempo todo manter seus joelhos fortemente pressionados um contra o
outro...Corra uma certa distncia, mantendo seus joelhos juntos. Voc
descobrir que ter que dar passos curtos, altos...Ande por uma rua da
cidade...Olhe, em direo reta, para a frente. Toda vez que um homem
passar por voc, desvie seu olhar e no mostre nenhuma expresso no
rosto.
"Transformar-se em uma pessoa 'dotada' de gnero", como reconhece Butler,
juntamente com muitas outras pessoas, significa seguir uma prescrio meticulosa e
continuamente repetida da conduta, da aparncia, da fala, do pensamento, da vontade,
do intelecto, na qual as pessoas so reunidas em uma montagem no apenas ao serem
conectadas com os vocabulrios mas tambm com regimes de conduta [p.175] (andar,
olhar, fazer gestos), com artefatos (roupas, sapatos, maquiagem, automveis, panelas,
instrumentos para escrever, livros), com espaos e lugares (salas de aula, bibliotecas,
estaes de trem, museus) e com os objetos que os habitam (mesas, cadeiras, livros,
plataformas, vitrines). A performatividade, ao menos no sentido do modelo da
enunciao lingstica, em que definida em termos de citaes e convenes, uma
imagem bastante enganadora para pensar esse processo de montagem da pessoa:
necessrio insistir que ns no somos "constitudos pela linguagem". Tampouco suficiente uma imagem lingstica diferente, a da escrita ou da
inscrio. Essa noo utilizada tanto por Butler quanto por Grosz para descrever a
relao entre, por um lado, o corpo e suas superfcies (concebidos como marcados,
inscritos, gravados) e, por outro, "o traado de textos pedaggicos, jurdicos, mdicos e
econmicos, de leis e prticas na carne a fim de entalhar um sujeito social como tal, um
sujeito capaz de trabalho, de produo e manipulao, um sujeito capaz de agir como
um sujeito e, ao mesmo tempo, capaz de ser decifrado, interpretado, compreendido"
(GROSZ, 1994, p. 117). Em vez de pensar em uma analtica da inscrio, na qual a
cultura seria escrita na carne, considero ser mais til pensar em termos de tecnologia.
Na verdade, como sugeri, a linguagem, a escrita, a memria podem ser, elas prprias,
vistas como elementos de uma tcnica, cada uma delas implicando verdades, tcnicas,
gestos, hbitos, aparatos, reunidos, por meio do treinamento, em uma montagem, e
inseridos em associaes mais ou menos [p.176] durveis. Poderemos compreender
melhor as prticas de subjetivao se as concebermos em termos das complexas
interconexes, tcnicas e linhas de fora que se estabelecem entre componentes
heterogneos, incitando, tornando possvel e estabilizando relaes particulares conosco
mesmos, em locais e lugares especficos. As tecnologias da subjetivao so, pois, as
maquinaes, as operaes pelas quais somos reunidos, em uma montagem, com
instrumentos intelectuais e prticos, componentes, entidades e aparatos particulares,
produzindo certas formas de ser-humano, territorializando, estratificando, fixando,
organizando e tornando durveis as relaes particulares que os humanos podem
honestamente estabelecer consigo mesmos.
No existe nenhuma necessidade de supor qualquer "meio de propulso" por
detrs de todas essas tecnologias, nem qualquer fora ou desejo primordial que circule
por esses agenciamentos, fazendo com que seja possvel que eles se movam, ajam,
mudem, resistam, sofram mutaes. A assim chamada "questo da agncia" coloca um
falso problema. Para dar conta da capacidade para agir no precisamos de nenhuma
teoria do sujeito que seja anterior e que resista quilo que a apreenderia - tais
capacidades para a ao surgem dos regimes e tecnologias especficos que maquinam os
humanos de variadas formas (nesse caso estou de acordo com BUTLER, 1995, p. 136).
A heterogeneidade dessas prticas e tcnicas - seus mltiplos conflitos, divergncias,
interconexes e alianas, as diferentes promessas que elas fazem e as variveis
exigncias que elas representam para o ser humano - podem produzir todos [p.177] os
efeitos de resistncia, apropriao, utilizao, transformao e transgresso que os
tericos do ps-moderno tm ressaltado, sem a necessidade de invocar uma concepo
unificante de "agncia humana". Para diz-lo de outra forma, a agncia , ela prpria,
um efeito, um resultado distribudo de tecnologias particulares de subjetivao, as quais
invocam os seres humanos como sujeitos de um certo tipo de liberdade e fornecem as
normas e tcnicas pelas quais aquela liberdade deve ser reconhecida, agenciada e
exercida em domnios especficos. Na verdade, as disciplinas psi tiveram, ao longo do
sculo passado, um papel bastante particular na criao das condies para a
emergncia da nossa capacidade de nos relacionar conosco mesmos como certo tipo de
gente - como "personagens", por exemplo, com funes nervosas, as quais, quando
moldadas pelo efeito do hbito e da influncia sobre a constituio da pessoa, produzia
a impulsividade ou o controle, dependendo do caso: se a pessoa era homem ou mulher,
amo ou ama, trabalhador temporrio, funcionrio ou servo (cf. SMITH, 1992, cap. 1);
ao longo do sculo XX, como "personalidades" como um tipo que estava em posse de
certos traos, manifestados nas formas pelas quais a pessoa reagia experincia,
expressava seus sentimentos e se associava a artefatos, gostos, formas de vestir, estilos
de gesticulao e expresso; na segunda metade do sculo XX, como "agentes livres" de
escolha e autodesenvolvimento, em guerra contra todas as mquinas que nos
maquinariam como bons sujeitos da burocracia e do conformismo, que diminuiriam
[p.178] nossa auto-estima e impediriam nosso autodesenvolvimento.
Para nossa prpria cultura, a agncia , obviamente, parte de uma "experincia"
de internalidade - ela parece acumular-se e emergir de nossas profundidades, de nossos
instintos, desejos ou aspiraes interiores. No h dvida de que nem sempre foi assim.
A clssica interpretao da Ilada e da Odissia, feita por E. A. Dodds, sugere que a descrio homrica dos humanos mais do que uma questo de conveno esttica: os
humanos, para Homero, eram agenciamentos dispersas, cujos elementos eram a psyche (alma), a thumos (vontade) e o noos (intelecto), cada um deles com seu modo independente de operao. A ao era entendida no em termos de qualquer faculdade
interna da agncia, mas em termos de foras tais como ate, que obrigavam a pessoa a um curso particular de ao, por meio da interveno dos deuses, das deusas do Destino,
das Frias, de sonhos e vises (DODDS, 1973; cf. HIRST E WOOLLEY, 1982). Esses
exemplos poderiam, obviamente, ser multiplicados: os poderes explicativos das vozes
das deidades ou dos demnios, os efeitos motivadores dos xams e dos rituais, e mais
prximo de ns, talvez, as conseqncias das multides ou bandos em arrebatar o
indivduo em um novo e multicfalo agente com uma nica - ainda que maligna -
vontade. A agncia , sem dvida, uma "fora", mas uma fora que surge no de
qualquer propriedade essencial de "o sujeito", mas das formas pelas quais os humanos
tm se reunido em um agenciamento.
ALMAS DOBRADAS
Se hoje vivemos nossas vidas como sujeitos psicolgicos que vemos como sendo
a origem de nossas aes, se nos sentimos obrigados a nos colocar a ns prprios com
sujeitos com uma certa e desejada antologia, uma vontade de ser, isso se deve s formas
pelas quais relaes particulares do exterior tm sido invaginadas, dobradas, para
formar um lado de dentro ao qual um lado de fora deve sempre fazer referncia. Uma
vez mais, Deleuze quem refletiu mais instrutivamente sobre uma filosofia da dobra
(DELEUZE, 1992a, 1992b, veja especialmente o uso dessa noo em sua discusso da
subjetivao em seu livro sobre Foucault: DELEUZE, 1988, p. 94-123). "O que
importa, sempre, dobrar, desdobrar, redobrar" (DELEUZE, 1992, p. 137). O conceito
de dobra pode fazer surgir um diagrama generalizvel para pensar as relaes, as
conexes, as multiplicidades e as superfcies - sua formao de profundidades,
singularidades, estabilizaes. Esse diagrama da dobra descreve uma figura na qual o
lado de dentro, o subjetivo, , ele prprio, no mais que um momento, ou uma srie de
momentos, por meio do qual uma "profundidade" foi constituda no ser humano. A
profundidade e sua singularidade no so, pois, mais do que aquelas coisas que foram
escavadas para criar um espao ou uma srie de cavidades, plissados e campos que s
existem em relao quelas mesmas foras, linhas, tcnicas e invenes que as
sustentam.
As linguagens, as tcnicas, os locais institucionais e as relaes enunciativas da
medicina clnica [p.180] introduziram dobras profundas no corpo, o lado de dentro do
lado de fora, o lado de dentro como uma operao do lado de fora, como sugere Deleuze
em sua discusso da arqueologia que Foucault faz do olhar clnico. Ou, de novo, em
relao s tcnicas ticas introduzidas pelos gregos, essas devem ser entendidas "no
sentido de que a relao consigo adquire independncia. como se as relaes do lado de fora se dobrassem, se curvassem para formar um forro e deixar surgir uma relao
consigo, constituir um lado de dentro que se escava e desenvolve segundo uma
dimenso prpria" (DELEUZE, 1991, p. 107). Uma vez que essa nova dimenso tenha
sido estabelecida, o sujeito agenciado/montado de novas formas, em termos de um
problema de "autodomnio", fazendo com que incida sobre si mesmo - aquele lado de
dentro atuando sobre si mesmo - o poder que fazemos incidir sobre outros. Nesse
mesmo processo, o poder que se faz incidir sobre os outros reconfigurado como uma
relao de poder entre o lado de dentro da gente e o lado de dentro do outro.
Esse lado de dentro singularizado e dobrado , assim, inevitavelmente
estabilizado, no em relao a um domnio de processos psicolgicos, mas em relao a
uma configurao de foras, corpos, edifcios e tcnicas que o mantm no lugar. Para os
gregos, isso compreendia todo o aparato de formao tica estabelecido na cidade, as
relaes de famlia, os tribunais, os jogos de poder e de lazer e as relaes erticas por
meio dos quais aqueles vares que exerciam o poder eram agenciados. "Eis o que
fizeram os gregos: dobraram a fora, sem que ela deixasse de ser fora. Eles a
relacionaram consigo [p.181] mesma. Longe de ignorarem a interioridade, a
individualidade, a subjetividade, eles inventaram o sujeito, mas como uma derivada,
como o produto de uma 'subjetivao'" (DELEUZE, 1991, p. 108). Essa relao consigo
mesmo, esse dobramento que produz os efeitos de subjetivao, no algo passivo. De
novo, como observa Deleuze, ela criada apenas ao ser praticada, ao ser levada a efeito, ao se envolver com as tcnicas de governo do corpo e de controle da dieta, com
as tcnicas de sexualidade, com os estilos de jogo e esporte, com a oratria e a
exposio em pblico... Embora tivessem inventado uma formulao particular dessa
dimenso "da relao do ser consigo mesmo", os gregos no foram, de forma alguma,
os ltimos - nem provavelmente os primeiros - a faz-lo; em vez disso, o que eles
exemplificam uma forma particular de uma relao mais geral, uma relao na qual a
subjetivao sempre uma questo de dobramento. O humano no nem um ator
essencialmente dotado de agncia, nem um produto passivo ou um marionete de foras
culturais; a agncia produzida no curso das prticas, sob toda uma variedade de
restries e relaes de fora mais ou menos onerosas, mais ou menos explcitas,
punitivas ou sedutoras, mais ou menos disciplinares ou passionais. Nossa prpria
"agncia" , pois, a resultante da antologia que ns dobramos sobre ns mesmos no
curso de nossa histria e de nossas prticas. Apesar de todos os desejos, inteligncias,
motivaes, paixes, criatividades e vontade-de-auto-realizao que foram dobrados
sobre ns mesmos por nossas psicotecnologias, nossa prpria agncia no menos
artificial, menos fabricada, [p.182] menos no-natural - e, portanto, no menos real,
efetiva, confusa, tcnica, dependente-da-mquina - do que a problemtica agncia dos
robs, dos replicantes e das monstruosas simbioses que Donna Haraway utiliza para
pensar nossa existncia: ciborgues, hbridos, mosaicos, quimeras (HARAWAY, 1991,
p.171-2).
Mas o que que dobrado? , sem dvida, verdade que para Deleuze o que
dobrado sempre alguma "fora". Talvez para nossos prprios propsitos, devssemos
tratar dessa questo de uma forma um tanto modesta. Em outros locais, utilizei o termo
"autoridade" para os dobramentos que fazem diferena. Obviamente, isso simplesmente
nomeia um campo, mas, em princpio, no o define ou o delimita; o importante que
qualquer coisa pode ter autoridade. Mas, em qualquer poca e lugar, nem tudo a tem. Uma anlise a ser feita, aqui, seria a da raridade das autoridades na realidade e no a de
seus infinitos componentes e possibilidades. No como qualquer coisa que as pessoas
podem ser agenciadas em qualquer poca e lugar particulares; alm disso, os vetores
que so dobrados tm limites que no so ontolgicos mas histricos. O que
invaginado composto de qualquer coisa que possa adquirir o status de autoridade em um agenciamento particular. As maquinaes da aprendizagem, da leitura, do querer, do
confessar, do lutar, do andar, do vestir, do consumir, do curar invaginam uma certa voz
(a de nosso sacerdote, a de nosso mdico ou a de nosso pai), uma certa invocao de
esperana ou medo (voc pode se tornar o que voc quiser ser), uma certa forma de ligar
um objeto com um valor, sentido e afeto (a "italianidade" que [p.183] Barthes to
maravilhosamente revela nas massas Panzani ou talvez o "autocontrole" manifestado
pelo corpo escultural da "mulher ps-moderna"), um certo pequeno hbito e uma certa
tcnica de pensamento (morda a bala, olhe antes de saltar, autocontrole tudo, bom
partilhar os prprios sentimentos), uma certa conexo com um artefato dotado de
autoridade (um dirio, um dossi ou um terapeuta).
Foucault, como vimos anteriormente, sugeriu que as tecnologias ticas podem
ser analisadas ao longo de quatro eixos; Deleuze transcreve cada um desses quatro eixos
por meio do conceito de dobramento (DELEUZE, 1988). 13 O primeiro, sugere ele, diz
respeito aos aspectos do ser humano que devem ser circundados e dobrados - o corpo e seus prazeres para os gregos, a carne e os desejos para os cristos, talvez o eu e suas
aspiraes para nossa prpria poca. O segundo, a relao entre foras, diz respeito
regra de acordo com a qual a relao entre foras se torna uma relao consigo mesmo - uma regra que pode ser natural, divina, racional, esttica... Est, pois, sempre associada
com uma autoridade particular - a do sacerdote, do intelectual, do artista; em nossos
prprios dias, talvez a regra oscile entre a teraputica e a estilstica, cada qual associada
com diferentes autoridades. O terceiro, a dobra do saber ou a dobra da verdade, surge do fato de que cada relao consigo mesmo est organizada sobre o eixo da subjetivao do
saber e, portanto, da relao de nosso ser com a verdade, quer essa verdade seja
teolgica, quer seja filosfica, quer seja psicolgica. A quarta dobra (aqui Deleuze se
refere noo de ''uma interioridade da expectativa", devida a Blanchot) a [p.184]
dobra da esperana - da imortalidade, da eternidade, da salvao, da liberdade, da morte
ou da separao. E a subjetivao , pois, a interao da mltipla variabilidade dessas
dobras, de seus variados ritmos e padres. "E o que dizer, de nossos prprios modos
atuais, da moderna relao consigo? Quais so as nossas quatro dobras?" (DELEUZE, 1991, p. 112). Meu trabalho de anlise tem sido uma tentativa de responder a essa
questo. Concluirei com algumas reflexes sobre o papel que as psicocincias e as
psicotcnicas exercem nesses dobramentos.
PSICOLOGIAS DE SUBJETIVAO
Sugeri que as disciplinas psi exercem um papel constitutivo em nossas "quatro
dobras", obviamente em complexas e variveis relaes com outros vetores, mas mesmo
assim sobrepondo-se a eles, infundindo-os, investindo-os, de tal modo que mesmo o
"estilo-de-vida" esttico, espiritual, econmico, financeiro ou a tica ertica so
saturados com as disciplinas psi em seus regimes enunciativos, em suas tecnologias, em
seus modos de julgamento e em suas exibies de autoridade. Deixem-me esboar
algumas das caractersticas desses dobramentos psi.
O aspecto do ser humano que circundado e dobrado em tantos dos
agenciamentos contemporneos de subjetivao no nem o corpo/prazer nem a
carne/desejo, mas o eu/realizao. Passamos a ser habitados por uma ontologia psi, por
uma inescapvel interioridade que escava, nas profundezas do humano, um universo
psquico com uma topografia que tem suas prprias caractersticas - seus [p.185] planos
e plats, seus fluxos e precipitaes, seus climas e tempestades, seus terremotos, suas
erupes vulcnicas, seus aquecimentos e esfriamentos. Obviamente, o mapeamento
desse universo psi incompleto e disputado; seus mapas lembram os de homens do mar
de pocas remotas: onde alguns relatam terem visto instintos, caractersticas herdadas e
predisposies, outros encontraram represses, projees e fantasias, outros ainda viram
a internalizao de expectativas sociais e outros mais observaram apenas a inscrio de
um regime de recompensas e punies comportamentais. As dinmicas dessa ontologia
so contestadas, seja de uma forma ou outra: pelos processos da auto-estima e da auto-
abnegao, do estresse e da realizao, do desejo e da frustrao, das ansiedades e das
fobias ou das involues sadistas de objetos internos. Mas essas dinmicas so
agenciadas por meio de vetores que atravessam o envelope da pele. Na verdade, "o
corpo" agora, ele prprio, visto menos como um dado corporal do que como um
complexo orgnico cujas propriedades so marcadas por esse psi interior - a imagem do
corpo, a psicossomtica, a personalidade tendente ao cncer, a gordura ou a magreza
consideradas como manifestando o desejo de amor e de um eu interior, a "boa forma"
como uma espcie de economia psquica da auto-estima e de reforo do poder pessoal.
A inculcao, a emulao, a mimese, a performance, a habituao e outros rituais de
autoformao escavam e moldam esse espao "interno" de uma forma psi.
A antologia humana estabelecida, assim, em parte, por meio de conexes
constitutivas com as tecnologias psi que a imaginam e que agem sobre ela. [p.186]
Essas conexes ativam algo que Michel Taussig analisou, de forma reveladora, em
termos de "mimese" - o devir colocado em ao na contnua interao entre a cpia e
aquilo que copiado (TAUSSIG, 1993). A cpia compreende, aqui, tanto uma
"representao" - gravura, artefato, objeto, gesto, dana, modelo, diagrama - quanto
uma forma de ser. "Entre a fidelidade fotogrfica e a fantasia, entre a iconicidade e a
arbitrariedade, entre o todo e a fragmentao, comeamos, pois, a sentir quo estranha e
complexa se torna a noo de cpia" (TAUSSIG, 1993, p. 17). A multiplicidade dessas
breves fulguraes que Taussig chama de "mimese" dobra certas "formas de ser" sobre
ns - no apenas por meio de "estrias", no apenas por meio de "recompensas e
punies" (como se jamais houvesse sido claro o que o qu), mas por meio da mmica
e da imitao, por meio da emulao e da bricolagem, por meio tanto do copiar quanto
do diferir. Para nossos propsitos, pois, a dimenso mimtica das disciplinas psi pode
ser vista em aparatos tais como manuais de auto-ajuda centrados no auto-
aperfeioamento, na auto-estima e no autoprogresso; nos padres psi forados a se
tornarem visveis em todas as sesses que se passam nos diversos tipos de consultrios;
nos modelos e simulacros de eus desejveis que servem como espelhos para reativar e
refletir de volta fabricaes de subjetividade s quais se pode aspirar; as imagens do eu
normal - a criana normal, a me normal, a garota normal, o adolescente normal, o
paciente normal, o trabalhador ou o gerente normal - desenvolvidas em toda e qualquer
prtica imaginvel; as conexes estabelecidas consigo mesmo por [p.187] meio das
tecnologias culturais da fotografia, do filme e da propaganda: uma multiplicidade de
mquinas mimticas. A exigncia para que a gente seja um certo tipo de eu sempre
conduzida por meio de operaes que distinguem ao mesmo tempo que identificam
(veja, outra vez, TAUSSIG, 1993, sobre esse tema). Para ser o eu que a gente , a gente no deve ser o eu que a gente no - no aquela alma desprezada, rejeitada ou abjeta. Assim, o tornar-se eu um copiar recorrente que tanto emula outros enquanto difere
deles. Hoje, as caractersticas pertinentes da mimese e da alteridade so estabelecidas
nos vetores dos estilos-de-vida, das sexualidades, das personalidades, das aspiraes.
Falar do dobramento dessa antologia psi em humanos acenar - neste estgio
no pode ser mais do que isso - para os processos que escavam um interior por meio do
dobramento dos componentes psi que tm sido distribudos atravs desses aparatos e
dessas tecnologias. Esse espao psi composto de uma complexa mistura de elementos
da pesquisa psicolgica nos humanos e nos animais, nas estrias e nas fabulaes, nas
autobiografias e nas histrias de caso. Ele "ficcional" apenas no sentido de que o psi
"inventa" e reinventa mundos imaginados em busca daquilo que toma como sua
premissa: de que um mundo real habita nosso ser como humanos (cf. HARAWAY,
1989). E embora seja, sem dvida, verdade que as caractersticas desse mundo dobrado
so to amarrotadas, torcidas, esfarrapadas e pudas quanto os materiais de que feito,
nossas relaes conosco mesmos tm sido, no obstante, por pelo menos um sculo,
irrevogavelmente marcadas por nossa dobra do eu, pois esse nome que nossa poca
[p.188] tem dado ao agitado universo no interior do qual todos os humanos sero
registrados, localizados, explicados e afetados.
Pelo menos uma dimenso-chave da dobra da autoridade, hoje, pode ser
chamada de "teraputica": de acordo com uma regra teraputica que as linhas de fora
so flexionadas para se transformar em um espao moldado de acordo com o eu em
nossa existncia e experincia. "Teraputica", aqui, no no sentido de um privilgio
concedido prpria "psicoterapia", ou mesmo apenas em termos da proliferao dos
ramos e variedades de psi - psiclogos forenses com sua construo de perfis de
criminosos e vtimas; psiclogos do esporte com seus exerccios mentais para se ter
sucesso no campo ou na pista; consultores organizacionais com seus protocolos de uma
crescente produtividade e harmonia, por meio de uma ao sobre as inclinaes de auto-
realizao dos empregados e semelhantes. "Teraputica", em vez disso, no sentido de
que a relao consigo mesmo , ela prpria, dobrada em termos teraputicos -
problematizando a si mesmo de acordo com os valores da normalidade e da patologia,
diagnosticando nossos prazeres e desgraas em termos psi, buscando retificar ou
melhorar nossa existncia cotidiana por uma interveno em um "mundo interior" que
temos dobrado como sendo tanto fundamental para nossa existncia como humanos
quanto, entretanto, to prximo superfcie de nossa experincia do cotidiano. essa
relao teraputica conosco mesmos e os componentes considerados autorizados dessa
relao que tm se multiplicado em nosso presente, uma multiplicao dos [p.189]
condutos entre as autoridades que falam as verdades de ns mesmos e as formas nas
quais agimos sobre nossa prpria existncia, na compreenso, no planejamento e na
avaliao de nossas paixes, nossos medos e nossas esperanas cotidianas. O eu
produzido no processo de pratic-lo, produzido, portanto, como uma interioridade que
complexa e contestada. Essa interioridade fraturada - por meio da interseco da
multiplicidade de atividades e julgamentos que fazemos incidir sobre ns mesmos no
curso de relacionar nossa existncia sob diferentes descries e em relao a diferentes
imagens ou modelos - as sanes, as sedues e as promessas pelas quais atribumos a
essas formas teraputicas de praticar a subjetividade um valor e uma autoridade.
E o que podemos dizer sobre a quarta dobra, o que podemos esperar dela? O que
dobramos, o que nos dobra, uma aspirao to pattica quanto comovedora; no
mais pattica e comovedora, entretanto, do que nosso esforo por maximizar nossos
estilos-de-vida e nos realizar como pessoas por meio de nossas relaes com outras
pessoas - nossos amantes, nossos filhos, nossas mes e nossos pais, nossas
comunidades. A essa esperana demos o nome de "liberdade". Essa esperana no
uma esperana de libertao para o mundo e seus cuidados, misrias e obrigaes
urbanos - "ligue-se, sintonize-se e caia fora". No se trata, tampouco, de uma libertao
dos laos da servido e da sujeio: "livre, finalmente, livre, finalmente, graas ao Deus
poderoso, livre, finalmente". Em vez disso, os sinos de uma liberdade bem diferente
ecoam em nossos sonhos: um modo de ser no mundo no qual atribumos valor s nossas
vidas [p.190] na medida em que somos capazes de constru-las em termos que so
simultaneamente polticos (livres para escolher) e psicolgicos (livres para escolher em
nome de ns mesmos e no em nome de nossa subordinao autoridade de um outro,
em relao sombra formada por nossos pais internalizados ou pelas restries
impostas por nosso temor da prpria liberdade). Uma aspirao louvvel? Sem dvida,
mas uma aspirao que no existe em uma relao de externalidade com nossas
ansiedades e frustraes: esse sonho de liberdade constitui as prprias formas pelas
quais ns codificamos e experienciamos ns mesmos e as formas pelas quais dividimos
ns mesmos daquilo que, em ns mesmos, e daquilo que, nos outros, no est de acordo
com esse sonho ou que fracassa por seus princpios.
O EFEITO PSI
Para investigar essas hipteses mais diretamente, podemos comear por
estabelecer algum tipo de topografia dos espaos psi, das prticas ou dos agenciamentos
pelos quais nossa subjetividade maquinada. Poderamos chamar isso de "o onde" do
psi: sua territorializao. possvel identificar uma variedade de agenciamentos nos
quais uma tal territorializao tem sido organizada: mquinas desejantes, mquinas de
trabalho, mquinas pedaggicas, mquinas punitivas, mquinas curativas, mquinas de
consumir, mquinas de guerra, mquinas de esporte, mquinas de governo, mquinas
espirituais, mquinas burocrticas, mquinas de mercado, mquinas financeiras. Isso
no significa afirmar o domnio do [p.191] psi em nossa experincia, pois no se
poderia dizer o mesmo, por exemplo, das linguagens, das imagens, das tcnicas e das
sedues da economia? No significa tampouco identificar uma "causa" externa de
todas essas transformaes e mutaes que vieram a permear to amplamente toda
nossa existncia. Mas significa registrar esse "efeito psi" no sentido de "efeito" de
Deleuze, no sentido de "efeito" do discurso cientfico, tal como no efeito Kelvin ou no
efeito Compton, por exemplo: "Um tal efeito no em absoluto uma aparncia ou uma
iluso; um produto que se estende ou se alonga na superfcie e que estritamente co-
presente, co-extensivo sua prpria causa e que determina essa causa como causa
imanente, inseparvel de seus efeitos (DELEUZE, 1998, p. 73, citado em BURCHELL
et al., 1991, p. ix). Isto , o efeito psi no deve ser identificado com uma causa
particular, mas, antes, delineado pela descrio das formas pelas quais a existncia
humana se torna inteligvel e praticvel, sob uma certa descrio, em toda uma
multiplicidade de pequenos "cenrios ticos" que permeiam nossa experincia.
Por "cenrios ticos" quero significar os diversos aparatos e contextos nos quais
uma particular relao com o eu administrada, forada e agenciada, e na qual pode-se
prestar uma ateno teraputica queles que se sentem desconfortveis com a distncia
entre sua experincia de suas vidas e as imagens de liberdade e de eu
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