Copyright Edições Vida Nova
ta edição: 2011
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ISBN 978-85-275-0461-4
Impresso no Brasil / Printed in Brasil
SUPERVISÃO EDITORIAL Marisa K. A. de Siqueira Lopes
COORDENAÇÃO EDITORIAL Curtis A. Kregnes
COORDENAÇÃO DE PRODUÇÃO Sérgio Siqueira Moura
DIAGRAMAÇÃO Kelly Christine Maynarte
CAPA Souto Crescimento de Marca
Dados internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Contextualização missionária, desafios, questões e diretrizes / Barbara Helen Burns, ed — São Paulo: Vida Nova, 2011
Vános autores Bibliografia ISBN 978-85-275-0461-4
1. Missão da Igreja 2. Missiologia 3.Teologia I. Burns, Barbara Helen
10-13567
CDD-266.001
índices para catálogo sistemático:
1 Missiologia . Cristianismo 266.001 2 Teologia da missão Cristianismo 266 001
Este livro é dedicado à amiga especial, Durvalina Barreto Bezerra,
colaboradora da APMB desde 1992 e presidente por cinco anos.
Com muita oração, trabalho, e algumas lágrimas, deu direção
para que a formação de professores de missões no Brasil
pudesse ter excelência e fidelidade bíblica.
-
Agradecimentos 7
Prefácio 9
Introdução 11
Parte 1 Raízes bíblicas e teológicas da contextualização missionária
Capítulo 1 A teologia bíblica da contextualização (Ronaldo Lidório) 15
Capítulo 2 Modelos bíblicos de contextualização em Atos 14 e 17 (Bertil Ekstrõm) 35
Capítulo 3 A contextualização e a mensagem da cruz (Kevin Bradford) 47
Parte 2 Raízes da contextualização na história
Capítulo 4 Contextualização na história de missões: precedentes, definições e questões (Barbara Helen Burns) 55
Parte 3 Questões contemporâneas sobre a contextualização missionária
Capítulo 5 Analisando o berço da contextualização: Bruce Nicholls e as controvérsias teológicas do século XX (Barbara Helen Burns) 95
Capítulo 6 O evangelho em contextos humanos — Paul Hiebert (Traduzido e apresentado por Maria Bernadete da Silva) 113
Capítulo 7 Níveis de contextualização: o desafio da contextualização bíblica (Barbara Helen Burns) 137
6 Contextualização missionária
Parte 4 Pondo a contextualização em prática: estudos de caso
Capítulo 8 Os konkombas e o processo de contextualização da mensagem bíblica (Ronaldo Lidório) 171
Capítulo 9 Festa do carneiro: um caso de contextualização crítica de uma celebração muçulmana (Joed Venturini de Souza) 197
Capítulo 10 Contextualização dos crentes yanomamis da Venezuela (Michael Dawson) 217
Capítulo 11 Contextualização entre os indígenas: uma visão geral (Silas de Lima) 235
Apêndice Manifesto da consulta sobre contextualização e missões 269
Sobre os autores 271
Agradecemos a todos que participaram na produção deste livro — os autores, os participantes na consulta da APMB em agosto de 2006 e os que leram e deram suas opiniões. Em especial mencionamos Adriana Urban, revisora oficial do texto e alguém que não é apenas jornalista, mas conhecedora de missiologia (mestranda em missiologia pelo SEC no Recife). Estamos gratos também à amiga Maria Luiza Targino que contribuiu com seu toque artístico, junto com os amigos Decio de Azevedo, Joyce Every-Clayton e Eudete Petelinkar que ajudaram ao longo do processo.
Muito obrigada a todos que ajudaram em oração e encorajamento, inclusive os meus alunos de Contextualização Missionária que, ao lon-go dos anos, têm ajudado a refinar os conceitos encontrados neste texto.
Deus abençoe a todos, como ele tem nos abençoado durante estes vinte meses escrevendo, interagindo, ouvindo e finalizando o livro.
Barbara Helen Burns com a APMB
As Escrituras Sagradas são declarações de sabedoria, princípios da verdade divina e revelação do caráter perfeito de Deus.
Quando somos chamados pelo Senhor para o ensino da sua Pala-vra, temos a grande responsabilidade de comunicar toda a verdade em sua pureza singular, e, de firmar o compromisso de não alterar o seu sentido nem interpretá-la a partir do contexto cultural ou dos nossos próprios pressupostos.
Por isso, contextualizar é um grande desafio para todo comuni-
cador do evangelho, e mais ainda para aqueles que se propõem a atra-vessar fronteiras culturais.
O livro da sabedoria nos adverte: "Inclina teu ouvido e ouve as palavras dos sábios..." (Pv 22.17). Como filhos de Issacar (1Cr 12.32),
precisamos discernir os tempos e as épocas para saber como tornar a Palavra de Deus relevante para as pessoas do nosso tempo e para toda
a humanidade, sem que a sua autoridade seja negada e sem o desvio da sua verdade.
Voltando para o mesmo versículo de Provérbios a instrução nos diz: "...aplica o teu coração ao meu conhecimento". Ao tratarmos da
matéria sagrada, não devemos trabalhar apenas com a mente e a racionalidade dos fatos, mas com o coração, que ultrapassa a percepção humana e perscruta pela agência do Espírito Santo a revelação da mente de Deus.
É necessário, primeiro, que sejamos ensinados por Deus para po-dermos ensinar a outros. "Para que tua confiança esteja no SENHOR, hoje
as ensino a ti. Por acaso não te escrevi excelentes coisas acerca dos con-selhos e do conhecimento, para te ensinar a certeza das palavras da ver-
dade, para que com elas respondas aos que te enviarem?" (Pv. 22.19-21). Conscientes da necessidade de refletir sobre a contextualização
bíblica e da urgência de oferecermos este instrumento de pesquisa
10 • Contextualização missionária
aos professores de missões e vocacionados para a obra transcultural, a Associação de Professores de Missões do Brasil organizou em agosto de 2006 uma consulta para expor aos participantes o conteúdo deste livro.'
Barbara Burns, adotando um novo modelo de trabalho, interagiu com Ronaldo Lidório, Bertil Ekstrõm, Silas Tostes, Maria Bernadete Silva e Silas Lima, e assumiu a organização dos capítulos aqui expos-tos. A todos eles, a nossa apreciação e reconhecimento pelo trabalho realizado e pelo valioso conteúdo que será de grande utilidade para aqueles que se comprometem com a exposição bíblica, seja na evangelização, seja no ensino.
Nosso objetivo e nossa oração é que os textos aqui expostos sejam estudados com a atenção devida ao assunto, analisados e ensinados com a mente que "pensa verticalmente" antes de "pensar horizontal-mente". Assim, que prevaleça a preponderância da verdade divina e bíblica à realidade cultural ou antropológica, na nossa sublime tarefa de contextualizar a Palavra Sagrada.
Que o Mestre da sabedoria nos capacite! Durvalina B. Bezerra Presidente da APMB
' Veja o Manifesto da Consulta no Apêndice.
ii/R11.1/111-
O assunto "contextualização" chamou a minha atenção em 1972, quando era professora no Instituto Bíblico Presbiteriano de Cianorte,
no Paraná. Recebemos uma carta da FET (Fundação de Educação Teológica), que foi enviada a instituições de ensino teológico ao redor do mundo, oferecendo ajuda para uma educação contextualizada. Eu
nunca tinha visto esta palavra, mas pela sua composição, ficou clara sua ligação com a relevância do contexto de cada um. Nossa interpre-tação era que o evangelho tem de atingir e transformar o contexto, não o contrário.
Depois desse tempo, o conceito "contextualização" tomou novos rumos, com muitas viradas, divergências e polêmicas. Nos dias de hoje não é possível usar a palavra sem qualificá-la com uma explicação sobre o tipo de contextualização a que se refere. De outra forma há um perigo de entrar nas áreas cinzas de sincretismo e idolatria.
Este livro é uma tentativa de esclarecer algumas definições e ques-
tões em torno da teoria e prática da contextualização. A história, ba-ses bíblicas, discussões contemporâneas e exemplos práticos ajudam o leitor a tomar o rumo certo, bem importante para o futuro da expan-são da igreja de Jesus Cristo. Escolhemos autores conhecidos que equi-
libram conhecimento e experiência prática e demonstram compromisso com a Palavra de Deus e a sua vontade.
Devido ao número de autores, alguns aspectos são repetidos, mas com detalhes complementares e pontos de vista variados. Procuramos eliminar duplicação cansativa para poder enfatizar os pontos mais im-portantes de cada um e dar uma continuidade e coerência ao conteúdo.
Se há uma lacuna no livro, é a carência de um diálogo direto com
a Bíblia. Há muitos textos que demonstram princípios, ensino e exem-
plos de contextualização que não devem ser ignorados no cumpri-
mento da nossa tarefa missionária. Portanto, lançamos um desafio:
•'14
12 • Contextualização missionária
que o leitor continue este estudo baseado em textos bíblicos relevan-
tes, bem pesquisados e aplicados. Que Deus use este livro para ajudar o leitor, as igrejas e os missi-
onários enviados do Brasil, em suas caminhadas missionárias nos con-textos carentes do evangelho no mundo de hoje.
Barbara Helen Burns 11 de novembro de 2006
A teologia bíblica da contextualização
Neste capítulo tenciono abordar a contextualização sob uma pers-pectiva teológica, seus objetivos e limitações, sua relevância e perigos. Defenderei a conciliação entre a Teologia e a Missiologia, a relevância da Antropologia Missionária e por fim apresentarei alguns critérios bíblicos para a contextualização.
Quando Hesselgrave afirma que contextualizar é tentar comuni-car a mensagem, trabalho, Palavra e desejo de Deus de forma fiel à sua revelação e de maneira significante e aplicável nos distintos contextos, sejam culturais ou existenciais, ele expõe um desafio à igreja de Cristo: comunicar o evangelho de forma teologicamente fiel e ao mesmo tempo humanamente inteligível e relevante. E este talvez seja o maior desa-fio de estudo e compreensão quando tratamos da teologia da contextualização. Historicamente, a ausência de uma teologia bíblica de contextualização tem gerado duas consequências desastrosas no movimento missionário mundial: o sincretismo religioso e o nomina-lismo evangélico.
Antes, porém, gostaria de expor introdutoriamente sobre a rele-vância da contextualização na apresentação do evangelho com base em Mateus 24.14. Ali Jesus se reunia com seus discípulos, pouco antes de ser elevado aos céus, e responde a estes sobre os sinais que antece-derão a sua vinda. Após dissertar sobre evidências mais cosmológicas (guerras e rumores de guerras) e eclesiológicas (perseguição e falsos
16 Raízes bíblicas e teológicas da contextualização missionária
profetas) Jesus lança uma evidência puramente missiológica dizendo
que "este evangelho do reino será pregado pelo mundo inteiro, para teste-munho a todas as nações, e então virá o fim".
A expressão grega para "e será pregado"' tem como raiz kerygma, uma proclamação audível e inteligível do evangelho paralelamente à martyrid que evoca um sentido mais pessoal, de testemunho de vida. Esta ação kerygmática aponta para o fato de que o evangelho será
pregado de forma compreensível. O "mundo" aqui exposto no texto é a tradução de oikoumene que significa "mundo habitado". A ideia
textual, portanto, não é geográfica, territorial, mas sim demográfica, onde há pessoas, mostrando que este evangelho do Reino será pre-gado kerygmaticamente, inteligivelmente, em todo o mundo habi-tado. A forma de isso acontecer, segundo o texto, é através do
testemunho a todas as nações. Como explicamos, a raiz para "teste-munho" aqui é martyria que nos ensina que esta ação proclamadora,
kerygmática, do evangelho acontecerá através de uma igreja martírica, que tenha o caráter de Cristo. Ou seja, apenas os salvos pregarão este evangelho do reino. Jesus finaliza a frase dizendo que o testemunho chegará a todas a nações, onde traduzimos o termo ethnesin, de ethnia, para nações, ou seja, grupos linguística e culturalmente definidos. Poderíamos parafrasear o verso 14 dizendo que "o evangelho do Rei-no será proclamado de forma inteligível e compreensível por todo o mun-do habitado, através do testemunho martírico, de vida, da Igreja, a todas as etnias definidas". A frase final nos diz que "então virá o fim"e "fim"
aqui (telos) aponta para a volta do Senhor Jesus, ligada comumente à sua parousia, seu retorno.
Gostaria de chamar sua atenção para o princípio bíblico da co-
municação. Jesus nos ensina diversas vezes que a transmissão do co-nhecimento do evangelho não será uma ação realizada sem a
participação comunicativa da igreja. Esta participação envolve duas
ações principais: a vida e testemunho da igreja, bem como a atitude
' "kerychtesetai": e será proclamado de forma inteligível. "martyria" (testemunho) indica uma ação informal de vida enquanto "kerygma"
(proclamação) pressupõe uma pregação mais sistemático do evangelho.
A teologia bíblica da contextualizaçao 11. 17
de proclamar e expor o evangelho de Cristo. Esta comunicação do evangelho, portanto, em uma perspectiva transcultural, necessita de
um trabalho de "tradução" em duas áreas específicas: a língua e a cultu-ra. As línguas dispõem de códigos diferentes para viabilizar a comu-
nicação e o mesmo ocorre com a cultura. Quando se expõe a um
inuit, ou esquimó, que o sangue de Jesus nos torna branco como a neve, ele rapidamente nos perguntaria qual categoria de branco, já
que em sua visão culturalizada de quem convive com a neve e o gelo por milênios, há treze diferentes tipos de "branco". Ignorar tal ex-trato cultural culminará em uma pregação rasa ou distorcida da Pa-lavra de Deus.
Alguns princípios textuais podem nos ajudar nesta introdução, pensando em Mateus 24.14. Percebemos que a transmissão de uma
mensagem inteligível em sua própria língua e contexto, portanto
contextualizada, é pressuposto para o cumprimento da grande co-missão, já que a nós cabe não somente viver Jesus, mas também proclamá-lo de forma compreensível. Apenas a igreja cumprirá esta
tarefa, ou seja, não é o Cristianismo que evangelizará o mundo mas sim a igreja redimida, que passou pelo novo nascimento.
Tendo em mente estes conceitos permitam-me mencionar alguns pressupostos que utilizo ao escrever este capítulo.
1. A Palavra é supracultural e a-temporal, portanto viável e co-
municável para todas as pessoas, em todas as culturas, em to-das as gerações. Cremos, assim, que a Palavra define a pessoa e
não o contrário. 2. Contextualizar o evangelho não é reescrevê-lo ou moldá-lo à
luz da Antropologia, mas sim traduzí-lo linguística e cultu-
ralmente para um cenário distinto a fim de que toda pessoa compreenda o Cristo histórico e bíblico.
3. Apresentar Cristo é a finalidade maior da contextualização. A
igreja deve evitar que Jesus Cristo seja apresentado apenas como uma resposta para as perguntas que os missionários fazem,
uma solução apenas para um segmento, ou uma mensagem
alienígena para o povo alvo.
I8 • Raízes bíblicas e teológicas da contextualização missionária
O conceito da contextualização evoca toda sorte de sentimen-
tos e argumentações. Por um lado encontramos a defesa de sua
relevância, com base na culturalidade e princípios gerais da comu-nicação. Crê-se, de forma geral, que sem contextualização não há verdadeira comunicação e aqueles que assim entendem procuram estu-
dar as diversas possíveis abordagens nesta comunicação contextualizada. Por outro lado encontramos a exposição de seus perigos quando esta
contextualização se divorcia de uma teologia bíblica essencial que a
norteie e avalie. Isto é especialmente verdade tendo em mente que o próprio termo "contextualização" foi abundantemente utilizado no passado por Kraft a partir do relativismo de Kierkegaard com funda-
mentação em uma teologia liberal que não cria na Palavra de Deus de forma dogmática, mas sim adaptada. Creem que a Palavra de Deus se aplica apenas a contextos similares de sua revelação, não sendo assim
supracultural e nem a-temporal. Nossa proposta é entendermos que a contextualização não é apenas possível com uma fundamentação bíblica que a conduza, mas necessária para a fidelidade na transmissão
dos conceitos bíblicos. E preciso avaliarmos nossos pressupostos teológicos a fim de guiar-
mos nossa ação missionária. Martinho Lutero, crendo na integralidade
da verdade bíblica, expôs um evangelho que fosse comunicável, na lingua do povo, com seus símbolos culturais definidos, porém um
evangelho escriturístico e sem diluição da verdade. Sem receio, por diversas vezes ensinou Melanchton dizendo: "prega de forma que odeiem o pecado ou odeiem a você". Se por um lado defendeu uma
contextualização eclesiológica traduzindo a Bíblia para a língua do
povo, tendo cultos com a participação dos leigos, pregando a Palavra dentro do contexto da época, por outro deixou claro que o conteúdo da Palavra não deve ser limitado pelo receio do confronto cultural. Se sua sensibilidade cultural fosse definidora de sua teologia, e não o contrário, teríamos tido uma Reforma humanista e não da igreja. Te-
ria sido o início de um movimento de libertação apenas do pensa-mento e da expressão, um grito por justiça social que não inclui Deus e nem a salvação, ou um apelo pelo resgate da identidade cultural, mas não a condução do povo ao reino de Deus.
A teologia bíblica da contextualizacôo ea 19
Os mais evidentes perigos de pressupostos
de contextualização
Antes de seguirmos adiante gostaria de expor três perigos fundamentais quando tratamos da contextualização dentro do universo missionário.
O primeiro perigo, que é político, tem sua origem na natural ten-dência humana de impor a outros povos sua forma adquirida de pen-
sar e interpretar, prática esta realizada em grande escala pelos
movimentos imperialistas do passado e do presente, bem como por forças missionárias que entenderam o significado do evangelho ape-
nas dentro de sua própria cosmovisão, cultura e língua. Desta forma as torres altas dos templos, a cor da toalha da ceia, a altura certa do
púlpito e as expressões faciais de reverência tornam-se muito mais do
que peculiaridades de um povo e de uma época. Misturam-se com o
essencial do evangelho na transmissão de uma mensagem que não se propõe a resgatar o coração do homem mas sim moldá-lo à uma teia de elementos impostos e culturalmente definidos apenas para o comunicador da mensagem, apesar de totalmente divorciados de signi-ficado para aqueles que a recebem.
As consequências de uma exposição política do evangelho tem
sido várias, porém mais comumente encontraremos o nominalismo, em um primeiro momento e, por fim, o sincretismo quase irreversível. David Bosch afirma que o valor do evangelho, em razão de proclamá-
lo, está totalmente associado à compreensão cultural do povo receptor.
O contrário seria apenas um emaranhado de palavras que não produ-ziriam qualquer sentido sócio-cultural. George Hunsburger observa
também que não há como pregarmos um evangelho a-cultural, pois o
alvo de Cristo ao se revelar na Palavra foi atingir pessoas vestidas com sua identidade humana. A perigosa apresentação política do evange-lho a que nos referimos, portanto, confunde o evangelho com a rou-
pagem cultural daquele que o expõe, deixando de apresentar Cristo e propondo apenas uma religiosidade vazia e sem significado para o povo que a recebe.
Um segundo perigo, que é pragmático, pode ser visto quando
assumimos uma abordagem puramente prática na contextualização.
Como a contextualização é um assunto frequentemente associado à
20 • Raízes bíblicas e teológicas da contextualização missionária
metodologia e processo de campo, somos levados a entendê-la e avaliá-
la baseados mais nos resultados do que em seus fundamentos teológi-cos. Consequentemente, o que é bíblico e teologicamente evidente se torna menos importante do que aquilo que é funcional e pragmatica-mente efetivo. Estou convencido de que todas as decisões missiológicas
devem estar enraizadas em uma boa fundamentação bíblico-teológica se desejamos ser coerentes com a expressão do mandamento de Deus (At 2.42-47). Entre as iniciativas missionárias mais contextualizadas com o povo receptor, encontramos um número expressivo de movi-mentos heréticos como a Igreja do Espírito Santo em Gana, África, na qual seu fundador se autoproclama a encarnação do Espírito Santo de
Deus. Do ponto de vista puramente pragmático, porém, é uma igreja
que contextualiza sua mensagem sendo sensível às nuances de uma cultura matriarcal, tradicional, encarnacionista e mística.
Devemos ser lembrados que nem tudo o que é funcional é bíblico. O pragmatismo leva-nos a valorizar mais a metodologia da contex-
tualização do que o conteúdo a ser contextualizado. A apresentação
pragmática do evangelho, portanto, privilegia apenas a comunicação com seus devidos resultados e esquece de ater-se ao conteúdo da men-
sagem comunicada.
Um terceiro perigo, que é sociológico, é aceitar a contextualização como sendo nada mais do que uma cadeia de soluções para as necessi-
dades humanas, em uma abordagem puramente humanista. Esta deve
ser nossa crescente preocupação por vivermos em um contexto pós-cristão, pós-moderno e hedônico. O erro ocorre quando missionários
tomam decisões baseadas puramente na avaliação e interpretação socio-lógica das necessidades humanas e não nas instruções das Escrituras. Neste caso os assuntos culturais, ao invés das Escrituras, determinam e flexibilizam a teologia a ser aplicada a certo grupo ou segmento. O desejo por justiça social não deve nos levar a esquecermos da apre-
sentação do evangelho. Vicedon afirma que somente um profundo conhecimento bíblico da natureza da igreja (Ef 1.23) irá capacitar
missionários a terem atitudes enraizadas na Missio Dei e não apenas
na demanda da sociedade. A defesa de um evangelho integral e desejo de transmitir uma mensagem contextualizada não devem ser pontes para o esquecimento dos fundamentos da teologia bíblica.
A teologia bíblica da contextualizaçuo e' 21
Teologia e contextualização
O presente embate mundial entre teologia e contextualização é possi-velmente um reflexo do divórcio no ensino entre missiologia e teolo-
gia. Para alguns a missiologia é vista como simplista teologicamente, e consequentemente varrida para fora dos centros acadêmicos e de pre-
paro teológico em diversas partes do mundo, ou mesmo tratada como
de menor valor. Este terrível engano frequentemente produz pastores sem sonhos,
missionários despreparados e teólogos cujo conhecimento poderia ser
grandemente usado para as necessidades diárias de uma igreja que está com as mãos no arado, mas por vezes não sabe para onde seguir.
Missiologia e Teologia não devem ser tratadas como áreas separa-das de estudo, mas sim como disciplinas complementares. A Teologia coopera com a igreja ao fazê-la entender o sentido da missão e a base
para a contextualização do evangelho. A Missiologia, por sua vez,
dirige teólogos para o plano redentivo de Deus e os ajuda a ler as Escrituras sob o pressuposto de que há um propósito para a existên-cia da igreja.
Na ausência de um estudo teologicamente sadio sobre a contex-tualização bíblica, vários segmentos da igreja ao longo da história fo-
ram influenciados pelo liberalismo teológico que encontrou na contextualização uma fácil apresentação de seus valores.
Soren Kierkegaard, com seu relativismo pragmático, propôs o entendimento da verdade a partir da interpretação individual, sem conceitos absolutos e dogmáticos. William James em 1907 lançou a
base para o "movimento de contextualização filosófica e teológica" defendendo a atualização teológica a partir da necessidade sócio-cultural ou linguística. Na mesma linha Rudolf Bultmann defen-deu a contextualização filosófica do evangelho mitificando tudo
aquilo que não fosse relevante ao homem moderno em seu próprio contexto. Estes e outros pensadores influenciaram a base conceitual da contextualização, desenvolvendo uma nova proposta: não há ver-dade dogmática, supracultural e cosmicamente aplicável. A verdade
é individual e, como tal, deve ser compreendida e aplicada de acordo
com o molde receptor.
22 Raízes bíblicas e teológicas cia contextualização missionária
Esta influência dicotomizou o mundo evangélico por décadas e ainda hoje tem seus efeitos enraizados na base conceitual da contex-tualização, levando alguns segmentos a definir a apresentação do evan-gelho apenas a partir do que é aceitável culturalmente. Em uma breve
discussão com uma equipe inglesa que atuava entre os bassaris do
Togo, fui apresentado à sua estratégia missionária: ensinar Jesus como
aquele que comprou nossa salvação, porém sem sacrifício pessoal, já que o sacrifício pessoal é visto pelos bassaris como sinal de fraqueza. Esta simples escolha é resultado de uma teologia sociologizada e re-presentação desta tendência pragmatizada que molda a Palavra em prol de uma comunicação mais aceitável comunitariamente.
De forma mais institucional esta vertente foi bem demonstrada na Assembléia Geral do Concílio Mundial das Igrejas, em Upsala, Suécia, em 1968. Ali, a ênfase na humanização da igreja permitiu o desenvolvimento do estudo da contextualização mais a partir da Antro-
pologia do que da Teologia. A conferência sobre o "Diálogo com Povos
de Religiões e Ideologias Vivas", em 1977 em Chiang Mai, Tailândia, reforçou também o universalismo e a contextualização como forma de relativização de valores.
O contrapeso teológico deste assunto floresceu de forma mais ampla apenas em 1974 com a conferência de Lausanne onde, apesar de reconhecer as diferenças culturais, linguísticas e interpretativas nas diversas raças da terra, afirmou-se que a Palavra era o único mecanis-mo gerador da verdade a ser anunciada. Sobre evangelização e cultura, o Pacto de Lausanne declara que "afirmamos que a cultura de um povo em parte é boa e em outra parte é má, devido à queda. Por isto deve sempre ser julgada e provada pelas Escrituras, para que possa ser redimida e transformada para a glória de Deus. Diante disto, a
evangelização mundial requer o desenvolvimento de estratégias e metodologias novas e criativas (Mc 7.8,9,13; Rm 2.9-11; 2Co 4.5)".
Permitam-me chamar sua atenção para uma inquietante e acer-tada interpretação de Bruce Nicholls sobre o perigo do sincretismo e nominalismo como consequência de uma contextualização exis-tencial sem fundamentação teológica. Ele diz que o sincretismo reli-
gioso é uma síntese entre a fé cristã e outras religiões, a mensagem bíblica é progressivamente substituída por pressuposições e dogmas
A teologia bíblica da contextualização • 23
não-cristãos, e as expressões cristãs da vida religiosa de adoração, do
testemunho e da ética, conformam-se cada vez mais àquelas da parte
não-cristã no diálogo. No fim, a missão cristã é reduzida a uma assim-chamada "presença cristã", e na melhor das hipóteses, a uma preo-
cupação social humanista. O sincretismo resulta na morte lenta da
igreja e no fim da evangelização. Vicedom nos apresenta um manto de cuidados teológicos para o
processo da contextualização. Lembra-nos que, se cremos que Deus é
o autor da Palavra e o Criador que conhece e ama sua criação, portan-
to devemos crer que o evangelho é dirigido a toda pessoa. A minimi-
zação da mensagem perante assuntos desconfortáveis como poligamia, por exemplo, não coopera para a inserção da pessoa, em sua cultura, no reino de Deus. Ao contrário, propõe um evangelho partido ao
meio, enfraquecido, que irá cooperar com a formação de um grupo sincrético e disposto a tratar o restante da Escritura com os mesmos
princípios de parcialidade. Hibbert nos alerta de que, no afã de pare-
cermos simpáticos ao mundo (como a igreja em Atos 2), esquecemos que a mensagem bíblica confrontará as culturas, mostrará o pecado e clamará por transformação através do Cordeiro.
Hesselgrave também previne sobre o perigo de dicotomizarmos a
mensagem crendo na Palavra de forma integral para nós, mas apre-
sentando-a parcialmente a outros. Ele nos ensina que o evangelho é
libertador mesmos nas nuances culturais mais desfavoráveis.
O liberalismo teológico de Kierkegaard, Bultmann e James, por-tanto, ameaça a compreensão bíblica da contextualização, uma vez
que leva-nos a crer na apresentação de um evangelho que não muda (pois toda mudança cultural seria negativa), não confronta (pois a
verdade é individual e não dogmática) e não liberta (pois a liberdade
proposta é apenas social).
Se cremos que Deus é o autor da Palavra, que o evangelho "é o
poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê" (Rm 1.16), e
que "a justiça de Deus se revela no evangelho" (v.17), passaremos a nos preocupar com a melhor forma de comunicar esta verdade, de manei-
ra inteligível e aplicável, sabendo que, promovendo confrontos e mu-
danças, é a verdade de Deus que liberta todo aquele que crê.
24 • Raízes bíblicas e teológicas ria contextualização missionária
Pressupostos bíblicos para a contextualização
Escrevendo aos Romanos (1.18-27), o apóstolo Paulo nos introduz
ao conceito da contextualização em oposição à inculturação trazendo à tona verdades cruciais para a proclamação do evangelho dentro de um pressuposto escriturístico e revelacional.
No versículo 18, Paulo nos apresenta a um Deus irado com a postura humana e que se manifesta contra toda a "impiedade" (quando
o homem rompe seu relacionamento com Deus e os seus valores divi-
nos) e "perversidade" (quando o homem rompe seu relacionamento
com o próximo e seus valores humanos). Expõe um homem corrom-pido pela injustiça e criador da sua própria verdade.
Nos versículos 19 e 20, Deus se manifesta por meio da criação e há aqui um elemento universal: um Deus soberano, criador, controlador
do universo e detentor da autoridade sobre a criação. Os homens cita-dos no verso 18 tornam-se indesculpáveis por ser Deus revelado na criação "desde a criação do mundo", sendo revelado o "seu eterno poder
e divindade". Portanto, perante um homem caído, existente em sua própria injustiça, impiedoso e perverso, Paulo não destaca soluções
humanas, eclesiásticas ou mesmo sociais. Ele nos apresenta a Deus. Na teologia paulina a solução para o homem não é o homem, mas é Deus e
sua revelação.
Nos versículos 21 a 23, o homem tenta manipular Deus e sua
verdade, pois apesar deste conhecimento natural, pela criação, "não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças". Fizeram altares e
criaram seus deuses segundo seus corações, ânsias e desejos. Deuses manipuláveis, comandados, um reflexo da vontade humana caída. Assim, tais homens se "tornaram—se fúteis nas suas especulações", subs-tituindo "a glória do Deus incorruptível por imagens semelhantes ao
homem corruptível, às aves, aos quadrúpedes e aos répteis". O homem, portanto, não é condenado por não conhecer a história
bíblica. Ele é condenado por não glorificar a Deus. Os homens não são condenados por não ouvirem a Palavra, são condenados pelo pecado.
Nos versículos 24 a 27, tais homens, em seu mundo recriado com as cores do pecado e injustiça "substituíram a verdade de Deus pela mentira e adoraram e serviram à criatura em lugar do Criador".
A teologia bíblica cla contextualização 25
A resposta de Deus foi o juízo e o texto nos diz que ele entregou os homens "à impureza sexual" como também às "paixões desonrosas".
Há alguns elementos bíblicos neste precioso texto que nos aju-dam a pensar em alguns princípios de contextualização.
1. Há uma verdade universal e supracultural: Deus é soberano e
dono de toda glória. Esta verdade fundamenta a proclamação
do evangelho. 2. O pecado intencional (perversidade e impiedade) nos separa
de Deus. Não há como apresentar Deus buscando se relacio-
nar com o homem sem expor o pecado humano e seu estado de total carência de salvação.
3. Somos seres culturalmente construtores de ídolos. E comum ao homem caído gerar uma ideia de deus que satisfaça aos seus anseios sem confrontá-lo com o pecado. Esta atitude é encon-trada em toda a história humana e não colabora para o encon-tro do homem com a verdade de Deus.
4. A mensagem pregada por Paulo é contextualizada expondo
Deus em relação à realidade da vida e queda humana. Porém não é inculturada, pregando um Deus aceitável, mas sim um
Deus verdadeiro. Se amenizarmos a mensagem do pecado con-
tribuiremos para a incompreensão do evangelho.
Modelo bíblico de contextualização da mensagem
Vejamos o assunto da contextualização a partir da experiência bíblica de Paulo em três momentos específicos. Apesar de Paulo ser o após-tolo para os gentios (Gal. 1.16), ele era um judeu devoto. Desta for-ma, a partir de seus sermões e ensinos podemos garimpar princípios norteadores da contextualização da mensagem.
Observaremos três passagens bíblicas no livro de Atos nas quais Paulo proclama o evangelho. Primeiramente a um grupo formado puramente por judeus, em outra ocasião, a judeus, mas com presença
gentílica simpatizante do judaísmo e, por fim, para gentios totalmen-te dissociados do mundo judaico e de seus valores veterotestamentários.
Ficará evidente, creio, que Paulo jamais compromete a autenticidade
26 • Raízes bíblicas e teológicas da contextualização missionária
da mensagem bíblica, porém a comunica com aplicabilidade cultural
de forma que haja boa comunicação utilizando os elementos neces-sários para tal.
Em Atos 9.19-22 encontramos Paulo em Damasco com os discí-
pulos proclamando Cristo nas sinagogas apresentando-o como "o Fi-lho de Deus" e "confundia os judeus que habitavam em Damasco, provando que Jesus era o Cristo". Aqui encontramos Paulo logo após
ser salvo, expondo nas Escrituras que o Jesus que ele perseguia no passado tão próximo era de fato o Filho de Deus. A expressão grega para "provando" (que Jesus era o Messias prometido), no verso 22, implica em demonstração com evidências objetivas, visíveis, o que nos
dá a impressão que Paulo o fazia através do próprio texto sagrado, as
Escrituras. Sua forma de pregação seguia a mesma dinâmica que ele
viria a usar em todo o seu ministério entre os judeus: demonstrando a
partir da comprovação escriturística que Jesus é o Messias esperado (At 17.1-3). Paulo bem sabia que se alguém desejasse mostrar aos judeus que uma pessoa era o Messias, teria que fazê-lo através das
Escrituras. Por isso sua abordagem foi baseada nas Escrituras, centra-lizada na promessa do Messias e promotora de evidências de que este era Jesus. Paulo aqui falava aos filhos de Israel, que se viam como os
filhos da promessa e, portanto, em toda sua pregação ele utilizava ele-mentos históricos e marcos da relação entre Deus e seu povo escolhido.
Em Atos 13.14-16, encontramos Paulo "atravessando de Perge
para a Antioquia da Pisídia, indo num sábado à sinagoga". Logo depois ele, erguendo a mão, passou a lhes proclamar a Cristo. Neste texto o grupo, culturalmente definido, é o mesmo de antes: judeus. Havia porém a presença gentílica de simpatizantes da fé judaica. Paulo inicia com um dos principais fatos da história judaica, o Êxodo. Ele então os relembra da história de Israel até Davi quando então, intencionalmente, lhes introduz a promessa do Messias (At 13.23)
e a liga a Jesus. Interessante como Paulo neste caso prega a Cristo a
partir do "Deus de Israel", e se fundamenta no Antigo Testamento
para lhes apresentar o Messias por saber que os gentios ali presentes não apenas conheciam o Antigo Testamento mas também procura-
vam segui-lo. Porém sua pregação tem também forte teor moral e escatológico, que a distingue da primeira em Atos 9, apenas para os
A teologia bíblica da contextualizacao e. 27
judeus, demonstrando sua sensibilidade para um auditório misto, mes-
mo que prioritariamente judeu e judaizante. No versículo 39, Paulo
utiliza um texto de inclusão (todo aquele), que se contrapõe ao discur-
so mais exclusivo que seguia com os judeus, dizendo que todo aquele
que cresse seria salvo. Certamente os gentios judaizantes, fora da his-tória biológica de Israel, se viam aí incluídos: um Messias judeu para
judeus e gentios. Na terceira passagem, em Atos 17.16-31, Paulo proclama a Cristo
para gentios que nenhum conhecimento tinham das Escrituras. Paulo está em Atenas, o centro filosófico do mundo da época, e é conduzido até o Areópago pelos epicureus e estoicos. Neste momento Paulo se
encontrava em um cenário totalmente paganizado sem pressupostos judaizantes. O sermão de Paulo desta vez não se iniciou nas Escrituras
veterotestamentárias ou mesmo na promessa do Messias. Paulo lhes pregou Deus, a partir das evidências da criação e do deus desconheci-do, pois "E exatamente este que honrais sem conhecer que eu vos
anuncio" (At 17.23). Passa então a apresentar-lhes os atributos de Deus que "fez o mundo... Senhor do céu e da terra" (v. 24), "de um só
fez toda a raça humana" (v. 26), "não está longe de cada um de nós" (v.27), "ordena que todos os homens, em todos os lugares, se arrepen-dam" (v.30), e garantiu o julgamento do mundo com justiça "por meio de um varão... ressuscitando-o dentre os mortos" (v. 31, ARA). Note que no versículo 24, Paulo utiliza Theos para se referir ao "Deus que fez o mundo", sendo o mesmo termo utilizado (Theos) para mencio-nar o deus desconhecido. Ele utiliza da ideia existente de deus para
apresentar revelacionalmente o Deus da Palavra, criador de todas as coisas. O fim da mensagem é o mesmo: Jesus que morreu e ressuscitou.
Notem que aos judeus Paulo fala sobre "o Deus da promessa", aquele que lhes trouxe do Egito, pois estes conheciam o Deus da Escritura e se viam como os filhos da promessa. Eles entendiam que Deus se revelou a seus pais, que interagiu com seu povo ao longo da história, que lhes deixou as Escrituras.
Ao segundo grupo Paulo lhes fala sobre o Deus das promessas e
da história de Israel mas, como havia entre eles gentios, lhes fala tam-
bém do Messias que há de vir para a salvação de todo aquele que crê.
Percebemos aqui neste texto que Paulo apresenta-lhes o evangelho
28 Raízes bíblicas e teológicas da contextualização missionária
com fortes evidências escriturísticas, para os judeus, além de um forte apelo moral e escatológico, para os gentios judaizantes.
Ao terceiro grupo, puramente gentílico, o Messias que há de vir
não lhes transmitia nenhuma mensagem aplicável à sua história pois
era visto tão somente como o Messias judeu. Eles não tinham as Escrituras que o revelavam nem as promessas e alianças. Eles não se
enxergavam como filhos da promessa e não se identificavam com Abrão e Moisés. Porém eles se viam como os filhos da criação. Possu-íam tremenda atração pelas obras criadas e fascinação pela figura do Criador. Eram caçadores de respostas, estudiosos da religiosidade, qualquer religiosidade. Portanto, Paulo lhes pregou o Deus da cria-
ção, aquele que era antes de qualquer outro, que detém o poder de fazer surgir, e mantém a humanidade e o cosmos. Ele lhes fala demoradamente sobre os atributos deste Deus que é único, sobera-no, próximo e perdoador. Finalmente lhes fala de Jesus como o cen-tro do plano salvífico de Deus, apresentando-o como o Messias para
toda a humanidade.
Tiramos algumas conclusões a partir do modelo Paulino de expo-sição do evangelho, em relação à contextualização da mensagem.
1. A mensagem, em um processo de comunicação contextuai, ja-mais deve ser diluída em seu conteúdo. A fidelidade às Escritu-ras deve ser nossa prioridade à semelhança de Paulo que falou
da ressurreição de Cristo no Areópago, mesmo sabendo que seria um tema controverso para a crença filosófica presente.
2. O público alvo, seus pressupostos culturais, língua e enten-dimento sobre Deus são fatores relevantes para a apresenta-ção do evangelho. Paulo não pregou a Cristo da mesma forma aos três grupos. Sua sensibilidade ao ouvinte conduziu sua abordagem.
3. O uso de simbologias culturais explicatórias das verdades
bíblicas podem ser utilizadas desde que apresentem claramente a relevância do evangelho. Paulo fez isso utilizando o "deus desconhecido" partindo de um elemento sócio-cultural para expor, com clareza, a verdade do evangelho. Em outros mo-
mentos ele o fez a partir da criação, do contraste entre Deus e
A teologia bíblica da contextualização 29
os deuses adorados e do próprio sentimento humano de
desencontro com a vida e perdição.
4. O evangelho deve ser explicado a partir de si mesmo e não da cultura. O conteúdo do evangelho não é negociável. Quando Paulo fala aos judeus sobre o Messias e lhes apresenta Jesus, ele
estava ali em uma linha "segura" de comunicação. Porém, seu desejo por criar uma atmosfera propícia para a comunicação
não fez com que minimizasse as verdades mais confrontadoras, que o levariam a ser expulso, ignorado e questionado.
5. O alvo final da apresentação da mensagem é levar o homem ao conhecimento de Cristo e não simplesmente comunicar. A
comunicação de Paulo pavimentava o auditório para a apre-sentação da verdade, tanto para os filhos da promessa quanto para os filhos da criação.
6 A contextualização da mensagem, linguística e culturalmen-te, é um instrumento para uma boa comunicação, que trans-
mita o evangelho de forma clara e compreensível, e Paulo a
utilizava abundantemente ao falar distintamente a judeus e gentios, escravos e livres, senhores e servos. Também Jesus, ao propor transformar pescadores em pescadores de homens, ao utilizar em seus sermões a candeia que ilumina, a semente
lançada em diferentes solos, o joio e o trigo no mesmo campo, a dracma que se perdeu, as redes abarrotadas de peixes, fez
isso para que o essencial da Palavra chegue de maneira inteli-gível para a pessoa, sociedade e cultura que o ouve.
7. O resultado esperado da apresentação contextualizada do evan-gelho é o arrependimento dos pecados e sincera conversão. Qualquer apresentação do evangelho que leve o homem a sen-
tir-se confortável em seu estado de pecado é certamente inconclusiva e parcial. Paulo deixa isto bem claro quando lhes expõe um evangelho libertador e transformador.
Critérios bíblicos para a contextualização
Tippett enfatiza que quando um povo passa a ver Jesus como Senhor pessoal, e não um Cristo estrangeiro, quando eles agem de acordo
30 Raízes bíblicas e teológicas da contextualização missionária
com valores cristãos aplicados à própria cultura, vivendo um evange-
lho que faz sentido à sua cosmovisão, quando eles adoram ao Senhor de acordo com critérios que eles entendem, então teremos ali uma
igreja entre eles.
Apesar de o evangelho ser supracultural e a-temporal, para todos
os povos em todos os tempos, cada cultura, por si, possui uma fórmula própria de elaboração de perguntas a serem respondidas pela Palavra. A sensualidade é condenada pela Bíblia, mas cada povo desenvolve uma compreensão cultural distinta do que é ou não sensual. A con-textualização da mensagem, portanto, é um processo necessário para que a mesma seja transmitida com fidelidade.
Podemos exemplificar pensando na figura de um homem ociden-tal urbano com pneumonia. No ocidente tal enfermidade é tratada de acordo com o conhecimento acumulado sobre a enfermidade e a histó-ria prescrita de cura. A pergunta que surge, portanto, é apenas como
tratá-la. No contexto africano, a principal pergunta a ser debatida não é como, mas sim, por quê. A causa da enfermidade é a questão mais relevante e nenhuma ação será tomada até que haja uma iniciativa na direção de se produzir esta resposta. Trata-se uma mesma enfermidade
objetiva, gerada pelos mesmos mecanismos biológicos, mas com abor-dagens culturais distintas. A compreensão das perguntas que inquie-tam os corações é fundamental para a proclamação do evangelho de forma
decodificada e transformadora. Se fecharmos os olhos para a necessidade
da contextualização iremos comprometer o conteúdo do evangelho na transmissão do mesmo. Possivelmente passaremos adiante apenas sinais sem significados que produzirão valores sincréticos e não bíblicos.
Devemos, porém, perceber que a contextualização não possui va-lor em si mesma. Seu valor é proporcional ao conteúdo a ser contextua-lizado. Nielsen afirma que a Ubanda no Brasil é a forma mais perfeita
de contextualização de valores religiosos. Trazida pelos escravos, mol-dou-se ao catolicismo europeu, forneceu uma mensagem pessoal e informal, gerou células que ganham vida de forma independente e cria cenários atrativos para novos adeptos. Portanto, a pergunta não é
apenas "como", mas especialmente "o que contextualizar". O valor primário da contextualização do evangelho é a mensagem, a Palavra, e
não a técnica, a comunicação.
A teologia bíblica da contextualização • 31
Na tentativa de avaliar a compreensão (e transformação) do evan-
gelho em um contexto transcultural, ou mesmo culturalmente dis-
tinto, proponho três principais questões que deveríamos tentar responder perante um cenário onde a mensagem bíblica já foi pregada:
1. Eles percebem o evangelho como sendo uma mensagem rele-
vante em seu próprio universo? 2. Eles entendem os princípios cristãos em relação à cosmovi-
são local ?
3. Eles aplicam os valores do evangelho como respostas para os seus conflitos diários de vida?
Contextualizar o evangelho é traduzi-lo de tal forma que o se-
nhorio de Cristo não será apenas um princípio abstrato ou mera dou-
trina importada, mas será um fator determinante de vida em toda sua
dimensão e critério básico em relação aos valores culturais que for-mam a substância com a qual experimentamos o existir humano.
Para que isto aconteça é necessário observar alguns critérios para a comunicação do evangelho:
1. Toda comunicação do evangelho deve ser baseada nos princí-
pios bíblicos, não sendo negociada pelos pressupostos cultu-rais das culturas doadoras e receptoras do mesmo. Entendo
que a Palavra de Deus é tanto transculturalmente aplicável
quanto supraculturalmente evidente. É, portanto, suficiente para todo homem, seja o urbano ou o tribal, o passado ou o
presente, o acadêmico ou o leigo. 2. A comunicação do evangelho deve ser uma atividade realizada a
partir da observação e avaliação da exposição da mensagem que
está sendo comunicada. O objetivo desta constante vigilância é propor um evangelho que possa ser traduzido culturalmente fazendo sentido também para a rotina da vida daquele que o ouve. É necessário fazer o povo perceber que Deus fala a sua
língua, em sua cultura, em sua casa, no dia a dia. 3. A rejeição do evangelho não deve ser vista, em si, como
equivalente à má contextualização. O confronto da Palavra
32 Raízes bíblicas e teológicas da contextualização missionária
com a cultura ocorrerá, assim como a rejeição da mensagem
bíblica. 4. Ao elaborarmos a abordagem na apresentação do evangelho
deve-se partir da Bíblia para a cultura e não o contrário.
Não interessa o que mais um missionário faça, ele precisa procla-mar o evangelho. Trabalho social, ministério holístico e compreensão
cultural jamais irão substituir a clara comunicação do evangelho ou
nem justificar a presença da igreja. O conteúdo do evangelho exposto
em todo e qualquer ministério de plantio de igrejas deve incluir: a) Deus como ser criador e soberano (Ef 1.3-6); b) o pecado como fonte
de separação entre o homem e Deus (Ef 2.5); c) Jesus, sua cruz e ressurreição como o plano histórico e central de Deus para redenção
do homem (Hb 1.1-4); d) o Espírito Santo como o cumprimento da
promessa e encarregado de conduzir a igreja até o dia final.
Concluo com rápidas palavras. Precisamos conciliar a sensibilidade
e interesse cultural com uma teologia bíblica que fundamente o minis-tério. Se uma sugestão pudesse ser dada seria esta: reavaliarmos nossa atividade missionária e eclesiástica à luz daquilo que é teologicamente
fundamentado e não apenas praticamente frutífero, seja do ponto de vista da comunicação da mensagem ou da formação da igreja.
Colhemos hoje frutos amargos do nominalismo cristão e do
sincretismo religioso que germinaram a partir de um enfraqueci-mento da centralidade da Palavra durante o trabalho de comunica-ção do evangelho. As justificativas históricas para tal quase sempre
orbitaram entre dois pontos: a ênfase na justiça social e a procura por uma comunicação culturalmente mais sensível. Porém se cre-mos que Deus é o Criador e Senhor da história, dos povos, das lín-
guas e culturas, precisamos crer que sua Palavra não é apenas verdadeira mas também fomentadora de justiça (libertando os fra-cos e oprimidos) e também comunicável ao coração de todo homem,
e destinada a todo homem. Paralelamente também colhemos frutos amargos pela ausência
de compreensão cultural na apresentação de Cristo. Dois destes fru-
tos são o nominalismo cristão e sincretismo religioso. Olhando as fren-tes missionárias despreocupadas com a contextualização encontraremos,
A teologia bíblica da contextualizacão 33
abundamente, templos de cimento para culturas de barro, pianos de cauda para povos dos tambores, terno e gravata para os de túnica e turbante, sermões lineares para pensamentos cíclicos, sapatos engra-xados para pés descalços. Tão ocupados em exportar nossa cultura nos esquecemos de apresentar-lhes Jesus, Deus encarnado, totalmente contextualizado, luz do mundo.
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Modelos bíblicos de contextualização em
Atos 14 e 17
A seguir, eles se reuniram ao pé da cruz para a primeira Ceia do Senhor, enquanto os outros olhavam. Depois de tomar o pão — uma batata-doce cozida, fria — e parti-lo em pedacinhos, John colocou-os sobre uma folha de bananeira e passou-os a todos os que foram batizados. Então ele tomou o vinho — suco de framboesa silvestre em copinhos de bambu — e distri-buiu entre os treze.'
O trecho acima, extraído do relato de John Dekker sobre seu empenho em achar as formas culturais apropriadas para os manda-mentos bíblicos entre povos na Papua Nova Guiné, mostra o desafio enfrentado por todo o missionário que deseja comunicar bem o evan-gelho em outras culturas. Mas também é um feliz exemplo do que pode ser feito em termos de adaptação cultural quando existe sensi-bilidade, conhecimento da cultura e compreensão da essência bíblica.
Neste breve estudo, vamos considerar duas situações que envol-veram o apóstolo Paulo em seu ministério transcultural. Buscaremos lições aplicáveis para os nossos dias e princípios básicos de contextualização que nos orientem na comunicação das verdades eter-nas em outros contextos religiosos, culturais e linguísticos.
' Dekker, John, Tochas de Júbilo, 1988:116
36 Raízes bíblicas e teológicas da contextualização missionária
Os dois contextos que serão considerados são Atos dos Apóstolos
14, Barnabé e Paulo em Listra, e Atos 17, Paulo em Atenas. Existem
elementos em comum nestes dois contextos, assim como divergên-cias, que influenciam a forma como os apóstolos escolhem suas estra-tégias de comunicação.
Paulo e Barnabé em Listra (Atos 14)
Barnabé e Paulo estão em sua primeira viagem missionária, narrada pelo médico amado Lucas nos capítulos 13 e 14 de Atos. Sairam de Antioquia da Síria, rumo ao ocidente e passaram por Chipre, Perge e
Antioquia da Pisídia. Dali mudaram o curso para o oriente e prega-
ram o evangelho em Icônio, Listra e Derbe. O regresso seguiu basica-mente o mesmo caminho.
A igreja vivia um forte momento de expansão após os anos de "curtição da comunhão fraternal" em Jerusalém. Os contatos com os gentios ainda eram poucos em termos de evangelização direta e a equipe
de Barnabé e Paulo foi pioneira neste tipo de avanço. Alguns gentios já tinham sido alcançados, porque foram ganhos através dos judeus presentes em Jerusalém no dia de Pentecostes (que possivelmente ge-
rou igrejas no mundo romano, como a de Roma). Green descreve
assim o momento histórico narrado em Atos:
Na primeira parte de Atos, Lucas mostra os estágios de desenvolvimento desta expansão. Primeiro o evangelho foi pregado em Jerusalém (1.1-6.7), depois ele se espalhou pela Palestina e por Samaria (6.8-9.31) e a seguir, alcançou Antioquia (9.32-12.24). A segunda parte forma um belo equilíbrio com a primeira, relatando a difusão do evangelho através da Ásia Menor (12.25-16.5) e da Europa (16.6-19.20), até chegar em Roma (19.21-28.31).2
Mesmo com a pregação aos samaritanos e aos prosélitos religiosos (ou "tementes a Deus") como o eunuco etíope e Cornélio, é a partir
da chegada forçada em Antioquia que os seguidores de Cristo, logo chamados de cristãos, começam a evangelizar os gentios. Portanto, o
Green, Michael, Evangelização na Igreja Primitiva, 1984: 394
Modelos bíblicos de contextualizacao em Atos 14 e 17 e" 37
texto em questão é tremendamente interessante por colocar, pela pri-
meira vez, de forma declarada e registrada, os apóstolos diante da
questão de contextualizar a mensagem. A visita em Listra começa com a cura de um homem aleijado,
paralítico desde o seu nascimento, que jamais pudera andar (v.8). O milagre alvoroçou a cidade e os apóstolos foram identificados com deuses pagãos, dando oportunidade ao testemunho. A pregação na
cidade quase termina em tragédia, sendo Paulo apedrejado pelas mul-tidões instigadas por judeus que vieram das cidades vizinhas para atrapalhar o avanço da "seita nazarena". Segundo os vv. 21 e 22 e 16.1
e 2, fica claro, entretanto, que surgiu uma igreja na cidade. A cidade de Listra ficava numa região agrícola e, por muitos,
considerada atrasada. Seus habitantes falavam a língua licaônica e não
o latim ou o grego, utilizados pelos mais cultos no Império Romano.
Dominava a idolatria tendo entre seus deuses principais a Zeus e a Hermes (ou Júpiter e Mercúrio, equivalentes romanos). Uma lenda
local dizia que estes deuses já haviam, em ocasiões anteriores, visitado a terra em forma humana. Segundo o panteão grego, Zeus era o deus chefe, enquanto que Hermes era o porta-voz dos deuses. Conforme
uma antiga lenda, em determinada ocasião, estes deuses não tinham sido bem recebidos pelo povo resultando em grandes prejuízos e crian-
do a expectativa de uma nova oportunidade para render-lhes as devi-das homenagens.'
Neste ambiente de zona rural e de idolatria é que os pioneiros se encontram para, de forma clara e correta, explanar o evangelho de Cristo.
Um detalhe interessante é que Timóteo era desta cidade (At 16.1, 2).
A visita a Listra começa com um milagre. Lucas faz uma tríplice afirmação da paralisia do homem, marcando claramente que não se
tratava de um milagre apenas psicológico. Três expressões são usadas:
▪ aleijado — adynatos tais posin — fraco nos pés, sem forças para andar
▪ paralítico — cholos — manco, que tem um só pé, paralítico
▪ jamais pudera andar — oudepote periepatésen
3 Bruce, F.F., The Book ofActs, 1977:291,292
38 • Raízes bíblicas e teológicas da contextualização missionária
O médico Lucas realmente enfatiza a situação clinica do ho-mem, certamente para dar um claro contraste ao ocorrido e à reação do povo no v. 11. Paulo se interessa pelo homem e, ao estilo de Jesus, olha-o atentamente, se compadece e vê sua fé para ser curado (sôthenai
— para ser salvo, de sôzo — salvar, ajudar, guardar, curar). Sem forçar o sentido da palavra ou a situação específica, parece
que há uma preocupação por parte de Paulo que vai além da cura física. Isto indicaria já um aspecto interessante da contextualização do evangelho — a mensagem vem de encontro às necessidades do homem paralítico em Listra, curando-o em primeiro lugar de sua enfermidade e sendo-lhe anunciado, juntamente com os demais na cidade, também a libertação da idolatria e da "paralisia" espiritual.
O próprio homem dá testemunho de sua cura. Trata-se de um evangelho que age, que transforma situações. Não é a primeira vez que Marcos 16.17,18 se cumpre no ministério dos apóstolos e parece que de forma muito natural faz parte do avanço do Reino, mesmo no meio dos povos gentios.
O contexto deixa também transparecer um confronto de poder espiritual. O medo do povo, baseado na superstição da lenda, em não receber bem os deuses e consequentemente serem castigados nova-mente, foi confrontado pela ação curadora e salvadora do Deus vivo e verdadeiro, canalizada pelos apóstolos.
A reação do povo não se deixa demorar. O milagre alvoroçou a cidade e os habitantes gritam em língua licaônica identificando os apóstolos com os esperados deuses Zeus e Hermes. Bruce destaca a questão do idioma:
O fato das multidões terem gritado em língua licaônica sendo destacado
por Lucas (que deve ter recebido esta informação de Paulo) se deve pro-
vavelmente a duas razões: em primeiro lugar, Paulo e Barnabé reconhece-
ram que era um idioma diferente da dos frígios que tinham ouvido dos
lábios da população nativa em Antioquia da Pisídia e Icônio; em segundo
lugar, o uso da lingua licaônica explica porque Paulo e Barnabé não enten-
deram o que estava passando até que estavam já avançados os preparati-
vos para pagar-lhes honras de divindades.'
Bruce 1977:291
Modelos bíblicos de contextualizaçdo em Atos 14 e 17 39
A interpretação do povo foi de acordo com seu conhecimento, certamente usando seu referencial de lendas já mencionado acima. Só poderiam ser deuses (no caso, Zeus e Hermes) que estavam daquela forma milagrosa aparecendo. Lucas explica esta reação positiva do povo aos visitantes e os preparativos para a adoração a eles, mostrando a religiosidade do povo, seu anseio e sua veneração, frutos de uma idolatria impregnada na sociedade gentia da cidade.
Paulo e Barnabé parecem ser lentos em reagir às homenagens devido, como foi mencionado, a dificuldade em entender o idioma licaônico. Pegos de surpresa, a reação dos apóstolos é tipicamente judai-ca — rasgam suas vestes em sinal de horror e protesto (cp. Mc 14.63) — atitude, no entanto, que sem dúvida foi compreensível para os habitantes da cidade. Para reforçar sua mensagem de que são seres humanos iguais a outros, se lançam no meio da multidão, certamente com o intuito de que os apalpassem e constatassem que realmente eram homens de carne e osso.
A pregação propriamente dita inicia-se aqui com alguns ter-mos chaves: anunciamos o evangelho (evangelizomenoi), para que destas cousas vãs (mataios — de matê — vão, ineficiente, inútil, in-frutífero, fútil, sem base, louco, tolo; 1Co 3.20; 1Co 15.17; Tt 3.9) vos convertais (eptstreftin— mudar de direção, dar meia volta, signi-ficando mudar de caminho de vida, uma transformação completa) ao Deus vivo. Diz Laubach:
Atos frequentemente descreve os resultados da proclamação missionária pelos primeiros cristãos. Sempre fala da conversão como um evento "uma-vez-por-todas" e com conteúdo próprio (At 9.35; 11.21). De At 15.3 fica claro que a palavra "conversão" logo se tornou um termo técnico que não necessitava mais explicação. epistrepho é usado para a conversão de um homem que envolve uma completa transformação de sua existência sob a influência do Espírito Santo.'
Paulo deixa claro o motivo de sua vinda. Ele sabia do confronto que sua mensagem poderia causar, mas também reconhecia a urgente
Laubach, F., "Epistrepho" em The New International Dictionary of New Testament Theology, Brown, C. (ed), 1977:355
40 Raízes bíblicas e teológicas da contextualização missionária
necessidade que o povo tinha de mudar sua vida e, por isso, expõe da
forma mais inteligível que pode as boas novas de salvação. A conversão, a mudança de rumo, deveria ocorrer da idolatria, que em nada tinha valor, para o verdadeiro e único Deus. Sem dúvida, era uma mensagem forte e nova para os homens de Listra. Existe uma lógica na exposição
de Paulo, tentando criar uma ponte com os ouvintes para que eles se sentissem participantes da mensagem e da oferta salvadora.
Ele começa com o Criador comum de todos, incluindo os de
Listra, que deixou os povos andarem nos seus próprios caminhos, mas que manteve um controle e uma presença no meio dos povos aben-çoando-os através da natureza. Não se deveria, portanto, adorar a cria-ção ou a criatura, mas o Criador que está por trás de tudo.
Eerdman comenta:
Em Listra Paulo dá um exemplo admirável da adaptação necessária da
mensagem missionária ao auditório, não alterando sua essência, mas o
enfoque. Paulo se dirige à entusiasmada multidão de pagãos. Não começa
recorrendo à Escritura, que seus ouvintes desconhecem por completo, mas
fala-lhes de Deus cujo poder e amor se manifestam nas obras da natureza
e de sua providência. Diante da bondade de um Deus vivo e verdadeiro
como esse, Paulo convida a seus ouvintes a se arrependerem, e prepara o
caminho para a mensagem acerca de Cristo, o Salvador.6
Até no aspecto de "permitir que os povos andassem nos seus pró-prios caminhos", Deus é o agente, o que controla. Existe aqui uma valorização, por parte de Deus, das diferentes culturas, resultantes do
processo de "enchimento da terra" proposto e exigido pelo próprio Criador. A natural diferenciação em culturas e em línguas ocorreria
mesmo sem a confusão de Babel, já que cada povo teria seu ambiente a que se adaptar e a distância entre os povos causaria também um distanciamento linguístico. Porém, Deus não se deixou sem testemu-nho (amartyron), no sentido de preservar algo de si na cultura e na vida do povo, dando suficiente razão para condenar mas também con-dições de um elo para a propagação do evangelho (Rm 1.18-20).
Eerdman, C.R , Hechos de los Apostoles, 1974: 133,134
Modelos bíblicos de contextualizacão em Atos 14 e 17 41
Resumindo o breve estudo desta passagem, os seguintes aspectos podem ser destacados na tentativa feita pelos apóstolos em comunicar
a mensagem de salvação:
„. A cura do homem paralítico, que demonstra um evangelho integral de poder e de esperança, e que dá resposta à necessi-
dade mais patente do ser humano. .• O claro rechaço às homenagens e à adoração como deuses, que
se aceita, teria criado grande dificuldade mais tarde para a pregação sobre Cristo e causaria um sincretismo indesejável.
A mensagem não ficou só no milagre, mas mostrou a situação pecaminosa dos habitantes de Listra, o problema da idolatria e o caminho de volta a Deus.
.• Ao utilizar o argumento da natureza e identificar o Criador comum a todos, sem usar o Antigo Testamento, Paulo é sensí-vel ao conhecimento do povo e consegue comunicar de forma compreensível. Num contexto rural, a terminologia é campesina e facilita ao povo um reconhecimento da grandeza de Deus.
„. Mesmo com dificuldades iniciais de entender o idioma e de
reconhecer o que estava acontecendo, existe uma identifica-ção com o povo por parte dos apóstolos, deixando claro que também eram seres humanos, igualmente dependentes da gra-ça divina.
A radicalidade do evangelho é demonstrada na apresentação de um Deus único, que rejeita outros deuses. Instigada pelos judeus e com dificuldade de aceitar a posição radical dos após-tolos, a multidão apredreja a Paulo.
Paulo em Atenas (Atos 17)
A situação de Atos 17 é bastante diferente. Atenas é um contexto
urbano, cosmopolita e pluralista. Paulo não gera a mesma agitação que em Listra. Inclusive não temos relato de que ocorrera um mila-
gre. Quem sabe não adiantaria muito — seria explicado de forma racional ou analisado filosoficamente não tendo o mesmo efeito que
em Listra.
42 Raízes bíblicas e teológicas da conlextualização missionária
Ao descrever os sentimentos de Paulo, Lucas diz que o apóstolo estava revoltado com a idolatria que reinava na cidade. A expressão paroxyno (profundamente indignado) é visto por Stott como a reação de alguém que tem ciúmes, que é zeloso, que não aceita que a exclu-sividade de Deus como o único e verdadeiro seja questionada.'
No intuito de proclamar a verdade, a estratégia utilizada por Paulo é de usar os meios de comunicação do local — discutir na sinagoga com os judeus e tementes a Deus (assim como fazia também em outros lugares) e na praça principal (agora). Esta discussão em público o levou, inclusive, a uma reunião no Areópago onde os verdadeiros filósofos discutiam.
Alguns aspectos interessantes precisam ser destacados. Primeira-mente, Paulo conhecia bem as discussões que ali ocorriam e a filosofia dos epicureus e dos estoicos. Trata-se de um contexto mais familiar para o apóstolo comparado com Listra, onde não havia dificuldades de entender a língua ou os conceitos que vigoravam. Os epicureus se baseavam numa filosofia do acaso, crendo em deuses remotos que não se envolviam com os seres humanos. Negavam a ressurreição dos mor-tos e não aceitavam a ideia de um julgamento final. Os estoicos eram mais racionais e platônicos, voltados ao panteísmo. Paulo decide usar boa parte do vocabulário destes grupos filósoficos e cria um interesse inicial pela mensagem que trazia.
Em segundo lugar, Paulo pregava a respeito de Jesus e da ressur-reição (v. 18), possivelmente sendo mal-interpretado pelos ouvintes que reagiram e creram que falava de deuses estranhos. Stott, baseado na sugestão de Crisóstomo, comenta que:
É possível que os filósofos, percebendo que a essência da mensagem de Paulo era ton Jesoun kai ten anastasin (Jesus e ressurreição) tenham pen-sado que ele estava apresentando aos atenienses um novo par de divinda-des, um deus masculino chamado "Jesus" e sua companheira "Anastasis".8
Se intencional ou não, Paulo, em terceiro lugar, aproveita-se da curiosidade dos habitantes de Atenas em ouvir novidades e elogia o povo por sua religiosidade, busca elementos de contato e faz uso de
7 Stott, John, A Mensagem de Atos, 1990:314 Stott 1990:318
Modelos bíblicos de contexttunização em Atos 14 e 17 .. 43
uma argumentação lógica e racional. Em seu discurso (v. 22-31), dei-xa claro que o Deus desconhecido é o criador e sustentador de todas as coisas, inclusive dos seres humanos. Qualquer filosofia de um Deus
distante ou impessoal é descartada. A citação de poetas locais como Epimênedes e Arato (v. 28) fortalece seus argumentos e atrai os ou-
vintes, mas também busca uma identificação com o povo ao utilizar o
chamado "nós inclusivo". Apesar do empréstimo de termos filosóficos, sua mensagem é
clara. Este Deus, gerador de toda vida, esperava a iniciativa do ser humano por um relacionamento baseado no reconhecimento de sua singularidade e no arrependimento da idolatria. O juízo negado pelos filósofos era, segundo Paulo, uma realidade, assim como a ressurreição dos mortos. A ressurreição de Jesus, era inclusive, a prova de seu papel
intermediador entre Deus e homens e a única esperança de salvação. Diante da expectativa que muitas vezes temos em nossos dias de
rápido crescimento e sucesso fácil no ministério, poderíamos achar que
Paulo deveria esperar com o argumento da ressurreição até convencer seus ouvintes de que sua mensagem era verdadeira. Ao citar a ressurrei-ção de Jesus afugentou sua audiência e de diferentes formas dispensa-
ram o "tagarela". Este elemento de radicalidade na mensagem, o diferencial de um evangelho barato do verdadeiro, custou-lhe caro, mesmo não sen-do em forma de sofrimento físico como no caso de Listra.
Resumindo este trecho de Atos 17, podemos constatar que o esforço de comunicar o evangelho em Atenas segue em parte um pa-drão diferente do de Listra:
A metodologia de Paulo é claramente contextualizada à situ-ação em Atenas.
Sua linguagem é adaptada a uma terminologia conhecida pe-
los filósofos da cidade — neste caso em particular os epicureus e estoicos.
A argumentação de Paulo segue uma linha muito mais racional e filosófica em Atenas — fala inclusive da participação do ser
humano no objetivo maior da criação: "nele vivemos, nos move-
mos e existimos", ao estilo estoico. Em Listra a argumentação baseava-se nos elementos da natureza, na colheita, etc.
.•
.•
.•
44 11. Raízes bíblicas e teológicas da contextualização missionária
A pluralidade de Atenas facilita a pregação do evangelho, mas também torna a mensagem uma entre muitas outras. Não há o mesmo efeito de radicalidade. Em Listra Paulo e Barnabé são encarnações dos deuses e por isso são venerados. Não há como rejeitar. Em Atenas, Paulo é porta-voz de um "deus" entre muitos que pode ser aceito ou não. Por isso o elemento da ressurreição, a única coisa realmente radical para os filóso-fos que estavam ouvindo, é um divisor de águas.
Comparando alguns elementos característicos de Listra e Atenas temos o seguinte quadro:
ATENAS
Centro urbano
Cosmopolita
Pluricultural
Línguas do império
Idolatria com grande pluralidade de deuses
Confronto de ideias
LISTRA
Zona rural
Provinciano
Monocultural
Língua local
Idolatria voltada a deuses específicos
Confronto de poder
A estratégia de contextualização utilizada pelos apóstolos com-
bina com as peculiaridades e características de cada cidade:
LISTRA
Referência à natureza e estações do ano
Cura do paralítico
Identificação com o povo —somos iguais
Gancho: a natureza e o Criador
Mensagem clara de conversão da prática idólatra
Rejeição a atalhos de fama
ATENAS
Referência aos altares religiosos
Argumentação lógica
Identificação com o povo —somos todos geração de Deus
Gancho: citação dos poetas locais
Mensagem clara de conversão da atitude e filosofia idólatra
Rejeição a "baratear" o evangelho
Modelos bíblicos de contextualização em Atos 14 e 17 ma 45
Conclusão
Concluímos nosso estudo citando alguns princípios de contex-tualização com base nestes dois exemplos no ministério transcultural
de Paulo e Barnabé:
1. Fidelidade ao evangelho, não abrindo mão do que é essencial.
2. Objetivo de ver o povo salvo, independente do contexto social,
religioso ou étnico. 3. Comunicação transcultural, buscando compreender e falar a
linguagem do povo, entender os elementos da cultura e da
religiosidade. 4. Uso de elementos conhecidos pelo povo, facilitando a com-
preensão da mensagem. 5 . Amor demonstrado em milagres, não visando sensacionalismo
ou crescimento fácil.
6. Rejeição à fama pessoal, colocando a verdade do evangelho acima de sua própria segurança, mesmo correndo o risco de ser
apredrejado ou ridicularizado. 7. Cristocentrismo, sendo Jesus Cristo a principal mensagem dos
apóstolos.
A experiência transcultural dos apóstolos é vivida diariamente
pelos missionários de nossos dias. O grande desafio é de comunicar as boas novas de salvação de forma que as pessoas entendam a mensa-
gem e captem a relevância da salvação para sua vidas. Não se trata de uma tarefa fácil. Mesmo com todo o esforço de contextualização da mensagem, de adaptação cultural do missionário e de aprendizado da língua local, nem sempre atinge-se o resultado desejado. Para Paulo, a visita a Listra terminou em grande dor física quando foi apedrejado e até dado por morto. Em Atenas, ele foi ridicularizado e menospreza-do. Certamente o esforço não foi em vão, e os apóstolos deram um importante exemplo de fidelidade ao chamado e à mensagem de Cristo. Fizeram sua parte. O resultado, no entanto, depende da obra do Es-
pírito Santo, que é o único que pode convencer o ser humano do
pecado, da justiça e do juízo.
46 • Raízes bíblicas e teológicas da contextualização missionária
Bibliografia
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...rj3r.
Contextualização e a mensagem da cruz 1 Coríntios I . 1 8-25
t 1 1 (1( 11 ( )1 (1
Estive recentemente com missionários brasileiros na Romênia e Moldávia. Sendo a minha primeira viagem para a região, fiquei sur-preso quando, no início de um culto, transmiti saudações da igreja brasileira. Em seguida, a igreja toda mandou sua saudação para nossa igreja, acenando com a mão erguida. Pensei comigo, o brasileiro "manda um abraço" que, muitas vezes, não passa de uma expressão. Mas aqui o povo manda uma aceno, mesmo que ninguém o veja.
São, obviamente, países diferentes com muitos costumes dife-rentes. Mesmo assim, dá para sentir que as igrejas de cada nação estão unidas. Como o apóstolo Paulo afirma: "Há um só corpo e um só Espírito,
como também fostes chamados em uma só esperança do vosso chamado; há um só Senhor, uma só fé, um só batismo; um só Deus e Pai de todos, que é
sobre todos, por todos e está em todos" (Ef 4.4-6). A igreja de Corinto precisava-se lembrar dessa mensagem, pois
passava por um período de divisões. Cada elemento seguia uma personalidade (1Co 1.10-17). Quando Paulo abordou esse pro-
blema, falou de um outro elemento que une todos os cristãos: a mensagem da cruz.
48 Raízes bíblicas e teológicas da contextualização missionária
A mensagem de Deus
Pois a palavra da cruz é insensatez para os que estão perecendo, mas para nós,
que estamos sendo salvos, é o poder de Deus. Pois está escrito: Destruirei a
sabedoria dos sábios e anularei a inteligência dos inteligentes (1Co 1.18-19).
Ao enfatizar a importância da mensagem da cruz, Paulo lembra
a igreja de sua origem. Não foi criada por homens, nem mesmo por homens tão influentes como Pedro ou Apolo (v. 12). Trata-se de algo que Deus planejou e somente ele poderia planejar. Através desse
plano, Deus revela a sua sabedoria e o seu poder. Para confirmar essa ênfase, Paulo cita Isaías 29.14, trecho que
se refere à situação histórica descrita em 2Reis 17-19 (cf. 2Cr 32; Is 36-37). O rei de Israel, Oseias, ao ser dominado pela Assíria (Salmaneser) procurou a ajuda do Egito. Mas quando Salmaneser
descobriu isso, invadiu a terra, sitiou-a durante três anos e, por volta do ano 722 a.C., acabou mandando Israel para o cativeiro.
Oito anos mais tarde o rei de Judá, Ezequias, enfrentou uma
situação semelhante. Pressionado pela Assíria e por seus desejos de expandir ainda mais, Ezequias olhou primeiro para o Egito, Fenícia e Filístia para fazer uma frente unida. Contudo, em pouco tempo,
Senaqueribe, então o rei da Assíria, conseguiu derrotar tanto a Fenícia, ao norte, como a Filístia, ao oeste de Judá. As inscrições do seu rei-nado também indicam que ele conquistou 46 cidades fortalecidas de
Judá (cf. 2Rs 18.13). Quando, então, Senaqueribe pediu a rendição final de Judá, o profeta Isaías chegou e aconselhou Ezequias a não olhar mais para o Egito ou outro país, mas unicamente para o Senhor (2Rs 19.5-7, 20-34). Uma vez que Ezequias tomou essa postura nova, o Senhor logo mandou seu anjo para destruir o exército da Assíria
durante a noite (2Rs 19.35). Ao citar este episódio, Paulo frisa o princípio de que os caminhos
de Deus frequentemente são diferentes dos caminhos dos homens
(cf. Is 55.8-9). Em todo instante, o homem precisa confiar no Senhor. Nos dias de hoje, quando se pensa sobre os desafios relacionados
a missões, estes são muitos. Na hora de procurar soluções, às vezes, parece que existem tantas opiniões quanto homens.
COntextualizacão e a mensagem da cruz - 1Carintios 1 18-25 49
A tentação pode ser de depender do famoso jeitinho brasileiro
(por sinal, "jeitinho" seria uma tradução possível para o termo "inteli-gência" [A21 e NVI] no final de verso 19). Quando há problemas,
procure a pessoa mais jeitosa. O problema fundamental de missões deve ser "Como abordar tal
povo?" Faz-se necessário lembrar: a obra é do Senhor. Deus abre as portas do campo e os corações para o evangelho.
A mensagem para crentes
Onde está o sábio? Onde está o instruído? Onde está o questionador desta
era? Por acaso Deus não tornou absurda a lógica deste mundo? Visto que,
na sabedoria de Deus, o mundo por sua própria sabedoria não o conheceu,
foi do agrado de Deus salvar os que creem por meio do absurdo da pregação
(1Co 1.20-21).
Paulo destaca não apenas o autor do evangelho como também seus ouvintes. Tanto um como outro surpreende. Quando se pensa na importância de tal mensagem, que supre a vida eterna ao homem, poderíamos imaginar que os homens mais dotados seriam os primeiros a valer-se dela.
Por meio de quatro perguntas retóricas, Paulo observa que são
relativamente poucos (cf. v. 26) os homens mais bem posicionados
que aproveitam da mensagem. O termo "sábio" sugere a categoria ge-ral destes homens. Por um lado, "erudito" indica o escriba judaico, os
teólogos daquela religião. Por outro, "questionador" aponta para o filó-sofo grego. Ao se referir aos dois, Paulo possivelmente estava lem-brando-se de sua experiência em Atenas (apenas 80 quilômetros distante) poucos anos antes (cf. At 17.15-34).
Paulo havia passado vários dias naquela cidade, conhecida mundialmente por seu alto ensino. Ele debatia tanto na sinagoga, conforme o seu costume, como na praça principal. Mas os seus esforços geraram poucos resultados positivos. Foi rotulado "tagarela" por alguns filósofos (At 17.18). Mesmo pregando uma mensagem bem
contextualizada (At 17.22-31), algumas pessoas passaram a zombar
do apóstolo. Outros pediram mais tempo para considerar a mensagem
50 • Raízes bíblicas e teológicas da contextualização missionária
(v. 32). A ideia da "ressurreição dos mortos", sendo Jesus o principal exemplo, foi especialmente difícil para eles aceitarem. Apenas umas poucas pessoas responderam bem à mensagem e creram (v. 34).
Em 1Coríntios 1.21 Paulo afirma que a mensagem da cruz não é apenas para os mais inteligentes, mas para os que creem. O instrumento para apropriá-la não é tanto a cabeça quanto o coração (cf. Tg 2.19).
Isso nos lembra do ensino frequente de Jesus: "Qualquer pessoa
que não receber o reino de Deus como uma criança, jamais entrará nele"
(Mc 10.15; cf. Mt 18.3; 19.14; Lc 18.17). A criança normalmente não é conhecida por sua inteligência ou poder. Na maioria das vezes, ela demonstra uma capacidade excepcional de confiar nos outros que possuem mais inteligência ou poder (i.e. adultos).
O homem confrontado com a mensagem pregada precisa confiar mais naquilo que Deus pode fazer para ele do que em sua própria habilidade. Isso pode ser mais difícil para os que têm mais habili-dade. No campo missionário pode haver a tentação de pregar primeiro para os "potentes". É preciso lembrar de que Deus chama mais os que facilmente reconhecem suas necessidades.
A natureza da mensagem
Pois, enquanto os judeus pedem sinais, e os gregos buscam sabedoria, nós
pregamos Cristo crucificado, que é motivo de escândalo para os judeus e absurdo para os gentios. Mas para os que foram chamados, tanto judeus como gregos, Cristo é poder de Deus e sabedoria de Deus. (1Co 1.22-24).
A terceira ênfase do apóstolo focaliza a própria natureza da mensagem. Chama atenção para um paradoxo. Aquilo que os ho-mens procuram não fornece resposta, enquanto aquilo que é des-prezado, sim, a tem.
As tendências dos dois grupos já foram bem conhecidas. Os judeus, lembrando os atos poderosos de Deus em seu passado, busca-vam sinais. Queriam, especialmente, que Jesus oferecesse ainda mais "provas" que foi o esperado Messias (cf. Mt 12.38-39; Mc 8.11; Lc 11.16; Jo 6.30).
Contextualizacão e a mensagem da cruz - 1 Coríntios 1 18-25 51
Deus, o nosso Criador soberano é, obviamente, perfeitamente capaz de produzir sinais quando quer. Mas, dificilmente o faz quando nós, motivados por incredulidade, queremos.
A situação lembra a afirmação do primeiro cosmonauta russo, Iuri Gagarin. Depois de descer com sua nave logo avisou: "Dei várias voltas ao mundo e olhei por todo lugar, mas não vi Deus". Tal afirma-ção revela mais a linha política do país do que algo sobre a natureza de Deus. Como alguém também observou, apenas bastava para Iuri abrir a porta da sua nave enquanto circulava a Terra e tirar o seu fardo espacial. Aí teria visto a Deus!
Os gregos, de modo semelhante, foram conhecidos por sua busca por inteligência. Séculos antes, o filósofo Heródoto observou: "Todos os gregos são zelosos por todo tipo de aprendizagem".
O problema é que as lições que Deus ensina são, várias vezes, para-doxos. Para o incrédulo, parecem loucuras. Quem, afinal, pode explicar a Trindade? Ou como Jesus pode ser 100% Deus e 100% homem? Ou por que alguém recebe vida através da morte de outra pessoa?
A mensagem de Deus aparenta fraqueza e loucura, mas, na ver-dade, oferece poder e sabedoria. Muitas vezes, quando alguém é bati-zado, percebe-se que está com muito medo de passar por baixo da água. Se o pastor não se cuidar, é capaz da pessoa agarrar-se nele e puxar os dois para baixo. O conselho que o batizante precisa é o mesmo que se dá para uma pessoa prestes a ser socorrida de afogamento: "Pare de mexer e descanse". Seu cérebro grita: "Segure bem!", mas se ele agarrar no pescoço do socorrista na agua, é capaz de matá-lo e se perder tam-bém. Parece uma mensagem ilógica, até paradoxal, mas, na verdade, representa tanto sabedoria como poder. Da mesma forma, o cristão pre-cisa confiar apenas em Deus quando quer nos socorrer. E paradoxo.
O resultado da mensagem
Porque o absurdo de Deus é mais lógico que os homens, e dfiaqueza de Deus é
mais forte que os homens (1Co 1.25).
Além da origem, destino e natureza da mensagem, Paulo enfatiza seu resultado. Resumindo, dar glória a Deus. Por causa da sua origem
52 • Raízes bíblicas e teológicas da contextualização missionária
em Deus, por causa dos ouvintes que não contribuem nada, apenas
creem; por causa da natureza paradoxal da mensagem, o resultado é gloria para Deus. A conclusão deve ser que Deus é mais forte e mais sábio que qualquer homem ou outra resposta (deus) que o homem pode procurar. Deus é maior e melhor — mais glorioso!
Conclusão
Em vista dessa mensagem, há pelo menos duas implicações para a contextualização, especialmente pensando no seu aspecto verbal.
1. Seja qual for o grau de contextualização, é improvável que a mensagem alcance todos em uma audiência grande. A mensa-gem de Deus, quando apresentada fielmente, continua sendo escândalo (pois contraria o ego humano), ou loucura (pois con-traria a lógica) para alguns.
A contextualização pode ajudar a compreensão. Mas deve-se ques-tionar se o objetivo das adaptações é a compreensão ou a aceitação. E claro que o missionário deseja uma aceitação ampla da mensagem. Quando não há, pode cair na tentação de arriscar uma contextualização
cada vez mais radical. Mas os resultados procedem de Deus. Cabe ao
missionário manter-se fiel — fazer de tudo para ganhar todos —menos alterar a essência de sua mensagem. Ele, da mesma forma que
seu ouvinte, precisa confiar que Deus, e unicamente Deus, pode rea-lizar a obra.
2. David Hesselgrave (A Comunicação Transcultural do Evange-lho, vol. 1, p. 129) identifica a "seleção da mensagem" como segundo passo de contextualização. O missionário não pode
falar tudo de uma vez só. Precisa priorizar alguns elementos
da mensagem para transmitir em primeiro lugar, em segundo lugar e assim por diante.
Pode ser necessária alguma forma de pré-evangelismo para alcançar o primeiro objetivo identificado por Hesselgrave, isto é, a "definição de
termos". Mas o pré-evangelismo não deve permitir ao missionário tirar os seus olhos do objetivo principal: a mensagem da cruz. Paulo gloriou-se no fato de que sempre pregava a mensagem da cruz (1Co 1.17).
Contextualização e a mensagem da cruz - 1Codutios 1 18-25 .. 53
A crucificação foi um modo de os romanos da antiguidade punir
seus criminosos. Mesmo que não seja usado muito hoje em dia, não é difícil imaginar o que acontece quando alguém fica pendurado lá.
Também não é difícil imaginar a dor de um pai ou de uma mãe
quando vê seu filho único sofrer. Da mesma forma, o pleno significado do sistema sacrificial ju-
daico pode ser incompreensível para a maioria hoje. Mas não existe uma sociedade sem noções de justiça e perdão.
A mensagem da cruz inclui as boas novas sobre a ressurreição.
Em nossos dias pode haver, como Paulo encontrou em Atenas, pessoas que questionam a possibilidade de vida após a morte. Mas dificilmente as mesmas pessoas e outras mais não têm alguma dúvida sobre o que
acontece então.
A mensagem da cruz apresenta respostas certas para cada uma dessas questões, respostas de Deus. Ela é uma mensagem paradoxal,
sim. Vida que procede de morte, e esperança de uma impossibilidade. Parece fraqueza, mas é a fonte de força divina. Na mensagem da cruz
encontramos uma mensagem supracultural. Nem todos vão aceitá-la,
mas os que aceitam, encontram a aceitação de Deus.
O apóstolo Paulo tinha muita razão. A mensagem da cruz nos une. Nela as possíveis facções encontram um ponto de acordo. Ela é
uma âncora para nossa fé. É o eixo da roda para os cristãos. É impossí-
vel pensar em cristãos que não sabem nada da cruz. Na hora da fazer sua contextualização... Não se esqueçam da mensagem da cruz!
Contextualização na história de missões:
precedentes, definições e questões
)1( ir/ )«; t ï I;io7
Introdução'
Estudei missões com Ray Buker, um professor que tinha sido muito influenciado por J.O. Frazer, missionário da Missão para o Interior da China (China Inland Mission — CIM, agora OMF — Overseas Missionary Fellowship), de Hudson Taylor. Buker tinha ido para a Birmânia (hoje Mianmar) em 1926 com uma junta missionária paternalista e com alguns missionários de teologia influenciada pelo liberalismo que surgiu no início do século XX. À medida que foi aumentando o contato dele com os missionários da CIM, Buker mudou radicalmente a sua filosofia de missões. Parou de criar depen-dência financeira, de viver separado do povo e de se considerar supe-rior. Migrou para a prática da identificação cultural, viajando, dormindo nas casas do povo, falando de Jesus ao redor da fogueira no meio das aldeias, usando trajes típicos e comendo a comida local.
Trechos deste capítulo são tirados do capítulo VII de KAIRÓS: Preparando
Missiondrios para o Século XXI, 1998.
56 Raízes da contextualização na história
Aprendeu com fluência mais de uma língua e trabalhou lado a lado
com "nativos", em especial com um que o acompanhou por anos no ministério. Ele levou a sério os "três autos" falados na época: autogoverno, autossustento e autopropagação. As novas igrejas não
podiam depender do missionário para estas coisas. Após seu retorno da Birmânia, Buker queria ensinar aos novos
missionários e alunos esta identificação e respeito para com as cultu-ras. Como resultado das suas aulas, vim para o Brasil decidida a iden-tificar-me ao máximo com a cultura brasileira. Eu ficava muito chateada quando não conseguia! Não sabia limpar o chão, nem lavar roupa ou louça com a mesma ginga das brasileiras. Não conseguia
falar certo. Não conseguia ser compreendida nas minhas aulas. Era
uma decepção. Graças a Deus, um dia alguém apareceu para me dizer a mesma
coisa que o William Reyburn2 aprendeu no Equador. Não nasci bra-sileira. Nunca vou ser brasileira. Fui criada em outro país, e foi assim que Deus quis. Mas isto não significa que vou me estagnar, defen-dendo um imaginado direito de ser americana. E preciso caminhar
em direção à identificação sadia, mas de forma realista e fincada em princípios bíblicos de ética e vida cristã.
Na época, Buker e outros missiólogos falavam dessa identificação em termos de fazer trabalhos e começar igrejas "indígenas". Isto não
significava igrejas de índios, mas igrejas do povo, dos "três autos". Mais tarde o sentido desta palavra foi ampliado, e a palavra usada
passou a ser "contextualização", que quer dizer (dependendo de quem a usa) a mesma coisa, porém com aplicação mais abrangente. Este capítulo apresenta alguns exemplos da prática de contextualização na história da igreja e como o conceito surgiu e se desenvolveu na missão da igreja evangélica mundial hoje.
E impossível dar uma definição precisa da palavra "contex-tualização". Ela tem sido muito modificada desde 1972 quando foi
utilizada pela primeira vez. Em termos gerais está ligada à ideia de
2 Veja a história em "Identificação na Tarefa Missionária" por William D. Reyburn, em Missões Transculturais: Uma Perspectiva Cultural. Ralph D. Winter e Steven C. Hawthorne, eds., Mundo Cristão, 1987.
Contextualização na história de missões precedentes definições e' 57
identificação cultural do missionário, à comunicação eficaz e à formação de uma comunidade que a Bíblia chama de igreja. As definições e a
dinâmica do conceito de contextualização serão melhor compreendidas
à medida em que examinamos seu uso ao longo da história. O movimento brasileiro de missões ganhou força no início da
década de 1970 com várias iniciativas. A JMM ( Junta de Missões
Mundiais), da Convenção Batista Brasileira, enviou um grupo de doze missionários em 1972, a Missão Antioquia teve seu início em 1975 e,
nesta mesma época, o Instituto Bíblico Betel Brasileiro em João Pes-
soa começou a ensinar missões. Estes grupos reforçaram o trabalho, preparo e envio já em andamento da Missão Novas Tribos do Brasil.
Desde então, o movimento tem sido marcado por um fenômeno inte-ressante e agradável — a unidade, pelo menos em comunhão e em momentos de encontro, entre denominações e agências. Infelizmente,
esta unidade corre perigo no presente momento, devido ao assunto em pauta: a contextualização. Há discussões e divisões acontecendo por causa da falta de contextualização, ou do excesso dela.
Não é apenas no Brasil que a contextualização está criando polê-mica e dissenções. Há discussões cada vez mais acirradas na literatura e nas discussões missiológicas sobre os níveis de contextualização (serão
examinadas em outro capítulo). Aqui me proponho a examinar alguns
exemplos históricos, inclusive bíblicos, e o pensamento daqueles que criaram e têm interagido com o conceito. E importante entendermos
como surgiram os argumentos e as teorias que orientam os que estão
se posicionando de um ou de outro lado, na esperança de traçarmos caminhos equilibrados e biblicamente orientados.
A história e o ensino de contextualização missionária na Bíblia
Missões é o mandato de Deus documentado por ele na Bíblia. Jesus disse que os discípulos ensinassem todas as pessoas (até aos confins do mundo) a guardar tudo que ele tinha ordenado (Mt 28.18-20). O conteúdo desse ensino está na Bíblia, razão que nos leva a começar
por ela e constantemente consultá-la como critério final de todas as
nossas estratégias missionárias.
58 • Raízes da contextualização na história
O modelo e ensino de Jesus
A vinda de Jesus Cristo em corpo humano é o maior exemplo de contextualizaão da história humana. Filipenses 2.1-11 descreve como ele deixou sua posição, sua glória, sua "pátria" e consentiu em ser hu-mano, de carne e osso, sentindo sede, fome, cansaço e dor. Andou nas estradas poeirentas da Palestina, falando com os discípulos e com as multidões, operando milagres e livrando-as de opressão humana e demoníaca. Ele morreu como um criminoso comum, rejeitado e objeto de escárnio e maldição. Deus veio em Cristo na encarnação, em uma identificação profundíssima com a humanidade e atravessou o abismo que separava os dois. Jesus se comunicou e foi compreendido, dei-xando que os seus discípulos, e consequentement a igreja, transfor-mados e capacitados, fossem agentes de Deus no mundo.
Antes de Jesus, o Antigo Testamento deixou claro a inclusão dos gentios no plano de Deus. Naquela época o gentio podia ser salvo pela aceitação dos ritos que demonstravam fé na promessa do Messias e na graça perdoadora de Deus, conhecida pelo povo desde Gênesis 3.15 e repetida ao longo da história. Não há registro que estes gentios que acompanhavam Israel no Êxodo e no resto da sua jornada tinham que mudar sua roupa, deixar de usar seu idioma ou mudar uma varie-dade de outros costumes secundários. O que eles tinham que fazer era deixar seus ídolos, aceitar o único e verdadeiro Deus e andar em conformidade moral e ritual com as instruções dadas para Moisés.
Jesus disse que não veio anular a lei de Moisés, mas sim, para cumprí-la (Mt 5.17). Ele pôs fim aos ritos, foi o último sacrifício, e abriu de uma vez o caminho ao lugar santíssimo para todos que nele creem. Com o objetivo de dar continuidade a esta mensagem, Jesus preparou um grupo heterogêneo de homens e mulheres para servir de fundamento de uma nova comunidade na terra. Esta comunidade tinha uma comissão, forte e repetida, de ir a todas as nações com as boas novas de Jesus — a mensagem da sua morte e ressurreição e a necessidade de arrependimento e fé nele para a salvação. Desde o iní-cio, vários foram enviados, a exemplo de Filipe, os apóstolos Pedro e João e, em Atos 13, Barnabé e Saulo. A nova igreja continuava o envio. Prevendo isso, um dos principais objetivos de Jesus era o bom preparo de seus discípulos.
Contextualizacão na história de missões: precedentes. definições e° 59
Uma parte importante no processo de contextualização é a for-mação de novos líderes e o desenvolvimento dos dons de cada pessoa
nas igrejas (por isso "apóstolos" aparecem na lista de Efésios 4.12, entre aqueles que ajudam as pessoas a exercerem seus ministérios). Para ser missionário e começar uma igreja missionária, é preciso haver
uma transformação profunda da cosmovisão, uma compreensão da realidade e da vida de discípulo. Para tal, Jesus conviveu com os pri-meiros apóstolos, incluindo-os no seu encontro com os males deste
mundo. Ensinou constantemente por meio de histórias e parábolas
que os obrigassem a pensar. Ensinou também por meio de perguntas
e correções de atitudes egoístas que ameaçavam destruir a nova comu-nidade. Tinham que aprender humildade, coragem, discernimento e toda uma compreensão e aplicação prática das Escrituras, tratadas por
Jesus como a verdade absoluta de Deus. Tudo isso era preciso para poderem fazer discípulos, batizando e ensinando-os a guardar tudo que Jesus ensinou. No entanto, o preparo não seria completo até a
ausência física de Jesus e a chegada do Espírito Santo com poder em
suas vidas. Os missionários no Novo Testamento não eram perfeitos, como
podemos constatar em vários textos, mas eles optaram, sim, por uma
caminhada de fidelidade a Deus. Para a maioria deles, essa atitude os levou a uma morte dramática. Por causa da convicção de que Jesus é o único caminho e a única verdade, eles deram a vida em amor e fide-
lidade a fim de cumprirem a "Grande Comissão". O apóstolo Paulo é um exemplo disso.
Paulo e contextualização
Apesar de ser judeu ortodoxo, fariseu radical e perseguidor, Paulo foi
bem preparado para sua missão cristã aos gentios. Natural da cidade
de Tarso, ele conhecia o mundo das filosofias, religiões, literatura, línguas, retórica, esportes e leis romanas e gregas. A combinação de uma formação exemplar nas Escrituras e de uma vida transcultural enquanto criança contribuiu muito para sua vida missionária. Ele escre-
veu aos coríntios que "para os fracos tornei-me fraco" e "tornei-me
escravo de todos para ganhar o maior número possível" (1Co 9.19,22).
Ele não considerava que tinha nenhum direito pessoal, a não ser o de
60 • Raízes da contextualização na história
proclamar o evangelho de forma comprensível aos ouvintes, qualquer que fosse a cultura deles. Ele queria que as pessoas conhecessem o único e verdadeiro Deus através de seu Filho, que veio para se oferecer em sacrifício para a humanidade separada de Deus pelo pecado e
desobediência. Para Paulo a solução não era automática para todos, pois as pessoas tinham que ouvir e crer, arrependendo-se dos seus pecados e aceitando esse Filho como salvador e Senhor das suas vidas. A alternativa era o juízo e a morte eterna. A sua motivação era a glória
de Deus e a necessidade da salvação dos homens que Deus ama. Por causa disso, Paulo não cansava de advertir os seus ouvintes da
verdade acerca do mundo e a natureza humana. Ele não tinha uma
visão romântica de cultura, como se fosse algo intocável e bonito. Ele advertia contra "o caminho deste mundo" e o "príncipe do poderio do ar" (Ef 2.1-3). Chamava o mundo de "trevas" e os homens sem Cristo de "mortos". Afirmava que Deus não habita em templos e objetos feitos por mãos humanas e que o homem recusa-se a reconhecer a
Deus criador, substituindo-o por objetos criados — a idolatria que
leva a loucura (At 17.22-31 e Rm 1.18-25). O próprio Paulo teste-munhava que foi arrancado das trevas e levado à luz. Ele dava a vida
para que outros pudessem ter a mesma experiência. O amor é central na mensagem do evangelho. Era o amor de
Cristo que constrangia Paulo, e este mesmo amor de Cristo trans-
forma tudo para os que creem. Deus ama! Aqueles que estão separa-dos de Deus e do povo de Deus, em Cristo são trazidos para dentro de um relacionamento íntimo — com os outros e com o próprio Deus.
Não é apenas uma nova vida espiritual, mas há um novo grupo social que se forma em torno de Jesus — irmãos, unidos, amados, pastoreados,
vocacionados e comissionados! E impressionante!
Em Efésios 1.15-21 e 3.14-23, Paulo ora para que os converti-dos possam conhecer de forma integral estas verdades acerca da sua
identidade em Cristo, o poder que têm, a herança, a riqueza, a espe-rança, o amor. Afirma que somos igreja, noiva de Cristo, corpo da cabeça que é Cristo. Paulo usa todas estas ricas imagens para transmi-tir as verdades profundas do que significa ser crente em Jesus, e não se limitou em nada a ensinar toda a verdade, dia e noite, de casa em casa, na praça, na escola e em todos os arredores (At 20.17-35).
Contextualização na história de missões• precedentes, definições. 61
No final da sua vida Paulo escreve a Timóteo, exortando-o a continuar ensinando as mesmas verdades, formando e tomando conta
da preciosa comunidade que é a igreja. Tinha que zelar pela pureza da vida e do ensino, e atentar-se para o perigo daqueles que queriam
inserir o legalismo judaico ou o gnosticismo grego na comunidade,
estragando a sua identidade como povo e canal do conhecimento de Deus no mundo.
A expansão e o ensino da igreja não pararam no relato do Novo
Testamento. Em toda história há constante crescimento e discipulado dos seguidores de Jesus, anunciadores do evangelho da Palavra de Deus. A seguir vamos olhar para algumas dessas pessoas, em especial para
aquelas que, de uma forma ou outra, nos ensinam sobre contextualização.
Exemplos da contextualização na história de missões de Atos 28 a 1972
O estudo da história da igreja e de missões é uma enorme e fascinante tarefa. Há volumes escritos sobre o assunto, como os de Latourette, Gonzales, Bosch, Winter e Hiebert. Em nosso estudo muito limi-
tado, vamos escolher apenas alguns exemplos de contextualização na
história de missões, para dar um gostinho ao leitor e despertá-lo a desenvolver seu estudo próprio.
Na história de missões há exemplos de todo tipo de contex-tualização. Na "não-contextualização", o missionário chega e impõe
ao povo receptor a totalidade das suas crenças e estilo de vida — costu-mes relacionados a comida, vestimenta, horários, arquitetura, posição dos participantes dos cultos e assim por diante. Dentro do missioná-rio há uma certeza de que este povo é inculto, não sabe de nada e tem
que aprender do zero como viver. Tal missionário não pergunta, não ouve, não se interessa em saber os mitos, as crenças, as práticas sociais e éticas, a história, os anseios, as dificuldades ou as alegrias do povo. Ele não se importa com as razões dos costumes do povo. Enfim, ele é o dono da verdade. Infelizmente, esta história continua se repetindo,
mesmo a partir do Brasil. Do outro lado há missionários que romantizam a cultura, acei-
tando-a sem critérios. O missionário estabelece estreitos relacionamentos
62 Raízes da contextualização na história
com as pessoas na convivência e adaptação cultural. Ele acredita que o
mesmo Deus dos cristãos se manifestou na religião daquele povo,
portanto basta ficar junto para ajudar as pessoas a continuarem em suas tradicionais práticas para evitar uma ruptura social. Muitos mis-sionários foram servir nas áreas de agricultura, medicina e educação,
porém sem terem se importado com a comunicação do evangelho. A
história das mudanças na compreensão de missões em muitas igrejas tradicionais desde o primeiro terço do século XX é uma complexa
jornada ao pluralismo e relativismo. Eu mesma sou de uma família
que aceitou o pluralismo, repudiando a necessidade de missões. Para meus parentes, todos os sinceros serão salvos.
Vamos examinar alguns exemplos importantes de contextua-
lização — a maioria deles (mas nem todos) saudável e equilibrado.
1. Exemplos celta
O movimento missionário celta' foi fundado por Patrício, o famoso ((santo" da Irlanda, nascido na Inglaterra no final do século IV, um ex-escravo que evangelizou a Irlanda. Pelos relatos históricos e pelos
seus próprios escritos, Patrício foi um homem de fé, poder, piedade e
conhecimento profundo da Palavra de Deus. Ele treinou centenas de
missionários em seus mosteiros e comunidades. Para ele, o mosteiro
não era para o homem se retirar do mundo, como na visão romana,
com a qual ele tinha pouca afinidade, mas era lugar para preparar
pessoas capacitadas para enfrentar e transformar o mundo pelo evan-
gelho. Os missionários celtas batizaram milhares de pessoas, planta-ram mais de 700 igrejas e transformaram a ilha e os campos missionários
onde foram enviados. As suas estratégias missionárias contextualizadas,
e as dos seus discípulos, incluiam os seguintes elementos:
Buscaram uma compreensão profunda da cultura; Trabalharam em conjunto — nos mosteiros e nas comunida-
des missionárias, na roça e em todas as tarefas domésticas —
' Daqui em diante os personagens e movimentos destacados serão colocados em negrito.
Contextualizaçao na história de missões precedentes, definições em 63
visando o preparo de pessoas capazes de viver com amor, hu-
mildade, compaixão e poder em missões; .• Viajaram em grupos para alcançar as vilas e povoados. Pediam
permissão ao rei local para estabelecer "comunidades de fé" ao
lado da cidade ou povoado (não ignoravam as estruturas locais)
onde estabeleciam seus lares, plantações e igrejas. Oravam pe-
las pessoas e com elas, trabalhavam juntos, serviam às necessi-
dades, abriam a comunidade com amor para as pessoas de fora,
ajudavam a resolver conflitos. Eram modelos visíveis de paz,
generosidade e amor; ▪ Discipularam e acompanharam os novos convertidos para
alcançar familias; ▪ Formaram igrejas locais;
▪ "Bispos" eram principalmente evangelistas (não adminis-tradores);
▪ Ensinaram para que as pessoas, que eram analfabetas, pu-
dessem ler e decorar as Escrituras; ▪ Expressaram o evangelho em poesia, música e arte — aquilo
que tocava as emoções; ▪ Oraram de forma compreensiva — em toda a vida diária —
ao levantar, dormir, comer, viajar, trabalhar; tinham a cons-
ciência de que Deus estava presente em tudo;
▪ Adaptaram (em vez de controlar, que era o estilo da igreja romana) as formas culturais neutras e positivas;
▪ Confrontaram a religião idólatra e violenta do druidismo;
expulsaram demônios e demonstraram o poder de Deus em curas e milagres;
„,. Relacionaram-se e identificaram-se com o povo receptor, por meio da amizade e compaixão verdadeira;
▪ Comunicaram que não tinham interesse em pregar para as pes-
soas, mas em conversar com elas, visando o benefício delas. Aju-daram o ouvinte a se envolver ativamente na conversa com perguntas e ilustrações relevantes. Era uma comunicação ba-
seada na vida real, com conhecimento e conviccão. Não usavam
ilustrações abstratas, mas concretas e fáceis de compreender.
64 • Raízes da contextualização na história
2 Exemplos católico-romanos
Roberto Nobili (1577-1656) é outro exemplo marcante da preo-
cupação de um missionário em fazer a contextualização sem contrariar a ortodoxia cristã. Estudos recentes sobre sua vida e missão tem trazido à luz informações relevantes para as discussões sobre contextualização na atualidade.4
Nobili nasceu em Roma, de uma família nobre, e entrou na ordem dos jesuítas aos 17 anos. Foi para Goa, na índia (1605), onde encon-
trou a missão parada e confusa. Em pouco tempo, conversando com pessoas locais, ele descobriu quais eram as barreiras culturais e linguísticas entre o povo e os missionários. Os missionários pensavam que a palavra parangi significava "português". O superior da ordem, Gonçalo Fernandez, pedia às pessoas para se tornarem cristãs, usando a frase: "Prangui kulam puguda venumo". A verdade é que ele estava perguntando: "Você quer se tornar pária intocável?" Ao contrário do
pensamento dos missionários, parangi era uma palavra de desprezo total, usada para alguém que é poluído, sem cultura, come carne, bebe, não toma banho, usa sapatos de couro e ignora regras sociais! Os mis-
sionários eram parangi e convidavam os hindus para se converterem e
serem parangis também!
Esta descoberta fez com que Nobili tomasse o caminho que ele
chamava de accommodatio, onde ele se despiu de toda roupagem europeia e eclesiástica, e se tornou um "homem santo", ou sannyasi.
Ele raspou o cabelo, passou a usar um manto cor de açafrão, sandálias desconfortáveis de madeira, um cajado de bambu com sete nós, e uma
cabaça de água para beber. Ele seguia a dieta de um sannyas, comendo apenas uma vez por dia, uma porção de arroz e ervas, sem carne
nenhuma. Também aprendeu bem mais de uma língua, inclusive o ((sagrado" sanscrito, e mudou-se da base da missão para um eremitério perto de um bairro hindu de alta casta.
Antes da sua morte em 1656, Nobili batizou mais de quatro
mil pessoas. Apesar deste sucesso, seus métodos foram bastante
4 Veja artigos como de Cody C. Lorance, "Cultural Relevance and Doctrinal Soundness: The Mission of Roberto de Nobili" em Missiology: an International Review, outubro 2005,p.415-424.
Contextualização na história de missões precedentes. delinicões ." 65
questionados, pois ele deixou os novos convertidos manterem certos
aspectos questionáveis da cultura, como manter a casta se não interfe-risse com o cristianismo, e sati, a prática de queimar viva a esposa do marido falecido no crematório. Ele próprio usou uma marca hindu
na testa, depois de ter "abençoado" a pasta usada para fazê-la. Tam-bém seguia o festival anual de Pongal, no qual os residentes de Madurai
cozinhavam arroz diante do ídolo Vighnes, embora ele transformasse
o rito, tirando o ídolo e o substituindo por uma cruz, proferindo uma
bênção sobre o arroz. Os métodos missionários de Nobili criaram uma grande disputa
com seus superiores e em 1744 (após sua morte) o Papa Benedito
XIV proibiu a sua continuação. Foi difícil para Nobili compreender as críticas, pois ele dedicou a vida ensinando e escrevendo o que ele
julgou ser um cristianismo ortodoxo, incluindo a autoridade e inspi-ração da Bíblia, a unicidade de Deus, a Trindade e a salvação por meio
de Cristo tão somente. Ele tentou examinar tudo com cuidado para
não cometer idolatria ou desobedecer às Escrituras.
A tentativa de contextualizar dentro dos limites bíblicos foi grande, mas em pelo menos duas áreas Nobili ainda seguia um mo-
delo conhecido hoje como "baixa contextualização" (ou "C2", como explicado no capítulo 7 deste livro). Talvez sejam essas as razões que
levaram as igrejas fundadas por ele a fracassarem mais tarde. Ele não treinou líderes nacionais, dependendo de missionários de fora. Tam-
bém ele não traduziu a Bíblia na língua do povo, apesar do alto conhe-cimento linguístico que possuia.
Em outras áreas ele teve uma identificação profunda com a cul-
tura, mas sem excluir batismo (seria um nível "C3" de contextualização). Em alguns momentos ele até pulou para o nível radical, mantendo castas, sati, a marca na testa e a observação da festa de Vighnes. Tudo isto mostra que a contextualização não é um pacote fechado, mas um processo complicado e abrangente.
3. Exemplos protestantes
A Reforma Protestante da Europa em geral não se preocupou com missões. Foi só com o trabalho dos morávios no século XVIII que podemos ver um exemplo impressionante de contextualização entre
66 e" Raízes da contextualização na história
os Protestantes. Após um momento transformador de avivamento, os
refugiados morávios se espalharam ao redor do mundo e com muita naturalidade participaram do cotidiano das pessoas que viviam nos lugares aonde chegaram. Sendo carpinteiros e agricultores, eles sem-pre ajudavam às pessoas na medida do possível. Isso acontecia em
meio a uma identificação marcante, acompanhada por uma pregação segura da salvação, com ênfase na cruz de Cristo. Sua influência não
foi apenas nos cinco continentes aonde foram, mas ultrapassou bar-reiras através da influência que exerceram sobre outros líderes, como Guilherme (William) Carey.
Guilherme Carey, o "Pai das Missões Modernas", impressio-nado com os Morávios, deixou outro exemplo de contextualização.
Chegando na índia, ele passou por grandes privações, até mesmo fome,
precisando morar numa favela e trabalhar junto com o povo na lavoura para ganhar seu pão. Foi um começo difícil, mas que trouxe o bene-
fício de uma convivência indiana profunda, e assim Carey prossegiu para marcar a cultura do sub-continente indiano inteiro.
Carey preocupava-se com justiça social, igualdade e amor. Antes
de ir à índia ele tomou posição contra a escravidão, e até parou de comer açúcar, produto de trabalho escravo na América Central (Beck, 2000:135). Esta atitude naturalmente se repetiu em sua oposição
ao sistema de castas na Índia. Assim, quando um indiano era bati-zado e admitido à primeira participação da ceia do Senhor, a casta
tinha que ser quebrada, algo que em Serampore não inibiu o suces-so do trabalho de Carey e o crescimento da igreja (600 batismos antes de 1818). Carey foi responsável pelo abandono oficial de sati (no qual as viúvas eram sempre cremadas vivas com os corpos dos seus maridos), do infanticídio de crianças defeituosas, e também da prática de deixar velhos à margem do rio Ganges para morrer
(George, 1991:203-205). A criatividade levou Carey a usar várias maneiras de comunicar
as verdades sobre Deus. Ele utilizou a hortelagem e a astronomia para mostrar que, ao contrário dos conceitos hindus de maya (ilusão) e de astrologia, a natureza era boa, criação de Deus soberano. Ajudou na criação de bibliotecas para que as pessoas pudessem ter acesso ao conhecimento. De forma marcante, conseguiu convencer o governo a
Contextualização na história de missões. precedentes. definições em 67
abolir a prática de sati. Para Carey, o evangelho tinha que permear a totalidade da vida — na praça, no mercado, no laboratório e na vizi-nhança (Miller, 1998:46-47). Ele usava a pregação e agia de forma concreta para confrontar o domínio do hinduismo sobre a mente e vida do povo.
Acima de tudo, Carey sabia que para ter uma igreja forte, ele tinha que ter líderes indianos. Por isso dedicou a maior parte da sua vida traduzindo a Bíblia e formando escolas de preparo ministerial. O "Grupo Serampore", a equipe missionária de Carey, escreveu o seguinte:
Uma outra parte do nosso trabalho é a formação dos nossos irmãos nativos para a utilidade, promovendo cada tipo de inteligência, e valorizando cada dom e graça neles; a este respeito não podemos medir esforço para que possam crescer e melhorar. É apenas pelo meio de pregadores nativos que possamos ter a esperança da propagação do evangelho através deste con-tinente imenso (Shenk 1990:28).
Quanto às atitudes de identificação e respeito, podemos enxergar a mente de Carey numa carta que escreveu para seu filho, missionário na Birmânia:
Pregue a infalível palavra da cruz. Não se incomode de sentar para ensinar um nativo sozinho (. . .) Cultive a melhor amizade e cordialidade possível [com os nativos], como seus iguais, e jamais deixe que os nativos percebam orgulho e superioridade de europeu na casa da missão em Rangun (citado em George, 1991:160).
As ideias de Carey repercutiram em muitos lugares. Em 1817 uma revista missionária em Londres publicou o seguinte:
A igreja cristã deve dar o impulso, e deve por muito tempo continuar a enviar missionários para manter e estender o impulso; mas, em relação aos fundos e professores, a maior parte do trabalho surgirá do meio do próprio povo; que, pela influência graciosa que acompanha o evangelho, chegarão
a sustentar com alegria, como a igreja cristã sempre tem feito, aqueles evangelistas a quem Deus, pelo seu Espírito, vai chamar do meio deles
(Shenk, 1990:28).
68 • Raízes da contextualização na história
Timothy George, na sua excelente biografia de Carey, opina que a "habilidade de Carey de contextualizar o evangelho sem compro-meter as doutrinas cristãs essenciais fornece um modelo equilibrado de uma missiologia evangélica genuína, que busca ser fiel numa época
de agitação social e decadência cultural" (1991, p. 232). O Grupo Serampore forjou um documento ("A Aliança de
Serampore") resumindo sua filosofia de missões. Em relação à
contextualização escreveram que tinham que "despojar tudo que aprofunda o preceito indiano contra o evangelho", "honrar e tratar os indianos sempre como iguais", "cultivar os dons espirituais dos india-
nos, sabendo que só os indianos podem ganhar a Índia para Cristo" e
"trabalhar sem cessar na tradução da Bíblia" (para o desenvolvimento espiritual dos indianos).
Algumas pessoas dizem que Carey era "um simples sapateiro", mas não sabem que, desde criança, Carey investia no aprendizado de línguas, geografia, teologia, história e missões. Ele conhecia tanto a
história dos Morávios como a do explorador inglês capitão Cook.
Enquanto concertava sapatos na juventude e depois, Carey decorava o vocabulário grego e estudava o mapa mundi pendurado na parede ao seu lado, que ele mesmo havia feito de couro. Era pastor e professor de escola primária, porque o salário de sapateiro não supria as neces-
sidades da sua família de cinco filhos. Tudo isto preparou o futuro do missionário pioneiro, e ajudou-o a obter grande êxito na sua carreira.
Hudson Taylor também queria quebrar barreiras para que o povo chinês pudesse ouvir e compreender o evangelho. Quando ele chegou
na China, notou que os missionários viviam nas cidades portuárias confortáveis e passavam a maior parte do seu tempo nas comunidades
estrangeiras fechadas. Taylor viu o vasto interior da China sem teste-
munho. Ele também viu que a sua roupa e seus costumes ingleses
ofendiam e afastavam os chineses. Isto levou Taylor a fazer algo que causaria revolta em seus compatriotas ingleses, mas que abriria as por-
tas dos corações chineses. Ele começou a usar roupas do estilo chinês, e até deixou seu cabelo crescer para poder fazer uma trança como os
homens chineses. Foi viver no meio do povo, em casa simples, e comia comida chinesa. Usava o transporte de barcos e rinquishás e diaria-
mente enfrentava doença, perigo e ameaça, assim como os próprios
Contextualização 00 história de missões precedentes, definições 69
chineses. Taylor e os missionários que o seguiram mais tarde, espa-lharam o evangelho no interior da China e de outros países, sempre valorizando a formação de líderes nacionais e evitando a criação da dependência. A Missão para o Interior da China (CIM), desenvolveu
a prática de não pagar salários ou fazer construções. Eles queriam que os novos convertidos logo assumissem responsabilidades na direção e
sustento das suas igrejas e atividades missionárias. J. O. Frazer foi missionário com a CIM entre os lisu das mon-
tanhas escarpadas no sul da China. Esta tribo, por viver em um lugares altos, não conseguia muitas plantações; viviam de ovos, raízes e outras coisas de baixo teor nutritivo. Frazer subia as serras a pé, comia com eles, dormia ao lado deles em suas cabanas fumacentas. Aprendeu que não podia oferecer informações sem primeiro ser per-
guntado, e respeitou este costume. Aguardava a pergunta, "Porque
o senhor está aqui?" para poder explicar a salvação em Jesus e ensi-nar a Bíblia. Após muitas lutas, oração e perseverança, uma família,
seguida por um vilarejo após outro, começaram a queimar suas casas de ídolos, seus apetrechos idólatras e aceitar Cristo como salvador e único Senhor. Logo foram formadas algumas igrejas, com líderes que Deus levantou entre o próprio povo. Eram estes, não Frazer,
que resolviam as questões ligadas ao ensinamento bíblico e à vida dos crentes. Frazer sabia ensinar-lhes a Bíblia. Eles sabiam como aplicá-la a sua cultura.
Logo no início, foi nomeado um missionário lisu para acompa-nhar Frazer, alguém sustentado pela igreja nova. Até o dia de hoje os
lisu têm igrejas fortes, batizam centenas de pessoas anualmente, e,
apesar da opressão política da China e de Mianmar (a tribo se espalha pelos dois países) continuam sendo fiéis ao Senhor.
Um dos principais contribuintes para o desenvolvimento da contextualização foi John Nevius, que atuou como missionário na China no final do século XIX. Ele ficou insatisfeito com a maneira tradicional da maioria dos estrangeiros fazer missões. Nevius viu, como HudsonTaylor e outros que questionaram e mudaram o sistema vigente,
que os missionários estavam acostumados com a vida de conforto nas
vilas e colônias que tinham construído. Eles só saíam das suas comu-nidades cômodas de estrangeiros para pregar ou fazer um trabalho,
70 j Raízes da contextualização na história
sem ter uma identificação mais profunda com o povo. Não se impor-
tavam com a língua, os costumes, a vida diária, a comida, as crenças e a maneira de ser do povo. Além disso, formaram igrejas nos moldes
das suas denominações e tradições de origem, sem passar responsabi-lidades para os nacionais. Com atitudes paternalistas, eles decidiam
tudo, e, com o dinheiro da missão, pagavam as despesas, inclusive salários dos obreiros nacionais contratados por eles.
Nevius viu os problemas resultantes desta estratégia, e observou a
dependência que resultou no fracasso da implantação do evangelho entre os chineses. Ele se frustrava com o etnocentrismo dos colegas que achavam os chineses inferiores e sem capacidade financeira, inte-lectual e espiritual de desenvolver o trabalho de Deus no país.
Nevius desafiou o sistema vigente com um documento no qual tentou mostrar aos missionários um trabalho mais coerente com a Bíblia. Afirmou as seguintes ideias:
1. Cada crente é um mestre e um aprendiz — inclusive os
missionários! 2. Cada crente funciona de acordo com os seus dons e deve ser
ajudado a desenvolvê-los. Não há um dom que seja maior que outro.
3. O missionário nunca deve ser um pastor, mas, com itinerância
deve ajudar outros a serem pastores em vários lugares. 4. Cada crente deve permanecer onde está para testemunhar no
trabalho, no bairro e na família (sem "aldeias cristãs"). Cada
crente é um missionário. 5. Métodos e estruturas eclesiásticas devem ser desenvolvidos ape-
nas à medida em que as pessoas do lugar possam tomar conta
dos mesmos. Elas têm que se governar. 6. A própria igreja é quem deve chamar e sustentar seus lideres. 7. As igrejas devem ter arquitetura local — feita pelos nacio-
nais, dos seus próprios recursos. Cada igreja é independente
da missão. 8. Todos (inclusive os missionários) têm que fazer muitos estu-
dos bíblicos, através de cursos intensivos, estudos pessoais e
em conjunto com os membros da igreja.
Contextualização na história de missões precedentes. definições. • 71
Os colegas de Nevius na China não aceitaram as suas ideias, mas
outros missionários, os primeiros a chegarem na Coréia, o convidaram
para passar as férias com eles, aproveitando o tempo para entender as suas ideias. Nevius atendeu o convite, e assim começou a missão cristã na Coréia, usando o "Método Nevius", como ficou conhecido mais tarde. O sucesso da missão presbiteriana e outras na Coréia é atribuída
em parte à passagem de Nevius por lá — em duas semanas de férias! Roland Allen foi missionário e diretor da Missão Anglicana da
Inglaterra no início do século XX. Ele falava e escrevia sobre o mesmo problema que preocupava Nevius. Allen desafiou as missões a voltarem ao exemplo e ensino da Bíblia, mas quase sempre sua mensagem caiu em ouvidos surdos. Entre outras coisas, ele pedia que confiassem no
Espírito Santo, pois este também capacita os cristãos nacionais. Sugeria
que as missões parassem de pagar todas as contas, para que os novos
convertidos assumissem as responsabilidades das construções e os salá-rios dos obreiros. Lastimou que no mundo inteiro ainda havia igrejas que pareciam todas iguais às igrejas europeias ou americanas. Em vez de ajudar, muitas vezes o estilo de vida dos missionários acabou inferiorizando os nacionais porque realçava a extrema pobreza deles.
Os missionários deram o peixe, porém "não ensinavam o povo a pescar". Nevius e Allen não conseguiram mudar os costumes da maior
parte dos missionários europeus e americanos. Estes continuavam
impondo sua cultura, vivendo separadamente dos nacionais e criando igrejas em moldes estrangeiros.
É difícil resumir a história da contextualização missionária antes
de 1972, sobretudo durante o século XIX, conhecido como o "Grande Século" de missões, que começou com Carey e alguns outros antes da Revolução Industrial na Inglaterra e nos Estados Unidos. Estes
primeiros missionários eram pessoas simples, saindo de lugares sem muitos recursos para ministrar em outros lugares carentes. Após a industrialização, que começou por volta de 1830, as atitudes começa-ram a mudar. Os conceitos de Freud e Darwin, e a ciência da antro-pologia, surgiram da ideia de que o homem consegue criar e controlar
seu universo pelo conhecimento e pelas invenções. Assim, Deus
começou a ser marginalizado, se não rejeitado totalmente. A teoria da evolução enfatizou e deu respeitabilidade à ideia da superioridade
72 Raízes da contextualização na história
ou inferioridade das raças, e muitos começaram a julgar outros povos pela ótica de invenções e produtos.
Esta mudança, bem descrita em várias obras, como a de David
Bosch (2002), fez com que os cristãos sentissem a necessidade de levar a "civilização" para outros povos. Nos Estados Unidos esta ati-
tude, que se chamava "Manifest Destiny", levou a expansão geográ-fica até o Oceano Pacífico e motivou vários missionários a sairem para outros países com atitudes paternalistas, inclusive para América Latina e Brasil, criando problemas de dependência e superficialidade até hoje. Nosso objetivo neste livro sobre contextualização não é analisar as práticas do plantio do evangelho em um lugar ou outro, embora muitos conheçam histórias de missionários que vieram tra-balhar no Brasil e não respeitaram os povos receptores, não confia-vam posições de liderança aos brasileiros e não foram sensíveis às
formas litúrgicas e eclesiásticas daqui. Por outro lado, não devemos
cair no perigo do reducionismo, ao ponto de interpretar todo esforço missionário do "Grande Século" desta forma. Muitos missionários levaram o evangelho, plantaram igrejas maduras e fizeram discípulos fiéis ao Senhor. Ajudaram as pessoas nas áreas de saúde e educação (ao contrário do que alguns alegam) e em muitos lugares colocaram
bases seguras para futuros lideres marcarem presença em movimentos
de independência, de abolição da escravidão e de lutas contra a injustiça do colonialismo. Muitos literalmente deram as vidas por amor ao Senhor e ao povo brasileiro.
Frances F. Hiebert (1977), fez uma revisão das críticas das missões no século XIX (também Hitchen, 2002), e concluiu que os missio-
nários tinham muito mais sensibilidade cultural do que os críticos
admitem. Publicaram livros e artigos sobre cultura, e os próprios antro-pólogos, que os criticaram muito, obtiveram a maior parte dos seus
dados de pesquisa cultural dos missionários.
Desenvolvimento da teoria da contextualização de 1972 até o presente
O termo "contextualização" foi usado pela primeira vez em 1972 por
Shokie Coe, diretor da Fundação de Educação Teológica (FET) do
Conwxtuaiização na história cie missões- precedentes. definições e 73
Concílio Mundial de Igrejas. Coe enviou uma carta para seminários e
institutos bíblicos ao redor do mundo oferecendo ajuda com litera-tura e outros meios para que as escolas de educação teológica pudessem
"contextualizar" os seus programas. Antes disso, conceitos relacionados à contextualização vinham evo-
luindo em uma complicada caminhada de teorias desde o meado do século XIX. Naquela época, dois líderes de missões, Rufus Anderson e Henry Venn, criaram o alvo dos "três autos" em missões — a formação
de igrejas "indígenas" no campo missionário que tinham "autossustento", "autogoverno" e "autopropagação". Roland Men escreveu alguns anos mais tarde, porque observou que os "três autos" e a plantação de "igrejas
indígenas" ainda não tinham sido colocados na prática em larga escala. Esta lacuna continuou até o meado do século XX.
Em 1952, na Assembléia do Concílio Internacional de Missões em Willingdon, Alemanha, os líderes missionários do recém-formado
Concílio Mundial de Igrejas (CMI), decidiram mudar o termo "igrejas indígenas" para "indigenização" — visando ajudar igrejas já existentes na sua busca de independência e crescimento teológico. Muitas agên-cias missionárias do CMI tinham acabado de perder o grande campo chinês, com milhões de dólares em construções e propriedades. Assim,
por precaução, os líderes decidiram não investir mais em novas igrejas, para ajudar apenas igrejas já existentes. Neste contexto foi formada a
FET em 1958, sob a direção de Shokie Coe, um coreano, e Arão Sapsezian, um brasileiro.
Para a FET, "contextualizar" era fazer com que a Palavra de Deus (o que, para eles, a Bíblia apenas contém) se torne relevante no contexto. A Bíblia deve se adaptar ao contexto, que determina significado e se torna a fonte de verdade teológica. A igreja necessita
prestar atenção aos "sinais" dos tempos, que são a maneira de Deus falar conosco. A Bíblia apenas faz parte da dialética no processo. Ela torna a "Palavra de Deus audível e inspira a fé" (Hesselgrave, 1994:115). Esta relativização bíblica já tinha larga aceitação no meio das igrejas do CMI, especialmente após o Concílio de Louvain',
' Veja o capítulo 6, "A Contextualização de Bruce Nicholls" para mais detalhes sobre o Concílio de Louvain.
74 Raízes da contextualização na história
mas foi rejeitada pelos evangélicos. Foram estes, porém, que desen-volveram mais a palavra "contextualização".
O primeiro evangélico a usar a palavra contextualização foi Byang Kato, um líder africano. Em sua palestra no Congresso Internacional de Evangelização Mundial, em Lausanne, Suiça (1974), Kato enfatizou a necessidade de transmitir o evangelho em termos relevantes à cultura receptora, mas tomando cuidado ao mesmo tempo para não cair no sincretismo. Ele estava preocupado com o perigo de a contextualização (conforme interpretada pela FET) criar uma distorção do evangelho e da teologia. Para Kato, cultura é importante, mas, na transmissão da verdade, a mensagem e sua aplicação prática têm que ser fiéis à Bíblia. A cultura tem que se adaptar à Bíblia e não vice-versa.
Keith Fernando escreveu no seu artigo "O legado de Byang Kato" (2004:169-173) que "a principal preocupação dele era insistir na ra-dical descontinuidade entre o evangelho e as religiões tradicionais afri-canas — ou qualquer religião não-cristã — em resposta às abordagens que sugeriram uma essencial continuidade entre elas" (p. 169). Kato apoiou a decisão de crentes do povo Na e quando estes recusaram-se a voltar para as práticas tradicionais, à custa de suas vidas. Ele não aceitou a crescente aceitação da inclusão de ritos animistas nas práti-cas da igreja, pois entendia que era sincretismo. Para Kato, a Bíblia era o fundamento da vida. Afinal toda a discussão de contextualização se volta para esta questão. Qual é a nossa perspectiva da Bíblia? Possui ela origem e autoridade divina , ou não passa de um livro quase comum? Para Kato não se podia "trair os princípios de Deus nas Escrituras (...) no altar de uma teologia regional" (p. 172).
Por isso Kato apresentou dez fundamentos da contextualização aplicada nas culturas africanas. Para ele era imprescindível:
1. reter os pressupostos fundamentais do Cristianismo histórico. 2. expressar o Cristianismo no contexto africano, deixando que
o Cristianismo o julgue. Não devemos permitir que a cultura tenha precedência sobre o Cristianismo.
3. ensinar as Escrituras e as línguas originais para a capacitação de uma exegese correta da Palavra de Deus. Os teólogos afri-canos também podem aprender hebraico e grego.
Contextualizaçad na história de missões. precedentes. definições 75
4. estudar as religiões não-cristãs, lembrando que tal tarefa é se-
cundária, como foi para os evangelistas no Novo Testamento. 5. fazer evangelismo agressivo, não repetindo os erros dos líde-
res da igreja africana do século III, quando se envolveram demais em discussões doutrinárias.
6. formar organizações baseadas em crenças importantes em comum. Não deve ser "unidade a qualquer preço".
7. definir termos teológicos para evitar sincretismo. 8. combater cuidadosamente quaisquer sistemas não-bíblicos
que estejam se infiltrando nas igrejas. 9. envolver as igrejas em ação social, mas não às custas da
evangelização. Conversões verdadeiras resultam em cristãos que revolucionam as suas sociedades.
10. saber que a África atual precisa de seus Policárpos, Atanásios,
e Martinho Luteros, que estão prontos a defender a fé, seja a que preço for (Hesselgrave e Rommen 1989:110-111).
Após o momento histórico de Lausanne, o termo contextualização alastrou-se tanto em círculos evangélicos, como na Teologia da Liber-tação, na Igreja Católica Romana, em diversos movimentos naciona-
listas e até no mundo secular. Cada grupo adotou a palavra e a utilizou conforme seus objetivos e motivos. A definição e preocupação de Byang Kato, no entanto, ainda serve como base para avaliar o uso do con-ceito de contextualização entre evangélicos.
Kato e outros missiólogos evangélicos adotaram a palavra "contextualização" em grande parte para expressar a necessidade da
transmissão relevante da Palavra de Deus sem abrir mão da sua vera-cidade e aplicabilidade em todas as culturas. Para maior entendimen-to desse processo, o Comitê de Lausanne6 convocou uma reunião de missiólogos em 1978 em Willowbank, Bermuda, para discutir a ques-tão. O documento final de Willowbank (O Evangelho e a Cultura, 1985) foi publicado, mas não representa um consenso de todos os
Este Comitê foi nomeado para dar continuidade ao Congresso Internacional em Lausanne que ficou conhecido como o "Movimento Lausanne".
76 Raízes da contextualização na história
participantes. É mais uma coleção de várias linhas de pensamento.
No entanto, apesar de algumas contradições resultantes, em geral os escritores do documento concordaram em enfatizar a centralidade da Bíblia em todo processo de contextualização, e a importância da
cultura para facilitar a identificação e a comunicação. O documento
diz o seguinte:
Esse constante crescimento em conhecimento (de Deus e a cultura), amor
e obediência, é o propósito e benefício da abordagem "contextuai". Fora do
contexto em que sua palavra foi originalmente proferida, ouvimos Deus
falar conosco em nosso próprio contexto. E uma experiência transformadora.
Esse processo é uma espécie de espiral ascendente em que a Escritura
permanece sempre central e normativa (1985:16).
Nas próximas páginas examinaremos duas questões levantadas
em Willowbank e depois em círculos evangélicos sobre o assunto de
contextualizaçao.
A primeira questão• a influência de teorias de tradução da Bíblia e da etnoteologia na contextualização
Depois de Lausanne, o conceito de contextualização vem sendo dis-putado e modificado. Eugene Nida, linguista e tradutor, é lembrado
por sua teoria da "Equivalência Dinâmica", a necessidade de traduzir
o sentido da ideia original sendo comunicado. E o oposto da tradução
formal, ou a tradução de simples formas, que não leva em conside-ração as possíveis interpretações dos ouvintes. Uma tradução formal
rígida nem usaria a língua do povo receptor, como ocorria antigamente na Igreja Católica Romana com a missa e a leitura da Bíblia em latim,
sem se preocupar com o contexto. Este exemplo extremo marcou sécu-los de missões católicas, porém hoje cometemos o mesmo erro quando tentamos traduzir palavra por palavra, sem levar em consideração os
significados diferentes nos contextos diferentes. Alguns missiólogos exageraram a teoria da equivalência dinâmica,
levando a cultura a determinar todas as formas na Bíblia, e não apenas a linguagem. O próprio Nida tentou corrigir este uso indevido por
meio do livro MeaningAcross Cultures (Significado Transcultural, 1981).
Contextualizacão na história de inissOes• precedentes, dOinicoes ea 77
Neste livro Nida estabelece limites, evitando o problema do relativismo
teológico ou sincretismo, e assegurando que existem conceitos no texto bíblico que não podem ser modificados, principalmente fatos histó-ricos ou símbolos ligados a estes fatos. Jesus realmente morreu numa
cruz e não podemos ensinar que morreu afogado ou enforcado ou que tomou veneno. Os israelitas realmente mataram cordeiros na
Páscoa, tirando a possibilidade de dizer que mataram porcos, uma
proibição especialmente forte devido à proibição do uso de porcos na
dieta israelita. Além de criar um problema teológico, estas tentativas exageradas
de explicar em termos culturais as verdades bíblicas podem ser sinais de paternalismo e etnocentrismo. O missionário que faz isso tem a
tendência de pensar que ele mesmo seja capaz de entender conceitos
e fatos novos, mas o povo "simples" com quem ele trabalha não tem a mesma capacidade. Nida recusa-se a aceitar esta aplicação da sua teo-ria de "equivalência". Em casos históricos, mesmo fora da experiência e conhecimento local, o missionário tem que ensinar a verdade sobre
o objeto ou o acontecimento, para levar o povo à compreensão. Não é licito modificar à vontade os fatos. Em grande parte Nida estava reba-tendo as ideias de Charles Kraft.
Kraft, professor de antropologia e missões na Escola de Missões
Mundiais do Seminário Fuller, utilizou a teoria de Nida e aplicou-a
para uma relativização em quase todos os aspectos da cultura. Ele
criou uma teoria chamada de "etnoteologia", na qual a Bíblia deve ser explicada conforme a cultura. Kraft tem nos ajudado a juntar três
matérias: antropologia, teologia e missiologia. (E essencial que não apliquemos uma, sem que as outras duas sejam consideradas.) No entanto, ele errou em colocar a cultura e a antropologia como intér-prete das outras duas. Para ele a Bíblia não é normativa, mas um "livro de casos" no qual podemos ver exemplos de como Deus agia no
passado entre duas culturas, a hebraica e grega, com "verdades
supraculturais flutuando aqui e ali nela" (citado em Hesselgrave e Rommen 1989:141). Desse modo, a Bíblia não é aplicável direta-
mente hoje, pois o missionário tem que descobrir como Deus vai se comunicar e agir em cada cultura. E como se cada missionário co-
meçasse do zero na atuação missionária, sem ter verdades concretas e
78 Raízes da contextualização na história
definidas a ensinar. Em etnoteologia, a cultura tem precedência e o
relativismo é o resultado.
Muitos missiólogos apreciam Kraft, mas reagem contra as suas afirmações mais radicais. Se o missionário desconsiderar a Bíblia como normativa na proclamação cristã e na formação de discípulos
de Jesus ("ensinando-os a guardar tudo" que o próprio Jesus ensi-nou, Mt 28.19-20), de onde vai tirar estes ensinamentos? Sem a Bíblia, missões se torna mística, intuitiva e individualista. Cada um pode inventar teologias e práticas à vontade. A cultura é romantiza-da e muitos textos são anulados, como 2Timóteo 3.16: "Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreen-
são, para a correção, para a educação na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra",
ou de Hebreus 3.5-4.7, onde lemos que a mensagem foi dada
uma vez por todas, e levada pelos missionários. Em fim, o ensino de Kraft, divulgado largamente através dos
seus alunos e do livro Christianity in Culture (1979), serviu de esto-pim de divisões fundamentais na missiologia e criou uma série de reações da parte de outros missiólogos e missionários evangélicos.
A segunda questão: a reação de missiólogos evangélicos à "etnoteologia"
Bruce Nicholls' foi uma das primeiras pessoas a reagir e escrever
sobre a "etnoteologia" da CMI e de Charles Kraft. No seu pequeno
livro Contextualização: Uma Teologia do Evangelho e Cultura (1983), Nicholls se preocupa com pessoas que não fazem nenhuma
contextualização, levando e impondo formas culturais estranhas a outros povos. De igual forma, se preocupa com aqueles que fazem uma contextualização "existencial", ou baseada em experiência e cul-tura, um excesso de contextualização. Ele defende a necessidade de as verdades da Bíblia continuarem sendo normativas para todas as cul-turas. O missionário tem que ter sensibilidade cultural para compreen-
der sua própria cultura e a cultura receptora, sabendo que o evangelho é juiz e redentor de todas as culturas.
' Veja o capítulo 6 para detalhes do pensamento de Bruce Nicholls.
Contextualizacão na ilistana de missões precedentes. acjinições i 79
No segundo capítulo de seu livro, Nicholls traça o desenvolvi-
mento do conceito de contextualização, mostrando a divisão no cami-nho entre o movimento ecumênico e os evangélicos. A contextualização
existencial levou à relativização do texto bíblico baseado na teoria de
que as Escrituras foram escritas por homens influenciados pelas suas
experiências e cultura, portanto sem veracidade ou sem ser revelação de Deus. A Bíblia acaba sendo uma reflexão sobre a experiência hu-
mana com Deus. Ao contrário da contextualização existencial, a "contextualização
teológica" se baseia em "dogma", ou verdades bíblicas. Estas foram escritas
por homens cujas culturas e circunstâncias foram controladas por Deus para poder transmitir a verdade. Sem esta firmeza bíblica, a contex-tualização nos leva ao sincretismo cultural e teológico. Assim caímos
numa fusão de culturas ou numa imposição cultural. O resultado pode ser a universalização da fé, em que todos têm a verdade, e que nos
conduz a uma absorção progressiva do naturalismo e do relativismo.
Para Nicholls, os missionários não podem abrir mão do ensino da pró-
pria Bíblia nem da certeza mostrada por cristãos de todas as épocas de que a Palavra de Deus é inspirada, inerrante, autoridade e supracultural.
Mesmo com esta certeza, o missionário tem que reconhecer que seu conhecimento é parcial e influenciado por sua cosmovisão e cul-tura. Com humildade ele deve sempre questionar a sua própria necessi-dade de contextualização da Palavra, e estar pronto a aprender novas
aplicações dela na sua própria cultura e na cultura adotiva. Para enten-der melhor o pensamento de Nicholls, veja o capítulo 5 deste livro.
O sul-africano, David Bosch, também merece um capítulo neste livro. Autor de um dos livros mais importantes para missiologia nos últimos anos, Bosch apresenta reflexões, análises e rebates. Apesar de
nem todos concordarem com suas colocações, não há dúvida de que seu último livro (Missão Transformadora, 2002), escrito e publicado poucos meses antes da sua morte, está sendo fundamental para o estudo de missões em nossos dias.
Bosch divide o livro de acordo com a sua compreensão de mudan-
ças paradigmáticas ao longo da historia de missões. Para ele uma
mudança radical está acontecendo agora, principalmente na área de contextualização. Usa a teoria de Thomas Kuhn sobre paradigmas.
80 e° Raízes da contextualização na história
Kuhn diz que os paradigmas não mudam de repente, mas sugere que à medida em que velhos paradigmas se tornam inadequados, novos
vão se formando até serem aceitos pela maioria. Na hermenêutica de Bosch, existem alguns pontos que são proble-
máticos para os evangélicos. Trata o texto da Bíblia como apenas inter-
pretações subjetivas dos autores, não como uma revelação absoluta de
Deus. Este lado mais liberal de Bosch se manifesta quando escreve "Atos (...) contém muito material (...) que se baseia inquestionavelmente
em tradição confiável" (2002:159). A Bíblia é uma interpretação, não uma revelação (2002:228). "Os ditos de Jesus são realmente sobre Jesus"
(2002:228). Ao mesmo tempo, fala que temos que "(.. .) tratar a auten-ticidade do texto original com o máximo respeito [sem] sacrificá-lo no
altar da 'relevância'." Temos que ser fiéis ao velho texto numa situação nova, tratando "Paulo (. . .) nos seus próprios termos [na medida do possível] antes de tentarmos qualquer aplicação", sem usá-lo como texto-prova para apoiar nosso entendimento predileto (2002:214).
Bosch critica também o movimento de "crescimento da igreja",
sobretudo sua teoria de "unidades homogêneas", a escatologia escapista de Lindsey e o romanticismo e relativismo de Charles Kraft.
Contra Kraft, que descarta uma continuidade nas Escrituras, Bosch vê raízes profundas do Novo Testamento no Velho. "Não há ruptura na história da salvação. (. . .) A igreja nasce no seio do Israel
antigo (. . .) " (2002:127). Missão, para Bosch, inclui arrependimento, perdão, salvação,
libertação que leva à comunidade e à comunhão (2002:147-158). Cultura não é para ser aceita acriticamente. As igrejas são bolsões de estilo de vida alternativa na sociedade, e devem penetrar as normas da sociedade (2002:194). Filipenses 2.15 é um exemplo desse princí-
pio, no qual Paulo exorta a igreja a ser inculpável "no meio de uma geração pervertida e currupta, na qual resplandeceis como luzeiros no mundo". Para ele contextualização relativística (Kraft) é "contextua-lismo" (2002:593). Há critério para julgar o contexto; temos que tentar achá-lo. E aquilo que é "divino, verdadeiro e justo" (2002:594).
Contra o movimento de crescimento da igreja, Bosch combate o PUH (princípio de unidades homogêneas) em vários lugares no seu
livro (2002:191-192, 208-211). A unidade da igreja local é central,
Contextualizaçõo na história de missões precedentes, definições
está acima de posição, classe social ou raça. 1Coríntios 12.13; Gaiatas
3.27 e Efésios 3.6, entre outras, são prova disso. "Deus em Cristo nos aceitou de forma incondicional; temos que agir de modo semelhante nas relações uns com os outros. De acordo com o pensamento de Paulo, é inconcebível que, numa determinada localidade, pessoas convertidas formem duas congregações — uma de cristãos judaicos, observantes do
Torá e outra de cristãos gentílicos que não a seguem" (2002:210-211).
"Segregação na igreja é uma negação do evangelho" (2002:216). Apesar de não aceitar as conclusões da teologia da libertação,
Bosch é desafiado por elas. Ele diz que temos de lutar pela justiça. Os ricos precisam ter o evangelho contextualizado no meio deles tam-bém (ou seja, precisam de transformação). Lucas desafiou aos ricos a
abandonarem seu estilo de vida e a se envolverem nas necessidades do
povo. Um exemplo claro é Filemon (e com ele, sua casa e a igreja que se reunia nela) que recebe a recomendação de aceitar Onésimo como irmão (2002:192-193).
Para Bosch a igreja é missionária por natureza. Pelo estilo de vida, amor e alegria, ela atrai as pessoas. Não é separada do mundo,
mas provoca impacto no mundo. E uma comunidade de esperança, o início, uma imagem do reino de Deus. Por isso "os cristãos só podem
combater as estruturas opressivas dos poderes do pecado e da morte,
que clamam, em nosso mundo, pelo mundo divino de justiça e paz, e os falsos apocalípticos da política de poder, que se impõe tanto na esquerda quanto na direita, prestando contas da esperança que existe
neles (1Pe 3.15) e sendo agitadores do reinado futuro de Deus; é necessário que instituam, no aqui e agora e em oposição a tais estru-
turas, sinais do novo mundo de Deus" (2002:22). Contextualização e a importante teoria de "poiesis", de Bosch, são
resumidas nas páginas 509-516 de Missão Transformadora (2002). Bosch chama o modelo ideal de "enculturação". Ao seguir o exem-
plo de Jesus descrito em Filipenses 2, esse modelo prima por uma profunda identificação cultural, apenas limitada pelo evangelho, que
é sempre estranho a cada cultura. Isto leva a "enterculturação" em que
todos se enriquecem mutuamente. Contra o provincianismo do rela-tivismo, missão tem que criar comunidades dentro da Comunidade
(2002:541-546).
82 Raízes da contextualização na história
Estas pinceladas da obra prima de Bosch nos levam à conclusão de
que ela tem grande valor, mas é preciso manter cautela. Com o passar
do tempo mais pessoas estão interagindo com as ideias dele, aperfei-çoando-as, corrigindo-as e construindo na base que ele deixou.
O falecido Harvie Conn, ex-missionário na Coreia e ex-professor de contextualização e missões urbanas no seminário de Westminster na Filadélfia, explicava que "contextualização" envolve "descontextua-
lização", pois a Bíblia julga e transforma as culturas. Para Conn, o "diá-logo" entre a cultura e o cristianismo é na verdade um "monólogo", onde
temos que ouvir de Deus em primeiro lugar, conhecê-lo e buscar enten-
dimento da sua vontade para obedecê-la. Este monólogo derruba bar-
reiras confortáveis que protegem o "status quo" da igreja de classe média! Um exemplo deste tipo de contextualização vem da Coreia, onde
Conn trabalhou como missionário. Lá, o evangelho confrontou a men-talidade confucionista de não acreditar em pecado. No avivamento de 1907, o ponto central de arrependimento foi justamente esse foco
cultural de autosatisfação. Enquanto os missionários não confrontam
as tendências religiosas do confucionismo, o "resultado pode ser visto na triste história de divisões e facções regionais e entre clãs na igreja
coreana" (em Stott, 1980:158 e 67).
Para evitar os perigos na contextualização, é preciso começar com
a Palavra no seu intento original, com a ajuda do Espírito Santo.
Necessita-se, em primeiro lugar, de exegese. Segundo, é preciso que se entenda a universalidade do evangelho. "Cultura não é simplesmente dar ilustrações homiléticas para o Senhor, ou material para espiri-
tualizar. Se torna uma matriz controlada providencialmente de onde sua revelação vem a nós (. . .) Esta história redentora cria uma fusão entre o horizonte do texto bíblico e o nosso" (Conn 1984:200).
Conn explica que a compreensão da cultura é essencial para saber
pôr em prática a vontade de Deus, mas a cultura não determina esta vontade. Deus se comunica conosco. Em seu livro, escrito a partir de um debate com Kraft no seminário Fuller, Conn usa o título Palavra
Eterna e Mundo em Mudança (1984) para insistir que a Palavra não muda, mas que o mundo está em constante mudança.
Paul Hiebert, em seus escritos sobre antropologia e contextua-lização, emprega os termos "contextualização crítica" ou "contextualização
Contextualizaç'do na história de missões: precedentes, definições e° 83
criteriosa".8 Em outras palavras, há critérios para a vida cristã e para a
igreja de Deus — critérios explícitos na Bíblia. Como sabemos, ninguém tem uma perfeita compreensão dos
ensinamentos bíblicos, pois todos são influenciados por suas próprias culturas. A Bíblia não foi "culturalmente condicionada", como alguns
alegam, mas nossas interpretações e compreensões são distorcidas pela
distância histórico-cultural-geográfica. Apesar disto, pesquisas tex-
tuais, descobertas arqueológicas e insights diferentes de povos ao redor
do mundo estão nos ajudando a chegar mais perto da verdade da Palavra em alguns pontos de difícil entendimento. Hiebert até nos faz lembrar que, à medida em que nos aproximamos do centro da
verdade, também nos achegamos mais perto um do outro. O capítulo 6 deste livro desenvolve mais as teorias importantes de Paul Hiebert.
David Hesselgrave é outro missiólogo que tem escrito sobre a contextualização, ajudando a esclarecer o significado da expressão "Palavra de Deus" usada pelos líderes da comissão da FET, e tentando corrigir a contextualização sem limites de Kraft. Hesselgrave escreve:
Fica evidente nessas definições que os evangélicos conservadores têm
lutado para chegar a um consenso. Certas palavras-chave nessas defi-
nições — pertinente, significativo, implicações e conscientização — reve-
lam diferenças importantes. No entanto, outras palavras e expressões
fundamentais — teor imutável, exegese do texto e afirmações
hermenêuticas — servem para sublinhar o fato de que realmente gozam
de um consenso no que diz respeito a questões ligadas ao ponto de partida
da evangelização e da teologização, ao conteúdo do evangelho e à autori-
dade suprema em todas as questões de fé e prática. Tudo isso encontra-se
na Palavra de Deus escrita. (1994:116).
Em contrapartida Hesselgrave define contextualização como segue:
(...) pode-se pensar na contextualização como a tentativa de comunicar a
mensagem da pessoa, das obras, da palavra e da vontade de Deus de modo fiel à revelação de Deus, sobretudo como está apresentado nos ensinos das
Escrituras Sagradas, e que é significativo aos receptores em suas culturas e
s Veja o capítulo 7 para um artigo de Paul Hiebert.
84 Raízes cia contextualização na história
contextos existenciais respectivos. A contextualização é tanto verbal quanto não-verbal e está ligada à teologização; à tradução, à interpretação e à apli-cação da Bíblia; ao estilo de vida encarnacional; à evangelização; à instrução cristã; à criação e ao crescimento de igrejas; à organização da igreja; ao estilo de culto — na verdade a todas aquelas atividades relacionadas com a exe-cução da Grande Comissão (Hesselgrave e Rommen, 1989:200).
Hesselgrave faz questão que os evangélicos entendam as várias definições da palavra "contextualização". "Não é necessário concordar com cada componente de uma definição, mas é essencial que concorde sobre o critério necessário para uma contextualização autenticamente bíblica (. . .)" (Hesselgrave e Rommen, 1989:35). Contextualização
deve "agradar a Deus, conformar-se à sua Palavra, comunicar ao mundo, e
ser aceita pelo corpo de Cristo" (ibid.:38). Envolve o conhecimento
da mensagem revelada por Deus e da audiência. No capítulo 10 de Contextualização: Stknificado, Método e Mode-
los (1989), Hesselgrave e Rommen trazem uma comparação interes-sante entre os tipos de revelação (mito, dos iluminados, divina e
inspirada) e tipos de contextualização que seria apropriada para cada
modalidade. O Alcorão, por exemplo, como escrito divino, nem pode ser traduzido pois os muçulmanos creem que Alá o transmitiu pala-
vra por palavra sem influência humana. Porém, a Escritura cristã ins-
pirada inclui a participação humana. Deus usou a linguagem, cultura e experiência dos autores humanos, mas a Palavra é muito mais que
um produto humano. E de Deus. O próprio Jesus igualava a Palavra
escrita ao que Deus diz, como absoluta verdade. Contextualização tem que ser feita de acordo com o tipo de reve-
lação que a própria Bíblia apresenta. Evangélicos erram quando enca-
ram a Bíblia como mito ou escritos dos iluminados, ou escritos ditados por Deus. O perigo maior no pensamento de Kraft (e outros), apesar de ser evangélico, é que ele trata a Bíblia como se fosse uma compi-lação de escritos de iluminados. Isso, além de sua ideia que há verda-
des sobrenaturais flutuando dentro do texto bíblico. Vejamos:
[Para Kraft] a Bíblia é apenas uma revelação em potencial, algo que con-tinua acontecendo de forma subjetiva em cada cultura. (...) O que dá
ContMualização na histOna de missões: precedentes, definições .11 85
medo não são tanto as conclusões (de Kraft), apesar que nos dão muito a
pensar. Mais assustador ainda é onde sua visão das Escrituras pode levar
outros. Também, no nível cognitivo pelo menos, Kraft deixa o defensor do
cristianismo quase sem argumento no encontro com hindus, budistas,
taoistas, e tradições similares (Hesselgrave e Rommen 1989:141).
Ou seja, é tudo a mesma coisa. Quanto à América Latina, René Padilla e Samuel Escobar são
críticos das práticas missionárias importadas, aquelas que não demons-travam muita sensibilidade cultural e social. Apesar da ênfase forte no ministério social, os dois deixaram uma clara declaração evangélica
no congresso de Lausanne. Afirmaram a necessidade de pessoas e cul-turas decaídas serem resgatadas pelo evangelho de Jesus Cristo. René
Padilla escreveu: "Evangelizar é proclamar Jesus Cristo como Senhor e Salvador, pelo qual o homem pode ser liberto da culpa e do poder do pecado e integrado nos planos de Deus a colocar tudo sob o Reino de Cristo" (1975:122).
Padilla rejeita uma igreja ou missão influenciada pelos "tem-
pos" ou o "mundo". Ele rejeita "cristianismo cultural" — a identifi-
cação do cristianismo com uma cultura ou uma expressão cultural (p. 125). Ele critica sobretudo a influência do "American Way of
Life" (padrão americano de vida), no qual o evangelho se torna um tipo de mercadoria e a aquisição dela guarante ao consumidor o maior valor — sucesso nesta vida e alegria agora e para sempre (grifo do autor). (...) Neste modelo, a cruz perdeu a sua ofensa, pois não é uma chamada para discipulado. Deus se torna analgésico, e dá "so-luções fáceis" (p. 126). Mas, "a igreja tem que ser liberta de tudo na sua cultura que impediria sua fidelidade ao Senhor no cumprimento da sua missão dentro e além da sua própria cultura" (p. 136). Este
compromisso exclui a possibilidade do plantio de igrejas "homogê-
neas", conforme a ideia de McGavran e dos seus colegas, algo que Padilla e Escobar entendem como altamente paternalista e fora de diretrizes bíblicas.
Para Padilla, o verdadeiro arrependimento resulta em mudança de vida e compromisso com o outro e suas necessidades. Escobar re-
flete a mesma posição quando fala que
86 en Raízes cia contextualização na história
Muitas vezes ao longo da história da igreja, cristãos caíram na tentação de adaptar sua mensagem, distorcendo-na. Assim foi com o liberalismo, uma tentativa de fazer o evangelho mais aceitável à mente racionalista do século XIX e o início do século XX. Apresentaram um evangelho social de um Deus sem ira que ia salvar um homem sem pecado por um Cristo sem a cruz (1975:310).
Padilla e Escobar não usaram a palavra "contextualização" em Lausanne, mas trataram claramente do assunto nas suas reinvindicações.
William J. Larkin, Jr., autor do livro Cultura e Hermenêutica
Bíblica: Interpretando e Aplicando a Palavra Autorizada por Deus numa
Era Relativista (1988) e professor de Bíblia e grego no Seminário
Bíblico e Escola de Missões de Colômbia, analisa os novos paradigmas de hermenêutica, contextualização e missão à luz da Bíblia. Analisa também o desenvolvimento e influência do relativismo, destacando
quatro tipos: 1) relativismo radical, quando não existe verdade fora do próprio contexto histórico e cultural da pessoa; 2) relativismo mode-rado, em que há uma realidade e é possível analisá-la, mas só é possí-
vel avançar neste conhecimento à medida em que se compara várias
perspectivas culturais e históricas; 3) relativismo histórico, em que
um texto tinha seu significado na época em que foi escrito, mas adquire
outro significado para o leitor contemporâneo; e 4) relativismo cultu-ral, quando valores, significados e práticas são igualmente válidos.
Faz tempo que o relativismo influencia os teólogos liberais, mas agora está atingindo os evangélicos, em consequência do surgimento de certas esco-
las de missiologia e de etnoteologia. Larkin cita Francis Shaeffer, que denominou a situação de "o grande desastre evangélico": Alguns evan-gélicos decidiram que ditos bíblicos sobre a história, o cosmos e sobre absolutos morais na área de relacionamentos pessoais são todos orien-tados culturalmente. Consequentemente a "Bíblia é feita para dizer so-mente aquilo que é um eco da cultura corrente em nosso momento histórico. A Bíblia é torcida conforme a cultura, em vez da Bíblia julgar nossa sociedade
e cultura (Shaeffer, 1984:60-61, citado na p. 24 de Larkin; grifo do autor).
Em suas análises da história do relativismo, Larkin traça raízes filosóficas e teológicas de Kant a Schleiermacher, chegando à conclusão
Contextualizacão na história de rassões precedentes. definições. .• 87
que "o conteúdo revelado das Escrituras foi transformado em notícias de experiência religiosa, removendo dos intérpretes qualquer confiança na sua capacidade de ouvir Deus falar em e por sua Palavra" (p. 38). Dessa perspectiva a Bíblia nem recebe a credibilidade normalmente dada a Platão e Aristótoles!
Em seguida, os evangélicos, em uma tentativa inadequada de aproveitar ciências sociais para a missiologia, acabaram abrindo a por-ta para o relativismo (p. 132).
A tese de Larkin é que a própria Bíblia é a estrutura que provi-dencia a ponte hermenêutica entre a mensagem do evangelho, o tempo e a cultura pelas seguintes razões:
a. Suas palavras são inspiradas por Deus (2Tm 3.16). b. Apresenta apenas um caminho para a salvação para todos e
para sempre (At 4.12). c. E suficiente para saber o que crer e como comportar-se
(2Tm 3.16-17). d. É eterna (1Pe 1.25; 1Cr 16.15; Êx 31.16). e. É para todos os povos (At 17.30), até os que estão "longe"
(At 2.39; Ef 2.11s). f. É a régua pela qual medimos a verdade (Hb 4.12-13; Jo 10.35). g. Foi dada pessoalmente (At 9.4; 10.13; 18.9-10; lTs 2.13). h. E clara para os que pertencem ao Senhor (Jo 8.43-47).
A maneira de a Bíblia encarar a cultura é importante, pois ela foi escrita no meio de várias culturas. Este fato é usado frequente-mente para provar que a Bíblia é presa à cultura. Por isso Larkin apresenta a seguinte análise dos relacionamentos de Deus com as culturas (cap. 13-18).
Quando Deus chamou Abraão, ele o tirou da sua cultura e dele fez uma nova cultura, diferente das demais (Éx 19.4-6; 33.16; Dt 4.5-8, 32-40; 12.30-31; 2Rs 17.13), e para ser um canal para alcançar as demais (Is 2.2,4; 11.10; 42.1,6; 49.6). Afinal todos os homens têm a mesma herança e unidade (At 17.26). Por causa dessa vinculação todos têm percepções e faculdades intelectuais em comum, o que torna possível a comunicação. Não existe um abismo intransponível
88 Raízes da contextualização na história
entre a história antiga e a nossa história, nem entre culturas. A uni-dade é a estrutura em que Deus ainda comunica com os povos; não é necessária uma abordagem relativísta (por exemplo, batismo na Grande Comissão; Cl 3.11). A mensagem serve para judeus e gen-tios (Rm 10.11-15), e o que foi escrito séculos antes serve também para os leitores no primeiro século (Rm 16.25-26).
A Bíblia reconhece três fontes de cultura: Deus, o homem, e Satanás (p. 201). Deus se envolveu na criação, não só nos valores e cosmovisão, mas nas estruturas detalhadas da sociedade e família (Ef, Rm 13; 1Pe 2.13-17). Ele comunicou diretamente com Adão, porém a queda do homem e sua rebelião contra Deus deturpou esta criação e suas estruturas culturais (Rm 1.18s; Si 2; 33.10; 46.6; Gn 11.4; Sl 59.8; Rm 8.15; Hb 2.14-15). Estas estruturas são passa-das de geração em geração, desenvolvendo diferentes ramos de crenças e sistemas sociais e materiais.
A fonte satânica é enganosa e fútil, incluindo filosofia, cosmo-visão, estruturas sociais e políticas (Ef 2.1-3; G1 4.3,9; Cl 2.8,20; 1Tm 1.4; 4.1-3,7; Tt 1.14; 2Pe 1.16; Jr 10.1-16). A Bíblia deixa claro que o discípulo de Cristo não pode servir a Deus e ao inimigo ou ao "mundo" (Mt 6.24; 1Jo 2.15-17; Tg 4.4).
O homem tem a capacidade de questionar estas fontes de sua cul-tura e declarar seus ídolos sem valor, aceitando o Deus criador (Is 40; 43.8-13; Jr 10.1-16; 14.22; 16.19-21). A cosmovisão cultural não precisa controlar o povo (Is 31.6; Jr 3.11-14; At 26.18). A sociedade não deve dirigir as práticas do povo de Deus (1Co 5.1-8), a não ser naquilo que é excelente (Lc 10.38-41). Não podemos ser "amigos do mundo" (1Jo 2.15-17; Tg 4.4; Mt 6.24; 1Co 7.31). Temos nossa identidade em Cristo e nossa cidadania nos céus (1Co 1.30-31; Cl 3.1-4; Fp 3.20; At 26.18; Jo 15.18; 17.6,16). Somos forasteiros no mundo, assim distanciados das nossas culturas ou até contra elas (1Pe 1.17; 2.11; 4.4; Hb 11.9,13; Ef 2; Jo 15.18-19; Mt 24.9; 1Jo 4.5-6; 1Co 1.18-25; 4.9,13).
Resumindo, Larkin diz:
Deus na criação e salvação relaciona-se positivamente com culturas.
Ele pode incluir empréstimos renovados como parte da sua revelação.
Contextualrzação na história de missões precedentes. definições 89
Ele chama homens e mulheres a viver sua nova vida em Cristo dentro das suas culturas, apesar de não serem mais delas. Deus se relaciona negativa-mente com as culturas humanas em julgar tanto o etnocentrismo que promovem, quanto o centro do poder religioso que as ene rg tzam. Ele cha-ma seu povo a substituir os falsos centros religiosos por Jesus como Senhor, e a viver como uma cultura que é modelo de Deus, a igreja, no meio das suas culturas (p 222).
No capítulo 16, Larkin defende a inspiração e inerrância das Escrituras de forma convincente:
1. A própria Bíblia se declara ser de Deus (2Tm 3.16; 2Pe 1.21). 2. Quando Jesus e os escritores do NT referem-se ao AT eles di-
zem "Deus falou". 3. Pedro refere-se às cartas de Paulo como Escritura também
(2Pe 3.16). 4. Os escritores inspirados dão crédito ao Espírito Santo pelo
que receberam (1Co 2.13). 5. Deus falou às pessoas, não em forma ditada, mas usando a
linguagem delas (Mt 22.42; At 4.25; 2Pe 1.21). 6. Esta palavra é a verdade, não erra ( Jo 10.35; 17.17; Tt 1.2). 7. É compreensível pelos homens de diferentes épocas e cultu-
ras (Rm 3.9-18; G1 3.7-9 [Gn 12.3]). 8. Por isso é autoridade final em tudo que se trata. 9. A Palavra é mais que um documento; tem poder, transforma,
é amável (Lc 24.32; Si 119.14,18,127; 1Pe 1.23; Hb 4.12). 10. Temos que aprender o significado da Bíblia para nossas
vidas (p. 285). É útil e aplicável. 11. Em sua mensagem a Bíblia é unida em torno da necessidade
de salvação pela fé em Cristo (Lc 24.44-48). Por isso os escritores do NT podiam utilizar os textos antigos para pro-var seus argumentos.
12. Sem o Espírito Santo não podemos discernir a Palavra; por
isso as pessoas que não são da aliança (Conn), ou que não são comprometidas com o senhorio de Cristo, não podem dividi-la, nem criticá-la (1Co 2.14; Mt 22.29).
90 • Raízes da contextualização na história
13. Pecado e orgulho impedem a compreensão da Palavra (2Co
3.14; 10.5; 2Tm 3.8).
Um resultado do poder transformador do Espírito e da Palavra é
a possibilidade de avaliar e mudar os nossos pressupostos. Não somos
presos à nossa cosmovisão e cultura (exemplo: 2Co 10.5). O espiral hermenêutico nos leva, com maior conhecimento da Palavra, a chegar
mais perto da verdade bíblica (com Padilla). A ponte hermenêutica da Bíblia
...consiste em cinco elementos: 1) a linguagem humana, que pode ser
usada para comunicar significado pelo tempo e pelas culturas; 2) um Deus
fiel, que fala a verdade eterna e universal e ilumina pelo seu Espírito; 3) as
Escrituras, inspiradas e plenamente revestidas de autoridade, que propõe
instruir a humanidade de todas a gerações e culturas; 4) a humanidade,
cuja unidade é mais básica que sua diversidade; e 5) uma estrutura histó-
rica, que enxerga toda a humanidade desde Cristo vivendo no mesmo
período, "os últimos dias" (p. 304, enumeração minha).
Se forma e sentido são separados em grande parte na Bíblia, se a
Bíblia foi culturalmente condicionada, se tenho que descobrir o sen-tido dela para minha realidade, então é possível rejeitar aquilo que não me agrada. Desse modo a Bíblia se torna um instrumento manipulável nas mãos dos homens. No entanto, isso não significa que o entendimento das culturas bíblicas fica sem importância; ao con-
trário, esse conhecimento nos traz maior compreensão do sentido ori-
ginal das Escrituras (p. 337s). A questão das Escrituras é fundamental para toda discussão de
contextualizaão. Caso não se concorde sobre isso, não é possível che-gar a um consenso.
Conclusão
Muitos têm contribuído para que pudéssemos ter em nossos dias um
acervo rico de material sobre a contextualização missionária. Há biogra-fias e livros-texto que tratam exatamente do assunto, dando-nos grandes
exemplos de contextualização, e que eliminam qualquer desculpa
contextualização na história de missões precedentes. definições .11 91
para não praticarmos uma contextualização missionária bíblica. O pro-blema é que muitas vezes ignoramos esta riqueza de conhecimento e seguimos as nossas trilhas conforme nosso bel prazer. Assim, repeti-mos exatamente aqueles erros que os homens do passado e presente têm nos ensinado a evitar. Nós também caímos, pessoalmente, nos pe-cados do paternalismo, do etnocentrismo, do relativismo e do pluralismo.
Temos que perguntar: a Palavra de Deus é real para o missioná-rio que enviamos para fazer contextualização dela? A Bíblia diz que "(. . .) a palavra de Deus é viva e eficaz, mais cortante que qualquer espada de dois gumes; penetra até o ponto de dividir alma e espírito, juntas e medulas, e é capaz de perceber os pensamentos e intenções do coração" (Hb 4:12). "Toda a Escritura é divinamente inspirada e proveitosa para ensinar, para repreender, para corrigir, para instruir em justiça; a fim de que o homem de Deus tenha capacidade e pleno preparo para realizar toda boa obra" (2Tm 3:16-17).
Estamos enviando pessoas comprometidas de vida e coração com o Senhor, de acordo com sua Palavra? Não podemos esperar uma contextualização bíblica, se não há missionários convictos e compro-metidos com o Deus da Bíblia.
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Analisando o berço da contextualização: Bruce
Nicholls e as controvérsias teológicas do século XX
1( 1
Há um ditado popular que ensina: "A história se repete". Há indi-cações de que a igreja evangélica está repetindo alguns erros do século passado. Naquela época, muitas igrejas substituíram Deus e a sua Palavra pelo humanismo. Foi o que David Bosch descreveu como uma mudança de motivação para missões, trocando a glória e o amor a Deus pelas "profundezas do estado lamentável da humanidade decaída. O amor deteriorara em caridade complacente" (Bosch, 1991, p. 352). Missão se tornou uma ação apenas social, sem preocupação com o mandato todo dado por Deus, ou com o homem integral — físico e espiritual. A mesma coisa está acontecendo hoje com a ênfase exage-rada no homem e sua cultura, algo que Bruce Nicholls analisa em seu pequeno livro, Contextualização: uma teologia do evangelho e cultura.'
Para entender Bosch e Nicholls, é necessário compreender o con-texto histórico dos movimentos "conciliares" ou "ecumênicos". No início do século XX, doutrinas fundamentais da fé cristã começaram
1 Este importante livro não está disponível mais em português, por isso achamos necessário um resumo completo aqui.
96 ." Questões contemporâneas sobre a contextualização missionária
a ser questionadas, colocando em cheque a veracidade da Bíblia, a
divindade de Cristo, seu nascimento virginal, sua morte sacrificial pelo pecado, sua ressurreição e sua volta. As dúvidas estavam ligadas à
ascensão do humanismo secular, que procurava explicar tudo a partir das ciências biológica, química, física, social e literária. O pensamento humanista exclui a possibilidade da intervenção de Deus e acredita que o homem pode construir um mundo perfeito de paz e justiça, sem doença, fome ou dificuldades. Em 1910, houve uma conferência missionária internacional em Edinburgo, Escócia. O objetivo dos seus
organizadores era levar o evangelho da salvação pela fé em Jesus Cristo ao mundo todo. No entanto, o rumo posterior da conferência foi radi-
calmente mudado com o surgimento do Concílio Mundial de Igrejas (CMI), que aos poucos aceitou o humanismo secular na sua teologia e prática, levando as igrejas ao pluralismo religioso, à secularização da
fé cristã e ao ecumenismo sem critérios bíblicos. O pacto do Congresso Internacional de Evangelização Mundial em Lausanne, Suíça, em 1974, foi uma declaração de fé dos evangélicos que expressou forte rejeição dessa descaracterização do cristianismo pelo CMI.
O conceito de "contextualização" surgiu primeiro no CMI, mas depois começou a ser usado pelos evangélicos,' justamente em Lausanne. Nicholls, missionário na índia e membro da Comissão de
Teologia da Aliança Evangélica Mundial (World Evangelical Alliance,
ou WEA), defende uma contextualização missiológica livre das
influências seculares (na medida do possível). Ele denuncia os perigos do relativismo, do pluralismo cultural e teológico, e da criação de uma "etnoteologia", ou seja, uma teologia baseada na cultura. Também adverte contra a falta de contextuafização, no caso do missionário impor
sua própria cultura a outros povos sem sensibilidade cultural, nem critérios bíblicos.
Nicholls descreve contextualização como "existencial" ou
"dogmática". A primeira começa com a cultura e a experiência humana.
Fora do Brasil a palavra "evangélico" significa alguém que aceita o Pacto de Lausanne, e não qualquer protestante. Alguns no Brasil tentaram usar o termo "evangelical" para distingui-los, mas não foi largamente aceito.
Analisando o berço da contextualização. Bruer' Nicholls e as .11 97
Sem um parâmetro teológico normativo, a contextualização exis-
tencial corre o perigo de sincretismo e relativismo ("tudo é verdade"). Para seus defensores, Deus não se revelou em termos concretos para o
homem, pois a Bíblia e a teologia são meras reflexões humanas sobre
as ações de Deus no mundo. A segunda abordagem, "dogmática", é baseada em "dogma", ou
verdades cristãs, e entende a Bíblia como revelação de Deus. Trans-
cende as fronteiras da cultura, apesar de querer comunicar-se bem
dentro da cultura. Nenhuma teologia é perfeita devido aos nossos
pressupostos culturais, mas à medida em que buscamos o verdadeiro sentido da Palavra, a influência dos pressupostos vai diminuindo. Devemos nos colocar debaixo da autoridade das Escrituras e ter a ajuda do Espírito Santo para entendê-las e aplicá-las.
Neste tipo de contextualização, o missionário tem um mandato
profético, para levar a luz às pessoas e chamá-las das trevas para a transformação por fé e obediência ao filho de Deus, Jesus Cristo.
Fatores culturais e supraculturais na comunicação do evangelho
A falta de contextualização é tratada por Nicholls no primeiro capí-
tulo, "Fatores culturais e supraculturais na comunicação do evangelho". Insensibilidade cultural e dificuldades de comunicação alteram a
mensagem porque o missionário não percebe se os ouvintes estão, ou não, compreendendo a mensagem. Ele trata todas as audiências da mesma forma, como se fossem uma tabula rasa. Pior é quando ele ensina outros sem entender as influências da sua própria cultura. Pensa
que sua compreensão da mensagem é pura e completa. O resultado é falta de entendimento do verdadeiro evangelho da parte do missioná-rio e dos que estão recebendo a mensagem.
Além da impossibilidade de compreensão, esta falta de contextua-lização cria resistência. Os receptores resistem porque o que ouvem não lhes faz sentido. Também é comum que sintam-se ameaçados cultu-
ralmente. Em parte, isto é inevitável, pois o evangelho opõe-se a muitos
aspectos da cultura. Entretanto o missionário tem que tomar cuidado para que ele não crie uma ameaça baseada em pontos desnecessários,
98 • Questões contemporâneas sobre a contextualização missionária
ligados à sua própria cultura e não às Escrituras. O missionário tam-
bém pode encontrar resistência quando se comunica com ar de superio-ridade, paternalismo e preocupação com as coisas materiais.
A solução destes problemas é enviar missionários com maior pre-paro e sensibilidade cultural. Nicholls escreve:
A chamada à maior sensibilidade na comunicação transcultural é uma chamada à paciência na compreensão, a uma peregrinação humilde de discipulado e uma chamada a um engajamento amoroso com as pessoas nas realidades da sua vida diária. E ter a mente de Cristo que renunciou a Sua glória e Sua posição, identificou-Se com as pessoas na sua humani-dade e foi um servo sofredor até à morte (p. 9).
No seu preparo, o missionário precisa aprender o que é "cultura".
Cultura é um enredo para a vida, aprendida e dinâmica, envolvendo cosmovisão, valores, instituições e comportamento, tudo influenciado pela religião e influenciador da religião (p. 10). O evangelho deve modificar cada nível da cultura, não apenas o comportamento ou a cosmovisão sem expressão comportamental (p. 11). Esta transformação
deve ser abrangente e profunda baseada nas verdades de Deus revela-
das na sua Palavra. Nicholls é enfático neste ponto. A Bíblia não é produto da cultura,
como dizem os antropólogos e alguns teólogos, mas é supracultural e normativa para todas as culturas. Deus exerceu sua soberania sobre a cultura, especialmente a dos hebreus e a do seu povo na igreja.
A cultura dos hebreus não era apenas o produto do seu meio-ambiente, mas era a interação entre a supracultura e os hebreus no seu meio-ambiente e na sua história. O Deus dos hebreus também é o
Deus dos cristãos e, portanto, a igreja, como o novo povo da aliança, é a esfera onde mudanças culturais mais devem ser esperadas. Haverá um movimento progressivo em direção a uma "cultura cristã" que refletirá tanto a universalidade do evangelho e a particularidade do meio-ambiente humano. (...) Manifestará o fruto do Espírito. Ao mesmo tempo, será uma igreja verdadeiramente indiana [ou brasi-
leira, americana, africana....], despojada da cosmovisão, dos valores e dos costumes do hinduísmo que são contrários ao evangelho.
Analisando o berço da contextualização- Bruce Nicholls e as 99
A linha de demarcação entre aquilo que é indiano e o que é hindu ou muçulmano é extremamente difícil de distinguir. Somente o senho-rio de Cristo e a iluminação divina do Espírito Santo sobre a Palavra de Deus escrita podem guiar o crente e a igreja a fazer esta distinção. Onde não houver qualquer interação genuína entre o supracultural e a cul-tura nacional na comunidade cristã, pode se duvidar seriamente se o reino de Deus esteja em qualquer sentido no seu meio" (p. 12).
A cultura não é neutra — reflete o conflito entre o reino de Deus e o império das trevas, que também é uma realidade supracultural bem docu-mentada na Bíblia. No final, a vitória virá com a libertação total do mal e a chegada de uma cultura verdadeiramente cristã (p. 13).
O evangelho não é hóspede da cultura (referência ao teólogo africa-no, John Mbiti), mas seu juiz e redentor (p. 13). O missionário tem que entender que os resultados da criação e da queda são traços da imagem de Deus e também do pecado em cada pessoa e cultura (p. 14). Satanás é o príncipe deste mundo e estraga a imagem de Deus onde e quando pode (Ef. 2.1-3; Rm 1.18-32). "Destarte, cada segmento da cultura — a cosmovisão, os valores, as instituições, os artefatos e o comportamento externo — estão pervertidos e abusados" (p. 15). Por isso todos necessitam do evangelho, que transforma as pessoas e as culturas. A igreja se torna uma manifestação visível de uma comunidade debaixo do senhorio de Cristo, composta de "homens e mulheres em comunhão com ele mesmo, por meio do arrependimento e da fé" (p. 16).
Padrões no movimento da contextualização para o sincretismo
No capítulo 2, "Padrões no movimento da contextualização para o sincretismo", Nicholls aborda o segundo problema principal. Neste caso, em vez de falta de contextualização, há excesso dela. Nicholls traça o debate que se inicia com "indigenização", ou autoctenização, e vai à "contextualização". Ele começa com os pensadores do século XIX, que encorajavam as igrejas formadas nos campos missionários a
serem "autosustentadas, autogovernadas e autopropagadoras". Depois veio a "indigenização", que enfatizou a identificação cultural na áreas de convivência, vestimenta, moradia e formas litúrgicas. Em 1972, o
100 .. Questões contemporâneas sobre a contextualização missionária
Fundo de Educação Teológica (FET), braço do Concílio Mundial de
Igrejas (CMI), no seu relatório Ministério e Contexto, "sugeriu que
contextualização dá a entender tudo quanto está envolvido no termo familiar Indigenização', mas procura abrir caminhos além dele, para levar em conta 'o processo da secularidade, da tecnologia e da luta
pela justiça humana que caracterizavam o momento histórico das nações no Terceiro Mundo'" (p. 17-18, citando o FET, p. 20).
Nicholls concorda com esta necessidade da contextualização,
um passo mais dinâmico e abrangente do que a indigenização, mas ele adverte sobre os diferentes usos desta palavra, e o perigo de aca-
bar no sincretismo.
Porque o palco inicial do debate sobre contextualização foi o CMI, Nicholls descreve rapidamente o seu desenvolvimento e o que
o levou a uma posição humanista, "descrita, em grande medida, com termos sociais, econômicos e políticos" (p. 19). Nas assembléias mun-diais do CMI em Upsala (1968), Nairobi (1975) e Bangkok (1973), a clareza da linha entre a igreja e o mundo ofuscou-se. Esta tendên-cia se mostra nas declarações do CMI que incluem até elogios ao ditador chinês, Mao, tido como salvador contemporâneo (ou na con-
tribuição de milhões de dólares para movimentos marxistas revolu-cionários, como o de Moçambique). Ele escreve: "A escatologia era decididamente a escatologia realizada no mundo secular contem-
porâneo em termos da luta pela libertação e da busca do desenvolvi-mento humano" (p. 19). Em Upsala o tema foi "O mundo cria a agenda", ou seja, o objetivo de missão é decidido pela cultura. Esta
atitude extrema tinha começado bem antes, na segunda reunião internacional do Concílio de Missões Internacionais, (Jerusalém, 1928), quando o professor Hocking conseguiu mudar totalmente a
ênfase de Edinburgo, 1910. De evangelismo, o tema passou a ser a
unidade e aceitação de todas as religiões. Hocking apresentou um relatório em 1932 mostrando que não há diferença entre cristianismo
e qualquer outra religião, e que a conversão de adeptos de outras religiões seria "inapropriada". Hocking e os membros do comitê de pesquisa eram leigos filósofos, sociólogos, economistas, e outros, mas
não havia no grupo qualquer pastor, missionário ou teólogo (Hedlund, 1981:55-59).
Analisando o berço da contextualização- Bruce Nicholls e as f 101
A influência de Hocking e outros eventualmente levou à ideia do
universalismo da "salvação", teoria que com o tempo permeou várias denominações, inclusive a da minha própria família. Por isso as assem-
bléias do CMI começaram a incluir pessoas e ritos das outras religiões nos programas, inclusive o candomblé. Desenvolveram a "teoria
dialógica", que descarta o diálogo como instrumento de evangelização, mas o afirma como fator de unidade, que procura compreender o
Deus que todos têm em comum. Com a percepção que a evangelização
é desnecessária, sobrou apenas a "ação social". Durante a assembléia de Upsala, vários evangélicos reagiram.
A. R. Tippett perguntou se alguém tinha pedido a Deus para conhecer
a sua agenda para o mundo. John Stott acusou os participantes de terem "traído os dois bilhões"' e escreveu, "Jesus chorou sobre eles (os não-evangelizados), mas os participantes da assembléia, não" (Hedlund, 1981:116-117).4
A divisão não demorou. Em 1974, no Congresso Internacional de Evangelização Mundial, realizado em Lausanne, Suíça, formou-se
um palco para os evangélicos, especialmente em torno do "Pacto de Lausanne", um tratado doutrinário e um claro mandato missionário.
Apesar da rejeição do humanismo, os evangélicos reconhecem a importância da dimensão social do evangelho. Nicholls escreve:
"Os evangélicos estão igualmente preocupados com as dimensões mais
amplas da fé cristã, porque são de importância bíblica. Logo, qualquer
discussão sobre a contextualização do evangelho em termos da obra de
Deus no mundo das estruturas econômicas e políticas não pode ser sepa-
rada da obra da evangelização e da indigenização da igreja. As questões
contemporâneas no debate da contextualização e no modo tradicional de
entender a indigenização são igualmente importantes para uma teologia
evangélica do evangelho e da cultura" (p. 19-20).
Para melhor entender as questões envolvidas, Nicholls faz uma análise geral dos diferentes modelos de contextualização.
3 O número de não-alcançados na época. 'Para uma avaliação do CMI recente, veja Ultimato, maio-junho, 2006, que traz
o relatório da nona assembleia, realizada em Porto Alegre em janeiro daquele ano.
102...Questões contemporâneas sobre a contexinalização missionária
Modelos de contextualização
Para Nicholls, há dois níveis de contextualização: 1) o cultural, que é a preocupação, principalmente de antropólogos, com os segmentos
mais superficiais da cultura, como instituições da família, direito, edu-
cação, comportamento e artefatos — uma abordagem mais fenome-nológica que alguns chamam de "etnoteologia"; 2) o teológico, mais preocupado com a cosmovisão e também com valores morais e éticos que se derivam dela (p. 20).
Além de examinar os níveis da contextualização, Nicholls apresenta duas abordagens dela: 1) a existencial e; 2) a dogmática. A contextua-lização existencial acredita que a Bíblia é culturalmente condicionada,
portanto eliminando sua confiabilidade e autoridade. (A abordagem dogmática será tratada no capítulo 3.)
Nicholls apresenta dois exemplos do modelo existencial: de Daniel von Allmen e Wesley Ariarajah. Von Allmen, suíço, era professor de
teologia em Yaounde, nos Camarões. Ele escreveu combatendo as ideias do teólogo evangélico africano Byang Kato, que estava tentando cor-rigir o que ele chamava de "cristo-paganismo" na África. Para Allmen,
toda teologia é "uma reflexão sobre o evento Cristo" (p. 21) e um
estudo dos processos da igreja primitiva. Ele não acredita que o ensino de Jesus ou os escritos bíblicos sejam verdades absolutas. Em vez disso,
os vê como "processos" e apenas exemplos, para que as igrejas de hoje possam ter noção de como criar suas próprias teologias baseadas em suas culturas. Para Allmen não há contextualização, pois em cada
lugar a teologia começa de novo, a partir de uma experiência interior de cada pessoa dentro da sua cultura. Isto é uma absolutização da cultura local (p. 22).
O segundo exemplo existencial é S. Wesley Ariarajah, que foi
um ministro da Igreja Metodista de Sri Lanka. Para ele não há falsas
religiões, todas são válidas experiências de indivíduos. Ariarajah crê que a história judaico-cristã não é mais válida do que a história hindu
ou budista, seguindo o pensamento do universalismo. Não houve ape-
nas um Jesus no Novo Testamento, mas pelo menos cinco. A Bíblia apenas reflete a fé das pessoas num determinado tempo. As ideias de
Ariarajah fazem parte de uma reação exagerada contra o dogmatismo
de missionários que rejeitaram todas as expressões culturais asiáticas,
Analisando o berço da contextudização Bruce Nicholls e as e 103
e que não tinham a capacidade de distinguir entre a teologia verda-
deiramente bíblica e a teologia ocidental (23). Muitas vezes, o resultado da contextualização existencial é o
sincretismo. E um perigo que deve nos alertar, para que não descarte-mos expressões criativas autênticas e aceitáveis da fé em cada cultura.
Sincretismo
Há dois tipos de sincretismo, o cultural e o teológico. O sincretismo
cultural envolve uma fusão de símbolos e práticas religiosas cristãs e
pagãs, evidentes para nós no catolicismo sertanejo ou brasileiro em geral, ou no estilo de vida materialista de muitos cristãos. Pode ser inconsciente, como estes últimos, ou consciente, a exemplo da impo-
sição de liturgias estrangeiras dos missionários. O sincretismo teológico deixa a Bíblia sem autoridade, é cultural-
mente condicionada, e confunde o supracultural com o cultural. Neste
tipo, a Bíblia é tão verdadeira como os Vedas, e a experiência religiosa
de cada pessoa é igualmente válida. Essa perspectiva cria uma universalização da fé, ou reducionismo, em que não há a realidade
concreta do "Jesus histórico", mas apenas uma ideia ou um ideal. Este tipo de sincretismo também acredita que todos têm a verdade,
ou "a soma total de verdades particulares é maior do que a expressão
de qualquer verdade individualmente," levando à síntese (p. 27). O conjunto das explicações das religiões cria uma verdade maior do que qualquer uma, como a do cristianismo, poderia fazer sozinha. Há
uma absorção progressiva pelo naturalismo e relativismo. Nicholls es-creve: "Todas as reivindicações a uma Escritura com autoridade, a
uma encarnação sem igual, a uma salvação específica, são progressi-
vamente absorvidas num relativismo cultural. (...) O sincretismo resulta na morte lenta da igreja e no fim da evangelização" (p. 27).
Compreendendo a teologia bíblica
Frente a estes perigos, qual a solução para o missionário evangélico?
No capítulo três, "Compreendendo a teologia bíblica", Nicholls de-
fende a Bíblia como determinante para a hermenêutica e a con-
textualização.
104 Questões contemporâneas sobre a contextualização missionária
Tanto os fundadores da conferência missionária de Edinburgo de 1910, como os evangélicos desde aquela época, acreditavam que a Bíblia é normativa para a mensagem do evangelho e para a vida da
igreja em questões de fé e de conduta. Apesar disto, alguns do CMI começaram a questionar a relevância bíblica para a modernidade, desde a sua segunda reunião mundial em 1928. Finalmente em 1967, uma comissão foi nomeada para tratar dessa questão. O relatório final foi
apresentado em Louvain, Bélgica, e aprovado pela Comissão de Fé e Ordem (da CMI) em 1971, um documento de alta importância para
o movimento ecumênico (p. 31). Uma parte importante do relatório de Louvain era a renovada
afirmação que tanto a Bíblia, como nossas interpretações da Bíblia,
são condicionadas culturalmente. Nicholls escreve:
Esta declaração precisa de avaliação cuidadosa. Embora seja verdadeiro que as tentativas no sentido de contextualizar a teologia, feitas pelos teó-logos tanto das igrejas antigas como pelas mais novas, tenham sido condi-cionadas por uma larga gama de fatores culturais, permanece a pergunta crucial: de que maneira e até que ponto a mensagem da própria Bíblia é condicionada pelo meio-ambiente cultural dos seus autores? Até que ponto a mensagem bíblica é transcultural e como (...) pode ser claramente iden-tificado e objetificado? Qual era a natureza do controle de Deus sobre estes fatores culturalmente condicionantes na inspiração da escrita das Escrituras? (p. 31).
O relatório rejeita qualquer controle de Deus na inspiração da
Bíblia, dizendo que seu conteudo não é objetivo, mas subjetivo; não contém fatos de verdade, mas apenas interpretações dos seus autores.
Para a comissão de Louvain, a Palavra tem "influência" ou um "papel" inspirador, semelhante ao dos escritos de outros autores como Lutero, Tomás de Aquino ou escritores modernos. Não há diferença defini-tiva entre escritos canônicos e não-canônicos (p. 32).
No entanto, para o evangélico, não é possível colocar a cultura em
primeiro lugar ou acreditar em uma Bíblia condicionada culturalmente que pode incluir qualquer autor de aceitação popular. Nicholls afirma
que a Palavra é inspirada, inerrante e autoridade final. É necessário
Analisando o berço da contextualizaçdo Bruce Nicholls e as . • 105
utilizar uma hermenêutica correta, mas Deus exerceu soberania sobre
o processo de escrever a Bíblia, inclusive sobre a cultura dos escritores. A Bíblia é transcultural e supracultural. Isto não significa que as pes-
soas que interpretam a Bíbia não são influenciadas pelos seus pré-
entendimentos ou pressupostos culturalmente formados. Pré-entendimentos são formados por três fatores: supraculturais,
culturais e ideológicos. Fatores supraculturais incluem conversão, senho-
rio ou rejeição de Cristo, humanismo secular, ateísmo, ou animismo e politeísmo. E como vemos o mundo espiritual, aceitando ou rejei-tando-o. Por exemplo, é difícil o muçulmano aceitar a encarnação de Cristo, o Filho de Deus, porque o seu preconceito monoteísta impe-
de esta ideia. Para mudar ele precisa de uma conversão. Paulo experi-mentou mudanças de pressupostos quando trocou uma cosmovisão totalmente legalista e etnocêntrica pelo amor aos povos depois de encontrar-se com Jesus no caminho para Damasco. Lutero mudou radicalmente quando percebeu que a salvação era pela fé, não por
obras. Em nossa cultura damos o exemplo do espírita liberto dos demô-nios ou do católico sertanejo percebendo que Padre Cícero não faz
milagres e não é Deus. O Espírito Santo transforma pressupostos. Fatores culturais são importantes também na influência de pré-
entendimentos. O contexto, o sofrimento, o "progresso", as institui-ções e os valores são coisas que fazem as pessoas enfatizarem um aspecto
sobre outro, ou tirarem uma coisa como mais importante. Sistemas educacionais e religiosos criam categorias em que novas informações
são inseridas e traduzidas, como a aceitação de sexo livre, casamento gay ou aborto. A herança eclesiástica, o nível social e a política são fatores culturais importantes.
Fatores ideológicos também influenciam pré-entendimentos. A cosmovisão e o sistema de valores levam a interpretações coerentes com o sistema, mas não necessariamente com o ensino da Bíblia. Mestres
importantes influenciam vidas, escolas filosóficas e teologias. Nicholls cita teólogos indianos que foram influenciados pelo hinduísmo. A
hermenêutica moderna ao redor do mundo foi influenciada por ho-
mens como Rudoph Bultmann (que falava da "demitização" do Novo
Testamento e do condicionamento cultural do texto), que por sua vez foi influenciado por Adolf von Harnack e Friedrich Schleiermacher.
106 Questões contemporâneas sobre a contextualização missionária
Kant, Heidegger e outros fazem parte da formação das ideias de Bultmann, que depois influenciou a "nova hermenêutica" de Ernst Fuchs e Gerhard Ebeling, que desconsideram a análise objetiva do texto bíblico. O existencialismo de Barth também prejudicou o es-tudo direto e objetivo do texto. Nicholls resume o problema:
A redução da revelação para o evento interpretado, e a limitação da fé para a fé baseada no conhecimento histórico, elimina da categoria "Palavra de Deus" qualquer compreensão de um elemento verbal e proposicional na revelação divina. A escritura na sua totalidade já não tem um valor normativo, e o conteúdo da fé é deixado sem definição. Estamos gratos pela ênfase dada pela nova hermenêutica ao papel da própria experiência vivencial do intérprete sobre sua tarefa exegética e expositória, mas é necessário um corretivo e um equilíbrio. Isto nos leva para um novo enten-dimento da nossa tarefa teológica evangélica (p. 34).
Nicholls defende a posição histórica da autoridade máxima da Bíblia, divinamente inspirada, infalível e confirmada pelo próprio Cristo em seus discursos, e que transcende a nossa própria experiên-cia dela. Quando alguém aceita Cristo como salvador, ele também começa a aceitar pela fé a Bíblia como viva e eficaz. Baseado nisso, Nicholls ecoa a fé de séculos quando diz:
O Pacto de Lausanne declara: "Afirmamos a inspiração, veracidade e autoridade das Escrituras tanto do Antigo Testamento como do Novo, na sua inteireza, como a única Palavra de Deus escrita, sem erro em tudo quanto afirma, e a única regra infalível da fé e da prática" (§ 2). A declara-ção doutrinária da (...) Aliança Evangélica faz uma afirmação semelhante, assim como também fazem as declarações das igrejas e organizações para-eclesiásticas evangélicas pelo mundo afora, independentemente das suas próprias culturas.
Os evangélicos reconhecem que [sua fé é] razoável, pois a erudição crítica, ao invés de refutar com certeza garantida as reinvindicaçôes teoló-gicas e fatuais do texto bíblico, resolveu cada vez mais as discrepâncias e dificuldades que refutariam a infalibilidade bíblica.
Certo número de considerações importantes seguem-se deste enten-dimento prévio. A inspiração sem igual dos livros canônicos, que Deus
Analisando o berço da contextualizaçao: Bruce Nicholls e as • 107
levou a igreja a reconhecer como tais, garante a unidade e racionalidade
essenciais da mensagem bíblica. É, portanto, correto falar de uma teologia
unitária ou não-dividida. Reconhecendo os aspectos distintivos da herança
cultural e situação dos escritores bíblicos, é também correto falar da teolo-
gia paulina, da teologia joanina, e assim por diante, e vê-las como elemen-
tos autênticos da única teologia bíblica e também ver que seus "centros
relacionais" são mantidos juntos numa harmonia divina. O pluralismo teo-
lógico da Bíblia é um pluralismo da complementaridade dentro de uma
única totalidade global, divinamente controlada (p. 35-36).
Os autores da Bíblia escreveram conforme suas culturas, mas controlados pela providência de Deus. Ele mesmo formou uma cul-
tura hebraica transmissora "que refletia a interação entre o conteúdo supracultural e a forma cultural. (...) Não se trata simplesmente de uma cultura sem igual que levava as marcas da interação divina-
humana. Na providência de Deus, esta cultura conseguiu transmitir fielmente a qualidade sem igual da mensagem divina da criação, do
pecado, da redenção e, supremamente, da encarnação e ressurreição do Filho divino" (p. 36-37). Neste processo, os traços nocivos das nações vizinhas foram eliminados, como a idolatria, a promiscuidade sexual, a corrupção e a injustiça. Nos momentos de enfraquecimento, quando Israel identificou-se e adotou as práticas abomináveis das
nações, Deus enviou profetas para os advertir e castigos para que voltassem em arrependimento aos caminhos de Deus. (Tinham sido
escolhidos, desde Gn 12 e Ex 19.3-6 para ser sacerdotes de Deus na terra, santos.)
Nicholls termina o capítulo três afirmando princípios herme-nêuticos, necessários para complementar o fundamento das Escritu-ras na contextualização. O evangélico crê que a Bíblia é a Palavra de Deus, e precisa saber interpretá-la. Portanto, Nicholls traz quatro princípios para nos ajudar na tarefa hermenêutica.
Princípios hermenêuticos para entender a teologia bíblica
1. O princípio de um estilo de vida marcado pela fé e compro-misso. Submissão e obediência são essenciais para a compreensão
da Bíblia e a contextualização fiel dela.
108 • Questões contemporâneas sobre a contextualização missionária
2. O princípio objetivo-subjetivo de distanciamento do texto e
da identificação com ele. O leitor da Palavra, na medida do possível, precisa ter objetividade para entender o seu significa-do original e natural, baseado na busca da intenção original do
autor, sem interferência dos pressupostos do intérprete ou do
ouvinte, no caso de haver contextos diferentes. Assim o in-térprete se torna profeta, desafiando as culturas. Ao mesmo
tempo há uma experiência de iluminação e fusão na vida dos ouvintes, conduzida pelo Espírito Santo..
Para tornar a Palavra viva e transformadora num contexto, o mis- sionário precisa identificar-se com as pessoas e sua cultura. "A
encarnação é o modelo absoluto desta identificação, que envolve tan-to a renúncia quanto a identificação. Não haverá qualquer comunica-ção transcultural à parte desta identificação... Esta é a chamada missionária da igreja, o preço a ser pago pela contextualização verda-
deira" (p. 40). 3. O princípio da vida do corpo da comunidade cristã. Não é
possível ter interpretação individualista. A igreja foi construída
sobre o fundamento dos apóstolos e profetas e continua cres-cendo numa comunidade de pessoas que recebem dons de ensino profético e edificador. Não se pode simplesmente des-cartar esta igreja, nem tudo que na história ela acreditou e
ensinou. 4. O princípio da missão no mundo. A teologia precisa ser colo-
cada em prática na caminhada para alcançar o mundo, levan-do o evangelho que transformará vidas e fará discípulos.
A dinâmica da comunicação transcultural
No quarto capítulo, Nicholls explica que a contextualização é tarefa da comunicação tridimensional: o evangelho da Bíblia, o mensageiro (produto da sua cultura), e o receptor no contexto da sua cultura. O
comunicador, ainda com conhecimento imperfeito da Palavra, deve sempre crescer no seu conhecimento dela e da cultura receptora. Deve descobrir na cultura pontos de contato, necessidades, formas relevantes de comunicação, a atuação demoníaca e tudo que precisa
Analisando o berço da contextualização. Bruce Nicholls e as 109
para levar à transformação, tanto na cultura receptora como na sua
própria. Culturas expressam de formas diferentes a fé, mas "quanto mais leais são aos fatos dados da teologia bíblica, tanto mais comple-mentares e menos contraditórias se tornam" (p. 43). Há "centros relacionais" que são enfatizados por diferentes povos em situações particulares, mas que são verdadeiros para todos, como salvação pela
fé de Lutero ou o amor de Deus e sua graça dos weslianos. Aprende-mos mais sobre a Bíblia com crentes de outros contextos. Estas teologias
contextualizadas devem ser constantemente sujeitadas às normas da
teologia bíblica" (p. 43). O ponto de partida tem que ser de "dentro do círculo da fé e da
dedicação à auto-revelação de Deus em Cristo" (p. 43-44). A cultura não pode ser o ponto de partida; assim toda relevância e autoridade
da Bíblia se tornam nulas (leva a "um beco sem saída"). "O ataque constante de Karl Barth contra a teologia natural é bem fundamen-tado. O mistério da fé começa com o conhecimento de Cristo e não com a filosofia e a tradição humana (Cl 2.1-8)" (p.44).
Isto não exclui a importância dos "pontos de contato", ou pontos em comum sobre os quais é possível estabelecer relacionamentos. A
cosmovisão, filosofia, religião e cultura de um povo podem incluir prepa-rativos para a fé (apesar de que não comprovam o argumento da fé).
Através da história, a igreja tentou formular, em termos com-preensíveis, os ensinos da Bíblia. Os concílios nos primeiros séculos da era cristã confirmaram algumas doutrinas sobre Deus, a Trindade e o Espírito Santo, mas não criaram estas doutrinas bíblicas. "A trin-dade é um mistério divino porque é supracultural. A unidade de
Deus manifesta 'em três maneiras pessoais diferentes' está além da compreensão especulativa ou racional de qualquer sistema religioso
ou filosófico" (p. 44). Podemos tentar compreender e explicar estas
verdades usando termos culturais, mas tudo é insuficiente, a não ser a aceitação pela fé.
Um problema no processo de contextualização tem sido enten-der o Deus criador distinto do Deus salvador, separando a obra da
criação da redenção. No entanto o Antigo e o Novo Testamentos unem
as duas realidades, bem explicadas em textos como Efésios 1, Filipenses 2.5-11 e Colossenses 1.15-20. A integração das duas verdades leva à
1 10 Questões contemporâneas sobre a contextualização missionai-ta
correção dos mitos de criação, à resolução de problemas de idolatria,
pluralismo e panteísmo, e ao reconhecimento da soberania de Deus
único e trino. Salvação não vem apenas através da crença que existe um Deus criador, mas tem que reconhecê-lo também como salvador e redentor.
A igreja é o lugar onde essas verdades se manifestam através da vida em comunidade, a unidade na pluralidade. A igreja como famí-
lia extensa de Deus vai contextualizar a imagem de Deus como de
pai-filho, tão necessária para um mundo de relacionamentos huma-
nos quebrados. O pecado, razão de alienação entre os homens e entre o homem e
Deus, é muito bem descrito em Romanos 1.25 como idolatria da criação. A idolatria leva os povos a tentar criar e manipular ou aplacar
os deuses que criou, fazendo-os escravos deles. "O fim é a sujeição aos poderes demoníacos, e a morte espiritual e eterna" (p. 47), levando à
alienação e à morte.
"O profeta é o agente de Deus para pronunciar julgamento con-tra todas as formas da alienação" (p. 47) como fizeram os profetas de
Israel e os homens e mulheres de Deus no Novo Testamento. Isto
exige uma desculturação em toda a cultura (p. 48), que faz parte da contextualização. O evangelho julga a totalidade da cultura, destruindo
o que é contrário à Palavra de Deus (inclusive na cultura do missioná-
rio) e "criando de novo aquilo que é fiel à revelação universal que Deus deu à humanidade" (p. 48). O ponto de partida para isso não é a cultura, mas, sim, a Bíblia.
"Sempre há uma tensão dinâmica entre os universais supraculturais da igreja, que todas as igrejas pelo mundo afora têm em comum, e as variáveis culturais peculiares a cada igreja nacional" (p.50). Esta ten-são criadora tem que ser mantida entre a "correspondência formal"
dos universais e a "equivalência dinâmica" dos variáveis culturais. Sem as universais a igreja se fragmenta e perde a comunhão e instrução de todas as partes. Algumas coisas devem ser rejeitadas de imediato, e outras vão "desaparecer lentamente à medida em que a igreja cresce em sujeição a Cristo e ao seu reino, assim como acontecia na história
bíblica" (p. 50). Outras formas culturais neutras e positivas vão per-
manecer, marcando a igreja como autóctone.
Analisando o berço ria contextualização. Bruer' Nicholls e as a. 1 1 1
As variáveis vão ser ligadas a pontos de cultura pré-existentes, não como Mbiti quer, baseando o cristianismo na cultura, mas, ao
contrário, a fé julgando e sarando a cultura.
Sem os princípios formais da correspondência da Escritura, não é possível fazer julgamentos corretos sobre os valores destes fatores culturais variá-veis. O princípio da equivalência dinâmica é necessariamente subjetivo. No curso da história da igreja, a acomodação a acréscimos culturais e o provincialismo têm destruído a vida de muitas igrejas. A igreja local ou nacional nunca deve ficar cativa à sua própria cultura (p. 51).
Nicholls inclui uma nota de preocupação sobre a educação teoló-gica neste ponto — "que a transferência de modelos de uma cultura
para outra pode tornar-se um empecilho grave à proclamação eficaz
do evangelho e à edificação de igrejas que são tanto biblicamente fiéis
quanto culturalmente relevantes" (p. 51). Os processos educativos tam-bém devem ser contextualizados.
Jesus é o supremo exemplo da contextualização. Na encarnação, Jesus deixou um modelo para os missionários. Ele renunciou a forma
de Deus e se identificou com a humanidade em um ato de suprema
humildade. Humildade é básico para a contextualização. Para tanto o missionário tem que conhecer a cultura dos receptores, os seus escri-
tos, mitos, e costumes para tornar a mensagem do evangelho relevante e compreendida. "A conversão verdadeira (dessas culturas) envolve uma
transformação radical da totalidade da cultura — a cosmovisão, os
valores, as instituições e os costumes. O evangelho rejeita aqueles ele-
mentos que são contrários à revelação de Deus, converte aqueles que refletem o homem feito à imagem de Deus, e cria elementos novos
que são distintivos ao evangelho" (pp. 52-53). A verdadeira contextualização não se limita a uma conversão pessoal,
mas inclui uma atuação de Deus sobre os males sociais. Nicholls cita o relatório Willowbank: "Talvez a forma mais insidiosa do sincretismo no mundo hoje seja a tentativa de misturar um evangelho privatizado de
perdão pessoal com uma atitude mundana (até mesmo demoníaca) para
com as riquezas e o poder" (p. 53). Por isso a contextualização tem que
começar com o comunicador, que às vezes vem deste contexto.
1 12 ea Questões contemporâneas sobre a contextualização missionária
Nicholls conclui seu livro com um parágrafo bem expressivo dos seus objetivos:
A igreja, como o povo de Deus, é chamada para levar o evangelho inteiro ao mundo inteiro, traduzindo-o em formas culturais relevantes a fim de produzir o mesmo fruto de amor e de justiça que caracterizava os indiví-duos, famílias e comunidades que compunham a igreja primitiva. O evan-gelho permanecerá imutável, mas a igreja, segundo a analogia de plantar arroz, compartilhará da continuidade do corpo universal de Cristo e da particularidade das culturas nacionais históricas, porém em mudança. A igreja no mundo é chamada para ser um modelo do reino vindouro, e o sal preservador e a luz penetrante num mundo que está corrupto e perdeu seu caminho (p. 53).
Bibliografia
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Missions Quarterly, ( Jan 2006). LONGUINI NETO, Luiz. O Novo Rosto da Missão: Movimentos ecumênico
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LUZBETAK, Louis J. The Church and Cultures. South Pasadena: William Carey Library, 1970.
NICHOLLS, Bruce J. Contextualização: Uma Teologia do Evangelho e Cultura. São Paulo: Sociedade Religiosa Edições Vida Nova, 1983.
O evangelho em contextos humanos
Paul Hiebert ( 1( i 1( ) I( (
Introdução
Paul Hiebert é um dos estudiosos que têm feito uma contribuição definitiva na área de missões. Na impossibilidade de ele estar presente na consulta da APMB,1 tenho o privilégio de representá-lo na tradu-ção e comentário de um artigo enviado por ele para a ocasião. Este capítulo é uma demonstração da nossa apreciação pela sua contri-buição à obra missionária mundial.
Muito tem sido dito sobre a contextualização da mensagem bíblica. Dr. Hiebert tem sido um dos principais contribuintes no desenvolvimento e na compreensão do assunto. Através de uma revisão histórica, ele discute cinco modelos, ou fases, de contextualização:
1. Não-contextualização ou contextualização mínima 2. Contextualização acrítica 3. Contextualização crítica 4. O evangelho compartilhado em contextos humanos 5. A revelação divina compartilhada em contextos humanos
1 0 livro foi apresentado e avaliado na consulta da Associação de Professores de Missões no Brasil em Atibaia, 9-12 de agosto de 2006.
1 1 4 e' Questões contemporâneas sobre a contextualização missionária
O último modelo representa um avanço em sua própria cami-
nhada nesta área. Em outro artigo também deste ano, ele descreve amplamente este modelo de compartilhar o evangelho nos contextos humanos – que ele chama de teologia missional. Incluiremos algu-
mas dicas do pensamento dele sobre este tema.
Mudando percepções sobre contextualização
Paul Hiebert argumenta que como seres humanos, vivemos em con-
textos particulares: em nossa família, em nossa comunidade, em nossa cidade, em nosso país. Raramente paramos para pensar sobre eles, mas esses contextos afetam o que vemos, o que sentimos, o que valoriza-mos e o que cremos, sem que questionemos se isto tudo é verdadeiro,
correto e próprio. Essas crenças são tão óbvias para nós que parecem ser universais. Para nós, elas simplesmente "são" a maneira como as
coisas verdadeiramente são. Assumimos que os outros veem as coisas da forma como vemos.
Casas têm banheiros, quartos, cozinhas e salas de estar. Carros andam no lado direito da estrada, e param nos sinais de trânsito. Devemos
colocar selos nas cartas antes de colocá-las no correio. Deixamos de reconhecer que muitas das suposições e valores que
estão subjacentes em nossa cultura não são bíblicas.
Muitos de nós, sobretudo em nossa infância, somos "monocul-turais". Somente quando as coisas dão errado, ou mudam rapida-mente, ou quando nossa visão da realidade entra em conflito com as suposições de outra cultura, é que nós as questionamos. Tais experiên-
cias nos tornam conscientes de que vivemos em contextos próprios e nos forçam a começar a pensar sobre eles — sobre suas estruturas e
suas determinações. Outros de nós temos crescido ou vivido em contextos
"multiculturais" — missionários, filhos de missionários, imigrantes, pessoas de negócio, diplomatas e escravos africanos nas casas de seus donos brancos. Esses estão conscientes das diferenças culturais e têm
aprendido no cotidiano a negociar entre dois mundos. Mas mesmo esses geralmente não param para conscientemente examinar esses con-textos e como eles modelam seus pensamentos, ou nem as profundas
O et ,onoellro erri contextos humanos — Paul Hrebert e. 1 15
diferenças que existem entre eles. Essas pessoas são, até certo ponto,
"biculturais", mas acham difícil explicar aos outros o que isso significa. Num mundo cada vez mais globalizado, é importante que todos
nós pensemos sobre os contextos humanos e como eles moldam os outros e a nós mesmos. Necessitamos aprender como viver num mundo
de múltiplos contextos para construir pontes de compreensão e rela-
cionamento e emitir julgamento entre eles. Isto se aplica igualmente
aos contextos sociais, culturais, linguísticos, religiosos e históricos.
Como devemos nos relacionar com os outros e com as suas dife-renças? Como cristãos, muitas vezes ficamos desatentos ao fato de
que somos moldados mais pelos nossos contextos do que pelo evan-
gelho. Temos nosso cristianismo como biblicamente baseado e normativo para todo mundo. Não paramos para perguntar o que dele
vem de nossos contextos socioculturais e históricos e o que vem das Escrituras. Os missionários são forçados a lidar com as diferenças socioculturais, e, portanto, com contextos sociais e culturais. Mas
mesmo assim, eles muitas vezes tomam pouco tempo para estudar
sistematicamente os contextos nos quais servem, mesmo que dimi-nua a efetividade de seus ministérios.
Os seres humanos vivem em muitos contextos: geográficos, sociais,
culturais, políticos e históricos. Para a sua análise neste artigo, Hiebert focaliza-se apenas no contexto cultural e na importância de entendê-lo para o bem de missões.
Os missionários procuram plantar igrejas em contextos sociais locais e comunicar o evangelho em contextos culturais locais. A igreja
sem o evangelho deixa de ser igreja. O evangelho sem os seres huma-
nos e instituições sociais, tais como famílias e congregações, deixa de existir. Uma análise completa de missões deve levar em conta os con-
textos social, histórico, pessoal e outros, e examinar os relacionamen-tos entre eles.
Modelos de contexttialização
Nosso consciente reconhecimento dos contextos culturais, incluindo o nosso, geralmente passa por mudanças de percepções à medida em
que encontramos os outros com as suas diferenças. E importante
116 Questões contemporâneas sobre a contextualização missionária
manter em mente que nem todo mundo passa por essas diferenças de
forma linear, e que aqueles que crescem em contextos multiculturais desenvolvem, pelo menos, alguma consciência das diferenças sociais e culturais, e, portanto de culturas e sociedades. As mudanças de per-cepções apresentadas abaixo terminam com um novo modelo em nossos ministérios transculturais. Este novo modelo é uma maneira de ver as fases da nossa crescente conscientização de outros e das diferenças que existem. É uma ferramenta para nos ajudar a entendermos a nós mesmos na luz da história do movimento de missões modernas.
Nossos pontos de vista pessoal e corporativo sobre contextualização
mudam quando nos deparamos com outras culturas e nos confronta-
mos com questões levantadas pelas diferenças que existem entre elas. Essas mudanças não são necessariamente lineares e podem se sobrepor.
Primeiro modelo: não-contextualização e contextualização mínima
A maioria das pessoas monoculturais não percebem os contextos nos quais vivem, ou a profundidade com que esses contextos moldam como
e o que elas pensam e fazem. Para elas, nesta primeira fase, a contextua-
lização do evangelho não é um problema, é uma não-contextualização.
Não-contextualização
Quando meu chefe soube que eu queria ser um missionário, e queria
primeiro terminar a universidade, seminário e pós-graduação, ele disse:
"Vá e pregue o evangelho. Por que desperdiçar tempo indo para um instituto ou seminário?". A atitude dele é comum e, infelizmente, praticada em muitas igrejas hoje.
Quando as pessoas vão como missionários, sabemos que elas necessi-tam compreender o evangelho, mas geralmente estamos certos de que
sabem o suficiente para alcançar o perdido lá fora porque frequentam a
igreja e a escola dominical. Mesmo se reconhecemos a necessidade de um maior treinamento bíblico, a maioria de nós não se dá conta das profundas questões levantadas pelas diferenças culturais, sociais e his-tóricas. Sabemos que os missionários devem se beneficiar de uma aula ou duas sobre a cultura na qual eles pretendem servir. Somos confiantes
O evangelho em contextos humanos — Paul 1-bebeu .° 1 17
de que em poucos anos eles naturalmente irão aprender o idioma e os
costumes locais e serão capazes de ministrar como eles têm feito em nossa igreja. Tudo o que precisam fazer é proclamar o evangelho para o povo, e o povo irá entender e crer. Entendemos isto como um processo ((natural". Os missionários necessitam persuadir as pessoas a deixarem seus velhos deuses e receberem a Jesus como salvador e irem para outras
áreas onde o evangelho ainda não foi proclamado. O evangelho é visto como "a-cultural"' e "a-histórico" na sua natureza intrínseca.
Nesta fase equiparamos o evangelho ao nosso cristianismo. Acha-mos que os novos convertidos devem aprender de nós e de nossas
maneiras e unirem-se a nós, porque nós somos cristãos e esta é a ma-neira que praticamos o cristianismo. Viver cristianismo de forma dife-
rente levanta muitas questões difíceis para nós. Os cristãos podem se diferir em outras culturas? E nosso cristianismo normativo para todos?
Até que ponto nossa maneira de viver o cristianismo tem sido mol-dada pelo evangelho e até que ponto pela nossa cultura? Nós chega-
mos como estrangeiros e achamos que os novos convertidos se unirão a nós e nos imitarão. Levamos conosco todo o planejamento estraté-gico devidamente elaborado, para que no tempo determinado, por
nós e pelas nossas agências enviadoras, plantemos igrejas.
O fundamento epistemológico desta fase é positivista — afirma
que o nosso conhecimento científico é uma fotografia acurada e ver-dadeira do mundo, e corresponde cem por cento à realidade. Nossas teorias não são modelos, mas fatos. Os cientistas procuram a verdade objetiva, e para isso devem eliminar sentimento e subjetividade dos processos empíricos racionais usados para confirmar a verdade.
O positivismo teológico afirma que a nossa preocupação central é a verdade, e que a nossa teologia corresponde cem por cento às Escrituras. Afirma também que outras teologias e religiões são fal-
sas e devem ser atacadas. Estamos preocupados com a verdade e a definimos em termos racionais. Divorciamo-la de nossos sentimentos e valores, porque esses minam a objetividade da verdade. Nossa preo-cupação é que as pessoas creiam na verdade do evangelho, porque
É independente da cultura e além da história.
1 18 a Questões contemporâneas sobre a contextualização missionária
isso determina se elas serão salvas ou não. Definimos a verdade em
termos proposicionais, e buscamos transmiti-la sem mudanças. Vemos a nós mesmos como os advogados de Deus, e colocamos nossa confiança em especialistas que têm estudado as Escrituras profundamente.
Finalmente, vemos o evangelho como "a-cultural" e "a-histórico". Ele é imutável e universal, e pode ser codificado em termos abstratos racionais, e comunicado em todos os idiomas sem a perda de signifi-cado. Nem os contextos socioculturais dos ouvintes, nem os mensa-geiros necessitam ser levados em conta.
Muitos missionários, quanto entram em outra cultura, movem-se rapidamente para a segunda fase de contextualização, mas alguns per-
manecem na primeira fase durante toda a vida. Eles trabalham através de tradutores, e controlam os convertidos e as igrejas. Eles se assegu-ram de que os novos crentes se conformem com as normais culturais introduzidas pelos missionários. Os convertidos devem usar roupas, aprender a ler e ter apenas uma esposa. As pessoas não podem fazer suas próprias reflexões teológicas. Elas devem aprender teologia com
o missionário.
Contextualização mínima
Quando entramos em outra cultura, logo encontramos diferenças pro-
fundas. Então experimentamos o que chamamos de choque cultural:
o sentimento de desorientação que surge quando todos os nossos cos-tumes culturais familiares não servem mais. Experimentamos um choque linguístico: a inabilidade de comunicar mesmo a mais sim-ples mensagem, e o crescente reconhecimento que as línguas mode-lam a forma como nós experimentamos e vemos a realidade. Também experimentamos um choque religioso: o fato de que outras religiões fazem sentido para seus seguidores, mesmo que para nós elas sejam estranhas e obviamente erradas. Encontramos muçulmanos e hindus
que são boas pessoas, geralmente melhores do que alguns dos cristãos que conhecemos. Eles podem articular suas crenças de maneira clara e persuasiva. Somos forçados a examinar mais a fundo nossas próprias crenças e a base de nossas convicções. Como podemos dizer que eles estão perdidos? Por que somos cristãos? É por convicção, nascimento ou tradição familiar?
O evangelho em contextos humanos — Paul When .8 1 19
Tais encontros com diferenças culturais nos forçam a lidar com
os "outros", e, em última instância, com a questão da "diferença". Este encontro com a "diferença" requer que os missionários deci-
dam sobre as questões do estilo de vida numa nova terra. Que tipos
de comida devem comer em casa? Que tipos de roupa devem usar? Que tipos de casas devem ter? Nesta fase, os missionários tentam
preservar a sua cultura para sua sobrevivência psicológica e a de seus filhos, que, eles supõem, irão eventualmente retornar para suas "cul-tura de origem".
Essas diferenças também levantam a questão das atitudes dos mensageiros para com as pessoas do local. Elas são tão diferentes — tão outras! Deste ponto de vista, as vemos como "primitivas", "atrasadas",
e necessitamos ajudá-las a se tornarem como nós.
Quando aprendemos a conhecê-las pessoalmente, elas se tornam
mais humanas para nós, amigas e vizinhas, mas ainda mantemos uma barreira psicológica entre nós e elas. Elas são as "outras", e não "nós".
Nós não pensamos seriamente em migrar e nos tornarmos cidadãos
daquele país, nem que as nossas crianças devem casar-se lá e se esta-belecerem como "nativas". Nós pensamos em "retornar para casa" quando nos aposentarmos.
Quanto mais vivemos com as pessoas a quem servimos, mais nos tornamos conscientes da profundidade e do poder da cultura
das pessoas, e da necessidade de contextualizar tanto o mensageiro quanto a mensagem para que os ouvintes entendam e vivam o evan-
gelho. No entanto, ficamos com medo de que isto possa distorcer o
evangelho e assim fazemos só o mínimo possível. Concluímos que devemos falar e traduzir a Bíblia na linguagem das pessoas e organi-zar seus cultos e igrejas como as pessoas entendem, mas ainda o cristianismo certo é igual ao nosso.
Sob este ponto de vista, ligamos o cristianismo à civilização.
Vemos a nós mesmos como "modernos" e os outros como "primiti-vos" e "atrasados" — necessitando de desenvolvimento. Por isso, nós sentimos que não precisamos estudar outras culturas profundamente,
exceto para encontrar as distorções que elas trazem à compreensão
das pessoas sobre o evangelho. Abrimos escolas e hospitais para ensinar
às pessoas as verdades da ciência e "civilizá-las". Vemos as outras
1 20 ■• Questões contemporâneas sobre a contextualização missionária
culturas como primitivas ou malignas, com pouco a contribuir para
nossa compreensão da realidade. Há pouca coisa na cultura que valha ser preservada. As mentes dos "nativos" são como uma tabula rasa, uma folha em branca, nas quais podemos escrever o cristianismo e a ciência. Para tornarem-se cristãs e civilizadas, as pessoas devem se tornar como nós. Como os chineses diziam: "Mais um cristão, me-nos um chinês."
Ainda influenciados pela semiótica do positivismo, este modelo de contextualização usa sinais formais ou literais. Desta forma, se pensa que signos ou sinais tais como palavras e fórmulas matemáticas, são
diretamente correspondentes às realidades empíricas. A palavra "árvore" refere-se a árvores reais, "vacas" a vacas reais. Esta visão de contex-
tualização presume que todas as pessoas vivem essencialmente no mesmo mundo, mas de forma simples colocam etiquetas diferentes nas realidades. Os missionários pensam que as categorias do pensa-mento, da lógica, das formas de organizar as realidades e da cosmovisão das outras pessoas são essencialmente como as deles. Na comunicação e na tradução da Bíblia, os missionários creem que apenas necessitam encontrar as palavras correspondentes em outras línguas, ajustar a gra-
mática, e assim as pessoas entenderão bem a mensagem. Outra vez aqui, vemos a necessidade de um melhor preparo missio-
nário para que aquele que vai não apenas seja capaz de reconhecer as
diferenças culturais, mas também de ensinar o povo a fazer a sua
própria leitura da revelação de Deus. Uma característica desta visão de sinais é a sua forte afirmação da
verdade. Os sentimentos e a moral são eliminados do processo racio-nal, porque eles introduzem subjetividade. Nas missões, isso reforça a comunicação do evangelho como verdade, com pouco foco nas dimen-sões afetiva e moral, ou seja, o que as pessoas sentem ou como avaliam
o que estamos fazendo não tem importância. No evangelismo e no ensino, a ênfase é colocada em argumentos acurados e desenvolvidos
pelo raciocínio e na confrontação apologética com as outras religiões.
Trazemos tudo pronto, os "enlatados" de evangelismo e missões. Uma segunda característica desta visão é que a comunicação é me-
dida pelo que é dito ou transmitido e não pelo que é ouvido. É uma
comunicação orientada para o mensageiro. A comunicação é medida
O evangelho em contextos; humanos — Paul thcbcrt 1 2 1
pelo que foi transmitido: pelo número de sermões pregados, horas de rádio no ar, quantidade de folhetos e Bíblias distribuídos, número de pessoas matriculadas no discipulado e outros fatores semelhantes.
Na contextualização mínima, a semiótica formal assume que os sinais em outras culturas, tais como drama, tambor, música e posições
corporais são inerentemente ligados aos seus significados pagãos e, portanto, não podem ser usados pelos cristãos. Isto leva a uma rejeição ampla dos sinais locais, e como resultado, a uma importação dos sinais
cristãos ocidentais. Cantamos hinos ocidentais traduzidos em lingua-gem local, construímos igrejas com estilos europeus ou brasileiros e
importamos a nossa liturgia. Se somos anglicanos, temos sacerdotes;
se presbiterianos, temos presbíteros; se batistas, introduzimos o voto. O resultado é uma abordagem pouco contextualizada em missões.
Segundo modelo: Contextualização aerifica
Quanto mais profundamente nos envolvemos em ministérios trans-
culturais, mais reconhecemos a realidade dos contextos social, cul-tural e histórico, a profundidade das diferenças entre eles e as
dificuldades para lidar com essas diferenças. Os primeiros antropó-logos e missionários estudaram outras culturas usando parâmetros teóricos ocidentais. Depois de 1930, os antropólogos começaram a
reconhecer a importância de entender o mundo como as pessoas que eles estudavam o viam (perspectiva êmica). Isto levou a uma
profunda mudança na natureza das teorias antropológicas e
missiológicas, e a uma exploração constante das diferenças entre culturas e os seus conteúdos racionais. Podemos verdadeiramente entender essas diferenças? Podemos comparar essas culturas com a
nossa, e, se podemos, em que bases? Devemos começar estudando as
pessoas a quem servimos? Mas é bom lembrar que se começarmos
com um estudo de outras pessoas, precisamos terminar com um estu-do de nós mesmos e das nossas suposições. Nossa tendência, no entanto, é de nos isentar da análise e reafirmar de forma dogmática que o
nosso mundo é o único certo. O crescente reconhecimento de "insights" antropológicos nos con-
textos humanos leva, em missões, a um crescente reconhecimento da
122 e" Questões contemporâneas sobre a contextualização missionária
importância de uma profunda contextualização do evangelho em
outros contextos, para que as pessoas possam entendê-lo e tornarem-se seguidoras de Jesus Cristo.
Este reconhecimento foi influenciado por duas mudanças de
paradigmas. A primeira foi a emergência da semiótica saussuriana. Ferdinand de Saussure (1916) levantou a questão do relacionamento entre forma e significado nos sinais, e chegou à conclusão que isso era
"arbitrário". Ele argumentou que os sinais não se referem às realidades
externas, como se pensava anteriormente. Ao contrário, eles eram construtos mentais que criavam sistemas de significados na mente
das pessoas. Os sinais têm formas e significados, e não há ligação entre
sinais e realidades fora das convenções das culturas humanas. Os sig-nificados são completamente subjetivos.
Se isto é verdade, então uma tradução literal acurada de uma cultura para outra não garante a preservação do significado original. Ao contrário, devemos medir a comunicação não pelo que é enviado
pelo mensageiro, mas pelo que é entendido pelo ouvinte. Necessita-mos de traduções nas quais os significados mentais são preservados na
comunicação transcultural, ao invés de referências literais. O resultado
é a equivalência dinâmica, abordagem usada em traduções da Bíblia orientadas para o receptor.
Uma segunda mudança de paradigma é na epistemologia. O
positivismo, que foi o fundamento para o Iluminismo, foi crescen-temente desafiado como superior, arrogante, opressivo e colonial.
Em seu lugar surgiu o instrumentalismo pós-moderno (também conhecido como pragmatismo) que vê os sistemas de conhecimento como criação das mentes humanas. Elas são rorshacks3 culturais, e não fotografias da realidade. Não há maneira de testar se elas são verdadeiras e assim adotamos aquelas que são mais úteis para nós (ver
Laudin 1997, Hiebert 1999).
O problema com esta posição é que o resultado dela é o relati-vismo cultural. Todas as culturas são vistas como igualmente boas e
' Testes de personalidade. Para maior compreensão desta análise, veja Hiebert, 1999, p. 42.
O evangelho em contextos humanos — Paul 1-bebei 1 23
verdadeiras. Ninguém pode julgar o outro. Mais que isso, a preser-vação da cultura torna-se um bem inquestionável.
A introdução da semiótica saussuriana e da epistemologia instru-
mental desafiou profundamente as pressuposições fundamentais do movimento missionário ocidental e suas atitudes coloniais. Se há algo
de bom em todas as religiões, por que os missionários devem ir con-verter os outros? E se fossem, eles deveriam tornar-se parte do povo e
se identificar completamente com as pessoas a quem servem. As pes-soas do local seriam encorajadas a ler as Escrituras sozinhas, e assim
formular suas próprias teologias. A segunda fase desta mudança para a contextualização radical
ocorreu quando os missionários, tais como E. Stanley Jones e Leslie Newbigin, retornaram para seus países de origem. Eles começaram a olhar para seus países como campos missionários, e ficaram chocados com a contextualização não crítica do evangelho no contexto ociden-
tal. O evangelho tinha se tornado parte da cultura, não uma comuni-dade contra-cultural externa. O evangelho tinha quase que perdido
sua voz profética. Deste chamado profético surgiu o movimento que
se chama "O evangelho em nossa cultura".
Terçeiro modelo: Contextualização crítica
Nos últimos anos houve uma reação à contextualização radical. A questão que se levanta é se "o evangelho ainda permanece como evan-
gelho quando é radicalmente contextualizado, ou ele se torna cativo do contexto cultural"? E ainda, "o evangelho mais contextualizado
produz igrejas mais vivas e bíblicas?" Destes questionamentos surgiu uma abordagem crítica à contextualização.
No cerne deste modelo está o fato de que o evangelho não pode ser nivelado com qualquer expressão cultural dele. Andrew Walls escreve:
Ninguém nunca poderá encontrar o cristianismo universal puro, somente o encontramos na forma local, ou seja, numa forma histórica e culturalmen-
te condicionada. Mas, não precisamos ter medo de ver o evangelho desta forma, porque quando Deus se tornou homem, ele tornou-se um homem histórico culturalmente condicionado a um particular tempo e lugar. O que
124 .• Questões contemporâneas sobre a contextualização missionária
ele se tornou, nós não devemos ter medo de ser. Não há nada errado em ter formas locais de cristianismo — desde que nos lembremos de que elas são locais (1996, p. 235).
Subjacente a este novo paradigma está uma rejeição da semiótica
saussuriana e a emergência da semiótica peirciana (veja diagrama). Charles Peirce, um matemático e linguista americano, propôs uma
terceira maneira de ver os signos ou sinais. Ele rejeitou o dualismo de forma e significado introduzido por Humboldt e Saussure, (em que
a conexão entre o significado e a forma simbólica é totalmente cultu-
ralmente determinada e arbitrária) e introduziu uma visão triádica de
sinais. Vejamos como é considerada a semiologia em função da tríade signo/objeto/interpretante idealizada por Peirce.
Semiose
(processo de significação)
Peirce
A Signo Qualquer coisa perceptível: palavra, sintoma,
sinal, sonho, letra, frase. Um signo representa um
objeto, refere-se ao objeto. Sem ele, é impossível
conhecer o objeto.
Objeto É a ele que se refere o signo. Pode ser
perceptível ou imaginável. Determina o
signo. Existe à margem do signo.
C Interpretante Pensamento que interpreta um signo anterior.
Qualquer novo interpretante lança mais luz
sobre o objeto.
Signo é tudo o que possa ser conhecido, tudo o que é reco-nhecível. Mas, para que um signo potencial possa atuar como tal, deve estar relacionado com um objeto, deve ser interpretado e produ-
zir um interpretante na mente do sujeito implicado. Este processo
O evangelho em contextos humanos — Paul Hiebert ■° 1 25
interpretativo é denominado "semiose". Esta é a representação gráfica
da tríade peirciana:
interpretante
TIS IS
v v
signo E_ —> objeto
Triângulo da semiose segundo Peirce
Por exemplo, a palavra "árvore" invoca uma imagem mental de uma árvore e refere-se a árvores reais na floresta. Em outras palavras, um signo é a ligação de imagens mentais às realidades através de pala-vras, gestos, sons e imagens. Os signos têm uma dimensão subjetiva e
uma dimensão objetiva. Isto significa que eles não são simplesmente
construtos humanos, mas que eles refletem a ordem da própria reali-dade. Se não existisse uma grande correspondência entre as visões de
realidade das pessoas e a realidade propriamente dita, a vida seria impossível. Por exemplo, para dirigir na estrada além de olhar para o tráfego construído mentalmente, precisamos olhar mais para o tráfego que é verdadeiramente real e mortal.
Em comparação com o binômio saussuriano, observamos que a concepção peirciana deixa espaço à interpretação individual. Isto implica que a arbitrariedade da significação saussuriana tem em Peirce uma dimensão subjetiva que não é arbitrária. Para cada um de nós, a relação
entre um signo e um objeto tem um sentido preciso, está vinculado a afetos, lembranças e experiências que têm que ver com tal semiose. Com Peirce a semiose adquire uma dimensão afetiva que, embora seja
subjetiva, para o sujeito não é arbitrária, em absoluto. Há também uma crescente reação ao instrumentalismo pós-
moderno e à emergência de uma epistemologia pós-moderna crítica
126 e" Questões contemporâneas sobre a contextualização missionária
realista (Laudin 1977, Hiebert 1999). Dentro desta visão, os seres
humanos só podem conhecer a realidade em parte. Ou seja, esse conhe-cimento não corresponde por completo a uma fotografia da realidade, nem cria uma ligação estreita entre teoria e fatos, mas é apenas um mapa da realidade. Os mapas devem corresponder à realidade no que eles dizem afirmar, mas eles são imagens mentais que são esquema-tizadas, aproximadas e, por necessidade, limitadas e seletivas. Um mapa rodoviário não aponta os limites das propriedades ou as variáveis eco-nômicas do local. Para ser útil, ele deve ser simples, não deve mostrar
cada curva na estrada nem cada buraco ou ponte. Ele deve, sim, dire-cionar os motoristas para seus destinos desejados. O motorista deve não apenas prestar atenção ao tráfico construído na mente, mas ao
tráfico que é real e perigoso. Com a semiótica peirciana e a epistemologia realista crítica4, é pos-
sível comparar os sistemas de crenças humanas e testá-las com a reali-
dade. Para fazer isso, precisamos desenvolver "matrizes meta-culturais" que possibilitam comparar e avaliar os dois mundos, traduzi-los e negociar entre eles.
Duas conclusões imediatas são que: 1) na tradução da Bíblia, a semiótica peirciana nos leva além da equivalência dinâmica para tra-
duções duplas das quais os tradutores procuram comunicar ideias
acuradamente enquanto preservam as formas nas Escrituras tanto quanto possível. Para tanto, utilizam notas de rodapé ou clarifica-ções parentéticas. 2) Na contextualização, a semiótica peirciana pede
uma contextualização crítica, ou uma teologia missional (Tiénou e Hiebert, 2006). Desta forma, a Bíblia é vista como a revelação divina,
e não simplesmente como crenças construídas por seres humanos. Na contextualização crítica, o cerne do evangelho deve ser mantido
como ele é, e codificado nas formas que são compreendidas pelas
pessoas, sem tornar o evangelho cativo de seus contextos. Este é um processo contínuo de imersão do evangelho num mundo em cons-
tante mudança. Aqui as culturas são vistas tanto como boas quanto
'Ver Paul G. Hiebert, Missiological Implications of Epistemological Shifis.
como más, e não simplesmente como veículos neutros de compre-
ensão do mundo. Nenhuma cultura é absoluta ou privilegiada. So-
mos todos relativizados pelo evangelho. Uma epistemologia realista crítica diferencia entre revelação e
teologia. A primeira é a revelação dada por Deus e a última é a com-preensão humana daquela revelação e pode não ser completamente
igual a ela. O conhecimento humano é sempre parcial e esquemático,
e não corresponde integralmente à realidade. A nossa teologia é a
nossa compreensão das Escrituras em nossos contextos. Ela pode ser verdade, mas é sempre parcial e perspectivada. Ela procura responder às questões que nós levantamos. Para fazer uma teologia missional é
necessário uma hermenêutica baseada na comunidade, na qual o diá-logo serve para corrigir os preconceitos dos indivíduos. Numa escala
global, isto exige tanto teologia global como local. Partindo deste ponto de vista, as igrejas locais têm o direito de
interpretar e aplicar o evangelho nos seus contextos. Também têm a
responsabilidade de se unirem à grande comunidade eclesiástica ao redor do mundo para buscar superar as perspectivas limitadas que
cada uma traz, e ir além dos preconceitos que cada uma tem e que podem distorcer o evangelho.
Sob esta ótica de contextualização, os missionários são pessoas transculturais, pessoas — de-fora-e-de-dentro — que vêm para
servir a igrejas locais e não para serem rivais internos na busca de poder e posição.
Quarto modelo: o evangelho compartilhado em contextos humanos
Ao afirmar que a Escritura é a revelação divina, é importante man-ter em mente que foi dada às pessoas em seus contextos particula-
res, históricos e socioculturais. Isto é óbvio para os estudiosos do Antigo e do Novo Testamento, mas geralmente passa despercebido pelos cristãos comuns. Diferenciar entre a verdade eterna e os con-textos particulares nos quais ela foi revelada não é uma tarefa fácil, mas é essencial se queremos entender o cerne do evangelho que é
para todos.
O evangelho em contextos humanos — Paul 1-fiebert 127
128:Questões contemporâneas sobre a contextualização missionária
Quinto modelo: a revelação divina compartilhada em contextos humanos
Uma visão completa do evangelho em contextos humanos deve enfatizar o fato de que o evangelho é, de fato, a revelação divina para os seres humanos, e não a procura humana pela verdade. Esta reve-lação é encontrada nas particularidades da história e das localidades, mas o evangelho é dado por Deus e revela a mensagem universal de
Deus para toda a humanidade. É fácil, sobretudo na academia, per-guntar o que as pessoas pensam sobre Deus. Devemos sempre relem-brar, como Malik faz (1987), que a questão real é o que Deus pensa sobre nós. E difícil num mundo pluralista afirmar com amor pro-fundo, que o evangelho é único porque ele é, de fato, Deus falando para nós, e não reflexões teológicas humanas sobre realidades últimas. Mas, como E. Stanley Jones ressalta, somos chamados, não para ser-
mos advogados de Deus, mas para sermos testemunhas ousadas do que sabemos — que Jesus Cristo é o único caminho para Deus e para o seu reino. Se realmente cremos que isto é verdadeiro, então
afirmar outros caminhos é reter do povo o conhecimento do caminho
para a salvação eterna.
O evangelho e contextos humanos
Qual é então o relacionamento entre o evangelho e os contextos hu-manos e como podemos comunicar o evangelho para as pessoas em
seus contextos? Três princípios podem nos ajudar:
1 O evangelho versus contextos humanos
O primeiro princípio é que o evangelho não deve ser equiparado com
qualquer contexto particular humano. Isto se aplica tanto ao cristia-nismo ocidental, como também aos contextos particulares dos escri-tores das Escrituras. O evangelho foi revelado em contextos históricos e socioculturais do Antigo e do Novo Testamentos, mas aqueles con-textos não são normativos para o cristianismo ao redor do mundo.
É importante lembrar que o evangelho é distinto das culturas humanas, mas isto não coloca os dois em oposição. Ao contrário,
O evangelho em contextos humanos — Paul Hienert Ia' 129
deve-se reconhecer que eles são duas realidades separadas e inter-
relacionadas. Isto é reconhecer que a divina revelação foi dada aos homens em contextos sociais e culturais particulares, mas que o evan-
gelho não é igual a qualquer um desses contextos.
2 O evangelho nos contextos humanos
O segundo princípio que devemos ter em mente é que o evangelho
deve ser colocado em contextos socioculturais específicos para que as pessoas possam entendê-lo. Para fazer isso, devemos estudar as Escri-
turas e as pessoas e construir uma ponte entre elas. Este processo Hiebert denomina de teologia missional (Tiénou e Hiebert 1996).
2.1 Estudando os seres ht1111(1110S
O primeiro passo para fazer teologia missional é estudar as pessoas em
seus contextos, acima de tudo, as questões que as preocupam e nos preocupam também. Os líderes eclesiásticos e missionários devem estu-dar, e levar a igreja a estudar, os contextos das pessoas a quem eles ser-
vem. Para que possam estudar as pessoas, necessitam de parâmetros teóricos. Para isso eles podem usar as ciências humanas tais como a
antropologia, a sociologia, a psicologia, a história e as humanidades. Essas disciplinas devem ser testadas à luz dos ensinos bíblicos, porque
são métodos humanos, assim como os métodos filosóficos e históricos que usamos para fazer teologias sistemática e bíblica.
Nesta etapa, os lideres e os missionários devem evitar o criticismo
contra as crenças e práticas costumeiras, porque as pessoas não irão falar com eles livremente se têm medo de serem condenadas. Além disso, ao serem críticos os missionários correm o perigo de fazerem julgamentos prematuros baseados em entendimento incompleto da situação. Em qualquer dos casos, estaremos apenas encobrindo as velhas práticas.
Devemos também estudar os nossos próprios contextos para ver
como esses têm moldado a nossa compreensão das pessoas e das Escri-turas. Esta reflexão é difícil de ser feita, mas é essencial para o processo.
Frequentemente, os líderes cristãos de outros contextos podem ver os nossos preconceitos melhor do que nós, por isso necessitamos ouvi-
los com atenção.
130 0 Questões contemporâneas sobre a contextualização missionária
Tendo estudado juntos os nossos próprios contextos e aqueles das pessoas a quem servimos, devemos desenvolver um parâmetro
transcultural que nos capacite a traduzir entre os diferentes contextos e compará-los. A formação deste parâmetro mental é fundamental
para a construção de pontes de compreensão entre culturas, necessi-
tando que todas as partes envolvidas na discussão sejam ouvidas.
Cada participante deve chegar à conclusão que sua maneira de ver as questões em pauta tem sido entendida pelos de fora, na medida possível. E neste ponto que a antropologia pode nos ajudar, porque ela tem procurado desenvolver estruturas transculturais para tradu-
zir e comparar sistemas sociais e culturais ao redor do mundo. Seus
parâmetros são imperfeitos e portanto um diálogo constante entre
as pessoas das diferentes culturas deve continuar na construção de um parâmetro transcultural de referência no qual todas as vozes são ouvidas acuradamente.
2 2 Estudando as Escrituras
Tendo estudado os seres humanos em seus contextos fenomenológicos, é necessário estudar as Escrituras para discernir os critérios ontológicos e para avaliá-los nos seus contextos. É importante estudá-las cuida-
dosamente dosamente para entender o evangelho nas suas três dimensões. Há uma dimensão cognitiva que trata a verdade. Há uma dimensão afetiva que engloba a beleza e o amor. E há uma dimensão moral que aborda
a santidade e a justiça. Neste caso, a contextualização procura formular e comunicar a
verdade universal (dimensão cognitiva), o amor (dimensão afetiva) e a santidade (dimensão moral) reveladas nas Escrituras nos contex-tos humanos particulares que são muito diversos e estão sempre mu-dando. Pressupor que regras gerais, mesmo sendo determinadas
apropriadamente, permanecem imutáveis e necessitam simplesmente de serem aplicadas no futuro, é negligenciar a natureza mutável da
vida humana e a qualidade dinâmica da teologia que deve ser esten-
dida a novas situações. O estudo das Escrituras é de responsabilidade da igreja como uma
comunidade hermenêutica. Necessitamos especialistas para nos ajudar no estudo das Escrituras, mas assim como a igreja, nós também somos
O evangelho em contextos humanos — Paul Hieben • 1 3 1
responsáveis pelo evangelho. Se todos nós não o estudarmos juntos, não seremos participantes ativos em conhecer e viver este evangelho e poderemos ser desviados por indivíduos enganosos. Devemos lembrar
que as nossas interpretações são moldadas pelos nossos contextos sociais, culturais, psicológicos e históricos e que essas necessitam ser verificadas por pessoas de outras culturas que podem nos ajudar a
perceber nossos preconceitos. Isto não quer dizer que as nossas inter-
pretações estão erradas, mas, como óculos que usamos, os nossos con-textos afetam como vemos as coisas. Ao estudar as nossas perspectivas
cuidadosamente, podemos crescer em nosso conhecimento e obediência
ao evangelho. Além disso, no processo de contextualizar o evangelho, as pessoas nem sempre irão concordar. E sem sentido esperar fazer
alguma coisa antes de conseguir concordância total. E esquecer o pro-
pósito para o qual as reflexões teológicas devem se feitas, a saber, para tornar conhecido o evangelho aos homens em seus contextos para que
ele possa transformá-los. Neste processo todo, o que pode nos ajudar a evitar o sincretismo?
E importante relembrar que toda a nossa compreensão do evangelho e vida cristã acontece em contextos humanos, e, portanto, é parcial.
Isto não significa que ela é necessariamente errada, mas que nós pre-
cisamos ser humildes para buscar a unidade na igreja "para que atra-
vés da igreja a sabedoria de Deus nas suas ricas variedades possa ser conhecida" (Ef 3.10; 4.1-3). Mas quando colocamos o evangelho em
contextos humanos, há sempre o perigo de que a sua essência seja tão distorcida que perca a sua mensagem. Devemos também sempre lem-
brar que Deus começa conosco onde nós estamos, e se revela a nós mais completamente à medida que crescemos no conhecimento de
nosso Senhor Jesus Cristo. Por um lado, o sincretismo é uma mensagem que tem distorcido
e perdido o cerne do evangelho. Por outro lado, é um movimento na
direção errada, longe de um conhecimento mais completo do evange-lho. A proteção contra esses tipos de sincretismos se baseia em refle-xões "metateologia-teológicas", ou seja, em teologias absolutas e
transculturais. Primeiro, precisamos levar a Bíblia a sério como regra
de fé e prática. Isto pode parecer óbvio, mas devemos constantemente nos lembrar de que a revelação bíblica é o padrão com o qual as nossas
132 Questões contemporâneas sobre a contextualização missionária
crenças e práticas devem ser medidas. Segundo, necessitamos reco-
nhecer o trabalho do Espírito Santo nas vidas de todos os crentes abertos à liderança de Deus. A razão lógica em suas muitas formas é importante, mas é o Espírito Santo que nos revela, através das Escri-
turas, os mistérios que transcendem o conhecimento humano. Ter-ceiro, é importante que a igreja seja uma comunidade hermenêutica que procura entender a palavra de Deus para si, em seus contextos particulares. Nesta comunidade temos necessidade de cristãos de ou-
tras culturas, pois eles geralmente veem como nossos preconceitos culturais têm distorcido nossas interpretações das Escrituras. Esta natureza corporativa da igreja como uma comunidade interpretativa estende-se não apenas para a igreja em cada cultura, mas também para a igreja em todos os tempos. Através desta comunidade
hermenêutica procuramos uma compreensão crescente, se não de con-
cordância, nas questões teológicas chaves que podem nos ajudar a testar nossas teologias e práticas. Este é um processo contínuo no qual a igreja deve estar constantemente engajada procurando compreender o que são o senhorio de Cristo e o Reino de Deus na terra.
3 O evangelho para os contextos humanos
O terceiro princípio para nos guiar na compreensão do relaciona-mento do evangelho com os contextos social e cultural é que o evan-
gelho é transformador. Ele não é simplesmente uma mensagem para ser afirmada como verdade, mas é um chamado para seguir a Cristo num discipulado radical. Newbigin fala da relação da igreja com a cultura em termos de um "encontro missionário com a cultura".
Os primeiros antropólogos e missionários geralmente viam as outras culturas como primitivas e não-civilizadas. Mais tarde, eles começaram a ver que há algo de bom em todas as culturas, algo que deve ser preservado para que as pessoas tenham consciência de sua identidade. Agora sabemos que há também o mal em todas as cul-turas, tais como opressão ao pobre, às mulheres e aos imigrantes,
além de corrupção e pecado. Tudo necessita ser transformado se-gundo o reino de Deus. Um encontro missionário ocorre quando a igreja absorve as demandas do evangelho como uma forma alterna-
tiva de vida para a cultura na qual está inserida, e, portanto, desafia
O evangelho em contextos humanos — Paul Hiebert 133
as suposições fundamentais da cultura. Desta forma, a igreja oferece
o evangelho como uma alternativa acreditável de vida para uma cul-tura decaída, chamando as pessoas a uma conversão radical e ofere-
cendo-lhes um convite para compreender o mundo e viver nele à
luz do evangelho. O dia da neutralidade moral já se foi. É importante relembrar
que os contextos humanos são bons e maus. As pessoas são criadas à imagem de Deus e são objeto de seu grande amor. Mas elas também
caíram no pecado, e as sociedades e culturas que elas constroem são
afetadas por esta queda. Há pecado pessoal e corporativo, ao passo que há dimensões pessoal e corporativa da redenção de Deus.
O conhecimento não é simplesmente informação. Ele é um po-der usado pelos participantes nas arenas social, econômica, política e cultural da vida. O conhecimento do evangelho nos torna responsá-
veis para compartilhar a sua mensagem de salvação e de transformação com todas as pessoas, cuidar do pobre, do oprimido, do enfermo e levar as boas novas para o perdido (Hauerwas and Willimon 1989).
No processo de transformação, devemos começar onde as pessoas estão e ajudá-las a crescer, assim como Deus começa conosco onde nós
estamos e nos leva à maturidade e à fidelidade. Conversão é voltar-se
para seguir a Cristo, como indivíduo e como igreja. Este é o primeiro
passo no crescimento espiritual e na obediência. Esta transformação deve ser tanto pessoal quanto corporativa. Como indivíduos, precisa-mos "nascer de novo" para uma nova vida. Como igreja, necessitamos de não nos conformar com este mundo, mas manifestar os caminhos do reino, e desafiar o mal em nossas sociedades e culturas.
No processo de transformação é essencial envolver as pessoas para que avaliem a sua própria cultura à luz da nova verdade. Elas conhe-
cem sua velha cultura melhor que qualquer pessoa de fora, e estão em melhor posição de criticá-la e viver vidas transformadas, tendo rece-bido a instrução bíblica. Podemos compartilhar as visões externas que
as ajudam a ver seus próprios preconceitos culturais, mas elas são envol-vidas na tomada de decisão e crescem espiritualmente através do apren-
dizado, do discernimento e da aplicação dos ensinos das Escrituras às
próprias vidas. O evangelho não é simplesmente informação a ser comunicada. É uma mensagem à qual as pessoas devem responder.
134 Questões contemporâneas sobre a contextualização missionária
Mais ainda, não é suficiente que os líderes sejam apenas convencidos
da necessidade de mudança. Eles devem ter a oportunidade de com-partilhar as suas convicções e apontar as consequências das várias de-cisões que possam tomar, e juntos, eles e seu povo tomarem e reforçarem
as decisões a que chegarem corporativamente. Somente desta maneira podemos nos assegurar que as velhas crenças e práticas não ficarão
subjacentes, subvertendo o evangelho. No processo de transformação devemos lidar com todos os assun-
tos que estão envolvidos na vida da comunidade, inclusive as questões
mais profundas. Com muita frequência, nos preocupamos para resol-vermos imediatamente os casos que temos em mãos, e não os usamos para estimular reflexões mais profundas sobre os assuntos que ficam subtendidos. Os casos específicos devem estimular mais reflexões nas teologias sistemática e bíblica e nos estudos sociais que facilitem respos-tas mais duradouras e bem fundamentadas para os contextos pessoal,
social e cultural. A teologia transformacional se focaliza na missão. Ela leva as
pessoas a sério, nas particularidades pessoais, das sociedades e cultu-ras, e de suas histórias sempre em mudança. Ela integra cognição, afetividade e avaliação na sua resposta à verdade bíblica, e define fé não apenas como afirmação mental da verdade, nem como experiên-
cias positivas com Deus, mas como crença, sentimento e moral que levam a pessoa a responder e obedecer à Palavra de Deus. A teologia transformacional rejeita a divisão entre a teologia pura e aplicada, e vê ministério tanto como uma maneira de fazer teologia quanto como
uma forma de adoração.
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',"tvit"
Níveis de contextualização: o desafio da
contextualização bíblica )(AJ r. I 1` ,
Devemos participar de sessões dos kardecistas a fim de ganhá-los
para Cristo? Seria uma boa estratégia missionária fazer as romarias para Juazeiro do Norte, inclusive cantando as cantorias, subindo escada de joelhos e cumprindo outros ritos comuns? Podemos "re-
zar" para padre Cícero, mas ao mesmo tempo no coração estar oran-
do para Deus? Estas perguntas colocam "cor" brasileira em algumas questões que estão sendo discutidas em relação à contextualização
em outras culturas distantes da nossa. Neste capítulo vamos exami-nar a história e bases teológicas de teorias recentes em relação às estratégias missionárias e aos níveis de contextualização sendo pra-
ticados nos dias de hoje. Missionários de todas as épocas têm enfrentado o desafio da
contextualização. Saindo de uma cultura para outra, como vão viver,
comunicar-se e trabalhar? Como entender a língua e a cultura de um povo? Quais são as barreiras? Como superá-las? Como ajudar o povo
a conhecer o Senhor das nações e o salvador de suas vidas? Como estes povos, incluindo o nosso, podem ser fiéis em seu louvor, vida e serviço,
enquanto continuam sendo integrantes de sua cultura? Como ensi-
nar a Bíblia e ajudar o povo a aplicá-la? Estas questões sempre foram
importantes e causaram polêmica na estratégia missionária, mesmo
138.5 Questões contemporâneas sobre a contextualização missionária
antes de se falar em "contextualização", termo tão evidente na pauta de publicações, discussões e conflitos atuais.
Como evangélicos, devemos ter certeza de que no processo de
contextualização existe uma norma de avaliação — a Bíblia, o ponto de partida para qualquer discussão sobre o assunto. Na Bíblia há abun-
dância de ensino e exemplos que devem nos orientar na prática de missões. Deste material, identificamos pelo menos três passos: 1) iden-tificação do missionário com as pessoas, a exemplo de Jesus, descrito em Filipenses 2.1-11, ou de Paulo e Barnabé em Listra; 2) confronto com o mal, inclusive espiritual, cultural e pessoal (o pecado); e 3)
transformação, quando as pessoas aceitam a salvação em Jesus e sua Palavra, e a Bíblia como normativa na transformação da sua cosmovisão, crenças, valores, instituições e até dos seus costumes no dia-a-dia. Paulo
descreve o resultado disso para ele e os outros em Efésios 2.1-5:
Ele vos deu vida, estando vós mortos nas vossas transgressões e pecados,
nos quais andastes no passado, no caminho deste mundo, segundo o prín-
cipe do poderio do ar, do espírito que agora age nos filhos da desobediên-
cia, entre os quais todos nós também antes andávamos, seguindo os desejos
carnais, fazendo a vontade da carne e da mente; e éramos por natureza
filhos da ira, assim como os demais. Mas Deus, que é rico em misericórdia,
pelo imenso amor com que nos amou, estando nós ainda mortos em nossos
pecados, deu-nos vida juntamente com Cristo (pela graça sois salvos)...
Fica claro que, por causa do amor de Deus, houve uma ruptura radical com a vida velha e o começo de uma vida totalmente nova. Efésios 4.17-24 explica isso em termos do velho e do novo homem.
Efésios 5.8-16 descreve a mudança como saída das trevas para a luz. Paulo pedia para os convertidos não serem cúmplices nas "obras infru-tíferas das trevas; pelo contrário, condenai-as (...) porque os dias são
maus". Eram filhos da desobediência a Deus, mas Jesus os amou e os salvou. Eram presas desta vida de morte e prisão, mas ele os transfor-mou profundamente, alcançando suas próprias naturezas. "O cami-
nho deste mundo" é regido por um ser chamado "o príncipe do poderio do ar" e ele leva as pessoas a formarem culturas que estão em oposição
a Deus. Uma pessoa salva está livre dessas forças, e vem a pertencer a
Níveis de contextualizacno o desafio da contextualização bíblica 1 39
Deus e a sua igreja (Ef 2.11-22). Paulo se inclui nesta descrição e disse que a missão da sua vida era anunciar o evangelho aos gentios, "para lhes abrir os olhos a fim de que se convertam das trevas para a luz, e do poder de Satanás para Deus, para que recebam o perdão dos pecados e
herança entre os que são santificados pela fé em mim" (At 26.18).
Nos últimos anos surgiram algumas mudanças que nos levam a examinar novamente se, em nossos processos de contextualização,
estamos, ou não, sendo fiéis à verdade da Palavra de Deus, "entregue...de uma vez" a nós ( Jd 3). Às vezes levamos para os campos missionários
nossas próprias culturas e formas eclesiásticas, que nem sempre são informadas pela Bíblia. Outras vezes há alguns que estão dispostos a abrir mão de todo o ensino bíblico para começar a construir uma
teologia a partir do zero na nova cultura. Estes têm a intenção de preservar a cultura a qualquer custo, inclusive a religião do povo recep-
tor. Alguns creem que a própria Bíblia foi culturalmente condicio-nada; portanto ela é falível, temporária e deixa de ser a verdade
supracultural e normativa para todas as culturas.
Precedentes da discussão
É provável que uma das principais raízes das diferentes filosofias sobre contextualização venha do famoso professor Donald McGavran. Ele
promoveu o conceito do Princípio da Unidade Homogênea (PUH) que defende o direito de cada povo de permanecer dentro de suas prá-
ticas culturais. Para McGavran 95% da cultura de qualquer povo é boa, e apenas 5% dela precisa ser modificado pelo evangelho.' Isto inclui,
para McGavran, o sistema de castas na índia (onde foi missionário), e a consequente aceitação da separação entre as igrejas de castas diferentes. A atitude de McGavran sinalizou uma mudança radical em compa-ração à estratégia de William Carey, que plantava igrejas heterogêneas,
levando os novos convertidos a quebrarem as rígidas regras de casta após o batismo, quando todos tomavam juntos a ceia do Senhor.
' McGavran estava reagindo contra o conceito, comum no século XIX, de que todas as culturas fora do mundo "civilizado" eram más.
1400 Questões contemporâneas sobre a contextualização missionária
Os discípulos de McGavran, como Ralph Winter, Peter Wagner
e Charles Kraft, que também eram professores do seminário de Fuller na época, levaram este conceito mais adiante. Wagner chegou a elo-giar o domingo nos Estados Unidos como "o dia mais segregado da
semana", referindo-se à separação racista nas igrejas evangélicas. Winter
concebeu a ideia de "povos não alcançados", sugerindo até a formação de igrejas separadas para pessoas de diversas profissões. Em seus escri-
tos e ensinos, Winter promove a necessidade de manter a totalidade cultural dos povos. Para ele e os outros (menos McGravran, que àquela altura estava preocupado com algumas conclusões que suas ideias tinham gerado), não existe forma sagrada na Bíblia. As formas apenas
transmitem significado. Para eles, ao transmitirmos significados bí-
blicos para outras culturas, podemos e devemos mudar qualquer forma, sem exceção.
Charles Kraft desenvolveu mais esta ideia. Para ele a Bíblia é
apenas um "livro de casos", que registra exemplos de como Deus se
revelou para alguns povos, especialmente os hebreus. A Bíblia não é normativa, apenas relata possibilidades. A teologia deve ser baseada
na cultura, não na Bíblia, apesar de a Bíblia ter um papel importante
em apontar como as estratégias de Deus podem ser usadas em outras culturas. Deus se revela de novo para cada povo e, através de experiên-
cias com ele (e não por meio de aplicação relevante da Bíblia), cada um vai criar a sua própria teologia.'
As implicações desta linha missiológica e teológica não são pou-
cas. Por ela é possível descartar o batismo, explicar que Jesus morreu
afogado ou que ele é um "porco de Deus", dependendo da cultura e conhecimento do povo receptor. Seria admissível até mudar normas
de relações sexuais (algo que o próprio Kraft não previu e não aceita, mas que segue a linha de raciocínio dele) como, por exemplo, um homem dormir com a esposa de outro homem porque ela foi ofere-cida num gesto de hospitalidade (um costume dos esquimós).
Esta ideia vai além de aplicar verdades bíblicas de maneira relevante em cada cultura, onde terá ênfases diferentes e práticas modificadas conforme os seus significa-dos julgadas pela Palavra. E escrever outra Bíblia.
Níveis de contextualização. o desafio da contextualização bíblica es 141
Robinson Calvacante (1990) cita Kraft várias vezes para defender, em alguns casos, relações sexuais antes do casamento e outras ideias, alegando que as normas morais são diferentes na cultura brasileira.
Uma base para defender estas mudanças é o conceito de "equi-
valência dinâmica", termo que teve origem com Eugene Nida, tra-dutor da Bíblia da Missão Wycliffe e a Sociedade Bíblica Americana. "Equivalência dinâmica" para Nida significa que, na tradução da
Bíblia de uma língua para outra, deve-se usar palavras que tradu-
zem o significado, não a forma. Abrange não apenas palavras isola-das, mas também frases e imagens. Se João queria transmitir que Jesus bate na porta para entrar e ter comunhão (Ap 3.20), não é bom traduzirmos o versículo desta forma se com isto o povo recep-
tor entende que Jesus é um ladrão. Neste caso, é melhor traduzir o significado da frase, que para eles seria: Jesus "bate palmas na cerca", como amigo que quer entrar.
Para Nida, a boa ideia e a terminologia da equivalência dinâmica
foram levadas longe demais. A sua intenção era apenas aplicar o con-ceito no campo de termos e formas linguísticas possíveis, que poderiam ser mudados sem modificar o significado verdadeiro da Bíblia. Em 1981 ele escreveu, com William D. Reyburn, o livro Meaning Across Cultures (Significado transcultural), que esclarece sua rejeição ao uso
exagerado da "equivalência dinâmica". Os dois autores advertem contra a substituição indevida de formas bíblicas. Não podemos mentir na contextualização da Bíblia. Não podemos mudar o ensino e os fatos históricos registrados na Bíblia, nem a terminologia enraizada nestes
fatos. Não é possível chamar Jesus de "porco de Deus", pois as Escri-
turas não se referem ao sacrifício de porcos, mas de cordeiros, animais que existem e podem ser descritos, mesmo que não sejam conhecidos
na cultura onde o missionário trabalha. Jesus não morreu afogado, mas numa cruz, algo que qualquer povo, incluindo o nosso, pode entender com um pouco de explicação. Se mudamos formas históri-
cas, corremos o perigo de ser não apenas mentirosos, mas paternalistas, subestimando a inteligência do povo que recebe o evangelho.
Da mesma forma, se a Bíblia diz que é pecado adulterar, não podemos justificar tal ato, alegando imposição cultural alheia, ou nor-
matividade cultural. Se magia e idolatria são repetidamente proibidas
142.. Questões contemporâneas sobre a contextualização missionária
na Bíblia, em todos os seus aspectos, não podemos admitir exceções em
nome de respeito à cultura, nem tentar justificá-las usando algum texto isolado. Na Bíblia não existe esta possibilidade. Em seu artigo "Entre a Escuridão e a Luz do Dia" (2005, p. 354-360), Dave O'Brien
reclama que muitos missionários estão chegando ao ponto de reveren-ciar a cultura, em vez de respeitá-la (grifo meu). Ele escreve: "Para
alguns, evitar erros culturais se tornou um valor mais forte do que a
clara proclamação da verdade do evangelho. Porque aprenderam a reve-renciar a cultura, vivem com medo de cometer um erro (. . .)" (p. 354).
Recentemente houve um desdobramento ainda maior da missiologia de Kraft e Winter. Alguns missiólogos têm criado formas extremas de contextualização, especialmente entre os povos muçul-manos. "John Travis" (pseudônimo de um missionário na Ásia Central) (1998:408-09),3 explicou estas formas em termos de níveis progressi-
vos de contextualização, conhecidos agora como "Cl" a "C6" (onde
"C" significa "comunidade"). Estes níveis de contextualização não são precisas, e as definições
podem ser questionadas por pessoas que trabalham em locais dife-rentes e com grupos e religiões diferentes. No entanto, a tendência
para a crescente popularidade das últimas categorias (veja as defini-ções abaixo), e consequente geração de conflitos entre missionários e
agências de missões, tem nos levado a examinar com mais cuidado o conteúdo e as implicações da estratégia para o futuro da igreja cristã nos lugares onde estão se desenvolvendo.
Definição dos níveis de contextualização
Cl: Significa que o missionário leva as suas formas culturais,
linguísticas e eclesiásticas consigo para o campo missionário, onde as impõe.
C2: E semelhante ao Cl, com a exceção da linguagem, que os missionários procuram adaptar ao contexto. Os crentes são
chamados de "cristãos".
' Alguns conceitos são adicionados conforme conhecimento pessoal da autora e outros autores.
Níveis de contextualizaçxio: o desafio da contextualizaçoo bíblica ea 1 43
C3: Comunidades cristocêntricas e contextualizadas são forma-
das, usando a linguagem e formas culturais e religiosas neu-tras do povo (quando não há proibições bíblicas). Engloba estilo de música, vestimenta, arte, arquitetura, liderança e as
práticas comuns do cotidiano. Os missionários vivem o mais
perto possível do povo, sem aceitar formas biblicamente proi-
bidas ou nocivas. A palavra "cristão" é traduzida na língua
do povo e outras palavras chaves adequadas são procuradas para expressar conceitos de "Deus", "Filho de Deus", "Espirito Santo", "amor", graça" e outros termos significativos.
C4: Comunidades usam formas culturais de oração e culto, como
no caso dos muçulmanos, que se ajoelham e se lavam antes
do culto. Nesses contextos igrejas são construídas em forma
de mesquita, e a Bíblia é colocada num pedestal. Os crentes são chamados de "seguidores de Isa" (nome de Jesus no
Corão). Guardam o jejum do Ramadan, evitam comidas proi-
bidas pela lei islâmica e usam vestimenta islâmica. O batis-
mo não é necessário. Usam o Corão apenas como ponte de contato e não fazem as orações, ou salat, que é um meio legalista de salvação. Com o tempo, saem da mesquita e for-
mam comunidades de convertidos, deixando uma clara dis-tinção entre eles e os muçulmanos.
C5: Aceitos recentemente por alguns missionários, os métodos C5 rejeitam quase todas as formas tradicionais e bíblicas do
cristianismo. Num contexto muçulmano (onde a maior par-
te desta estratégia foi forjada), o "seguidor de Isa" continua
sendo chamado de "muçulmano", frequenta a mesquita, não tem ligação com igrejas, usa todas as formas de adoração
muçulmanas, não se batiza, e continua com ritos formais e
populares, quase sem modificação. Aceita o Corão, exceto onde contraria claramente a Bíblia; Maomé é aceito como
um tipo de profeta menor. O seguidor de Isa tenta viver na comunidade como muçulmano e, por isso, às vezes é visto
como espião e traidor. Também professa o credo islâmico que diz: "Não há nenhum Deus a não ser Alá, e Maomé é seu profeta". Traduz "Filho de Deus" como "Isa-al-Masih"
144 Questões contemporâneas sobre a contextualização missionária
ou "Jesus, o Messias", e assim evita expor algo que os muçul-
manos rejeitam com veemência: a Trindade. Reúne-se regu-larmente em grupos para estudar. O pressuposto primordial
deste modelo é que Islã é compatível com a fé bíblica. Assim como existem "judeus messiânicos", também é possível haver "muçulmanos messiânicos".
C6: O extremo de C6 deixaria as pessoas quase sem nenhuma identidade cristã. Tornam-se crentes escondidos e secretos,
especialmente em lugares de grande perseguição.
O seguinte estudo do caso pode nos ajudar a entender melhor o modelo C5.
Estudo cio caso Rabban Sauma
Como exemplo do modelo C5, examinaremos uma descrição publicada pelo missionário americano Rabban Sauma (pseudônimo) no artigo
"Práticas de adoração aos ancestrais no mundo muçulmano: um pro-
blema de contextualização da Ásia Central" (2002:323-345). Ele analisa e tenta solucionar o problema baseando-se na sua interpreta-
ção de 1 Coríntios 10.25-11.1 e 2Reis 5.1-19.
O contexto: uma região onde povos muçulmanos não se res-
tringem às suas crenças ortodoxas monoteístas. Acreditam tam-bém nos espíritos dos ancestrais e em vários ritos ligados a esta religião sincretista popular, incluindo festas e peregrinações
aos sacrários dos "santos" islâmicos. O problema: podem, ou não, os novos convertidos participa-rem de ritos nos cultos aos ancestrais? Há elementos desses
ritos que sejam lícitos, e outras não? São meras expressões de respeito aos ancestrais, ou são expressões de idolatria?
e, O caso: uma comunidade que celebra festas e cerimônias fune-rais comuns a todos os muçulmanos. Há refeições cerimoniais no sétimo, quadragésimo e centésimo dia após a morte. No fi-
nal de cada refeição, a família, os amigos e os vizinhos se reunem para recitar o Corão. Após a leitura, há um momento em que os
Níveis de contexttializacoo• o desafio da contextuaiização bíblica I45
participantes, na língua local, abençoam e dedicam a comida
aos mortos, aos santos locais, a Maomé e aos profetas do Corão. Neste momento podem invocar favores dos mortos para soluci-onar problemas e satisfazer desejos. A leitura do Corão é em árabe (incompreensível ao povo, mas com efeito emocional e espiritual), porém a bênção e a dedicação da comida é feita na
língua do povo (compreensível). As pessoas entendem a bênção
e em confirmação, levantam as mãos e depois as passam pelo rosto. Estas festas podem ser repetidas se um dos ancestrais
aparece em sonho para alguém. As mulheres fazem uma oferta de pão que faz parte da refeição, pedaços do qual são levados para os vizinhos pelas crianças. Quando elas entregam o pão
dizem: "Para os espíritos dos ancestrais" ou 'Alguém morreu".
Todos sabem que é o pão ritual usado para os ancestrais. Algu-mas famílias celebram os ritos regularmente nas quintas-feiras, crendo que se omitirem o rito, os jinn (espíritos) e os ancestrais poderão ficar zangados e lhes causar danos.
Há vários nomes para descrever estas atividades que têm significa-dos de "honrar" e até de "adorar". A única palavra usada para adorar a Alá é namaz, utilizada nas cinco orações por dia a Alá. Pelo fato de esta palavra não ser usada nos ritos aos ancestrais, alguns alegam que são
ritos apenas para lembrar os mortos e não para louvá-los, como fazem para Alá. No entanto, três termos são usados tanto para os ancestrais
como para Alá. Esta linguagem gera dúvidas e nos leva a perguntar se esses ritos podem também conter elementos de adoração.
As pessoas creem que os espíritos dos ancestrais são ativos no cotidiano delas de forma nociva. A maioria dos missionários em ou-
tros contextos semelhantes considera que estes espíritos de fato são
demônios e que os ritos são atos de idolatria. Os missionários que trabalham na comunidade C5 não concordam e procuram diminuir choques entre novos convertidos e suas comunidades e famílias da seguinte maneira:
1. Devemos fundar grupos de "Fiéis de Fundo Muçulmano" (em
inglês chamados de "MBBs", ou "Muslim Background Believers",
146% Questões contemporâneas sobre a contextualização missionária
sigla que usaremos ao longo deste capítulo) para que os mem-
bros possam continuar sem problemas com a família e os vizi-nhos muçulmanos, mantendo a sua estabilidade e segurança.
Não há contato ou relacionamento com igrejas ou "cristãos".
Chamam-se de "messiânicos" (masihi) e explicam para as pes-
soas que são muçulmanos perdoados por Isa al-Masih (Jesus).
Usam música local e o formato da mesquita (com tapetes e
almofadas no chão). Não há batismo. 2. Devemos honrar aos ancestrais, participando da maior parte
dos ritos. É necessário visitar a família no dia do funeral (caso
contrário, parece que está se desligando da família) e partici-par ao máximo nas refeições, nas leituras, e no levantar das mãos. Para aliviar um pouco o perigo de sincretismo, a suges-tão do missionário é que se um MBB for chamado a orar
depois da refeição, ele deve falar que a comida é para "a honra do único Deus". Ele pode usar a forma da bênção, mas sem incluir os ancestrais. Até os muçulmanos não podem argu-mentar que não seja aceitável substituir a expressão "o único
Deus" em lugar do nome dos ancestrais.
Para mostrar base bíblica para estas estratégias, os missionários
formularam uma carta e a enviaram aos MBBs. As instruções, basea-das principalmente em 1Coríntios 10 e 2Reis 5.17-19, justificam a liberdade de participar dos cultos aos ancestrais, e de aceitar os pães feitos e distribuídos em honra aos mortos. A carta também aborda a questão da aprovação da leitura do Corão, simbolizada pelo gesto do participante de passar as mãos pelo rosto. A seguir resumimos essa carta e colocamos algumas dúvidas que surgem do conteúdo dela e da
interpretação dos textos bíblicos usados. As instruções na carta aos MBBs e as dúvidas:
Carta: Em 1Coríntios 10, é proibido comer nas festas pagãs nos templos, mas não nas casas particulares. Assim os missionários C5 justificam que é permitido participar das festas muçulmanas de ritos
aos ancestrais, pois acontecem nas casas.
Dúvida: As refeições em 1Coríntios 10.23-33 eram refeições simples nas casas, não ritos religiosos. Paulo proíbe taxativamente em
Níveis de contextualização o desafio da contextualrzacão bíblica = 1 47
1Coríntios 10.14-22 a participação de ritos religiosos não-cristãos,
que naquela cultura aconteciam no templo pagão. E provável que ele tivesse a intenção de proibir ritos religiosos em qualquer lugar, inclu-
sive em casas. Carta: Pelo fato de Naamã pedir desculpas ao abaixar-se, quando
levava seu senhor ao templo pagão, missionários C5 alegam que Naamã
queria mostrar respeito pela religião do rei. Desde que ele fosse puro de coração, podia fazer gestos de idolatria. Por isso é permitido ir nas
festas aos mortos e participar da cerimônia, passando a mão pela face,
contudo sem aceitar a bênção dos ancestrais no coração. Dúvida: Será que isto é uma notável exceção no meio de centenas
de proibições bíblicas taxativas contra qualquer forma de idolatria? Não é mais provável que Naamã apenas pedisse desculpas, porque ao ajudar
seu senhor teria de se abaixar de qualquer maneira? O texto indica isso
quando diz que o rei estaria se apoiando no braço dele. Namã entendia que era errado se abaixar diante de um ídolo. Além disso, se os crentes
tivessem permissão para seguir formas idólatras, sem concordar no cora-ção, não seria permitido todo tipo de aparência de idolatria? Não teria sido vã a morte de milhões de pessoas fiéis a Jesus Cristo que se recusa-
ram a negá-lo ou a se curvar diante dos Césares? Os três fiéis compa-nheiros de Daniel teriam arriscado as suas vidas em vão?
Allan L. Effa, em outro artigo sobre este assunto (2004:471), disse; "Talvez a melhor coisa é aceitar a resposta de Eliseu como ambí-gua, desde que são questões difíceis... Devemos cuidar para evitar con-clusões simplistas, como a de que aos ex-muçulmanos deve ser permitido
frequentar as festas de memória, como Rabban Sauma defende." Carta: Sobre os cultos nos templos pagãos, os autores instruem
os MBBs que a frequência no templo em Corinto era proibida, mas o texto não proibe a frequência nas festas funerárias e a peregrinação só para visitar (não participar das festas) os sacrários dos santos islâmicos. Não tem problema orar para Isa nos sacrários com intenções puras, iguais às de Naamã. Visitas assim não são proibidas porque Paulo visitou os templos e ídolos em Atenas.
Dúvida: Paulo viu os ídolos e templos espalhados pela cidade,
pois é difícil visitar Atenas sem vê-los. Mas há em algum lugar a afirmação de que ele foi orar nestes lugares, ou visitá-los como um ato
148. Questões contemporâneas sobre a contextualização missionária
de respeito? Em Atos 17.16-17 vemos claramente que ele ficou re-
voltado ao ver tanta idolatria. Carta: Os textos de Rute 1.8 e 2.20 são usados para dizer que
Deus abençoa os mortos. Dúvida: Pensar dessa maneira não é uma distorção do signifi-
cado desses textos? Referem-se a algo totalmente diferente; é mais provável que estejam falando de fazer o que o morto gostaria de ter
feito ou de como ele queria ser tratado quando ainda estava vivo.
Carta: Os autores alegam que Paulo estava se referindo a comer comida oferecida aos ídolos, quando em 1Coríntios 11.1 ele diz: "Sede
meus imitadores, como também eu sou de Cristo". Dúvida: Provavelmente Paulo estava se referindo ao amor de não
comer alimentos oferecidos a ídolos, do autocontrole e do autosacrifício
em benefício do outro, e não ao ato de comer carne oferecida aos ídolos. As últimas palavras de capítulo 10 são: "...assim como em tudo eu também procuro agradar a todos. Pois não busco meu pró-
prio bem, mas o de muitos, para que sejam salvos". Em 11.1 ele acres-
centa: "Sede meus imitadores, como também eu sou de Cristo". Com a exceção dessas colocações duvidosas, a carta contém instru-
ções certeiras para os MBBs, proibindo-os a louvar ou pedir ajuda aos mortos, a usar os pães rituais oferecidos aos vizinhos, ou a procurar curandeiros em vez de confiar em Deus pela cura e proteção.
Avaliação geral do Caso Rabban Sauna e o modelo C5
A questão dos graus de contextualização não é só de hoje. A termino-
logia é relativamente nova, mas o conceito é tão velho quanto José no Egito, Daniel na Babilônia, Pedro na casa de Cornélio ou Paulo em Listra e Atenas. Na história de missões, encontramos incontáveis situa-
ções nas quais os missionários tinham que escolher a sua maneira de comunicar o evangelho e ajudar os novos convertidos a expressá-lo den-tro de suas culturas. Temos as cartas de Gregório, o Grande, para Agos-tinho na Inglaterra, instruindo-o a adotar festas e templos dos druidas.4
Parece que o povo, depois de um tempo, não aceitou mais os templos, dizendo que fazia com que lembrassem demais a religião velha.
Temos a luta de Cirílo e Metódio, na Morávia, contra o embasamento da Bíblia e a missa em latim dos padres católicos, e o dilema de Bonifácio em como derrubar a árvore sagrada de Tor.5 Mateus Ricci e
Roberto Nobili marcaram a história com seus métodos contextualizados, às vezes sem limites, que aceitavam a adoração aos
ancestrais (Ricci, na China) e o sistema de castas com todos os seus
horrores para o povo indiano (Nobili). Em contraste, ao enfrentarem situações semelhantes na China,
Hudson Taylor e John Nevius tentaram ser relevantes e ao mesmo tempo fiéis à Palavra de Deus. Donald McGavran, apesar de acredi-
tar que a evangelização devia acontecer entre grupos homogêneos de pessoas e que os traços culturais deles deveriam ser respeitados — inclusive a manutenção de casta — tinha fé que, com o ensino progressivo da Bíblia, estes fatores desapareceriam com o tempo.
Infelizmente, parece que isso não tem acontecido. Os próprios india-nos reclamam de igrejas que não obedecem às exortações bíblicas
contra divisões na igreja oriundas de status social, ou de hierarquias
políticas ou religiosas.
Nos últimos quatro anos a discussão em torno do problema de níveis de contextualização tem aumentado. Muitos artigos foram
publicados na literatura missiológica, alguns para defender a contex-tualização radical e outros para questioná-la. Joshua Massey7 é um escritor que pratica e defende o nível C5 de contextualização. Ele
critica com severidade os modelos Cl a C4, afirmando que estes dei-xam os convertidos muçulmanos confusos e sem identidade. Ele usa
'Todas estas histórias podem ser verificados nos livros da história de missões, de Stephen Neill ou Ruth Tucker.
6 Uma controvérsia bem documentada é a de Mateus Ricci (1552-1610) na China. Ele usou a forma do confucionismo, se apresentando como um (homem) sábio do Ocidente, ou como um banze ou mandarim da alta classe. Associou-se com a elite. Aceitou como apenas social os ritos aos ancestrais (respeito à família) e não como idolatria, assim permitindo a continuação destes ritos para as novas igrejas. Os franciscanos, chegando mais tarde, não aceitaram seus métodos e a controvérsia entre as duas ordens levou à expulsão de todos os estrangeiros e à perseguição dos converti-dos chineses.
'Veja o artigo de Massey em www.billygrahamcenter.org/emis/archives.htm.
Níveis de contextualização. o desafio da contextualização bíblica Em 149
150. Questões contemporâneas sobre a contextualização missionária
o modelo dos (convertidos) "judeus messiânicos"' para justificar a
continuidade de quase tudo que envolve o ensino do Corão e a vida do muçulmano. O problema é que há uma profunda diferença entre o Antigo Testamento e o Corão, os livros estudados e reverenciados
pelos dois povos. Um é verdadeiro, inspirado por Deus e fundamen-tal para a fé cristã, o outro não é. Jim Leffel (2006) aponta este problema crítico, perguntando: "Pode-se falar de "pagão messiânico" ou "mormon messiânico"?
Ligado a isso está a defesa que Massey faz do Corão como sendo
um livro válido. Ele escreve: "Alguns (MBBs) estão chamando os seus
conterrâneos islâmicos a 'voltar ao Corão', desde que a maior parte das crenças islâmicas não-bíblicas estão enraizadas nas tradições (hadith) ou em textos mal traduzidos" (2004:301). Massey crê que o Corão deve ser usado e respeitado como base que aponta para a Bíblia e para uma vida que agrada a Deus. No entanto, a maioria dos missiólogos critica o Corão como um livro falho e cheio de erros, e vê a influência
do Corão como muito nociva e que despreza a Bíblia.' Um outro ponto importante para Massey é seu conhecimento
pessoal de muitos MBBs, que o leva a se impressionar com a paixão e
o amor que têm por Isa. Esse sentimento forte de Massey e suas vivências espirituais indicam experiências verdadeiras. No entanto,
surge a pergunta: como ele reagiria se fosse missionário no nordeste brasileiro, onde há elevados sentimentos e forte devoção — inclusive milagres e experiências pessoais — em relação a Maria, padre Cícero
e frei Damião? Como ficaria o método C5 aqui no Brasil?
Johannes Triebel, missionário luterano na Tanzânia entre 1976 a 1983, professor de missões e Secretário para o Diálogo Inter-religioso
com o islã da Igreja Luterana da Bavária, Alemanha, escreve contra as
"Judeu messiânico" é um judeu convertido que segue o sistema da sinagoga, enfatiza a leitura do Antigo e Novo Testamentos e guarda vários pontos das práticas judaicas.
' Autores e missionários bem conhecidos como Don McCurry oferecem cursos para ajudar os alunos do islamismo a detectar os erros no Corão, bem como a sua origem e influência nocivas. Veja seus livros Alcançando Nossos Vizinhos Muçulmanos e Esperança para os Muçulmanos.
Níveis de contextualizacuo o desafio da contextualizuçüo :151
tendências missiológicas do C5. Ao descrever suas experiências e pes-
quisas no campo africano muçulmano, ele questiona a ideia de que a
"veneração" dos ancestrais e mortos seja apenas social e uma expressão de unidade da família. Em um artigo (2002: 192-193), ele combate
a ideia de que os cultos sejam apenas expressões de honra.
. esta visão não leva em conta o medo dos ancestrais que faz parte do seu culto (ênfase de Triebel). (...) [Os ancestrais] são o alvo das orações, não Deus, que é ausente. (...) [É] importante olhar para as atitudes das pessoas que estão oferecendo as orações. Eles sentem, mais ainda, que eles depen-dem dos ancestrais, que garantem a vida. Esperam a vida e a vida abun-dante (cp. Jo 10.10) dos ancestrais e de mais ninguém. (...) Portanto este culto é realmente o aspecto mais central da religiosidade africana (citando Sundermeier, 1988:143, 159).
Triebel descreve bem a seriedade e a profundidade do problema. A resposta que se apresenta para este dilema é a de enfatizar textos bíblicos que falam dos mortos, e que advertem contra qualquer ado-
ração ou dependência deles.
Há muitos outros que estão contribuindo para esta discussão, levantando questões e soluções.
Phil Parshall, missionário entre muçulmanos, influenciou a cria-
ção do nível C4 de contextualização. Parshall questiona a integridade dos que querem deixar uma aparência de muçulmano nos converti-
dos para não chocar a comunidade onde moram. Por exemplo, a pala-
vra "muçulmano" significa "alguém submetido a Deus". Na prática, porém, todos os muçulmanos ao redor do mundo ligam esta palavra
àqueles que se aderem à teologia do islamismo (2004:290).
A mesma questão surge com respeito à frequência dos MBBs nas mesquitas. Parshall pergunta: para o convertido, é um engodo
estar no meio muçulmano, sem revelar que é seguidor de Jesus? O
argumento costumeiro, de que os judeus convertidos continuavam no templo e nas sinagogas, enfrenta dificuldade na comparação. As Escri-
turas eram lidas e explicadas e os apóstolos e crentes chamavam a atenção para Jesus. Curavam em nome de Jesus, pregavam Jesus e
usavam as mesmas Escrituras para mostrar que o verdadeiro Jesus foi
152: Questões contemporâneas sobre a contextualização missionária
pregado desde Abraão até o último profeta (Lc 24.27,33,44-49;
Jo 5.46; 8.56; At 15.13-19; 17.2-3; 26.22-23; 28.23; Rm 1.2; Hb 1.1). Não ficaram escondidos, nem esconderam sua nova fé,
fossem qual fossem as consequências. Parshall aumenta a dúvida sobre a mesquita quando pergunta:
como nós nos sentiríamos se um muçulmano se tornasse membro da nossa igreja, até ao ponto de tomar a ceia do Senhor, para poder "se identificar conosco" e levar os cristãos ao islamismo? Ele cita os exem-plos de Bob e Harry (não são nomes verdadeiros). Bob declarava que
Maomé era, de fato, um profeta de Deus, atitude que foi considerada sincretista por Parshall. Depois disso, Bob saiu do ministério e divor-
ciou-se da sua esposa. Harry desobedeceu as diretrizes do grupo mis-sionário e foi para a mesquita. Sentado no primeiro banco, seguiu
todo rito do salat. Depois os muçulmanos o cercaram, parabenizando-o por que tinha se tornado muçulmano. Ele explicou que era segui-
dor de Isa e que simplesmente queria aprender sobre o islamismo. Os que ouviram se tornaram hostis, e alguém gritou que Harry devia ser
morto. Ele conseguiu sair, mas com a ressalva de que nunca mais
voltasse (1998:409). Recitar o credo islâmico é mais problemático ainda. Um missio-
nário C5 explicou para Parshall que Maomé podia ser incluído no
credo, pois era um verdadeiro profeta do único Deus, parecido com os profetas do Antigo Testamento e portanto aceitável. Parshall rejeita
este argumento com uma resposta óbvia: "Se aceitamos o profeta então aceitamos a sua profecia! A profecia de Maomé nos apresenta um grande problema. (...) Não posso afirmar o Corão como a Palavra de
Deus" (2004:292). A credibilidade de Maomé e do Corão é um dos pontos centrais
dos problemas com as teorias C5 de contextualização. Colocar Maomé
no mesmo nível dos profetas do Antigo Testamento e das Escrituras nos leva a um pluralismo inaceitável, conforme os ensinos do próprio
Antigo Testamento, sem falar do Novo!
Com respeito à questão de usar Isa-al-Masih no lugar de "Filho
de Deus", a Bíblia faz uso frequente deste último termo. Se não tives-sem empregado o título "Filho de Deus", como chegaríamos a crer na
Trindade, um conceito tão importante para entender a profundidade
Níveis de contextualizaçoo o desafio da contextualizacão bíblica 153
da identificação humana de Jesus, seu sacrifício na cruz e seu poder revelado em sua ressurreição e ascensão à direita de Deus? 1João 4.1-15 deixa claro que uma das provas principais pelo qual julga-mos se alguém é de Deus, ou não, é se confessa Jesus Cristo como Filho de Deus. O Filho é o salvador do mundo e "Todo aquele que confessa que Jesus é o Filho de Deus, Deus permanece nele, e ele em Deus" (v. 15).
Parshall cita uma pesquisa feita entre membros de um movi-mento muçulmano C5. Foi descoberto que 45% de seus líderes, com acesso a Bíblia e com mais de 15 anos de conversão, não acredi-tavam na Trindade e no conceito de que Jesus é o Filho de Deus. Outros resultados da pesquisa mostraram que 96% deles disseram que há quatro "livros celestiais" — a Torá, o Zabur, a Injil (a Bíblia) e o Corão (que todos os muçulmanos aceitam), mas 66% alegam que o Corão é o maior livro. Além disto, mais 45% não afirmam que Deus é Pai, Filho e Espírito Santo e 45% sentem paz e que estão perto de Deus quando ouvem a leitura do Corão. Os entrevistados eram líderes, fizeram institutos bíblicos de curto prazo e foram enco-rajados pelos missionários a frequentar a mesquita. No mesmo arti-go, Parshall é claro quando denomina a abordagem C5 como sincretismo, e não uma expressão autêntica de contextualização (1998: 405-406).10
Scott Woods começa sua avaliação do modelo C5 dizendo:
Até onde é ir longe demais na contextualização? A palavra significa tomar a verdade imutável e fazê-la compreensível num dado contexto. Fazemos isto sempre. Contamos histórias bíblicas para as crianças de uma forma que permite que elas as entendam dentro do seu mundo. O alvo da contextualização não é fazer o evangelho tão islâmico quanto possível, mas é comunicar a verdade imutável para uma audiência islâmica de forma que possam compreender (2003:188).
10 Para saber mais sobre este assunto e a retratação parcial de Parshall, veja EMQ, 1998, p. 28-45. Também Silas Tostes, O Islamismo e a Trindade (São Paulo: Agape Editores, 2001); e o clássico de Samuel M. Zwemer, The Muslim Christ, 1912.
154. Questões contemporâneas sobre a contextualização missionária
Woods adverte contra o perigo de sincretismo na contextualização. Cita 2Coríntios 6.14-7:1, um texto relevante que trata da separação dos pagãos. Não há harmonia entre os ídolos e a fé cristã. Nisto Woods se distancia bastante da possibilidade, essencial para o modelo C5, de o islamismo ser de Deus e não um sistema levantado contra Deus. Ele contradiz os que dizem que o [islamismo] louva a Alá — o único Deus — que tem semelhanças com o nosso Deus.
A maioria dos missionários são práticos, "se funciona, então use". Mas uma dose forte de cautela deve ser administrada àqueles que presumem que o Alá do islã é o mesmo Deus triuno das Escrituras. Não estou me referindo ao uso do nome "Alá" — tanto cristãos quanto muçulmanos o usam, mas à pessoa de Alá, o que é muito diferente. Ali Imran 3.54 descreve o Alá islâmico: "e os incrédulos planejaram e enganaram, e Alá também é enganado, e o melhor enganador é Alá". Este é o Deus do islã no seu próprio livro. A palavra arábica para traduzir enganado é makura e tem tanto um significado positivo quanto negativo, sendo aqui o último. João 8.44 diz que o diabo é "o pai da mentira". Aqui temos alguém di-zendo ser Deus, mas realmente é um diabo "fazendo de conta que é um anjo de luz". (...) Não posso concordar que o deus do islã e o nosso Deus triuno (são) [sejam] o mesmo. (...)
C5 abraça a mesquita como uma estratégia para evangelismo e plantio de igrejas. Mas a mesquita é impregnada com a teologia que diz: "Jesus não foi crucificado"; "A Bíblia foi corrompida"; "Maomé é o pro-feta de Alá"; "Salvação é por boas obras e mérito, não pela graça" (Woods, 2003:193,195).
Woods continua seu artigo explicando que as pessoas dos méto-dos C5 usam 1Coríntios 9.19-22 como base da sua teoria — "se tornando muçulmano para ganhar os muçulmanos". No entanto só podemos entender os limites deste texto dentro do contexto maior de 1Coríntios 8 a 10. Nestes capítulos, Paulo trata da questão de carne oferecida no templo pagão e das festas idólatras. Comer carne, sem escandalizar o irmão mais fraco, era permitido, mas a própria idola-tria, ou uma aproximação dela, ou qualquer aparência de idolatria, foi proibida de maneira específica. Paulo não poderia contradizer o que ele estava ensinando para a igreja de Corinto ao longo da carta.
Níveis de contextualização: O desafio cio contextualização bíblica 155
Outro texto que os proponentes do modelo C5 usam é 1Coríntios 7.20: "Cada um permaneça na condição em que foi chamado". Woods acerta quando nos lembra que este texto não tem nada a ver com uma
pessoa permanecer numa falsa religião, mas sim com o estado civil
dela (2003:190). Recentemente Gary Corwin, editor de uma das maiores publi-
cações de missiologia nos Estados Unidos, e missiólogo com especia-lização no mundo árabe, faz um resumo da discussão sobre insider
movements (outro termo empregado para descrever contextualização
radical baseada na valorização da cultura hospedeira):
Como em qualquer movimento novo (e na maioria dos movimentos heré-
ticos na história da igreja), há sementes de verdade no fundamento desta
nova compreensão [de contextualização]. Uma que é chave é a necessi-
dade de não confundir desenhos e paradigmas culturais do mensageiro
com o padrão universal de Deus...
Onde estes entusiastas erram é em criar a ilusão que gerar "insider
movements" é tudo que precisa, e que está certo que os novos crentes de
fundo muçulmano, por exemplo, continuem frequentando a mesquita
regularmente, confessando o credo muçulmano e fazendo as orações ritu-
ais. Isto contradiz padrões bíblicos de verdade e honestidade, como a
história da obra de Deus no mundo.
Há muitos exemplos no Antigo Testamento da dicotomia forte entre
fé em YAHWEH e as religiões da terra. Há também muitos exemplos vivi-
dos no Novo Testamento na história da igreja que revelam um contraste
entre os requerimentos para a verdadeira fé — e todo o resto que pretende
ser fé. Invariavelmente aqueles que seguravam a verdadeira fé tinham
que estar prontos a morrer por ela, e muitas vezes o fizeram. Todos os
apóstolos, talvez com a exceção de João, foram martirizados porque leva-
ram o evangelho aos seguidores de deuses pagãos. A história da igreja
primitiva está escrita no sangue dos mártires, porque Jesus, não César, é
Senhor. Baseado neste tipo de história, podemos traçar a expansão do
evangelho para Europa, Ásia, África e as Américas.
Esta busca incessante de algo novo — uma chave ou compreensão nova — é confusa, na melhor das hipóteses. Ambas, a história e a Palavra,
argumentam que é necessário algo muito mais central — um abandono dos
ídolos de sucesso em favor de uma tenra, mas honesta, proclamação do
evangelho que é transmitido com amor corajoso, sacrificial e criativo" (2006:11).
156 0 Questões contemporâneas sobre a contextualização missionária
O pastor John Piper se junta àqueles que questionam a "contex-tualização radical" e o movimento seeker-driven ou insider (refere-se aos movimentos e igrejas que criam suas práticas e estruturas em torno de um grupo alvo, como por exemplo a Willow Creek). Ele
faz três perguntas:
1. A essência de uma fé bíblica é aceita pelos novos convertidos em Cristo, e eles a transmitem em amor a outros? Eles creem que a Bíblia é a única revelação escrita, inspirada e infalível?
Creem que Jesus foi crucificado como sacrifício pelo pecado e ressurreto acima de toda autoridade?
2. As práticas religiosas retidas pelos novos convertidos comuni-
cam uma falsidade sobre o que significa converter-se e crer? 3. As estratégias desses grupos usam engano (uma prática que
Paulo rejeitou em 2Coríntios 4.2)?
Piper diz que no novo modelo é difícil não haver uma perda na fé e no poder da Palavra de Deus para efetuar conversões genuínas
para a glória de Deus. Dave O 'Brien lamenta que muitos missionários tenham apren-
dido reverenciar à cultura, em vez de apenas respeitá-la (p. 354). Ele corrige esta tendência ao lembrar-nos da perspectiva bíblica de cul-
tura: 1) o termo "mundo" no Novo Testamento é sinônimo de cultu-ra; 2) não há reverência pela cultura no Novo Testamento; ao contrário,
as pessoas são libertas dela quando transformadas pelo evangelho; 3) não reverenciar a cultura não implica que não a respeitemos; 4) o missionário deve ser profeta dentro das culturas; 5) cultura é um pro-duto da humanidade caída; 6) cultura não pode formar o evangelho;
7) cultura precisa ser resgatada na redenção; 8) o evangelho é na sua
essência contra-cultural (2005:357-360). Um problema importante com o modelo C5 é a ausência da
igreja visível — a comunidade dos fiéis. Num artigo (2005), Timothy
Tennent, missionário e professor de missões, questiona o livro Churchless Christianity (Cristianismo sem igreja) de Herbert Hoefer. Hoefer defende a tese que a igreja visível não é necessária, que pessoas possam ser "devotas" de Jesus sem batismo e sem reunir-se com outros
Níveis de contextualizaç'do• o desafio da contextualrzoedo bíblica ela 1 57
"devotos". Tennent examina a história da igreja, inclusive o credo de
Niceia, a Igreja Romana, a Reforma e a era moderna. Todos tinham a
igreja como norma central.
"De verdade, quase 100% das igrejas protestantes insistem, pelo menos,
no sacramento de batismo e na ceia do Senhor como marcas necessárias da
igreja visível. A grande maioria inclui também alguma organização e lide-
rança sobre comunidades definidas e reunidas. Portanto, se há um cristia-
nismo sem igreja, é um desvio claro das doutrinas eclesiológicas históricas
de cristãos católicos, ortodoxos e protestantes" (2005:172-173).
Tennent não é o primeiro a entrar no debate na Índia. Ele relata a discussão por escrito na década de 1970 entre M. M. Thomas, um
líder do Concílio Mundial de Igrejas na India, e Lesslie Newbigin, conceituado missiólogo e missionário na India. Newbingin refuta as ideias de Thomas, acusando-o de uma "superespiritualização" da
eclesiologia. Defende que "a aceitação de Jesus Cristo, como central e decisiva, tem que criar algum tipo de solidariedade entre os que têm esta aceitação em comum. Caso contrário, não teria significado algum" (citado em Tennent, p. 173).
Além de Thomas, Tennent cita Ralph Winter e H. C. Richard
como evangélicos que seguem a mesma linha. Winter crê que cristia-
nismo sem igreja é a terceira reforma (citando Winter em "Eleven Frontiers of Perspective" em InternationalJournal ofFrontier Missions,
20, n° 4: 2003, p. 136). Tennent defende a necessidade de existir a igreja visível e de ela
cumprir a missão do plantio de igrejas baseado na Bíblia e nas expe-riências de missionários contemporâneos e históricos. Jesus mesmo usou a palavra "ekklesia" que significa "assembléia pública". Jesus inau-gurou a igreja como uma comunidade visível e definida. Mateus 16.16 é ligado com a necessidade de comunidade — Jesus constrói sua igreja na pedra.
Tennent também nos faz lembrar que na India há milhões de cristãos com seus próprios hinos, que, durante o culto, tiram os sapa-
tos e sentam no chão, e que não mudam seu modo de se vestir. Estes
são membros de igrejas que existem há séculos.
158: Questões contemporâneas sobre a contextualização missionária
Em Mateus 18.15-17 Jesus ensinou como deve ser a igreja —
um lugar de correção e crescimento, preservando a mensagem apostó-lica e a disciplina. A igreja é o corpo de Cristo, o canal de Deus, reino
de sacerdotes, real, amostra viva da unidade em torno do amor de
Deus, e do amor mútuo entre os membros. João 17, Filipenses 2, Efésios 2.11-22 e 3.14-21 são alguns textos que enfatizam a uni-
dade e visibilidade da igreja. Poderíamos aumentar esta lista com mui-tos textos que descrevem e orientam as igrejas nascentes. Tennent
pergunta: como indivíduos espalhados e inseridos nas religiões pagãs do mundo vão obedecer à "Grande Comissão" de enviar missionários até aos confins do mundo? Sem as igrejas de Antioquia, Jerusalém, Filipos e Roma isto teria sido possível?
Silas Tostes, presidente atual da AMTB e autor de livros sobre o islamismo, contribui para esta discussão ao dizer:
É verdade que C5 é usado em países muçulmanos, e a maior parte dos convertidos odeiam isso (...) Normalmente, ... julgam ser sincretismo. Só outsiders (os de fora) gostam da ideia que lhes parece brilhante. Era como se usássemos C5 para macumba, os convertidos da umbanda iriam odiar, pois conheciam os espíritos e se relacionavam com eles. Normalmente crente que veio da umbanda nem quer ver atabaque na igreja, que dirá de sons similares, ou ritos que lhes lembram do tempo que eram possuídos por demônios (comunicação pessoal via email, 2005).
David Racey comenta o artigo de Leffel (2006): "Praticar rituais islâmicos no nome da contextualização, e pregar o evangelho da graça,
é uma contradição. É ingênuo supor que estes rituais podem aconte-cer como prescritos pela lei islâmica e fazê-los significar algo dife-rente do que sempre significavam aos muçulmanos. O que quer comunicar é irrelevante (Racey, 1996: 308, grifo meu).
Tomando rumos para soluções práticas, vamos examinar um outro estudo de caso importante no mundo muçulmano.
Outro estudo de caso muçulmano: os javaneses
Um outro modelo, explicado justamente para mostrar as alternativas efetivas do C5 no mundo muçulmano, foi escrito por Roger L. Dixon,
Níveis de contextualização- o desafio da contextualização bíblica 1 59
missionário por 34 anos entre muçulmanos na Ásia. Ele relata como
12 milhões de javaneses muçulmanos aceitaram a Cristo, principal-mente a partir das décadas de 1970 e 1980. Antes disto, vários ramos
das igrejas javanesas conseguiram desenvolver um modelo unificador
"que capacitou a igreja, pela graça de Deus, a ganhar muitos muçul-
manos para Cristo" (2002:446). O segredo deste crescimento depen-dia de dez princípios de contextualização (p. 446-451):
1. O evangelho visto em contexto. Apesar dos conflitos e tensões
durante seis décadas na implantação do evangelho, os missio-
nários reconheceram que eram os javaneses que tinham que tomar as decisões. Eles eram decisivos no processo de
contextualização, não os missionários. Alguns missionários
queriam controlar o processo, mas muitos entenderam que as últimas decisões pertenciam ao povo da terra.
2. Uma identidade javanesa clara. O componente mais impor-
tante foi a utilização da própria língua do povo (não uma
língua franca). Não demoraram para colocar as Escrituras na
língua javanesa, facilitando a compreensão do significado da igreja e do evangelho que proclamava.
3. Uma identidade cristã clara. Mesmo que levasse um bom tem-
po, a mudança de uma cosmovisão muçulmana para um siste-
ma cristão era importante. A pessoa chegava a entender que
não era mais muçulmana ou seguidor de kejawen (o islamismo
popular). Os novos convertidos podiam continuar nas práti-cas islâmicas até o dia do batismo. Neste dia eles sabiam que tinham que entregar todos os ritos, o uso de magia, os amuletos e outras formas de apelo ao sobrenatural envolvidos no kejawen.
Qualquer lealdade fora daquela dada ao Pai, Filho e Espírito Santo era proibida pela Palavra de Deus e pelo grupo.
4. Uma identidade clara de igreja. Apesar das perseguições, a igreja
nunca escondeu sua identidade diante das pessoas ou das autoridades. Tinha uma identidade clara e autêntica que per-
mitia a todos na sociedade que se identificassem com ela.
5. Um evangelho claro que proclamava Jesus como Filho de Deus e
salvador. Isto inclui o uso de Yesus em vez de Isa al-Masih.
1600 Questões contemporâneas sobre a contextualização missionária
Decisões como esta envolviam muita reflexão e oração, mas a
diferença evidente ajudou os javaneses a fazer uma escolha clara entre as cosmovisões. "O evangelho é singular como a revelação de Deus. E uma escolha, não um eco" (p. 448).
6. Participação na sociedade. Os cristãos javaneses entenderam que eles tinham que servir a sociedade. Por isso não muda-
ram seus nomes no batismo. Buscaram cargos no governo e nas centenas de aldeias e cidades onde moravam.
7. Evangelismo abrangente. Cristãos javaneses têm sido ativos em compartilhar sua fé. Os "leigos", cheios de alegria e cren-do no poder de Deus, deixavam testemunhos vivos aonde iam e onde moravam, entre seus familiares e vizinhos.
8. Ajuda em tempo de crise. Os cristãos ganharam o respeito da comunidade por sua participação no movimento para tornar o país independente da Holanda, como também pela ajuda às vítimas da guerra e de outros desastres naturais.
9. Compreensão de mudanças sociais significativos. Os cristãos não se esconderam durante as crises políticas, nem em meio às mudanças sociais. A abertura das igrejas para incluir tanto
pessoas de contextos urbanos como rurais, ajudou na explo-são do crescimento.
10. Esforço para adquirir reconhecimento da comunidade javanesa.
A igreja se esforçou para mostrar que era uma entidade ver-
dadeiramente javanesa. Foi vista como "um novo fundamen-
to na vida da aldeia", e não como uma imposição estrangeira.
Em relação ao modelo C5, Dixon escreve:
Na experiência da igreja javanesa, tanto o missionário estrangeiro como os
crentes javaneses foram importantes na formulação de modelos de vida
eclesiástica. Naturalmente cada um seguia modelos característicos das suas
culturas. Muitas vezes sincretismo foi o resultado. No entanto, quando a
cosmovisão cristã se tornou clara para os novos convertidos, eles foram
capazes de ajustar as suas ações. Por causa disto, muitas formas islâmicas
ou da cultura kejawen foram modificadas ou deixadas para trás. Exemplos
são os rapai (fórmulas mágicas), o uso de slamatan (refeições rituais) para
Níveis de contextualização. o de_c->afio da contextualização bíblica •I 1 6 1
proteger dos espíritos, a celebração de alguns dias especiais que não são apropriados para os crentes, e o conceito de um deus remoto diferente do Pai do Senhor Jesus Cristo (Sutarno, 1964:146, 247-248). A medida em que as diferenças críticas entre o cristianismo e os sistemas de crença javaneses se tornaram claras aos convertidos e aos missionários, uma com-binação dos modelos missionários e nativos aconteceu.
Um ponto importante a ressaltar é que ninguém pode criar um mo-delo sem influenciá-lo. Alguns missionários estão adaptando modelos de ministério muçulmano de outros países e os apresentando como modelos nativos para outras culturas. Enquanto podem ser nativos nas suas pró-prias culturas, não o são em outra. Por exemplo, alguns estão encorajando o uso de formas e estilos islâmicos sem entender o que significam no islamismo ou como serão percebidos pelos novos convertidos. Alguns estão ensinando novos convertidos do islamismo a fazer orações rituais cinco vezes por dia e de participar do jejum do Ramadan. Nem os que encorajam isto, nem os novos convertidos entendem as implicações destes atos em termos de uma cosmovisão cristã. Tudo que ensinamos deve ser baseado na Bíblia para que a verdadeira natureza do evangelho não seja confundida. E uma ilustração do perigo do missionário estrangeiro cons-truir ou importar modelos unilateralmente (Dixon, 2002:451-452).
Para concluir, é importante examinar alguns modelos brasileiros de contextualização.
Modelos brasileiros
Dois modelos brasileiros tem se destacado nos últimos anos como importantes exemplos da discussão em torno da contextualização.
Os suruwahá
Nos capítulos que escreveram para o livro Indigenas do Brasil (Lidório, 2005:71-86 e 125-140), Braulia Ribeiro e Márcia Suzuki defen-dem o modelo radical C5 em seus trabalhos entre os suruwahá. Márcia e a equipe da JOCUM (Jovens Com Uma Missão) moraram com
esta tribo por dez anos numa identificação cultural profunda — des-pidos, usando pintura no corpo, morando nas malocas, participando das danças, das festas e da pesca (p. 127). Tentaram mostrar para os
1620 Questões contemporâneas sobre a contextualização missionária
suruwahá que não deviam tomar timbó, um veneno usado para o
suicídio. Na cultura indígena, o suicídio era um ato honroso e comum,
em razão do desespero e da destruição de sua cultura. A morte vo-luntária era altamente desejado, pois assim evitavam ser mortos por outros ou em situações de desgraça.
Depois de forjado o relacionamento e respeito mútuos, inclusive
para com a religiosidade do povo, a equipe decidiu que o caminho
tradicional da tradução da Bíblia, a evangelização, o discipulado e o
plantio da igreja de Cristo não seria apropriado. Tinham medo de danificar ainda mais as frágeis estruturas culturais (p. 128).
Apesar desta declaração, parece que um grupo foi formado (p. 130 e 137), embora fosse irreconhecível como igreja aos olhos de pessoas de fora. Alguns confessaram pecados e aceitaram o perdão do Senhor (essencial para a conversão). Outros estão sendo transforma-
dos. No entanto, existem alguns padrões que merecem maiores expli-cações. Mesmo entre os "crentes" há cerimônias religiosas tradicionais
com o "sacerdote cantando a madrugada inteira...até receber ilumi-nação espiritual" (p. 130-131). As vezes, os missionários são chama-dos para "assoprar os enfermos para espantar as doenças" (p. 129). Nenhum dos suruwahá diz que mudou de religião. Em vez disso parece que uma experiência com Jesus é adicionada às outras expe-
riências e crenças animistas, permitindo uma continuidade cultural e religiosa (p. 137). Esse resultado está resumido na frase: "Nao há ruptura perceptível com o esquema religioso local" (p. 36).
E de se admirar o esforço da equipe JOCUM entre os suruwahá
na sua identificação e contextualização. Não foi pouco o empenho para tirar todas as barreiras linguísticas e culturais. No entanto parece que
excederam os limites bíblicos em adotar o que eles descrevem como uma aplicação extrema do modelo C5. Amamos as pessoas numa con-vivência íntima, respeitando as suas culturas, porém com uma mensa-gem de perdão, libertação e transformação, como vemos em muitos
textos bíblicos, por exemplo Efésios 2.1-5 e Romanos 3.21-23.
Os susu
Há muitos outros modelos de contextualização no Brasil e entre os
brasileiros no exterior. Paulo Nelson Rehn escreve na revista Missiológica
Níveis de contextualizaç-éio- o desafio da contextualização bíblica 1 63
Brasileira (2004:7-10) sobre um modelo de contextualização entre o povo susu na Guiné, um país africano de maioria muçulmana e um povo considerado "não alcançado" e de difícil acesso. Até 1993 havia
lá três pequenas igrejas que eram uma mistura dos modelos C2 e C3. Esta mistura de níveis de contextualização criou um ambiente de
questionamento entre os susu e os missionários brasileiros. Os missio-
nários começaram a observar e a buscar outros modelos entre os povos muçulmanos. Reconheceram que seu conhecimento era inadequado
para tomar decisões a respeito de mudança nas igrejas. O sentimento
dos missionários "era de que estas questões deveriam ser resolvidas pelos
próprios crentes susu, dirigidos pelo Espírito Santo e baseados na Pala-vra de Deus" (p. 8). Como eles podiam expressar sua fé em uma forma
bíblica e ao mesmo tempo alcançar a comunidade muçulmana? Estu-dando a Bíblia juntos, criaram uma proposta de contextualização:
1. Tirar os sapatos antes de entrar num culto (nas casas ou em
qualquer outro lugar de culto). Essa prática não visava apenas
copiar os muçulmanos para não contrariá-los, mas era um cos-tume normal no dia-a-dia das visitas às casas. É um sinal de respeito na cultura susu.
2. Eliminar os bancos no templo e substituí-los por tapetes ou
esteiras. Essa é uma prática comum não apenas no islamismo,
mas em toda cultura susu; no dia-a-dia, sentar no chão demons-
tra humildade diante dos líderes e, neste caso, diante de Deus. 3. Abandonar os tambores pelo fato de que, na cultura, as ex-
pressões religiosas não eram acompanhadas por instrumentos
festivos. Mesmo que a Bíblia fale do uso de muitos instru-mentos, não proíbe cantar sem usá-los. O povo decidiu que poderia cantar "a capela", sem ferir os princípios bíblicos.
O autor conclui dizendo que a igreja discutiu outras formas usadas por uma outra igreja inserida num contexto muçulmano. "Os cristãos daquela igreja adotaram a mesma sequência de posições
do corpo nas orações que os muçulmanos utilizam nas mesquitas.
Mas a igreja susu optou por não ir tão longe na contextualização. Justificaram dizendo que não queriam dar a impressão que ainda
1 64 e. Questões contemporâneas sobre a contextualização missionária
eram muçulmanos", e que este era um comportamento inadequado para um verdadeiro "seguidor de Jesus".
Os susus já tinham um grupo de pessoas cristãs e já tinham acesso à Bíblia para que o próprio povo pudesse decidir os caminhos a se-
guir. E essencial que os povos tenham o mesmo acesso e possibilidade
de decidir por si mesmos sua vida de verdadeiros discípulos ("segui-dores") de Jesus. A contextualização genuína exige que o povo tenha compreensão dos ensinos de Jesus (Mt 28.19) e liberdade para colocá-
los em prática em suas vidas e nas expressões de louvor e obediência ao Senhor. A única maneira de fazer isso é conhecer e seguir a reve-
lação milagrosa de Deus na Sua Palavra.
Traçando caminhos bíblicos
Missiólogos conceituados e bem conhecidos têm procurado ajudar a
manter o equilíbrio e a fidelidade bíblica na contextualização. Paul
Hiebert usa o termo "criticai contextualization" (contextualização
criteriosa) para nos chamar de volta para os limites bíblicos sérios na adoção de alguns termos e práticas. David Hesselgrave usa o termo
"apostólico" para dizer a mesma coisa. Bruce Nicholls fala em "contextualização dogmática", ou uma teologia missionária baseada
em verdades bíblicas. Harvey Conn falava em "descontextualização" — a necessidade de ouvir e aceitar as instruções de Deus na sua Pala-vra, sejam quais forem as mudanças necessárias. O livro clássico dele
sobre esta matéria reune uma série de palestras em que questiona a missiologia de Charles Kraft (palestras dadas no seminário de Fuller, onde Kraft é professor). Conn escolheu o título Eternal Word and Changing Worlds (A palavra eterna e o mundo em mudança), frase já
compreensível dentro da tese deste capítulo.
Há muitas outras questões relevantes sobre o assunto de contex-tualização. Poderíamos levantar a questão da definição e importância da igreja na Bíblia, do perigo do sincretismo — tão conhecido de nós no Brasil por causa da mistura de catolicismo e espiritismo — e da centralidade do arrependimento e fé tão somente em Jesus como meio de salvação. Paulo começa a sua carta aos Romanos (1.18-25) enfa-tizando o pecado e a culpabilidade do homem. Fala a mesma coisa
Níveis de contextualizaçõo- o desafio da nnvextualização bíblica 11. 1 65
em Efésios 2.1-5 e em muitos outras passagens. Em Gálatas 1.4 a "era" é perversa. Eles tinham que cuidar para não mudar a mensagem do evangelho conforme sua cultura, religião ou filosofias. A natureza pecaminosa e a consequente idolatria deixam o homem reprovável e sujeito à ira de Deus; são fatores centrais no afastamento do homem de Deus. Pertencer a Deus significa separação das trevas deste mundo
e do mundo espiritual maligno dominante. Os atos radicais de rejeição da idolatria e separação do "mundo"
são marcantes na Bíblia e têm marcado a história de missões. Paulo chama o "mundo" (cultura, em muitos lugares) de perverso e mau. Em Romanos 12.1-2 os cristãos são exortados a não "conformar-se" com este mundo; em 12.9, Paulo escreve que devem "odiar o mal" (a tradução de Williams traduz "ter horror do mal"), e em Efésios 5.11 diz que não devem associar-se "às obras infrutíferas das trevas".
Em Atos 19.18-19, os idólatras convertidos levaram seus livros e fetishes a serem queimados em praça pública, uma clara declaração de ruptura com a religião da comunidade e da sua nova fé em Jesus. O final da ação missionária tem que ser pessoas perdoadas, regeneradas e transformadas pela oferta do Filho de Deus na cruz.
Dean Flemming, em seu artigo sobre a contextualização de Paulo em Atenas, escreve que Paulo é um exemplo de identificação com vários pontos culturais dos seus ouvintes, usando sua maneira retórica, citando até os poetas deles. Paulo não mudou o conteúdo da mensa-gem, nem saiu-se mal nesta contextualização eficaz e fiel às Escritu-ras no meio dos intelectuais. Flemming explica que Paulo reconhece o terreno comum com os escritos dos pagãos, usando-os como pontes
para os seus ouvintes, sem aprovar o sistema de crenças em que estão fundamentados. Ele escreve:
Há, portanto, limites definidos neste terreno comum. Quando Paulo disse
que ia lhes proclamar o deus desconhecido, que eles cultuavam sem conhe-
cer, não estava ratificando este deus, como alguns têm alegado. Os
atenienses não são "crentes anônimos". A gramática do versículo 23 deixa
claro que eles têm honrado um "que" (ho), um objeto, não um "quem"; um
Deus pessoal (17.29). Sua presente condição de ignorância idólatra tem
que ser corrigida pelo conhecimento verdadeiro de Deus pela proclamação
do evangelho. (...)
166j Questões contemporâneas sobre a contextualização missionária
A mensagem estava firmemente enraizada no Antigo Testamento e
no judaísmo, mas Paulo foi capaz de colocar nela uma roupagem da lin-
guagem e das categorias dos seus ouvintes gregos — sem sincretizá-la
(2002:202-203).
Nesta análise de Atos 17, Flemming foi muito feliz ao apresen-
tar um modelo por excelência (como Lucas fez) de um apóstolo que
sabia contextualizar, identificando-se onde podia, baseado em pro-fundo conhecimento da cultura do outro, confrontando os pontos inaceitáveis, como idolatria, e levando os ouvintes ao arrependimento e à transformação. Paulo, profundo conhecedor do Antigo Testamento, sabia que não poderia existir nenhum outro a ser cultuado, a não ser o verdadeiro Deus Altíssimo que mandou seu Filho para nos salvar
do julgamento que certamente virá." O próprio Jesus deixou instruções contundentes sobre a nossa
identificação cultural. Ele é uma personificação da identificação muito maior do que as pessoas podem imaginar. Ele se tornou homem, deixando para trás todos os seus privilégios, posição e conforto. Ele, melhor do que qualquer outro, tem plena autoridade para nos instruir sobre
contextualização. Em todo o seu ensino, Ele confronta os mais pro-
fundos níveis da religiosidade e cultura. Um exemplo se encontra em Mateus 20, quando ele deixa padrões muito claros para seus seguido-res: "Sabeis que os governantes dos gentios os dominam, e os seus poderosos exercem autoridade sobre eles. Não será assim entre vós; pelo
contrário... (v. 25-26, grifo meu). Eles não poderiam copiar o sistema cultural da época. E ainda mais, tinham que tomar uma posição que
entra em choque com a cultura: "...quem entre vós quiser ser o primei-ro, será vosso servo", um conceito inconcebível para eles como judeus.
Ele repete a mesma instrução em Mateus 23, usando uma ima-gem cultural diferente, a religião. Ele proibe aos discípulos usarem
títulos de status ou posição. Um só é o mestre, e todos são irmãos. A ninguém na terra deve-se chamar de 'pai' ou "mestre" ou "rabi" ou
"chefe", pois todos estes são títulos de posição e status. Em vez disto,
" Há muitos outros textos que demonstram claramente a importância de deixar a velha vida e religião para aceitar a nova vida em Cristo. Verifique textos como At 14.15; lTs 1, etc.
Níveis de contexhialização: o desafio da contextualização bíblica ■" I 67
Jesus faz um contraste — são servos, um conceito totalmente estra-nho para todos eles e o oposto do que almejavam.
Jesus sabia que o mundo o odiava porque ele o denunciava como sendo mau (Jo 7.7). Em João 6, Jesus declarou toda a verdade aos discípulos, e a maioria foi embora. Ele não se importava com aceita-ção ou em agradar as pessoas e em não chocá-las com a verdade de que ele era o Filho de Deus.
Ao longo de sua vida, Jesus se identificou com as pessoas, confron-tou-as, criou conflitos, formou seus discípulos e no fim os mandou ao mundo todo com uma comissão forte: "...fazei discípulos de todas as nações, batizando-os...e ensinando-lhes a obedecer a todas as coisas que vos ordenei; e eu estou convosco todos os dias, até o final dos tem-pos" (Mt 28.19-20). A comissão é para todos e para sempre. O ensino, a vida de submissão ao ensino, inclusive quanto ao batismo, é central na tarefa missionária. Com amor, humildade e espírito de servo, vamos levar estas boas novas de salvação que transforma vidas, levando as pes-soas das trevas e da morte para inclusão no corpo de Cristo.
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Os konkombas e o processo de contextualização da
mensagem bíblica
Uma breve introdução
Os konkombas derivam de uma família étnica que habita o nordeste de Gana, noroeste africano. Receberam a denominação genérica konkombas na década de 30 a partir de um censo estatístico patroci-nado pelo governo ganense, apesar de constituirem etnias diferencia-das, linguística e culturalmente. O termo konkomba é desconhecido por eles. As quatro principais etnias que formam esta família são os bichaboln, bimonkpeln, bisachun e bikum que, juntos, somam mais de 300.000 pessoas entre Gana e o Togo.
Observando as quatro etnias conhecidas como konkombas pode-mos perceber que de forma geral são patrilineares, polígamos, animistas, frequentemente fetichistas, com forte ligação totêmica com animais terrestres, especialmente entre os bimonkpeln. A organização social institui os clãs como células centrais e os anciãos como representantes de cada célula, sendo um entre eles apontado como ubor, chefe da comunidade ou aldeia. Não há chefes que governem mais que uma aldeia, configurando assim etnias acéfalas e a dispersão é fomentada pela necessidade do cultivo do inhame em uma área onde a terra não permite plantações sequenciais. Para cada plantio anual reserva-se sete anos de descanso da terra. Cada etnia e clã konkomba é associado a
1 72 Pondo a contextualização em prática- estudos de caso
um totem — objeto, planta ou animal — que representa aquele grupo e demanda para si certos tipos específicos de sacrifícios. Os três mais
comuns são begangmanm — o leopardo, bwawintieb — o crocodilo, e
bekumbwan — a hiena. Há diversas categorias de funções sociais como sábios, conselheiros
e ouvintes (apenas ouvem os problemas), bem como categorias espi-rituais bem demarcadas como curandeiros, sonhadores, feiticeiros e
bruxos, sendo que esta última é observada apenas entre os bikum. O
medo da morte é o principal assunto de suas músicas e contos. Morrer em ditosa idade com mulheres, filhos e feitos notáveis, é a aspiração
de todo homem, e condição para tornar-se um ancestral. Em Gana, especialmente na capital Acra, e em todo o sul, os
konkombas são conhecidos como sendo tiwoor aanib (povo do mato)
por preferir se isolar em regiões mais distantes. No imaginário popular são agressivos e senhores de guerras, mas de fato são extremamente hos-pitaleiros e leais. Para eles a maior vergonha é mentir e o maior pecado é a ganância. A maior virtude é honrar os pais quando já velhos e lem-
brar-se deles quando se forem. Os filhos são criados por todos e não há órfãos. As células clânicas garantem sua força e organização social.
Desde 1994 estamos envolvidos no propósito de evangelizar
uma destas etnias, que se autodenomina bimonkpeln ("homens que vivem"), na região de Koni ao nordeste de Gana. Juntamente com minha esposa Rossana, fomos enviados para esta parte do continente
africano pela APMT (Agência Presbiteriana de Missões
Transculturais) da Igreja Presbiteriana do Brasil em parceria com a A Missão de Evangelizacao Mundial — AMEM conhecida no exte-
rior como WEC International. A partir de 1995 presenciamos um rápido crescimento na igreja
konkomba-bimonkpeln. Na última reunião de presbíteros em outu-
bro de 2000, pudemos contabilizar 17 igrejas plantadas com mais de 3.500 membros adultos, sendo tais igrejas estabelecidas nas aldeias de Koni, Nabukorá, Molan, Kadjokorá, Jimoni, Nbobo, Ipoalim,
Sakoni, Bunache, Borla, Sibru, Katan, Naandigoon, Jimbo, Ketiman, Sabol e Koniuba. Em 2006 contabilizaram 23 igrejas, mas sem esta-
tística quanto ao número de membros. Até o momento pudemos treinar biblicamente cinco evangelistas (Labuer, Iagorá, Nprompir,
Os konkombas e o processo de contextualizacdo da mensagem em 1 73
Katal e Kimana) além de trinta presbíteros. Outros sessenta líderes
estão em treinamento através de cursos de vida cristã que estão sendo
ministrados pelos evangelistas. No total, 87 líderes estão ativos nas diversas igrejas e ministérios, sendo apenas os cinco evangelistas sus-
tentados pela igreja e com tempo integral para o trabalho. Como mencionamos antes, os konkombas formam uma família
étnica e por isso o alcance de uma destas etnias não pressupõe o alcance de todas. A distinção linguística e cultural faz com que se auto-
denominem biniil, ou primos. A primeira língua nesta família que recebeu o Novo Testamento foi o lichabol (da etnia bichaboln) tra-
duzido pela missionária Mary Still da SIL (Sociedade Internacional Linguística), tendo completado recentemente toda a tradução da
Bíblia. Um trabalho primoroso.
Inciamos o trabalho de análise linguística e consequentemente a tradução do Novo Testamento em 1994 para a língua limonkpeln.
Recentemente a Missão Metodista de Gana trabalha na grafia da
terceira língua da família, da etnia bikuln.
Iniciamos o trabalho linguístico a partir da estrutura fonética, composição da gramática limonkpeln e preparação de um pequeno
dicionário. Logo após terminamos as cartilhas para alfabetização através
das quais pudemos contabilizar no ano 2000 mais de 500 adultos já alfabetizados na língua materna. Naquela altura já contávamos com
alguns livros do Novo Testamento traduzidos e finalmente concluí-
mos a tradução primária em 2002. Iniciamos então o processo de revisão, retrotradução e teste comunitário. Em outubro de 2004 o Novo Testamento completo foi entregue à igreja em um culto onde se
ajuntaram crentes de todas as 23 igrejas da etnia, em uma grande festa. Esta tradução foi resultado de um trabalho em equipe. Cinco
irmãos konkombas colaboraram exaustivamente durante vários anos,
especialmente no processo inicial de coleta de informações e mais ao fim no teste comunitário, quando todos os versos bíblicos eram apre-
sentados sistematicamente para representantes de três diferentes dia-letos limonkpeln, a fim de testarmos o nível de comunicação. Gostaria
de destacar Balabon, que esteve comigo durante todos os sete anos de trabalho e praticamente liderou toda a revisão do texto junto ao povo.
Também Dambá, que se especializou na coleta de informações
174 Pondo a contextualização em prática. estudos de caso
linguísticas relevantes para uma melhor tradução textual. Ele é hoje o responsável pela distribuição do Novo Testamento. Também lidera o movimento de alfabetização na língua limonkpeln.
Nosso objetivo para o trabalho entre os konkombas, inicialmente, era o plantio de igrejas. Nossa motivação para traduzirmos o Novo
Testamento teve início quando, nos primórdios da igreja, reuníamos
alguns crentes de cada aldeia evangelizada a fim de discipulá-los. Seriam os futuros líderes. A cada mês, portanto, eles vinham de suas aldeias e passavam um final de semana conosco em Koni, uma aldeia central onde morávamos. Ali ensinávamos a Palavra e, por não tê-la na língua local, cada crente memorizava alguns versículos bíblicos
para reproduzi-los para seu grupo ao voltar para casa. Uma mulher, Aadjo, vinha de Kadjokorá, uma das aldeias mais distantes que ficava a quatro dias de caminhada. Permaneceu conosco naquele fim de semana aprendendo a Palavra, e memorizou, juntamente com os
outros crentes, treze versículos. Depois do final de semana ela retornou para casa, quatro dias de viagem. Porém, após dois dias, ela esqueceu-se
de um dos versículos bíblicos. Decidiu então regressar imediatamente para nossa aldeia e tal foi nossa surpresa ao vê-la chegando. Ao narrar o motivo que a trouxe, ela afirmou que "a Palavra de Deus é impor-tante demais para ficar ao longo do caminho". Rememorizou o
versículo que esquecera, descansou aquela noite, e de manhã se pôs a caminhar, por mais quatro dias, para chegar à sua aldeia.
Este fato fez com que decidíssemos, imediatamente, iniciar o trabalho de tradução de maneira mais formal. Tivemos forte apoio
da igreja local.
Perspectiva missionária
Dentro de uma perspectiva interna, missionária, identificamos o rápido crescimento da igreja entre os konkomba-bimonkpeln, de Gana, liga-do a sete fatores essenciais.
Cobertura de oração
Observamos um número expressivo de irmãos e igrejas no Brasil
que se comprometeram a interceder pelos konkomba-bimonkpeln
Os konkombas e o processo de contextualização da IfierlSOgern eu 1 75
desde 1993. Durante os anos de maior crescimento da igreja na etnia,
havia no Brasil um crescente interesse na intercessão pelo povo. Fora do Brasil, a WEC levantou muitos intercessores, especialmente du-rante os últimos anos de finalização do projeto de tradução do Novo Testamento. Minha mãe, Euza Lidório, que lidera um movimento
de intercessão missionária no Brasil com mais de 600 grupos que se
reunem semanalmente para orar, priorizou os konkombas durante
muitos anos em seu boletim, que guiava o povo para a intercessão. Em diversas ocasiões vimos uma estreita ligação entre um súbito inte-
resse da igreja brasileira em orar pelos konkombas e uma posterior onda de aceitação do evangelho na tribo.
Estamos convictos que o movimento de oração pelo povo está
intimamente ligado ao crescimento da igreja naquele lugar.
Observação cultural
Cremos que a abordagem do povo konkomba-bimonkpeln a partir de uma observação cultural mais ampla proporcionou menores riscos de nominalismo e sincretismo durante a apresentação do evangelho.
Foram aplicados três métodos de avaliação cultural que denomina-mos "Antropos" (método de análise etnográfica, com certa ênfase
etnológica), "Pneumatos" (método de análise fenomenológica) e "Angelos" (método de propostas para o desenvolvimento de uma teo-
logia aplicável). Estes métodos colaboraram de maneira vital para a elaboração de 27 pontos bíblicos que precisavam ser expostos de for-
ma clara e culturalmente compreensível, para que houvesse uma boa
comunicação dos fundamentos do evangelho.
No universo konkomba-bimonkpeln o religioso não é distinto do não religioso, nem o sagrado do secular. O espiritual não se sepa-ra do material, nem o corpo da alma. O religioso está presente em toda forma de expressão de vida: trabalho, alimentação, guerras, pro-criação e descanso. Nascer na sociedade konkomba-bimonkpeln sig-nifica seguir um grupo de rituais e cerimônias que fazem parte da vida e sobrevida tribal. Não há ateus. Todos creem nos espíritos,
malignos ou a-éticos (não há bons espíritos), nos fetiches repre-sentados por montanhas, árvores, rochas ou ainda feitos por mãos hu-
manas, nos ídolos feitos de madeira ou pedra, nos tótens representados
1 76 gi. Pondo a contextualização em prática estudos de caso
em geral por diferentes animais, em Satã — Kininbon — senhor de
todos os maus espíritos, e nas almas dos ancestrais que demandam
respeito e sacrifícios como forma de se evitar punição. Contrapondo este deprimente universo, todos já ouviram falar em Uwumbor, um Deus antigo de épocas idas e sonhos distantes que já não mais se
relaciona com o povo. Dizem: "Uwumbor já não deseja mais ser Deus entre a tribo".
Creem que isso aconteceu por causa de alguma ofensa grave regis-
trada na cosmogonia do povo. Narram que no início dos tempos Uwumbor criou uma família que habitava uma ilha. Viviam bem e especialmente alegres porque o pacham (céu azul, visível por nós) era bem baixo e podia ser tocado se alguém subisse em uma árvore
alta. Uwumbor permitiu, portanto, que o homem cortasse um pe-
daço do céu a cada dia pois ali havia muita carne, em abundância, para que a família se alimentasse. Durante muitos anos foram feli-zes e o homem subia diariamente em uma árvore alta para cortar
um pedaço do pacbam e trazer saborosa carne para a família. Certo dia, porém, o homem passou a pensar, no alto da árvore, como seria
infeliz se aquele céu desaparecesse e não houvesse mais carne. Daí
resolveu cortar pedaços enormes do céu lançando carne em grande abundância para a família. A mulher o preveniu que havia carne
demais, mas ele não a ouviu. Continuou cortando e quando desceu, percebeu que havia muito mais do que poderiam comer naquele dia. No dia seguinte boa parte da carne havia apodrecido e ele per-
cebera o mal que havia feito. Naquele momento Uwumbor chegou na ilha para conversar com a família, como ele fazia costumeira-mente. Vendo, porém, a carne colhida em quantidade muito maior do que ordenara, apodrecendo no chão, entristeceu-se com o ho-
mem e o chamou de ujá-uleen (homem ganancioso) indo embora
para longe, sem jamais voltar. Levou também consigo o céu, pacham, com toda sua carne e por isto é que ele pode ser visto até hoje, bem distante e ainda azul, mas inacessível.
Esta cosmogonia levou-nos a utilizar terminologicamente Uwumbor como Deus e a desenvolver os elementos necessários para uma teologia bíblica da criação, pecado, queda e redenção. Junto a ela outras doze cosmogonias e mais de vinte antropogonias ajudaram-nos
Os konkombas e o processo de contextualização da mensagem 1 77
a perceber o padrão de cosmovisão do povo em relação ao seu uni-verso. Cremos que tínhamos os elementos necessários para comunicar a criação e a queda descritas em Gênesis.
A observação cultural sistematizada proporcionou o ambiente para o desenvolvimento da comunicação do evangelho de forma apli-
cável, em um primeiro momento, e ajudou-nos a pontuar as áreas de difícil comunicação onde o sincretismo poderia surgir.
Evangelização abundante e intencional
Cremos que a abrangência e quantidade da evangelização é tão rele-vante quanto sua qualidade. Em um processo bíblico de plantio de
igrejas é necessário sermos lembrados de que a centralidade da Pala-vra define a fidelidade da missão. Ou seja, não optaremos por meca-
nismos que simplesmente alcancem resultados atrativos, mas sim por mecanismos fundamentados na Palavra e na visão de Deus.
Isto não elimina, porém, a necessidade de uma evangelização abun-
dante. A quantidade e constância da evangelização tornam-se fun-
damentais em um processo de plantio de igrejas. Em um campo missionário, seja culturalmente distinto ou geograficamente próxi-
mo, a abundância na evangelização deve ser uma prática intencional.
De 1993 até 2005 cremos que cerca de 100.000 konkombas (majoritariamente da etnia bimonkpeln, mas também bikuln e
bisachuln) ouviram diretamente o evangelho, seja pela atuação dos missionários, dos líderes konkombas ou dos crentes em geral. A forma
mais comum de evangelismo era fomentar ajuntamentos nas princi-
pais aldeias e apresentar-lhes a história de Uwumbor, Deus, a partir de Gênesis.
Sendo uma cultura com vasta cosmogonia, perfil messiânico, cul-
turalmente tradicional e histórica, iniciamos a evangelização apresen-tando-lhes Deus, seu caráter e atributos. Apesar de o apresentarmos
como justo, amoroso e misericordioso, seu atributo mais chamativo para um povo espiritualista, totêmico e animista foi seu poder. Pergun-tavam várias vezes se estava bem claro na "história de Deus" (Bíblia)
que ele era maior que Gramadii, o espírito aético mais temido e invo-cado na região. Na cosmovisão do povo não era digno de confiança, porém não era seguro desafiá-lo.
► 78 e. Pondo a contextualização em prática: estudos de caso
O evangelismo portanto, abundante e intencional, era prática
constante de aldeia em aldeia, com grandes e pequenos ajuntamentos. Cada um que se convertia juntava-se a nós para o próximo evangelismo.
Este evangelismo abundante e amplo envolvia pregações nos
centros de cada aldeia em alta voz, de forma que mesmo os que não desejavam ouvir não tinham como evitá-lo. Como resultado de um
destes momentos, converteu-se Mebá, feiticeiro de Koni e guardião
de Grumadii. Era "kinyiang", dia de descanso konkomba, e Mebá
estava sentado embaixo de uma árvore próxima à sua palhoça no limite oeste de Koni. O conhecíamos apenas como um feiticeiro
que era temido pelo povo e protagonista de Kinyek aabauel (noites
de sacrifícios) nas quais chegavam a imolar até 300 animais em uma
só noite a Grumadii e outros fetiches, em épocas bem especiais. Havíamos tido pouco contato com ele pessoalmente, até mesmo pelo estilo de vida arredio e isolado de um feiticeiro. Também já tínha-mos ouvido a respeito do sacrifício de seu neto no tempo da sua
chegada a Koni. Ali estava ele, sentado embaixo daquela árvore. Já havíamos expos-
to o evangelho ao seu clã e família e por duas vezes em sua palhoça,
apesar de ele mesmo nunca sair de seu pequeno quartinho enquanto falávamos ao restante da família. Era certo, porém, que nos ouvia e
nunca nos proibiu de entrar em sua casa. Era um homem muito fa-
lante, porém estava quieto e pensativo naquele dia. Eu tomava banho na palhoça onde morávamos quando um rapaz aproximou-se e disse:
— Está acontecendo alguma coisa com Mebá. Todos correram e uma pequena multidão logo se juntou ao seu
redor. Aquele homem estava pulando, dançando e gritando. Uma
pequena multidão o cercou e ele olhava para todos, mexendo-se de um lado para o outro, como quem queria lhes falar algo. Eu me juntei ao grupo pensando que algo terrível teria acontecido com ele, como
ser picado por uma cobra ou atacado por uma pessoa. Ao vê-lo, ima-ginei se estaria sob alguma influência maligna.
Perguntaram-lhe:
Mebá, o que está acontecendo? Ele respondeu euforicamente: — Há algo novo em mim. Come-
cei a pensar e entender o que falam a respeito de Yesu Kristu. Ele é
Os konkombas e o processo de contex(ualizacao da mensagem e' 179
mesmo filho de Deus. Ele é mesmo mantotiib de Deus. Ele é mesmo
a esperança de um dia vermos Uwumbor. Entretanto o que entendi
hoje, e que era o meu único temor desde a primeira vez quando o evangelho começou a fazer sentido para mim, é que Yesu Kristu é
mais poderoso que Grumadii. Não há o que temer. Suas palavras eram como flechas na multidão. Um feiticeiro,
guardião de Grumadii, dizendo que o Deus da criação, Uwumbor, é
mais poderoso! Uma cena inimaginável até então. Ele não fez nenhu-
ma referência a mim, a outras pessoas ou a qualquer pregação em especial que teria ouvido. Estava tendo uma íntima experiência com Deus, e senti que o Senhor lhe retirava naquele momento todo o medo. "Não há o que temer", dizia ele repetidamente. A base de sua
mensagem, até os dias de hoje, é que Uwumbor é mais poderoso.
Todo evangelismo, desenvolvimento histórico processual e às vezes cronológico do evangelho a partir de Gênesis tinha como obje-
tivo apresentar a Cristo. Os elementos fundamentais para o processo evangelístico eram: a) Deus Criador, amoroso e maior que os espíri-
tos; b) o homem caído, com sua descendência, se distanciando do
Criador; c) o desejo do Criador para resgatá-lo, com um desenvolvi-
mento de um plano universal, para todos os povos; d) Jesus, o plano
de Deus, Filho de Deus e Deus, encarnado; e) Jesus, sua morte, sal-
vando os homens, sua ressurreição estando entre nós; f) o Espírito Santo, enviado para guiar a igreja, está entre nós; g) a igreja, proposta de Deus para a comunhão e fortalecimento, para adoração bonita que
alegra a Deus; h) a missão, responsabilidade do crente, para passar adiante o que ele sabe e experimentou; i) a expectativa, Jesus voltará, o céu é nosso lar.
Desenvolvimento de uma identidade eclesiástica autóctone
Nosso pressuposto ao plantar igrejas é que a igreja local é a forma
mais eficiente, auto-sustentável e duradoura de comunicar o evange-lho dentro de um perímetro, seja um bairro, um segmento social ou uma etnia culturalmente definida pois:
1. Gera demanda pela comunicação de um evangelho cultural-
mente compreensível;
1 80 .. Pondo a contextualização em prática estudos de caso
2. Estabelece localmente o reino; 3. Duplica o efeito missionário. Igrejas plantam igrejas.
Para que isto aconteça de forma enraizada é preciso que seja desen-volvida nesta igreja (a partir das igrejas locais) uma identidade eclesiás-tica bíblica e própria, fazendo-os entender que não são apenas a reprodução de um modelo externo, mas sim o resultado da aplicação de um evangelho supracultural e atemporal, para todos os povos em todas as gerações, onde também estão incluídos.
Alguns valores precisam ser ensinados, biblicamente, desde o nascedouro desta igreja.
.. A igreja é a comunidade dos redimidos, foi originada por Deus e pertence a Deus (1Co. 1.1-2);
.. A igreja não é uma sociedade alienante. Aqueles que foram redimidos por Cristo continuam sendo homens e mulheres, pais e filhos, plantadores e comerciantes que respiram e levam o evangelho onde estão (1Co 6.12-20);
.. A igreja é uma comunidade sem fronteiras, portanto fatal-mente missionária (Rm 15.18-19);
... A vida da igreja, acompanhada das Escrituras, é um grande testemunho para o mundo perdido. E necessário, portanto, que preguemos um evangelho que faça sentido tanto dentro como fora do templo ( Jo 14.26; 16.13-15);
.• A missão maior da igreja é glorificar a Deus (1Co 6.20; Rm 16.25-27).
Tentamos não ceder à tentação de caminharmos sós. Desde o momento em que Mebá se converteu e trouxe consigo sua família com onze filhos, iniciamos um esforço conjunto para que todo passo, fosse evangelístico ou o estudo cultural para melhor comunicação de um ensino bíblico aos novos crentes, pudesse ser dado lado a lado. Incluir os recem-convertidos no processo de evangelização do próprio povo, estudo da Palavra para ensiná-la aos seus, processos de decisão para os ajuntamentos e cultos, liturgia, visita aos enfermos, resposta aos feiticeiros que nos desafiavam e outras atividades, mostrou-se uma
Os konkombas e o processo de contextuallzacão da mensagem em 181
atitude extremamente frutífera. Não é suficiente desenvolver uma
eclesiologia bíblica e contextualizada. É necessário fazer isto junto ao
povo e com sua participação. Gostaria de enfatizar este ponto. Olhando para trás percebemos
hoje que muitíssimos erros foram evitados, e alguns graves, porque desenvolvíamos a teologia bíblica e evangelismo junto com o povo
local, os primeiros convertidos. Apesar da compreensão limitada do evangelho, na época, a contribuição para o processo de comunicação
(e discernimento do sagrado e profano na cosmovisão local) cooperou
em áreas estratégicas. Lembro-me que gastei dias estudando os diver-
sos toques de tambor utilizados na tribo a fim de compreender se
algum deles era direcionado exclusivamente à invocação demoníaca, culto aos ancestrais ou nos rituais animistas de purificação. Certo dia, Mebá, vendo meu esforço, simplesmente comentou: Você quer saber que toques são ruins? É simples, pergunte a
uma criancinha konkomba que ela mesmo saberá lhe mostrar. Envolvimento da igreja com os conflitos sociais
A assistência médica, colaboração com educação e perfuração de poços de água limpa angariou muito mais do que a simpatia da etnia para a igreja que nascia. Em um segundo momento, a educação na
língua materna também se aliou a este esforço. Estas atividades envol-veram a igreja nos conflitos sociais, evitando que se transformasse em
uma instituição alienada. As atividades sociais receberam bastante atenção, concentrada especialmente no trabalho de saúde (no qual em média 3.000 pessoas eram tratadas a cada ano), educação (escola
formal para crianças e alfabetização na língua materna para adultos), além da perfuração de poços de água, dera vida e experiência confirmativa (aquilo que culturas sócio-interativas observam na ten-
tativa de definirem se as palavras são confirmadas pelas ações). No universo konkomba, e humano, seria impossível compreender um
Cristo que ama apenas a alma e despreza o sofrimento presente e visível do corpo.
Um efeito extremamente positivo adveio desta sensibilidade social.
Logo no começo, quando os primeiros convertidos vinham para o Senhor Jesus, a sociedade konkomba-bimonkpeln esboçou excluí-
los do convívio social. Alguns foram expulsos de suas casas e outros
182 a. Pondo a contextualização em prática: estudos de caso
passaram a perder o direito ao rodízio de terras para o plantio do inhame.
Os conflitos humanos como enfermidades, sede e fome, porém, ser-viram de ponto de convergência e união. Ao tomarmos como igreja
uma iniciativa social (perfuração dos poços de água, por exemplo), nós sempre o fazíamos a partir da igreja, porém junto com a socie-dade. O chefe de cada aldeia era procurado, juntamente com o concí-
lio dos anciãos. Não raramente o feiticeiro da aldeia estava presente. Ali um grupo da igreja expunha a necessidade humana, a possibi-lidade de solução, e a necessidade do trabalho conjunto. A medida em que as iniciativas sociais avançavam víamos que a resistência da
sociedade à igreja era minimizada. Até mesmo a mensagem de Cristo
passou a ser mais tolerada. Lembro-me com exatidão do dia em que todos se juntaram na
aldeia de Koni para testarem o poço de água recém-perfurado. Havia muita expectativa e, como todos haviam participado, crentes e não crentes, era um projeto com pleno interesse comum. Enquanto a água
jorrava, Labuer, um dos líderes da igreja em Koni, tomou a palavra e durante alguns minutos lhes falou sobre Jesus como a água viva para cada um. Todos gritaram alegres e talvez pela primeira vez Jesus foi apresentado publicamente sem oposição. A igreja havia rompido a
barreira da antipatia social naquela aldeia.
Envolvimento dos recém-convertidos no evangelismo e testemunho
Assim que se convertiam, estes crentes se envolviam em trabalhos onde tinham de dar testemunho. Praticávamos o rápido e integral
envolvimento dos recém-convertidos em ambientes onde pudessem testemunhar de seu novo nascimento. Cremos que isto os fortalecia e,
em uma cultura oral, o testemunho é deveras importante em qual-quer acontecimento marcante da vida. Também produzia um efeito
multiplicador da pregação do evangelho. Voluntariado junto a um trabalho social, apoio a evangelistas,
participação de cultos públicos — estas eram algumas atividades das quais os novos convertidos já participavam nas primeiras 24 ou 48
horas de sua nova vida. Havia certamente o risco do desencorajamento a partir dos que eventualmente não permaneceriam na fé, porém
Os konkombas e o processo de contextualiza0o da mensagem : 183
naquele contexto era um número pequeno e, assim, o efeito do teste-
munho da sua fé era cativante e afirmador.
Kidiik foi o recém-convertido que mais se destacou em seu tes-temunho. Ele havia desde criança sido preparado para atuar como o guardião dos fetiches familiares, uma função de destaque na religio-
sidade do povo. Para tal, foi criado por um dos feiticeiros locais,
distante de seus pais, e aprendeu toda a perícia na manipulação de elementos naturais e sobrenaturais. Tornou-se um rapaz excluído
ao qual todos temiam. Era tímido, um pouco gago e franzino. Após sua conversão Kidiik passou a testemunhar de Cristo em muitos lugares e sempre que o fazia ele expunha o engano proposto pelos
espíritos. Falava sobre as técnicas ensinadas para manipulá-los e enganá-los em detrimento do benefício humano. Também falava
dos ritos para produzir enfermidade ou perturbação a outras pesso-
as, além do significado dos elementos de sacrifício, quando era exi-
gido por Grumadii, um espírito temido naquela região. Isto gerou um levante contra ele e diversas vezes foi ameaçado. Na época che-
gamos a pedir que ele não revelasse publicamente detalhes dos ritos praticados pelos feiticeiros. Porém, olhando hoje para trás, percebe-
mos que esta intrepidez de Kiddik e sua participação nos ajunta-
mentos evangelísticos contribuiram tremendamente para minimizar
o temor que o povo tinha em relaçao aos espíritos, e as pessoas pas-savam a procurar o poder de Deus. Aquele recém-convertido foi um diferencial no evangelismo entre os konkombas nos primeiros anos,
e sua rápida integração em ambientes favoráveis ao testemunho foi um ganho para ele e para o avanço do evangelho.
Concentração no discipulado de líderes
Cremos que, ao avaliarmos o crescimento de uma igreja não devemos
contabilizar os seus crentes locais, mas sim o número daqueles que
estão envolvidos em discipulado. Cremos que em um trabalho embrio-nário é mais relevante um ajuntamento de seis pessoas sendo discipuladas no evangelho do que de sessenta pessoas para cultos semanais.
Imediatamente à conversão dos primeiros que vieram ao Senhor
Jesus em 1993 iniciamos o discipulado. Dos cinco pastores konkomba-bimonkpeln, quatro deles são frutos da primeira e segunda leva de
1 84 j Pondo a contextualização em prática: estudos de caso
discipulado. Em média investíamos dois anos com discipulado sema-
nal (dois encontros por semana) com cada pessoa, de maneira formal.
Informalmente estávamos sempre juntos.
Perspectiva missiológica: contextualização
O pecado é cultural e manifesta-se culturalmente. No processo de
plantio de igrejas torna-se essencial, portanto, ter respostas bíblicas
para os conflitos humanos. Isto é feito tendo em uma das mãos uma boa observação da cultura e suas implicações perante o confronto do evangelho, e em outra mão a Palavra de Deus em um estudo sistemá-
tico que possa fornecer respostas para cada situação. Assim, identifi-camos as áreas de conflito cultural e iniciamos o estudo da Palavra sobre as mesmas, desenvolvendo "teologias bíblicas" aplicáveis em cada
contexto. Por "teologias bíblicas" me refiro a estudos sistemáticos bíbli-
cos, temáticos, que possam propor atitudes cristãs seguras no amadu-
recimento da igreja e compreensão do evangelho. A importância de tal estudo ser realizado cedo, em um processo
evangelístico mais comunitário, é que as raízes do sincretismo surgem normalmente nos primeiros momentos. São resultado de espaços vazios em que não ensinamos a Palavra como resposta de Deus para deter-
minadas situações. Em nosso caso as situações da vida mais conflitantes para o povo konkomba-bimonkpeln eram encontradas em nascimen-
tos, casamentos, funerais e na festa dos novos inhames.
Nascimento. Culturalmente, após um ano (ou três anos entre os
bikuln) o nome é dado à criança depois de uma complexa análise dos fatos que ocorreram durante ou antes daquele nascimento.
Os konkombas creem que Libuln, um espírito de morte, pode atacar e matar crianças ainda pequenas e mais frágeis. Como, na
cosmovisão tribal, tais espíritos abordam as pessoas a partir de seus nomes (que determinam a identidade, sendo estes proverbiais), uma
solução encontrada foi postergar a nomeação e assim proteger as crianças
em seus primeiros meses ou anos de vida. Após um ano, aproximadamente, o nome é dado à criança pe-
rante a presença de todos os parentes. Porém este não é o nome permanente, apenas temporário. Este nome temporário vem servir
Os konkornbas e O processo cie contexiaahzacoo da Inelsagon an 185
ao mesmo propósito de proteção, desta vez enganando o espírito de
morte. Tal nome pode ser trocado duas ou três vezes e apenas os pais sabem, nesta altura, o nome verdadeiro da criança, que decidem em
conversa sussurrada em algum momento. Os convertidos a Cristo passaram a dar nomes a seus filhos em
um culto, quando os líderes se reuniam para orar a Deus pela prote-ção dos pequeninos. Os nomes, culturalmente aceitos e ainda prover-biais, passaram a representar o que Deus fazia entre eles durante o momento do nascimento, ou circunstância que antecedia ao fato. Os
nomes eram dados cerca de três meses após o nascimento, visto que os konkombas não saem com as crianças muito pequenas de suas casas.
Os nomes passaram a ser permanentes, pois não havia mais temor de morte por ataque espiritual, porque creem que Deus é quem nos protege. Gêmeos, que são tabu na cultura konkomba (chegam a sacri-
ficar o segundo a nascer), passaram a ser aceitos e a receberem nomes como qualquer outra criança.
Casamento. Tradicionalmente os casamentos konkombas eram feitos por arranjo familiar, garantindo a parceria entre clãs e famílias próximas. Com a chegada de Grumadii, espírito temido, que por déca-das centralizou a adoração em Koni, uma das grandes imposições ao cotidiano tribal foi o casamento por troca de influência das culturas
ewe e bassari. Apenas rapazes que possuíam irmãs poderiam se casar, usando-as para trocá-las por irmãs de outros rapazes.
Assim nascia o casamento simbiótico no qual um relacionamento sempre dependeria de outro, paralelo. Se um relacionamento estivesse indo mal, dois seriam desfeitos e as irmãs retornariam às casas de seus pais. Ao longo das décadas este costume gerou uma cultura de relacio-namentos frágeis e instáveis com altíssimo índice de separações, além do temor de casais estáveis verem-se subitamente forçados a uma sepa-ração pela queda do casamento paralelo.
Os convertidos restauraram a proposta do casamento por dote, culturalmente konkomba e socialmente relevante. Condenaram o casamento por troca como sendo um costume originalmente ewe e
não konkomba, e causador de diversas disfunções familiares. Por tradi-
ção não há uma cerimônia pontual de casamento entre os konkombas, o que se enquadra perfeitamente na perspectiva de tempo cíclico e
186 o' Pondo a contextualização em prática estudos de caso
não linear da tribo. Assim, a igreja passou a realizar os casamentos em cultos onde a bênção do Senhor era pedida sobre a nova família,
seguindo a mesma perspectiva cíclica. Dividimos todo o processo
por partes culturalmente aceitáveis, quatro no total. A união física
entre marido e mulher aconteceria após a conclusão da última parte,
e após o dote ser entregue pelo homem aos sogros, de acordo com uma complexa tabela que envolve respeito, valores e relacionamento. Poderia ser, neste caso, uma plantação de inhames, utensílios para a casa, preferidos pela sogra, ou uma quantidade predefinida entre as partes de inhames de bom tamanho, não inferior a 800 unidades, e
de certas espécies definidas, com 10% de puna, considerado o me-
lhor da região e dificílimo de ser conseguido. Um ancião da igreja
acompanha todo o processo e aconselha as partes. Os anciãos ciânicos continuam sendo ouvidos, porém com a presença do ancião indi-
cado pela igreja. Funeral. Morrer idoso, com muitos filhos e grande número de
pessoas dançando em seu funeral é o sonho de todos os konkombas. Assim, o funeral é a festa mais planejada e frequentada entre todas as festas tribais.
Ao morrer, uma série de obrigações deveria ser cumprida pela
família para assegurar que o espírito do falecido não ficasse eterna-mente nas mãos de Grumadii. O funeral, desta forma, seria aceito
apenas após o sacrifício de um número indefinido de vacas, cabras e
galinhas. O feiticeiro local, em momento propício, indicaria o que
seria necessário. Isto levou os konkombas a trabalharem toda uma vida com a única finalidade de ganhar número suficiente de vacas,
cabras e galinhas, guardando-as preciosamente para o caso de sua pró-pria morte repentina. Devemos observar que nesta tribo, como em
boa parte da África, o funeral é a cerimônia de maior valor social e determina o estado pós-morte da pessoa.
Estes animais se transformaram aos poucos em artigos preciosos e desapareceram da vida diária. Assim, a tribo passou a se alimentar mais de macacos, ratos e morcegos, reservando o melhor para Grumadii durante os funerais.
Em contraste, a igreja adotou um processo de funeral onde os valores de invocação espiritualista foram negados. O ato cultural em
Os konkombas processo de contextuahzação ciei mensacjon : 187
si manteve sua importância social, ajuntando os parentes e lavando o
morto antes de enterrá-lo de cócoras, em um buraco profundo e re-dondo. Porém alguns fatos foram abolidos por entendermos que
havia um cenário animista que os pre-determinavam como a apresen-tação do morto às crianças, o isolamento da viúva que passaria sete
dias sem alimento e banho, e a quebra das cabaças no momento do enterro. Em lugar das músicas nas quais fetiches são invocados, a igreja compôs hinos que falam sobre a realidade da vida com Deus após a
morte do crente. Foi exaustivamente ensinado (e era repetido para todo recém-convertido) o valor bíblico da vida e da morte e a segu-rança que temos em Cristo. A igreja parece-nos contente e bem nu-
trida neste assunto, que era um dos pontos mais sensíveis na cultura. Festa dos novos inhames. Assim que colhem os novos inhames há
uma festa com grande ênfase demoníaca, onde normalmente ocorre uma possessão coletiva liderada pelo grupo de feiticeiros da região. Este era um momento esperado durante todo o ano, onde cria-se que os espíritos poderiam abençoar ou amaldiçoar a colheita, gerando abun-dância ou fome.
Mais uma vez Grumadii era o espírito sobre o qual recaíam as atenções, pois seus guardiões promulgavam a exigência de sacrifícios a fim de não condenar a colheita.
A igreja não fechou os olhos para a importância humana e cultu-ral da colheita. Além de ser um ponto de convergência de atenção
cultural, era também um momento que definia a subsistência deste
povo plantador. Os convertidos passaram a sugerir que os crentes trou-xessem os primeiros inhames para que orássemos em um culto espe-
cial, agradecendo ao Senhor pela safra e pedindo pela colheita que se seguiria. Este ato foi grandemente aceito pelo povo que, com alegria, passou a trazer anualmente as primícias da colheita como agradeci-mento a Deus. Milhares de inhames são doados à igreja neste mo-
mento e guardados (duram até um ano se enterrados) para suprir as viúvas, enfermos, necessitados e os evangelistas com tempo integral.
Houve claro ensino bíblico contra a crença de que há espíritos
específicos coordenados por Grumadii encarregados de proteger ou
amaldiçoar cada plantação. Ensinamos também para combater ideias a respeito dos fetiches de proteção que precisariam ser construidos
1 88: Pondo a contextualização em prática estudos de caso
em cada roça, a "lavagem" do primeiro inhame colhido exorcizando
assim algum possível espírito que o possuísse, as "árvores de invoca-ção" plantadas sistematicamente do lado oriental de cada roça e o alimento deixado perante as mesmas a cada época de monções para o alimento dos watiir aniib, um "povo pequeno, com olhos vermelhos e pele branca, que vive nestes lugares e pede comida constantemente
sob pena de destruir nossas roças", é a definição desta versão konkomba dos duendes. Os convertidos, porém, não menosprezaram estas expe-riências condenando-as ao imagínario popular, mas sim as trataram com oração e ensino da Palavra a fim de gerar segurança àqueles que lidam diariamente com suas roças. Não raramente tínhamos cultos nas roças e visitas "pastorais" eram frequentes.
Perspectiva eciesiológica: a vida interna da igreja
Há alguns pontos na comunicação formal de cunho transcultural que sem dúvida são fundamentais no processo de plantio de igrejas. Gos-taria de mencionar alguns, tendo em mente o crescimento da igreja
local que experimentamos entre os konkomba-bimonkpeln. A mensagem ali é comunicada na língua do povo, o limonkpeln.
Entre os diversos dialetos ao redor de Koni, foram escolhidos aqueles que chamamos de "dialetos domésticos", falados em um meio famili-ar. São evitados os dialetos de comércio que, apesar de mais ricos gramaticamente, são usados como uma segunda língua.
As músicas foram preparadas na língua local (limonkpeln) sem-pre pelos convertidos do local. No limite do possível, músicas "Twii"
— língua do sul, do povo Ashante, de grande influência em Gana —foram evitadas. Músicas e danças de identificação sociocultural eram usadas na liturgia, mas uma grande atenção contra o sincretismo foi dada, especialmente nos primeiros dias em que a liturgia se definia como forma de adoração a Deus.
Foi feito claro ao povo, desde as primeiras exposições da Palavra, que o evangelho promoveria mudanças culturais. Demos tal ênfase a
fim de evitar uma igreja utópica e riscos sincréticos. Foi pregado que mudanças culturais não são necessariamente a-culturais desde que decididas socialmente, sob influência da Palavra que é supracultural.
Os konkombas e o processo de contextualização da mensagem . :189
Toda cultura possui a liberdade de escolha a partir da releitura dos
próprios costumes e sincera conversão ao Senhor Jesus. Exposições das verdades bíblicas no processo pós-tradução
(explicativo) foram feitas para o povo, utilizando o contexto cultu-
ral como histórias, mitos, provérbios e músicas a fim de assegurar o que podemos chamar de entendimento aplicável, ou seja, aquilo que
pode ser entendido em uma segunda cultura e aplicável no contexto
e vida local. Liderança local foi a principal ênfase desde o início a fim de
promover uma melhor ponte de comunicação. Muitas vezes, jovens presbíteros conseguiam explicar melhor que nós os conceitos bíblicos
com implicações culturais. Liturgia e teologia foram aplicadas como um resultado de expo-
sição bíblica e não o contrário. Em cerca de 90% dos casos, os mem-bros locais e especialmente presbíteros sugeriam ótimas aplicações dos
conceitos bíblicos na vida prática do povo e em poucos casos fora necessário uma forte intervenção missionária. O trabalho missionário concentrou-se na exposição bíblica em dialeto local e facilitação des-
tes encontros e debates.
O resultado do derramar da graça de Deus promoveu um povo com certas atitudes positivas quanto ao evangelho, de forma geral, e
uma igreja em franco amadurecimento. Gostaria de compartilhar,
portanto, três destas atitudes que mais nos chamam a atenção.
Amor pela Palavra
Certa semana todos memorizaram, por exemplo, Mateus 14.34-36 e gostavam mais da parte final: "e todos os que o tocaram ficaram sãos".
Mulheres repetiam incessantemente este pequeno texto a caminho
do rio quando iam buscar água, outros durante o trabalho nas plan-tações e as crianças ao brincarem embaixo das árvores. Várias pessoas que moravam em aldeias distantes, ao esquecerem parte do texto que memorizaram naquela semana, viajavam quilômetros até o crente mais próximo a fim de perguntarem-lhe: "como é mesmo essa parte?". Tam-
bém compunham músicas cantando os versos bíblicos para que não
se esquecessem. Havia um grande interesse e uso da Palavra, mesmo
com o padrão da comunicação oral.
190 Pondo a contextualização em prática: estudos de caso
Perseverança na perseguição
Nos dois primeiros anos do nascer da igreja entre os konkombas houve um período de perseguição aos recém-convertidos por parte dos feiti-
ceiros locais como também das famílias. Muitos como Gbaba, Tinaa
e Malaanyin chegaram a ser expulsos de suas casas e outros como Kofii e Akuia foram expulsos de suas aldeias vindo a se refugiar em
Molan onde a igreja já se fortalecia. Akuia foi literalmente enjaulada
por seus pais por três semanas, sob o incentivo do feiticeiro local em Jimoni, a fim de negar que se tornara uma "Yesu Aanonoliib" — segui-dora de Jesus. Muitos perderam direitos a terras e plantações e algu-mas mulheres foram ameaçadas pelos maridos. Alguns líderes eram ameaçados de morte e envenenamento. O presbítero Mebá sofreu tentativa de envenenamento por três vezes e na última chegou a beber da água envenenada, adoecendo profundamente.
Entretanto, uma contagiante alegria corria pelo sangue de cada
crente. Júbilo e adoração eram as marcas de cada culto e uma tre-menda paixão por Jesus era manifestada na vida dos salvos. Víamos
algo que nos edificava grandemente: um desejo irrestrito de seguirem
a Jesus. Dezenas de músicas eram feitas expressando o que sentiam pelo Mestre e muitos títulos foram dados a ele como os seguintes
exemplos: "Senhor da Vida e da Morte", "Fonte de Alegria que Não
Pára", "Caminho a Seguir para Sempre", "Motivo de Viver com Segu-rança", "Deus que Veio Desde o Início", "Querido Senhor, Fonte do
Gostar", "Esperança que não Pára", "Vitorioso".
Motivação evangelística
Quase que automaticamente os recém-convertidos lançavam-se na tarefa de compartilhar a respeito da salvação em Jesus Cristo. Kidiik,
que citamos antes, era tão eufórico em seu testemunho que evitá-vamos que falasse em público, prevendo uma forte oposição feti-chista. Mebá alimentava a igreja com seu entusiasmo e ardor evangelístico. A igreja movia-se, andava longas distâncias e sacrifi-cava-se muitas vezes para que, como afirmava claramente uma das
músicas compostas na igreja em Koni: "todos os konkombas pos-sam, ao menos uma vez, ouvir que há salvação na pessoa de Yesu /
ele é o Filho de Deus / seu sacrifício nos salvou / Espírito que causa
Os konkombas e o processo de contextualrzação da mensagem . 191
arrependimento vem / mexe em todos / a igreja não pára, é hora de
falar". A ordem do dia era o evangelismo. Muitos exemplos da audácia evangelística dos crentes konkombas
poderiam ser compartilhados, entretanto, gostaria de falar a respeito
de Tibala. Ele era um jovem de cerca de 20 anos, alto e forte, de um temperamento compenetrado. Morava às margens do rio Molan, nas
imediações de Koni. Quando se converteu, sendo o primeiro do seu
clã a vir para Jesus, sofreu toda sorte de perseguições familiares. Per-deu o direito de plantar, a noiva que já lhe havia sido prometida e
toda e qualquer ajuda de seus irmãos. O feiticeiro da aldeia visitava-o com frequência a fim de rogar-
lhe maldições e nós temíamos por sua fé, pois ele era o único crente
naquela área e sabíamos que seria tremendamente pressionado. Entre
a casa de Tibala e Koni havia a timor usori ("floresta sagrada") que na verdade não passa de um círculo de árvores altas no meio das quais há um altar feito por três pedras que era o maior e mais temido marco
fetichista em Koni. Ali era vetada a entrada de qualquer um a não ser o feiticeiro da aldeia e seus ajudantes. Aqueles que assistiam os sacri-fícios permaneciam no exterior do círculo. Também a terra no inte-rior era considerada sagrada e servia tanto para proteger quando
colocada em pequenas bolsinhas feitas de couro que poderiam ser penduradas ao pescoço ou amarradas no pulso, como para amaldiçoar,
se jogada contra a entrada de alguma palhoça.
Tibala assumiu a liderança do louvor da igreja e certo dia, para nossa surpresa, correu um rumor de que havia passado pelo meio do timor usori quando retornava após um culto à noite, causando a ira dos fetichistas. Fomos até sua casa e ali ele, sentado, tranquilo, mas em um ambiente visivelmente tenso, falou: "Como salvos em Cristo pre-
cisamos falar de Jesus aos nossos até que entendam, e muitos se con-vertam. Entretanto eu sei que muitos evitam até mesmo ouvir sobre Jesus com receio dos fetiches e assim durante o culto pensei: qual a melhor maneira de manifestar que Jesus é maior que os fetiches do que mostrar que até mesmo a timor usori é menor que Jesus?"
Aconselhamos, em vão, que não repetisse a experiência por a enten-dermos como provocativa e desnecessária, entretanto Tibala passou a
cruzar a timor usori a cada ida e volta à igreja, mesmo sob ataque da
1 92 ■11 Pondo a contextualização em prática estudos de caso
família, ameaças do feiticeiro e até do chefe da aldeia. Após duas
semanas ele havia criado uma verdadeira trilha de acesso entre sua casa próxima ao rio e a igreja em Koni a qual passava exatamente pelo
meio das árvores sagradas. Nada lhe aconteceu e após um mês outros crentes passaram a usar a mesma trilha sob a desculpa de que era uma linha reta entre a aldeia e o rio. As árvores sagradas perderam o poder ameaçador e Tibala não morreu como anunciou o feiticeiro, o que
levou várias pessoas, especialmente do seu clã, a terem disposição para ouvir do evangelho. Entre as crianças corria um provérbio que, tra-duzido de forma literal, seria: "O Yesu de Tibala / despreocupada-mente / não receia a floresta sagrada / forte ele é".
Os problemas e erros de maior evidência durante o processo de evangelização e plantio de igreja
Ao longo desta caminhada a igreja konkomba também experimentou tristezas, derrotas, problemas entre líderes e disciplinas. Como missio-nários passamos também por várias frustrações e ansiedades, enfermi-
dades e envenenamento, desavenças e opressões. Rossana e eu erramos em diversas ocasiões e ensinamentos. Tentamos reparar estes erros ao longo da caminhada. Algumas questões e conflitos da vida permane-
cem ainda sem solução até hoje. Citaremos alguns pontos de conflito oriundos de claros erros na comunicação do evangelho, ou discipulado,
como referência para nosso estudo de caso.
1. Liderança. O conceito de autoctonia fomentou um critério
muito apurado de aceitação de liderança externa. Por possuir uma forte liderança e ser autogovernável a igreja konkomba tem hoje dificuldade em aceitar que outros venham de fora
para lhes ensinar, mesmo missionários estrangeiros ou pastores ganenses. Para outros serem aceitos, precisariam passar antes um tempo na tribo e na igreja, para serem conhecidos e terem
seu caráter observado. Apenas depois deste reconhecimento poderiam falar à igreja. Cremos que enfatizamos demais a
necessidade de serem autogovernáveis e o critério rigoroso de reconhecimento de liderança externa, porque, apesar de
Os konkombas e o processo de contextualização da mensagem aa 193
funcionar também de forma positiva, tem gerado problemas
no processo de comunhão e integração entre a igreja konkomba
e a igreja evangélica no restante do país. Nossa leitura atual é que uma ênfase igualitária deveria ter sido dada entre a formação de uma igreja autogovernável e a comunhão com irmãos fora dos limites étnicos.
2. Musicalidade. No desenv )1vimento de uma teologia de louvor e adoração passamos a limpo a musicalidade do povo, suas
expressões, ritmos, instrumentos, historicidade musical e to-
ques de tambor. Todos os cânticos de adoração foram feitos pelos próprios
konkombas, nada tendo sido traduzido, o que vimos como sendo ideal para a valorização do padrão cultural musical da etnia. Pensávamos que
havíamos "acertado" na interpretação de forma ampla. Havia, porém, toques (de tambor) específicos para cada ocasião na cultura tradicional, desde a nomeação até o funeral. Um deles foi identificado como sendo
um toque fetiche e sua prática foi excluída. Todos os konkombas conver-tidos criam que tal toque era invocatório a espíritos malignos e jamais deveria ser reproduzido por um crente. Este ponto foi positivo.
Um dos ritmos, porém, chamado kunadjun, é utilizado especial-mente durante os funerais. Ritmo forte, com compasso acentuado,
levantava o povo para uma dança marcada pela pisada ritmada na
terra enquanto os braços balançavam de forma aleatória. Entendemos no início, pela utilização limitada do kunadjun em ambientes espiritualistas, com ênfase na ancestralidade ou totêmicos, que se tratava de um ritmo especialmente direcionado para invocação espiritual ma-ligna, mesmo que não compreendêssemos sua personalização. Assim não o utilizamos no início do ajuntamento cristão, gerando uma natural
barreira à sua utilização após este primeiro momento. Anos depois, em um encontro da liderança cristã konkomba, ao discutirmos o assun-to mais uma vez, fomos perceber que o kunadjun era um ritmo fami-liar usado para identificar os clãs e demonstrar hospitalidade aos que chegavam. Por motivos circunstanciais era utilizado em cerimônias
animistas pela chegada de parentes que vinham de outras aldeias e por-tanto não sendo associado à invocação na cosmovisão tribal. Os crentes, portanto, decidiram utilizar o kunadjun e percebemos que, por um
1 94 e Pondo a contextualização em prática estudos de caso
grave erro de nossa observação, anos foram tolhidos na utilização deste ritmo que hoje serve para adorar a Deus, receber parentes e amigos que chegam de longe, e demonstrar especial alegria pelo ajuntamento na presença de Cristo.
3. Discipulado. Demora para o início do discipulado na segunda e terceira geração dos convertidos.
No início do trabalho evangelístico, na primeira e segunda gera-ção de convertidos, enfatizamos o discipulado individual e participativo. Como fruto desta época temos hoje os evangelistas com tempo inte-gral e boa parte da liderança amadurecida na Palavra. Porém, devido ao crescimento da igreja e com desejo de levarmos o evangelho para novos e distantes lugares, o discipulado da segunda, e mais ainda da terceira geração de convertidos, foi fortemente prejudicado. Os encon-tros eram mais raros e em várias circunstâncias passamos a realizar um discipulado mais coletivo. Havia muita alegria pelo crescimento da igreja e críamos que era um momento do derramar da graça de Deus que precisaria ser aproveitado para levar a Palavra distante. Porém vimos depois que, devido à ausência de um discipulado mais prolon-gado e profundo, experimentamos vários problemas advindos da ima-turidade dos crentes no tratar com os conflitos locais, e acabaram radicalizando ou sendo passivos perante os mesmos. No ano 2000, durante um encontro da liderança konkomba vimos claramente a dife-rença de maturidade espiritual entre as gerações de convertidos e vi-mos nosso erro em evangelizar mais do que discipular nestes períodos de crescimento.
Poderíamos citar ainda diversos cenários de erros missionários no processo do evangelismo e plantio de igrejas e alguns erros da lide-rança das igrejas após assumirem a direção ministerial de forma mais integral a partir de 2001. Pensando mais nos erros missionários, viria à nossa mente a demora para a inserção da ceia da Senhor nas igrejas plantadas, a ausência de uma teologia de guerra que pudesse guiar o povo para uma atitude bíblica segura perante os conflitos tribais com as etnias dagomba e gonja, e a falta de espaço linguístico para a etnia chokossi, que habita nos derredores konkombas, durante os cultos e no discipulado, fazendo com que aprendessem a Palavra em sua segun-da língua. Certamente muitos outros poderiam ser descritos.
Os konkombas e o processo de contextualização da mensagem_ em 195
Conclusão
Uma visão histórica pode ajudar-nos a compreender o desafio da comu-nicação a partir dos sentimentos do início. Em maio de 1995, em uma de nossas circulares escrevemos sobre nossas primeiras impressões:
Estamos aprendendo a língua, mas usá-la para expor o evangelho às
vezes parece-nos uma tarefa impossível. Ainda não estamos certos se
Nfur-Nyaan (`sopro') é um bom termo para Espírito Santo pois receamos
que possa ser também, raramente, usado para se referir aos ancestrais
mais distantes. A sede das emoções, ao contrário do ocidente, não é o
coração. Entre os Binallib com os quais vivemos é sem dúvida o estômago.
Outra particularidade é a postura de comunicação. É indelicado olhar para
a pessoa que está falando e confesso que ainda não nos acostumamos a
conversar com um grupo enquanto este olha para outros lados ou até
mesmo nos dá as costas. Mas estamos progredindo.
Em novembro do mesmo ano falamos mais uma vez sobre o
assunto: "Várias de nossas impressões linguísticas sobre terminologias para a apresentação do evangelho estavam erradas. Os espíritos aéticos
definem boa parte da cosmovisão do povo e precisaremos de bem mais tempo para podermos comunicar o evangelho bíblico com segu-
rança. O romantismo acabou". Em julho de 1996 falamos também sobre a dificuldade da nossa
adaptação:
Após um ano e meio morando em uma palhoça com o irmão do chefe da
aldeia de Koni finalmente estamos entrando em nossa própria casa. Como
é bom ter novamente privacidade. Especialmente porque, de acordo com a
cultura Konkomba, toda a família dorme reunida no pátio de fora das
palhoças. Em nosso caso éramos 21 pessoas. Um outro bom motivo de
alegria. Em nossa própria casa poderemos cozinhar nossa própria comida.
Já estamos fazendo uma listinha de compras que inclui arroz e feijão!
Morando com eles nestes últimos dezoito meses tivemos especialmente
dificuldade com a alimentação.
Em julho de 1999, após a tradução e distribuição de Mateus, Atos e Romanos, sentimos a força da Palavra na vida do povo convertido:
1 96 Pondo a contextualização em prática estudos de caso
Isto trouxe à minha mente a cena que presenciei na aldeia de Koni em
fevereiro passado. Ao passar por uma palhoça por volta das 19:00 horas vi
um ancião sentado próximo a uma fogueira tendo ao seu redor mais de
vinte pessoas da sua família. Ele lia atentamente a Palavra de Deus em
Mateus. Fui até às proximidades do rio Molan visitar alguns irmãos e
voltei por volta das 23:00 horas. Para minha surpresa eles continuavam
atentamente prestando atenção ao ancião que pausadamente lia a Pala-
vra em seu dialeto. Deus tem sido bondoso.
Ficamos contentes que a chegada do evangelho entre os konkombas-bimonkpeln possa ser utilizada como estudo de caso para
ajudar-nos a observar padrões de comunicação, processos de contex-
tualização, acertos e erros. Se houvesse, porém, algo a acrescentar neste momento eu poderia
destacar a importância da flexibilidade no estudo dos padrões de comu-nicação. Na inviabilidade de termos acesso a toda a informação cultural
antes da chegada na área nova, vamos aprendendo à medida que vive-mos e convivemos, ou mesmo trabalhamos e pregamos a Palavra. Isto
faz com que precisemos sempre revisitar os princípios, rever os ensinos,
repensar nas terminologias e conceitos, e sempre ouvir àquele que está
ao lado. Precisamos orar por um coração humilde que não venha a nos preterir da flexibilidade necessária a todo missionário quando o desafio
é a contextualização. Conclusões apressadas demais, inflexíveis demais, estáticas demais, solitárias demais, são nossas inimigas.
Também é importante nunca perder de vista o alvo, que é comu-
nicar a Cristo de maneira teologicamente respaldada e culturalmente
inteligível, de forma que ele não seja compreendido como um Deus estrangeiro, para os de longe, mas como Deus entre eles, e entre nós.
Festa do carneiro: um caso de contextualização
crítica de uma celebração muçulmana
A definição e a prática da contextualização tem sido alvo de muitos debates e discussões no seio da missiologia nos últimos anos. A con-textualização não é a panaceia que alguns sugerem, mas é certamen-te uma necessidade e mesmo uma obrigatoriedade da missão cristã. Como Bosch (2002:535) escreve: "A fé cristã jamais existe senão como 'traduzido.' para dentro de uma cultura". É nesse prisma que se empreende a busca de práticas culturais de um povo que possam servir de ponte para o evangelho uma vez contextualizadas. Creio que a festa do carneiro é uma dessas pontes no alcance do povo Fula da África Ocidental.
O povo Fula (também se pode chamar Fulani, Peul, Peule ou Fulbe) é um dos maiores povos não-alcançados da África Ocidental, e representa hoje cerca de 40 milhões de pessoas espalhadas por dezessete países (Almanaque Abril 2006 e Johnstone 2003). Tradicio-nalmente criador de gado bovino, é originário da região da antiga Núbia de onde migrou para o oeste em época indeterminada. Durante essa migração os fidas entraram em contacto com o islamismo e foram
1 98 e. Pondo a c-ontextualização em prática estudos de caso
se convertendo ao ponto de tornarem-se "missionários" do islão para a
África Ocidental. Chegaram ao planalto do Futa Djalom na Guiné no século VIII ou IX, de onde se espalharam por toda a África Oci-dental (Moreira 1948:11). No início viveram em harmonia com os povos locais e em alguns casos foram subjugados. Mais tarde, no sé-
culo XVIII, houve levantes fulas que originaram vários reinos como o famoso reino fula de Macina no Mali (Ki-Zerbo 1972:330).
Os fulas têm uma estrutura bastante hierarquizada, com reis
regionais e chefes locais, sendo basicamente uma cultura patriarcal, patrilocal e patrilinear. Até hoje, mesmo depois de boa parte desse povo ter se tornado sedentário, a vaca é ainda muito importante na
sua cultura. Bâ disse: "Um fula sem rebanho é um príncipe sem coroa" (2003:25). O gado é uma das principais moedas de troca em vários negócios. A riqueza de um homem sempre se mede pelo nú-
mero de vacas que tem e nos dotes de casamento o gado é elemento
insubstituível. Quase todos os fulas são muçulmanos, o que não significa uma
observância estrita das leis ou regras religiosas. Na região leste da Guiné-Bissau onde vivo e trabalho há doze anos, a prática islâmica dos fulas
é em geral bastante relaxada. A tradição é, no entanto, dominante e
onipresente. Ser fula é ser muçulmano e não se entende de outro modo. Logo, deixar de ser muçulmano é deixar de ser fula e esse é um
grande obstáculo e desafio à missão cristã. Como alcançá-los para Jesus sem alienar os convertidos de sua cultura e povo?
Outra faceta do islamismo fula é seu sincretismo com o ani-
mismo local. Apesar de professar o islão com a boca, o fula da região leste da Guiné-Bissau é animista no coração. O islamismo dos fulas permite assim uma grande liberdade de práticas tradicionais, e é
comum a consulta a feiticeiros muçulmanos (murus ou marabus) e a
feiticeiros animistas (djambacuz). Os remédios e amuletos produzi-
dos por ambos são praticamente iguais no seu aspecto, variando ape-nas no conteúdo. O feiticeiro animista coloca no amuleto pedaços de osso, sementes, terra, parte de penas ou pelos e outras substâncias. O feiticeiro muçulmano fabrica o mesmo amuleto, mas dentro coloca pedacinhos de papel com textos do Alcorão escritos em árabe. A pró-pria leitura do Alcorão é encarada muito mais como magia e
Festa do carneiro: um Caso de contextualização crítica de urna . ea 199
disseminador de poderes extraordinários do que como um livro de
estudo ou meditação, já que a grande maioria dos fulas não fala nem
compreende o árabe. O medo dos irãs (espíritos maus territoriais) é generalizado e a
crença em maldições, mau olhado e todo tipo de feitiços é profun-damente arraigada, não parecendo entrar em conflito com os princí-
pios islâmicos, pelo menos não para o povo em geral. Na hora do aperto e da necessidade é mais provável que recorram ao feiticeiro (até
de outra etnia) do que à mesquita. Esse tipo de sincretismo terá forte tendência de surgir também no meio do cristianismo africano se não
houver os cuidados devidos.
Envolvido no trabalho de plantar uma igreja entre os fulas da Guiné-Bissau, ficou evidente para mim a necessidade de uma apro-ximação às práticas locais. Se havia a pretensão de manter o fula
convertido ao cristianismo dentro de sua cultura, então a igreja pre-cisava ser identificada como parte dessa cultura. Para que a igreja
fosse identificada desse modo era imperioso que tomasse parte nas
principais cerimônias da vida fula. No ciclo da vida desse povo há uma série de ritos que são considerados essenciais. Não é possível ser considerado fula sem participar deles. São, por ordem de ocorrência
na vida do individuo: a cerimônia de nomeação da criança (Denabo), o rito de transição (Fanadu), o casamento, a festa do carneiro
(Tabaski), o jejum de Ramadã e os ritos fúnebres (Choro). Os con-
vertidos fulas da Igreja Batista de Bafatá no leste da Guiné Bissau, sob minha orientação como pastor local, realizaram então um tra-balho de contextualização destes ritos.
Foi escolhida como modelo a contextualização crítica proposta pelo professor Paul Hiebert. Nesse modelo, procede-se da seguinte forma: primeiro, analisam-se os costumes locais com todas as suas
implicações e significados; segundo, estuda-se os ensinos bíblicos a respeito das práticas estudadas; terceiro, procede-se a uma avaliação dos costumes locais à luz dos ensinos bíblicos; por fim, cria-se uma nova prática cristã contextualizada (Hiebert 1985:192). A liderança
fula da Igreja Batista de Bafatá trabalhou com todos os principais
ritos locais tendo como base este modelo. O rito que se mostrou mais propício à evangelização foi a festa do carneiro ou Tabaski.
200 e` Pondo a contextualtzação em prática estudos de caso
A festa do carneiro (Tabaski)
Entre os fulas da região leste da Guiné-Bissau a maior festa religiosa
do ano é Id Al Adha, a festa do carneiro, conhecida também como
Tabaski.Trata-se de uma das grandes cerimônias do calendário muçul-
mano, respeitada no mundo inteiro por toda comunidade islâmica.
A festa acontece no terceiro dia da Hajj, peregrinação anual à cidade santa de Meca, que é o décimo dia do último mês do calendá-
rio islâmico. É um dos momentos altos da peregrinação. Todos os
muçulmanos que não estão na peregrinação, onde quer que se encon-trem, devem comemorar festivamente esta data maior de sua religião.
A festa respeita o calendário muçulmano, que segue o mês lunar, e acontece em diferentes ocasiões no calendário ocidental. A comemo-ração se realiza setenta dias depois do fim do jejum do Ramadam.
O Tabaski, bem como toda a peregrinação muçulmana, são ante-riores a Mohamed. Antes da fundação do islamismo, já existia a obri-
gação de todos os árabes da península cumprirem uma vez no ano a peregrinação a Meca. Dessa peregrinação pré-islâmica constavam já as circunvoluções em torno da Caaba, a vigília noturna na planície em volta do monte Arafat, o apedrejamento dos três pilares sagrados de Mina e o sacrifício animal (Armstrong 2002:74-75). Entretanto, o fundador do islão soube manter essas formas numa verdadeira lição
de contextualização. Conforme nota de Armstrong (2002:283) "Maomé estava determinado a fazer a nova religião deitar raízes nas
tradições sagradas árabes... comandou os antigos rituais pagãos, tão caros aos árabes, dando-lhes novo significado ao mesmo tempo que garantia uma essencial e inventiva continuidade com o passado".
Nos dias atuais, a festa do carneiro é totalmente islamizada e se
baseia no sacrifício feito por Abraão no dia em que Deus lhe poupou o filho, segundo o relato bíblico de Gênesis 22, que é corroborado pelo
Alcorão (Sura 37, verso 107). A maioria dos muçulmanos que entre-
vistei relacionou o sacrifício do Tabaski com a experiência de Abraão.
O rito tradicional
Entre os fulas, o clima de festa começa a ficar evidente vários dias antes da celebração, quando se inicia uma corrida à compra dos carneiros.
Festa (10 carneiro um caso (Ir coinexttializa0o crítica cie tuna e 2O 1
Aqueles que os vendem fazem grande lucro nesses dias, e à medida
em que a festa se aproxima, o preço dos animais sobe, podendo atin-
gir o triplo do habitual nas vésperas do Tabaski. O carneiro para o sacrifício deve ser obrigatoriamente macho e de
preferência branco, com chifres bem desenvolvidos, pois se crê que o
animal sacrificado por Abraão seria assim. As famílias mais pobres ou menores poderão se contentar com um cabrito. Já as familias ricas e
numerosas poderão sacrificar, além do carneiro, uma ou mais vacas,
para um banquete mais farto com todos os convidados. Nos dias que antecedem a festa é obrigatória a compra de roupas
novas, muitas vezes a única ocasião no ano em que as mulheres e as
crianças as ganharão. Os trajes que se deve comprar ou confeccionar são trajes tradicionais de influência árabe, já que no dia da festa se espera que todos vistam roupas próprias da religião. Assim, os ho-
mens preferirão o Komplê branco com sua túnica longa e bordada
sobre calças largas. O branco é preferido por ser a cor dos peregrinos.
Já as mulheres usarão vestidos largos e compridos, ricamente borda-
dos e de cores vivas. Na véspera do Tabaski as mesquitas se enchem para as orações
das cinco horas da tarde, e por todo lado se ouve o balido dos carnei-
ros. Estes são orgulhosamente amarrados na frente das casas para mostrar que a família é cumpridora dos rituais e abastada o suficiente
para comprar e consumir um carneiro. A expectativa é enorme e o
regozijo pela festa enche o ar. O dia da festa começa com a oração matutina realizada às cinco
horas da manhã nas várias mesquitas da região. Nesse dia a frequência
ao lugar de oração é significativamente maior que nos dias comuns. Nas casas, a correria é enorme com todos os preparativos em anda-mento para a grande festa. Por volta das dez horas da manhã se dá a oração comunitária. Todos os homens e garotos já circuncidados diri-gem-se à mesquita trajados de branco, levando suas esteiras ou tape-tes de oração. Como a afluência é grande e as mesquitas não comportam
a multidão, a oração é geralmente realizada no espaço em frente a elas.
Todos os presentes se colocam em fileiras ordenadas, a um passo de
distância entre cada fila, para permitir as prostrações exigidas pela prece tradicional. O chefe da mesquita dirige então um breve discurso
202 Pondo a contextualização em prática estudos de caso
ou sermão sobre o significado do dia e da festa. Seguem-se as orações
que têm nesse dia um caráter expiatório, e nota-se nitidamente que
existe um valor propiciatório atribuído ao sacrifício do carneiro. Após as orações todos retornam rapidamente às suas casas e os
homens e rapazes se reúnem à volta do carneiro para o sacrifício. Por regra, o homem mais velho da família é o mais indicado para fazer o sacrifício. Nesse caso, o mais velho da família representa e faz lembrar Abraão, que era de idade avançada quando do episódio do carneiro.
Antes do sacrifício, o animal é virado para o leste em direção a Meca e faz-se uma oração que pode ser a Shabada (declaração de fé muçul-mana). Logo se repete a fórmula Bismilah (em nome de Deus) duas ou três vezes e o animal é degolado. Nenhum muçulmano praticante comerá carne de um animal que não foi sacrificado desse modo. O carneiro é
então esfolado e parte de sua carne será doada, conforme a tradição, às
famílias que não tenham condições de adquirir seus próprios carneiros. Essa é uma maneira de assegurar que todos participem da festa.
Vivendo todos estes anos entre os fulas muçulmanos, tenho pro-curado explorar o significado deste sacrifício para os participantes. Apesar de boa parte dos celebrantes referirem-se ao episódio de Abraão como motivo da festa, não parece haver muita convicção sobre sua verdadeira razão ou significado. Tudo não passaria de simples obriga-ção religiosa ou cumprimento de um costume ancestral. Apenas alguns
líderes religiosos são capazes de ir um pouco mais fundo no signifi-cado espiritual desta cerimônia.
É evidente que existe mais no sacrifício do Tabaski do que uma simples festa comemorativa. Charles Marsh (1993:29) declara que:
É interessante notar que no islamismo também existe a ideia de sacrifício
(dahuja) assim como a doutrina do homem redimido (fada) por um ani-
mal... Em alguns países o derramamento de sangue é visto como uma espécie de expiação pelos pecados ou como poder mágico protegendo
contra satanás, demónios ou poderes invisíveis.
Samuel Zwemer (1907:114) parecia intrigado por este signifi-cado evidente das celebrações quando escreveu que "é um fato notável
e enigmático que enquanto Mohamed professou abrogar o ritual
Festa cio carneiro• um caso (ir contextuairzuy-io critica de urna .. ■203
judaico e ignorar a doutrina da expiação, chegando a negar o fato da
crucificação do Salvador, mesmo assim fez do dia do sacrifício o
festival central de sua religião". Fica evidente que a festa, e sobre tudo o sacrifício, trazem o sen-
tido de expiação e com isto vem associada a noção de pecado e de morte pelo pecado. Podemos ver inclusive princípios da doutrina cristã,
mas tirar tais conclusões seria ir longe demais. Na verdade, é provável que Mohamed tenha aceitado esta festa simplesmente por ser parte da tradição árabe, com seu caráter aglutinador e emblemático, ligando os muçulmanos a Abraão.
No tocante aos fulas, é notável descobrir que a noção de expiação
existe de forma bem definida aliada à ideia de sacrifício propiciatório. Hampátê Bâ (1994) descreve-o num dos mais tradicionais contos
fulas, o Njeddo Dewal, a mãe das Calamidades. O conto menciona um carneiro especial que deveria ser sacrificado por um bem maior.
No início da estória, o herói está procurando respostas para todas as agruras da vida dos fulas. Descobre que todo o mal advinha do pecado do povo. Busca então um sacrifício propiciatório que pudesse afastar
o mal e lhe é revelada a existência de um carneiro mágico que será o sacrificio certo (Bâ 1994:54). No momento do sacrifício, porém, o herói hesita e diante dessa hesitação o próprio carneiro lhe diz: "Não te apiedes de minha morte porque ela salvará muitas vidas" (Bâ 1994:130).
O animal é então sacrificado, permitindo, entre outras coisas, o nas-
cimento de uma criança-messias que se revelará o salvador do povo e eliminará a bruxa causadora de todos os males.
Este significado profundo do sacrifício do carneiro mantém-se presente na mente dos fulas, de modo subliminar, e é no Tabaski que mais se manifesta. No entanto, o muçulmano típico tem pouco enten-dimento ou preocupação com esses significados profundos e atribui à
morte do animal um valor mágico e sobrenatural mais do que expiatório. Estão acostumados a ver tantos sacrifícios nos ritos animistas que
perderam muito de suas próprias tradições. Têm mais presente a dou-trina do julgamento das obras no juízo final, do que a noção de pro-
piciação pelos pecados. Mas a existência de tais significados na religião
muçulmana e na cultura fula devem ser preservadas na mente do
obreiro cristão pois será fundamental para a contextualização do rito.
204 Pondo a contextualização em prática: estudos de caso
Após as orações e o sacrifício do carneiro, tudo no Tabaski é festa.
As mulheres se ocuparão na preparação da refeição enquanto os ho-mens bebem chá (ao estilo árabe), ouvem música ou conversam sobre política e futebol. Neste dia não há qualquer tipo de trabalho e as
famílias e amigos estão reunidos em clima alegre. O Tabaski tem assim
uma função social bastante positiva. É uma festa comunitária em que
todos fazem o mesmo, de forma ritual, promovendo uma sensação de unidade que é central para o islamismo. Essa função era essencial para Mohamed quando adotou a festa, pois ela servia perfeitamente às suas intenções de ser reconhecido como unificador dos árabes. Hoje,
o fato de todos os muçulmanos do mundo estarem unidos, em sincronia, em atos sagrados e profanos dá ao povo a noção de comuni-
dade que tanto tem servido ao crescimento do islão.
O Tabaski é também uma ocasião para se mostrar boa vontade e
presentear os mais carentes bem como os amigos e parentes. Se há algum momento em que se vive no mundo islâmico algo parecido com o que
chamamos no ocidente de "espírito natalino", é esta a ocasião. Para a maioria dos pobres será a melhor refeição do ano. Os países árabes cos-tumam mandar grandes quantias em dinheiro para os países da Africa
Sub-saariana, a fim de que as mesquitas adquiram animais cuja carne será distribuida nesse dia de modo que ninguém fique sem festejar.
Outro aspecto importante da função social desta festa é o de reconciliação e paz. O mestre muçulmano Mohamed Ahmadou Abou
Fares (2001:98-99) escreve sobre isso:
O detalhe marcante, e mais apropriado à festa do sacrifício é que deve ser
vivido em total paz entre os muçulmanos... IdAlAdha é a oportunidade de
enterrar o ódio e substitui-lo por amor, pela amizade, pelo bem querer. Não estará vivendo a sublimidade da data o muçulmano que deixar em seu coração qualquer sentimento de aversão ou de hostilidade para com um
irmão muçulmano... é só pensar que o profeta Abraão nesse dia se dispôs
a sacrificar o próprio filho para obedecer a Deus! E nós? Será que vamos
passar o dia Id AI Adha sem abdicar de nosso orgulho e sem derrotar o
nosso egoísmo?
O dia da festa do carneiro deve, portanto, ser um dia de paz e
entendimento entre todos os muçulmanos. O ambiente festivo facilita
Festa do carneiro um caso de contextualrzacno crítico de 0010 118 205
tal fraternidade. Para os mais cumpridores a celebração terminará nas
orações da tarde na mesquita, mas o número de participantes será bem menor nesta ocasião pois a maioria se manterá nas casas aprovei-tando o feriado e a fartura.
Referências bíblicas
O texto bíblico mais pertinente à festa do carneiro é o de Gênesis 22
onde se conta exatamente o episódio que serve de base à festa. Nesse relato, Deus prova a fidelidade de Abraão lhe ordenando o sacrifício
de seu filho Isaque, o herdeiro da aliança com o Senhor. Abraão obe-dece e está a ponto de matar o rapaz quando o Senhor o interrompe e
oferece um carneiro para tomar o lugar de Isaque. O texto estabelece
de forma inequívoca a ideia do sacrifício animal no lugar do homem, que será uma das bases da religião judaica e da velha aliança.
Os muçulmanos fazem a festa do carneiro ou do sacrificio basea-
dos nesta passagem, porém devemos lembrar que esta história já fazia parte da tradição judaico-cristã antes mesmo de ser reinvindicada por eles. A grande diferença da versão islâmica do episódio é que os muçul-
manos creem ter sido Ismael o filho que deveria ser oferecido em sacrifício. Essa ideia evidentemente advém do fato de os árabes serem
descendentes de Ismael. Na sua versão do acontecimento a relação com eles é muito mais forte.
O texto do Corão (37:102 a 107) porém, não especifica o nome do filho de Abraão, citando apenas "o filho". Uma análise mais cuida-
dosa do texto inclusive, parece pender para Isaque já que no verso 100 da sura 37 Abraão pede: "agracia-me Senhor com um filho que
seja um dos justos". No verso 112, logo após o episódio do carneiro
diz que "anunciamos-lhe que Isaque seria um Profeta entre os jus-tos". A interpretação islâmica de que o filho em causa seria Ismael é popular, posterior a Mohamed e falha pela base, já que o texto de
Gênesis foi escrito muitos séculos antes do Corão e é bem mais digno de crédito no que toca ao sucedido naquele dia.
As referências a sacrifícios de carneiros não param em Gênesis, mas se estendem por toda a Bíblia. Em Êxodo 12, Deus estabelece a
festa da páscoa na qual o sangue de um carneiro é o sinal da aliança
206 ■g Pondo a contextualização em prática estudos de caso
com o povo de Israel e a marca principal que dá proteção diante da chegada do anjo da morte. Novamente um carneiro morre no lugar do homem, no caso, dos primogênitos de Israel.
Essa mesma ideia vai então ser expandida na religião formal outorgada a Moisés como lei para o povo. No livro de Levítico, nos capítulos 1 a 7, encontramos o sistema sacrificial cujo paradigma prin-cipal era o holocausto pelo pecado. O pecador trazia o animal para o sacrifício e, reconhecendo seu pecado e sua culpa, colocava a mão sobre a cabeça do mesmo transferindo simbólicamente o seu pecado para ele (Lv 1.4). O carneiro era então sacrificado lembrando ao homem que não havia perdão sem derramamento de sangue e que o salário do pecado era a morte.
Todo o culto judeu era baseado nesses sacrifícios que aconteciam no templo, de forma ritual, duas vezes ao dia. Também poderiam ser realizados sempre que necessário, conforme a procura do povo. O sangue desses animais não podia trazer salvação, mas era uma figura tipológica do sacrifício maior que Jesus um dia faria. Traziam ao sacrificante um senso de arrependimento e perdão que permitia a comunhão com Deus, mas eram claramente insuficientes para a sal-vação até porque precisavam ser repetidos com frequência.
No Novo Testamento então, temos o clímax do sistema sacrificial. O primeiro a entendê-lo foi João Batista que vê em Jesus o "Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo" ( Jo 1.29). O Mestre, plena-mente consciente de sua missão e da necessidade de sua morte vicária, estabelece a conexão com a antiga aliança através de uma nova cerimónia — a ceia do Senhor. Nela, ele claramente se apresenta como o carneiro cujo sangue e corpo são dados em sacrifício para a salvação de muitos (Mt 26:27-28). Na sua crucificação, que acon-tece no momento em que o carneiro pascal era degolado, Jesus cum-pre o plano salvífico de Deus morrendo pelos pecados da humanidade e assim trazendo a salvação pela graça de Deus ao alcance de todos os pecadores.
No contexto da igreja cristã, a partir da morte de Jesus, o sacri-fício animal em expiação pelos pecados não tem mais sentido. E isso que o autor da carta aos Hebreus explica tão bem em trechos como o capítulo 9, versos 11 a 28. O texto é decisivo ao declarar que Jesus,
Festa do carneiro um caso de contextualização crítica de uma 0207
porém, "tendo oferecido um único sacrifício pelos pecados, assentou-se
para sempre à direita de Deus... onde há perdão para essas coisas, não há mais oferta pelo pecado" (Hb 10.12,18). Sendo assim, os cristãos
não sacrificam carneiros em prol de sua salvação pessoal. Conclui-se dos textos citados que o sacrifício do carneiro era um
símbolo claro apontando para a vinda e morte de Jesus. Hoje, o sacri-
fício de animais não tem mais qualquer valor expiatório, mas pode ter
a sua função simbólica de apontar para a morte de Jesus. Aquele que participa de um sacrifício animal terá uma ideia mais clara da conde-nação do pecado e entenderá mais facilmente a noção de expiação que
levou à crucificação de Jesus. A partir dessas considerações será então legítimo que uma igreja
cristã, formada por ex-muçulmanos, participe da festa do Tabaski e
faça inclusive o sacrifício. Deve ficar claro que este não tem valor salvífico. A cerimônia deve ser uma oportunidade de mostrar que o carneiro, já desde os dias de Abraão, apontava para a pessoa de Jesus
Cristo, o único salvador mandado por Deus. Baseado nesse entendi-mento se pode passar à contextualização da festa do carneiro.
O rito contextualizado
Na literatura produzida por missiólogos que trabalham entre os po-vos muçulmanos, parece haver consenso sobre a propriedade e felici-dade da contextualização de festas islâmicas como o Tabaski. Marsh (1993:30) entende que "esta festa é uma excelente oportunidade para expor o evangelho relatando a história de Gênesis 22". Greg
Livingstone (1993:185) entende que esta celebração é particular-mente propícia à contextualização e escreve que:
Crentes que vêm do Islão devem ser encorajados a transformar os feriados muçulmanos em recordação de eventos bíblicos como modo de celebração e solenidades paralelas às festas locais para providenciar para suas ncessidades, identificar-se com seus vizinhos muçulmanos e ter a oportu-nidade de ensinar verdades bíblicas... esses eventos bíblicos podem ser celebrados especialmente se são paralelos ou podem ser integrados a algum festival muçulmano como o Id Al Adha.
208 Pondo a contextualização em prática estudos de caso
Phil Pharshall (1990:251) defende "que as festas muçulmanas
são de natureza religiosa, mas usualmente não demoníacas ou inju-riosas aos cristãos e mais do que outra coisa uma simples celebração social". Logo, podem e devem ser contextualizadas. Já Don McCurry
(2000:55) coloca as adaptações destes festivais religiosos muçulma-nos na categoria de "formas facilitadoras" à evangelização.
Outro motivo forte para a contextualização desta festa é que, como nota muito bem Larry Lenning (1980:125):
Os muçulmanos veem os rituais como um elemento básico da expressão
religiosa. É através de rituais que o africano compreende a verdade de sua
fé. O ritual se torna uma ligação com o mundo espiritual... o evangelho
deve ser dramatizado em rituais vivos que comuniquem o significado espi-
ritual profundo e o poder de Deus para a salvação.
Será dificil imaginar uma festa ou ritual que dramatize e conte melhor a mensagem do evangelho que a festa do carneiro.
Na verdade, seria quase impossível para um novo convertido do
islão não participar, em certa medida, desta celebração já que é extre-mamente orientada à família e tem uma função social tão vasta.
Evitá-la ou rejeitá-la criaria maior ofensa, quebrando pontes natu-
rais para a comunidade e despertando antipatias desnecessárias. Deixar de participar deste festival privaria as famílias cristãs, no con-
texto muçulmano, da maior celebração anual. Seria o equivalente a uma familia que não participasse do Natal no meio de uma comu-
nidade cristã evangélica. Tendo em conta o que foi dito a propósito das referências bíblicas
sobre esta festa e ponderando suas implicações sociais, se propõe contextualizar o festival e usar desse modo a festa do carneiro para
evangelizar os parentes e amigos. E o que tem sido feito nos últimos
sete anos na Igreja Batista de Bafatá. O rito contextualizado foi mantido na data própria segundo o
calendário muçulmano. Sendo assim, a igreja cristã faz a festa no mesmo dia e ocasião dos muçulmanos. Fazê-la em outra data não serviria ao interesse da contextualização e criaria debates desnecessá-
rios sobre a data certa da festa.
Festa do carneiro. um caso de contextualização crítica de uma :209
Todo o clima de festa é mantido com o uso de roupas novas e uso da música de louvor para alegrar o ambiente. Presentes são dados aos amigos e parentes conforme as possibilidades de cada um. Um ou mais carneiros são adquiridos pela igreja para a festa de acordo com o número de participantes. São procurados carneiros que estejam de acordo com o considerado ideal para a ocasião. A função social da festa é preservada dando à mesma uma orientação comunitária no sentido em que os membros da igreja participam como um todo, em família. A presença de visitantes é considerada natural e encorajada num clima de alegria e descontração.
O testemunho de união dos crentes é fundamental no contexto islâmico e o celebrar desta festa em comunidade tem efeito muito positivo sobre as famílias e vizinhos. Este testemunho de união pode inclusive representar mais para alguns visitantes do que a contex-tualização, pois, como testemunha Muller (2002:82): "Descobri que na maioria dos lugares em que grandes números de muçulmanos se voltam para Cristo a atração comum não foi a contextualização mas a presença da comunidade".
A festa é realizada de preferência na casa de um dos crentes. Quando o número de participantes se torna demasiado para uma casa, se usam as instalações da igreja. Notei que o fato de a festa ser feita no terreno do templo não pareceu inibir a participação de visitantes e serve para abrir a igreja para a comunidade em que está inserida.
Na ocasião das orações muçulmanas a igreja está em oração, recordando o acontecimento histórico que deu origem à festa. Na hora do sacrifício, o crente mais idoso presente é convidado para degolar o carneiro representando assim a figura de Abraão. Os homens e rapa-zes da igreja se juntam à volta do animal em atitude de oração. Uma breve explicação sobre o sacrifício é feita enfatizando que, para os cristãos, ele não tem qualquer valor salvífico. Uma oração é feita então para louvar a Deus pelo sacrifício perfeito de Jesus por nós. A oração inclui um agradecimento pelo animal presente que é alimento espe-cial para um dia de festa.
A divisão de atividades tradicionais é respeitada. As mulheres e moças da igreja preparam a refeição, enquanto os homens são respon-sáveis por degolar e esfolar o animal e levar carne para ofertar a alguma
2 10 e" Pondo a contextualização em prática: estudos de caso
família mais carente que a igreja deseja ajudar nesse dia. Na hora da refeição, também se respeitam os costumes da terra com as respectivas divisões de sexo e idade próprias da cultura fula. Assim, os homens comem num grupo separadamente, as mulheres em seu grupo, os jovens e as crianças em seus grupos.
A celebração culmina com um culto marcado pela adoração e voltado para o texto bíblico referente à ocasião. Podem ser usados meios para visualizar o evento com a utilização de filmes, imagens ou dramatização. Os personagens da história recebem interpretação evangelística. Assim, Isaque é o pecador condenado, Abraão o porta-dor da lei inexorável que condena o pecador, o anjo representa o men-sageiro das boas novas e o carneiro é o sacrifício expiatório que aponta para Jesus. É feita uma aplicação direta e pessoal do acontecimento para as vidas de todos os presentes de modo a dar à festa o seu mais profundo significado espiritual.
A celebração termina naturalmente em clima de gratidão e lou-vor havendo oportunidade para algum visitante conversar mais detalhadamente sobre seu significado e até mesmo orar reconhecendo Jesus como seu Salvador.
A experiência da igreja em Bafatá nestes nove anos provou que, no contexto do islamismo popular do povo fula da região leste da Guiné-Bissau, a contextualização ora descrita da festa do carneiro é uma das melhores formas de comunicar o evangelho de um modo
vivo e relevante.
Conclusão
Antes de mais nada, é preciso referir que a contextualização acima sugerida diz respeito à cultura fula da região leste da Guiné-Bissau conforme é vivida hoje na cidade de Bafatá. Isso porque a contextualização precisa respeitar sempre o local e o tempo. Em ou-tras realidades a prática será diferente. Daqui a cinco ou dez anos a prática mesmo em Bafatá poderá ser diferente. Tal é a dinâmica da contextualização. Na busca dessa contextualização, nenhuma genera-lização deve ser feita sob pena de se manter o evangelho estrangeiro e irrelevante. Segundo Gilliland (2000:332):
Festa do carneiro: um caso de contextualização crítica de urna 021 1
Contextualização não é possível se forem feitas generalizações sobre o islão e os povos muçulmanos, como se os termos e símbolos da fé muçul-mana fossem igualmente conhecidos e universalmente partilhados por todos os muçulmanos. O contexto particular, a textura e características da prática islâmica deste lugar e não de outro deve prevalecer.
Dito isto, gostaríamos de referir algumas vantagens que esta contextualização tem mostrado. Em primeiro lugar, há a familiarida-de. É muito mais fácil transmitir a mensagem da cruz de uma forma que pareça familiar. Muitas dificuldades da pregação cristã se encon-tram no fato de o cerne de sua mensagem ser tão estranho à maioria das culturas. Nas culturas muçulmanas em que não há a noção da graça e onde o Corão afirma radicalmente a impossibilidade de uma alma levar a carga de outra (Sura 17:15) a mensagem do evangelho é estranha e muitas vezes incompreensível. Transmiti-la através de uma festa tão tradicional como o Tabaski torna sua compreensão mais fácil e evita as barreiras habituais. O muçulmano conhece a festa, e está familiarizado com o sacrifício substitutivo que o rito recorda. Se a igreja usar esta celebração para ajudá-la a ir mais adiante no entendi-mento do significado desse sacrifício é possível que o muçulmano possa chegar por si só à visão da salvação que o evangelho anuncia. Verifiquei isso na prática, de formas muito dramáticas e emocionan-tes. Numa das ocasiões em que a igreja em Bafatá celebrava o Tabaski, um ex-muçulmano ficou tão entusiasmado com a mensagem, enten-dendo a realidade da expiação de Jesus, que rompeu em adoração interrompendo os trabalhos com seu louvor. A familiaridade da for-ma de transmissão foi fundamental nesta ocasião.
Em segundo lugar, esta contextualização tem a enorme vantagem da visualização. O cristianismo ocidental do missionário enfatiza muito mais o auditivo que o visual. Bosch (2002:296) nota que isso aconte-ceu em decorrência da ênfase dada à Bíblia na reforma protestante. A verdade é que a igreja no ocidente se concentra apenas no auditivo, na pregação, no anúncio e o missionário dificilmente consegue fugir dessa
tendência. Mas as culturas orientais precisam do visual. Na África essa necessidade é ainda maior, pois os ritos africanos "dramatizam as crenças do povo" (Hiebert e Meneses 1995:213). Sendo assim, a igreja precisa
2 1 2 em Pondo a contextualização em prática estudos de caso
buscar formas de louvar, ensinar e transmitir a mensagem que privilegi-em o visual. Como Hayward (1995:151) entende, "uma adoração contextualizada pode ter que sair dos limites do templo construído e passar mais tempo em cânticos e danças do que em pregação, incorpo-rando novas liturgias ou rituais que falam às necessidades de um povo".
Na contextualização do Tabaski aqui sugerida, a igreja usa uma celebração conhecida e um sacrifício real para falar da cruz. O animal é realmente morto, o sangue corre, a vida é derramada. A mensagem é forte e tocante. E visual, palpável e até comível. Fica mais fortemente guardada na memória. Atinge o coração do homem africano.
Em terceiro lugar, esta forma de contextualização permite uma integração da igreja na cultura local. No início deste trabalho deixá-vamos a pergunta: Como alcançar os fulas para Jesus sem alienar os convertidos de sua cultura? A resposta que temos encontrado está na contextualização de seus ritos. A igreja precisa ser vista como parte da cultura. Precisa ser vista como cristã, mas também como fula. Quando a igreja participa das festas locais e se envolve em ritos ancestrais e importantes, a restante comunidade repara e avança no sentido de integrar a igreja em seu meio. Os cristãos não são seres estranhos que ficam de fora da celebração, mas que a fazem com mais alegria ainda, já que encontram nela um significado mais profundo. Todos perce-bem que estes fulas cristãos não deixaram de participar das festas locais. Isso ajuda a integração da igreja permitindo que seja reconhe-cida como parte da sociedade.
Em quarto lugar, esta contextualização auxilia a valorização dos líderes cristãos em sua sociedade. Como referimos anteriormente, o fula entende o islamismo como parte da sua própria identidade. Ser fula é ser muçulmano. O fula que se converte perde assim parte de sua identidade e muitas vezes entra em profunda crise existencial por isso. Tenho visto a luta interna de muçulmanos convertidos que ten-taram se integrar em igrejas cuja maioria dos membros vinha de cul-turas animistas. A experiência foi desastrosa na medida em que o ex-muçulmano se escandalizava com as práticas da igreja e era rejeitado pelo seu povo por fazer parte de tal igreja.
Numa igreja fula que busque a contextualização dos ritos de seu povo, o crente fula pode continuar sendo fula. Mais ainda, ele pode
Festa do carneiro: um caso de contextualização crítica de uma 0213
receber honra por dirigir os ritos de seu povo. A cultura fula é marcada pelo medo da vergonha. A conversão a Cristo é vista como vergonhosa para a família do crente. Mas no momento em que sua igreja celebra as festas tradicionais e esse convertido é visto dirigindo esses ritos ancestrais a honra pode ser restabelecida. A comunidade reconhece que o crente não esqueceu e nem abandonou suas raízes. Assisti à valorização de membros da igreja cristã que oficiaram as cerimônias contextualizadas. Homens que sentiram o antagonismo de seus conterrâneos passaram a ser conselheiros na comunidade. O cristia-nismo não foi fator de vergonha, mas de honra. O crente foi exaltado em sua própria cultura.
Concluímos então pelas vantagens da contextualização. Deve-mos reconhecer que ela é um processo e, como todo processo que requer mudança, leva tempo e precisa ser encarado com paciência. A conversão é em geral uma longa jornada para os muçulmanos (Larson 1996:191), assim também a adoção de ritos contextualizados será um caminho mais ou menos longo conforme o rito em causa e a faci-lidade ou dificuldade da igreja e da comunidade de o aceitarem plena-mente. No entanto, o cuidado de buscar tal contextualização permitirá à igreja fula tornar-se muito mais relevante e integrada em sua socie-dade. Será uma igreja cristã fula para os fulas, com ritos e cerimônias que eles entenderão e respeitarão.
Não se deve ver, então, o rito contextualizado proposto neste tra-balho como uma espécie de fórmula para alcançar facilmente o povo fula, pois assim se perderá de vista os objetivos mais profundos. O que pretendemos é a glória de Deus, o alcance de um povo para Jesus e o estabelecimento de uma igreja viva entre e para este povo. É ver-dade o que Nida (1992:99) escreve quando diz que:
é falso supor que os resultados da obra missionária podem ser facilmente preditos mediante a aplicação de fórmulas de receitas, pois a obra do Espírito Santo não é controlada pela aplicação de fórmulas definidas de princípios missionários científicos. Contudo, um exame cuidadoso dos traba-
lhos missionários bem sucedidos revela que um dos segredos do sucesso está na identificação com o povo e na comunicação de acordo com os padrões da cultura onde é realizado.
2 14 Pondo a contextualização em prática- estudos de caso
Não devemos por isso permitir desvios nesse caminho. O missio-nário precisa encarnar a vida de Jesus em meio a seu povo alvo e a igreja precisa se aproximar da cultura local por meio de uma contex-tualização crítica, séria e coerente.
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Contextualização dos crentes yanomamis da Venezuela'
la 1 li I ( '1 1 It )1
Michael Dawson nasceu e foi criado numa aldeia yanomami na Venezuela, filho dos primeiros missionários a chegarem lá. Esta história se encontra no livro de Mark Andrew Ritchie, Spirit of the Rainforest (Espírito da Floresta Tropical, 1989). Ritchie escreve o relato de um pajé poderoso (Jungleman) que faz a jornada da mais escura existência de traição, morte, medo, estupro, possessão e constante guerra, para a luz do evangelho em Jesus Cristo. Joe Dawson e sua família saíram dos Estados Unidos e foram morar na selva da Venezuela, em Honey Village, a aldeia de Jungleman. A presença do evangelho transformou o povo, mas não antes de enfrentar dificuldades, inclusive impostas por antropólogos e governantes.
A pedido da APMB, Michael escreveu sobre uma parte da transfor-mação que era resultado de uma contextualização na qual as pessoas que formaram a primeira igreja cristã alí foram os principais participantes. O próprio Michael, agora missionário na mesma região, ficou surpreso com as decisões corajosas tomadas pelos cristãos da aldeia e de outras aldeias atingi-das pela graça de Deus e pelo ensino da Palavra de Deus. O texto seguinte é a história das mudanças de ritos de funerais, foco de suprema importância para a tribo. Com a valiosa colaboração de Carlos Alberto Carvalho, da Missão Novas Tribos do Brasil, que apresentou este caso na consulta sobre
' Traduzido por Barbara Helen Burns.
2 18 e. Pondo a contextualização em prática: estudos de caso
contextualização da APMB, temos uma ampliação dos significados dos ritos. Assim podemos compreender com mais facilidade a profundidade da mudança e o preço pago para fazê-la. Os significados são incluídos no índice no final do capítulo.
Contextualização: estudo de caso entre os yanomami da Venezuela
A morte! Este é o final absoluto para os yanomami. Uma vez que alguém morra, é como se nunca tivesse existido. Tudo que a pessoa possuiu é destruído a fim de que nada reste para despertar a memória dela. Muitas vezes, até sua casa ou sua parte do shabono (casa comu-nitária) é queimada, evitando a possibilidade de, olhando para a casa ou aquela parte do teto do shabono, alguém se lembre de que a pessoa morta trabalhou ali. As hortas são abandonadas, a lavoura arrancada. As casinhas de caça que a pessoa porventura tenha usado também são queimadas. Mesmo árvores frutíferas favoritas da pessoa são derruba-das. Tudo o que lembra o morto é desfeito. Esta é a razão porque não dão nome para as crianças até que fiquem mais velhas. As chances de morte infantil são grandes e não querem ter mais um nome que pre-cisem esquecer.
Testemunhei a primeira morte entre os yanomami por volta de 1962, quando era criança. O avô de Yacuwa morreu. O seu tio, Bautista, correu para nossa casa, angustiado.
— Meu pai está passando muito mal — ele suspirou. —Venha, logo!
Corremos para a casinha de folhas. Eu não gostava de medicina, mas eu não podia ficar de longe, pois o velho doente era o avô do meu melhor amigo. Yacuwã estava lá, um pouco à parte, chorando. As mulheres da aldeia estavam chorando alto e gritando. Enquanto chora-vam, passavam as lágrimas pelo rosto, criando uma crosta preta, sinal de luto. Eu fiquei ao lado de Yacuwa enquanto ele chorava, mas lágrimas também desciam pelo meu próprio rosto. Começei a chorar com ele. A tristeza na casinha era sufocante.
Meu pai se ajoelhou na terra ao lado da rede do velho, tecida de trepadeira. Tinha que quase gritar por causa da choradeira.
Contextualização dos crentes yanomamis da Venezuela 02 19
— Pai — ele gritou. O velho se esforçou para abrir os olhos. — Pode me ouvir, pai? O velho acenou com a cabeça. — Pai, quando o senhor falou que acreditava em Jesus, o senhor
tinha certeza? Meu pai estava falando alto no ouvido do velho. Devagar o ancião
acenou de novo com a cabeça. — Sim — ele disse, numa voz tão baixa que quase não conse-
gui ouvir. — Quando você me disse sobre um homem que era Deus, que tinha aberto um caminho para me salvar do fogo, eu dependurei meus desejos nele, e estão dependurados ainda.
Pouco depois, o velho morreu. Fiquei ao lado de Yacuwã enquanto observávamos os homens construirem a pira funeral. Colocaram pri-meiro os troncos que queimariam mais tempo e com mais calor. Em cima puseram os outros troncos, mais ou menos da maneira como meus ancestrais fizeram as suas casas na fronteira americana. Tocaram fogo no centro da pira enquanto trabalhavam, e quando terminaram tudo, o fogo já estava bem quente.
O choro ao redor era tão alto que quase não conseguia raciocinar. De repente piorou. Olhei para a casa e vi o grupo saindo com o corpo do velho, suspenso em sua rede esfarrapada, que dois homens segu-ravam. Correram para o fogo e jogaram o corpo, com a rede e tudo, dentro. Num instante o corpo foi coberto pelos troncos dos lados. Os participantes continuavam dançando e gritando em volta do fogo. Yacuwã também gritava angústiado. Seu rosto estava desfigurado, seus olhos cerrados, como se pudesse assim apagar a imagem do corpo queimando. O calor era intenso. Coloquei meu braço nos ombros franzinos do meu amigo e chorei junto com ele. Quando o fogo come-çou a diminuir subimos numa árvore guama para ficar olhando até
que ele desaparecesse de vez. Foi a primeira vez que convivi com a realidade da morte, e senti
uma tristeza inexprimível. Eu costumava chamar aquele homem de
"Pai Velho", como Yacuwã fazia, e agora ele não existia mais. Yacuwã e eu éramos como irmãos, e tendo ficado sem o avô, eu temia que os seus pais viessem buscá-lo e levá-lo para a casa deles.
220 e Pondo a contextualização em prática. estudos de caso
Após a cremação, os ossos foram cuidadosamente colhidos do meio das cinzas, pegando-se cada fragmento e os colocando numa cesta especial preparada para isso. Quando terminaram, a cesta foi colocada em cima da lareira da sua casa. Mensageiros foram enviados para as aldeias vizinhas e até algumas mais longe, onde o velho tinha parentes ou a aldeia tinha aliados.
Logo que todos os convidados chegaram, eles se reuniram para triturar os ossos até virar pó. Choravam e gritavam quase tanto quanto na cremação.
Tinham feito um buraco em um pedaço de árvore de um metro e meio e cortado duas estacas de dois metros. As estacas estavam muito decoradas. Dois homens foram escolhidos e cada um colocou uma pena branca de gavião no cabelo. Circularam os braços com faixas feitas das penas do pássaro curaçao, que seguravam as penas escarlates da arara, apontadas para cima. Penas de tucano e do pássaro moi espe-tavam as orelhas. Estavam pintados de vermelho com linhas pretas grossas cobrindo o corpo de forma irregular. Dois homens despejaram o conteúdo da cesta de ossos no buraco da árvore, e, usando as estacas, metodicamente trituraram os ossos, acompanhados pelos gritos e choro dos participantes.
Os ossos triturados foram então colocados em cabaças grandes e deixados perto da lareira do morto. Àquela altura a situação começava a ficar um pouco tensa, quando as diferentes aldeias e parentes ten-tavam decidir como dividir o pó dos ossos.
Claro, todos queriam um pouco, mas alguns parentes tentavam impedir a entrega para os menos favorecidos, acusando-os de não gos-tar do morto por uma razão ou outra. A troca de acusações conti-nuava, mas por fim todo pó foi distribuido.
Apesar de serem minoria, havia na época crentes na aldeia do velho. Bautista não queria que ninguém bebesse os ossos, mas era ape-nas um entre muitos irmãos, portanto não tinha força suficiente para proibi-lo. Pequenas cabaças cheias do pó foram levadas rio acima e rio abaixo para todas as aldeias onde o velho tinha parentes. Com este pó cada aldeia ou família deveria organizar uma cerimônia de beber ossos.
Esta minha primeira experiência de uma morte foi a de um ho-mem bem velho, mas se o morto tivesse sido mais novo, com um filho
Contextualização dos crentes yanomamis da Venezuela ela 22 I
menor, este ouviria repetidamente o nome de quem foi responsável pela morte do pai. Isto era feito para que, logo que crescesse, o filho liderasse um ataque de vingança contra o responsável. O pó dos ossos seria guardado com cuidado até que o filho alcançasse a idade de participar da cerimônia de beber ossos. Logo em seguida ele teria que vingar a morte do pai e a infância sofrida por causa da ausência paterna.
A cerimônia de beber ossos é provavelmente o evento mais impor-tante no calendário dos yanomamis. Quando as bananas da terra são colhidas e penduradas para amadurecerem, os homens saem para uma caça mais longa, prevendo a chegada de muitos visitantes para a ceri-mônia. Tudo que matam é tratado para ser levado para casa. Durante a ausência dos homens, as mulheres passam todas as noites cantando e dançando para lhes assegurar uma boa caça. E um tempo de muita sensualidade, devido ao fato de que todos os homens que não vão à caça aproveitam a oportunidade para ter relações sexuais com o maior número de mulheres possível.
No dia previsto para o retorno dos caçadores, os convidados come-çam a chegar, acampando a uma curta distância da aldeia anfitriã. Tomam muito cuidado nos preparativos para entrar na aldeia, pois sabem que o convite poderia ser um subterfúgio para fazê-los vir, com o objetivo de matá-los.
Antes de chegar de volta na aldeia, os caçadores se pintam, como cada um vê a si mesmo, geralmente como um animal ou espírito. Quando estão prontos, sua chegada é anunciada pelos dois mais jovens, que, pintados e decorados com penas, abanando ramos de palmeiras, chegam de repente na aldeia, correndo em redor do pátio interno do shabono (a casa coletiva é em forma de circulo, com espaço aberto no meio e cubículo para cada família). São acompanhados pelos gritos de encorajamento dos moradores. Em intervalos regula-res, eles param, fazem uma dança por alguns instantes e continuam. Depois de passar por toda a circunferência do shabono, voltam para o grupo de caçadores.
Ao entrar na aldeia os guerreiros dançam, girando, cada um em seu próprio estilo e ritmo, baseado na imagem do animal ou espírito que representa. Apesar de cada um fazer sua dança diferente, há uma certa coerência no todo, que é difícil de se descrever mas fascinante de se ver.
222 . Pondo a contextualização em prática: estudos de caso
Quando terminam de atravessar o círculo todo do shabono, retor-nam às suas próprias casas, onde aguardam a chegada dos visitantes.
Com grande barulho e fanfarra, o pessoal das outras aldeias co-meça a entrar, dançando. A maior parte de suas ações tem por motivo provar a sua invencibilidade e força, se atacados. Pode-se ver, pela dança e pelos sons que emitem, qual espírito ou animal cada um representa.
Após a chegada de todos, a cabaça de ossos em pó é trazida e misturada num pote grande com uma bebida de banana madura. Usam apenas a mão direita para mexer os ossos, até a bebida assumir a cor marrom dos mesmos. Cabaças com o suco são passadas para todos e cada um bebe entre gritos e choro. Neste momento os homens fazem alianças para vingar a pessoa morta.
Durante o dia muitos homens inalam uma droga chamada ebena. Logo estarão dançando e cantando metodicamente com seus espíritos particulares, que só enxergam quando estão drogados. Aqueles mais afinados com os espíritos, ou jecula, aprendem novos cânticos, que ensinam aos outros para a festa que virá à noite.
Ao anoitecer, as mulheres se reunem para dançar e cantar, insi-nuando-se mais e mais com cada cântico. Começam a cutucar umas às outras; logo saem da roda, uma a uma, e puxam para fora do shabono o homem que querem. Na escuridão fazem coisas que normalmente não fariam. As vezes duas ou três mulheres pegam o mesmo homem para ter relações com ele. Os tabus normais são colocados de lado nestas festas.
Mais tarde é a vez dos homens. Grupos de homens vão para a moradia de qualquer um para pegar a mulher que quiserem. Se o ma-rido dela ficar com raiva, não deixa isto transparecer, mas se vinga pe-gando outra mulher para ele. Esta orgia dura até ao amanhecer. Torna-se uma competição entre os visitantes e os donos da aldeia para ver quem consegue mais. É causa de muita fanfarronice e brigas mais tarde.
Tudo continua até a hora da saída dos visitantes. Normalmente é neste momento que se perde o controle. A raiva explode quando ficam sabendo que suas esposas foram usadas. Começam a gritar, insul-tar e logo vira uma briga vale-tudo. Usam socos, cacetas, facões e ma-chados. As vezes, se alguém fica seriamente ferido, atacam até com armas de fogo.
Contextuallzaçao dos crentes yanornatrus da Venezuela as 223
Alianças formadas a partir do luto comum podem desfazer-se de repente. Os líderes mais sábios têm certeza de que a melhor maneira de resolver as hostilidades é direcionar os participantes para um inimi-go comum. Portanto apresentam planos para atacar uma aldeia ini-miga, para que a raiva que os guerreiros sentem por causa da honra de suas mulheres seja direcionada para outro fim.
Eu vi muitas outras mortes durante os anos de convivência com os yanomamis. Um dia um bom amigo, Caspar, veio correndo para nossa aldeia. Ele implorou para que alguém voltasse com ele para sua aldeia, pois seu pai estava muito doente. Porque era tarde quando chegou, esperamos até a manhã para começar a longa viagem de volta. Normalmente era uma caminhada de três dias, mas pela urgência da missão, Caspar conseguiu chegar em um dia. Os seus pés eram a prova do seu sofrimento e não conseguiu voltar sem mancar bastante. Mesmo assim sempre nos apressava.
— Meu pai estava muito mal quando saí — ele disse. —Estou muito preocupado.
Olhando para ele, senti que ele não estava sendo totalmente honesto.
— O que aconteceu? — perguntei. Devagar ele me contou tudo. Não podia acreditar. Eu sabia que
os yanomamis praticam o que chamam de eutanásia, mas eu não sabia que poderia ser assim tão ruim. Ele continuou a história em voz baixa para ninguém mais ouvir. Meu pai ficou muito doente durante a maior parte desta lua
— ele disse. — Mas depois deste tanto de dias (mostrou-me quatro dedos)
ele começou a melhorar. Estava ainda fraco, mas insistiu em ir para sua horta. Nada do que falávamos o dissuadia, então acabou indo. Um pouco mais tarde, alguém passando pela horta o viu caído no chão. Ele tinha desmaiado no sol quente. Chamaram-me, e consegui levá-lo de volta para sua rede. Dei banho nele como vocês nos ensina-ram, e ele abriu os olhos e olhou para mim. Não podia falar, e seu
corpo tremia incontrolavelmente. Nosso shaboti (feiticeiro) decidiu que a razão disso tudo era que o espírito verdadeiro do homem já tinha partido, e algum espírito estranho ainda estava aprisionado em
224 ei. Pondo a contextualização em prática: estudos de caso
seu corpo. "Temos que deixar este espírito sair!" ele disse para todos. Eu não permiti a ninguém tocá-lo, e o protegi ferozmente.
— Finalmente, depois de alguns dias sem dormir, fiquei cansado demais. Falei para meu irmão mais novo cuidar dele, para que eu pudesse dormir um pouco. Meu pai estava bem melhor, assim eu não tinha tanto que me preocupar.
— Eu tinha acabado de dormir, quando meu irmão começou a me chamar em voz alta. Fui correndo. Havia um tumulto ao lado da rede do meu pai. Cheguei a tempo de ver o feiticeiro amarrar uma corda no pescoço do meu pai e a puxar. Peguei o shaboti pelos ombros e o joguei para o lado.
— "Saiam de perto do meu pai, homicidas!" gritei. — "Não, não, não é seu pai. Você não entende!" gritaram. Mas
desamarrei meu pai, que estava com cordas prendendo as pernas e os braços. Se eu não tivesse chegado, teria morrido.
— Eu estava furioso enquanto o desamarrava. Gritei todos os insultos que podia imaginar. Finalmente falei com o feiticeiro princi-pal que eu ia buscar você, e que se meu pai morresse, mesmo dormindo, eu iria matá-lo. Eles calaram-se, mas ainda ficaram contrariados. Espero que meu pai esteja vivo! — Seus olhos encheram-se de lágrimas.
Descemos com pressa a trilha. Ao chegar perto da aldeia, ouvi o som de choro.
— Oh não! Chegamos tarde! — Caspar começou a chorar. Em nosso grupo estava um visitante, Rick Johnson, dos Estados Unidos. Fomos para a casa do Casper onde a aldeia inteira estava reunida em luto barulhento pelo velho. Rick e eu ficamos um pouco à parte. A decepção que sentimos foi terrível. Isto acontece demais na selva. As viagens são tão difíceis, demoram tanto, e a malária pode matar tão rápido que estamos sempre correndo contra o tempo, uma corrida que muitas vezes não ganhamos.
Rick tocou meu braço e apontou para a rede com a pergunta: -- Mike, ele está se mexendo! O que está acontecendo?
Eu olhei para a rede, quase não acreditando naquilo que estava vendo. A rede estava movimentando-se; o velho estava vivo ainda. Passa-mos com dificuldade pela multidão e peguei seu braço magro para ver se havia pulso. Senti o coração batendo, mas fraco e fora de ritmo.
Contextuahzaçõo dos crentes yanomamis da Venezuela 0225
— Ele está vivo, Rick, mas não por muito — falei. Rick pegou logo sua bolsa com remédios e preparou uma injeção.
O paciente estava queimando de febre. Enquanto isso pedi a outra pessoa para dar-lhe banho com água morna, para ajudar a baixar a febre. Ele estava tendo convulsões, que o faziam tremer e contorcer.
Depois de ter dado a injeção, Rick tentou fazê-lo tomar um remé-dio contra malária. Eu queria muito que tivéssemos um remédio injetável, mas não tínhamos.
Finalmente Rick conseguiu fazer o velho engolir dois compri-midos. Sentimos que não deveríamos ir longe demais, pois ele poderia parar de respirar enquanto estivéssemos tratando dele, o que seria ruim, pois a culpa seria nossa. Durante a noite voltamos várias vezes para ver como estava. Rick ficou preocupado com a desidratação, e tentava fazê-lo engolir algum líquido cada vez que voltava. Enquanto estava fazendo isto, o homem abriu os olhos e olhou para mim. Agachei-me ao lado da rede e perguntei: — Pai, pode me ouvir? Sabe quem sou?
Ele piscou os olhos como se limpasse as vistas e acenou com a cabeça. — Sim, estou lhe ouvindo, Maikiwa — sussurrou. Eu me alegrei. Pensei que afinal tudo ia dar certo. — Maikiwa, estou com muita sede — ele falou de novo. Eu estendi a mão para pegar a cabaça de água que Rick me dera e
a coloquei nos lábios do velho. Ele engoliu um pouco e se deitou de novo na rede. Ficamos ali perto, monitorando-o um pouco mais, mas, satisfeitos de que estivesse dormindo, voltamos para nossas redes. Eu estava aliviado, pensando que o velho ia sobreviver. Peguei logo no sono.
De repente alguém estava sacudindo minha rede. — Ei, levante. Não sei o que está acontecendo, mas não parece
coisa boa — Rick disse.
Pulei da rede. A aldeia estava de novo em pranto. Corremos para a choça, mas desta vez era verdade, o velho estava morto! Não acredi-tei. Depois de tudo que tínhamos passado durante a noite, e agora o perdemos! Não era justo. Baixei minha cabeça e Rick e eu voltamos
para as nossas redes. De repente, Ramon estava do meu lado. — Precisamos sair agora — sussurrou.
226 e" Pondo a contextualização em prática: estudos de caso
Olhei para ele. O seu olhar me convenceu que ele não estava brincando. Traduzi para Rick e expliquei, — Os yanomamis não se conformam com apenas observar algum luto. Nosso grupo pode estar correndo perigo. Precisamos sair imediatamente.
Desarmamos nossas redes e as guardamos nas mochilas. Com pressa as pegamos e nos viramos para sair, mas eu queria falar alguma coisa, qualquer coisa, para Casper. Achei-o ao lado da rede do pai, aos prantos. Dei um abraço nele e expliquei que estávamos saindo. Ele olhou para mim com compreensão.
— Sim, é o melhor — ele disse. Coloquei meu rosto perto do dele. — Meu amigo, estou orando
por você — disse com lágrimas. Saí com os outros do nosso grupo, e, apesar de não estar mais
presente lá, pude ver na minha mente exatamente o que estava acon-tecendo na aldeia. O choro crescente, a construção da pira de cre-mação e, finalmente, as chamas que consumiriam o corpo do morto.
Pegando um pouco das cinzas, os guerreiros vão correr para a rede que ainda segura o corpo. Com gritos de guerra, batem no chão e nas estacas da rede para espantar quaisquer espíritos que ainda o estejam atormentando. Com a coragem que os gritos dão, pegam a rede e a levam correndo para o fogo, gritando cada vez mais. Jogam o corpo no fogo e o cobrem com as brasas. Os gritos se intensificam.
Quando o fogo diminui, os participantes, exaustos, saem em dire-ção às suas redes, ainda chorando. Apenas Casper e sua família ficam ao lado do fogo. Finalmente a esposa de Casper o leva de volta à choça, deixando dois homens para cuidar do fogo até que reste apenas um monte de cinzas quentes.
Voltando pela trilha para casa, podia imaginar Casper, sentado ao lado do fogo, chorando. Eu também estava chorando. Chorando pelo amigo e por mim também. Eu amava e respeitava muito o velho e fiquei muito triste por não ter conseguido chegar antes e ter feito mais por ele.
Cerca de três meses atrás, fui para a aldeia de Carawana para encorajar nosso bom amigo e seminarista Juan Carlos, que havia per-dido seu filho há umas duas semanas. Seu filho tinha sido um dos nossos alunos de seminário também. Ficamos sabendo que o leaju, ou
Contextualização dos crentes yanornamis da Venezuela 0227
cerimônia de beber ossos, ia acontecer nos próximos dias, e queríamos chegar antes. Mas, quando chegamos, ficamos sabendo que os caça-dores já tinham voltado e a cerimônia ia acontecer no outro dia.
Ao entrar na aldeia, vimos um grupo grande de enlutados na casa de Juan Carlos. Antônio foi direto para lá, ajoelhou-se e abraçou Juan Carlos. — Não chore — disse para ele, — seu filho está nos céus neste momento.
A multidão aquietou-se para ouvir o que estava sendo dito pelo visitante. — Juan Carlos, meu amigo — ele disse, — você e sua esposa vão ver seu filho de novo. A Bíblia diz que quando um crente morre, ele já está com Deus. Vocês estão tristes. É nosso fim, pois desde que Adão pecou, temos que passar pela morte. Mas a Bíblia diz para não nos entristecermos como os que não têm esperança. Você e sua esposa receberam a salvação em Cristo, desta forma seus olhos vão contemplar mais uma vez seu filho. Esta é a nossa esperança!
Juan Carlos concordou acenando devagar a cabeça. Levantou-se e veio para receber nossos abraços. Ele nos levou para um lugar per-to da sua casa onde o filho tinha construído um local de reuniões completo, com bancos e tudo mais para os cultos. As lamentações e choro da comunidade começaram de novo. Enquanto isso pendura-mos nossas redes.
— Venho falar com vocês mais tarde — Juan Carlos nos disse. Ele retornou para junto dos participantes do luto. Aquela noite, por volta das dezenove horas ele e a esposa vieram para onde nossas redes estavam. Eles ficaram ouvindo enquanto falávamos sobre a vida em Cristo e a esperança do futuro após a morte. A sua esposa começou a chorar baixinho enquanto eu lia os versículos que relatam que na volta de Jesus os vivos não serão deixados para trás, mas que os mortos em Cristo vão ressuscitar primeiro, e nós vamos nos encontrar com o Senhor nos ares. Fiquei surpreso quando os dois disseram que esta-vam bem. Deus estava dando forças para eles, mesmo em meio à tris-teza. Eles sabiam que seu filho estava nos céus com Deus.
Juan Carlos começou a falar: — Meus amigos, sou crente, mas estou sozinho aqui. Todos os homens nesta aldeia são meus parentes. Tenho irmãos, tios, primos, e todos eles estão pedindo os restos do meu filho. Sei que eu não preciso beber os ossos do meu filho para o
228 em Pondo a contextualização em prática: estudos de caso
bem estar dele, mas minha aldeia não pensa assim. Sou apenas uma voz. Beber os ossos de meu filho pode fazer mal a ele?
Da tristeza intensa do seu rosto, era óbvio que ele tinha medo que suas ações pudessem de uma alguma forma fazer com que seu filho fosse lançado fora dos céus, ou algo assim.
— Meu amigo — eu disse para ele, nada que alguém possa fazer agora vai atingir seu filho. Ele já se foi deste corpo, e seus ossos são apenas ossos. Seu filho está nos céus. Deus vai dar um novo corpo para ele.
Ele agradeceu com um sorriso. Eu gostaria de poder descrever adequadamente a experiência que
passei naquela aldeia. As lamentações, gritos, cânticos aos demônios, e o volume atordoador do barulho a noite toda impossibilitou-me o sono. Apesar do fato de que Cristo morreu para dar vida, tão poucos yanomamis têm aceito o evangelho! A profundidade do seu desespero foi quase palpável. De madrugada a cacofania aumentou e ao romper do dia, enquanto as espingardas disparavam, os visitantes começaram a chegar. Cada guerreiro, pintado com a representação de um animal ou espírito, dançava e rodopiava pela aldeia, suas cores brilhantes contras-tando com os sons do luto. Isto se estendeu por muito tempo.
Em cada funeral dos yanomami os enlutados carregam um objeto que pertencia ao morto. Há prioridades e hierarquia nesta cerimônia. Os pertences mais preciosos para o morto são carregados pelos paren-tes mais próximos. Neste caso era a mãe. Que belo testemunho foi para mim quando vi o que ela estava carregando. Alí, embrulhado num envelope grande, estava o Novo Testamento yanomami e um hinário. No meio de tanta confusão e opressão, o testemunho do rapaz foi brilhante.
Para os yanomami a morte é central e final. Tem sido difícil para os novos crentes superar a angústia que isto gera, compreendendo o ensino bíblico de vitória sobre a morte. Mas, devagar, assim que cres-cem no conhecimento da Palavra, há mudanças.
Há dois meses o homem mais velho de nossa aldeia morreu e foi cremado. Eu estava com alguns outros crentes em uma outra aldeia quando isto aconteceu. Os enlutados, no entanto, esperaram nossa volta para determinar o que fazer com os ossos.
Contextualização dos crentes yanomamis da Venezuela 0 229
O velho tinha convocado sua família antes da sua morte, e lhes disse que ele estava indo para casa, porque seu Pai tinha enviado seus "seres" para buscá-lo. Ele parecia surpreso que ninguém conseguisse ver os seres que ele estava apontando. Mas isto não era a sua mensa-gem principal para sua família. Ele falou aos filhos que tinham que seguir o Senhor com todo seu coração. — Ensine seus filhos, para que eles possam seguir vocês — ele enfatizava repetidamente.
Ele os instruiu sobre como tratar seu corpo após a sua partida. — Não chamem as pessoas das outras aldeias — ele disse, —
apenas queimem meu corpo e enterrem os ossos. Não os triturem. Apenas e tentem pegar meus ossos — falou enfaticamente.
Os filhos tentaram fazer tudo que ele pediu, apesar do fato de que na morte de um homem tão conhecido e popular, havia pessoas chegando mesmo sem convite. Mas o que aconteceu na casa do morto nesta manhã, acabou sendo uma celebração da vida e não uma lamentação desesperada da morte.
Nós nos ajuntamos e cantamos hinos enquanto um buraco estava sendo cavado em baixo da casa do velho, para receber a pequena caixa com os ossos que eles tinham pedido para meu filho Ryan fazer. Depois Alfredo, o neto do velho, leu alguns versículos preciosos de Tessalonicenses.
Irmãos, não queremos que vocês sejam ignorantes quanto aos que dor-mem, para que não se entristeçam como os outros que não têm esperança. Se cremos que Jesus morreu e ressurgiu, cremos também que Deus trará, mediante Jesus e com ele, aqueles que nele dormiram. Dizemos a vocês, pela palavra do Senhor, que nós, os que estivermos vivos, os que ficarmos até a vinda do Senhor, certamente não precederemos os que dormem. Pois dada a ordem, com a voz do arcanjo e o ressoar da trombeta de Deus, o próprio Senhor descerá dos céus, e os mortos em Cristo ressuscitarão pri-meiro. Depois nós, os que estivermos vivos seremos arrebatados com eles nas nuvens, para o encontro com o Senhor nos ares. E assim estaremos com o Senhor para sempre. Consolem-se uns aos outros com estas pala-
vras (2Ts 4.13-18 NVI).
Quando terminou, Timóteo leu Hebreus 2.14-15:
230 em Pondo a contextualização em prática: estudos de caso
Portanto, visto que os filhos são pessoas de carne e sangue, ele também participou dessa condição humana, para que, por sua morte, derrotasse aquele que tem o poder da morte, isto é, o Diabo, e libertasse aqueles que durante toda a vida estiveram escravizados pelo medo da morte (NVI).
Que cena diferente daquela que eu tinha imaginado na morte do
velho! Ele tinha sido o caçique, um líder muito respeitado na aldeia. Normalmente a morte de alguém de sua projeção faria com que a aldeia toda mudasse de lugar, pois ninguém gostaria de lembrar mais
dele. De fato ele era conhecido como Coshilowãteli, o nome da aldeia, mais uma razão para deixar a vila para trás, para não se falar mais o seu
nome. Eu não sabia como os cristãos iam agir nesta situação.
Naquele momento eu vi algo diferente. Em vez de destruir as
posses do velho, como seria normal, fiquei surpreso em ver Otávio, o filho mais velho, andando com a lança do morto. Isto era ainda mais surpreendente porque um dos nomes do velho era Shokobiwã ("lança"). Tradicionalmente, este fato faria com que a lança fosse uma das pri-
meiras coisas a ser destruída. Mas Otávio se pôs na frente de todos, e
aos poucos atraiu a atenção para ele. Elevando a lança, esperou até que
todos se aquietassem, até mesmo as velhinhas lá atrás.
— Estamos fazendo as coisas de forma diferente aqui — disse
para os visitantes presentes. — Meu pai se tornou uma nova pessoa muitos anos atrás. Era um guerreiro feroz, mas depois que aceitou Cristo,
mudou. Não participava mais dos ataques para matar pessoas, mas fazia muitas viagens para compartilhar sua nova vida em Cristo. Agora estamos reunidos porque meu pai não está conosco mais; ele já partiu.
— Um dia, nós que temos recebido a mesma nova vida que ele tinha, vamos encontrá-lo de novo. A Palavra de Deus diz que vamos nos encontrar com nossos entes queridos nos ares, com Jesus. Eu creio nisto. Se meu pai foi antes de nós, não vou destruir as suas coisas. Vou guardá-las e vou tratar com carinho esta sua lança. Quando eu morrer, vou pedir para meu filho guardá-la, porque quero lembrar do meu
pai. Quero lembrar a grande mudança que Deus fez no seu coração. Meu pai amava a Deus e falava com ele o tempo todo. Agora ele pode falar com Deus frente a frente. Estou muito contente por meu pai. Ele sofreu nos seus últimos anos aqui. Não está sofrendo agora.
Contextualizaçôo dos crentes yanotnaalls da Venezuela en 231
— Crianças — disse ele, virando-se para o coral, — cantem o número 39 do hinário.
Eu quase não acreditava no que estava vendo. Já tínhamos cantado três hinos apropriados para um funeral cristão, mas este, número 39, era quase que alegre demais! Era um cântico chamado "Na Casa do Meu Pai", e todos nós cantamos a plenos pulmões. Que beleza!
Ao longo dos anos temos observado como nossos irmãos yanomami têm lutado com a decisão do que fazer quando acontece a morte de um familiar. Nos anos iniciais em Cosh, os primeiros cris-tãos não demoraram em decidir que os crentes não deveriam partici-par da cerimônia de beber ossos. As razões que os levaram a esta decisão foram as seguintes:
▪ Aprendemos como triturar e beber os ossos de Omawa, o chefe dos jecula (espíritos). Agora que somos filhos de Deus, não queremos continuar nas coisas aprendidas dos espíritos.
▪ °mamã nos ensinou que a morte não é um acidente, portanto exige vingança. Esta é uma das razões centrais que nos leva a beber os ossos. Ao tomá-los, assumimos a obrigação de vingar a morte da pessoa.
.• Como cristãos sabemos que quando um crente morre, ele está com o Senhor. A velha prática de beber ossos, fazendo com que a pessoa fique conosco, não é mais válida.
▪ O beber dos ossos é parte integrante do processo no qual nos comprometos a atacar outra aldeia para vingar a morte. Como crentes, sabemos que é errado matar, ou até mesmo participar de qualquer coisa que esteja ligada ao assassinato de uma pessoa.
„. Na cerimônia de beber ossos todos tomam ebena (drogas), par-ticipam de orgias e se entregam totalmente a uma vida de autossatisfação e não a uma vida para o Senhor.
Quando perguntei a alguns crentes sobre estes pontos, especial-mente pedindo razões bíblicas para rejeitar a cerimônia de beber ossos, eles, sem pensar muito, me deram os seguintes versículos:
232 es Pondo a contextualização em prática estudos de caso
Que acordo há entre o templo de Deus e os ídolos? Pois somos santuário do Deus vivo. Como disse Deus: "Habitarei com eles e entre eles andarei; serei o seu Deus, e eles serão o meu povo". Portanto, "saiam do meio deles e separem-se", diz o Senhor. "Não toquem em coisas impuras, e eu os receberei" "e lhes serei Pai, e vocês serão meus filhos e minhas filhas", diz o Senhor todo-poderoso.
Amados, visto que temos essas promessas, purifiquemo-nos de tudo o que contamina o corpo e o espírito, aperfeiçoando a santidade no temor de Deus (2Co 6.16-7:1 NVI).
Portanto se alguém está em Cristo, é nova criação. As coisas antigas já passaram; eis que surgiram coisas novas! (2Co 5.17 NVI).
Eles falaram de pronto que estes são apenas alguns dos muitos versículos desafiando os crentes a viver para o Senhor e renunciar as coisas do diabo.
Para mim, parece que os yanomami que têm feito uma renúncia clara da cerimônia dos ossos têm realmente crescido no conhecimento do Senhor e na fé, enquanto os que não decidiram, ou não tiveram coragem de tomar uma posição contra a aldeia, nunca amadureceram no Senhor, vivendo sem sua alegria e paz.
Apêndice
(com participação de Carlos Alberto Carvalho)
População yanomami: 11.700 no Brasil e 15.193 na Venezuela
1. O significado dos ritos yanomami ligados à morte
„e O corpo é cremado e os ossos limpos para a moagem. e Em alguns lugares o corpo é apodrecido para evitar que a fu-
maça espalhe o mal. o Beber os ossos permite à pessoa morta viver com eles. Os pa-
rentes que participam são honrados e protegidos pelo rito. : É profanação a pessoa não beber os ossos. .. Beber ossos permite a uma pessoa ir para a casa de yalu, um
tipo de paraíso com muita comida, mulheres bonitas, boa
Contextualização dos crentes yanomamis da Venezuela 1233
caça, e coisas parecidas. Se ela não beber os ossos, não pode ir para lá.
▪ O ebene e wãfíãmo permite a comunicação com os espíritos para investigar quem tem culpa da morte.
▪ Vingar a morte de alguém é assassinar quem a provocou. Não fazer isso é considerado uma desgraça e uma maldição.
2 Por que os cristãos escolheram não participar de muitos componentes dos ritos?
.• É nesta ocasião que é assumido o compromisso de realizar ataques para vingar a morte da pessoa.
▪ É quando acontecem as orgias. • Há abuso de drogas. ▪ A cosmovisão dos convertidos mudou a respeito do destino
dos mortos e do controle da vida. ▪ Os cristãos entendem que não precisam mais destruir os per-
tences do morto, pois não há perigo. ▪ A igreja chegou à conclusão de que não há mais necessidade
de tomar mingau de banana com ossos.
3 Do que participam os crentes yanomami?
Ainda fazem cremação dos mortos. Ainda ajuntam os ossos. A maioria ainda tritura os ossos antes de enterrá-los. Reunem-se para lembrar do falecido, reforçar a esperança da salvação e louvar a Deus.
4. Por que abandonariam a prática de destruir tudo que pertencia ao morto?
Octavio explicou que sabia onde o pai estava e que um dia estaria com ele de novo. Por isso não via razão para continuar a agir como as
pessoas que não têm esperança. "No velho caminho não tínhamos esperança, então não queríamos ter coisas que nos lembrassem da pessoa que morreu, mas agora temos esperança", ele disse para mim.
234 eg Pondo a contextualização em prática: estudos de caso
Bibliografia
RITCHIE, Mark Andrew. The Spirit of the Rainforest. Chicago: Island Lake Press, 1989.
TIERNEY, Patrick. Trevas no Eldorado: como cientistas e jornalistas devastaram a Amazônia e violentaram a cultura ianomâmi. São Paulo: Ediouro Publicações, 2001.
Contextualização entre os indígenas:
uma visão geral (I( 1_11 )(
... para que eu seja ministro de Cristo Jesus entre os gentios [povos], no sagrado encargo de anunciar o evangelho de Deus, de modo que a oferta deles seja aceitdvel, uma vez santificada pelo Espírito Santo (Rm 15.16, ARA, ênfase acrescentada).
Introdução
É verdade que a contextualização tem de preservar a verdade bíblica e também ser relevante para o povo alvo. Está corretíssimo, mas onde está o balisamento ou parâmetros que nos indicam que ainda estamos dentro destas duas fronteiras? Sem diretrizes específicas, estamos como quem dirige um carro à noite com um farol fraco, numa pista de mão dupla e sem sinalizadores luminosos. Isso causa tensão no motorista. Ao contrário, como é bom quando se pega um trecho de pista com sinalizadores! Será que já não existem na Bíblia e na experiência missionária subsídios suficientes para detectarmos alguns sinalizadores
de limites? Será que vamos ter de ficar olhando quem errou por excesso de zêlo ou por descuido para detectá-los? Vou sugerir alguns princípios que poderão nos ajudar.
236 a Pondo a contextualização em prática: estudos de caso
É possível definir contextualização aos povos indígenas brasileiros?
A expressão "anunciar o evangelho...de modo que", no texto supracitado, chama nossa atenção para o cuidado da contextualização aos povos. Procurei alistar aqui algumas situações mais frequentes entre os indíge-nas brasileiros. Mesmo que os grupos sejam bem heterogêneos, alguns aspectos culturais são similares e se aplicam à maioria.
O alvo da contextualização é minimizar tudo o que pudermos do sincretismo que distorce a mensagem do reino de Deus. O ideal seria evitar todo sincretismo, mas a históra mostra que isso é idealístico demais, então busquemos reduzi-lo na medida do possível.
A necessidade da contextualização aos indígenas
O missionário chega e traz em sua bagagem a revelação de Deus para pregar. Está sonhando com o dia em que terá o domínio do idioma para se comunicar. Erroneamente pensa que, como o povo ainda não ouviu, bastará comunicar a verdade e todos vão se interessar por ela. Aí, depara-se com o fato de que o povo também tem suas próprias fontes de verdade, tão válidas para eles quanto a Bíblia para nós.
E agora, o que fazer? Geralmente pensamos que o povo tem um "HD" virgem para o
preenchermos e formatarmos com nossa teologia e "informações ver-dadeiras". Ledo engano; seu HD está cheio de informações, consi-deradas como a verdade para aquele povo. Por isso o primeiro estágio do novo missionário tem que ser conhecer muito bem o que o povo tem em suas mentes e partir desse conhecimento para o que eles não conhecem ainda.
De fato, ao ter contato com a nova mensagem, o povo deve reinterpretar e reformular a sua cosmovisão. Há muitas fontes das quais extraíram sua verdade religiosa: testemunhos e ensinos dos anti - gos, parentes, homens espirituais, espíritos espirituais e ancestrais e, principalmente, sua mitologia. Elas explicam seu universo em termos de origem, atualidade e destino.
Contextualização entre os indígenas: uma visão geral 0237
Os diferentes pressupostos revelacionais indígenas
Falo neste capítulo em termos genéricos, usando o que conheço do povo Waiãpi, com o qual minha família e eu trabalhamos. Pode até ser que os indígenas não expressem o que pensam por diplomacia cultural ou timidez diante do missionário "todo-conhecedor", mas dá para perceber sua reação em fragmentos de suas perguntas ou nos comentários posteriores.
Alistemos aqui alguns pressupostos revelacionais de que depen-dem os povos indígenas, em especial os waiãpi. Segue umas expli-cações em suas próprias palavras:
Uniõ kõ remikuarer — As tradições dos nossos ancestrais -- Nós observamos tabus e resguardos baseados nas experiências
dos nossos pais. Por exemplo: uma mulher não deve se banhar no rio no seu ciclo menstrual. É perigoso fazer isso, pois o dono das águas vai causar-lhe malefícios. Uma criança novinha deve ser protegida para não perder a alma. Nunca devemos deixar uma criança chorar nem mesmo discipliná-la ao ponto de chorar porque ela pode perder a alma. O pajé não pode passar por onde andou uma mulher partu-riente, nem assistir ao nascimento de um filho.
— Não adianta vocês dizerem que essas coisas não têm proble-mas, podem não ter problemas para vocês, mas para nós, sim.
Tamõ kõ ayvukwer — Os mitos e ensinos dos 'nossos' antepassados Observe como os waiãpi defendem sua tradição oral: — Bem, vocês estão lendo os escritos de Moisés e achamos inte-
ressantes, só que nós também temos a palavra de nossos antepassados e ela é tão importante quanto o seu livro, missionário!
— Aliás, você deve lembrar-se que os waiãpi foram criados primeiro que os brasileiros. Então missionário, não pense que pode supervalorizar o seu "livro" em detrimento das minhas tradições orais, tá bem?
Realmente, em relação à comparação entre cultura oral e escrita, nenhuma é superior à outra, embora os letrados valorizem mais a escrita pela facilidade de arquivar dados culturais em livros. Mas os
238 Pondo a contextualização em prática- estudos de caso
anciãos, especialistas na cultura indígena, têm uma incrível enciclo-pédia em suas mentes.
Manõtaray mãe kõ ayvukwer/ jigarer — Palavras ou cânticos dos moribundos
Alguém me perguntou: — O seu povo costuma prestar atenção quando alguém está para morrer? Eles escutam o cântico dos mori-bundos?
— Não.— respondi. — Chii!! Que gente insensível a sua! Nosso povo faz questão de
ouvir as últimas palavras de quem está para morrer. Não somos desatenciosos como vocês. É por isso que sabemos muitas coisas que vão acontecer com a gente depois que morrermos porque uma cortina se abre para o moribundo; algumas vezes ele canta, outras vezes ele comenta sobre o que está vendo "lá do outro lado".
Pajé kõ moregetakwer — Palavras dos shamãs — Vocês têm pajés? Eles são bons ou maus? São poderosos? — Não, não temos. — Bem, nossos pajés sabem muito. Eles podem nos indicar onde
está o bando de porcos do mato para nossos caçadores. Se ocorre uma doença, eles podem fazer uma fumaça com ervas e outras coisas que vão subir e indicar a origem da doença para nos vingarmos do despacho que outros fizeram. Podem também entrar na tocaia e falar com os espíritos em voz diferente da sua, e podem soprar e tirar os amuras do corpo de um doente para ele sarar logo. No passado podiam até curar um aciden-tado com fraturas expostas, mas atualmente só temos pajés pequenos.
Morawã (anormalidades) — Mistérios, pressentimentos ou presságios
— Nós prestamos atenção nos sinais ao nosso redor. O canto da sigau é muito importante. Quando ela fica zangada (cantando de modo diferente), isso é um aviso. Animais quando agem fora do seu habitual, sempre trazem "avisos" de coisas importantes que podem acontecer conosco. Se você vir um pássaro noturno de dia preste atenção, é um aviso mesmo.
i
Contextualização entre os indígenas: uma visão geral 0239
— O tamõ fulano não atendeu ao presságio e imprudentemente foi caçar. Por isso a onça o comeu. O finado irmão teve vários pressá-gios: achou uma tracajá enorme e doente e não se cuidou, depois pescou um grande forno de barro antigo e o carregou. Não devia ter feito aquilo! Por causa disso foi ficando doente e morreu mesmo...
Janepouwaikwer — Os sonhos — Vocês dão atenção para os sonhos? Vocês sabem que durante o
sonho nosso espírito/alma faz viagens extracorporais e visita lugares di-ferentes? Olha, quando a gente sonha existe um "recado" que alguém está querendo passar pra gente. Os sonhos são muito importantes.
— E vocês procuram saber o significado dos seus sonhos? Quem os interpreta para vocês?
— Nós conversamos muito sobre os sonhos, eles não nos enganam. Estes diálogos são uma pequena amostra de como o povo chegou
a crer no que crê. Há muito a ser investigado e não se pode passar uma borracha e apagar o que eles creem para plantar a verdade em suas mentes. Isso nos leva ao processo da contextualização que depende muito do missionário e de sua habilidade, paciência, sabedoria, humil-dade e sensibilidade no trato com o povo.
Alguns desses "segredos" não serão revelados se não houver cumpli-cidade e relacionamento profundo entre o missionário e o seu amigo tribal. Eles não banalizam seus conhecimentos.
Características cognitivas dos indígenas para melhor abordá-los
Herdamos das culturas europeia e americana a filosofia grega e sua dicotomia de vida e sistema cognitivo. Por causa disso a teologia que faz sentido para nós é a sistematizada com raciocínio lógico linear. Quando vamos às tribos, devemos perceber que seu sistema de conhe-cimento é integrado: global e relacional, sem dicotomia entre o espi-ritual e o material ou humano e divino.
Em nosso sistema cognitivo e filosofia lógica da fé aprendemos a definir e valorizar a "fé correta" para distinguí-la de erros religio-sos. Sem perceber, estreitamos tanto nosso conceito que ele fica limi-tado ao aspecto doutrinariamente correto nem sempre acompanhado
240 as Pondo a contextualização em prática: estudos de caso
de aplicação na vida prática. Podemos criar assim um vácuo entre a fé que professamos e a vida que levamos.
Ao tentar contextualizar a mensagem e plantar igrejas entre os indígenas, nos deparamos com outra maneira de associar o que se crê (fé religiosa) à maneira de se viver (prática diária). Por serem culturas integradas com sistema cognitivo global nossa abordagem costumeira seria vaga e difícil para eles. Assim, para efetivamente fazer a transcul-turação da mensagem bíblica é necessário considerarmos alguns enfoques e nos identificarmos com sua maneira de ser e pensar. Vejamos:
1. Fé versus obediência — Paul Hiebert cita Jacob Loewen:
"Em várias línguas tribais sul americanas 'crer' e 'obedecer' originam-se da mesma raiz. Ao tentar distinguir entre esses dois conceitos os missionários têm traduzido crer como 'aceitar como verdade' (...) isso é somente o com-ponente estático da fé deixando fora o dinâmico que representa o compro-misso pessoal" (...) Charles Nyamiti, um teólogo africano, diz que a teologia `não deve ser feita como um exercício abstrato divorciado da vida real" (Hiebert 2001:210,208, grifo do autor).
Os indígenas parecem quase interligar fé e prática: "creio, logo pratico". É bem provável que entendam com mais facilidade os argu-mentos de Tiago sobre fé e obras (Tg 2.14-26), do que os de Paulo (Rm 4), mesmo que ambos tenham usado Abraão como exemplo. Têm interesse pela teologia vivenciada que mostra Deus lidando com os personagens bíblicos. É fácil identificarem-se com Abraão, com Abel e vivenciarem experiências idênticas a que eles tiveram com Deus, mas seria estranho ensinar por tópicos abstratos, principalmente no início da pregação. É muito melhor ensinar de forma concreta do que tentar ensinar conceitos abstratos da teologia sistemática (sincrônica), sendo um bom passo na contextualização.
Recentemente um filho na fé que estou ensinando para batizar me disse que enquanto lê as lições sente forte desejo de celebrar o nome de Jesus com sua família: esposas, filhos, sogro, mãe, cunhado. Quem me dera fazer isso! Mas acha que não é suficientemente forte para tal, e se frustra também porque as esposas não o acompanharam
Contextualização entre os indígenas urna visão geral NA° 24 1
na vida cristã. Precisei animá-lo mostrando-lhe que Deus tem o tempo
certo para agir e fazer isso acontecer com seus parentes também. Percebi que sua convicção o impulsiona não apenas a mentalizar ou verbalizar
de forma abstrata a sua confissão de fé, mas à prática. Enquanto nossa teologia é mais confessional, a indígena é mais vivencial.
2. Teologia sistemática versus teologia vivenciada e vivencial (bíblica)
"A Bíblia é basicamente uma reunião diacrônica, uma história do
trabalho de Deus no universo e na humanidade... Uma teologia
transcultural deve centralizar-se nos atos de Deus na história." (Hiebert 2001:206,220). Até na tradução bíblica a terminologia indígena vai
requerer mais verbos de ação que substantivos: ao invés de falar da soberania de Deus se diz que "ele governa supremo sobre todos e sobre tudo"; no lugar de falar do amor de Deus se dirá que "Deus ama os
homens". O Velho Testamento é mais assim. Como no lindo Salmo
90, Moisés exalta a pessoa de Deus não usando declarações teológicas
abstratas mas relata os seus atos "de eternidade a eternidade". A Bíblia é um livro teocêntrico e não teológico sistemático.
Devo dizer que dois autores têm trabalhado o ensino bíblico por meio das narrativas: Trevor Mcllwain e Jackson Day. Seus estilos são
diferentes, mas ambos usam narrativas para ensinar conceitos teológi-
cos. Trevor também argumenta como Paul Hiebert: "O Deus do cristia-nismo é o Deus da história... não devemos ensinar uma lista de doutrinas
divorciadas do seu contexto histórico, mas ensinar a história dos atos de
Deus na forma como ele escolheu revelar-se através da história... o missionário é um professor da História!" (McIlwain, 2003:38,39).
Existe uma clara diferença entre a cultura judaica bem destacada
no Velho Testamento e a teologia paulina sistematizada pela cultura grega. O Deus YAWEH do Velho Testamento é passional, e demonstra
seus sentimentos e reações de forma muito concreta. Theos, no Novo Testamento, se apresenta bem estruturado e filosoficamente correto, encaixando com a cultura grega. Esta prioriza a razão enquanto a hebraica lida mais com a emoção. Ambas são necesárias na vida cristã.
As culturas dos povos variam entre abstratas e concretas e estas se enquadram entre a grega e a hebraica. Dessa perspectiva, parece que
242 a" Pondo a contextualização em prática: estudos de caso
Deus fez questão de deixar sua mensagem nas duas formas. Sem dú-vida os indígenas tendem ao sistema hebraico.
Essas carcterísticas deles têm várias vantagens imediatas, mas devemos também perceber desvantagens. Uma delas é serem pouco reflexivos por não usar muita lógica, sendo consequentemente super-
ficiais e vulneráveis.
3. Os três níveis do conhecimento — Culturas filosóficas va-lorizam muito a cognição enquanto as culturas integradas valo-rizam mais a experiência prática do saber. Sendo assim é bom tentar perceber quando a convicção chega ao coração do ou-
vinte. O processo de aquisição de conhecimentos começa no nível cognitivo, passa pelo nível avaliativo e atinge o nível da convicção pessoal. Expressando isso de outro modo, observa-mos três passos em sequência:
a) conhecer a verdade — cognição: ver, ouvir, ler, assistir
b) compreender por quê é a verdade — reflexão: avaliar, pensar,
ponderar
c) adotar e amar a verdade — compromisso: crer, adotar para si,
assumir que, acatar
Uma amostra dos três estágios pode ser vista na oração de Jesus
em Jo. 17.8: "...porque lhes transmiti as palavras que tu me deste, e eles as acolheram e verdadeiramente reconheceram que vim de ti e cre-
ram que tu me enviaste" (grifo do autor). Somente o aspecto cognitivo não é eficaz para salvação. Deus não
se impressiona com o conhecimento teológico em si. Sabe-se de filó-
sofos que, mesmo tendo grande conhecimento bíblico e teológico, foram agnósticos ou defenderam o ateísmo. Veja como Deus censura
a cognição inconsequente da verdade (51 50.16-18) em contraste com a convicção (v.14)1.
' Villegagnon é um típico exemplo de conhecimento teológico inconsequente. Sua oração registrada no livro Viagem a uma terra chamada Brasil de Jean de Léry é linda mas sua conduta péssima.
Contextualização entre os indígenas- urna visão geral ge. 243
A teologia confessional da "crença correta" pode ser enganosa, pois um indivíduo pode estar falando só "da boca pra fora" e os outros acreditando no que ele diz. Deus não valoriza tanto o que a pessoa conhece mas, sim, o que ela conhece e pratica.
Como foi mencionado, o índio quase pula do cognitivo para o conclusivo, e em geral ele faz pouca reflexão, correndo o risco de ser superficial na doutrina.
4. Conversão e mudanças culturais — Conversão é dar meia volta ou seja, deixar de ir numa direção para ir na direção oposta. É dispor-se a andar na contramão da sociedade alie-nada de Deus. Inclui duas coisas: deixar de fazer uma coisa e começar a fazer outra. E como diz a Bíblia: "afaste-se do mal e faça o bem" ou "aquele que roubava, não roube mais; pelo contrário, trabalhe" (1Pe 3.11; Ef 4.28). Poderíamos dizer, "Pare de se embriagar ou se drogar e comece a trabalhar". Estas mudanças de comportamento vão refletir-se também na comunidade, como disse Hiebert: "O evangelho não cha-ma só indivíduos mas as culturas e sociedades a mudarem" (Hiebert 2001:185).
Hiebert também fala, "Conversão significa mudança de velhos cos-tumes para novos costumes. Os missionários, inclinados a admitirem isso ou não, são agentes profissionais da mudança de cultura porque não há outro meio de estabelecer, consolidar e perpetuar a igreja numa sociedade a não ser por meio de sua cultura" (Idem:185, 210, 211).
Hiebert continua dizendo, "Achar as portas abertas ao evange-lho" pode ajudar a compreender profundamente as pessoas. "E de suma importancia investigar as necessidades fundamentais do homem e verificar como elas estão sendo atendidas pelo sistema (religioso) oferecido" (Idem:211).
5. "O lugar onde dói" — O pesquisador e o cacique lengua: — Os missionários que trouxeram o evangelho até vocês tam-bém cometeram alguns erros? — perguntei. Hesitante em falar devido à cultura da bondade, finalmente o cacique disse: — Sim, eles estão mexendo onde não dói.
244 •° Pondo a contextualização em prática- estudos de caso
Tudo isso quer nos dizer que nossa abordagem precisa tocar em
pontos relevantes para os indígenas, se ficarmos "mexendo onde não dói" não abriremos portas para comunicar a mensagem.
O livro O Cristianismo Bíblico da Perspectiva Africana de Wilbur O'Donovan Jr. (1999), nos oferece boas dicas de como perceber as ques-tões que estão nas mentes dos africanos, e o mesmo devemos fazer com o indígena no Brasil. Ouvir, ouvir, ouvir e ouvir, antes de pregar.
O processo de contextualização
Pré-requisitos para a contextualização crítica
1. Desenvolver relacionamentos profundos e manter atitude humilde com o povo
Os relacionamentos dependem da disposição do missionário em iden-tificar-se com o povo e conquistar a confiança deles. Saber ouvir, ser atencioso, ter atitude de servo e humildade são condições para criar vínculos de confiança verdadeiros. Antes de ter um ouvinte é bom você ter um amigo. A contextualização passa pela identificação do missionário com o povo e o equilíbrio numa relação de amizade sin-
cera é fundamental.
2. Atingir um nível proficiente no conhecimento da cultura e língua alvos
Algumas agências missionárias usam programas de aprendizagem e métodos de avaliação do grau de conhecimento do idioma e da cultura.
O ensino feito baseado em relacionamentos, entendimento cultural e direcionado à cosmovisão, faz com que a Palavra de Deus se engaja nos corações e nas vidas das pessoas de uma maneira dinâmica, capa-
citando-as a responder através de uma fé genuína que muda a vida.
3. "Manejar bem a palavra da verdade" entendimento da mensagem global do reino de Deus além do evangelho de Cristo ..
No passado se traduzia o Novo Testamento e se começava a ensinar
ao povo. É como contar a história começando na metade dela. Isso deu origem a igrejas sincréticas ou fracas. Hoje em dia enfatiza-se a
Contextualização entre os indígenas: uma visão geral .1245
importância de traduzir pelo menos uma panorâmica do Antigo Testa-mento. Creio que Ronaldo Lidório tocou no âmago da questão quando defendeu uma abordagem mais ampla: "Precisamos apresentar de for-
ma clara e direta a teologia soteriológica a partir da queda, com forte exposição do pecado humano, o sacrifício do Cordeiro Jesus e o per-
dão divino" (Lidório 2002:131). Mas, indo um pouco além, creio que é importantíssimo conhe-
cerem também a história da criação e seu estado original para obte-rem subsídios para as respostas das questões que tanto os perturbam além de reconhecerem a soberania de Deus e de Cristo.
4. Dispor-se a realizar um pré-evangelismo bem consistente
O pré-evangelismo para o indígena é um misto de pesquisa e arrazoa-mento da sua crença e preparação dele para a mensagem. Antes de
oferecer respostas precisamos saber quais são as suas perguntas. Para ser efetivo no ensino é preciso saber onde está o aluno e partir do ponto em que ele está — do conhecido para o desconhecido. Essa fase serve tam-
bém para se começar a introduzir a Bíblia, especialmente quando o povo mostra que não sabe as respostas para as perguntas, mas deseja saber.
Como contextualizar?
Antes de entrar no caso específico dos indígenas, deixe-me enfocar algumas boas sugestões de critérios gerais na contextualização.
Saber lidar com as diferentes cosmovisões é o cerne da contex-tualização, tanto harmonizando pela reformulação cultural como con-
frontando com a verdade bíblica. Mas são tênues as linhas divisórias
entre três atitudes ao lidar com a cultura receptora (Hiebert 2001:183-189).
1. Um extremo é não ter contextualização: é o confronto cultural fazendo tdbula rasa da cultura pela imposição do evangelho (tende ao legalismo ou sincretismo dissimulado).
2. O meio termo é a contextualização crítica: é conciliar as dife-renças com plena aquiescência na consciência do discípulo. (Seria
uma enorme responsabilidade para o missionário fazer isso
246 Pondo a contextualização em prática estudos de caso
sozinho com seu limitado conhecimento cultural ou de igual modo para o novo crente indígena com sua limitada com-preensão da cultura bíblica.) (Idem:186,187)
3. E o outro extremo é a contextualização acrítica: seria venerar a cultura alvo relativizando ou negociando valores do evangelho (caminho aberto para o sincretismo).
Esses três pontos foram ilustrados por Paul Hiebert — Figura adaptada de Hiebert (2001:188).
CULTURA PRÁTICA MISSIONÁRIA
Negação do velho:
RESULTADOS:
—*O evangelho é estrangeiro -4 é rejeitado Costumes
Mitos Rejeição da contextualização
O velho permanece oculto -4 sincretismo Velhas crenças Rituais
Histórias Lidando com Canções o velho: 1-Reúne 2- Estuda 3-Avalia 4-Cria O
Tradições Contextualização informação a Bíblia os fatos uma evangelho Arte crítica acerca do sobre à luz da nova contex-
Música Outros
velho o velho Bíblia prática cristã
tualizado
Aceitação acrítica do velho: SINCRETISMO LIVRE Contextualização acrítica
Macro e micro: principal e secundário
Tomando conhecimento sobre outras experiências com os indígenas, revendo nossa limitada experiência e complexidade da evangelização e discipulado, proponho que devemos trabalhar em duas fases: 1) macrocontextualização e 2) microcontextualização.
A macrocontextualização parte de pontos essenciais na comunica-ção do evangelho. Como a cultura indígena contém uma complexa rede de semi-deuses, heróis míticos, donos do mundo aquático, da flo-resta, das caças e da chuva, considero alguns tópicos de macroimportância:
Contextualtzação entre os indígenas: urna visgo geral ea 247
1) a Bíblia sendo a verdadeira revelação divina; 2) a supremacia de
Deus; e 3) a unicidade histórica dos povos. Em termos gerais, estrategicamente, precisamos trabalhar e con-
solidar esses três macro para lidar com a grande variedade de temas menores, porque a correta compreensão maior facilita a melhor assi-
milação nos níveis inferiores. E interessante que esses três temas estão intimamente relacionados e podem ser abordados juntos.
Se não ficar bem firmada a certeza da autoridade da Bíblia, se as
pessoas não perceberem Deus como o soberano que governa sobre
tudo e todos e se continuarem pensando que são outro povo com uma criação distinta, nossa evangelização e discipulado vão ficar sempre
mancando. Desse jeito, dificilmente vamos poder trabalhar as seme-lhanças, contrastes para vazios e contextualizar de fato a mensagem.
Comecemos pelos três macro.
1. A Bíblia é a verdadeira revelação (k) Deus supremo.
Já vimos que o ensino expositivo da Bíblia — principalmente das
narrativas — é o que melhor se encaixa com o sistema cognitivo indí-gena, mas eis o primeiro desafio: sendo sua cultura oral tão forte, como levar o povo a crer que a Bíblia é a verdadeira Palavra de Deus?
Já vou adiantar que não existem soluções mágicas e prontas na
prateleira para se pegar e aplicar. Mas posso alistar algumas sugestões
práticas e exemplos de como lidarmos com isso.
1.1 Orar a Deus pedindo que gere fome no coração deles por
uma revelação especial. 1.2 Dar testemunho pessoal de leitura da Bíblia e obediência a
ela. Isto pode despertar a curiosidade deles: "Por que você
mexe tanto com este objeto preto? O que é esse objeto?" 1.3 Aproveitar momentos no convívio com o povo em que as
questões espirituais e dúvidas estão aflorando muito (nasci-mentos, funerais, situações climáticas adversas). O missioná-rio deve aproveitar essas ocasiões para pesquisar a crença deles
e fazer menção da Bíblia. Informalmente pode mencionar
que existe uma revelação de Deus em forma de livro que ele
mandou traduzir para as línguas de todos os povos.
248 e Pondo a contextualização em prática- estudos de caso
1.4 Antes de ensinar formal ou informalmente, introduzir a Bíblia como a fonte da verdade e como autoridade espiri-tual. Fale sobre o longo período de história (1600 anos) que durou para ser escrita, sobre os 40 autores, línguas originais, a inerrância, a inspiração e a veracidade das profecias e seu fiel cumprimento.
1.5 Arrazoar sobre incoerências, contradições e falhas entre as histórias tradicionais e mitos. Um fator favorável a isso, no meu caso, é que os waiãpi tem feito aculturação com outros povos e incorporaram em suas tradições vários mitos alheios. Os mais novos não sabem distinguir quais são os mitos ori-ginais waiãpi e quais são os importados. Numa lição sobre a criação eu citei umas quatro versões deles e umas quatro teo-rias criacionistas dos brancos e perguntei: — Qual dessas histórias é a verdadeira? Vocês estão vendo quanta confusão? É inútil tentar descobrir por nossa própria conta. Ninguém de nós estava lá quando as coisas foram cria-das, o único que sabe contar como foram criadas é o Criador porque ele estava lá e ele conta direitinho como foi feito.
1.6 Sempre reiterar a Bíblia como fonte da verdade à medida que vai ensinando, não só no início, mas na sequência do ensino e discipulado. Também testemunhar como a Bíblia está influenciando a sua própria vida pessoal, corrigindo-o, e levando-o a pedir perdão à esposa, ao colega e também ao indígena, afirmando que aprendeu isso na Bíblia.
Um exemplo disso aconteceu no primeiro funeral de um adulto que assisti na aldeia. Sofri muito com a perda de um irmão crente, mas pude captar muitas informações culturais. Logo após o enterro um amigo me procurou perguntando:
— Onde está nosso irmão (falecido) agora? Você sabe? Eu devolvi a pergunta: — O que você acha, o que seu povo diz
que acontece após a morte? Ele contou que devia acontecer um trovão bem acima da aldeia e
o morto seria banhado e purificado e iria ficar com seus antepassados num lugar bonito com muita bebida. — Não sei se é assim mesmo.
Contextualização entre os indígenas. 1,1171(1 visão geral E. 249
— Mas insistiu:
— O que seu povo diz?
— Olha, meu povo é como os waiãpi e pensa muitas coisas, mas
também não tem certeza.
— Então ninguém sabe direito?
— É, ninguém sabe, só o nosso Criador sabe e ele nos conta sobre
essas coisas no livro grande.
— Você tem este livro?
— Sim tenho, vou lhe mostrar. — Mostrei a Bíblia. Ele falou muito sério. — Eu preciso saber o que este livro diz.
Você precisa virar a escrita deste livro para minha língua, mas faça
isso logo antes que eu morra. Outro exemplo aconteceu quando um índio estava animado rela-
tando seus mitos de criação, dilúvio e recriação. Falava que todos se
salvaram nas copas das palmeiras porque tudo mais foi inundado e
afirmava que a sua versão do dilúvio era a verdadeira. — Veja, os macacos facilmente sobem bem no alto das árvores.
Pensando onde eu queria chegar, dei corda para sua história di-zendo: — E mesmo, os esquilos também, os pássaros sobem nas co-
pas das árvores, não é? Ele ficou animado e disse: — Todos subiram; os homens tam-
bém e lá ficaram até que o dilúvio passou. Aí eu perguntei: — Pois é irmão, você já pensou como foi que a
anta e os bois se salvaram do dilúvio? Ele ficou sem resposta e, sincero me disse: — Puxa vida, eu não
tinha pensado nisso, muitos não sobem nas árvores, principalmente
na palmeira. Acho que esta história não é certa não, a história da
Bíblia é a verdadeira.
2. Deus é mato'que tudo!
A proposta nesta parte é de fundamentar a mensagem a partir da supremacia do reino de Deus, o guarda-chuva maior de todas as demais questões. Devemos lembrar que o evangelho é muito maior que a
cultura alvo. São os membros dessa cultura que devem ser preparados para receber o evangelho. É um perigo advogar que se deve conformar
o evangelho à cultura. O que tem de se conformar é a mente do
250 •" Pondo a contextualização em prática estudos de caso
evangelizado saindo da sua pequenez para a grandeza do evangelho do reino de Deus.
A tendência dos indígenas é uma preocupação maior com os pro-
blemas atuais do que com a aceitação de Deus para viver com ele no céu algum dia. A teologia que não aborda as questões diárias como doen-ças, apaziguar, manipular ou exorcisar espíritos, se vai ou não haver
chuvas para a roça crescer e produzir, e outras questões do dia-a-dia não será relevante para eles. A não ser que estejam convictos da supre-
macia de Deus e que tudo está sob o seu controle, não se importarão em como se relacionar com ele.
Os judeus se preocupavam muito com sua situação política e abordavam sempre Jesus: "Senhor, é este o tempo em que restaurarás
o reino [político] para Israel?" Isto é, "Vai nos tirar do jugo dos roma-nos?" (At 1.6,7). Os índios também se preocupam mais com os pro-
blemas do seu dia-a-dia: o medo dos espíritos ancestrais, preocupação
em como agradar os "donos" da floresta, dos animais, dos rios, e ou-tros. Toda sua religião gira em torno de como proceder com os diver-
sos "donos" do seu universo que precisam ser agradados para se ter boa colheita, boa pesca, boa caça, bom parto, boa sorte.
Se cada indígena entender que precisa acertar sua vida e se relaci-
onar de fato com o supremo dono — o dono de todos os donos que
eles conhecem — isso não resolve todos os seus problemas do aquém, mas lhe oferece um foco mais amplo para avaliar a real dimensão de todas as suas preocupações.
O alvo é que acabem se vendo não apenas como parte de uma igreja universal do reino, mas da igreja incluída no reino do Deus supremo e universal. Havendo aceitação dessa macroproposição fica mais
fácil trabalhar os níveis inferiores. Proponho que seja apresentado o pacote do reino dentro do qual estão corretamente tratadas as ques-
tões do seu dia-a-dia.2
2 Podíamos citar a título de ilustração o caso dos judeus cujo foco era uma microquestão: a libertação politica de uma naçãozinha do domínio romano. Uma causa legítima que Jesus não ignorou. Mas a sua proposta era que deveriam considerar fazer parte do reino universal de Deus. Como parte deste reino a quesi :lu dos romanos não seria ignorada, mas ocuparia um grau de importância bem menor para eles.
Contextualizaçdo entre os indígenas- urna urso° geral 0251
Não esqueço de quando estávamos dublando o filme Jesus na lín-
gua dos waiãpi. Um jovem crente era o narrador e precisamos fazer
ajustes nos textos para sincronia conforme o cronômetro da fala previs-to no áudio. Quando discutimos a questão do reino podíamos colocar a expressão "consentir ou permitir-lhe ser meu Senhor (chefe grande)". Mas o narrador me disse: — Não, não concordo com esta expressão.
Jesus já é o Senhor, consentindo eu ou não. Devemos dizer "declará-lo ou reconhecê-lo como meu Senhor". Isso é entrar no reino de Deus!
3. Ternos uma niesina urinem e uni só Criador!
A proposta da unicidade da história universal é muito relevante na
evangelização dos índios. Vejo-a como extremamente fundamental. A contextualização histórica pode ser a chave para uma melhor iden-
tificação, livre das barreiras étnicas. A memória etno-histórica dos
povos indígenas alimenta-lhes a crença de que eles são outro povo com
outra criação, outra cosmovisão e que têm de valorizar essa diferença.
Também se lhes apregoa que devem manter sua cultura e identidade
diferenciadas como forma de se afirmarem. O fato é que enquanto houver em suas mentes o conceito de
povos distintos, cada um com sua história política e existencial, eles
podem ouvir nossa mensagem e até considerá-la interessante, mas
ouvem, e simultaneamente vão pensando assim: "Bem, esta história é muito bonita mas é a história do povo dele; nossa história e os nossos
ancestrais são outros, então não se aplica a nós o que ele está dizendo, não serve". A contextualização histórica pode acontecer a partir do
momento em que nossas histórias se cruzarem como uma só. A ênfase nas diferenças raciais além de segregacionista é uma
barreira à pregação do evangelho. Enquanto houver comparações interculturais como duas histórias e dois povos paralelos eles se senti-
rão distintos de nós e optarão pela aculturação seletiva, o que eles têm
feito por séculos desde o descobrimento do Brasil. É o processo de
socialização seletiva, ou seja, no que lhes parecer melhor permanecer com seu indigenato será preservado, mas o que lhes parecer interes-
sante "adotar" da cultura de fora, será mudado. Desse modo, eles ado-
tam o que lhes convém e estão bem treinados nessa arte de realizar o
sincretismo cultural!
252 1? Pondo a contextualização em prática: estudos de caso
O evangelho unifica, quebra o binômio nós-eles ou nós-vocês e
estabelece o monômio nós (inclusivo). Isso unifica toda a humanida-de em uma origem comum como a Bíblia e a própria ciência confir-mam. Como se vê nos contextos interculturais de Atos, várias vezes
os missionários procuraram eliminar ou minimizar as diferenças raciais, advogando que somos um só povo. Assim era sua forma de fazer contextualização histórica com vistas ao evangelho. A barreira do "nós" e "eles" que existia na mente dos judeus deu muito trabalho
para os apóstolos. Vivi isso um dia ao ouvir os waiãpi citando o vovô (tamõ) Adão
como nosso (deles também) ancestral primevo. Aquilo me estimulou
a continuar com o ensino bíblico, pois a unicidade histórica dos povos estava sendo aceita por eles. Esta macrocontextualização já estava
estabelecida. Mais tarde ouvi uma pergunta bem interessante. Após conhecer
a narrativa bíblica do dilúvio, o índio me perguntou: — Por que será
que os nossos (exclusivo) ancestrais não nos ensinaram direito sobre o
dilúvio e a antiguidade? Respondi com satisfação essa pergunta por que contém dois ele-
mentos preciosos: a pessoa percebeu a diferença entre sua versão tradi-
cional e a bíblica e valorizou mais a história bíblica, atribuindo falha à
sua fonte de informações. Recentemente ouvi essa mesma pessoa mencionar suas experiên-
cias de oração: — Jesus eu sei que curaste enfermos e ressuscitaste
mortos. Eu não tenho nenhum outro a quem clamar e espero somente em ti,
ajuda-me. Um claro fundamento bíblico para este ponto está em Atos 17.23-
26. Paulo faz a ligação de unicidade histórica com os atenienses com
argumentos da criação: "O Senhor do céu e da terra (...) dá a todos a
vida (...) de um só fez toda a raça humana para que habitasse sobre toda a superfície da terra". Note-se que no início do discurso ele co-
meça "eu vos" anuncio, mas caminha para o nós inclusivo — "não está
longe de cada um de nós (...) nele vivemos nos movemos e existimos"
(27,28). Neste momento ele cruzou a linha cultural e, identificando-se
com eles, ou talvez melhor dizendo, fazendo-os se identificarem con-
sigo, ministrou com liberdade e eficiência.
Contextualizaçao entre os indígenas. urna cisão geral tes 253
Resumindo, estes três pontos da macrocontextualização são os
essenciais. Firmeza na Palavra, conhecimento da teologia sobre Deus
e a compreensão da unicidade histórica são de alta importância na
contextualização. Outros temas poderão ser tratados como microcontextualizações.
Neste nível menor, as práticas culturais deverão ser avaliadas, repen-sadas e reformuladas pelo missionário com seu(s) discípulo(s), e à medida que a compreensão destes vai aumentando. "A comunidade
autentica é a comunidade hermenêutica, ela determina o significado
aculturado real das Escrituras." (Hiebert 2001:203). Esse processo lida com muitos universais da cultura. Como saber, por exemplo, se certa prática cultural é neutra e deve ser mantida na autoctonia
da igreja? Podemos alistar alguns fatores aqui que podem ser conside-
rados micro:
▪ terminologia espiritual: vocábulo para Deus', reino de Deus,
pecado, perdão, graça, salvação. ▪ questões socias como poligamia (até que ponto é necessidade
social) ou iniciação sexual (é uma porta para licenciosidade promíscua?).
▪ controle social: vida familiar, conjugal, organização de trabalho. l
▪
imites entre magias malignas e fitoterapia.
Então devemos arrazoar com eles as semelhanças, contrastes e vazios
nas suas vidas. Muitas vezes pensamos que temos de dar tudo "pron-tinho" para os indígenas. E um engano, pois devemos ter o papel de facilitadores e nunca subestimar a capacidade dos nossos ouvintes,
letrados ou não, de analisar, avaliar e tomar posição. E necessário confrontá-los com suas próprias crenças para que percebam até que ponto creem mesmo ou têm dúvidas, sem arrogância ou crítica. Isso deve fazer parte do pré-evangelismo.
' Ressalvo que o nome para Deus-Criador e soberano já deve ser estabelecido na macrocontextualização.
254. Pondo a contextualização em prática: estudos de caso
Inconscientemente ou não, devido ao nosso etnocentrismo, geral-mente subestimamos a capacidade de análise crítica e cognitiva dos indígenas para uma opção consciente do melhor. Devemos lembrar
que Jesus e Paulo agiram como facilitadores.
Evangelizar é uma arte que leva em conta o perfil sócio-cultural do ouvinte. O melhor modelo de contextualização foi Jesus. Já se observou que Jesus não apenas contextualizou em termos gerais sua mensagem para os judeus mas a personalizou para cada indivíduo? Ele fez uma abordagem individualizada aos seus ouvintes! Observe como
ele tinha uma palavra diferente para cada pessoa que evangelizou,
chegou aonde estava o seu ouvinte e partiu dali. Então, se entendemos que isso é a chave, a questão básica é:
como saber onde está nosso ouvinte se não chegarmos a conhecer
suas crenças? Da mesma forma devemos manter clara em nossas mentes e re-
passar a diferença entre "cultura de origem do missionário" e "cultura do reino". Percebi a diferença entre essas duas coisas enquanto, numa conversa informal, indagava sobre as crenças dos waiãpi e também ouvia perguntas deles sobre as crenças do meu povo. Um dia me deu um click e comecei a lhes contar que meu povo também não tem as respostas a muitas das mesmas perguntas que eles têm. Mencionei as teorias dos brancos sobre a cosmogonia do universo, as diversas cren-
ças sobre o mundo espiritual, as charlatanices de feiticeiros e adivinha-
dores como os ciganos. Eles disseram, — Puxa somos iguais, então. Os karai kõ não são melhores que os waiãpi.
A partir de então procurei fazer distinção entre a cultura do meu
povo e a revelação de Deus no ensino bíblico. Outra boa oportunidade é não espiritualizar demais algumas prá-
ticas. Por exemplo, quando eles perguntavam: — Por que vocês não
fumam? Por que não bebem? — E alguns até sugeriam algo dizendo: — É por que são crentes? (Isso porque a antropóloga e o pessoal da
Funai tinha lhes dito que os proibiríamos de fumar, beber, e ser polígamos.)
Então sempre dizíamos que era por causa da nossa saúde que não
fumamos, nem bebemos.
Contextuahzação entre os indígenas. urna visão geral 0255
Desafios na contextualização
Avaliando semelhanças, contrastes e vazios. perigos ou oportunidades"?
1 Semelhanças
Os indígenas (animistas em geral) são criacionistas e desse fato vão sur-gir várias semelhanças com o evangelho. Neste ponto não se encontra
tanta resistência de aceitação, mas há maiores riscos de sincretismo. Vários
temas bíblicos têm paralelos ou similares nas culturas animistas, como: criação, afastamento da divindade de sua criação, profetismo,
messianismos, dilúvio, sacrifícios, trindade, purificação e paraíso
escatológico. Exige-se muito boa comunicação, pesquisa e compreensão cul-
tural para lidar com isso. Em geral, os indígenas são hábeis na arte do
sincretismo seletivo e enquanto ouvem a história do missionário, em
suas mentes estão procurando algo conhecido para fazer a correlação.
Facilmente o inimigo os engana para pensar assim: "Ah, é a mesma história nossa, eles só tem outros nomes e alguns detalhes diferentes".
Como possível "semelhança" cultural, será que poderão comparar
Jesus aos espíritos que têm funções de mediadores? Eles consideram os espíritos eficientes como mediadores? É uma boa porta para o
sincretismo: Jesus é mais um espírito mediador. Portanto é preciso estar atento: qual o risco de pensarem em Jesus como um bom mediador para os missionários, mas os ajãs (espíritos) ou os upiwãr (guias dos xamãs), bons mediadores para os waiãpi?
Contextualizar e prevenir o sincretismo neste caso é destacar a
diferença entre Jesus e os espíritos, apresentando-o como o Criador
de tudo (inclusive dos próprios espíritos que eles temem). Esta abor-dagem tem vínculos com a contextualização histórica, tal como Paulo fez em Atenas: os gregos facilmente incluiriam o Deus YAWEH no seu panteão de divindades mas Paulo apresentou-o como o (único) Deus verdadeiro (At 17.15ss).
2 Contrastes: conformar ou confrontar?
Não é fácil optar e saber a hora certa entre oposição e acomodação.
Precisa-se muito tato e discernimento para escolher quando se deve
256 em Pondo a conlextualização em prática: estudos de caso
reinterpretar a crença cultural à luz da verdade bíblica diferente, e quanto
se deve confrontar fortemente essa crença divergente declarando a ver-
dade. Algumas vezes Jesus simplesmente desmistificou crenças popu-lares declarando a verdade (Lc 13.1-7; Jo 3). Outras vezes ele usou a arte da dúvida para fazer o ouvinte refletir sobre sua crença e, em consequência disso, esse ouvinte ficaria aberto para outra opção (Jo 4).
Normalmente, pelas próprias tradições do povo alvo (muitas vezes já aculturadas e sincretizadas com seus vizinhos), a sua cosmovisão vai
apresentar vários contrastes com o ensino bíblico. Como as pessoas vão reagir? Certamente verão as diferenças e terão alguma resistência para aceitar. Em seguida citamos alguns casos de culturas indígenas que geram fatalismo ou frustração no seio da sociedade:
Os maxacali e seu "messianismo existencial" gera um conformismo fatalista. Creem que os "regionais" (não índios) são superiores porque trataram melhor os enviados de Topa (Deus), e estão sendo punidos por serem mesquinhos.
Os antepassados dos maxacali contaram que um dia Topa, João e Pedro (os camaradas de Topa), foram andar e ficaram com fome. Pe-diram comida para um tihik (homem maxakali), mas ele não deu. Então eles continuaram andando, e chegaram perto de uma casinha de enchimento (hãm'ãta) e pediu comida. O regional (ãyuhuk) não tinha casa bonita, nem gado, só uma vaca (monoytut), mas Topa man-dou que ele matasse e cozinhasse esta única. O regional fez o que Topa mandou, e logo que tirou a carne do osso, colocou os ossos no curral, onde Topa mandou, tudo em volta da cerca do lado de dentro do curral. Depois que Topa, João e Pedro comeram, foram dormir
dentro da casinha velha, no chão. De madrugada no curral tinha muitas vacas. De manhãzinha, o regional acordou com o barulho dos perus,
galinhas, patos, marrecos e quando abriu os olhos, viu uma cama bonita, o colchão, a casa grande e bonita, fogão e muita coisa. O regional ficou rico. Tinha porco. E agora? O tihik (homem maxakali) não quis dar comida para Topa e seus camaradas; então Topa disse que os maxakali (tikmo'on) não vão ter casas, nem gado e nem muita comida.
Para os zo 'é, o problema é a dificuldade em relacionar-se com Jiapohãn, seu criador afastado e impedido pelos kirahy (não índios) de voltar.
Contextualtzaçõo entre os inalgenas• urna visão geral 0257
Porque o criador não vem (zo 'é)? Apin, um senhor de aproxima-
damente 65 anos, um dos mais velhos daquela tribo, sentava-se num
pequeno pedaço de madeira, enquanto preparava a sua flecha. Na-quele dia, a conversa tomou o rumo dos assuntos espirituais e apro-
veitávamos o máximo para aprender sobre a sua cosmovisão, com o
objetivo de transmitir-lhes transculturalmente, contextualizada, a Palavra de Deus. Num determinado instante, o velho Apin, com olhar
inquiridor, perguntou — Você viu o Jiapohãn (nosso Criador) por lá,
onde você andou? — Não, eu não o vi — respondi rapidamente.
Mas ele insistiu: — Você deve tê-lo visto sim, pois nossos ante-passados diziam que ele veio aqui para nos criar e depois voltou pelo
Kiaré (rio Cuminapanema) para a região do Paranã (mar). Dizem que ele mora junto ou além dos kirahi (não índios) e é de lá que vocês vieram. Nós estamos esperando que ele volte para curar os
doentes e dar vida aos mortos, mas infelizmente os kirahi não permi-
tem que ele volte!
E, fixando ainda mais o seu olhar em mim, disse: — Não será você mesmo o nosso Criador?
— Não, eu não sou. Eu não posso criar e nem curar ninguém —respondi com firmeza.
— Você pode sim, pois quando meu pé estava podre, você pôs
remédio e ele sarou — disse, mostrando uma enorme cicatriz em seu
pé, resultado de uma picada de cobra, surucucu pico de jaca, que havíamos tratado há alguns anos.
O espírito do porco e Euka, o pajé de Cristo. Um fato foi decisivo para o amadurecimento da fé de Euká e dos waiwai: como pajé, sua tra-
dição o proibia de matar, cortar, assar ou comer carne de queixada
(porco de mato) e ele sempre respeitou esse tabu, mas em sua fé cristã
sentiu o desejo de deixar aquela crença e depender da proteção de Deus. Era um teste difícil.
Um dia, ele ouviu que uma manada de porcos estava próxima e saiu à caça. Matou dois porcos, cortou, assou, sua esposa cozinhou e
ele comeu para espanto de todos. Seus parentes ficaram apavorados,
mas ele não se abalou. Seu antigo guia lhe apareceu, sua fé foi testada mas ele ficou firme com Cristo e tudo transcorreu sem nenhuma
258 e" Pondo a contextualização em prática estudos de caso
situação anormal. Sua fé robusteceu e o seu povo percebeu o poder de Deus em sua vida! Esse foi um marco decisivo em seu crescimento e
um referencial para os outros crentes.
3. Vazios: corno vão encarar O novo e desconhecido?
No contato com os brancos muitas coisas são novas e eles já estão
lidando com isso. Primeiro, há novos especialistas: professor, missi-
onário, agente de saúde, missionário índio ou índio missionário e outros. Em relação a mensagem do reino, é bom perceber como es-tão lidando com o novo pelo retorno que os índios dão através de
perguntas ou comentários (feed-back).
Com a mensagem bíblica certamente novos temas serão abor-dados. Como os vão incorporar à sua antiga cosmovisão? Eles vão
ficar à margem?
Lidando com hábitos arraigados e complexos
Queremos mudanças rápidas (legalistas ou formais) ou mudanças que amadurecem após um tempo? Muitos hábitos possivelmente precisa-rão de maior tempo para ser conformados aos princípios bíblicos;
devem ser tratados no discipulado e não na evangelização. Se forem
combatidos enquanto se evangeliza, facilmente se pode comunicar a
ideia de salvação por meio de uma conduta moral correta. Não estou dizendo que não se deva, por exemplo, apresentar a
promiscuidade como pecado. A mensagem do reino deve denun-ciar fortemente toda forma do mal. Creio que toda cultura tem
propensão a supor a salvação por méritos pessoais. Como o inimi-go é astutamente sagaz, ele pode desvirtuar o ensino na mente da
pessoa que está sendo evangelizada. Assim pode lhe dar a impres-são que Deus o aceitará se deixar certas práticas. Por sua vez, o Espírito Santo pode produzir genuína convicção de pecado e alguns evangelizados se arrependerem de certas práticas erradas. Neste
caso, eles mesmos já estarão predispostos a deixá-las, mas pelo
motivo correto.
contextualização entre os indígenas• uma visão geral aél 259
Questões sociais relevantes com reflexos na moralidade entre os maxacali
Poligamia — É uma necessidade socio-econômica? Pode-se batizar um polígamo? Ele pode ser líder na igreja?4
Iniciação sexual — Eles são muito abertos no ensino do sexo para
as crianças desde pequenas. O tio-sogro ou tia-sogra não se importam
se o sobrinho-genro andar com sua filha e os casamentos são combi-nados pelos pais. Desse modo, sua iniciação sexual ocorre bem cedo. Surgem as questões: é prematura? É necessária ou reflete uma cultura promíscua? Que procedimento deverão adotar os crentes?
Licenciosidade sexual — As esposas entendem que os "cunhados"
têm o direito de tomar liberdades sexuais com elas. O sogro, se é um dos "sobrinhos-genros", pode também. Para o marido recém-casado,
todos os irmãos, mesmo os casados, devem/podem iniciar a nova cunhada, e ele deve fazer de conta que não viu.
Papamiti, a figura do co-engravidador — No parentesco tribal, os irmãos ou primos paralelos de um homem são chamados papamiti (pai menor) dos filhos deste. Eles creem que todos os homens que mantêm relação com a mulher gestante ajudam a gerar a criança e a
formar o feto, assim os irmãos geralmente brincam assim: "eu fiz
(gerei) uma parte desse filho". Seria isso uma troca de favores ou uma boa desculpa para a promiscuidade?
Um novo crente em uma tribo do grupo Jê enfrentou sérios
problemas com situação semelhante; a licenciosidade sexual do seu
grupo quase exigia que ele e sua esposa participassem.
Questões espirituais sensíveis
O xamanismo é um poder aético e ambivalente. Os xamãs são espe-cialistas em oferecer ou instruir respostas culturais lidando com "pro-blemas". Missionários têm a tendência de "demonizar" a pajelança indígena, mas vale a pena considerar esta questão sensível.
Elucidativo texto sobre isso é o relato sobre Omodo (Hiebert 2004:177-179).
260 Pondo a contextualização em prática estudos de caso
É prudente polarizar-se com o xamã? Pode-se honrar um xamã
virtuoso? Como situar os tênues limites entre a fitoterapia (ou o aconselhamento terapêutico), funções que um shamã pode exercer, e as magias malignas.
Durante uma visita ao povo maxacali para participar de uma
reunião de saúde no posto indígena, fiquei surpreso quando o xamã que tinha vindo da Guiana Francesa me abordou propondo um desa-
fio. Pouco conhecia aquele pajé. Fui cumprimentá-lo e fazer amizade e só mais um senhor estava perto. Parece que o xamã estava me espe-rando porque logo após os cumprimentos e alguma troca de palavras foi logo dizendo:
— Você que é crente, repele a chuva.
Em outras palavras, "Se você tem contato com o ser sobrenatural que controla a chuva prove isso acionando-o agora!"
Eu já tinha ouvido que ele vivia explorando as pessoas dizendo que se o pagassem bem, ele faria suas magias para não chover, não ter vendavais ou trovões. O outro índio ficou me olhando e eu pensei se este seria o meu monte Carmelo, como Elias. Mentalmente pedi sabe-doria a Deus e optei por questionar o xamã sobre o assunto:
— Escute kãkãe (irmão mais velho), será que é realmente bom se
não chover? Olha, se não vier a chuva as frutas silvestres não vão ama-durecer e as caças ficarão magras e poderão morrer de fome; se não chover os rios e igarapés vão secar e não haverá mais peixes, a terra e a vegetação ficará seca e tudo pode acabar numa grande queimada.
A esta altura o outro índio que me observava atentamente para
ouvir o que eu diria estava rindo. Concluí perguntando-lhe: — Você acharia bom mesmo se não chovesse? — E, acho que não ia ser bom, não. — respondeu bem descon-
certado e gaguejando.
Caso faz-de-conta oitio• invocamos
Outro caso interessante envolvia um etno-musicólogo que estava muito animado gravando vários tipos de música na língua indígena. Tinha pedido para os índios gravarem músicas xamanísticas e já ia para a ter-ceira música. Percebi que os homens estavam meio tensos e não se sen-tindo muito à vontade para continuar; então ouvi o diálogo que travaram.
Contextualização entre os indígenas: uma visão geral ■°261
— É, os espíritos devem saber que não estamos musicando-os
(envolvendo-os no cântico) pra valer, mas que é só uma sessão de
faz-de-conta. É perigoso cantar desse jeito!
— O que faremos? Será que não há riscos se continuar? Os espí-
ritos podem ficar muito zangados se não estivermos invocando de
verdade. Será que devemos parar? E o cacique bem diplomata, depois de falar individualmente com
o pajé, sugeriu: — Bem, se cantarmos outro tipo de música antes de continuar
com músicas invocativas aos espíritos, acho que não terá problema em
voltar a uma música xamanística depois. Todos concordaram e me pediram para explicar ao musicólogo
que eles iriam suspender a música xamanística um pouquinho para
não zangar os espíritos, levando-os a entender que eles não estavam na tocaia os invocando de verdade. E depois de cantarem outro tipo
de música voltariam a cantar mais algumas músicas daquele gênero.
Foi um alívio para eles, assim foi feito e tudo terminou bem.
Contextualizar requer identificação radicar?
Até onde a necessidade de contextualizar requer identificação de com-portamento exterior? Há um exemplo de missionários que adotaram
o nudismo entre povos nus como meio de se identificar. Até que
ponto este tipo de identificação faz parte da contextualização? É importante entender o que Paulo quis dizer com a expressão
"fiz-me como" judeu, ou como "sem lei". Qual é a diferença entre fazer-se como judeu e tornar-se judeu?
No contexto indígena, o povo local quer que o missionário se iden-
tifique com ele no dia-a-dia e o missionário também quer ser aceito. A questão é: até que ponto essa identificação deve acontecer? Quando se
envolver ou não em práticas culturais duvidosas e desconhecidas? Alguns exemplos desta identificação são os seguintes:
Antes de aceitar um "batismo" ou outro ritual de adoção tribal,
o missionário deve procurar ver até que ponto isso requer com-promissos e obrigações sociais com o grupo, que comprome-
tam o testemunho cristão.
262 eu Pondo a contextualização em prática: estudos de caso
Como Daniel e seus companheiros, o missionário deve inves-
tigar se há inconvenientes em aceitar a comida ou bebida ofe- recida, mesmo que seja "as finas iguarias do cacique".
Os perigos da falta de contextualização crítica
Contextualização crítica se refere à necessidade de ter critérios para a
contextualização. Não se pode aceitar qualquer traço cultural, sem primeiro examinar se esse traço está de acordo com diretrizes ou cri-
térios bíblicos. A seguir, alguns exemplos de perigos que a ausência
desses critérios pode trazer: O caso baniwa — terminologia e conhecimentos culturais deficientes
Empréstimos estrangeiros, ou elaboração de termos com conceito quase zero, podem enfraquecer a mensagem. A inquestionável garra, consagração, integridade e determinação de Sophie Muller no esforço em comunicar a mensagem não a impediram de cometer erros que hoje prejudicam a identidade da igreja nativa entre os baniwa, kuripako
e nyengatu. Ela não conseguiu esperar para dominar bem o conheci-mento do idioma e da cultura e isso se traduziu em fraquezas no
ensino que acompanham a igreja até hoje. Um exemplo disso é que Muller usou um termo estrangeiro-
modificado (Whaniri-Dios) para Deus. Esse termo desconhecido e
vago gerou fraqueza no entendimento do verdadeiro caráter de Deus porque um termo importado pode ter significado zero para eles, então
preencherão com o que pensam. Por lhe faltar boa compreensão bicultural e linguística na época,
Muller traduziu o termo manheemnanai por "espíritos maus" mas
descobriu-se que o termo é uma expressão para "donos da puçanga
maléfica", expressão que o povo prefere usar para veneno.
Sophie era chamada a "Irmã de Nampiricoli" e foi recebida com
certo misticismo. Também usava a prática da alfabetização rápida
que obteve grande aceitação do povo. Usando esse prestígio e no afà de atingir tantas aldeias, algumas vezes ela realizava um evangelismo muito rápido, simplificando a mensagem. Ela apresentava Jesus e a sua traição por Judas, concluindo a mensagem com um apelo — os
que não queriam ir para junto de Judas e sim, junto de Jesus, de-veriam começar a cantar e a orar. Isso, como era de se esperar, foi
Contextualização entre os indígenas. urna visão geral ■2 263
muito fraco e gerou pseudo-conversões. O povo agia por um respeito
místico à sua pessoa e não por convicção de fé. Eles transformaram
seus rituais animistas para formatos cristãos mas ainda buscavam as mesmas coisas de antes. A salvação do pecado não foi uma coisa
especial para eles. Também na estruturação da igreja, com boa intenção por não
dispor de tempo suficiente em cada lugar, Sophie escreveu um tipo de guia ou manual litúrgico. Infelizmente o mesmo foi chamado de catecismo; ficou tão "sagrado" que sua autoridade se tornou igual ou maior do que os textos bíblicos.
É importante observar se o evangelho gerou uma nova vida com novos interesses e motivações ou não. Se o povo continua com os mes-
mos interesses, preocupações e motivações de antes, cuidado, é sinal de sincretismo dissimulado por práticas exteriores de formatos cristãos. Deixo aqui algumas perguntas para detectar sintomas de possível sincretismo:
O povo aprendeu a adorar a Deus pelo que ele é ou ainda existe muita oração de súplica para proteção, provisão e vida próspera e feliz?
Mudou o foco de suas preocupações ou ainda vivem preocu-pados com malefícios de espíritos maus, e coisas aparecidas? Existe interesse em comunicar a verdade da salvação com os
parentes ou apenas falam de um Deus que protege, livra de acidentes, supre comida e cuida da vida aqui?
Mostram arrependimento do pecado porque é contra Deus e sua santidade, ou não?
Como mencionei, temos mais perguntas que respostas. Vou con-cluir com algumas sugestões de temas que possivelmente precisam de contextualização.
Alguns aspectos que requerem contextualização
Alisto aqui alguns aspectos da formação e autoctonia da igreja que
exigirão cuidados na contextualização:
264 Pondo a contextualização em prática estudos de caso
1. O conteúdo teológico e a abordagem das lições de ensino bíblico
devem tocar naquilo que tem relevância cultural para os ouvin-tes. Isso requer o mapeamento da cultura com clareza de com-preensão da fenomenologia religiosa. A preparação de lições bíblicas, de modo semelhante ao da tradução, requer acurada atenção na busca da comunicação correta dos conceitos. Aqui se pode usar muitos comentários e ilustrações culturais fami-liares que enriqueçam e facilitem o entendimento correto das
verdades bíblicas. É importante fazer uso das perguntas que os ouvintes fazem, às
quais não têm respostas culturais satisfatórias (como o altar ao Deus
desconhecido aos atenienses). O uso de expressões idiomáticas na língua alvo tem maior poder de
comunicação, comparado a conceitos ou longas frases abstratas.
O uso de figuras de linguagem admitidas na língua deve ser
enfatizado. 2. Na tradução bíblica há de se levar em conta a terminologia e os
conceitos que têm correspondentes ou não na cultura e língua
alvos. Algumas vezes existe equivalência formal de termos,
outras vezes não. É preciso cuidar para que a tradução não insira tanta coisa nova que fique carregada e de difícil com-
preensão aos falantes. Por outro lado, não deve se limitar tanto às coisas familiares aos nativos que comprometa os conceitos e
os valores que a cultura bíblica contém. Tal equilíbrio exige
exímio conhecimento da mensagem bíblica e não menos da
cultura e língua alvos. Na tradução literal e na tradução comentada, deve buscar o equilí-
brio entre ser excessivo em comentários e ter o mínimo de informação
explicativa necessária á compreensão correta.
Entre o implícito e o explícito, muitas coisas que são subentendi-
das para nós (culturais) precisam ser explicitadas em outra cultura.
3. A forma de ensinar deve ser contextualizada também. Como é
que o povo transmite conhecimentos? A que hora do dia ou da semana estão habituados a isso? Quem é responsável por ensinar e quem é aprendiz? É claro que a igreja terá sua vida
própria, mas a disseminação da verdade pelo testemunho
Co!textualização entre os indígenas: urna visão geral • 265
interpessoal com certeza poderá seguir sua maneira de ensinar.
É preciso evitar nossa cultura ocidental domingueira e formal, tão pobre em transmitir as verdades do reino informalmente no cotidiano. Ligado com isso, é preciso atenção com oralidade
e escrita, uso de formas discursivas culturais, lirismo e músicas
repetitivas cíclicamente:5
Música repetitiva é outro assunto relevante. O cantor da aldeia ouviu
o ensino bíblico e compôs uma música com letra de duas ou três frases que repetia várias vezes a mesma frase. Indagado sobre a possibilidade de usar músicas, o missionário disse: — Sim, o cantor local até já fez uma musiquinha, mas é só umas frases. Parece que não tem conteúdo.
— Espere — questionei, — O que essas frases dizem?
Ele contou que falavam que Deus é bom, faz tudo e sabe tudo. — Rapaz! Olha que música preciosa! Está ajudando o povo a
memorizar os principais atributos de Deus, não acha? Ele, aí, percebeu a grandeza da pequena música. Eram os pilares
da fé cristã em poucas frases repetidas pelo cantor indígena. A abun-
dante repetição cíclica nas músicas é uma ferramenta essencial da oralidade, e não podemos dispensá-la!
4. A igreja indígena, para ser autóctone, precisa ter sua expressão, suas formas rituais, rotina de vida e outras marcas que a carac-terizem como tal. Exige-se cuidado para não abrir espaço para
o sincretismo que pode aparentar formas cristãs exteriores, mas que não traduzem o autêntico cristianismo. Como ser "cultu-
ral" sem perder as marcas cristãs e como ser "cristão" sem impor nossas formas eclesiais?
Isso vale para vários aspectos da vida da igreja: liturgia, pregação, liderança e disciplina.
Liturgia: Em favor da autoctonia, deve-se dar liberdade às formas de expressões culturais neutras nas celebrações cristãs. Como fazer isso sem comprometer a reverência devida ao nome do Senhor? Ou seriam o que consideramos como reverência apenas elementos de nossa cultura?
Por exemplo: um hino sobre a história de Noé, se for cantado com todas as repetições da música waiãpi, deve levar uns 40 minutos.
266 Pondo a contextualização em prática estudos de caso
Pregação: A igreja deve ter sua livre maneira de propagar a fé entre o seu povo mantendo fidelidade à verdade do evangelho. Algu-mas vezes se pensa que um missionário indígena "precisa" do mesmo modelo de "envio e sustento" que os demais. Será que a forma cultural tem outras alternativas de enviar propagadores da mensagem?
Liderança: Muitas culturas indígenas têm estilos próprios de lide-rança que vão refletir também dentro da igreja. E agora? A igreja deve ser aberta para formas culturais ou deve ser rigorosa com o que se entende por "padrões" bíblicos?
Disciplina: Nem toda cultura age com rigor com os delinquentes, mas na igreja não se deve ser complacente com o pecado. Como apli-car os princípios bíblicos harmonizando-os com as práticas culturais?
Conclusão
Estes exemplos e dicas para uma boa contextualização nos ajudaram entre o povo Maxacali. Espero que sejam de benefício para o leitor na sua busca de fidelidade bíblica e relevância cultural. Levamos o reino de Deus aos povos, não nossos sistemas litúrgicos ou costumes pes-soais. No final, após todo esforço de pesquisar, perguntar, esperar e analisar, nossa dependência está em Deus, nosso Senhor e o Senhor deste mundo e da igreja, seja que for a cultura em que está inserida.
Bibliografia
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h1X
Manifesto da consulta sobre contextualização
e missões'
Nós, da Associação de Professores de Missões do Brasil, na consulta realizada nos dias de 09 a 12 de agosto de 2006, em Atibaia, São Paulo, sobre Contextualização e Missões, após estudo aprofundado do relevante tema sobre a contextualização na obra missionária, apre-sentamos o seguinte parecer:
1. reconhecendo a necessidade da contextualização bíblica na obra missionária mundial;
2. reconhecendo e reafirmando nossa convicção de que a Pala-vra de Deus é normativa e supracultural e deve ser vivenciada a partir do nosso próprio contexto, implicando na vida devocional com Deus e aperfeiçoamento do caráter cristão na vida do obreiro;
3. reconhecendo que para fazer a contextualização relevante do evangelho é indispensável conhecer profundamente a cultu-ra do povo;
1 Este manifesto foi escrito e aceito por unanimidade no final da consulta da APMB (Professores de Missões Transculturais no Brasil) em Atibaia, São Paulo, 09-12 de agosto de 2006. Na consulta este livro foi apresentado e avaliado por mais ou menos 100 pessoas presentes.
270 e. Contextualização missionária
4. reconhecendo que contextualização sem a Palavra de Deus como norma leva ao sincretismo, nominalismo e outros des-vios na missão;
5. reconhecendo que o missionário deve apresentar a Palavra e trabalhar com o povo, confiando na operação do Espírito Santo;
6. reconhecendo que a igreja brasileira deve ter consciência da importância de contextualização em seu próprio contexto e na missão transcultural;
7. reconhecendo que temos cometido falhas no ensino da contextualização bíblica no preparo de nossos obreiros;
8. reconhecendo a necessidade da inclusão do ensino da contextualização bíblica de forma transdisciplinar na edu-cação teológica e missiológica;
9. reconhecendo que necessitamos refletir a respeito do que já tem sido produzido sobre a contextualização no contexto mundial;
10. reconhecendo a necessidade de incentivar a reflexão da contextualização a partir da América Latina,
Nos comprometemos a: 1. ser fiéis à revelação divina expressa na Palavra de Deus bus-
cando o discernimento do Espírito Santo; 2. buscar uma compreensão equilibrada do texto e do contexto; 3. continuar refletindo sobre o assunto de forma crítica, bíblico-
teológica, missiológica e antropológica; 4. influenciar, de forma positiva e relevante, o nosso contexto
de ação; 5. fazer contextualização tanto na igreja local quanto no con-
texto nacional e na missão transcultural; 6. utilizar as informações e discussões desta consulta na conduta
cristã e prática ministerial.
Atibaia, 12 de agosto de 2006.
Barbara Helen Burns Missionária no Brasil desde 1969, Barbara tem trabalhado quase todo esse tempo no ensino de missões. Contextualização Missionária, uma de suas principais disciplinas acadêmicas, é o que motivou a produção deste livro. Com mestrado e doutorado em Missiologia, Barbara co-ordena a Escola de Missões Transculturais da Missão JUVEP em João Pessoa, Paraíba desde 1999.
Bertil Ekstrõm Criado no Brasil, missionário sueco com a Igreja Batista Indepen-dente, Bertil foi presidente da AMTB por quatro anos e membro da diretoria da APMB por muitos anos. E atual Diretor Executivo da Comissão de Missões da WEA (Aliança Evangélica Mundial). Mora com sua esposa Elzira e quatro filhos em Campinas, São Paulo.
Joed Venturini de Souza Com mestrado do Seminário do Sul (Batista), Joed é missionário com a JMM ( Junta de Missões Mundiais da Convenção Batista Brasilei-ra) em Guiné Bissau com sua esposa e dois filhos.
Kevin Bradford Coordenador para o Brasil da missão "Initiative" (antigo: "Advancing Churches in Missions Commitment") e, desde 1990, Professor de Missões no Seminário Bíblico Palavra da Vida (Atibaia, SP). Possui Doutorado em Ministério com ênfase em Missões pela Trinity International University (Chicago) e Mestrados em Teologia e Mis-sões pelo Danas Theological Seminary. Mora em Atibaia com sua esposa, Rebecca, e três crianças. Atualmente, é Segundo Vice-presi-dente da APMB.
272 um Coniextualização missionária
Maria Bernadete da Silva Diretora do CIEM em Rio de Janeiro, missionária experiente no Leste Europeu e mestre em Educação Cristã e Missões, Bernadete tem Ph.D. de Southwestern Seminary em Fort Worth, Texas.
Michael Dawson Nascido e criado entre os yanomamis de Venezuela, Michael é missio-nário entre eles e mora na selva com sua esposa Keila e três filhos. É autor do livro "Growing up Yanomamõ" (Crescendo yanomami, pu-blicado por Winepress Publishing, 2006).
Ronaldo Lidório Missionário renomado em Gana e atualmente no Brasil, com as missões AMEM (A Missão de Evangelismo Mundial) e APMT (Agência Presbiteriana de Missões Transculturais). Pioneiro, mestre, conferen-cista e autor, Ronaldo tem atuado no plantio de igrejas, tradução da Bíblia e coordenação de projetos sociais na África e atualmente lidera uma equipe missionária na Amazônia Brasileira. E doutor em Antro-pologia Cultural e consultor para diversas iniciativas evangelísticas entre grupos animistas em vários países. Ronaldo mora em Manaus com sua esposa, Rossana, e dois filhos.
Silas de Lima Missionário, consultor linguístico e tradutor da MNTB (Missão Novas Tribos do Brasil), Silas trabalhou com a tribo Waiãpi, tradu-zindo a Bíblia e plantando a igreja. Ele mora em Anápolis com sua esposa e filhos.
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