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    Marta Mega de Andrade

    A CIDADE DAS MULHERESCIDADANIA E ALTERIDADE FEMININA NA ATENAS CLSSICA

    Rio de JaneiroLHIA2001

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    Copyright 2001 Marta Mega de Andrade

    Preparao: Marta M. de Andrade

    Diagramao: Marta M. de AndradeIlustrao da capa: Srgio BarrosoFoto da Capa: Atena (sentada) e jovem mulher. nfora tica de gurasvermelhas, 475-425 a.C. London, British Museum, E 316; ARV2 857.6.Corpus Vasorum Antiquorum. Brittish Museum, 5, pr. 58, g. 1 a-bReviso: Eduardo Corra do PradoImpresso e acabamento: Fbrica de Livros

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)

    938. 05 Andrade, Marta Mega de - 1967 - A cidade das mulheres: cidadania e alteridadefeminina na Atenas Clssica / Marta Mega de Andrade. Rio de Janeiro: LHIA, 2001. 174 p.

    ISBN: 85-88211-01-7

    Bibliogra a: p. 171-174 1. Histria Antiga. I. Ttulo.

    CDD

    2001Proibida a reproduo total ou parcial.

    Os infratores sero processados na forma da lei.Laboratrio de Histria Antiga da UFRJ / LHIA

    1 EdioLargo de S. Francisco de Paula 1, CentroRio de Janeiro - RJ CEP:20051070

    http://[email protected]

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    A EduardoPor este livro, e por tudomais.Hermes Passa

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    PREFCIO:

    Ao abrir este livro, o leitor encontrar o estudo que defendi comodissertao de mestrado em 1994, na ps-graduao em Histria daUniversidade Federal Fluminense. claro que o retorno a este trabalhono podia deixar de ser crtico: seis anos depois, no h leitura mais

    implacvel do que aquela de algum que se responsabiliza pelo queescreveu, nos bons momentos, mas principalmente naquilo que gostariade dizer de novo com outras palavras. De incio, fazer uma crtica de autor: em 1994, desagradava-me aidia de confundir este estudo sobre o imaginrio da cidadania ateniensee sua construo a partir da gurao do feminino, com uma pesquisa decunho feminista. Com efeito, eu no fazia uma histria da mulher,mas uma histria da cidadania comonmos, e do como essa ordempoltica e social da Atenas antiga no apenas aceitava como subenten-dia a possibilidade de subverso. Esta possibilidade se con gurava naapario das mulheres como agentes ativas na dinmica de re-produode uma ideologia da unidade / diversidade na plis.

    Como negar, ento, no propriamente intenes feministas, mas opertencimento dos problemas levantados por este estudo a um projeto dea rmao da presena ativa das mulheres, e da positividade do gnerofeminino, na histria das pleis antigas? No se trata de incluir as mul-heres no clube de homens, mas de evidenciar que este tal clube dehomens que, pretende-se, teria sido a cidade-estado grega, no era maisdo que a ponta visvel de umiceberg, e que a plis era tambm uma plis das mulheres.

    Uma plis das mulheres: no a mesma, mas outra; no idntica aoscidados, mas diferente deles. Uma cidade cotidiana, feita de mltiplosencontros e de mltiplas negociaes entre habitantes, dentre os quais as

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    mulheres, especialmente as cidads (para o caso da ideologia poltica),tinham um papel de destaque. As mulheres transitavam entre as duascidades: aquela dos includos, dos cidados e suas famlias, e a dosoutros, aqueles que habitavam um lugar conhecido como Atenas ou umterritrio como a tica, sem, no entanto, se ligarem a ele pelos laosexclusivistas da cidadania. Esta plis das mulheres no corresponde,de nitivamente, ao modelo de cidade ou de Estado, que os historiadoresainda no deixaram de reproduzir desde h muito. E essas mulheres,as descendentes de Pandora que habitam entre os homens mortais nos

    campos e nas cidades gregas, no se encaixam no modelo da boa mul-her grega, aquela do silncio, do recato, da recluso domstica, que nsnos acostumamos a apontar e dizer mirem-se nelas, as mulheres deAtenas. Mirem-se nelas, porque elas no receberam a herana que ns re-cebemos, e portanto tinham efetivamente uma posio relevante em suacidade, sem ressentimentos. Porque, de fato, a questo mais importanteno a de esclarecer se elas cavam presas em casa ou saiam s ruas,se elas eram ou no castas, recatadas, silenciosas. A questo : como, nasubordinao cultural e social das mulheres pelos homens, h mais doque passividade, ou aceitao; mais do que violncia ou resistncia, hcriao, ou talvez fosse melhor dizer, hmtis, astcia, no somente pararesistir, mas especi camente para enganar. Como se tira a ao da reao,

    da passividade? Como tirar a negociao cotidiana e profundamentepoltica, da aceitao? Como perceber o temor de umno, embutidonaquele que predomina? verdade que, seis anos depois, teria sido prefervel falar em gne-ros, ou em como masculino e feminino so posies de sujeitos, investidasnos processos (histricos) de reproduo cultural. No entanto, decidipublicar a dissertao sem alteraes de contedo, porque o trabalho que

    teria feito hoje seria outro, e ainda, porque os estudos que realizo hojetm na dissertao, tal como ela foi defendida, seu ponto de partida e seuponto de retorno. Boa, m, bem ou mal escrita, em bom portugus ou

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    Prefcio

    no, o fato que essa dissertao de mestrado abre e fecha um crculo. O leitor encontrar uma tentativa de evidenciar, primeiro, o carterde profunda alteridade representada pelo gnero feminino na culturaclssica. Mesmo que se tenha dito que as mulheres cidads, em Atenas,eram enquadradas segundo certos modelos de conduta, os quais podiamser aceitos ou transgredidos na prtica social, verdade que havia umoutro modelo, no de boa esposa mas de mulher feminina, amada,desejada, mas sobretudo temida: porque a seduo feminina tira dohomem a sua previdncia, sua ateno, seu esforo. Antes mesmo de

    um modelo (cristo) de queda da humanidade, para a qual a respon-sabilidade feminina seria inconteste e seu pecado constituinte, as lhasde Pandora na Grcia tinham que carregar o estigma da suspeita, dopresente enganoso que no cessavam de representar na histria doshomens. Lembremos, no entanto, que um presente um presente, nouma tentao; e Pandora era um presente dos deuses, um belo presente,aceito porque desejado. Esse outro modelo do feminino, o do desejo e dotemor, da atrao e da suspeita, muito frequentemente esquecido nosestudos sobre a mulher na Grcia; mas aquele cujos tpicos procuramosexplorar na representao de uma raa das mulheres. Depois, procura-se deixar claro que a relao das mulheres com a plis, os avatares de uma participao feminina na construo dos ideaise das prticas polticas na Atenas clssica, no se restringiam apenas

    ao largamente aceita (e aceitvel, prevista mesmo nas instituiesda plis) da boa-esposa. Ao contrrio, a grande importncia ativa dasprticas polticas femininas, aquilo que poderia ligar feminino a plis,se con gurava no encontro da raa das mulheres com a comunidadepoltica e social (polade) da cidade. Tratava-se de algo que s o difer-ente poderia fazer, algo que s um outro poderia articular: cidadaniae artifcio, cidados e no-cidados, cidade e famlia, etc. En m: no

    eram os homens que, no fundo, precisavam das mulheres, era a cidade,instituio poltica e de governo sobre os habitantes de um territrio,que se experimentava no feminino.

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    A Cidade das Mulheres

    No poderia deixar de agradecer aqui o apoio daqueles que foramparte importante da elaborao desse trabalho. Minha ex-orientadora,profa. Vnia Fres, e os profs. Ciro Cardoso e Ulpiano Meneses, soainda hoje pontos de referncia das pesquisas que realizo. Agradeo tambm a J-P. Vernant, pois esse estudo sobre feminino epoltica no teatro jamais teria sido realizado se no fossem as refernciastericas, metodolgicas e de vida , de M. Vernant.

    Rio de Janeiro, 9 de novembro de 2000

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    SUMRIO

    INTRODUO: ............................................................................... 11

    CAPTULO 1: UMA PRTICA DO IMAGINRIO: O TEATROE A FABRICAO DA CIDADANIA .....................................18

    1.1- O TEATRO E A PLIS: ...........................................................191.2 A prtica do Imaginrio: .......................................................251.3 Cidadania e Feminino na Plis: ............................................281.3.1- O Feminino Na Plis: Algumas Abordagens: ...........................281.3.2 A Vivncia da Cidadania Democrtica: ................................32

    PARTE I: O IMAGINRIO DO FEMININO E A REPRESEN-TAO DO OUTRO ................................................................37

    CAPTULO 2: ALTERIDADE E FEMININO ..............................382.1- Pandora e a Raa das Mulheres: ..............................................402.1.1- Teogonia: ..................................................................................412.1.2- Os Trabalhos e os Dias:............................................................452.2- GYNAIKS NON: ................................................................48

    CAPTULO 3: EURPIDES E A CONSTRUO DA ALTERI-DADE DO FEMININO .............................................................54

    3.1- A mtis das mulheres: ................................................................543.2- Uma Outra Solidariedade: .......................................................623.3- A MANIA: ..................................................................................713.4- Palavras Vs, ou o lgos gynakos: ........................................... 763.5- O Feminino, A Iluso, A Verdade: ............................................ 823.6- Masculino e Feminino: ..............................................................89

    PARTE II: O FEMININO E O UNIVERSO DA PLIS...............93

    CAPTULO 4: EURPIDES, OU QUANDO A MULHER FALADA CIDADE ...............................................................................94

    4.1- A Cidade como patrs: ...............................................................954.2- O Discurso Poltico de Hcuba: .............................................106

    4.3- O Sacrifcio das Jovens Virgens: ............................................ 1104.3.1- Kals tnathon: a morte do hoplita e o elogio de Atenas ....... 1114.3.2- Macria e Polixena: ................................................................1144.3.3- I gnia:................................................................................... 116

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    CAPTULO 5: ARISTFANES, OU QUANDO AS MULHERESGOVERNAM A CIDADE: ...................................................... 124

    5.1- Homens e Mulheres, partes iguais: ........................................1265.2- A Interveno nos Destinos da Plis: .....................................1305.3- A Acrpole Sitiada: unidade e diversidade na plis..............1335.3.1- Cidadania no feminino: .........................................................1345.3.2- Unidade, Diversidade:............................................................136

    CAPTULO 6: A RAINHA DAS ABELHAS E A ARTE DE BEM-USAR ........................................................................................145

    6.1- A okonomia e o anr agaths: ................................................1466.2- Hegemn mlissa: ....................................................................1496.2.1- Comunidade, complementaridade: .........................................1506.2.2- O governo da casa: mulher-abelha. ........................................1536.3- A Rainha das Abelhas e a Alteridade do Femini-no: ............ 157

    CONCLUSO: ................................................................................161

    BIBLIOGRAFIA: ...........................................................................171

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    Lista de Abreviaturas: *

    AGA Agamenon AND Andrmaca ASM Assemblia das Mulheres BAC As Bacantes ECO O Econmico

    FEN As Fencias HEC Hcuba HEL Helena HER Os Heraclidas HIP Hiplito IFA I gnia em ulis IFT I gnia em Taurida LIS Lisstrata MED Media TEO Teogonia TES As Tesmofrias TRA Os Trabalhos e os Dias TRO As Troianas

    SEM Elegia - Semnides de Amorgos RS As Rs

    *A referncia completa das obras abreviadas se encontra no item Ada Bibliogra a do presente estudo.

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    INTRODUO:

    O estudo que ora se apresenta, abre-se para a construo da cida-dania democrtica no perodo clssico da histria das pleis, no espaodo teatro ateniense. Desta perspectiva sob a qual a plis se oferece aoolhar, emerge a relao entre a cidadania e o feminino. Oferece-se comoespetculo a propriedade que o feminino detm para atuar na construoda cidadania ateniense, de forma que a prpria vivncia da cidadaniacomporte, na formulao de seu paradigma, o reconhecimento de si e adelimitao do Outro. Este Outro so os no-atenienses, os no-cidados,mas tambm o Outro da prpria cidadania democrtica. Pode-se dizer

    que o feminino impe compreenso da cidadania, a presena, junto aoparadigma, daquilo que dele se exclui, mas que no entanto o fundamenta:a alteridade. Que isso que, excludo, entretanto fundamento? Uma das princi-pais hipteses discutidas ao longo do estudo, a de que justamente por serexcludo da relao poltica com a cidade, o feminino constitui um Outro:outro do masculino, outro da cidadania, mas tambm outro da prpria

    cultura (nmos). E por ser este outro, o feminino chamado a traduzir,no espao do teatro, uma experincia da alteridade que constituinte davivncia da cidadania democrtica do V sculo a.C.. No se trata, por-tanto, de desenvolver uma histria da mulher, no sentido da abordagemdos vestgios e indcios da voz feminina, embora um dos resultadosdo estudo seja a a rmao da cidadania feminina como possibilidade.Trata-se de percorrer o imaginrio do feminino; de compreender as linhasde fora presentes neste imaginrio, que se misturam e transformam a

    gura da mulher, em Eurpides e em Aristfanes, principalmente, paraque o feminino seja a lugar de encontro entre a alteridade e a plis.

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    12 Introduo

    Por feminino, compreende-se o conjunto das representaes queinscrevem a presena da mulher na sociedade. Feminino , portanto,uma construo do imaginrio. O imaginrio do feminino comporta, naapropriao que dele fazem as obras de Eurpides e Aristfanes, umaduplicidade. Por um lado, o feminino tem uma funo. A mulher tmum papel social, no interior do qual se explica sua excluso do espaoda cidadania. Por outro lado, o imaginrio do feminino se abre para apossibilidade de uma relao fundamental entre a mulher e uma formade alteridade, radical em relao ao universo masculino da cultura. Isto

    signi ca que, ao abordar a construo da cidadania pela via do imag-inrio do feminino, incide-se sobre ela no interstcio, onde a identidadecomporta sua possvel dissoluo.

    As questes bsicas apontadas acima delimitam a cronologia e aespacialidade recortadas para o estudo. Focaliza-se a plis ateniense,na passagem do V para o IV sculo a.C.. Trata-se de um momentode crise e transio para o mundo grego como um todo. Perodo daGuerra do Peloponeso, perdida por Atenas, em que a hegemonia da plis democrtica coloca-se em jogo. Momento apropriado para formular commaior insistncia a questo da dissoluo da experincia democrtica dacidadania, e, com isso, da experincia da autonomia mesma da plis.

    O espao de circunscrio do estudo o territrio ateniense, primeiroporque a partir deste territrio, bem como da experincia desta plis, queo discurso do teatro se estrutura. Segundo, porque Atenas, assim comoEsparta, um paradigma do perodo clssico da histria dos gregos; um referencial. Um paradigma clssico para os povos da antiguidadegrega e romana, mas tambm para ns mesmos. Torna-se de extremaimportncia, portanto, mesmo para a atualidade, mostrar como essemodelo da democracia investe sobre a relao com o Outro, trazendopara o espao do teatro a alteridade estranhamento e diferena, mas

    ainda pluralidade como problema. Se a cidadania ateniense clssica foidurante muito tempo percebida atravs de seus prprios ltros, comoa isonomia, a permutabilidade, a participao efetiva dos cidados, ao

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    14 Introduo

    plis democrtica, compreende-se principalmente como deliberao,coloca-se frente frente com o acaso, o destino. Para alm da crena nacorrespondncia entre causa e consequncia, muito prximo ainda dapotncia das divindades e de seus caprichos, o ato de humano e polticode deliberar comporta em si o inde nido. Neste inde nido, a Tragdiainsere sua questo.

    O feminino surge, no teatro de Eurpides, com dois sentidos difer-entes. Em primeiro lugar, reatualizando a alteridade do feminino, talqual formulada nos poemas de Hesodo, e con rmada por Semnides

    de Amorgos. Em segundo lugar, na perspectiva de sua relao com umacidade ou coletividade. De acordo com este segundo sentido, percebe-se no apenas como, na Atenas do perodo clssico, se compreende aintegrao normal do feminino cidade, mas ainda como o problemadesta mesma integrao no se resolve pela excluso poltica e dominaosocial da mulher.

    Teatro, cidade, feminino. Esses trs pontos, interligados, ou melhor,investigados de dentro do n que os une, fornecem novas perspectivaspara os temas da relao da cidade com o Outro, por um lado, e do femi-nino com a plis, por outro lado. O teatro trgico de Eurpides constitui-se como uma das chaves para a abertura da possibilidade deste tipo dequestionamento. A partir dele, possvel livrar-se, por um momento, dofantasma da passividade e excluso da mulher na sociedade grega, paraabordar a cidadania feminina do ponto de vista de sua positividade: ondeo feminino vital para a discusso da compreenso que a plis fabrica,e oferece, de si mesma.

    A abordagem das comdias de Aristfanes demonstra, com clareza,que a excluso da mulher no surge naturalmente, como um fato demenor importncia. Ao contrrio, a presena das mulheres na cidade,principalmente como esposas de cidados, engendra a possibilidade do

    governo feminino, da ginecocracia. Eis, ento, a mais profunda relaodo feminino, no Outro que representa em vista da cidadania masculina,com a mesma plis dos atenienses. Cidadania e alteridade se unem, em

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    A Cidade das Mulheres 15

    Aristfanes, para dar os contornos da cidade das mulheres. O texto doEconmico, de Xenofonte junta-se, por m, ao grupo,para evidenciar o contraste entre a abordagem teatral e a abordagempoltica do feminino. O espao que o discurso doEconmico de Xe-nofonte abre ao papel do feminino na formao do homem de bem,modelo ideal de conduta do cidado, considervel. No tratado poltico,a mulher surge, entretanto, afastada de sua relao com a alteridade. Ofeminino integrado: a esposa, rainha do lar, rainhas das abelhas. Nela,apresenta-se um feminino apropriado, enquadrado no modelo da mulher-

    abelha. Na abordagem poltica de Xenofonte, portanto, a alteridade dofeminino se oculta, e, com ela, esconde-se a prpria possibilidade decidadania feminina. Na trajetria que leva de Hesodo a Xenofonte, o feminino perde-seda sua potncia de presenti car o Outro dentro da prpria cultura? Ou se-ria mais correto a rmar que apangio do teatro construir o feminino emsua alteridade, para melhor lanar a cidade e a cidadania como problemas? O teatro ressalta, de fato, o Outro no feminino, enquanto ao discursopoltico interessa reforar sua submisso, sua adequao ao projeto devida do homem, do bom cidado. O confronto de um e outro, para almdo questionamento sobre a possibilidade do debate entre ambos, ajudoua comprovar as hipteses de pesquisa. Primeiro, que na dissoluo da cidadania instaura-se um debate, aoqual pertencem as obras de Eurpides, Aristfanes, e ainda Xenofonte.Este debate incide sobre a vivncia da unidade, da percepo da plis como efetivamente o conjunto annimo de seus cidados, como cole-tividade, portanto. Segundo, que em cada um desses testemunhos, opapel da mulher crucial para a construo de um ideal em relao plis. En m, que a cidadania feminina como possibilidade, e positivi-dade se compreende no reconhecimento da alteridade do feminino. Esse

    reconhecimento faz da gurao da mulher uma via de acesso para apluralidade dos estatutos sociais, para alm da condio de cidado , quea plis envolve. Se a alteridade feminina se perde, em Xenofonte, trata-se

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    ainda de utilizar a gurao do feminino para criar uma perspectiva deao com relao a cidadania.

    Em todos os momentos, ressalta-se, portanto, a positividade e acumplicidade da relao das femininas mulheres com a plis. Seriaainda possvel, ento, insistir na interpretao da cidade democrticaateniense como um clube de Homens? A vantagem do estudo doimaginrio do feminino situa-se neste ponto: ele desvenda o papel damulher como muito mais amplo, muito mais abrangente, do que a maiscomum a rmao de seu enquadramento social. Que as mulheres no

    tivessem direito voz prpria em Atenas, mais ainda no V sculo a.C.,no se discute no mbito deste estudo. Discute-se, por outro lado, queo estudo do feminino estabelea para si mesmo este fato social comolimite real do feminino.

    Para desenvolver a discusso das questes que o estudo suscita,foi estabelecida a diviso em partes. No captulo 1, enfoca-se de formamais abrangente o prprio fazer-se da pesquisa: a abordagem do teatroem sua relao com o imaginrio, a noo de Imaginrio, a questo dacidadania e do feminino na Atenas clssica. Para alm do captulo 1, oestudo foi dividido em duas partes, correspondendo s ambiguidadesque envolvem o imaginrio do feminino. A primeira parte apresenta e discute a alteridade do feminino, asformas de sua emergncia, suas implicaes. Inicia-se com a de niodos tpicos da relao da mulher com o Outro na cultura grega, atravs domito de Prometeu e Pandora narrado naTeogonia e nosTrabalhos e osDias (captulo 2). Como complementao a essa de nio da alteridadedo feminino, analisa-se os jambos do poeta Semnides de Amorgos,em que se escarnece da tribo das mulheres No captulo seguinte,demonstra-se como Eurpides se apropria desses tpicos para construir

    a relao das guras femininas com o estranhamento, e a ameaa querepresenta, entre os homens, a raa das mulheres. Na segunda parte, enfatiza-se a abordagem do teatro de Eurpides

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    sobre a presena da mulher no universo da cidade (captulo 4). No ap-enas atravs do discurso que pronunciam contra as guerras entre pleis,mas tambm pela insero do feminino em espaos que, na cidade, lheso vedados: discusso poltica,aret do cidado-soldado. No espaoaberto entre os dois plos da abordagem de Eurpides inscreve-se o teatrode Aristfanes, que demonstra com clareza as vias de possibilidade darelao prpria entre feminino e cidade (captulo 5). A abordagem dotratadoEconmico, de Xenofonte, naliza o estudo (captulo 6) paramostrar que, na perda do Outro, o feminino torna-se mais adequado,

    mais integrado. Integrao que s pode ser feita custa da relao ativaentre o feminino e a plis.A concluso deste estudo aponta para a possibilidade da cidadania

    feminina na plis ateniense. Isto signi ca que, apesar da excluso dofeminino em relao ao poder poltico, a mulher mantm uma relaoativa com a plis ateniense, sem intermedirios. Esta relao, que tornalatente e legtima a ginecocracia, baseia-se na construo da alteridadedo feminino. E evidencia, por isso, que a alteridade constituinte dacompreenso da plis como universo de convvio humano. O estudosugere, portanto, que a experincia poltica da democracia ateniense inseparvel, ao menos no nal do V sculo a.C., da vivncia do artifcioe da alteridade intrnsecas a essa experincia. E que justamente porquea plis supe esse fundo onde o outro se introduz e habita, que ela

    pode ser, com propriedade, a plis das mulheres.

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    1.1- O TEATRO E A PLIS:

    O teatro trgico e cmico do gregos um fenmeno que, na plis dosatenienses, se confunde com a histria da democracia. Ele se estabelececomo instituio cvica no mesmo processo que leva consolidaodas instituies democrticas, a partir do nal do sculo VI a.C. Ele setransforma perdendo a caracterstica de profundo questionamento daao humana nos quadros da plis quando a cidade passa pela crise

    e dissoluo de seus fundamentos polticos: a autonomia, a isonomia, ea publicidade da vida.Mais do que ligado histria poltica da democracia em Atenas, o

    teatro como produo cultural e como espao, no pode ser concebidocomo um simples gnero de entretenimento. Tratava-se de um eventoreligioso, mais precisamente de um concurso, parte principal dasfestividades urbanas (e rurais) em honra ao deus Dioniso. A ocasiodas Grandes Dionsias concernia coletividade dos atenienses, e, paraalm da cidade, atraa a Atenas uma grande quantidade de estrangeiros.As peas mais famosas ganhavam repercusso, sendo reapresentadasem teatros de outras cidades gregas, assim como em outros teatrosna prpria plis ateniense. Do cortejo do ritual religioso exposiodo tesouro da Liga de Delos diante do pblico das Grande Dionsias,tratava-se da exaltao da grandeza da

    plis, da proeminncia da cidadecomocoletividade sobre os cidados, da xao da hegemonia de Atenasfrente aos aliados e a outras pleis gregas. Embora no fosse a nica oportunidade para as apresentaesteatrais em Atenas1, a festa das Grandes Dionsias era ocasio deprimeira apresentao da maioria das peas da Tragdia grega que hoje

    1-O tempo e espao do teatro no se restringiam ao teatro de Dioniso, nasGrandes Dionsias, embora ganhassem, nela, sua repercusso. Havia ainda,em Atenas, as Lenias, Dionsias rurais, e os concursos trgicos nosdmoi. Aexistncia dessas festividades de porte menor, no interior dosdmoi, leva-nosa crer que inmeros outros teatros existiam em Atenas no sculo V. Ao menos

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    20Captulo 1: Uma Prtica do Imaginrio

    so conhecidas. Este fato deve ser considerado: um teatro lotado para arepresentao das peas de um concurso, constitui um circuito cultural depropores inigualveis no mundo grego da poca. Esta popu-laridadedo teatro, trgico ou cmico, um fator constituinte de sua destinaopblica. Mas em que consiste a publicidade na Atenas clssica, senona escrita, no debate das leis, noagn entre oradores, na deliberao? Ostemas propostos pelos poetas so ainda temasdepostos para um debate,no mesmo sentido em que as leis so escritas, depostas nos templos,expostas ao olhar pblico, nos primrdios da civilizao das pleis.

    No espao do teatro, questes so levadas ao pblico, e, desta forma, discusso. Nele, prticas sociais inscrevem-se em cena, formando, paraos espectadores, uma imagem que lhes de todo familiar, na comdia ena tragdia, posto que imitao: imagem teatralizada da vida cotidiana,naquilo que dela se produz como comum ao conjunto dos atenienses. Porisso, entre o teatro e a prtica do imaginrio, como veremos, a relao ntima, profunda. A imagem que o teatro oferece aos espectadores umainterpretao da vida cotidiana, das prticas sociais que produzem o cotidiano. nestesentido que se pode a rmar que o teatro fornece uma imitao da plis:nele a cidade se faz teatro; e nele, a cidade espectadora de sua prpriaimagem. Alguns dos principais instrumentos do teatro grego, trgico ecmico, nessa interpretao da vivncia cotidiana por meio da imitao,

    eram aconstruo de exemplos, ainverso (caricatura, hiprbole,

    exacerbao de caracteres) e acontradio. A inverso, assim como a caricatura, a obra da comdia. Maisprxima da linguagem corrente, forando a interao do pblico com aspeas, atravs das parabases (onde se inscrevem, muitas vezes, no teatro

    um desses teatros tinha uma importncia comparvel, pelo seu porte e pelaassistncia que recebia, formada por um grande nmero de estrangeiros, a doTeatro de Dioniso: o teatro do Pireu. Algumas peas foram representadas nelepela primeira vez.

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    de Aristfanes, discusses polticas de acontecimentos contemporneos),do improviso cmico dos atores, e mesmo da constituio do pblico,em determinados momentos, como personagemda cena, a comdia dosculo V a.C. diverte-se a inverter os valores da plis. Neste sentido,formulou-se uma comparao da Comdia grega com um espelho; umespelho invertido da plis.

    Representar o presente sobre o presente[],tal a tarefade um Aristfanes. Tarefa propriamente cvica, se estairrealidade, invertendo o real, o coloca no lugar [].(LORAUX, 1990, p.1940).

    Fazendo a cidade rir de si mesma, a destinao da comdia ,segundo N. Loraux, preservar a ordem e a unidade da cidade real.Neste sentido, o teatro de Aristfanes andaria a passos de caranguejo:atirando ao escrnio, apresentando o ridculo, para melhor defender a plis em seus valores fundamentais. Que o diga oagn entre a RazoJusta e a Razo Injusta, emAs Nuvens, ou mesmo a disputa entre squilo

    e Eurpides, emAs Rs, onde o que entra em cena so a velha e a novaordens: a velha paidia dos ginsios e das palestras, formadora docarter do cidado hoplita, contra a nova educao particular, sofstica,onde homens aprendem, ao abrigo da luz solar, como rebater um forteargumento atravs de argumentos fracos:

    [Esq]Por que se faz necessrio admirar um poeta?[Eur]Por sua inteligncia, suas admoestaes, e porque nstornamos melhores os homens nas cidades [RS, vv.1000-1011]

    Na disputa entre Eurpides e squilo, a comdia aristofnica deixatransparecer uma concepo da relao entre a Tragdia e a cidadania. Atragdia cumpre seu papel, apresentando aos homens exemplos de ao.Entretanto, tornar os homens melhores em uma cidade no tem um ssentido. A noo de educao2 do cidado ateniense implica certamente

    2- A paidia grega tem um sentido profundamente relacionado ao sentidopoltico da ao humana. Se a educao a forma de tornar melhores os ho-mens, de exercitar-se para aaret , ela implica tambm a forma de ao poltica,ou seja, o debate e a deliberao. Por isso, aquilo que constituinte do debate,

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    o orgulho, a honra do guerreiro, do mais forte. Em termos ticos, tornarmelhores os homens torn-los soldados, senhores da cidadania e dosdestinos de sua cidade. Para o Eurpides de Aristfanes, a funo do poeta ainda a detornar os homens melhores; funoeducativa, portanto. No entanto,ele introduz um novo argumento, que bem peculiar do nal do sculoV a.C.: permitir aos espectadores o raciocnio, o exame das questespropostas. Ainda isto a poesia? No teatro de Aristfanes, a verdadeiraarte trgica reconhecida em squilo. Em sua obra, na maneira com

    que ela apresenta ao pblicoexemplos de ao e vida, encontra-se aidenti cao do cidado com sua plis. O cidado identi ca-se com acidade: o cidado , efetivamente a cidade como um todo. Os ateniensessero atenienses, na medida em que o forem como soldados, comomagistrados, como homens votados publicidade exigida pelo modelopoltico e cvico de Atenas. Se os exemplos oferecidos pelas tragdias de Eurpides j nooperam na proximidade entre o cidado e a prpria cidade, , emprincpio, porque eles incidem menos sobre aquilo que apaga, em cadacidado, os laos com a vida privada; porque a tica que move o hoplita,plasmada na estrutura do modelo da plis isonomia, permutabilidade no a mesma que move o so sta. Este cresce com suas lies pagas,com a frequentao dos banquetes, a manuteno de lies particulares,as caminhadas pela gora. ainda com a sofstica que a existncia davida privada como possibilidade da liberdade emerge cena poltica(CASSIN, 1990, pp.130-145). Porm, no ainda a desintegrao da plis como referencial de vida aquilo que Eurpides demonstra. So,ao contrrio, indcios de que naquele momento do teatro e da cidade, a

    ou seja, o con ito, oagn tambm o fundamento da paidia. No se trata deapresentar exemplos, mas de coloc-los na encruzilhada de umagn, forandoo desenlace, a deciso.Cf.. JAEGGER, Werner.Paidia: a formao do homemgrego. So Paulo: Martins fontes, 1983, pp 3-16; VERNANT, Jean Pierre &VIDAL-NAQUET, Pierre.Mito e Tragdia na Grcia Antiga. So Paulo: Bra-siliense, 1982, pp.13-19.

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    identidade da cidadania abre-se ao questionamento. Isto equivale a dizerque a plis como organizao humana se dispe como questo. Esse questionamento da cidadania no um debate consciente eexplcito. Ele se delineia, subrepticiamente,a partir do carterambguo do teatro trgico. Em outras palavras, as tenses, as ambiguidades,presentes nas peas como na estrutura potica da tragdia grega,favorecem que a contradio atinja a prpria a vivncia da plis:frente a frente com seu prprio artifcio (isto , eu carter denmos,grosso modo conveno). No teatro de Eurpides, por exemplo, esse

    movimento de se defrontar com o artifcio da cidade produz-se naexplorao do feminino como alteridade, e, por isso mesmo, dentro dacontradio entre o si-mesmo da plis e a alteridade, o estranhamento,o diferente. Dir-se- isso inmeras vezes: a mulher representa o Outrodentro da prpria cultura. O que se ressalta na vivncia da plis, coma alteridade do feminino, a possibilidade da diferena, ou, de formarestrita, as fronteiras da cidadania. O teatro politiks, concerne ao poltico, por sua capacidadede colocar em questo, de discutir, e, por isso mesmo,tornar pblico,explicitando o con ito, em umaimitao da plis. A comdia, pelacaricatura que inverte os parmetros do dia a dia, para melhor defend-los,fundamentalmente. A Tragdia, oferecendo cidade tambm um espelho,que toma de emprstimo suas imagens mitologia e epopia helnica

    por excelncia Ilada, Odissia. Um espelho que puri ca, modela,

    atravs da apresentao aos olhos pblicos de seus heris encarnados.Um espelho que se auto-destri, pelas ferramentas do acaso (tych ), e danecessidade (anank ). A modelagem, a puri cao, se fazem no encontroda ao poltica com odestino. O heri da epopia um exemplo de honra, orgulho, e glria. NaTragdia, entretanto, o heri, sem ser despojado de seu carter exemplar,

    focalizado no momento em quedecide, partindo desse momento aao que desencadeia otrgico, ao perder sua ligaonecessria aoagente e inserir-se no acaso. A ao exemplar do heri, na Tragdia,

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    constitui-se, pois, como problema. Por apropriar-se da questo: quefazer?, a Tragdia se mescla a uma das coisas que a plis traz de maisfundamental: a preocupao com as implicaeshumanas do ato dedeliberar (VERNANT & VIDAL-NAQUET, 1988, p. 17). As consequncias dessas implicaes do teatro, para sua inserona sociedade do perodo clssico, j se fazem notar. Descarta-se suareduo continuidade de uma histria religiosa; descarta-se, ainda, suatranscendncia: fenmeno cultural, artstico, como sinnimos deespiritual. Pois enfatizar aqui somente a transcendncia dos fenmenos

    da arte, provocaria uma limitao das perspectivas que esses fenmenostrazem para a abordagem histrica: como se a relao entre teatro ehistria fosse a tentativa de puxar um o entre feixes paralelos oeconmico, o poltico, o social. Com isto, perde-se aquiloque faz a especi cidade do teatro como fenmeno social. O teatro, efetivamente, uma parte da realidade, e no um fantasma que sesobrepe ao todo social. O teatro, como prtica social que , apropria-se da totalidade da cultura: neste centro de densidade total, os os seencontram.

    As fronteiras do reconhecimento que uma sociedade fabrica parasi mesma, se cruzam no espao do teatro. Ali, produzem-se as cenas.E, desta maneira, ao seu modo, comoobra, as cenas devolvem plis a imagem que foi produzida, tal como o re exo dos feixes de luz queincidem sobre um espelho. Ao estudar o teatro grego, deve-se estar atento disposio que os feixes de luz tomam ao incidirem no espelho, aoscomponentes do espelho, elaborao do produto nal, que a imagem.O espelho como prtica, a prtica de admirar a imagem produzida noespelho. Duas coisas que esto longe de ser o mesmo que, olhando parao espelho, querer reconstituir os feixes de luz, como se, na virada dosmundos entre a luminosidade e a superfcie polida esses feixes

    permanecessem ilesos, e isolados. O teatro no um re exo da realidadesocial; ele realidade social na medida em que a prpria realidade socialque o fabrica, como um de seus mais atraentes produtos. Na medida em

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    que sobre as prticas sociais que ele incide, criando-as como imagem,como cena, como identidade ou alteridade. No debate que se instaura no espao do teatro, a plis se coloca emquesto. Como na Tragdia, em que o homem se v diante do destinoque no pode controlar; como na Comdia, em que a inverso da cidadefornece a matria do riso, mas tambm do confronto entre o que a vidacotidiana da plis, e o universo poltico da cidade. Das duas maneiras,o teatro devolve cidade uma imagem, em que ela se v. A imagem doteatro produz a identidade, mas ao mesmo tempo gera a alteridade. A

    produo do Mesmo s possvel na compreenso doOutro.

    1.2 A PRTICA DO IMAGINRIO:

    Foi dito, de passagem, algumas linhas atrs, que a relao entre teatroe imaginrio profunda. Isto porque o teatro, como produo cultural,atualiza em uma perspectiva o conjunto das representaes coletivas,como imagem e cena. Nesta realizao das representaes, produz-seimaginrio . A assimilao da cena teatral aos re exos da luz sobre asuperfcie do espelho traduz a perspectiva do teatro, na produo doimaginrio. Mas o que signi ca propriamente imaginrio? Em sua obra As Trs Ordens, ou o Imaginrio do Feudalismo,Georges Duby (1982) utiliza distintamente os conceitos de estruturasmentais, imaginrio, e ideologia. Todos, entretanto, se aplicam trifuncionalidade social. Como estrutura mental, a trifuncionalidadepermanece como esquema de organizao da sociedade de origemindo-europia, sobrevivente ainda em meio ao Antigo Regime francsdo sculo XVIII. Como ideologia, intervm na formao dos discursose das prticas polticas da Igreja, em sua pretenso de hierarquizar asociedade medieval sob sua hegemonia. Como imaginrio do feudalismo,

    a trifuncionalidade, no se busca apenas nos discursos o ciais, mas nasmalhas da formao dos discursos, dos prncipes, dos padres, na literaturae na arte.

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    Neste sentido, as mentalidades no so a mesma coisa que oimaginrio. As estruturas mentais so temas cuja durao pode serlongussima (e da o uso do termo estrutura viso de mundo persistente,inscrita na longa durao), que se impem s prticas sociais como seuslimites compreensivos (ARIS, 1990, p. 175). O imaginrio deve algoao conceito de estrutura, na medida em que instrumentaliza a formaodos discursos. Entretanto, ao contrrio das mentalidades, ele no seimpe, ele se inscreve nas prticas sociais, em um espao determinado,e em um momento determinado da vida em uma sociedade.

    O imaginrio inseparvel da perspectiva sob a qual se realizauma prtica social, em sentido geral. A prtica no se realiza no nada,por nada, desdobrando-se em um vazio. Prticas sociais implicam umlugar, um quem, que no absolutamente o mesmo que um eu, eum sobre o qu, capazes de ampli cao. O estudo de Nicole Lorauxsobre ainscrio da autoctonia do cidado ateniense no espao dacidade (LORAUX, 1990.) pode ser citado, para demonstrar a ligaodo imaginrio a uma perspectiva, ou a um lugar de produo. Nesteestudo, Atenas surge desdobrada em espaos heterogneos, na maneiracomo neles se inscreve um tema: a autoctonia do cidado. Em cada umadessasregies, as formas sob as quais a cidadania surge assentada naidenti cao do cidados ao solo da ptria (o operador, neste caso, oconjunto das narrativas mticas sobre a fundao de Atenas e o nascimento

    de Erictnio) tomam aspectos diferentes. O imaginrio da autoctoniase mostra na multiplicidade das variaes sobre um tema, um modeloque informa a relao da plis com a politea. Passa como que por umamalha, um ltro, atravs do qual se formam as imagens e os discursosproduzidos em regies diferentes. Atenas no possui, como um conjuntode idias, um imaginrio, mas mltiplos.

    Pertence, portanto, essncia da noo de imaginrio essa

    multiplicidade de variaes, posto que se trata de perspectiva, e no deidias ou modelos unvocos. O imaginrio no tem sentido espiritual, idealou transcendente. Ele s existe no encontro entre prtica e representao.

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    Entre pensamento e ao em potncia. Da a expresso: prtica doimaginrio .

    Neste estudo, ao se fazer referncia ao imaginrio da cidadania,da alteridade, do feminino, a noo detopoi(Cf . LORAUX,op. cit , eibid., 1981) surge muitas vezes como sinnimo de tema ou imagem. Anoo topogr ca, e pressupe a existncia de pontos localizveis emum espao. Ostopoido imaginrio so essas regies localizveis, essesacidentes geogr cos, ou regies dediscursividade 3. Os tpicos doimaginrio no se con guram como idias expressas, nem como modelos

    atravs dos quais se representam a sociedade e suas instituies. Oimaginrio do feminino formado por diversostopoi, que se manifestamcomo discursos, idias, modelosna medida de sua apropriao cultural.Uma narrativa mtica pode evidenciartopoi, presentes tambm emum discurso poltico, ou numa pea de Comdia, ou numa srie derepresentaes iconogr cas. Mas a prtica do imaginrio que confereo sentido de umtopos, na perspectiva prpria ao campo de uma obra,ou produo cultural. Portanto, o imaginrio remete para aregio em que se produz odiscurso. O imaginrio da cidadania constri a pea de teatro, a guraode um mito em uma nfora, o discurso poltico de um orador ateniense.Mas s se apresenta nas caractersticas daquele mbito da vida, daproduo cultural como aquilo que uma sociedade, produzindo,diz de

    si mesma. Por isso, pode inverter-se a relao de derivao: a pea, anfora, o discurso, constrem o imaginrio da cidadania. No teatro de Eurpides, o imaginrio do feminino evidencia a relaodo feminino com a representao da diferena e do Outro, na culturagrega. Mas, para alm desta relao entre feminino e alteridade, que

    3- [] a natureza dostopoi sem dvida a de desorganizar toda de nio.Pois se eles so regra, eles so tambm para o discurso umamatria, meiopensamento, meio forma. Repertrio de palavras, de frmulas e idias, elespreexistem a todo discurso como um rascunho, ou mais exatamente, como umtipo de grau zero [], e sua existncia testemunha a possibilidade de tomar aindaa palavra para se dizer a mesma coisa []. LORAUX, Nicole. LInventiondAthnes: histoire de loraison funbre dans la la cit classique. Paris: Mouton,1981, p. 246.

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    se repete em diversas ocasies fora de suas obras, aquilo que confere aEurpides sua singularidade a con gurao que ostopoide de niodo feminino assumem em suas peas. Junto construo da alteridadedo feminino, emerge o problema da cidadania ateniense: h uma relaofundamental entre a mulher e a cidade, nas tragdias de Eurpides comonas comdias de Aristfanes. Se a mulher, malgrado a submisso defato em que se encontra, com sua existnciao cial relegada ao espaodomstico, surge ligada cidade, duas questes se colocam: primeiro,que relao esta que ela mantm com a plis? Trata-se de cidadania, tal

    como se de ne pela democracia? Segundo, se o imaginrio do femininopode admitir a cidadania da mulher, que consequncias este fato traz paraa prpria con gurao da cidadania, e da cidade, no imaginrio polticoateniense? Imaginrio do feminino? Sim, mas no encontro entre oslugares de discurso que constrem o feminino, quer em sua alteridade,quer em sua integrao pela via do espao domstico, e a construoda identidade da plis, atravs dostopoida cidadania ateniense. Esteencontro faz a singularidade do teatro, de Eurpides e Aristfanes.

    1.3 CIDADANIA E FEMININO NA PLIS:

    1.3.1- O Feminino Na Plis: Algumas Abordagens:

    Uma a rmao muito comum sobre a presena da mulher na cidadegrega consiste em dizer que a mulher , na Atenas clssica, uma eternamenor; a prpria Atenas seria um clube de homens. Encontra-se estaa rmao como opinio formada tanto em estudos clssicos sobre acidade e a cidadania (VATIN, 1984, MOSS, 1989), quanto em estudosque abordam a presena da mulher na cidade, em sua relao com aprpria cidade (LORAUX, 1990, passim).

    A cidadania ateniense do sculo V a.C. exclui a mulher. Em atos jurdicos, por exemplo, a mulher deve ser representada por seukyrios,responsvel ou mais precisamente senhor, assim como metecos e

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    escravos necessitam de um intermedirio cidado para interpelar acidade. Pelo discurso poltico corrente, o feminino tem seu espaode direito no universo domstico, onde deve permanecer em silncio,evitando apresentar-se, perguntar, escutar conversas. Esta construopoltica do feminino confere s mulheres uma atitude conveniente aseguir. Os estudos que reproduzem esta imagem do feminino acabam porrecair na a rmao da eterna menoridade da mulher na sociedade grega.Esta imagem no esgota, de modo algum, nem a relao entre feminino

    e plis, nem a presena da mulher na cidade. Para alm das euptridas,a quem o modelo mais facilmente se dirige, misturam-se multidoda gora, do teatro, do porto, centenas de mulheres do povo, e mesmoas prprias e sempre sbias hetairai. No que se refere a estasmulheres, o modelo politicamente correto do feminino di cilmente seencaixa. Supondo, entretanto, que se admita a imagem poltica do femininoapenas em seu carter de ideal paradigma do feminino cria-se o paradoxo: a cidadania democrtica, que informa a relao doscidados com a plis, exclui estrangeiros domiciliados os metecos e escravos. O cidado, nascido de pai e me atenienses, um homeme no uma mulher. A excluso, intrnseca compreenso da cidadaniaateniense, deveria negar ao feminino no s a cidadania, mas ainda a

    relao mais ntima, sem mediao do sexo masculino, com a plis.Em outras palavras, cidade e feminino seriam, por de nio, gurasincompatveis. Apesar disso, feminino e plis, encontram-se interligados emdiversos momentos da vida da cidade. Nas festas religiosas, por exemplo,a mulher atua de forma decisiva para garantir a permanncia da cidade,sua hegemonia, seus cidados. Na compreenso mtica que Atenas

    elabora sobre suas origens, o voto da mulher garante o nome de Palas

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    Atena cidade (Varro, apud. AUSTIN & VIDAL-NAQUET, 1986.)4. Noespao do teatro, a comdia confere s mulheres sua utopia: o governo dacidade. Nessas, e em outras ocasies, a exclusode fato abre passagempara a cumplicidade.

    Alm disso, se a mulher nascida em Atenas, de uma casa ateniense,no pode votar, nem sequer entrar no recinto da Assemblia, ela podetransmitir os direitos propriedade fundiria, caso do epiclerato5,assim como conferir legitimidade cidadania masculina (dependentedo nascimento de pai e me atenienses, a partir de 451 a.C.). A

    cidadania democrtica tal qual se de ne durante o sculo de Pricles,exclundo do poder poltico as mulheres da cidade, no esgota, portanto,as possibilidades de relao ntima com a plis, fora dos quadros doexerccio das magistraturas, da deliberao, e da guerra. Seria essa relaouma forma de cidadania? Para responder a esta questo, C. Vatin (op. cit., pp. 117-142)sustenta uma diferenciao entre cidadania poltica, e uma cidadaniacivil. A cidadania poltica compreenderia o exerccio das magistraturas,a armao como hoplita, a votao nas assemblias. Nela, estariamclassi cados os homens nascidos de pai e me atenienses, entre dezoitoe sessenta anos. A cidadania civil abarcaria o conjunto da comunidadeateniense: os excludos do poder poltico, cuja relao com a cidadeseria, entretanto, demasiado estreita para que se lhes recusasse o ttulo decidados: os jovens, rapazes ou moas antes da efebia ou do casamento;e sem dvida alguma as mulheres casadas, esposas de cidados, cujopapel em festas cvicas como as Tesmofrias era o da garantia da prpriacontinuidade da cidade. Esta subdiviso da cidadania em poltica e civil pode ser admitida,

    4

    - VARRO IN Santo Agostinho.A Cidade de Deus, 18, 9.5- A moa epclera aquela que, nica herdeira, encontra-se literalmente

    instalada sobre oclros paterno. Ela deve casar-se, preferencialmente, com oparente mais prximo em linhagem paterna, no caso, o irmo do pai.

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    para representar a cidadania feminina como possvel e diferente dacidadania masculina. Entretanto, h algumas consideraes a serem feitas.Em primeiro lugar, a diviso poltico/civil pode signi car umaprojeo na cidade grega, de uma oposio que lhe de todo anacrnica.Mesmo as aes que fazem do feminino uma instncia crucial para areproduo da sociedade no esto fora do poltico, se entendermos poresta palavra aquilo que pertence plis, que lhe diz respeito. Conferirao feminino uma cidadania civil signi ca, ento, reatualizar a a rmaode que a cidade um clube de homens. Signi ca, por isso, resolver a

    questo da participao da mulher nos destinos da cidade fora da relaoprpria entre feminino e poltico. Incidindo justamente sobre a questo da relao entre femininoe plis, Nicole Loraux baseia-se na anlise da gura mtica da raadas mulheres (gnos gynaikn), para a rmar, com maior veemncia, aexcluso da mulher. A cidade compreende-se na diviso entre os sexos.No h palavra para designar a cidadania feminina (a ateniense), comoexiste o ateniense. A mulher no tem cidadania, da mesma forma queno autctone (op. cit., passim )6. Esta perspectiva, embora se a rme ainda na con rmao de que acidade um clube de homens, tem a vantagem de perceber o femininocomo princpio de diferena. Em sua excluso, as mulheres agrupam-seem umgnos irredutvel ao gnero humano, sociedade dos homens. Amulher, sob essa perspectiva aparece em sua alteridade. Nicole Lorauxressalta o con ito, entre a presena da mulher na cidade e a sociedadedos homens. Mas no chega a formular, como questo, que na exclusoda mulher, a cidadania feminina seja ainda possvel. Da interlocuoentre C. Vatin e Nicole Loraux, pode-se colocar uma questo sobre a

    6- Marcel Detienne e Giulia Sissa rebatem esta interpretao de Nicole Lo-

    raux, a partir de seu fundamento, ou seja, da autoctonia do feminino. Para isso,usam fragmentos de uma pea de Eurpides,Erecteu, onde surge como herona agura de uma ateniense autctone: Praxitia. (Cf.. DETIENNE, Marcel. A Fora

    das Mulheres; Hera, Atena e Congneres. IN : DETIENNE, Marcel & SISSA,Giulia.Os Deuses Gregos. So Paulo: Cia das Letras, 1990, pp. 245-267.).

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    cidadania feminina: para compreend-la no seria preciso restituir suadiferena, sua irredutibilidade cidadania masculina? Uma cidadaniafundada na prpria oposio entre os sexos, e na alteridade do feminino.Uma cidadania do Outro, na medida que relaciona profundamente aalteridade do feminino com a prpria plis dos atenienses. O esforo que se empreende ao colocar-se a questo da cidadaniafeminina, realiza-se no sentido da compreenso desta cidadania em suapositividade. No se descarta o fato de que a cumplicidade do femininocom relao a plis muitas vezes passiva: a mulher reproduz homens

    iguais a seus pais; realiza rituais religiosos para a manuteno dostatusquo, ou seja, do domnio masculino da cidade. Mas se a rma que estapassividade no esgota acumplicidade entre o feminino e a cidade. No por acaso que os atenienses representaram, lado a lado na Acrpole,o primeiro ateniense autctone Erictnio e a primeira mulher Pandora este imbatvel ardil dos deuses. Da mesma forma comoconferiu umhabitat alteridade do feminino, a cidade no teria, comisso, reconhecido no feminino a possibilidade da cidadania?

    1.3.2 A Vivncia da Cidadania Democrtica:

    Para nossos propsitos no presente estudo, podemos mencionaros trs fatores bsicos que caracterizam a democracia em Atenas, deacordo com J-P. Vernant (1984). Em primeiro lugar, uma extraordinria preeminncia da palavra [grifo nosso] sobre todos os outros instrumentosde poder (id., p. 34). Em segundo lugar, a publicidade da vida: acessopblico s leis que regem a cidade, debate pblico das decises, das idias,da religio. Concebendo a centralizao do poder de forma literal, ouseja, aarch encontra-se no meioa igual distancia de todos os cidados,estabelece-se, en m, uma das mais importantes caractersticas do modelo

    poltico ateniense (aquela que de ne a democracia como poder dodmos):a isonomia. Pelo princpio da isonomia, todos os cidados se concebemcomo semelhantes.

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    A cidadania democrtica assim construda caracterizou a relaoentre a plis e seus cidados no sculo V a.C.. Constituiu, deste modo,a forma ideal da cidadania ateniense do perodo clssico. Sua maiorgarantia foi a manuteno da hegemonia da cidade por meio dos tributosaliados da Liga de Delos. Graas a ele, um certo equilbrio entre adinmica da cidadania e as foras sociais foi mantido: garantiu-se oacesso dos cidados terra, de forma a estabelecer o equilbrio entre agrande propriedade e a massa de pequenos proprietrios, cidados ideais;garantiu-se, ainda, o acesso das classes censitrias s magistraturas,

    atravs de sua remunerao. Garantiu-se o enquadramento dos tetasatravs da remunerao das magistraturas e outras subvenes, eprincipalmente atravs de seu servio na marinha. Com a derrota ateniense na Guerra do Peloponeso e a perda dahegemonia sobre a Liga de Delos, a cidadania democrtica atenienseentra em confronto com as prticas sociais que tecem a trama de suadissoluo. A presena macia dos cidados mais pobres na cidadeaponta para a concentrao da terra, no campo. As leiras da marinhaabsorvem cidados, antigos pequenos proprietrios e tetas. Se a poltica ea guerra se separam, como indica o afastamento do estratego com relaoa liderana poltica, a ligao entre a infantaria hopltica e a cidadaniatorna-se tambm cada vez mais tnue. As cidades encontram-se mais emais em vias de sustentar exrcitos de mercenrios. Terra cvica, cidadania, guerra. Um quadro que delineia, para simesma, a prpria plis, na medida em que ela livre, autnoma. Seo que est em jogo a cidadania, e se a identidade da plis dadapela mais profunda relao entre o cidado pequeno proprietrio,soldado e sua comunidade isonmica, se, en m, no se diz Atenas,mas os atenienses, aquilo que se esvai com a experincia da cidadaniademocrtica a plis mesma. A plis como estrutura de organizao

    social. Um dos sintomas de que a crise nal do V sculo a.C. atua sobrea compreenso da cidadania ateniense, apresenta-se com relao a

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    publicidade. Durante todo o sculo V a.C., a fora da ideologia dacomunidade, da isonomia, do apagamento da famlia em nome daidenti cao do cidado plis, foi capaz de silenciar (ou ao menosmascarar) possveis manifestaes de interesses individuais ou privados. O cidado perdeu o nome de famlia, para ganhar o nome dodmos aoqual pertencia. As leis contra a ostentao privada eram duras em seusprincpios, embora se possa colocar em questo sua aplicao de fato.A suprema honra do cidado, sua virtude, era reiterada nos funeraispblicos, no elogio da bela-morte sem nome, da grandeza da cidade.

    Quando se inicia o sculo IV a.C., so tambm os avatares da publicidade que se encontram modi cados. Ao diagnosticar os sintomas da crise da plis durante o IV sculo a.C., Pierre Vidal-Naquet a rma:

    A elite social j no corresponde exatamente elite poltica,ao contrrio do sculo V. A poltica e as questes de Estadovo dando lugar pouco a pouco s questes privadas. Amudana de tom manifesta na Comdia; a poltica acabarpor ser totalmente excluda dela(AUSTIN & VIDAL-NAQUET,op. cit., p 144).

    No apenas a Comdia Nova, mas tambm a cultura material ea iconogra a, sugerem que a demisso poltica dodmos ateniense acompanhada de uma importncia maior conferida vida privada: aoespao interior da casa e as relaes entre amigos, mais do que entreconcidados.

    A importncia da percepo da sensibilidade vida privada superaa simples questo do abandono do interesse poltico, ao cuidadodos interiores, dos indivduos, das casas particulares. A oposioentre a publicidade da vida na plis, e a vida privada da ordem dosfundamentos da prpria cidade democrtica. A cidade se forma, comefeito,a partir dos parmetros do universo das famlias aristocrticasda sociedade arcaica, em que o crculo de pertena social gira e se fecha

    em torno dookos. No , portanto, como em nossa cultura, formada emlongo processo que podemos remontar aos sculos XVI e XVII de nossaera, em que o pblico da ordem do Estado, da poltica, da cidadania,

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    A Cidade das Mulheres 35

    e o privado da ordem dontimo, do verdadeiro, da pessoa em seudilogo consigo mesma.Plis e Okos opem-se como duas formasantagnicas de agrupamento. Na gradativa dissoluo da cidadania democrtica, a cidadeapresenta-se como questo. A obra de Eurpides e Aristfanes incidesobre esta questo fazendo emergir os elos que ligam o feminino cidade. Xenofonte, seguindo os passos da loso a socrtica, constriseu modelo de formao do cidado, fundamentando em seu cidadoideal a legitimidade do poder poltico (oligrquico?) sobre a cidade. A

    visibilidade da cidadania feminina inscreve-se, pois, na problemtica doacesso ao poder poltico.Isto pode signi car que o grupo dosisi se transforma. Que a

    unidade inicial da cidadania deixa transparecer por suas frestas umapluralidade, presente na cidade, mas ausente da plis ateniense, tal como vivenciada no sculo V a.C.. A relao do feminino com a cidade ecom o poder poltico uma das questes colocadas pelo transparecer damultiplicidade. talvez a questo mais prxima ainda da dinmica dacidadania democrtica: a cidade exclui do poder a mulher, mas integra ofeminino, submetido, pela via do casamento legtimo, e da religio. Paraformular a questo de forma radical, ou seja, em termos decidadania feminina, preciso ressaltar que a mulher, a esposa que participa dasTesmofrias, por exemplo, tem o carter irredutvel de um ardil dosdeuses. Ela descende no da terra sobre a qual a

    plis se inscreve, mas dePandora, feminino universal, raa das mulheres. O teatro, de Eurpides eAristfanes, formula nesses termos a questo. Xenofonte, noEconmico,prefere trazer a natureza feminina para a complementaridade do gnerohumano: assimilao das diferenas, para melhor fabricar oanr kalskagaths.

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    PARTE I: O IMAGINRIO DO FEMININO EA REPRESENTAO DOOUTRO

    O Zeus, porque in igistes aos humanos esta praga frau -dulenta, as mulheres, fazendo-as aparecer luz do dia? Sevossa inteno era a de propagar a raa mortal, no deveriaser necessrio requisitar da mulher o meio (EURPIDES, Hiplito, vv616-620).

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    CAPTULO 2

    ALTERIDADE E FEMININO A palavraalteridadesubstantiva um pronome demonstrativo.Outro,indicao daquilo que se encontra em descontinuidade com relao ao quesomos, torna-se o Outro, condio daquilo que apontamos como diferente.A mesma operao que torna possvel conceber oOutroinscreve tambmos parmetros daigualdade: reconhecer-se, substantivar-se, de nir parasi aquilo que lhe prprio. No h constituio em separado do Mesmoem identidade, e do Outro em diferena. O estudo dos mecanismos deabordagem dadiferena, em uma sociedade, ainda o estudo das formasde reconhecimento, em que o grupo compreende-se e fabrica-se comounidade. Verso e reverso identidade (de nio dos quadros em quea sociedade cotidianamente se reconhece e se reproduz como grupo) e

    alteridade constituem-se intimamente interligados.Ser grego. Ser ateniense. No ser brbaro. No perodo clssico dahistria dos gregos, uma das formas da inveno contnua de Atenas eraprecisamente esta: contraposio de gregos a brbaros, do regime das pleis realeza persa, da democracia soberania de um s, da cidadania submisso. Esta forma de constituio da alteridade aquela que sereconhece, como diferente,nmoi de outras sociedades (HARTOG, 1991,

    pp. 224-271). H, entretanto, uma outra forma de constituio da alteridade, umaoutra forma de percepo da diferena na Grcia clssica, que tambmparticipa na construo da identidade entre os cidados, e a plis. Trata-se da percepo dooutro em relao aonmos, daquilo que, emergindono seio da Tradio e dos costumes, provoca uma desorganizao, senouma subverso, desses mesmos costumes. A alteridade do femininoenquadra-se nesta forma da alteridade, da presenti cao da diferena. A alteridade que lana a diferena para fora, para as fronteiras donmos grego, estudada em sua forma religiosa por Jean Pierre Vernant

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    40Captulo 2: Alteridade e Feminino

    Para fazer da mulher um ser estranho cidade e aonmos, o discursoda poca clssica, e mesmo o posterior a ela, reproduz o alarido de umaestria do comeo: o discurso mitolgico daTeogonia e dosTrabalhose os Dias j lembrava, com efeito, que o femininonascia do estranho.A mulher tinha em sua origem algo irredutvel ordem humana: afabricao divina, o imbatvel ardil, armadilha de Zeus aos humanos. Afabricao de Pandora, narrada nesses dois poemas de Hesodo mais dedois sculos antes do auge da civilizao das pleis, o acontecimentomtico que baliza os discursos em que a reprovao ao gnero feminino

    ser a forma o cial de se falar da mulher, seja em Atenas, seja na plis,seja para muito alm dos limites da Antiguidade Grega. Fazer do feminino um serestranho uma forma de conceber umespao onde possvel irromper ooutro da cultura, trazendo a diferenapara dentro da cidade. Duas questes se impem: em primeiro lugar, queoutro este em que se reconhece o feminino? Os poemas de Hesodoe a Elegia de Semnides de Amorgos delineiam uma resposta a estaquesto. Em segundo lugar, quecidade esta que, em um certo nvel, dlugar percepo da diversidade no interior da unidade: Atenas, so osatenienses? Trata-se, nesta ltima questo, de um dos temas cujo debateser proposto na Terceira Parte desse trabalho: O Feminino e o Universoda Plis.

    2.1- PANDORA E A RAA DAS MULHERES:

    Os poemas de Hesodo datam pelo menos do sculo VII a.C.,quando o mundo grego ainda no vira o desenvolvimento pleno das pleis. Quando a poesia era ainda marcada pelo seu carter oral e deCelebrao, Hesodo conta o estabelecimento da condio humana emmeio ao surgimento do mundo dominado pelos deuses olmpicos. O

    tema da fabricao de Pandora, ou da primeira mulher, intervm tantona Teogonia, como em osTrabalhos e os Dias. As duas narrativasmerecem, entretanto, ser abordadas separadamente.

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    2.1.1- Teogonia:

    ATeogonia narra a gnese do cosmos, a provenincia dos deuses, ea repartio dastmai (prerrogativas) e dasmorai (domnios) entreas potncias olmpicas. No poema, o mito de Prometeu conta a estriada diferenciao entre deuses e mortais, e da instaurao da parte destesltimos: o sacrifcio, o cultivo da terra, o casamento1. Este quinho doshomens mortais se estabelece ao longo de um processo marcado pelo

    ardil, em que se sucedem aes arti ciosas e armadilhas colocando em jogo amtis de Prometeu e de Zeus. Pode-se resumir a sucesso dasarmadilhas da seguinte forma:

    1- Diferenciados homens e deuses no momento da divisodas partes do boi no sacrifcio, Prometeu realiza uma duplaocultao: sob as vsceras do animal ele esconde as carnes,sob a vistosa gordura, esconde os ossos, oferecendo ao Zeusmtioeis a escolha. Com a escolha da parte de aparncia maisatraente, estabelecem-se as atribuies de mortais e imortaisno sacrifcio: aos homens, o alimento cozido; aos deuses, afumaa dos ossos.2- Como contrapartida do dolo de Prometeu, Zeus esconde ofogo dos mortais, que no mais brotar ininterruptamente dosfreixos. Mais uma vez, entretanto, Prometeu o engana, roubandoo fogo ocultado em oca frula.3- Ao ver o brilho do fogo entre os mortais, Zeus enfurecido criapara a tribo dos homens ( phlanthrpon) o incombatvel ardil:um mal oculto sob a aparncia sedutora de um bem. Moldada daterra e da gua por Hefesto, a mulher virgem no recebe nome.

    1- Utilizamos aqui as anlises do mito de Prometeu e Pandora apresentadaspor J.P. Vernant, em O Mito Prometico em Hesodo, Mito e Sociedade naGrcia Antiga. RJ, Jos Olmpio, 1992, e Nicole Loraux, em Sur la Racedes Femmes et quelques unes de ses Tribus, Les Enfants dAthna, Paris, LaDcouverte, 1990.

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    42Captulo 2: Alteridade e Feminino

    adornada por Atena, como se enfeitam as jovens noivas para ocasamento. Terminada a obra, a mulher apresentada a deuses emortais reunidos. Homens e deuses so tomados pelo ambguosentimento doespanto (thama), aplicado ao mesmo tempopara o maravilhoso e para o monstruoso. A bela mulher virgemleva na cabea uma coroa de ouro, trabalhada por Hefesto, ondereluzem prodigiosamente talhadas as feras que a terra e o marnutrem(v.581).

    A sedutora virgem fecha o circuito das tramas dolosas, como o ltimo

    e grande dolo, xando de nitivamente a parte de fora e de destinoreservada aos homens: condenados a partir de ento a casar-se para gerarlhos, os mortais so obrigados a aceitar, dia aps dia, o presente de

    Zeus:kaln kakn antagathoo (v.585, ...belo mal, reverso de umbem). De acordo com a interpretao de Jean-Pierre Vernant para o mito,ver-se- na narrativa hesidica a ambiguidade do estatuto do homemmortal, entre animais e deuses. O sacrifcio separa mortais e imortais,o cozimento e a reproduo pelo casamento separam os homens dosanimais. Neste processo de separao, as carnes do boi sacri cado, ofogo, e a mulher correspondem-se. A mulher no a contrapartida dohomem. uma das armadilhas, como o so os ossos do boi por debaixo dagordura branca e reluzente, que atrai os olhares; como o o longevisvelbrilho do fogo, que Zeus esconde e Prometeu oculta sob a frula. No se trata de explicar de onde vm os homens, indistintamentechamados de homens come-po, homens mortais, e grei doshumanos. A humanidade de homens j est l. Explica-se porque greidos humanos necessrio dividir seu lugar e conviver com um ser quelhe semelhante pela forma, mas que tem do humano e do monstruoso,de cada um uma parte. Oespanto o primeiro atributo, aquele que funda

    a relao da mulher com os seres que, no mito de Prometeu, de nemsuas prerrogativas: mortais e imortais. Como armadilha, embuste,thama, a mulher surge fora do humano.

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    Ela justaposta. Um logro aceito imprudentemente pelo reverso dePrometeu, seu irmo Epimeteu, do qual os homens se tornam prisioneiros:quem no traz para junto de si a mulher atinge velhice funesta, sem

    lhos que o sustentem, e morre vendo seus bens serem divididos porparentes longnquos; quem casa submete-se ao acaso (consequncia dadupla derivao da mulher, bem e mal): ou consome-se em trabalho parasustentar o ventre esfomeado da mulher-zango, ou, com alguma sorte,chega a unio com uma boa esposa, garantia de sua descendncia. Ummal necessrio, jamais a metade do homem. A phlanthrpon no

    integrar osexo feminino.Grei dos humanos a rmar o homem, no amulher. Tal o sentido da concluso de Hesodo, para a narrativa dafabricao da mulher naTeogonia:

    Dela descende a gerao das femininas mulheres.[ Dela a funesta gerao e grei das mulheres]grande pena que habita entre os homens mortais 2

    Ao grupo dos homens justape-se umgnos gynaikn, umaraa dasmulheres. O uso degnos e phla, faz tanto do grupo dos homens mortaisquanto do grupo das mulheres blocos separados, de nidos ao mesmotempo por seu fechamento e por sua relao com grupos semelhantes(BENVENISTE,apud . LORAUX, 1990, p. 90)3. O gnos ka; phla gynaikn ope-se e relaciona-se a phlanthrpon, em uma convivncia

    penosa, na maioria das vezes, no como dois gneros de uma mesmaespcie, mas como duas espcies que, no limite, no se misturam. Na justaposio dos grupos, a raa das mulheres singulariza-se. A

    2-TEOG., vv. 590-592. O tradutor da verso utilizada optou por traduzir gnospor gerao, certamente para escapar da aparente tautologia em que incorrea expresso gnos ka phla. Nicole Loraux (op. cit., p.77) oferece uma opopara considerar o verso: Dela saiu a raa maldita, as tribos de mulheres, em quetribos ampli ca o trao funesto da raa, multiplicando-a internamente. Ouso de phla consagraria diversidade no interior da unidade.

    3- BENVENISTE, mile. Le Vocabulaire des Instituitions Indo-Europenes. Paris: Minuit, 1969. 2 vols.

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    44Captulo 2: Alteridade e Feminino

    Teogonia narra a sucesso dos nascimentos divinos, estabelecendo paraos deuses uma genealogia, explicando desta forma a provenincia daspotncias e do domnio de cada um dos olmpicos. O mito de Prometeu,ao mesmo tempo em que narra o estabelecimento da condio humana,explica o nascimento da mulher, em termos de provenincia e degenealogia. Uni ca-se, desta maneira, fora do humano ou do divino, porsua provenincia e descendncia diversas, umgnos gynaikn. Dothama sai a raa das mulheres. A mulher surge, portanto, forada humanidade, e reproduz-se ainda fora dela, na medida em que ognos

    produz sua prpria descendncia. A mulher gera a mulher,apesar danecessidade que os homens come-po tem da mulher para gerar lhossemelhantes a seus pais. No limite, a oposio entre a raa das mulherese os homens mortais alimentar o sonho grego de reproduzir-se sem aparticipao do ventre feminino: pudessem os homens gerar homens,pudesse a terra gerar homens (id., ibid., 1981, passim), libertandoassim a grei dos humanos da armadilha em que foi enlaada pelo Zeusmetoeis. Algumas concluses podem ser extradas desta leitura daTeogonia.A mulher surge no desenlace de uma disputa entre homens e deuses, ondese estabelece de nitivamente a condio humana no cosmos ordenadosob a potncia de Zeus. Em sua origem como fabricao ardilosa de Zeus,esconde-se a natureza ambgua de bem e de mal: bela, sedutora, maspuro artifcio. Os homens recebem o presente, deixam-se enlaar pelaarmadilha. Assim convivem, entre os mortais, umahumanidade e umaraa das mulheres. ATeogonia, na verso do mito de Prometeu queapresenta, explica, assim, lado a lado, a presena de duasmorai no seiodos mortais: ao invs de dois gneros complementares no grupo humano,dois grupos que no se confundem: os homens, representados porPrometeu na luta por suas prerrogativas, e as mulheres, uma fabricao

    dos deuses que se assemelha ao homem, mas no da ordem do humano.O quinho feminino permanece, pois, inde nido, na separao dos seres:feras, homens, deuses.

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    2.1.2- Os Trabalhos e os Dias:

    Encontraremos na narrativa do mito de Prometeu emOs Trabalhose os Dias um outro desdobramento em relao a fabricao da mulher.Neste poema no se trata de narrar a gnese do cosmos. O que entra em jogo a condio humana j estabelecida, de nida necessariamente peloesforo do trabalho, pela mortalidade, pelo casamento. Nos Trabalhos, Hesodo nomeia a mulher. No se menciona,

    entretanto, em nenhum momento, o fato de Pandora sera primeiramulher, da qual descende a raa das mulheres como um todo. Nose trata, portanto, da provenincia das femininas mulheres, comona Teogonia. Os deuses criaram, na forma de virgem semelhante sdeusas imortais, um ser ambguo porque feito da ambiguidade prpria mtis. A duplicidade da inteligncia curva no mostra o que faz, nemo que . A ao astuciosa feita de ocultao. O ser feito demtis umser queesconde, e comomechan (armadilha que seduz), um ser semfundamento alm de sua prpria destinao ao engano,apat . A seduo, a ocultao e o engano so os atributos constitutivosde Pandora. Enquanto aTeogonia ocupava-se da origem dognosgynaikn, de sua constituio, como raa, fora do grupo dos humanos,Os Trabalhos e os Dias no aborda a questo em termos de proveninciae descendncia. No se fala de Pandora como a origem de um grupo parte. Detm-se, por outro lado, em seus atributos: descrio detalhadados dons que formam a mulher, atribuio de cada dom, ou de cadadolo, aos deuses que o ofereceram; construo do feminino a partir dessesdons divinos. Na narrativa, othama dilui-se: Pandora transforma-se em feminino, pela enumerao do rol de seus atributos. Ao se decompor a narrativa, chega-se aos seguintes termos, ligando

    deuses e dons (TRA, vv. 42-105):a) Zeus ordena que:

    - Hefesto misture terra e gua, colocando a fora e voz humanas,

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    46Captulo 2: Alteridade e Feminino

    assemelhando-ade rosto s deusas imortais. Este primeiro passofar da criatura de barro uma bela forma de virgem.- Atena ensine-lhe o trabalho de tecer o mltiplo e intrincadotecido.- Afrodite rodeie-a de graa, desejo, e preocupaesdevoradoras de membros.-Hermes ponha na criatura esprito de co e dissimuladaconduta.

    b) Os deuses obedecem:

    b.1) Molda-se a forma:- Hefesto da terra plasmou-a conforme recatada virgem- Atena cingiu-a e adornou-a.- As deusas Graas e a Persuaso puseram colares de ouro emtorno do pescoo.- As Horas coroaram a cabea com ores.- Atena termina a obra, ajustando-lhe ao corpo os adornos.

    b.2) Insu a-se-lhe o esprito:- Trabalho de Hermes, que lhe forja no peito mentiras, palavrassedutoras, e nda por dar-lhe voz.

    Na fabricao de Pandora intervm, pois, os deuses Hefesto, Atena,Hermes e Afrodite, substituda na segunda parte da narrativa pelas Graas,pela Persuaso e pelas Horas. Apesar da continuidade dos fatos, dadaspela introduo Zeus ordena, e em seguida cumprem os imortais,a descrio detalhada daquilo que foi cumprido pelos imortais no gratuita.

    Na primeira parte, Zeuscria o feminino. Elemaquina o feminino,concebendo-o como estratagema. Se a mulher que os deuses o ajudam aforjar uma armadilha, ela deve atrair com palavras sedutoras e mentiras,por sua forma humana e rosto divino. Aos deuses desdobrarem-se, em

    seus respectivos domnios, para produzir a obra acabada, a virgemoferecida como noiva ao irmo de Prometeu. O modelo que Zeus oferece aos imortais compe-se, pois, da seguinte

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    forma: humana voz e fora, semelhana de rosto as deusas imortais,bela forma de virgem, trabalho de tecer, graa, desejo e preocupaesdevoradoras de membros, ou falta de medida em relao aost aphrodsia,esprito canino e conduta dissimulada. Sob este modelo, os deusesproduzem aquela que de cada um tem um dom, um mal aos homens quecomem po. A segunda parte particulariza o modelo ao transform-lo emnoiva, e so as imagens ligadas a preparao da virgem, que antecede aocasamento, aquelas que dominam. No casamento, necessrio aos homens,ofuscados pela beleza da virgem recatada, os humanos no percebem

    aquilo que a noivaoculta: a armadilha do feminino, o mal que consomeos homens em sofrimento, em trabalho, em fome, em sexo. A invencvel trapaa de Zeus no se esgota na constituio dofeminino, na fabricao da mulher. Ao penetrar na casa do homem,aceita por Epimeteu, a mulher abre a tampa do jarro, espalhando entrea grei dos humanos ( phlanthrpon) males invisveis e silenciosos,deixando oculta aelps (esperana). A partir de ento os homensconvivem com as doenas, com mil pesares, a merc da Necessidade.Pandora o nome da mltipla armadilha, da mltipla priso: trabalho,fome, doenas, mortalidade, imprevidncia (ausncia deelps). Aparticipao da mulher no estabelecimento do quinho humano ,portanto, decisiva. No por sua ao, mas por sua prpriacondio. Istoequivale a dizer que no responsabilidade feminina que se devemos males do humano, mas a sua condio de armadilha invencvel. A condio da mulher junto ao mundo delimitado para o humano marcada por seus atributos, aqueles doados pelos deuses, e que fazemdela um imbatvel ardil. Raa estranha, descendncia doespanto, cujoestatuto no se reconhece nem como humano, nem como divino, nemcomo selvagem, ognos gynaikn d lugar ao inde nido, ao duvidoso,ao ambguo. Melhor seria que no se falasse dele. Mas fala-se. Ainda

    no perodo arcaico, por exemplo, os versos de Semnides de Amorgosprocuram descrever o esprito feminino, seguindo passo por passo osmesmos temas que inspiram os poemas de Hesodo. Semnides compe

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    48Captulo 2: Alteridade e Feminino

    um deboche. Ou seria melhor acreditar que ele fala do gnero femininoda nica maneira em que vale a penalembr-lo: por meio da Censura?

    2.2-GYNAIKS NON :

    Primeiro Zeus criou diferentemente o esprito feminino. Assimse inicia a narrativa do poeta Semnides de Amorgos, no sculo VIIa.C.. O que se segue um catlogo, ao qual bem se pode dar o nome debestirio. Catlogo das mulheres, ou melhor, das diferentes phla, ou

    tribos, de mulheres. Os jambos de Semnides nos sugerem que o poeta havia se inspiradoem uma abordagem singular da estria de Pandora. Semnides decompea gura de Pandora, multiplicando pelos espritos os atributos daprimeira mulher. Ao mesmo tempo em que o faz ele diversi ca essesmesmos atributos, especi ca a existncia de um feminino sado daabelha, dando origem nica tribo feminina a qual no se liga nenhumareprovao. Mas uma das grandes diferenas entre Hesodo e Semnides que osversos deste ltimo so compostos para suscitar a Censura. Semnidesatira ao escrnio as tribos de mulheres. A fronteira entre o escrnio, oriso e a censura, entretanto, muito tnue, seno nula ( LORAUX, 1990,pp 112-113); e em relao mulher, ao falar da mulher, rir, censurar, eestabelecer as fronteiras entre a raa e a humanidade, so passos dadosem conjunto, na mesma direo. Em outras palavras, ao fazer rir dastribos de mulheres, o poema de Semnides estabelece para elas lugar epresena no mundo dos homens: lugar da censura, da falta de medida,do artifcio.

    O plano do catlogo dado pelo conjunto das expressest prta (primeiro, inicialmente),tn mn/tn d (uma/ outra, por um lado/ por

    outro lado), eek (vir de, sair de, com sentido de gnese, metamorfoseou fabricao). De um incio feito de diferente criao do espritofeminino, parte-se para a enumerao dos tipos iniciais como blocos

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    estanques: uma, ada porca outra, ada raposa . Simultaneamente,realiza-se aderivao: Outra deus fez da maliciosa raposa, de modoque cada bloco representado pelas guras, ao todo dez (porca, raposa,cadela, terra, mar, mula, doninha, gua, macaco, abelha), apresenta umplano temporal isolado das demais. No h interpenetrao entre umbloco e outro. Podemos construir, assim, o esquema seguinte:

    NIVEL 1: NIVEL 2: Esprito feminino NIVEL 3: (atributos):Primeiro derivao phla(t prta), mnd Porca -ek -casa em lama Caractersticas

    -no se lava gerais: -engordaRaposa -ek - maliciosa (tempo humano) - tudo sabeCadela -ek -tudo quer ouvir presente de Zeus e ver

    -intil grito - artifcioTerra (Modelada -estropiada bem e mal a partir da -nada sabe terra) -comeMar -ek -de dupla forma

    o corao senteMula -ek -come censura -acolhe qualquer

    companheiro para os atos

    de AfroditeDoninha -ek -lamentvel raa destino

    -leito de Afrodite do homem -rouba

    -come as carnesconsagradas e as no consagradasgua (engendrou -no trabalha escrnio(mmos) ; pariu) -banha-se demais -belo espetculo para estranhosMacaca -ek -fessima grilho -riso (provoca e ri)

    -mal

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    50Captulo 2: Alteridade e Feminino

    NIVEL 1: NIVEL 2: Esprito feminino NIVEL 3: (atributos):Primeiro derivao phla(t prta), mnd Abelha -ek -no h censura -clebre prole - orescem os

    bens da casa -no se senta em companhia

    de outras mulheres -no fala nos atos de Afrodite

    Para melhor falar das mulheres, o poema de Semnides multiplicao esprito feminino, que, nosTrabalhos e os Dias surgia simplesmentecomo esprito de co, dissimulada conduta. A cada esprito o poetarelaciona um animal, alm de terra e mar, como metfora (id., pp.101-105). A mulher temalgo de raposa, ou o esprito feminino tem algodo mar, seriam as formas mais apropriadas para unir a diversidade dasespcies femininas aosmodos sob os quais surgiramno incio . Da porca. Isto signi ca ao mesmo tempo descende da, saida, mas tambm fabricada como. Esta variedade de signi caes inerente ao termoek , que s no usado em dois casos: da terra a mulherderiva como uma obra de sua matria prima ( modelada por Zeus coma terra), da gua ela literalmentenasce. O primeiro caso, entretanto,con rma a escolha da traduo deek em termos de fabricao: Zeus

    criou o esprito femininoa partir do modo de ser da porca, ou da cadela,da macaca, da abelha. O segundo caso evidencia ainda mais a metfora:a mulher vaidosa e avessa ao trabalho no uma gua, nem tem comoantepassado um animal. O que a gua concebe no a prpria mulher,mas seuesprito. O uso do verboggnomai ampli ca a relao entre oanimal e os atributos femininos: a gua delicada e de longas crinasassemelha-se mulher que por causa de trabalhos servis e de a iotreme toda(), e, sempre a cabeleira estendida leva, espessa()(vv.62-65).

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    Em relao a origem das mulheres, portanto, pode entender-seque elas vm da terra, do mar, da cadela; ou, mais acuradamente, queZeus as criou todas, umas a partir das propriedades da terra, outras, apartir das propriedades de certos animais. Neste sentido, em relaoa origem, permanece a estria dos poemas de Hesodo: fabricaode Zeus presenteada aos homens. verdade que no h mais ognosgynaikn. Em compensao, a unidade da raa gerada pela primeiramulher desintegra-se em uma srie de probabilidades, que so as tribos.A mulher continua, entretanto, descendendo dela mesma. O catlogo de

    Semnides rea rma o isolamento das tribos de mulheres dos homens,deuses, e animais, na medida em que a mulher no nenhum dos animais,a partir dos quais os deuses a criaram. Os atributos que descrevem o esprito feminino em cada triboapresentam as mulheres assim como Hesodo as apresentava, seja comPandora nosTrabalhos, seja com a raa das mulheres, naTeogonia.A mulher no trabalha, glutona, volvel e mesquinha, seus nicosinteresses levam s conversas vis e aos atos de Afrodite. O poeta vai maislonge: ao fazer com que os espritos femininos derivem de uma matriaque no humana, Semnidesdesumaniza os atributos que os compem.A preguia, a mesquinhez, a glutonaria, no eram da ordem do humano,no comeo. Presentes no mundo, as tribos de mulheres lanam tambmesse mal aos homens. Felizmente, o acaso pode unir-nos

    melsses abelha. No tempo

    humano, Semnides fala aos seus ouvintes das mulheres que vivem comeles, e da probabilidade de unir-se, dentre todas as espcies ruins, comaquela a qual nenhuma censura se liga, a mulher-abelha. Esta espciefeminina o reverso de todos os males atribudos mulher. Zelosa dosbens da casa, amiga de seu marido, inimiga das conversas entre mulheres,as conversas erticas, a mulher-abelha um verdadeiro presente dos

    deuses. Entretanto, ela tambm uma mulher. Pode ser uma iluso (vv.107-110), j que naquilo em que o constitui, o feminino um artifcio:quando se imagina ter a mulher perfeita, no se enxerga o engano. No ser

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    52Captulo 2: Alteridade e Feminino

    feminino, bem e mal se confundem, e o homem no pode se ar naquiloque v. Esta a concluso do poema de Semnides. De Hesodo a Semnides pode no se ter passado um intervalo muitogrande de tempo. Mas a abordagem do feminino em termos de alteridadeno uma caracterstica somente do perodo arcaico. Hesodo, em suasduas obras, fornece uma explicao mtica do fenmenognos gynaikn.Semnides, ao evocar sobre as mulheres o deboche, oferece uma formade apreenso do feminino enquanto phla, ou tribos de mulheres. De forma geral, os atributos da alteridade do feminino so

    qualidades ligadas provenincia ardilosa das mulheres, que as tornamsuscetveis ao estranhamento. Em primeiro lugar, oardil. Fundamentodo ser feminino, amtis marca a presena da mulher entre os homensque, pelamtis, se tornam imprevidentes (incapazes de antecipar eprojetar-se contra um artifcio). Em segundo lugar, oespanto. Belo eMal, qualidades incompatveis mesmo para a lngua grega, unem-separa dizer aquilo que a mulher. O engano (apat ) decorre das duasprimeiras qualidades, e constitui o feminino na medida em que convivercom a mulher estar constantemente sujeito aporia. A dissimulao, aseduo, a desmedida ertica e a glutonaria, a preguia so atributos que

    nalizam a descrio das propriedades da raa das mulheres, e das tribosde femininas mulheres. Como raa, ou comounidade, como tribo, oucomodiversidade, a condio feminina no se confunde com a condiohumana. A mulher faz parte do quinho humano, mas sua participaotermina a. Entre o mundo selvagem, o Costume que rege a vida humana,e a sociedade dos deuses, ognos gynaikn permanece inde nido e, porisso mesmo, ambguo. Da ambiguidade da raa das mulheres deriva a capacidade dofeminino em presenti car ooutro do prprionmos. A Tradio,o Costume, a ordem humana, aquilo que se estabelece na partilha

    dos domnios, entre homens, feras, e deuses. Do domnio das feras,o feminino se aproxima, tanto quanto do domnio humano. No seconfunde, entretanto, nem com um nem com outro. Para a sociedade

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    dos deuses, o feminino o estratagema, assim como para a sociedadehumana, a armadilha. A mulher brota nas fronteiras, nos intervalosentre as esferas. A Reprovao da sociedade dos homens assemelha-a aosanimais; mas a necessidade de procriar e garantir descendncia a tornahumana. Habitando a morada dos homens, o feminino carrega consigoa possibilidade do estranhamento, do afastamento das tarefas cotidianas.Assim se de ne a a nidade entre a raa das mulheres e oestranho. Ofeminino traz consigo o estigma de seu nascimento o ardil divino.

    Comognos ou como phla, as mulheres so objeto de discurso namesma medida em que se encontram fora da tribo dos homens, em quefornecem, por sua provenincia, material para provocar oriso, ou paraprovocar oespanto. No nal do sculo V a.C., encontraremos ainda oriso e o espanto, no teatro de Eurpides e de Aristfanes. Encontraremos o

    eco dos espritos femininos, do artifcio divino, do mal e da estranhezada mulher com relao aonmos. Isto no quer dizer que Hesodo eSemnides sejam os primeiros a de nir o feminino como artifcio, nemque Eurpides e Aristfanes sejam os ltimos a faz-lo. O que perpassaas obras de Hesodo, de Semnides, de Eurpides, de Aristfanes, um mesmotopos, um mesmo lugar de produo do imaginrio dofeminino na Grcia Antiga. Da mesma forma, no se trata, de Hesodo

    a Xenofonte, de copiar modelos preestabelecidos. Uma obra, quer sejaum poema de Hesodo ou uma Tragdia de Eurpides, no diz a mesmacoisa, mesmo que utilize os mesmostopoi: a composio, os ouvintes,os espectadores, os ns so outros. Por isso, aps a compreenso dealgumas das implicaes do acontecimento mtico que origina a raadas mulheres, deve-se explicar por que a construo da mulher esteser votado ao estranhamento, ao deboche e censura d lugar aodiscurso profundamente poltico